Revista do GELNE, NATAL, n.13, v.1/2, 2011

July 19, 2017 | Autor: R. Gelne | Categoria: Lingüística, Letras
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GRUPO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO NORDESTE

REVISTA DO GELNE Marco Antonio Martins (UFRN) Sulemi Fabiano Campos (UFRN) Lucrécio Araújo de Sá Júnior (UFRN) Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN) (Organizadores)

Revista do Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste

Natal

ISSN 1517-7874 versão impressa - ISSN 2236-0883 versão online

Vol. 13

Números 1/2

2011

GRUPO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO NORDESTE Todos os direitos reservados ao GELNE Editoração Eletrônica Patricia Mabel Kelly Ramos Revisão Marly Rocha Medeiros de Vargas Luciana Braga Carneiro Leitão

Revista do GELNE - Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste - Vol. 13 - Números 1/2 - Natal: EDUFRN, 2011 Semestral ISSN 1517-7874 versão impressa ISSN 2236-0883 – versão online 1. Língua - Linguistica - Periódicos I. Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste

Endereço para correspondência: Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste Sede Biênio 2010-2012 Universidade Federal do Rio Grande do Norte Av. Salgado Filho, nº 3000, sala 309 Campus Universitário/CCHLA - CEP: 59.078-970 Fone/Fax: (84) 3215-3579 Natal

REVISTA DO GELNE

Marco Antonio Martins (UFRN) Sulemi Fabiano Campos (UFRN) Lucrécio Araújo de Sá Júnior (UFRN) Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN) (Organizadores)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE COMISSÃO EDITORAL

CONSELHO EDITORAL

Marco Antonio Martins Lucrécio Araújo de Sá Júnior Maria das Graças Soares Rodrigues Sulemi Fabiano Campos

Anna Christina Bentes (UNICAMP) Antonia Dilamar Araújo (UECE) Ataliba Teixeira de Castilho (USP) Carmen Lúcia Barreto Matzenauer (UCPel) Célia Marques Telles (UFBA) Cláudia Roberta Tavares Silva (UFRPE) Dermeval da Hora (UFPB) Erotilde Goreti Pezatti (UNESP) Ingedore Vilaça Koch (UNICAMP) Iveuta de Abreu Lopes (UESPI\UFPI) Izete L. Coelho (UFSC) Janaina Weissheimer (UFRN) José S. Magalhães (UFU) Júlio César Rosa de Araújo (UFC) Jussara Abraçado (UFF) Maria Aparecida Barbosa (USP) Maria do Socorro Simões (UFPA) Maria Lobo (Universidade Nova de Lisboa) Raquel Freitag (UFS) Renato Basso (UFSC) Roberval Teixeira e Silva (Universidade de Macau) Ruth Lopes (UNICAMP) Sônia Maria Van Dijck Lima (UFPB) Stella Maris Bortoni-Ricardo (UNB) Sueli Cristina Marquesi – (PUC\SP) Valdemir Miotello (UFSCar) Valéria Monaretto (UFRGS) Vanda Elias (USP) Vanderci Aguilera (UEL)

CONSELHO TITULARES Profª. Dra. Denilda Moura (UFAL) Prof. Dr. José de Ribamar M. Bezerra (UFMA) Profª. Dra. Márcia Teixeira Nogueira (UFC) Profª. Drª. Maria Auxiliadora F. Lima (UFPI) Prof. Dr. Rubens Marques de Lucena (UFPB) Prof. Dr. Wagner Rodrigues Silva (UFT)

CONSELHO SUPLENTES Prof. Dr. Aldir Santos de Paula (UFAL) Profª. Drª. Conceição de Mª A. Ramos (UFMA) Prof. Dr. Diógenes Buenos Aires (UEMA) Profª. Drª. Catarina de S. S. M. da Costa (UFPI) Profª. Drª. Cláudia Roberta T. Silva (UFRPE) Profª. Drª. Marília de Nazaré O. Ferreira (UFPA)

GRUPO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO NORDESTE - GELNE DIRETORIA – Biênio 2010-2012 Presidente

Prof. Dr. Marco Antonio Martins (UFRN)

Vice-Presidente

Profª. Drª Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN)

Secretária

Profª. Drª Sulemi Fabiano Campos (UFRN)

Tesoureiro

Prof. Dr Lucrécio Araújo de Sá Júnior (UFRN)

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Marco Antonio Martins, Sulemi Fabiano Campos

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UMA ANÁLISE PERCEPTUAL DO ACENTO SECUNDÁRIO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Tatiana Keller

11 A VOGAL MÉDIA PRETÔNICA NAS CAPITAIS DA REGIÃO NORTE DO BRASIL Marcelo Pires Dias, Marlúcia Barros de Oliveira

33 A HAPLOLOGIA E O PRINCÍPIO DO CONTORNO OBRIGATÓRIO Taíse Simioni, Fabiana Urrutia Amaral

53 QUALIDADE DAS VOGAIS MÉDIAS ABERTAS E GRAU DE TONICIDADE: UMA ANÁLISE ACÚSTICA Marian Oliveira, Vera Pacheco

69 CONSTRUÇÕES GENITIVAS, EXTRAÇÃO E DEFINITUDE NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Adeilson Pinheiro Sedrins

83 SUJEITOS DESCOLADOS À ESQUERDA E MUDANÇA PARAMÉTRICA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Mayara Nicolau de Paula, Mônica Tavares Orsini

107 ESTUDOS DOS COMPLEMENTOS INDIRETOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O ENSINO Lucilene Lisboa de Liz

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O PROCESSAMENTO DE EXPRESSÕES CORREFERENCIAIS EM PORTUGUÊS BRASILEIRO: NOMES REPETIDOS, PRONOMES PLENOS E PRONOMES NULOS Jefferson de Carvalho Maia, Maria Luiza Cunha Lima

147 PADRÕES DE USO DO LOCATIVO AÍ NO PORTUGUÊS ESCRITO DO SÉCULO XVIII AO XX Mariangela Rios de Oliveira, Rodrigo da Costa Barcellos

173 O VERBO “METER”: DA ESTRUTURA PROTOTÍPICA ÀS EXTENSÕES SEMÂNTICO-COGNITIVAS Isabela Venceslau Fortunato

197 GERUNDISMO: VARIAÇÃO E PRECONCEITO LINGUÍSTICO Fábio Fernandes Torres, Márluce Coan

225 A MOTIVAÇÃO TOPONÍMICA NA ESCOLHA DOS DESIGNATIVOS DE ORIGEM INDÍGENA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL Lucimara Alves da C. Costa

249 NOTÍCIA EM JORNAL IMPRESSO: DISCURSO, ATIVIDADE E EFEITOS DE SENTIDO Élida Lima, Maria da Glória Corrêa di Fanti

267 ATIVIDADES DE COMPREENSÃO DE GÊNEROS DIGITAIS EM LIVROS DIDÁTICOS Bendito Gomes Bezerra, Amanda Cavalcante de Oliveira Lêdo

293 GÊNEROS TEXTUAIS E LETRAMENTO NO CONTEXTO DA SURDEZ Wagner Teobaldo Lopes de Andrade, Francisco Madeiro

319 O ESTÁGIO CURRICULAR E A FORMAÇÃO CRÍTICA DOS PROFESSORES Lucrécio Araújo de Sá Junior, Sulemi Fabiano Campos

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APRESENTAÇÃO Publicam-se, neste volume 13 da Revista do GELNE, números 1 e 2, dezesseis artigos de diferentes pesquisadores do Brasil e do exterior. No primeiro artigo, Uma análise perceptual do acento secundário no português brasileiro, Tatiana Keller apresenta uma pesquisa experimental sobre o acento secundário em português na variedade falada em Porto Alegre. Em conclusão da pesquisa, a autora assume que um acento secundário é percebido de forma consistente na pretônica inicial, mas também, é possível que se manifeste na 2a sílaba pretônica em um número muito reduzido de palavras. Em A vogal média pretônica nas capitais da região norte do Brasil, Marcelo Pires Dias e Marilúcia Barros de Oliveira descrevem o comportamento da vogal média pretônica posterior tendo em vista a fala de seis capitais da região Norte do Brasil. No artigo de Taíse Simioni e Fabiana Urrutia Amaral, A haplologia e o princípio do contorno obrigatório, descreve-se e analisa-se a ocorrência de haplologia na cidade de Bagé/Rio Grande do Sul. Mostrando que sequências com a mesma vogal e com consoantes de igual vozeamento dentro de uma mesma frase fonológica exercem papel favorecedor para a ocorrência de haplologia, as autoras apresentam evidências para o Princípio do Contorno Obrigatório. Em Qualidade das vogais médias abertas e grau de tonicidade: uma análise acústica, Marian Oliveira e Vera Pacheco, avaliando a qualidade das vogais médias abertas em sílabas tônicas e pretônicas, em gravações em cabine acústica, mostram que somente as vogais médias abertas arredondadas tendem a alterar o seu padrão formântico nas sílabas tônicas e pretônicas. Apresenta-se no artigo de Adeilson Pinheiro Sedrins, Construções genitivas: extração e definitude no Português Brasileiro, uma análise da sintaxe das construções genitivas do português brasileiro, tendo em vista os pressupostos da teoria gerativista, em sua versão minimalista. Na proposta do autor, “os diferentes padrões de extração de genitivos encontrados no inglês, no espanhol e no português brasileiro, devem-se à posição em que o artigo é realizado nessas línguas, bem como à categoria que licencia genitivos em cada uma delas.”

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Mayara Nicolau de Paula e Mônica Tavares Orsini, em Sujeitos deslocados à esquerda e mudança paramétrica no Português Brasileiro, investigam“uma das estratégias de construção de tópico marcado denominada deslocamento à esquerda de sujeito, nas falas culta e popular do dialeto carioca.” Em Estudo dos complementos indiretos do português brasileiro: uma contribuição para o ensino, Lucilene Lisboa de Liz, partindo da hipótese de que “é possível identificar pelo menos duas classes de verbos triargumentais”, apresenta uma análise dos complementos indiretos de verbos triargumentais, os bitransitivos em português, buscando “mostrar a importância de estabelecer a interface entre os estudos dos fenômenos da língua pautados na hipótese inatista de aquisição de linguagem e o ensino”. No artigo de Jefferson de Carvalho Maia e Maria Luiza Cunha Lima, O processamento de expressões correferenciais em português brasileiro: nomes repetidos, pronomes plenos e pronomes nulos, investigando “o papel de nomes repetidos, pronomes plenos e nulos no estabelecimento da coesão referencial em português brasileiro”, mostramse evidências de que pronomes nulos são as formas mais facilmente processadas quando da retomada de antecedentes em posição de sujeito. Em Padrões de uso do locativo aí no português escrito do século XVIII ao XX, de Mariangela Rios de Oliveira e Rodrigo da Costa Barcellos, descrevem-se e analisam-se os padrões de uso do locativo “aí” em peças de teatro dos séculos XVIII ao XX, considerando questões correlacionadas à ordem e sentido desse item assim como à “sua mudança categorial de advérbio para conector, detectada em alguns contextos”. Isabella Venceslau Fortunato, em O verbo “meter”: da estrutura prototípica às extensões semântico-cognitivas, analisa a combinação semântico-sintática do verbo “meter” no Português Brasileiro (PB) e no Português Europeu (PE), apresentando evidências de que “o PB e o PE utilizam o mesmo verbo para denominar domínios semânticos diferentes”. O estabelecimento de critérios para definir uma perífrase gerundiva como gerundismo no Português Brasileiro, assim como questões relacionadas ao preconceito linguístico associado a essas construções, é o tema do artigo Gerundismo: variação e preconceito linguístico de Fábio Fernandes Torres e Márluce Coan.

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No artigo A motivação toponímica na escolha dos designativos de origem indígena do estado de mato grosso do sul, Lucimara Alves da C. Costa define e apresenta uma classificação, uma taxonomia e uma provável “motivação toponímica dos topônimos indígenas presentes no processo de nomeação dos acidentes físicos e humanos existentes na zona rural das regiões de Aquidauana, Corumbá e Miranda, no Estado de Mato Grosso do Sul.” Em Notícia em jornal impresso: discurso, atividade e efeitos de sentido, de autoria de Élida Lima e Maria da Glória Corrêa diFanti, analisam-se as características da constituição da notícia em jornal impresso, tomando como exemplo uma notícia, publicada no Jornal Zero Hora (RS) em 24 de julho de 2006. As autoras apontam para as particularidades da constitutiva e a tensa relação com o discurso do outro e possíveis implicações na atividade do jornalista. Admitindo que “não se trata apenas de incluir os gêneros digitais no livro didático, mas incluí-los e explorar sua presença de forma adequada para a formação dos estudantes”, Benedito Gomes Bezerra e Amanda Cavalcante de Oliveira Lêdo, no artigo Atividades de compreensão de gêneros digitais em livros didáticos, apresentam evidências de que “os gêneros digitais ainda figuram timidamente nos livros didáticos e são pedagogicamente explorados de forma limitada.” Ainda versando sobre gêneros textuais, Wagner Teobaldo Lopes de Andrade e Francisco Madeiro, no artigo Gêneros textuais e letramento no contexto da surdez, mostram que, dentre as principais estratégias e materiais possíveis de ser utilizados para proporcionar uma maior aproximação entre o autor surdo e a língua portuguesa, “destacam-se a internet (e sua enorme gama de possibilidades textuais, multimodais ou não, incluindo hipertextos), livros (didáticos ou não), jornais, revistas e gibis.” Uma reflexão sobre a formação de professores, tendo em vista relatórios produzidos por alunos concluintes de um curso de Letras é o tema do artigo de Lucrécio Araújo de Sá Júnior e Sulemi Fabiano Campos, O estágio curricular e a formação crítica dos professores. Os autores apontam para a necessidade de “uma mudança frente à formação de professores, considerando que a prática de ensino como sustentação crítica do conhecimento se aplica numa postura em que o professor não

deva assumir frente aos seus alunos um ensino pautado em métodos prémoldados, através de conteúdos pré-definidos e leituras engessadas.”

Marco Antonio Martins Sulemi Fabiano Campos Agosto de 2012

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UMA ANÁLISE PERCEPTUAL DO ACENTO SECUNDÁRIO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO SECONDARY STRESS IN BRAZILIAN PORTUGUESE: A PERCEPTUAL RESEARCH Tatiana Keller Universidade Federal de Santa Maria RESUMO Neste artigo, apresentamos resultados de pesquisa experimental sobre o acento secundário em português brasileiro, especialmente na variedade falada na cidade de Porto Alegre. Tomamos como base a análise fonológica de Collischonn (1994) e a análise acústico/perceptual de Moraes (2003). Nesta pesquisa, adotamos a metodologia de Moraes (2003) que consiste na gravação de frases lidas por locutores e posterior audição por falantes de português. Com base no julgamento desses falantes, procuramos determinar a ocorrência de acento secundário e sua localização, buscamos também verificar se este acento manifesta-se mais de uma vez em um mesmo vocábulo. Nossos resultados apontam que, em geral, um acento secundário é percebido de forma consistente na pretônica inicial, mas também, é possível que se manifeste na 2a sílaba pretônica em um número muito reduzido de palavras. Percebemos ainda indicativos para a incidência de mais de uma proeminência secundária por vocábulo. Palavras-chave: acento secundário; português brasileiro; Fonologia Métrica; Fonologia de Laboratório. ABSTRACT This paper has investigated the secondary stress (SS) in Brazilian Portuguese spoken in Porto Alegre city. It is based on Collischonn (1994)’s phonological analysis and Moraes (2003)’s acoustic/perceptual analysis. In this study we have adopted Moraes (2003)’s methods, which consist of the recording of read speech material and the listening by native speakers. Taking into account the listeners’ perception, we sought to determine secondary stress location and to verify if there is more than a SS per word. Our results showed that there is a secondary stress in the first pretonic syllable in a great number of words and that there is a secondary stress in the second pretonic syllable just in a few words. We also noticed that there are some cues to the existence of more than one secondary stress per word.

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Keywords: secondary stress; Brazilian Portuguese; Metrical Phonology; Laboratory Phonology.

INTRODUÇÃO Este trabalho diz respeito à ocorrência de acento secundário no português brasileiro (doravante, PB), especialmente na variedade falada no sul do país. Esse acento pode ser caracterizado como um acento que ocorre à esquerda do acento primário, com uma menor proeminência. Sua ocorrência pode ser exemplificada nas palavras (a sílaba que o recebe está em itálico e com um acento grave): còlibri; pròbabìlidade; ìrrespònsabìlidade1. Nesta pesquisa, consideramos, conforme Liberman e Prince (1977), que o acento reflete uma estrutura rítmica hierárquica que organiza as sílabas, as palavras e as frases de uma sentença em sequências acentuadas e nãoacentuadas, diferentemente de outras abordagens (a gerativista standard, por exemplo), que consideram o acento como uma propriedade de segmentos individuais, especialmente das vogais. No PB, o acento secundário, diferentemente do primário, não é distintivo, isto é, não temos pares mínimos opondo vocábulos em função de distintas localizações do acento secundário; no entanto, existem evidências fonológicas e fonéticas para a sua realização. Dentre as evidências fonológicas, citamos os trabalhos de Câmara Jr. (1970) e Major (1985). Quanto aos correlatos fonéticos, citamos a análise de Moraes (2003). Câmara Jr. (1970) não fala explicitamente em acento secundário, mas admite que existam no PB graus diferentes de acento. O autor também menciona que as sílabas pretônicas são menos débeis do que as postônicas, o que sugere que estas sejam, de alguma forma, menos proeminentes do que aquelas. Major (1985) diz que no nível da palavra há dois graus de acento no PB: a sílaba tônica carrega acento primário, sílabas pretônicas portam acento secundário e sílabas postônicas não recebem acento. Tal afirmação é sustentada por uma análise instrumental da duração das sílabas. Essa análise mostra que as sílabas tônicas são mais longas, as postônicas, mais 1

Sempre que uma transcrição fonética não for necessária, esta será substituída pela ortografia comum das palavras.

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curtas e as pretônicas, intermediárias. Segundo o autor, em muitas línguas, a ausência de acento está associada à simplificação de estruturas silábicas – por exemplo, diminuição no número de segmentos possíveis, simplificação de grupos de consoantes ou mudança de uma sílaba pesada para leve. O PB mostra grandes diferenças no padrão fonotático entre sílabas pretônicas, postônicas e tônicas: o maior número de combinações pode ocorrer tonicamente, um número um pouco menor pretonicamente e o menor número de combinações pode ocorrer postonicamente (cf. CÂMARA JR., 1977). Para Major, certos processos fonológicos, tais como redução ou encurtamento, levantamento, monotongação e alternâncias silábicas, aplicam-se mais em sílabas postônicas do que em pretônicas. Processos que ocorrem pretonicamente ocorrerão postonicamente, mas o inverso não ocorre, o que sugere que sílabas pretônicas carregam mais acento do que sílabas postônicas. No que diz respeito aos correlatos fonéticos do acento secundário no PB, embora os resultados de Moraes (2003) não sejam conclusivos, os parâmetros acústicos associados a esse acento podem ser frequência fundamental ou a conjunção de duração e de intensidade2. Dentre os estudos que norteiam nossa análise, os principais são os de Collischonn (1993, 1994) e de Moraes (2003). No que diz respeito ao acento secundário em português, Collischonn (1994) conclui que este acento: (i) pode ser encontrado mais de uma vez em um mesmo vocábulo (se este tiver quatro ou mais sílabas pretônicas); (ii) segue alternância binária; e (iii) pode alternar sua incidência entre a primeira e a segunda sílaba em palavras com número ímpar de sílabas pretônicas. Moraes (2003) faz uma análise acústica e perceptual do acento secundário e verifica que, geralmente, ocorre apenas um acento secundário por vocábulo e que existem dois padrões de acento: o de proeminência inicial, acento secundário recai na primeira sílaba e o de alternância binária, sob a forma de pés troqueus. A maioria dos informantes de Moraes, três de quatro, apresentam o padrão de proeminência inicial e apenas um informante apresenta o padrão de alternância binária. Tais resultados diferem das conclusões de Collischonn, ou seja, a análise fonética/perceptual parece não estar de acordo com as predições da análise fonológica. 2

Gama-Rossi (1998) também investiga parâmetros acústicos para o acento secundário em português brasileiro.

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Em nosso trabalho, primeiramente, queremos testar os resultados de Moraes (2003) para o falar de Porto Alegre. Com isso, pretendemos verificar se nossos resultados confirmam os resultados encontrados por esse autor ou se confirmam as conclusões de Collischonn (1994), ou ainda se eles vão nos mostrar uma interação entre os resultados encontrados pelos dois tipos de análise. Nesse sentido, nosso trabalho aproxima-se das pesquisas da chamada Fonologia de Laboratório (KINGSTON e BECKMAN, 1990), a qual busca uma interação ou interface entre fonética e fonologia. A aplicabilidade de nossos resultados encontra-se, primeiramente, no desenvolvimento da pesquisa descritiva sobre o português brasileiro. Nesse âmbito, os resultados poderão também encontrar, no futuro, aplicação em desenvolvimento de sintetizadores da fala ou outras ferramentas que usam como suporte a língua portuguesa falada. Este trabalho está organizado assim: na seção 1, resenhamos os trabalhos de Collischonn (1994) e de Moraes (2003); na seção 2, apresentamos a metodologia de análise; na seção 3, discutimos os resultados para cada um dos locutores que compõem a pesquisa3.

1. Acento secundário em português: Collischonn (1994) e Moraes (2003) 1.1 Análise de Collischonn (1994) Collischonn (1994) analisa o acento secundário sob uma perspectiva fonológica, com base em abordagens métricas como as de Liberman e Prince (1977) e Halle e Vergnaud (1987), entre outras. A autora limita sua análise a palavras isoladas (simples ou compostas), ou seja, não analisa a interferência do contexto sintático. Dentre as questões discutidas pela autora, destacamos as que tratam: 1) do posicionamento do acento secundário nos vocábulos; 2) do número de acentos secundários por vocábulo; 3) da possibilidade de alternância de incidência desse acento entre sílaba inicial e não-inicial. 3

Keller (2004) apresenta também resultados para cada um dos grupos de vocábulos.

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No que diz respeito à questão 1, as posições que o acento secundário pode ocupar de acordo com o número de sílabas pretônicas das palavras são as seguintes: i) Nas palavras em que o número de sílabas pretônicas é par, o padrão é sempre este: a primeira sílaba é acentuada e cada segunda sílaba à direita desta, como observamos nos exemplos em (1). (1)

cò. li. brí prò. ba. bì. li. dá. de ìr. res. pòn. sa. bì. li. dá. de

(ii) Nas palavras em que o número de sílabas pretônicas é ímpar, observamos dois padrões possíveis: (a) a segunda sílaba é acentuada e cada segunda sílaba à direita desta, como se vê em (2). (2)

a. bà. ca. xí res. pòn. sa. bì. li. zar in. cò. mu. nì. ca. bì. li. dá. de

(b) a primeira sílaba é acentuada e o acento seguinte somente cai sobre a terceira sílaba à direita desta. Os exemplos em (3) ilustram esse padrão. (3)

à. ba. ca. xí rès. pon. sa. bì. li. zár ìn. co. mu. nì. ca. bì. li. dá. de

Além da possibilidade de o acento secundário alternar sua incidência entre a 1a e a 2a sílaba em palavras com número ímpar de sílabas pretônicas, Collischonn (1994) também afirma que este acento, ao contrário do primário, não é atraído por sílabas pesadas, terminadas em consoante ou glide, isto é, o acento secundário não é sensível ao peso. Por exemplo, na palavra lagartixa, a sílaba pesada gar não porta acento secundário; na palavra amortecimento, a sílaba pesada mor também não carrega esse acento, ao passo que a sílaba pesada men atrai acento primário.

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A análise de Collischonn aponta também que mais de um acento secundário pode ser encontrado em um mesmo vocábulo (se este tiver quatro ou mais sílabas pretônicas), como nas palavras rès. pon. sa. bì. li. zár e ìn. co. mu. nì. ca. bì. li. dá. de. No PB, considera-se que as sílabas alternam-se em fortes e fracas em intervalos de duas sílabas – alternância binária – como observamos na palavra almofada em (4), ou seja, não ocorrem sequências internas de duas ou mais sílabas desacentuadas, nem sequências de sílabas acentuadas. (4)

àl. mo. fá.da *al. mo. fá.da *al. mó. fá. da

No entanto, conforme Collischonn (1999), “no início da palavra (na margem esquerda), se o número de sílabas pretônicas for ímpar, o acento secundário pode variar entre a segunda e a primeira sílaba” (COLLISCHONN, 1999: 152), como podemos observar nas palavras abacaxi e aprendizagem em (5). (5)

a. bà. ca. xí à. ba. ca. xí

a. prèn. di. zá. gem à. pren. di. zá. gem

Neste caso, quando o acento secundário ficar sobre a primeira sílaba, ocorre uma sequência de duas sílabas desacentuadas. A autora então conclui que “a alternância é de base binária, mas, em virtude de alterações rítmicas, que ocorrem principalmente em sequências ímpares de sílabas pretônicas, pode surgir uma (e apenas uma) sequência ternária” (COLLISCHONN, 1999: 152). 1.2 Análise de Moraes (2003) Moraes (2003) analisou a percepção de cinco ouvintes acerca da realização de acento secundário a partir da fala de 4 informantes4 a fim de: (a) verificar a relevância desse acento para o português brasileiro; (b) definir sua localização e (c) descrever sua realização fonética. O autor elaborou um 4

Moraes (2003) não identifica a origem de seus informantes e ouvintes.

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corpus composto por cinco grupos de quatro vocábulos cada um, de mesma base segmental, em que a localização prevista do acento secundário fosse variando, em consequência do deslocamento do acento lexical primário. O autor optou por utilizar a mesma base segmental, acrescentando uma sílaba pretônica por vez, de tal sorte que se criasse algo como “pares mínimos” no nível das pretônicas. Os grupos de vocábulos foram inseridos em duas frases-veículo (transcritas em (6)) que foram lidas e gravadas por quatro informantes. (6)

(a) Ele disse ___________ de novo. (b) Ele disse ___________ hoje, de novo.

Posteriormente, as frases foram ouvidas por cinco ouvintes que deveriam marcar todas as sílabas que, além das portadoras de acento tônico primário, sentissem, de alguma forma, como proeminentes, na fala dos informantes. Em sua análise, Moraes (2003) investiga se o contexto sintático pode interferir na presença ou localização do acento secundário. O autor considera que a frase (6a) aparece em contexto prosodicamente “forte”, na fronteira de uma frase entonacional e que a frase (6b) aparece em contexto “fraco”, interno à frase entonacional. Os resultados do teste de percepção indicam que dois padrões distintos se manifestam: o de alternância binária (formação de pés troqueus), caracteristicamente encontrado em 1 informante, e o de proeminência inicial (acento secundário recai na pretônica inicial), caracteristicamente encontrado em 3 informantes. O autor verificou que há basicamente apenas uma proeminência secundária por vocábulo, o que o leva a postular que a primeira sílaba proeminente domina, isto é, do ponto de vista de sua realização fonética, ela bloqueia a manifestação da proeminência sobre outra sílaba pretônica à direita desta. O autor observou também que os contextos prosodicamente fortes ou fracos não interferem na manifestação do acento secundário. Moraes fez também uma análise acústica dos vocábulos, quanto aos seguintes correlatos: F0, duração e intensidade. Como indicado no teste perceptivo de atribuição de acento, foram detectadas as mesmas estratégias rítmicas.

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No padrão alternância binária, a frequência fundamental é o parâmetro mais consistente para assinalar o acento secundário. Os parâmetros duração e intensidade não mostraram resultados claros. O mesmo não ocorre com o padrão proeminência inicial, em que frequência fundamental não marca a sílaba inicial, embora esta seja percebida pelos ouvintes como proeminente, e os parâmetros duração e intensidade correlacionam-se com a percepção do acento secundário. Nossa investigação vai limitar-se ao caráter perceptual do acento secundário em português.

2. Procedimentos metodológicos 2.1 Corpus Tal como no trabalho de Moraes (2003), nossa pesquisa, também investiga a manifestação do acento secundário na fala de quatro locutores. Contudo, diferentemente daquele trabalho, queremos analisar ainda a incidência desse acento de acordo com o número de sílabas pretônicas das palavras. Por exemplo, em palavras com número de sílabas pretônicas ímpar, o acento secundário pode incidir na primeira ou na segunda sílaba (cìvilizár ou civìlizár)? Os grupos de palavras que fazem parte do corpus estão apresentados em ordem alfabética em (7). (7)

amortecer/ amortecido/ amortecimento; canibal/ canibalizar/ canibalismo/ canibalização; categoria/ categorizar/ categorização; civilizar/ civilizado/ civilização; contabilizar/ contabilização/ contabilidade; democrata/ democracia/ democratizar/ democratização; parabéns/ parabenizo/ parabenizar/ parabenização; regular/ regularizo/ regularizar/ regularização; responsável/ responsabilizar/ responsabilidade/ responsabilização; secular/ secularizo/ secularizar/ secularização.

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Inserimos as palavras destes 10 grupos nas duas frases-veículo: a) Ele disse __________ de novo. b) Ele disse __________ hoje, de novo. 2.2 Coleta dos dados5 Gravamos a leitura de frases feita por quatro locutores, as quais foram apresentadas a eles da seguinte maneira: a) os vocábulos foram inseridos nas frases-veículo aleatoriamente, mas de modo que não aparecesse o mesmo vocábulo em duas frases consecutivas; b)

as frases foram numeradas de 1 a 72 (36 palavras x 2 tipos de frase-veículo) impressas em 3 folhas de tamanho A4 em Times New Roman tamanho 12 com espaçamento simples.

Instruções dadas pela pesquisadora antes da coleta: a) o locutor poderia ler as frases antes da gravação; b)

o locutor deveria ler as frases em seu ritmo natural de fala, devendo apenas fazer uma pequena pausa entre cada frase;

c)

nenhum tipo de informação foi previamente fornecida sobre o objetivo da pesquisa.

Os locutores não foram interrompidos em nenhum momento durante as gravações. As gravações foram feitas com um aparelho de MD (gravação digital), com um microfone Sony, em ambientes com razoável isolamento acústico. Posteriormente, os dados foram transferidos para um computador e gravados em CD. 2.3 Locutores Inicialmente, gravamos a leitura de 6 locutores: 4 mulheres e 2 homens, com idades entre 20 e 60 anos. Destes, foram selecionados 4: 1 5

Moraes utiliza o termo informante para designar os indivíduos que fizeram a leitura das frases que compõem o seu corpus. No entanto, consideramos que este termo seja de uso corrente na teoria variacionista com referência à produção. Por isso, substituímos o termo informante por locutor. Além disso, em inglês o termo usado em estudos experimentais que utilizam a leitura de frases produzidas por falantes é speaker, enquanto na teoria da variação o termo utilizado é subject.

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homem e 3 mulheres, pois foram os que apresentaram melhor performance de leitura. Variáveis como sexo, idade, escolaridade, entre outras, não foram controladas, pois não são uma preocupação desta pesquisa. 2.4 Preparação dos CDs A leitura das frases foi gravada em formato digital e posteriormente transferida para um computador. Cada locutor gravou as 72 frases em sequência, com uma pequena pausa entre elas. Optou-se por não separar as frases em faixas durante a gravação para não ter de interromper o locutor a todo momento e com isso tirar a naturalidade de sua leitura. As frases foram separadas depois de todo o material estar coletado. Para tanto, utilizamos o programa Sound Forge, que permite fazer a segmentação de sons e o seu armazenamento em arquivos. No total, foram segmentadas e gravadas 288 frases (36 palavras x 2 frases-veículo x 4 locutores) com cerca de 6 segundos cada. Os arquivos de som das frases foram então gravados no formato de CD com o auxílio do programa de gravação Nero Express. As frases foram distribuídas de maneira aleatória em 4 CDs, de forma a que diferentes ordenamentos de frases fossem apresentados aos juízes da pesquisa. Ao ouvir as gravações, percebemos que alguns locutores tiveram problemas de performance: não pronunciaram a palavra que estava escrita, mas sim, outra palavra qualquer, tossiram durante a leitura, fizeram pausa durante a pronúncia de uma palavra, ou pronunciaram a palavra de forma incorreta, por exemplo, [kanabalizar] ao invés de [kanibalizar]. As frases em que tais problemas foram constatados foram retiradas do instrumento apresentado aos juízes. 2.5 Testes de percepção para a localização dos acentos O instrumento de avaliação foi apresentado para os ouvintes da seguinte maneira: a) os vocábulos foram listados e numerados de acordo com a ordem em que apareciam em cada CD, num total de 4 listas, uma para cada CD; b)

os vocábulos foram transcritos de modo isolado, pois os ouvintes deveriam prestar atenção apenas neles e não na frase inteira.

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Procedimentos anteriores à avaliação: a)

os ouvintes foram informados de que o corpus era constituído por um certo número de palavras inseridas em dois tipos de frase, ele disse __________ de novo e ele disse __________ hoje, de novo, lidas por quatro locutores;

b)

a lista correspondente ao CD que ia ser ouvido foi distribuída; foi solicitado que os ouvintes deixassem à mostra apenas a palavra que iriam escutar e que ocultassem com uma folha em branco as demais palavras;

c)

foi solicitado aos ouvintes que, após a audição, quantas vezes fossem necessárias, de cada frase do corpus, marcassem todas as sílabas que sentissem, de alguma forma, como proeminentes.

2.6 Ouvintes (juízes) O teste foi realizado com seis ouvintes oriundos da cidade de Porto Alegre: três com bom conhecimento de fonologia do português e três ouvintes sem esse conhecimento. Contudo, não houve diferenças importantes nos resultados em virtude desse conhecimento. Assim, não fizemos distinção quanto ao julgamento desses ouvintes e agrupamos os resultados de todos os juízes, como veremos a seguir.

3. Análise dos resultados Com o intuito de comparar nossos resultados aos de Moraes (2003), apresentamos tabelas separadas para cada um de nossos informantes, como o referido autor faz. Contudo, selecionamos apenas os grupos de palavras em que houve uma maior concordância dos juízes na marcação das sílabas portadoras de acento secundário. Os resultados completos estão em Keller (2004). Iniciamos nossa análise com a descrição da forma como foram organizadas as tabelas de resultados. Vejamos então a Tabela 1 que mostra os resultados dos testes de percepção em relação às produções do grupo de palavras categoria/categorizar/categorização do Locutor 1.

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TABELA 1: Resultados da percepção dos seis ouvintes relativos ao Locutor 1 na produção do grupo de palavras categoria/ categorizar/ categorização. Fonte: Keller (2004). Síl pretônicas ca

te

go

ri

Categoria

6/ 6

0/ 0

0/ 0

Categorizar

6/ 6

1/ 0

2/ 2

0/ 0

Categorização

5/ 6

0/ 1

2/ 1

0/ 0

Za

Vocábulos

Total de votos possíveis para cada sílaba 6/ 6 6/ 6

0/ 0

6/ 6

Na primeira coluna da Tabela 1, temos as palavras colocadas em ordem crescente quanto ao número de sílabas pretônicas: categoria (3 sílabas), categorizar (4 sílabas) e categorização (5 sílabas). Cada uma das cinco colunas subsequentes é composta por uma das sílabas pretônicas da palavra mais longa do grupo de vocábulos (ca – 2ª coluna, te – 3ª, assim sucessivamente). Colunas sombreadas marcam as sílabas ausentes nas palavras. Os números que estão nas células das sílabas pretônicas correspondem aos votos que essas sílabas receberam dos juízes. A 7ª coluna indica o valor total de votos possíveis, que corresponde ao número de ocorrências de cada palavra em cada tipo de frase-veículo (contexto forte ou fraco, 1 para cada contexto6), multiplicado pelo número de juízes (6), perfazendo um total de 6 ocorrências para cada um desses tipos de contexto. Assim, os números à direita correspondem à posição forte e os à esquerda, à posição fraca. A Tabela 1 deve ser lida assim: na palavra categoria, a 1ª sílaba (ca) recebeu 6 de 6 votos possíveis para a posição forte e 6 de 6, para a posição fraca; a 2ª sílaba (te) não foi percebida por nenhum dos ouvintes como tendo qualquer acento, recebendo assim zero voto; e assim sucessivamente para as demais sílabas e palavras. De maneira geral, no que diz respeito à posição do acento secundário, as produções dos quatro locutores foram percebidas como tendendo ao padrão proeminência inicial, ou seja, acento na 1ª sílaba pretônica, como se vê nas Tabelas 1, 2, 3 e 4. 6

Relembrando que contexto forte diz respeito à fronteira de uma frase entonacional (conforme a frase-veículo: Ele disse ( ) de novo) e contexto fraco refere-se a um contexto interno a uma frase entonacional (conforme a frase veículo: Ele disse ( ) hoje, de novo).

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No grupo de palavras categoria/ categorizar/ categorização, produzidas pelo Locutor 1 (Tabela 1), um acento secundário na pretônica inicial foi percebido pelos juízes, tanto para a posição forte quanto para a fraca, quase categoricamente. É interessante observar ainda que, nos resultados referentes ao Locutor 1, para as palavras categorizar e categorização, houve variação entre as pretônicas iniciais, no entanto, vemos que isso foi apontado apenas por um juiz em um dos contextos para cada palavra, ou seja, a variação existe, mas parece ser pouco frequente. Esse comportamento foi observado também nos demais locutores (cf. KELLER, 2004). Um acento secundário inicial foi percebido de forma bastante consistente também para o Locutor 2, como se observa, por exemplo, no grupo de palavras regular/ regularizo/ regularizar/ regularização (Tabela 2).

TABELA 2: Resultados da percepção dos seis ouvintes relativos ao Locutor 2 na produção do grupo de palavras regular/ regularizo/ regularizar/ regularização. Fonte: Keller (2004). Síl pretônicas re

gu

la

ri

regular

4/ 3

0/ 0

regularizo

6/ 4

0/ 0

0/ 0

regularizar

6/ 0

0/ 0

3/ 0

0/ 0

regularização

6/ 6

0/ 0

1/ 1

0/ 0

za

Vocábulos

Total de votos possíveis para cada sílaba 6/ 6 6/ 6 6/ 0

0/ 0

6/ 6

Esse mesmo acento secundário inicial ocorre para os grupos de palavra civilizar/ civilizado/ civilização e democrata/ democracia/ democratizar/ democratização na produção dos Locutores 3 e 4.

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TABELA 3: Resultados da percepção dos seis ouvintes relativos ao Locutor 3 na produção do grupo de palavras civilizar/ civilizado/ civilização. Fonte: Keller (2004). Síl pretônicas za

Total de votos possíveis para cada sílaba

ci

vi

li

da

civilizar

6/ 0

0/ 0

0/ 0

6/ 0

civilizado

6/ 6

0/ 0

0/ 0

6/ 6

civilização

6/ 6

0/ 0

1/ 0

Vocábulos

0/ 0

6/ 6

TABELA 4: Resultados da percepção dos seis ouvintes relativos ao Locutor 4 na produção do grupo de palavras democrata/ democracia/ democratizar/ democratização. Fonte: Keller (2004). Síl pretônicas de

mo

cra

ti

democrata

4/ 3

0/ 0

democracia

0/ 6

0/ 0

0/ 0

democratizar

6/ 6

0/ 0

2/ 2

0/ 0

democratização

6/ 5

0/ 0

1/ 3

0/ 0

za

Vocábulos

Total de votos possíveis para cada sílaba 6/ 6 0/ 6 6/ 6

0/ 0

6/ 6

No que tange a possibilidade de mais de um acento secundário em um mesmo vocábulo, os locutores a apresentaram em alguns grupos de palavras, como se observa nas Tabelas 5 a 8. No caso de mais de um acento secundário, com relação às produções do Locutor 1 (Tabela 5), os juízes perceberam um acento na sílaba inicial e também um outro na 3ª sílaba pretônica em palavras como responsabilizar/ responsabilização/ responsabilidade.

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TABELA 5: Resultados da percepção dos seis ouvintes relativos ao Locutor 1 na produção do grupo de palavras responsável/ responsabilizar/ responsabilização/ responsabilidade. Fonte: Keller (2004). Síl pretônicas sa

bi

li

za

Total de votos possíveis para cada sílaba

res

pon

Responsável

1/ 2

0/ 0

Responsabilizar

6/ 6

0/ 0

3/ 3

0/ 0

0/ 0

6/ 6

Responsabilidade

4/ 4

0/ 0

4/ 2

0/ 0

0/ 0

6/ 6

responsabilização

1/ 2

0/ 0

1/ 4

0/ 0

0/ 0

Vocábulos

6/ 6

0/ 0

6/ 6

Além dessa proeminência inicial, os juízes ainda localizaram a incidência de um outro acento secundário ora na 3ª pretônica, ora na 4ª como pode ser visto nas produções das palavras contabilizar/ contabilização/ contabilidade (Locutor 2 na Tabela 6), secular/ secularizo/ secularizar/ secularização (Locutor 3 na Tabela 7) e canibal/ canibalizar/ canibalismo/ canibalização (Locutor 3 na Tabela 8). É interessante notar que nossos resultados apontam uma situação não prevista pelas análises fonética e fonológica, qual seja, a possibilidade de alternância acentual entre sílabas não-iniciais. Contudo, não iremos aprofundar essa questão neste trabalho. TABELA 6: Resultados da percepção dos seis ouvintes relativos ao Locutor 2 na produção do grupo de palavras contabilizar/ contabilização/ contabilidade. Fonte: Keller (2004). Síl pretônicas Ta

bi

li

contabilizar

5/ 3

0/ 0

2/ 2

0/ 1

6/ 6

contabilização

4/ 6

0/ 0

0/ 0

1/ 1

6/ 6

contabilidade

3/ 3

0/ 0

2/ 2

0/ 0

6/ 6

Vocábulos

za

Total de votos possíveis para cada sílaba

con

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TABELA 7: Resultados da percepção dos seis ouvintes relativos ao Locutor 3 na produção do grupo de palavras secular/ secularizo/ secularizar/ secularização. Fonte: Keller (2004). Síl pretônicas se

cu

la

ri

secular

3/ 5

0/ 0

secularizo

3/ 5

0/ 0

0/ 0

secularizar

5/ 6

0/ 0

3/ 2

0/ 0

secularização

6/ 6

0/ 0

0/ 2

2/ 0

za

Vocábulos

Total de votos possíveis para cada sílaba 6/ 6 6/ 6 6/ 6

0/ 0

6/ 6

TABELA 8: Resultados da percepção dos seis ouvintes relativos ao Locutor 4 na produção do grupo de palavras canibal/ canibalizar/ canibalismo/ canibalização. Fonte: Keller (2004). Síl pretônicas ca

ni

ba

li

canibal

3/ 3

0/ 0

canibalismo

6/ 3

0/ 0

0/ 2

canibalizar

4/ 5

0/ 0

4/ 3

0/ 0

canibalização

6/ 5

0/ 0

3/ 4

1/ 2

za

Vocábulos

Total de votos possíveis para cada sílaba 6/ 6 6/ 6 6/ 6

0/ 0

6/ 6

Há, ainda, uma última questão a tratar: a ocorrência de acento secundário na 2ª sílaba pretônica. Passemos a discutir as palavras amortecer, amortecido e amortecimento, produzidas pelos quatro locutores. Essas palavras compõem o único grupo que apresenta acento secundário nessa posição de modo consistente para todos os locutores, como vemos nas Tabelas 9 a 12.

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TABELA 9: Resultados da percepção dos seis ouvintes relativos ao Locutor 1 na produção do grupo de palavras amortecer/ amortecido/ amortecimento. Fonte: Keller (2004). Síl pretônicas ci

Total de votos possíveis para cada sílaba

a

mor

te

amortecer

1/ 1

5/ 4

0/ 0

6/ 6

amortecido

0/ 0

5/ 0

0/ 0

6/ 6

amortecimento

6/ 0

0/ 6

2/ 0

Vocábulos

0/ 0

6/ 6

TABELA 10: Resultados da percepção dos seis ouvintes relativos ao Locutor 2 na produção do grupo de palavras amortecer/ amortecido/ amortecimento. Fonte: Keller (2004). Síl pretônicas ci

Total de votos possíveis para cada sílaba

a

mor

te

Amortecer

0/ 1

4/ 4

0/ 0

6/ 6

Amortecido

0/ 0

5/ 4

0/ 0

6/ 6

Amortecimento

3/ 4

2/ 2

2/ 1

Vocábulos

0/ 0

6/ 6

TABELA 11: Resultados da percepção dos seis ouvintes relativos ao Locutor 3 na produção do grupo de palavras amortecer/ amortecido/ amortecimento. Fonte: Keller (2004). Síl pretônicas ci

Total de votos possíveis para cada sílaba

a

mor

te

amortecer

0/ 0

6/ 6

0/ 1

6/ 6

amortecido

0/ 0

6/ 6

0/ 0

6/ 6

amortecimento

0/ 5

6/ 1

1/ 2

Vocábulos

0/ 0

6/ 6

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TABELA 12: Resultados da percepção dos seis ouvintes relativos ao Locutor 4 na produção do grupo de palavras amortecer/ amortecido/ amortecimento. Fonte: Keller (2004). Síl pretônicas ci

Total de votos possíveis para cada sílaba

a

mor

te

amortecer

1/ 0

4/ 5

0/ 0

6/ 6

amortecido

2/ 1

3/ 4

0/ 0

6/ 6

amortecimento

4/ 4

2/ 2

2/ 2

Vocábulos

0/ 0

6/ 6

Podemos atribuir a incidência de acento secundário na segunda pretônica a três razões: a) b) c)

a sílaba inicial (a) não tem ataque e por isso seria menos proeminente; a segunda sílaba (mor) é pesada e esse tipo de sílaba naturalmente atrai acento; os juízes podem ter segmentado as palavras amortecer e amortecido e as comparado com a palavra amor.

Parece-nos que a situação descrita em (a) é a mais adequada para justificar essa incidência de acento secundário na segunda sílaba pretônica, no entanto, não temos outras palavras no corpus com a mesma estrutura vocabular para confirmar essa suposição. Assim como Moraes (2003), observamos que os contextos sintáticoprosódicos (posição forte ou fraca) não interferem na manifestação do acento secundário. Para finalizar, comparamos nossos resultados aos de Moraes (2003) e de Collischonn (1994). Observemos o Quadro 1 a seguir.

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QUADRO 1: Resultados de Collischonn (1994), Moraes (2003) e Keller (2004). Ocorrências

Collischonn (1994)

Acento secundário na 1ª sílaba pretônica

sim

Variação entre a 1a e a 2ª sílaba pretônica (em palavras com número ímpar de pretônicas) Incidência de mais de um acento secundário

Moraes (2003) Sim (3 informantes)

Keller (2004) sim sim

sim

não

(número reduzido de ocorrências)

sim

não

sim sim

Acento secundário na 2ª sílaba pretônica

sim

Variação entre a 3ª e a 4ª silaba pretônica

não

sim (1 informante)

(em palavras como amortecer, amortecido)

não

sim

Fonte: autora. Os resultados de Moraes (2003) mostraram que os juízes identificaram de forma robusta uma proeminência secundária na sílaba inicial, em três informantes, no entanto, um informante manifestou acento secundário na 2ª sílaba. Em nossos resultamos, os juízes também verificaram, de modo bastante consistente, a ocorrência de acento secundário na 1ª sílaba pretônica, especialmente em palavras com quatro ou mais sílabas pretônicas, em todos os locutores. Encontramos também acento secundário apenas na 2ª pretônica, porém em um número bastante reduzido de palavras. Os resultados de Moraes não indicam a possibilidade de variação entre a 1ª e a 2ª pretônica em uma mesma palavra, como previsto por Collischonn (1994). Nossos resultados confirmam parcialmente essa observação, uma vez que verificamos variação entre as duas sílabas iniciais. Isso se deu, no entanto, em um número também reduzido de palavras. Essa pesquisa apontou ainda uma possibilidade não tratada por nenhum dos dois autores: a variação na posição de acento secundário entre sílabas não-iniciais (3ª e 4ª sílaba).

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Em suma, nossos resultados ora confirmam as observações de cunho fonético/perceptual (MORAES, 2003) e ora as de cunho fonológico (COLLISCHONN, 1994), o que nos leva a crer que um entendimento mais completo sobre o acento secundário, e outros fenômenos linguísticos, deva conjugar esses dois tipos de análise. Nesse sentido, essa pesquisa corrobora os pressupostos da Fonologia de Laboratório, conjugando conhecimentos fonéticos e fonológicos para uma análise adequada da fala.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CÂMARA JR, Joaquim Mattoso. Problemas de linguística geral. Rio de Janeiro: Editora Padrão, 1977. ______. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Ed Vozes, 33a ed, 2001 [1970]. COLLISCHONN. Gisela. O acento em português. In: BISOL, Leda. (org) Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. ______. Acento secundário em português. Letras de Hoje, Porto Alegre: EDIPUCRS, v.29, nº 4, 1994, p. 43-53. ______.Um estudo do acento secundário em português. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1993. GAMA-ROSSI, Aglael. Qual é a natureza do acento secundário no português brasileiro? Cadernos - Centro Universitário S. Camilo, vol 4 (1), 1998, p. 77-92. HALLE, Morris; VERGNAUD, Jean-Roger. An essay on stress. Cambridge: The MIT Press, 1987. KELLER, Tatiana. Um estudo experimental do acento secundário no português brasileiro. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2004. KINGSTON, John; BECKMAN, Mary. (eds). Papers in Laboratory Phonology I: Between the Grammar and the Physics of Speech. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

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LIBERMAN, Mark; PRINCE, Alan. (1977). On stress and Linguistic Rhythm. Linguistic Inquiry, Cambridge, Mass., v. 8, n.2, 1977, p. 249-336. MAJOR, Roy. Stress Rhythm in Brazilian Portuguese. Language 61(2): 1985, p. 259-282. MORAES, João Antônio de. A manifestação fonética do pé métrico. Letras de Hoje, Porto Alegre: EDIPUCRS, v.38, nº 4, 2003, p.147-162.

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A VOGAL MÉDIA PRETÔNICA NAS CAPITAIS DA REGIÃO NORTE DO BRASIL THE UNSTRESSED MID VOWEL IN THE CAPITALS OF NORTHERN BRAZIL. Marcelo Pires Dias Universidade Federal do Pará Marilúcia Barros de Oliveira Universidade Federal do Pará RESUMO O presente artigo tem por objetivo descrever o comportamento da vogal média pretônica posterior com base no falar de informantes de seis capitais da região Norte do Brasil (Belém-PA, Manaus-AM, Rio Branco-AC, MacapáAP, Porto Velho-RR e Boa Vista-RO). Foram usados dados dos questionários fonético-fonológico (QFF) e semântico-lexical (QSL), instrumentos de coleta dos dados do Atlas Linguístico do Brasil (ALIB). Os dados foram transcritos a partir do uso do Transcriber e, em seguida, processados por meio do uso do programa de regra variável Varbrul que forneceu os pesos relativos úteis para a análise e reflexão linguística variacionista. Os grupos de fatores instituidos para a descrição e análise linguística do comportamento das médias pretônicas posteriores foram os seguintes: natureza da vogal tônica, distância entre a vogal tônica e pretônica, segmento do onset da pretônica, segmento do onset da sílaba seguinte, sexo, escolaridade, faixa etária e procedência. A pesquisa se justifica pela importância de se descrever a variedade do português brasileiro falado na Amazônia brasileira e por contribuir para descrição linguística do português brasileiro (PB). Palavras-chave: Vogais médias; Sociolinguística Quantitativa; ALiB. ABSTRACT This paper aims to describe the behavior of the unstressed back mid vowel based on the speech of informants of six capital cities of northern Brazil (Belém-PA, Manaus-AM, Rio Branco-AC, Macapá, AP, Porto Velho and Boa Vista, RR-RO), from phonetic-phonologicall(QFF) and lexical-semantic (QSL) questionnaire data, data collection instruments from the Linguistic Atlas of Brazil (ALiB). Data were transcribed with the use of Transcriber and then processed through the use of the variable rule program called VARBRUL

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which provided the useful relative weights for the analysis and variationist linguistic reflection. The instituted factors Groups for the description and linguistic analysis of the behavior of middle back unstressed vowels were the following: the phonetic nature of the consonantal segment; nature of the stressed vowel; distance between the stressed and the unstressed preceding vowel, age, education, gender and origin. The research is justified by the importance of describing the variety of Brazilian Portuguese spoken in the Brazilian Amazon and contribute to the linguistic description of Brazilian Portuguese (BP). Keywords: Mid Vowels; Quantitative Sociolinguistics; ALiB.

INTRODUÇÃO O comportamento das vogais do português brasileiro é um fenômeno linguístico já descrito em vários estudos. No Brasil, sob a ótica variacionista, há estudos desde a década de 1970. O primeiro linguista a estudar a organização dos sons do quadro vocálico no PB foi Câmara Jr (1970). O autor observa em sua obra basilar Estrutura da Língua Portuguesa que, no português brasileiro, (embora apenas o falar carioca tenha servido como base para sua observação), temos sete vogais em posição acentuada (//,/ e/,//,/a/,/o/,/ɔ/, /u/), cinco em posição pretônica (/i/,/e/,/a,/o/,/u/), quatro em posição postônica não final (/i/,/e/,/a,/u/) e três vogais em posição final (/i/,/a/,/u/). Câmara Jr (1970) observou que esses quadros vocálicos estavam submetidos a certas instabilidades, especialmente no quadro vocálico pretônico em que vogais médias altas e baixas tanto anteriores quanto posteriores, em determinados contextos, sofrem neutralização (perda de contraste). Logo, há uma clara redução no quadro vocálico. As observações de Câmara Jr (Idem) foram essenciais para o desenvolvimento dos estudos posteriores, como o de Bisol (1981), e é considerado o marco inicial das investigações descritivas de vogais no Português Brasileiro. O estudo do vocalismo no Português Brasileiro é de suma importância para a devida caracterização dialetal do território brasileiro, especialmente na região Norte do Brasil, em virtude da escassez de trabalhos na região e para o aprofundamento dos estudos já realizados. O presente artigo tem por principal objetivo primordial realizar a descrição da vogal média no português falado em seis capitais da região Norte do Brasil, tomando

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como base os dados do QFF e QSL. Eles foram coletados por meio de entrevistas. Após a descrição, será proposta uma análise sob a ótica da sociolinguística variacionista que indicará quais os contextos favorecedores do abaixamento, alteamento e da manutenção, além des suas relações com grupos de fatores sociais. Neste trabalho, iremos elencar algumas questões que podem nos indicar que fatores linguísticos ou não linguísticos atuam sobre a variação da vogal média no Norte do país, bem como a maneira como se dá essa atuação. 1. Metodologia aplicada Na presente seção, detalharemos a metodologia aplicada na pesquisa com o objetivo de explicitar todos os procedimentos e escolhas realizados na presente investigação. 1.1 A comunidade de fala A pesquisa utilizou dados oriundos da aplicação do QFF e QSL a falantes de seis capitais da região Norte, a saber: Rio Branco (AC), Macapá (AP), Belém (PA), Porto Velho (RO), Boa Vista (RR) e Manaus (AM). A única capital desconsiderada foi Palmas (TO), por ter sua constituição territorial e ocupação recente (a capital do Estado do Tocantins foi fundada em 1989), o que comprometeria a amostra estratificada. Na tabela que segue, podemos conferir o ano de fundação, a população atual, e a extensão territorial de cada capital investigada, segundo o IBGE (2010): TABELA 1: população, extensão territorial e ano de fundação das capitais da região Norte do Brasil Capital

Ano de Fundação

População Atual

Extensão territorial

Rio Branco (AC)

1882

336.038 hab.

8.835,675 km²

Macapá (AP)

1758

398.204 hab.

6.408,517 km²

Belém (PA)

1616

1.393,399 hab.

1.059,402 km²

Porto Velho (RO)

1943

428.572 hab.

34.096,229 km²

Boa Vista (RR)

1725

284.313 hab.

5.678,022 km²

Manaus (AM)

1669

1.832.423 hab.

11.401,058 km²

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Cada capital possui na amostra, (8) informantes estratificados socialmente (sexo, faixa etária e escolaridade e procedência), o que totaliza 48 informantes. Com a amostra foi possível investigar a distribuição do alteamento, manutenção e abaixamento de , na região Norte, tomandose por base contextos presentes nos dados oriundos da aplicação do QFF e QSL. 1.2 Atlas Linguístico do Brasil (ALIB) A presente pesquisa está ligada ao Atlas Linguístico do Brasil (ALIB), projeto que forneceu os dados para a realização deste estudo. A metodologia de pesquisa do referido projeto leva em consideração: a) faixa etária de 18 a 30 anos, e de 50 a 65 anos; b) sexo/gênero: masculino e feminino; c) nível de escolaridade: ensino fundamental e ensino superior (apenas para as capitais). O quadro geral de pontos de inquérito ficou assim configurado: Região Norte, 23 pontos; Região Nordeste, 71 pontos; Região Sudeste, 79 pontos; Região Sul, 41 pontos e Região Centro-oeste, 21 pontos. Os questionários utilizados para os inquéritos do projeto são: Questionário Semântico Lexical (QSL), 15 áreas semânticas e 207 questões; Questionário Fonético-fonológico (QFF), 159 questões, além de 11 questões de prosódia; Questionário Morfossintático. Além desses, há questões referentes à pragmática, bem como sugestões de temas para registro de discursos semidirigidos e questões de natureza metalinguística e texto para leitura. Atualmente, o Atlas Linguístico do Brasil já atingiu 80% das localidades visitadas e 89,1% dos informantes inquiridos, restando apenas 30 localidades para a finalização dos trabalhos de coleta que está previsto para o ano de 2012, assim como elaboração das cartas, com base nesses dados, a fim de mostrar a distribuição geossociolinguística das variações identificadas. Para a presente pesquisa foram utilizados apenas os dados do QFF e do QSL.

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1.3 Amostra estratificada O QFF apresenta alguns contextos já indicados para a avaliação da variação das médias pretônicas. Já o QSL apresenta vocábulos previstos para serem respondidos pelos informantes nos quais figuram os contextos de interesse para esta pesquisa. Entretanto, utilizamos tanto esses contextos quanto os não esperados, os que surgem quando o entrevistado tenta responder a pegunta que foi feita pelo entrevistador. Os contextos previstos aparecem em 31 itens esperados. Computaram-se as eventuais repetições de itens esperados ou não. QUADRO 1: itens lexicais esperados do QFF e QSL QFF

QSL

gordura (022)

colegas (085)

trovão (10)

prostituta (142)

colher (025)

borracha (087)

novembro (34)

porronca (145)

tomate (030)

soldado (093)

forquilha (54)

bolinha de gude (156)

botar (036)

inocente (104)

colibri (65)

lombada (195)

bonito (037)

procissão (107)

conjuntivite (95)

bodega/boteco (202)

montar (043)

coração (119)

soluço (103)

-

borboleta (046)

sorriso (147)

corcunda (107)

-

começo (082)

dormindo (148)

vomitar (112)

-

morreu (159)

-

tornozelo (118)

-

A amostra utilizada na investigação levou em consideração apenas as capitais da região Norte do Brasil, a saber: Belém (PA), Manaus (AM), Rio Branco (AC), Porto Velho (RO), Macapá (AP), Boa Vista (RR). Os informantes foram estratificados segundo sexo, faixa etária e escolaridade. Todas as células foram compostas por dois informantes, o que totalizou oito informantes por capital, somando 48 informantes para as capitais da região Norte.

QUADRO 2: amostra estratificada da pesquisa Faixa Etária

Sexo/Gênero Masculino

18 a 30 Feminino

Masculino 50 a 65 Feminino

Escolaridade Fundamental (2) Superior (2) Fundamental (2) Superior (2) Fundamental (2) Superior (2) Fundamental (2) Superior (2)

1.4 Definição das variáveis 1.4.1 Variável dependente A variável dependente utilizada na pesquisa foi composta por três possibilidades fonéticas: i) alteamento da vogal média pretônica [u]; ii) manutenção da vogal média pretônica [o] e iii) abaixamento da vogal média pretônica [ɔ]. O quadro de variantes da variável dependente ficou assim composto: QUADRO 3: variável dependente e suas respectivas variantes Variável Dependente

Variantes da variável Dependente [u]



Exemplos g[u]rdura

[o]

g[o]rdura

[ɔ]

g[ɔ]rdura

1.4.2 Variáveis independentes As variáveis independentes desta pesquisa representam nossas hipóteses, ou seja, podem ou não explicar os processos envolvidos na variação da vogal pretônica . As variáveis independentes se configuram grupos de fatores no processamento estatístico informatizado.

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As variáveis independentes instituídas foram as seguintes: a) fonema vocálico da tônica; b) distância entre a vogal tônica e vogal pretônica; c) segmento do onset da sílaba da pretônica; d) segmento do onset da sílaba seguinte; e) sexo; f) escolaridade; g) faixa etária e h) procedência. Como se trata de três variantes, foi realizada rodada e análise binárias. Neste tipo de rodada o índice de favorecimento é.333. 1.5 O tratamento estatístico dos dados no programa Varbrul Com o corpus formado para a o estudo das vogais médias pretônicas nas capitais da região Norte, realizou-se, inicialmente, a transcrição dos itens lexicais previamente selecionados a partir do uso do software de transcrição Transcriber. Após a transcrição de todas as gravações foi iniciada a codificação dos dados transcritos, para servir de entrada ao programa de análise de regras variáveis Varbrul. Os itens lexicais que apresentaram alteamento foram sinalizados com o sinal positivo (+), aqueles que apresentaram a manutenção das médias foram sinalizados com o sinal negativo (-) e os que apresentaram abaixamento foram marcados com o sinal asterisco (*). A análise quantitativa variacionista foi realizada por meio do uso do programa de regra variável Varbrul. Esse programa gera percentuais e, posteriormente, pesos relativos capazes de apontar probalidades de ocorrência de uma variante, bem como tendências. A análise variacionista pretende mostrar quais são os fatores linguísticos e extralinguísticos que podem favorecer ou não a realização de uma determinada variante, por meio da emissão de pesos relativos que servem de base para a reflexão linguística. Na próxima seção, referente aos resultados obtidos, iremos apresentar os resultados, na tabela 2, inclusive apontando frequências, no sentido de dar uma noção da frequência de cada variante no corpus. Os resultados a serem apresentados resultam de um conjunto de procedimentos preliminares e intermediários no programa de regra variável que implicou, inclusive, a retirada de fatores por conta de nocautes. Apresentaremos, assim, os resultados finais em termos de número de dados e pesos relativos. São sobre esses índices que se pautará a análise, já que o objetivo é apontar probabilidades.

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2. Resultados obtidos No que se refere à produtividade de ocorrência, pode-se dizer que a variante mais frequente no corpus é [o], com 55%. Essa variante é seguida de [u], com 23%; vindo, em seguida [ɔ], com 22%. Em termos de frequência, os percentuais referentes ao alteamento e abaixamento são quase idênticos. A manutenção ocorre em mais 50% do corpus, distanciando-se das duas outras variantes. Quanto aos pesos relativos, que implicam uma avaliação da probabilidade e não de frequência, também se mantem a ordem apresentada no parágrafo anterior. Os resultados mostraram que, nas capitais da região Norte do Brasil, considerando-se dados específicos relativos ao QFF e QSL, a manutenção é mais favorecida. Na verdade, é a única variante favorecida no corpus. Há maior probabilidade de ocorrência de [o], com .683; depois de [u], com .224; por fim, há baixa ocorrência da variante [ɔ], com .093. Observemos os resultados, considerando-se o peso relativo e aplicação na tabela 2: TABELA 02: variação de em frequências e pesos relativos Variável Dependente [901 dados]

[u]

[ɔ]

[o]

PR

Aplicação

%

PR Aplicação %

PR Aplicação

%

.224

207

23

.683

.093

22

497

55

211

Os dados mostram que, na região Norte do Brasil, considerando as seis capitais aqui investigadas, há maior probabilidade da realização de [o]. A realização de [u] e de [ɔ] possuem menor probabilidade ocorrência. Esses resultados confirmam uma tendência já apontada em estudos realizados na região, como o de Freitas (2001), Campos (2008) e Sousa (2010), nos quais foi constatada a maior probabilidade de ocorrência da manutenção das médias no falar espontâneo de informantes de Bragança, Mocajuba e Belém, respectivamente.

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2.1 Fonema vocálico da tônica Os resultados referentes ao primeiro grupo testado na análise quantitativa mostrou que a presença da vogal tônica [], [i] e [e] favorecem [u], com pesos iguais a .590, .522 e 342, respectivamente. A ocorrência de [o] é favorecida pelas vogais [u] e [i] na tônica, com .657 e .339 de peso relativo, respectivamente. A vogal [a] e a vogal [e] favoreceram a variante [ɔ], com pesos relativos de .648 e 362 . Observemos os resultados na tabela 3: TABELA 03: resultados do grupo fonema vocálico da tônica [u] Aplicação Exemplo

[o] Aplicação Exemplo [ɔ] Aplicação Exemplo

[u] 165

7/100

g[u]rdura

657

83/100 g[o]rdura 178

10/100 c[ɔ]rcundu

[] .590 [a] 102

45/104

107

19/104

c[o]lher 303

40/104

c[ɔ]legas

45/335

c[u]lhr t[u]mati

251

209/335 m[o]ntar 648

81/335

c[ɔ]ração

[i] .522

73/182 d[u]rmindo 339

99/182

b[o]nitu 139

10/182

s[ɔ]rrisu

[e] .342

37/180

87/180

b[o] rboleta

56/180

in[ɔ]centi

j[u]elho

296

362

De acordo com os pesos relativos fornecidos pelo programa de regra variável, há maior probabilidade de ocorrer [u], quando temos a vogal [] na tônica. Quando testado esse contexto, [u] obteve peso igual a .590. O peso elevado correspondente à atuação de uma média baixa como [ precisa ser cuidadosamente avaliado, pois esse resultado deve estar relacionado à presença do item colher que, na maioria das ocorrências, realizou-se como [ku]. A presença de segmentos altos no onset da sílaba da pretônica [k] e da sílaba contígua tônica [] deve ter exercido pressão sobre a vogal pretônica que acaba sendo elevada. A segunda maior probabilidade para [u] refere-se à vogal [i], resultado de certa forma já esperado, visto que se trata de uma vogal alta que se encontra em sílaba tônica. Por fim, há favorecimento de [u] quando a tônica é [e]. Novamente, cabe referir que esse resultado pode estar ligado á presença de itens [u]elho em que se tem uma consoante alta, [], no contexto precedente. Os favorecedores de [o] são [u] e [i]. Mas há mais probabilidade de ocorrência de [u] quando a vogal da tônica é [u] do que quando se tem [i] nessa mesma posição. Aqui, duas altas favoreceram [o], mas é a alta posterior [u] que mais o favorece, .657 contra .339 da alta anterior [i].

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O abaixamento é favorecido pela baixa [a] e pela média anterior [e]. O resultado relativo à [a] já era esperado, já que se trata de uma vogal baixa na tônica. São apresentados, na tabela 4, apenas os pesos relativos favorecedores de cada uma das variantes, considerando-se sua ordem decrescente de atuação sobre as variantes em estudo. TABELA 04: fatores favorecedores de no grupo fonema vocálico da tônica [u]

[o]

[ɔ]

[E] .590 [i] .522 [e] .342

[u] .657 [i] .339

[a] .648 [e] .362

Esses resultados revelam que a variante [u] é favorecida por contextos de altura baixa, alta e média, observando-se, obviamente as observações relativas à atuação de consoantes altas no entorno. A variante média [o] é favorecida por contextos altos. Sendo mais contundente a atuação da alta posterior sobre essa variante. Finalmente, [ɔ] é favorecida por contextos baixos e de altura média. 2.2 Distância entre a vogal da tônica e da pretônica O segundo grupo avaliado refere-se à distância entre a vogal tônica e a pretônica. Os resultados mostraram que a distância contígua favorece [u], com peso relativo igual a .508. A ocorrência de [ɔ] é favorecida pela distância não contígua com o peso de .491. Observemos os resultados na tabela 5: TABELA 05: Resultados do grupo distância entre a vogal da sílaba tônica e pretônica [u] Aplicação Exemplo [o] Aplicação Exemplo [ɔ] Aplicação Exemplo

Contígua .508 187/719 b[u]nitu .297 374/719 d[o]rmindo .195 158/719

s[ɔ]ldadu

Não .188 contígua

c[ɔ]ração

23/212

v[u]mitar .321

136/212 b[o]rboleta .491

53/212

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Os resultados apresentados mostraram que [u] apresenta maior probabilidade de ocorrer quando a vogal tônica é contígua à pretônica em avaliação. Há maior probabilidade de ocorrer [ɔ], quando temos a distância não contígua. Podemos afirmar, com base nos resultados que, quanto menor a distância entre a tônica e a pretônica, maior é a probabilidade de ocorrência de [u]. O contrário aumenta a probabilidade de ocorrência de [ɔ]. Esses resultados confirmam os resultados de outros estudos da mesma natureza em que a contiguidade é determinante para a realização de certas variantes, como o alteamento. Quanto à variante [ɔ], não foi favorecida por nenhum dos contextos avaliados, embora o fator não contígua tenha recebido índice próximo do favorecimento, igual a .321. 2.3 Segmento do onset da sílaba da vogal pretônica Esse grupo de fatores apresentou resultados curiosos para os diferentes segmentos avaliados, conforme se pode constatar na tabela que segue: TABELA 6: Resultados do grupo segmento do onset da sílaba da vogal pretônica [u] Aplicação Exemplo

[o]

Aplicação

Exemplo

[ɔ]

Aplicação Exemplo

[k g]

.128 29/212

c[u]lher

.228

105/212

c[o]ração .644

78/212

c[ɔ]lega

[t d]

.332 23/111 t[u]mada

.555

85/111

t[o]rnozelo .113

3/111

t[ɔ]mati

[p b]

.537 78/211

.247

97/211

b[o]nito

.215

36/211

b[ɔ]tar

[s z]

.183 11/108 ass[u]vio

.251

72/108

s[o]rrisu .566

25/108

s[ɔ]ldadu

10/73 in[u]cente .004

12/73

.989

51/73

in[ɔ]cente

10/78

53/78

.453

15/78

pr[ɔ] cissão

[n]

.007

[pr] e [tr] .261

b[u]tar

tr[u]vão

.304

n[o] vembro pr[o] moção

Os resultados referentes a esse grupo de fatores dizem que os segmentos em avaliação, [p] e [b], são como favorecedores de [u], pois obtiveram peso relativo igual a .537. Os segmentos [t] e [d] aparecem como favorecedores de [o], com peso relativo igual a .555. Já os segmentos [n], [k]

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e [g], [s] e [z] e grupo consonantal pr são favorecedores de [ɔ]. Observemos os resultados apenas dos fatores favorecidos, na tabela 7: TABELA 07: fatores favorecedores do grupo segmento do onset da sílaba da vogal pretônica [u] [p b] (.537)

[o] [t d] (.555)

[ɔ] [n] (.989) [k g] (.644) [s z] (.566) pr e tr (.453)

Os resultados mostram que há maior probabilidade de ocorrência de [u], quando temos a presença dos segmentos [p] e [b], com .537 de peso relativo. Esses resultados vêm sendo tradicionalmente confirmados nos estudos sobre a variação de /o/. Esses segmentos costumam alçar as vogais médias provavelmente por causa da interferência do traço labial. Os resultados também devem ter relação com contextos como b[u]nito, b[u] rracha, d[u]rmindo. Note-se que embora haja vogal baixa na sílaba tônica de b[u]rracha, o alteamento pode ser favorecido por conta da presença de segmento bilabial no onset. Os segmentos [t] e [d] apresentam alta probabilidade de ocorrência de [o], .555. Os resultados devem guardar relação com o contexto tornozelo e com o segmento que se apresenta na tônica. O quase favorecimento de [u], em relação a esses segmentos, pode ter relação com o contexto em tomate. Apesar de se ter uma vogal aberta na sílaba tônica [a], tem-se uma consoante bilabial seguindo a vogal pretônica. Mais adiante, veremos que, quando [m] figura na sílaba imediatamente seguinte à vogal pretônica, o alteamento é favorecido. Já a variante [ɔ] possui maior probabilidade de ocorrer quando há a presença dos segmentos [n], [k g], [s z] e do grupo consonantal pr. Novamente, é possível relacionar os resultados com o contexto presente nos vocábulos avaliados. O alto favorecimento de [n] pode estar relacionado à recorrência do vocábulo novembro, inocente. Já os resultados relativos a [k] e [g] devem estar relacionados aos vocábulos coração, colega; nesses contextos

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se tem uma vogal baixa na tônica e na sílaba átona contígua ou uma baixa na tônica, respectivamente. Quanto a [s z], pode relacionar-se a soldado. O grupo consonantal pr deve apresentar resultados diretamente relacionados aos vocábulos procissão e promoção. 2.4 Segmento do onset da sílaba seguinte Os resultados desse grupo apresentam interação com alguns resultados do grupo avaliado anteriormente, especialmente o resultado referente às labiais, e ajudam a compreender a atuação de alguns segmentos sobre a variação em estudo. Observemos os resultados disposto na tabela 08: TABELA 08: resultados do grupo segmento do onset da sílaba seguinte [u]

Apl.

Exemplo

[o]

Apl.

Exemplo

[ɔ]

Apl.

Exemplo

[m]

.629

11/59

d[u]rmindo

.347

46/59

t[o]mate

.230

2/59

t[ɔ]mate

[l]

.060

10/71

b[o]rbuleta

.076

18/71 b[o]rboleta .865

43/71

c[ɔ]legas

[R]

.048

8/116

b[u]rracha

.383

91/116 b[o]rracha

[s z]

.255

8/70

in[u]centi

.624

38/70 pr[o]cissão .121

[t d]

.377

33/61

b[u]teco

.119

11/61

r[o]dovia

.504

17/61

[f v]

.677

33/97

ch[u]visco

.156

23/97

tr[o]vão

.167

41/97 n[ɔ]vembro

.569 17/116 s[ɔ]rriso 24/70 in[ɔ]cente b[ɔ]tar

O grupo em avaliação mostrou que os segmentos [f v], [m] e [t d] favorecem a ocorrência de [u], com .677, .629 e .377, respectivamente. A ocorrência de [o] é favorecida principalmente pela presença dos segmentos [s z] (.624), [R] (.383) e [m] (.347). A ocorrência de [ɔ] é favorecida pelos segmentos [l], [R] e [t d] com .865, .569 e .504, respectivamente. Seguem, na tabela 09, os fatores que apresentaram pesos relativos favorecedores das variantes de /o/.

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TABELA 09: fatores favorecedores do grupo segmento do onset da sílaba seguinte [u] [f v] (.677) [m] (.629) [t d] (.377)

[o]

[ɔ]

[s z] (.624) [R] (.383) [m] (.347)

[l] (.865) [R] (.569) [t d] (.504)

O resultado referente a [m], para a variante [u], confirma o que foi dito a respeito da atuação das labiais sobre o alteamento. Nota-se que [u] é favorecido principalmente quando se tem labiais no contexto seguinte [m f v]. Além das labiais, [t d] favorecem [u], mas a probabilidade de ocorrência de [u] nesse contexto é bem inferior à das labiais. A variante [o] é também favorecida pelas labiais, mas esse favorecimento é menor que do que o que se aponta para [u]. O abaixamento é favorecido por [l] e deve ter relação com o contexto colega. Assim como o favorecimento do abaixamento por [t d] deve ter sido impulsionado pela presença soldado e botar, vocábulos que apresentam contextos favorecedores do abaixamento, já que neles figuram vogais baixas na tônica. Quanto a [R], que favorece tanto [o] quanto [ɔ], pode-se relacionar seus resultados a contextos presentes em vocábulos como sorriso e borracha. Aquele deve ter impulsionado a manutenção. Esse o deve ter feito em relação ao abaixamento por conta da vogal baixa presente na tônica de borracha. 2.5 Sexo O grupo referente ao sexo do informante mostrou que os homens favorecem [u], com peso relativo igual a .375, enquanto as mulheres apresentam pesos relativos favorecedores para [o] (.347) e [ɔ] (.395), conforme dados apresentados na tabela 10:

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TABELA 10: atuação do grupo sexo [u]

Aplicação

[o]

Aplicação

[ɔ]

Aplicação

Masculino

.375

116/474

.318

252/474

.307

106/474

Feminino

.294

94/457

.347

258/457

.359

105/457

Os homens favorecem apenas [u]. Já as mulheres favorecem [o] e [ɔ]. Entretanto, há mais probabilidade de ocorrer abaixamento do que manutenção entre as mulheres. Esses resultados indicam o uso de regras exclusivas; homens preferem [u] enquanto mulheres tendem a usar mais [ɔ] e [o], duas variantes que concorrem entre si nesse sexo. 2.6 Escolaridade O grupo referente à escolaridade mostrou que os falantes que possuem ensino fundamental apresentam maior probabilidade de ocorrência de [u] (.385) em sua fala, enquanto que os informantes com curso superior possuem maior probabilidade de realizar [o], com .361. A realização de [ɔ] também apresentou favorecimento no falar dos informantes com ensino superior (.354). Observemos os resultados, na tabela 11: TABELA 11: atuação do grupo escolaridade [u]

Aplicação

[o]

Aplicação

[ɔ]

Aplicação

Fundamental

.385

115/450

.304

234/450

.311

101/450

Superior

.285

95/481

.361

276/481

.354

110/481

Como no grupo de fatores sexo, tem-se, de um lado, [u] favorecido por um grupo, ensino fundamental, e [o] e [ɔ] por outro grupo, ensino superior. Manutenção e abaixamento também concorrem entre si como no grupo de fatores sexo, mas há diferença. No grupo de fatores sexo [ɔ] apresenta mais alta probabilidade do que [o]. No grupo escolaridade ocorre o inverso.

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2.7 Faixa etária Os informantes com entre idade de 50 e 65 anos favorecem a realização de [u], com peso relativo de .364, e de [ɔ] com peso relativo igual a .350. Os informantes com idade entre de 18 e 30 anos favorecem a realização de [o], com peso relativo igual a .385. Observemos os resultados dispostos na tabela que segue: TABELA 12: atuação do grupo faixa etária [u]

Aplicação

[o]

Aplicação

[ɔ]

Aplicação

18 a 30

.302

91/454

.385

263/454

.314

100/454

50 a 65

.364

119/477

.286

247/477

.350

111/477

Apesar de os mais velhos favorecerem [u] e [ɔ], pode-se dizer que preferem [u]. Alteamento e abaixamento concorrem nessa faixa etária, diferentemente do que detectamos nos dois grupos sociais avaliados anteriormente em que concorriam [o] e [ɔ]. Já a manutenção é preferida pelos mais jovens, o que pode indicar que se trata de uma regra em possível progresso, já que é favorecida nesse grupo e desfavorecida entre os mais velhos. Dizemos possível, pois há necessidade de se analisar a atuação de outros fatores antes de se afirmar de forma mais contundente isso. Por enquanto, temos apenas uma hipótese conclusiva. 2.8 Procedência O último grupo social levado em consideração para o estudo da variação de /o/ refere-se à procedência do informante. Os resultados mostraram que as capitais Belém, Macapá e Manaus são as que apresentam favorecimento da ocorrência de [u], com pesos relativos de .392, .381 e 356, respectivamente. Já a variante [o] é favorecida em Belém (.432), Porto Velho (.372) e Macapá (.363). O favorecimento de [ɔ] se dá nas seguintes capitais: Boa Vista (.434); Manaus (.418); Rio Branco (.394) e Porto Velho (.362). Vejamos os resultados, na tabela 13:

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TABELA 13: atuação do grupo procedência [u]

Aplicação

[o]

Aplicação

[ɔ]

Aplicação

Belém

.392

43/175

.432

111/175

.175

21/175

Boa Vista

.262

24/132

.304

71/132

.434

37/132

Macapá

.381

41/169

.363

96/169

.257

32/169

Manaus

.356

50/186

.226

84/186

.418

52/186

Porto Velho

.266

24/126

.372

73/126

.362

29/126

Rio Branco

.316

28/143

.290

75/143

.394

40/143

Os pesos relativos mostram que, na região Norte, há maior probabilidade de ocorrência de [u] em Belém, Macapá e Manaus. A variante [o] possui maior probabilidade de ocorrer nas seguintes capitais: Belém, Porto Velho e Macapá. Já [ɔ] apresenta maior possibilidade de ocorrer em Boa Vista, Manaus, Rio Branco e Porto Velho. Os dados estatísticos referentes às variantes favorecidas em cada capital estão dispostos na tabela 14: TABELA 14: fatores favorecedores do grupo procedência [u] Belém (.392) Macapá (.381) Manaus (.356)

[o]

[ɔ]

Belém (.432) Porto Velho (.372) Macapá (.363)

Boa Vista (.434) Manaus (.418) Rio Branco (.394) Porto Velho (.362)

A variante [o] prevalece em Belém, o que confirma os resultados de autores como Nina (1991) e Sousa (2010), que mostraram a variante como regra. É importante observar que em algumas capitais ocorreu o favorecimento de duas regras concomitantemente, como a manutenção e abaixamento em Porto Velho; o alteamento e manutenção em Belém e Macapá; o alteamento e abaixamento em Manaus. Em nenhuma das capitais ocorreu favorecimento das três regras concomitante, conforme se pode verificar no mapa 1:

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Mapa 1: Distribuição das variantes médias pretônicas na região Norte

Se, de um lado, há que capitais favorecem a concorrência de duas regras, como mostrado anteriormente, há, por outro lado, capitais em que figura uma única variante. É o caso de Rio Branco e Boa Vista. Com relação ao mapeamento das variantes, observa-se que em Belém e Macapá as variantes favorecidas são [u] e [o]. Em Boa Vista e Rio Branco tem-se apenas o favorecimento de [ɔ]. Em Manaus são favorecidas as variantes [u] e [ɔ] e, em Porto velho, ocorre favorecimento de [o] e [ɔ]. A variante [ɔ] é favorecida nas capitais: Manaus, Boa Vista, Rio Branco e Porto Velho, ou seja, em capitais que sofreram alto fluxo de migrantes, oriundos principalmente da região Nordeste. É importante observar que em Rio Branco e Boa Vista há o favorecimento de uma única regra, [ɔ], o que fortalece a relação desses resultados com a imigração de nordestinos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo com os resultados apresentados, podemos afirmar que a manutenção é a regra mais produtiva no falar do Norte do país quando se tomam por base as capitais. Nessa região, há concorrência entre as três variantes de /o/ em posição pretônica, a saber: [u], [o] e [ɔ]. Mas os dados apontam a alta predominância de [o] sobre as duas outras variantes. Fatores linguísticos e sociais atuam de forma diferenciada sobre essa variação quando se consideram a atuação de fatores específicos, ocorrendo, por conta disso, mais altas probabilidades para [o] e [ɔ] em alguns casos. Por fim, resta dizer que os resultados apresentados referem-se a contextos específicos que resultaram da aplicação do QFF e QSL e alguns contextos não previstos nos referidos questionários. Há, portanto, necessidade de se ampliar esses contextos no sentido de se investigar a atuação de outros fatores que não constavam entre os avaliados no presente estudo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BISOL, Leda. Harmonização Vocálica: uma regra variável. Tese (Doutorado em Linguística e Filologia). Rio de Janeiro: UFRJ, 1981. BRASIL. Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ano base 2010. Brasília: IBGE, 2011. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/ historicos_cidades/ Acessado em 13 de julho de 2011. CAMARA JR, Joaquim Mattoso. Estrutura da Língua Portuguesa. 24 ed. Petrópolis: Vozes, 1970. CAMPOS, Benedita Maria do Socorro Pinto. Descrição sociolinguística das vogais médias pretônicas no português falado no Município de Mocajuba (PA). Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Federal do Pará, Belém, 2008. FREITAS, Simone Negrão de. As vogais Médias Pretônicas no Falar da Cidade de Bragança. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Pará, Belém, 2001.

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A HAPLOLOGIA E O PRINCÍPIO DO CONTORNO OBRIGATÓRIO THE HAPLOLOGY AND THE OBLIGATORY CONTOUR PRINCIPLE Taíse Simioni Universidade Federal do Pampa Fabiana Urrutia Amaral Universidade Federal do Pampa RESUMO Neste trabalho, descrevemos e analisamos a ocorrência de haplologia na cidade de Bagé (RS). A haplologia é um tipo de fenômeno fonológico em que ocorre a queda total da primeira sílaba em uma sequência de duas sílabas semelhantes, como em vonta de dormir, para vontade de dormir. Para a execução deste trabalho, foram realizadas dez entrevistas com pessoas com nível superior de escolaridade, concluído ou em andamento. Sequências com a mesma vogal, com consoantes de igual vozeamento e dentro de uma mesma frase fonológica exerceram papel favorecedor para a ocorrência de haplologia. O fato de que sequências com a mesma vogal e com consoantes de igual vozeamento favorecem o fenômeno da haplologia permitiu que trouxéssemos evidências para a atuação do Princípio do Contorno Obrigatório na realização do fenômeno sob análise. Palavras-chave: Haplologia; variação linguística; OCP. ABSTRACT In this work, we will describe and analyze the occurrence of haplology in the town of Bagé (RS). The haplology is a kind of phonological phenomenon in which occurs the total fall of the first syllable in a sequence of two similar syllables, as in vonta de dormir, instead of vontade de dormir. In order to perform this work, ten interviews were conducted with people who had a college degree and also with people who were in college. Sequences with the same vowel and with consonants of equal voicing in the same phonological phrase played a favoring role to the occurrence of haplology. The fact that the sequences with the same vowel and with consonants of equal voicing favor the phenomenon of haplology allowed to bring evidence to the performance of the Obligatory Contour Principle in the incidence of the phenomenon that is being analyzed. Keywords: Haplology; linguistic variation; OCP.

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INTRODUÇÃO O presente trabalho traz uma análise sobre a ocorrência de haplologia na cidade de Bagé (RS). Crystal (2000, p. 137) define o fenômeno como “a omissão de alguns sons que ocorrem em uma sequência de articulações semelhantes”, como em vonta de dormir, no lugar de vontade de dormir. Até onde temos conhecimento, poucos trabalhos variacionistas foram realizados com informantes da cidade de Bagé, localizada na região da Campanha do Rio Grande do Sul. Especificamente sobre a haplologia, não sabemos de nenhum estudo com dados desta região. Desta forma, este trabalho contribui para a descrição do português falado, especialmente em uma região sobre a qual os trabalhos variacionistas não se aprofundaram ainda. Destacamos que a cidade de Bagé localiza-se em uma região de fronteira com um país de língua espanhola, o Uruguai. Esta situação pode influenciar a fala de seus cidadãos. Para a execução da pesquisa foram realizadas dez entrevistas com pessoas com nível superior de escolaridade, concluído ou em andamento. Tais entrevistas foram gravadas em um gravador digital, depois ocorreu a transcrição de parte delas para que os dados pudessem ser, posteriormente, analisados através do programa GOLDVARB 2001. Tomando como pressuposto teórico a Teoria da Variação Linguística (Labov, 1991 [1972]), foram analisadas a variável dependente, no caso, a ocorrência de haplologia na cidade de Bagé, e variáveis independentes linguísticas: tonicidade das sílabas, qualidade das vogais, vozeamento das consoantes e posição em relação à frase fonológica. A motivação para o fato de não considerarmos em nossa análise variáveis independentes extralinguísticas será explicitada adiante. Das quatro variáveis linguísticas analisadas, três foram selecionadas como relevantes para a realização do fenômeno: qualidade das vogais, vozeamento das consoantes e posição em relação à frase fonológica. A seleção das duas primeiras variáveis nos motivou a relizar uma discussão sobre a atuação do Princípio do Contorno Obrigatório no processo de haplologia. A seguir, explicitamos a estrutura deste trabalho. Na primeira seção, apresentamos três trabalhos basilares para a realização de nossa pesquisa: Alkmim e Gomes (1982), Battisti (2005) e Tenani (2003). A segunda seção dedica-se a descrever a metodologia empregada. As variáveis consideradas

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em nossa pesquisa e as hipóteses que as motivaram são discutidas nesta seção. A terceira seção traz a análise dos resultados. Na quarta seção, discutimos a relevância de OCP para a discussão sobre a haplologia. Logo após, encontram-se as considerações finais.

1. Revisão da literatura Nesta seção, serão retomados três importantes trabalhos sobre haplologia que nortearão nossa análise: Alkmim e Gomes (1982), Battisti (2005) e Tenani (2003). O primeiro lança as diretrizes dos estudos de haplologia no Brasil; Battisti (2005) apresenta um estudo variacionista da haplologia; enquanto Tenani (2003) analisa a influência das fronteiras prosódicas no fenômeno sob análise neste texto. Alkmim e Gomes (1982, p. 48) definem a haplologia como um fenômeno em que “há a supressão da sílaba final de uma palavra quando seguida por outra foneticamente semelhante”, como em limite de palavra, realizado como limi de palavra. Segundo as autoras, a regra em (1) formaliza o processo de haplologia.

(1) C +cor -cont -nas 1

V +alto -acento ## 2

C +cor -cont -nasal 3

C +soa -cont -nasal 4

V -acento 5

øø ## 3 (4) 5

A regra em (1) deve ser lida da seguinte maneira: “A supressão de sílaba irá ocorrer com as dentais, exceto a nasal, quando as sílabas envolvidas no processo forem ambas átonas e a primeira vogal tiver o traço [+alto]” (Alkmim e Gomes, 1982, p. 51).

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As autoras não consideram haplologia sequências como sabe beijar > sabeijar e cano novo > canovo, pois, nestes casos, ocorreria apenas a supressão da vogal final de palavra, e as duas consoantes em contato continuariam sendo pronunciadas. Sequências como pode deixar > podeixar e pode falar > pofalar também não são analisadas como casos de haplologia por Alkmim e Gomes, pois, segundo as autoras, a supressão que ocorre aqui está restrita a determinados itens lexicais. Resumindo, para Alkmim e Gomes (1982) só ocorrerá haplologia em sequências com /t/ e /d/ subjacentes, em que ambas as vogais envolvidas sejam átonas e em que a primeira vogal seja alta. Battisti (2005) realizou um estudo para averiguar a ocorrência de haplologia na cidade de Porto Alegre. Para isso, utilizou o mesmo contexto estudado por Alkmim e Gomes, que é uma sílaba CV (em que C representa “consoante” e V representa “vogal”) seguida de uma sílaba C(C)V (vontade de conhecer, tanto trabalho), desde que tais sílabas contenham /t/ e /d/ subjacentes. Cabe destacar que Battisti (2005), ao contrário de Alkmim e Gomes (1982), considera ser possível a haplologia em contextos em que a segunda vogal é tônica, como em muito tempo. Segundo a autora, um exame preliminar dos dados levou a uma exclusão das sequências em que a primeira vogal é tônica, como em bidê de porcelana, uma vez que não ocorreria haplologia neste contexto. A autora analisou 24 entrevistas do banco de dados Varsul e considerou, para sua análise, quatro variáveis linguísticas (tonicidade das sílabas, qualidade das vogais, vozeamento das consoantes de ataque e posição em relação à frase fonológica) e duas variáveis extralinguísticas (idade e sexo). No trabalho de Battisti, os informantes possuíam nível superior de escolaridade. A escolaridade, portanto, não foi uma variável controlada pela autora. Neste estudo, foi constatado que a posição em relação à frase fonológica e a qualidade das vogais influenciam a ocorrência da haplologia. Com relação à primeira variável, a haplologia é favorecida quando a sequência de sílabas está localizada no interior de uma mesma frase fonológica (como em conhecer o mundo todo), em oposição a contextos em que as sílabas localizamse em frases fonológicas distintas (como em eu gosto muito de falar). No que diz respeito à qualidade das vogais, sequências com a mesma vogal (vontade de conhecer) favorecem a ocorrência de haplologia, em oposição a sequências com vogais diferentes (jeito de ser).

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No estudo de Battisti (2005), não foi selecionada como relevante para a realização da haplologia nenhuma das variáveis extralinguísticas. Segundo a autora, este resultado permitiu constatar que “as variáveis sociais controladas, Sexo e Idade, não desempenham papel frente à haplologia, ou seja, que o condicionamento da regra variável é interno” (Battisti, 2005, p. 82). Battisti afirma que este resultado já era esperado, uma vez que a haplologia não é facilmente percebida pelos falantes e sua realização não é carregada de prestígio, tampouco é estigmatizada, revelando características do que Labov (1994) chama de mudança de baixo (em relação ao nível da consciência). Cabe mencionar que Battisti (2005) ressalta a relevância do Princípio do Contorno Obrigatório (OCP, do inglês Obligatory Contour Principle) para a análise do processo de haplologia. Segundo a autora, pode-se tomar OCPgeneralizado, proposto por De Lacy (1999)1, como uma restrição atuando no sentido de demandar a “não realização de estrutura no contexto de identidade de elementos em sequência, ambiente de haplologia” (Battisti, 2005, p. 86). Tenani (2003) tem como foco a análise da haplologia em sua relação com os constituintes prosódicos. Para tal, leva em consideração a hierarquia prosódica proposta por Nespor e Vogel (1994) [1986]. Segundo nos mostra a autora, a haplologia não é bloqueada por nenhuma fronteira prosódica, entretanto quanto mais alta for a fronteira da hierarquia prosódica menor será a ocorrência do fenômeno. Tenani também analisa a influência do acento no processo de haplologia. Conforme o resultado de sua pesquisa, pode ocorrer haplologia quando as duas sílabas envolvidas são átonas (autoridade ditou) ou quando apenas a segunda é tônica (autoridade dita), mas não quando a primeira é tônica (Didi ditou). Além disso, a autora observa os contextos segmentais favorecedores ou não da realização de haplologia: a haplologia não ocorre quando a sequência é /ti+di/, mas ocorre com as demais sequências e acontece ainda mais se as sequências forem iguais (/ 1

De Lacy propõe uma distinção entre o OCP tradicional e o OCP-generalizado. O primeiro seria como aquele formulado por McCarthy (1986), segundo o qual são proibidas duas matrizes de traços iguais adjacentes. OCP-generalizado faria referência a sequências de segmentos, não a segmentos individuais. Voltaremos a esta questão adiante.

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di+di/ ou /ti+ti/)2. 2. Metodologia Para a realização desta pesquisa, foram feitas dez entrevistas com pessoas de nível superior de escolaridade, concluído ou em andamento3. Optamos por nos restringir a este nível de escolaridade para que os resultados desta pesquisa pudessem ser comparados com os de Battisti (2005), que, como mencionamos anteriormente, também utilizou dados obtidos a partir de entrevistas com informantes de ensino superior. Os informantes de nossa pesquisa são da cidade de Bagé (RS). As entrevistas foram realizadas entre os meses de março a maio de 2011, tendo sido gravadas em um gravador digital. As gravações tiveram duração média de 45 minutos. Nas entrevistas, os informantes foram incentivados a produzir narrativas de experiências pessoais. De acordo com Tarallo (2007), este tipo de narrativa faz com que o informante despreocupe-se com a forma como está falando e concentre-se no que está contando, o que permite uma coleta de dados de fala mais espontânea. A escuta dos dados foi feita por até cinco vezes para cada entrevista, até que não houvesse mais nenhuma dúvida em relação ao que estava sendo analisado. Nesse momento também foi realizada a transcrição de partes das entrevistas: foram transcritas todas as frases em que havia contexto para a realização da haplologia. Depois de codificadas as variáveis, que serão apresentadas adiante, os dados foram analisados estatisticamente através do programa GOLDVARB 2001.

2

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Perini (1984) levanta a hipótese de que a haplologia possa ser influenciada pelo status informacional (informação nova x informação dada) dos constituintes envolvidos. Segundo o autor, o fenômeno seria favorecido no caso de a sequência sujeita a haplologia trazer informação dada ao interlocutor. Tenani, em sua análise, controla esta variável e chega à conclusão de que ela não exerce influência sobre o fenômeno. Cabe aqui uma observação. Tenani realiza um estudo experimental sobre a haplologia, ou seja, seus dados são extraídos da leitura de frases com contextos cuidadosamente controlados. Pavezi (2006) realiza uma pesquisa com dados de fala “espontânea”, estabelecendo uma comparação com a análise feita por Tenani. Parte dos resultados de Tenani foram corroborados por Pavezi. Não houve uma divisão equânime dos informantes no que diz respeito a idade e sexo pelos motivos explicitados logo adiante.

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2.1 Variáveis e hipóteses A seguir, serão explicitadas a variável dependente e as variáveis independentes consideradas neste trabalho, que tem como pressuposto teórico a Teoria da Variação Linguística (Labov, 1991 [1972]). 2.1.1 Variável dependente A variável dependente considerada para este trabalho é a ocorrência ou não de haplologia na cidade de Bagé (RS). Para nossa análise, só será considerada uma realização de haplologia nos casos em que acontece a supressão total da primeira sílaba em uma sequência de duas sílabas idênticas ou parecidas, com /t/ e /d/ subjacentes (como em pare destruída para parede destruída), conforme proposto por Alkmim e Gomes (1982). 2.1.2 Variáveis independentes extralinguísticas No presente trabalho, não serão consideradas as variáveis independentes extralinguísticas, porque, conforme Battisti (2005), há evidências de que tais variáveis não exercem papel na realização da haplologia. Interessa-nos, então, neste momento, observar os fatores internos que exercem influência sobre o fenômeno em análise. Em um trabalho futuro, talvez possamos ampliar nossa coleta de dados de maneira a controlar variáveis extralinguísticas como idade, sexo e escolaridade, a fim de verificarmos se tais variáveis realmente não desempenham papel na realização da haplologia. 2.1.3 Variáveis independentes linguísticas As variáveis independentes linguísticas consideradas neste trabalho são: (a) tonicidade das sílabas, (b) qualidade das vogais, (c) vozeamento das consoantes e (d) posição em relação à frase fonológica. Ressaltamos que a seleção destas variáveis apoia-se na análise feita por Battisti (2005), a fim de que possamos estabelecer comparações entre seu trabalho e nossa pesquisa. Apresentaremos mais detalhadamente a seguir estas variáveis, explicitando as hipóteses relativas a cada uma.

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No que diz respeito à tonicidade das sílabas, consideramos os seguintes fatores: as duas sílabas são átonas (muito dinheiro) ou a primeira sílaba é átona e a segunda é tônica (mundo triste). Como vimos anteriormente, Tenani (2003) e Battisti (2005) revelam que não ocorre haplologia se a primeira sílaba é tônica. Por este motivo, esta configuração não é analisada em nosso trabalho. Sobre esta variável, acredita-se que a sequência de duas sílabas átonas favoreça mais a ocorrência de haplologia do que a sequência de sílaba átona seguida de sílaba tônica, em conformidade com os resultados apresentados por Battisti (2005). Quanto à qualidade das vogais, observamos se as vogais são iguais (parede destruída) ou diferentes (celebridade do momento). Levando em consideração o fato de que o processo de haplologia é desencadeado pela semelhança entre sílabas em sequência no contato entre palavras, esperase que vogais iguais favoreçam a ocorrência de haplologia, em oposição a vogais diferentes. Cabe destacar que este foi o resultado encontrado por Battisti (2005). Com relação ao vozeamento das consoantes, os fatores analisados são: sequência de consoantes desvozeadas (muito triste), sequência de consoantes vozeadas (celebridade do momento) e consoantes com diferente vozeamento (muito dinheiro). Acredita-se que sequências de consoantes com mesmo vozeamento favoreçam a regra variável de haplologia, em oposição a sequências de consoantes com diferente vozeamento, pois a semelhança entre os segmentos contribui para a ocorrência da haplologia. Por fim, no que se refere à posição em relação à frase fonológica, Tenani (2003) nos mostra que a haplologia tende a ocorrer com menos frequência em fronteiras prosódicas mais altas. Apoiando-nos em Battisti (2005), acreditamos que, se a frase fonológica é o contexto prosódico mais favorecedor para a realização da haplologia, o contexto interno a uma frase fonológica favorecerá tal realização ainda mais. Desta forma, os fatores considerados são: dentro da frase fonológica (ele estava muito triste) e entre frases fonológicas (ele gosta muito de correr). O Quadro (1) sistematiza as variáveis consideradas em nossa análise.

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QUADRO 1 – Variável dependente e variáveis independentes linguísticas Variável dependente Variáveis independentes linguísticas A haplologia ocorre. A haplologia ocorre.

(a) Tonicidade das sílabas: - as duas sílabas são átonas (muito dinheiro); não - a primeira sílaba é átona e a segunda é tônica (mundo triste). (b) Qualidade das vogais: - as vogais são iguais (parede destruída); - as vogais são diferentes (celebridade do momento). (c) Vozeamento das consoantes: - as consoantes em sequência são desvozeadas (muito triste); - as consoantes em sequência são vozeadas (celebridade do momento); - as consoantes em sequência apresentam diferente vozeamento (muito dinheiro). (d) posição em relação à frase fonológica: - a sequência está dentro da frase fonológica (ele estava muito triste); - a sequência está entre frases fonológicas (ele gosta muito de correr).

Na sequência, apresentamos os resultados de nossa pesquisa.

3. Análise dos resultados O programa GOLDVARB 2001 selecionou como estatisticamente relevantes para a ocorrência da haplologia três das quatro variáveis analisadas. Apresentaremos as variáveis na ordem em que foram selecionadas pelo programa: - posição em relação à frase fonológica; - qualidade das vogais; - vozeamento das consoantes. No que diz respeito à posição em relação à frase fonológica, os resultados apresentados na Tabela (1) confirmaram a hipótese de que a posição dentro da frase fonológica favoreceria a realização do fenômeno analisado. Tal favorecimento mostrou-se bastante acentuado, uma vez que há uma distância muito grande entre o peso relativo do fator “dentro da

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frase fonológica” (0,86) e o do fator “entre frases fonológicas” (0,09). Em Battisti (2005), como mencionamos anteriormente, esta variável também foi selecionada e, embora o contexto no interior de uma frase fonológica também tenha se mostrado como favorecedor, a diferença entre os fatores não é tão grande (apenas 0,08). TABELA 1 – Posição em relação à frase fonológica Aplic./Total

%

Peso Relativo

29/42

69

0,86

1/33

3

0,09

30/75

40

Dentro da frase fonológica (ele estava muito triste) Entre frases fonológicas (ele gosta muito de correr) TOTAL

Como já era esperado, no que se refere à atuação da qualidade das vogais, vogais iguais mostraram-se favorecedoras da ocorrência de haplologia, como pode ser visto na Tabela (2). Nos resultados obtidos no presente trabalho, é possível observar que o peso relativo atribuído às sílabas com a mesma vogal (0,79) está bem acima do ponto neutro, diferentemente do peso relativo de 0,34 atribuído às sílabas com vogais diferentes. Para Battisti (2005), conforme afirmamos acima, esta variável também mostrouse relevante, embora, diferentemente do que aconteceu em nossa análise, o fator “sílabas com diferentes vogais” tenha ficado com peso relativo próximo ao ponto neutro (0,47). TABELA 2 – Qualidade das vogais Sílabas com mesma vogal (parede destruída) Sílabas com diferentes vogais (celebridade do momento) TOTAL

Aplic./Total

%

Peso Relativo

19/24

79

0,79

11/51

21

0,34

30/75

40

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Em relação ao vozeamento das consoantes, constatamos, em conformidade com nossas hipóteses, que consoantes com igual vozeamento favorecem significativamente a ocorrência de haplologia. As consoantes desvozeadas em ambas as sílabas obtiveram peso relativo de 0,82, e as consoantes vozeadas em ambas as sílabas ficaram com peso relativo de 0,67; ao passo que consoantes com vozeamento diferente demonstraram-se não favorecedoras da ocorrência de haplologia, com peso relativo de 0,25. Isto comprova que consoantes de igual vozeamento exercem um papel bastante favorecedor para a realização da haplologia, como pode ser constatado no Tabela (3). Destacamos que, em Battisti (2005), esta variável não foi selecionada, embora, conforme afirma a autora, em uma das rodadas se tivesse feito uma amalgamação dos fatores desta variável, de maneira a opor consoantes de igual vozeamento e consoantes de diferente vozeamento. TABELA 3 – Vozeamento das consoantes Sequência de desvozeadas (muito triste) Sequência de vozeadas

Aplic./Total

%

Peso Relativo

7/11

63

0,82

18/29

62

0,67

5/35

14

0,25

30/75

40

consoantes

consoantes

(celebridade do momento) Sequência de consoantes com diferente vozeamento (muito dinheiro) TOTAL

Os resultados obtidos no presente trabalho apontam para o fato de que sequências de sílabas localizadas no interior de uma frase fonológica favorecem a ocorrência de haplologia. Além disso, vogais iguais e consoantes de igual vozeamento favorecem tal ocorrência na produção oral dos falantes da cidade de Bagé (RS), o que demonstra que uma maior semelhança entre os segmentos em contato é muito importante para facilitar a realização da haplologia.

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4. Discussão dos resultados Nesta seção, temos como objetivo destacar a atuação de OCP sobre o fenômeno da haplologia. Battisti (2004) discute, a partir do aparato teórico da Teoria da Otimidade (Prince e Smolensky (1993), McCarthy e Prince (1993)), se, no processo de haplologia, ocorre apagamento ou coalescência entre as sílabas envolvidas, optando pela primeira possibilidade. Além disso, a autora defende a atuação da restrição OCP-generalizado (De Lacy, 1999)4, que milita contra a identidade de sequências de segmentos, como a restrição de marcação que milita a favor da realização da haplologia. Não analisaremos os argumentos trazidos pela autora para sua defesa de que ocorre o apagamento da primeira sílaba de uma sequência na haplologia (e não acontece a coalescência), porque esta questão não é relevante para nosso trabalho. Interessa-nos, no entanto, a análise segundo a qual OCP-generalizado, em interação com outras restrições, é responsável pela emergência de um output com haplologia. Embora não nos posicionemos sobre a disputa entre apagamento ou coalescência como resultado da haplologia, o tableau abaixo mostra apenas o candidato vencedor com apagamento por economia de espaço. Para que se obtivesse um output com coalescência, bastaria que se invertesse a posição entre UNIFORMITY e MAX. O Tableau (1) mostra que, tomando um input como qualidade de vida e considerando que ocorre apagamento da primeira sílaba sob análise (por isso a restrição MAX, que milita contra apagamento, encontra-se abaixo da restrição UNIFORMITY, que milita contra coalescência), é a restrição OCP-genreralizado, altamente ranqueada na hierarquia, a responsável pela ocorrência da haplologia. Os índices sob os segmentos indicam um canditado fiel ao input (a), um em que ocorre apagamento (b) e um em que acontece coalescência (c). Como podemos ver no tableau (Battisti, 2004, p. 37), o candidato vencedor é aquele com apagamento, mas, como dissemos acima, o candidato vencedor poderia ser aquele com coalescência desde que MAX dominasse UNIFORMITY. Em nossa análise, interessa-nos o fato de que a alta posição ocupada por OCP impede que uma sequência de segmentos semelhantes emerja. 4

Faz-se necessário mencionar que De Lacy (1999) rejeita a atuação de OCP-generalizado no processo de haplologia morfológica.

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TABLEAU 1 – Harmonia sintática: OCP com apagamento /kwalidad1e2/ /d3e4/ /vida/ (a) d1e2 d3e4

OCP

UNIFORMITY

**! **

(b) d3e4 (c) d1,3e2,4

MAX

**!

Nosso trabalho traz evidências que corroboram a análise de Battisti (2005), uma vez que, ainda mais acentuadamente do que o trabalho da autora, nossos resultados mostram que quanto mais semelhantes forem as sequências de segmentos mais provável será a ocorrência de haplologia. Isto foi revelado pela seleção das variáveis qualidade das vogais e vozeamento das consoantes como estatisticamente relevantes. Os dados obtidos demonstraram que vogais iguais e consoantes de mesmo vozeamento favorecem a aplicação de haplologia. Trouxemos Battisti (2004) apenas para ilustrar uma análise que dá a devida importância a OCP no que diz respeito ao processo de haplologia. Nossa pesquisa não precisa, neste momento, comprometer-se com uma única perspectiva teórica. Apenas destacamos que OCP, independentemente da interpretação teórica que receber (como uma restrição ou como um conjunto de restrições em uma abordagem otimalista; ou como uma regra em uma abordagem derivacional), parece ser o real gatilho para a haplologia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho investigou a ocorrência de haplologia na cidade de Bagé (RS). Foram analisadas quatro variáveis linguísticas para verificar algumas hipóteses. Foi possível constatar que a haplologia ocorreu com uma frequência considerável nos dados analisados (40%), o que aponta para a possibilidade de um aprofundamento da pesquisa, com um número maior de informantes, uma vez que o fenômeno se mostrou relevante na região analisada.

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Foram evidenciadas questões relevantes à aplicação do processo, como o favorecimento da ocorrência de haplologia em sequências com a mesma vogal e com consoantes de mesmo vozeamento, o que nos mostra a importância da semelhança entre os segmentos envolvidos. Isto nos levou a uma discussão sobre o papel que OCP exerce como gatilho da haplologia. Também foi constatado que a aplicação do fenômeno é favorecida dentro da frase fonológica, como já era esperado, pois estudos como os de Tenani (2003) e Battisti (2005) já apontavam para a relevância da estrutura prosódica na ocorrência da haplologia. A partir do que foi observado neste estudo, podemos afirmar que a haplologia ocorre com maior frequência dentro da frase fonológica, em sequências com a mesma vogal e com consoantes de igual vozeamento. Para finalizar, cabe destacar que esta pesquisa possibilitou um maior conhecimento sobre uma variedade linguística falada em uma região pouco estudada e que merece atenção, especialmente por suas características como a proximidade com países de língua espanhola.

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QUALIDADE DAS VOGAIS MÉDIAS ABERTAS E GRAU DE TONICIDADE: UMA ANÁLISE ACÚSTICA OPEN MIDDLE VOWELS QUALITY AND SYLLABLE STRESS: AN ACOUSTIC ANALYSIS

THE

Marian Oliveira Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Vera Pacheco Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia RESUMO A sílaba que recebe o acento lexical é considerada a sílaba tônica e tende a ser mais proeminente. A alteração da qualidade vocálica é uma das pistas sobre a tonicidade silábica. Neste trabalho busca-se avaliar a qualidade vocálica das vogais médias abertas em sílabas tônicas e pretônicas, pois essas vogais apresentam certas especificidades de ocorrências relacionadas ao tipo de tonicidade silábica: são distintivas em sílaba tônica e marcam diferenças dialetais nas sílabas pretônicas. Figuras de palavras reais que continham essas vogais em sílabas pretônicas foram apresentadas a quatro sujeitos. A identificação oral dessas palavras foi gravada em cabine acústica e foram mensurados os três primeiros formantes. Os resultados mostram que somente as vogais médias abertas arredondadas tendem a alterar o seu padrão formântico nas sílabas tônicas e pretônicas. Palavras-chaves: vogais médias abertas; sílabas pretônicas; formantes. ABSTRACT The syllable that receives the lexical accent is considered the stressed syllable and tends to be more prominent. The change in vowel quality is one of the clues to the stressed syllable. In this study we assessed the quality of the vowel vowels in open stressed syllables medium and pretonic because these members have certain specific occurrences related to the type of syllabic accent, are distinctive in syllable and mark the syllables pretonic dialectal differences. Figures of real words containing these vowels in syllables pretonic were presented to four subjects. The oral identification of these words were recorded and we measured first three formants. The results show that only medium open rounded vowels tend to change your default formants in pretonic syllables. Keywords: open middle vowels; pretonic syllabes; formants.

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70 INTRODUÇÃO

Em uma palavra, a sílaba que recebe o acento lexical é considerada a sílaba tônica e tende a ser identificada, auditivamente, por ser normalmente mais saliente e proeminente que as demais sílabas adjacentes. São consideradas sílabas pretônicas aquelas que antecedem a sílaba tônica e postônicas aquelas que a sucedem. Câmara Jr. (1970), para quem o acento é, no Português do Brasil (PB), distintivo e delimitativo, afirma que esses tipos silábicos podem diferir entre si pelos diferentes graus de tonicidade, sendo atribuído 3 à sílaba tônica, 1 à sílaba pretônica e 0 à sílaba tônica. Para os casos de grupos de força, ou seja, para as sequências de fala contínua, sem pausa haveria um grau intermediário entre 1 e 3: o grau 2. Partindo dessa proposta, o que diferenciaria, por exemplo, “hábil idade” e “habilidade”, de acordo com o linguista, seria a pauta acentual da palavra e do grupo de força, como segue: FIGURA 1: pauta acentual de “hábil idade” e “habilidade”, conforme Câmara Jr, (1970, p. 63).

Como ressalta Arantes (2010, p. 15), esses exemplos “sugerem a não pertinência de AS (acento secundário) de base lexical” na distinção das pretônicas, pois, na proposta de Câmara Jr. (1970), proeminências intermediárias entre 1 e 3 não são reconhecidas no nível lexical, somente no grupo de força. Assim, continua Arantes: na distinção das pretônicas entre si, haveria uma “espécie de subordinação dos acentos lexicais presentes no mesmo grupo de força ao acento mais à direita”.

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Embora Câmara Jr. (1970), na proposta de sua pauta acentual, não reconheça a existência de proeminências intermediárias entre 1 e 3 no nível lexical, na distinção das pretônicas, como observa Arantes (2010); como também reconhece a existência de proeminências intermediárias entre as postônicas não final e final; não podemos negar que essa pauta acentual evidencia que as sílabas pretônicas, tônicas e postônicas não possuem o mesmo comportamento. O grau 3 atribuído à sílaba tônica, evidenciando que se trata de uma sílaba com um destaque maior do que as demais, encontra correlato acústico nos maiores valores de duração, intensidade, F0 e na qualidade vocálica como têm demonstrado vários trabalhos. A participação desses parâmetros acústicos na correlação do acento lexical para o Português não é igual e, dentre eles, a duração é o mais importante (FERNANDES, 1976; MAJOR, 1985; DELGADO MARTINS, 1988; MASSINI, 1991), ficando a intensidade em segundo lugar de importância (DELGADO MARTINS, 1988; MASSINI, 1991). Como ressalta Massini-Cagliari (1995, p. 123), como base em Massini (1991), “existe uma grande interação entre os parâmetros duração e intensidade atualizada foneticamente através da queda da amplitude n(as) sílabas(s) pós-tônica”. Dados de Fernandes (1976), de acordo com Massini-Cagliari (1995), contudo, apontam a frequência como o segundo parâmetro mais importante na caracterização acústica do acento lexical. Além de alterações na duração, intensidade e na frequência fundamental, alterações na qualidade vocálica podem ser encontradas para as vogais núcleos de sílabas tônicas e átonas (MASSINI, 1991; ARANTES, 2010). As vogais em sílabas postônicas tendem a sofrer mais processos de levantamento e/ou centralização do que as pretônicas. Vogais em sílabas tônicas não sofrem tais processos (MASSINI, 1991; MASSINI-CAGLIARI, 1995). A alteração na qualidade vocálica pode não ser comum a todas as vogais. Dados de Massini (1991) mostram que a vogal /i/ tende a manter a mesma qualidade vocálica tanto nas sílabas tônicas quanto nas átonas.

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1. Proposta do trabalho Vitória da Conquista é uma cidade do interior do Estado da Bahia/ Brasil, localizada a 520 km da capital do Estado (Salvador) e possui uma população de 306.866 habitantes. Os falantes naturais de Vitória da Conquista, conquistenses, à semelhança de nativos de muitas outras cidades baianas, inclusive Salvador, possuem seus falares marcados pela realização das vogais médias abertas em posição pretônica; falar característico das regiões do norte e nordeste brasileiros e menos típico das regiões do sul e sudeste. Considerando que (a) as vogais tendem a possuir diferentes qualidades em função do tipo de tonicidade silábico e (b) sujeitos conquistenses tendem a realizar vogais médias abertas tanto em posição tônica quanto pretônica, neste trabalho, nossa proposta é avaliar acusticamente as vogais médias abertas /é/ e /ó/ realizadas por sujeitos conquistenses nessas posições silábicas. Nosso objetivo é avaliar o padrão formântico dessas vogais a partir dos valores dos três primeiros formantes (F1, F2 e F3) com vistas a responder a seguinte pergunta: o padrão formântico das vogais médias abertas que têm sua distintividade no PB restrita à sílaba tônica (CÂMARA JR., 1970), apresenta padrão formântico diferente na posição pretônica na fala de sujeitos naturais de Vitória de Conquista, dialetalmente marcados pela realização dessa vogal na posição pretônica? 2. Metodologia Para dar conta da proposta aqui apresentada levantamos, conforme disposto nos quadros abaixo, um corpus de palavras reais passíveis de serem representadas por figuras. QUADRO 1. Palavras com vogal /é/ /é/ Posições Palavras

Tônica (T) Biblioteca Café Castelo

Pretônica 1 (PT1) Retrato Beterraba Elefante

Pretônica 2 (PT2) Beterraba Perereca Telefone

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QUADRO 2. Palavras com vogal /ó/ /ó/ Posições

Palavras

Tônica (T) Ovos

Pretônica 1 (PT1) Biblioteca

Pretônica 2 (PT2) Cotonete

Porca

Bolacha

Coração

Ossos

Cotonete

Chocolate

Figuras dessas palavras foram projetadas para sujeitos naturais de Vitória da Conquista que deveriam realizar em voz alta, por quatro vezes, para fins de análise estatística, a identificação dessas mesmas figuras. O procedimento de identificação de figuras foi adotado com vistas a evitar que a forma escrita da palavra pudesse influenciar na realização oral dos sujeitos. As gravações foram realizadas em cabine acústica, usando-se o microfone AKG e placa de som M-Box. O sinal acústico foi analisado por meio do software Praat, a partir do qual foram obtidas as frequências dos três primeiros formantes (F1, F2 e F3) extraídas, por meio de script, do estado estacionário das vogais médias abertas em sílabas tônica e pretônicas (pretônica 1 e pretônica 2), como esquema abaixo: FIGURA 2: Representação esquemática das sílabas pretônica 1, pretônica 2 e tônica e átona final.

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Partindo dos pressupostos da Teoria Fonte e Filtro da produção a fala (FRY, 1976), segundo os quais medidas acústicas fornecem pistas articulatórias da produção vocálica e que, por meio dos valores de F1, F2 e F3, é possível determinar a qualidade de uma vogal, os valores das frequências formânticas foram analisados. As diferenças entre as médias dos valores de F1, F2 e F3 das vogais nas sílabas pretônicas e tônica foram avaliadas através do teste estatístico não paramétrico Kruskall-Wallis (teste H), a partir do qual foi possível verificar se a diferença entre as médias formânticas das vogais em sílaba pretônica 1, pretônica 2 e tônica eram significativas. Foram consideradas diferenças significativas entre as médias os valores de p menores que 0.05, para alfa=0.05. Por se tratar da comparação simultânea de três médias, para os valores de p menores que 0.05, foi necessária usar o teste Dunn, que é um teste de separação de médias. Por meio desse teste foi possível comparar a diferença das três médias ao mesmo tempo.

3. Padrão formântico vocálico das médias abertas e graus de tonicidade silábicos: resultados A mudança na qualidade vocálica pode ocorrer, em alguns casos, em função do tipo de tonicidade da sílaba na qual a vogal é núcleo (MASSINI, 1991; ARANTES, 2010), apesar de aparecer como um dos últimos itens na caracterização acústica da sílaba tônica. A ocorrência de vogais médias abertas (é, ó) em sílabas pretônicas na fala de brasileiros naturais de algumas cidades do norte e do nordeste torna seu falar bastante característico. Se, em termos fonológicos, a ocorrência dessas vogais é restrita a posição tônica e, em termos fonéticos, sua realização distingue falares de diferentes regiões brasileiras, qual a qualidade dessas vogais médias abertas na posição pretônica? O fato de essas realizações não terem atributos fonológicos e serem estritamente fonéticas pode vir acarretar alterações nos seus padrões formânticos? Nessa situação, as vogais médias abertas sofrem mais a interferência do grau de tonicidade silábica no seu padrão formântico? As tabelas que seguem e as reflexões sobre os dados nelas dispostos podem lançar luz sobre essas questões.

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Nas tabelas 1, 2 e 3 são apresentados os valores médios das frequências de F1, F2 e F3, respectivamente, em Pretônica 1 (PT1), Pretônica 2 (PT2) e Tônica (T) da vogal média aberta não arredondada /é/ mensurados no estado estacionário da vogal realizada por 4 sujeitos conquistenses (naturais de Vitória da Conquista/BA) e os respectivos valores de p.

TABELA 1: Avaliação dos valores médios de F1 da vogal média aberta não arredondada, na posição Pretônica 1 (PT1), Pretônica 2 (PT2) e Tônica (T), produzida por sujeitos conquistenses. Sujeito Sl So St Sv

PT1 (Hz) 506,46 753,73 493,14 563,44

PT2 (Hz) 522,47 745,21 495,00 562,11

T (Hz) 566,40 716,93 527,07 615,78

Médias gerais

579,19

581,19

606,54

p 0,590 ns 0,07 ns 0,06 ns 0,070 ns

OBS: ns = não significativo (p>0.05)

Diante dos valores de p encontrados, todos maiores que 0,05, no contraste dos valores médios de F1, verificamos que, na realização oral da vogal /e/ dos sujeitos avaliados nessa pesquisa, essa vogal não altera a sua abertura em PT1, PT2 e T. Esses sujeitos tendem a produzir tal vogal com a mesma abertura, independentemente do seu tipo de tonicidade silábico. Diferenças significativas nos valores médios de F2 também não são encontradas, como se observa na Tabela 2, sendo todos os valores de p >0,05 e, portanto, não significativos. Nesse sentido, pode-se afirmar que a vogal /é/ não apresenta alteração no seu grau de anterioridade quando ocupa núcleo de sílabas PT1, PT2 e T.

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TABELA 2: Avaliação dos valores médios de F2 da vogal média aberta não arredondada, na posição Pretônica 1 (PT1), Pretônica 2 (PT2) e Tônica (T), produzida por sujeitos conquistenses. Sujeito Sl So St Sv Médias gerais

PT1 (Hz) 1851,70 1772,83 1832,14 1694,11 1787.25

PT2 (Hz) 1956,90 1669,83 1848,50 1843,00 1829.00

T (Hz) 1911,50 1826,16 1742,40 1795,77 1818.50

p 0,120 ns 0,094 ns 0,207 ns 0,026 ns

OBS: ns = não significativo (p>0.05)

Ser de natureza PT1, PT2 ou T também não altera os valores médios de F3 das realizações de /é/ dos sujeitos avaliados. Para essa variável acústica, são igualmente encontrados valores de p>0,05 (cf. Tabela 3). TABELA 3: Avaliação dos valores médios de F3 da vogal média aberta não arredondada, na posição Pretônica 1 (PT1), Pretônica 2 (PT2) e Tônica (T), produzida por sujeitos conquistenses. Sujeito Sl So St Sv

PT1 (Hz) 2950,61 3186,40 2644,85 2497,55

PT2 (Hz) 2848,00 3248,00 2682,29 2603,66

T (Hz) 2807,47 3250,33 2643,93 2540,88

Médias gerais

2819,85

2845,49

2810,65

p 0,055 ns 0,060 ns 0,149 ns

OBS: ns = não significativo (p>0.05)

Valores não significativos de p encontrados na avaliação das frequências médias de F3 da vogal /é/, nos três tipos silábicos evidenciam que essa vogal não tem alterada a relação entre o tamanho da cavidade anterior e posterior quando da sua produção. Com base nos dados das tabelas 1,2 e 3, podemos afirmar que a vogal /é/ não altera a sua qualidade em decorrência do grau de tonicidade silábico. Essa vogal tende a apresentar o mesmo padrão formântico tanto nas sílabas pretônicas quanto tônica.

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Mas esse mesmo comportamento não é encontrado para a vogal média aberta arredondada, conforme nos mostram a análise dos dados dispostos nas tabelas 5 e 6. No que concerne ao grau de abertura, podemos afirmar que a vogal /ó/ assume o mesmo comportamento da vogal /é/ quando se trata da relação entre padrão formântico e níveis de tonicidade, como se verifica na Tabela 4.

TABELA 4: Avaliação dos valores médios de F1 da vogal média aberta arredondada, na posição Pretônica 1 (PT1), Pretônica 2 (PT2) e Tônica (T), produzida por sujeitos conquistenses. Sujeito Sl So St Sv

PT1 (Hz) 425,66 706,30 460,14 555,14

PT2 (Hz) 500,14 731,00 454,00 551,00

T (Hz) 495,20 736,86 495,71 591,22

Médias gerais

536,50

559,00

579,250

p 0,074 ns 0,273 ns 0,240 ns 0,080 ns

OBS: ns = não significativo (p>0.05)

Seguindo os valores de p da Tabela 4, todos >0,05, podemos afirmar que a vogal /ó/, à semelhança da vogal /é/, não tem alterada a sua aberta quando está em sílabas pretônicas ou tônica. Podemos dizer, portanto, que o a vogal é indiferente ao fato de a sílaba ser tônica ou átona. Mas, diferentemente de /é/, alterações em F2 podem ser encontradas na vogal /ó/ quando se avalia o tipo de tonicidade da sílaba da qual ela é núcleo, como disposto na Tabela 5.

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TABELA 5: Avaliação dos valores médios de F2 da vogal média aberta arredondada, na posição Pretônica 1 (PT1), Pretônica 2 (PT2) e Tônica (T), produzida por sujeitos conquistenses. Sujeito Sl So St Sv Médias gerais

PT1 (Hz) 1456,25 a (1) 1415,76 a 1126,92 a 1241,57 a 1309.5000

PT2 (Hz) 1420,35 a 1387,57 a 1033,00 a 1089,87 a 1232.2500

T (Hz) 1051,40 b (2) 1200,80 b 830,21 b 932,66 b 1003.2500

p 0,030 s 0,021 s 0,000 s 0,000 s

OBS: (1) = letras iguais indicam que as médias são estatisticamente iguais (2) = letras diferentes indicam que as médias são estatisticamente diferentes s = significativo (p João, cujo carro... > o carro dele b. A caneca da Maria > a sua caneca > Maria, cuja caneca... > a caneca dela (11) a. O nariz do João > o seu nariz > João, cujo nariz...> o nariz dele b. O braço da Maria > o seu braço > Maria, cujo braço...> o braço dela (12) a. O pai do João > o seu pai > João, cujo pai...> o pai dele b. O amigo da Maria > o seu amigo > Maria, cujo amigo... > o amigo dela

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(13) a. As pernas da cadeira > as suas pernas > a cadeira cujas pernas...> as pernas dela b. A maçaneta da porta > a sua maçaneta > a porta cuja maçaneta... > a maçaneta dela Podemos agrupar os PPs dos casos de (10)-(13) sob o rótulo de construções “possessivas”. Note-se que todas podem ser parafraseadas com o verbo ter indicando posse, como mostra (14)3: (14) a. João tem um carro/um nariz/um pai b. Maria tem uma caneca/um braço/um amigo c. A cadeira tem pernas d. A porta tem uma maçaneta Um aspecto peculiar das construções genitivas do PB é a sua extração para fora do sintagma nominal, mesmo nos contextos em que esse sintagma é encabeçado por um artigo definido. Neste trabalho, tomando como base o modelo teórico do Programa minimalista (Chomsky, 1995 e trabalhos subsequentes), discutimos dados do PB que mostram que a restrição de definitude observada em línguas como o inglês e o espanhol para extração de genitivos não é operante e os mesmos padrões verificados para extração a partir de DPs indefinidos no PB são encontrados para extrações a partir de DPs definidos. O artigo está organizado da seguinte forma: a seção 1 apresenta o contraste de extração de constituintes a partir de DPs definidos no inglês, no espanhol e no PB para, em seguida, na seção 2, discutir a proposta de Ticio (2003) para o padrão de extração encontrado no espanhol. Conforme será verificado, a proposta da autora não permite acomodar os dados do PB e, por isso, na seção 3, apresentamos modificações em sua proposta, a fim de contemplar os dados do PB, sem perder de vista os dados do espanhol. A seção 4 corresponde às nossas considerações finais.

3

Note-se, contudo, que a leitura evidenciada para construções que designam parte-todo, como as apresentadas em (13), quando parafraseadas com a forma verbal ter, é uma leitura existencial, como fica evidente, por exemplo, em (14c,d).

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1. Extração de genitivos e definitude do DP Como tem sido verificado por um número robusto de trabalhos (FIENGO & HIGGINBOTHAM (1981), BOWERS (1987), DIESING (1992), MANZINI (1992), DAVIES & DUBINSKY (2003), entre outros), no inglês a extração para fora de DPs indefinidos é amplamente mais aceitável do que a extração a partir de DPs definidos, fenômeno denominado de “Efeito de Especificidade” (cf. DIESING, 1992): (15) a. Who did you read some/many books about? ‘Sobre quem você leu alguns/muitos livros’ b. *Who did you read the/that book about? ‘Sobre quem você leu o/aquele livro’ (DAVIES & DUBINSKY (2003), p. 5, ex. (9a) e (9b)) O bloqueio de extração a partir de DPs definidos tem levado algumas análises a incluírem no rol de ilhas fortes o DP definido no inglês (cf. SZALBOCSI & DEN DIKKEN (2000)), já que tanto argumentos quanto adjuntos do nome não podem ser extraídos de tais constituintes. O espanhol, por outro lado, apresenta uma restrição distinta para extração a partir de DPs definidos. Como foi observado por Torrego (1987), Ormazabal (1991) e Ticio (2003), em espanhol, apenas o genitivo tema pode ser extraído de um DP definido, sendo agramatical a extração do genitivo agente e do possuidor. Os dados a seguir apresentam contrastes de extração no espanhol: (16) a. *¿De qué autor has leído [los libros tagente]? ‘De que autor você leu os livros’ b. *¿De quién has visto [las fotos de ese monte tpossuidor]? ‘De quem você viu as fotos desse monte’ c. ¿De qué cantante salieron publicadas [las fotos ttema]? ‘De que cantor saíram publicadas as fotos’ (TICIO, 2003, p.31, ex. (16)) (16), acima, apresenta três sentenças com extração de genitivos a partir de DPs definidos (encabeçados pelo artigo definido) do espanhol. (16a) e (16b) apresentam, respectivamente, a extração de um genitivo

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com interpretação de agente e de possuidor, resultando em construções agramaticais. Por outro lado, a extração do genitivo tema em (16c) resulta numa construção gramatical. (17), abaixo, apresenta construções do PB, em que há extração de genitivos a partir de DPs definidos, todavia, o padrão de gramaticalidade difere do encontrado no espanhol: (17) a. De que escritor o João leu os livros? b. De quem (que) o João arranhou o carro? c. De que artista famosa publicaram as fotos no jornal? Os exemplos em (17) mostram que tanto a extração de genitivo agente (17a), quanto do genitivo possuidor (17b) e do genitivo tema (17c), a partir de um DP definido, resultam em construções gramaticais, fato que aponta para uma diferença do PB em relação a línguas como o inglês, em que parece haver total bloqueio para extração a partir de DPs definidos, e como o espanhol, que permite uma extração apenas do genitivo tema, conforme verificado em (16). Dessa forma, a generalização de que o DP definido seja uma ilha para extração, como formulada para o inglês, não pode ser estendida para o PB, da mesma forma que não podemos atribuir a essa língua um padrão de restrição de efeito de definitude para extração, como aquele verificado no espanhol. O PB apresenta uma extração mais permissiva dos genitivos tanto de contextos definidos, quanto de contextos indefinidos, como ilustrado em (18)-(19) a seguir: (18) Extração de genitivos a partir de DPs definidos no PB a. De que modelo o João rasgou [a foto/as três fotos de que modelo] ? b. De que pintor o João danificou [o quadro/dois quadros de que pintor]? c. De qual vizinho o João arranhou [o carro/os dois carros de qual vizinho]?

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(19) Extração de genitivos a partir de DPs indefinidos no PB a. De que modelo o João rasgou [várias/algumas fotos de que modelo]? b. De que pintor o João danificou [vários/alguns quadros de que pintor]? c. De qual vizinho o João arranhou [vários/alguns carros de qual vizinho]? Nos exemplos (18a) e (19a), podemos interpretar modelo como a pessoa que foi fotografada, portanto, o tema, e a extração desse genitivo tanto de um DP definido (18a), quanto de um DP indefinido (19a) resulta em uma sentença gramatical. Da mesma forma, é possível extrair para fora do DP o genitivo com interpretação de agente em (18b) e (19b) e o genitivo com interpretação de possuidor em (18c) e (19c), independente do fato de o DP ser definido ou indefinido. Há, contudo, casos de DPs definidos no PB em que a extração é bloqueada. DPs definidos introduzidos por demonstrativos, como os apresentados em (20), parecem, a princípio, ter estatuto de ilha para extração, semelhante ao que ocorre no inglês: (20) a. *De que autor o João leu esse livro? b. *De que assunto o João leu esse livro? c. *De que professor o João leu esse livro? A agramaticalidade de construções como as em (20), todavia, não parece ser determinada pela extração dos genitivos, uma vez que mesmo quando realizados in situ, a agramaticalidade permanece: (21) a. *O João leu esse livro de que autor? b. *O João leu esse livro de que assunto? c. *O João leu esse livro de que professor? Comparando (20) e (21) podemos concluir que a agramaticalidade de (21) não se deve exclusivamente ao fenômeno da extração e sim a restrições de outra natureza, talvez de incompatibilidade entre o pronome

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demonstrativo encabeçando o DP e o elemento interrogativo introduzindo o genitivo4. Dessa forma, exemplos como os de (20) serão excluídos da análise sobre extração, dado que outros fatores, além dos estruturais, parecem responsáveis pela agramaticalidade de tais casos. Resumindo essa breve exposição, o que os dados observados nesta seção mostram é que, em PB, a extração de genitivos é indiferente ao fato de o DP ser definido ou indefinido, o que diferencia essa língua de outras em que um DP definido se apresenta como uma ilha para extração, como parece ser o caso do inglês, ou de línguas como o espanhol, em que apenas o genitivo tema pode ser extraído a partir de DPs definidos. Com base no panorama brevemente esboçado nesta seção, iremos discutir na seção seguinte a proposta de Ticio (2003) que analisa dados de extração no espanhol, para em seguida apresentarmos uma proposta que dê conta do padrão de extração encontrado no PB.

2. A análise de Ticio (2003) para o espanhol O trabalho de Ticio (2003) abarca um número considerável de fenômenos observados em construções nominais do espanhol, como extração de argumentos e adjuntos, ordem de adjetivos e elipse. No entanto, nesta seção, oferecemos um panorama mais restrito de sua análise, focalizando especificamente sua proposta para as restrições de extração de genitivos no espanhol. Em seu estudo, Ticio (2003) assume a divisão do DP em diferentes domínios prolíficos, baseada no mesmo tipo de divisão que Grohmann e Haegeman (2002) propõem para dar conta de fenômenos de duplicação de possessivos em DPs de línguas como o holandês ocidental. A noção de domínio prolífico, bem como a noção de anti-localidade, como condição atuante para movimentos em cada domínio prolífico, adotadas em Ticio, são baseadas na proposta em Grohmann (2000). A divisão da sentença em três domínios prolíficos, tal como proposta por esse autor, busca capturar diferentes tipos de movimentos que ocorrem no domínio da sentença, e que 4

Avelar (2006) sugere essa incompatibilidade entre especificidade e elemento interrogativo no português. Como observa na análise ali apresentada, quanto mais específico for um DP no português, menos compatível será com um elemento interrogativo dentro deste.

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não são permitidos pela gramática. Baseado nos tipos de movimentos não permitidos, devido, principalmente, à natureza da extensão do movimento (movimentos muito curtos de constituintes), Grohmann propõe a divisão da sentença nos três seguintes domínios: (22) CPωD > AgrPφD > vPθD O domínio vPθD corresponde à parte da derivação em que as relações temáticas são criadas, é o domínio que contém o predicado e seus argumentos; AgrPφD é o domínio em que as propriedades de concordância são licenciadas, onde argumentos podem ser licenciados para Caso e traços-φ; CPωD corresponde ao domínio em que informações discursivas são estabelecidas. De acordo com Grohmann, cada um desses domínios forma uma parte da derivação em que as componentes FF e FL avaliam a derivação. A delineação desses três domínios permite traçar um limite dentro do qual a ocorrência de um mesmo objeto, mais de uma vez, leva à violação da condição denominada “anti-localidade” e, se de alguma forma, a duplicidade do objeto é verificada dentro de um mesmo domínio, isso apresenta reflexos drásticos em termos de output. Exemplos desses reflexos drásticos no output podem ser observados em casos de movimento curto de um argumento dentro do mesmo domínio, em que tanto o elemento movido quanto a sua cópia deixada na posição de onde foi movido são realizados por diferentes formas fonológicas por FF. É o que pode ser depreendido no caso de análises como a de Hornstein (1999), que assume construções de reflexivos como resultado de uma operação de movimento: a cópia do argumento movido (ou vestígio) é pronunciada como uma anáfora, como representado em (23): (23) Johni likes himselfi ‘John gosta de si mesmo’ Numa teoria como a apresentada em Hornstein (1999), (23) apresenta duas ocorrências de um mesmo objeto, John, o qual foi movido da posição de objeto para a posição temática de sujeito, resultando em duas

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ocorrências de John dentro do domínio temático. Assumindo a teoria de Grohmann, numa teoria de movimento para construções com reflexivos, como a construção em (23), a realização fonética de himself, em vez de seu apagamento, pode ser pensada como resultado da ação da condição de “anti-localidade”. Note-se que, apesar de em termos sintáticos John e himself, em (23), serem duas ocorrências de um mesmo objeto, as formas fonéticas de realização são distintas, condizendo com a forma pela qual a noção de anti-localidade é efetivada em cada Domínio prolífico. Lançando mão da proposta de domínios prolíficos, Ticio (2003) propõe que, assim como a sentença, o DP do espanhol apresenta três domínios prolíficos: o domínio temático, que contém o predicado e seus argumentos; o de concordância (agreement), onde os argumentos podem receber Caso e traços-phi e o domínio do discurso, em que a informação do discurso é decodificada. A autora assume uma estrutura interna do DP como ilustrada em (24): (24)

TopP 3 Top’ 3 domínio-ω Top DP 3 D’ 3 D 3 possuidor

AgrP domínio-φ Agr’ 3 Agr nP 3 domínio-θ agente n’ 3 n NP 3 N’ 3 N

tema

A projeção de uma categoria como TopP segue o paralelo encontrado no domínio da sentença em propostas como as de Rizzi (1997), para quem categorias como TopP, FocP, além de CP, são projetadas. Como margem da construção nominal, [Spec, TopP] é a posição que serve como “válvula

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de escape” para constituintes extraídos de dentro do DP5. A projeção nP é postulada em paralelo com a projeção vP no domínio da sentença, onde o argumento externo é licenciado, ou o genitivo com interpretação de agente; AgrP corresponde à NumP de Ritter (1991), projeção relacionada a traços de número e onde o genitivo com interpretação de posse seria licenciado. O genitivo tema seria licenciado na posição de complemento de N. Na proposta de Ticio, qualquer elemento para ser extraído para fora do DP teria de estar disponível na periferia deste, ou seja, na posição [Spec, FP]. Assim, qualquer genitivo para ser movido até a periferia esquerda da sentença, teria de previamente ser movido até [Spec, FP]6. Para as restrições de movimento operantes no DP, Ticio assume duas condições: (i) um elemento deve mover-se apenas de um domínio a outro e não dentro de um mesmo domínio, a não ser que alguma evidência do contrário seja observada na interface, caso não atestado em construções nominais do espanhol (hipótese de anti-localidade, baseada em Grohmann (2000))7 e (ii) os movimentos dentro do DP do espanhol cruzam apenas uma única projeção máxima em cada passo da derivação (Manzini, 1994). Para dar conta de impossibilidades de extração de constituintes do DP, quando este é introduzido por um artigo definido, Ticio assume, seguindo propostas como as de Abney (1987), Bernstein (1993) e Zampareli (2000), que nem todo determinante é gerado em D. Assumindo com Milsark (1977) uma divisão entre determinantes fortes e fracos, a autora 5

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7

A postulação da presença de uma categoria como TopP na construção nominal, ou alguma outra equivalente, é observável em um número robusto de trabalhos. Remetemos o leitor para uma leitura de Alexiadou, Haegeman e Stavrou (2007) para uma discussão panorâmica de propostas acerca desse tipo de categoria dentro do domínio nominal. Em Sedrins (2009), pode-se encontrar uma análise em que é sugerida a existência de uma categoria funcional acima de DP no PB, posição para onde genitivos seriam movidos para que não apresentem leitura de foco, mesmo sendo pronunciados na margem direita da sentença. A intuição na proposta de Ticio (2003) é a de que o DP se configura como uma Fase, domínio a partir do qual só é possível acessar a margem e o núcleo (Chomsky, 2001). Muitos trabalhos sobre extração a partir de construções nominais intuem essa noção de fase, mesmo antes da proposta de Chomsky (2001). Cinque (1980) e Giorgi & Longobardi (1991), por exemplo, propõem que apenas genitivos que podem alcançar a margem da construção nominal no italiano é que podem ser extraídos. Para uma discussão teórica sobre o estatuto de Fase para o DP, ver Svenonius (2004). Note-se que a violação dessa primeira restrição, a de anti-localidade, não prevê como resultado uma construção agramatical, apenas algum efeito drástico nas interfaces. A noção de anti-localidade será assumida em nossa proposta, conforme será evidenciado mais adiante. Para uma discussão mais acurada sobre o reflexo dessa restrição no nível de interface Forma Fonética remetemos o leitor aos textos de Grohmann (2000, 2003) e Grohmann & Haegeman (2002).

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propõe que apenas os fortes projetam DP e que os fracos são gerados em AgrP. Os demonstrativos e artigos definidos seriam determinantes fortes e projetariam DP, logo, a impossibilidade de extração de genitivos (e de qualquer outro constituinte) de dentro de DPs definidos deve-se ao fato de que qualquer genitivo, para alcançar [Spec, TopP], teria de sair do seu domínio, cruzar a barreira DP, e finalmente atingir [Spec, TopP]. Assim, a agramaticalidade obtida a partir de extração de genitivos agente e possuidor no espanhol é resultante do cruzamento da projeção DP, projetada em contextos definidos. Essa análise, contudo, não é satisfatória para explicar por que no espanhol o genitivo com interpretação de tema pode ser extraído em contextos com artigos definidos. Nesse sentido, a autora assume que, de alguma forma, existe uma relação direta entre a realização do tema e a presença de um determinante fraco. Uma vez que a presença do tema implica a presença de um “artigo definido fraco”, a projeção DP não projeta. Assim, o genitivo tema é movido projeção por projeção sem violar nenhuma das duas restrições acima referidas, até chegar à posição [Spec, TopP], como ilustra (25)8: (25)

TopP 3 tema

ToP’ 3 Top

Agr 3 tema 3

Agr’ Agr

NP 3 N

tema

O movimento que o genitivo tema realiza em (25) não cruza o especificador de nenhuma projeção máxima, nem é realizado mais de uma vez em um mesmo domínio prolífico. É crucial para Ticio assumir que no caso de (25) DP não projeta mesmo quando se tem um artigo definido na estrutura. A autora não apresenta evidências que corroborem essa assunção, 8

Atentamos para o fato de que, para a autora, na ausência do genitivo agente nP não é projetado.

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o que se configura como uma questão em aberto. Tal como apresentada, essa análise também não dá conta dos dados encontrados no PB, língua que permite a livre extração de genitivos mesmo em contextos encabeçados por artigo definido. Também algo mais precisa ser dito se pensarmos nos dados do inglês, língua em que a extração é totalmente bloqueada em contextos definidos. Na seção que segue, apresentamos uma proposta para explicar o padrão de extração encontrado no PB e que pode ser estendida para dar conta tanto do padrão encontrado no espanhol, quanto no inglês, assumindo, diferentemente de Ticio, que DP sempre projeta, mesmo no caso em que apenas o genitivo tema é licenciado.

3. Uma proposta para o PB A fim de acomodar o padrão de extração de genitivos encontrado no PB, partimos da proposta de Ticio, sugerindo algumas modificações. Nossa proposta corresponde basicamente em assumir que a projeção DP, tanto no espanhol quanto no PB, integra o domínio prolífico de concordância e não o domínio discursivo, como mostrado em (26) e (27): (26) Estrutura do DP no PB TopP 3 Top

DP

3 genitivo D’ (possuidor/agente) 3 D

NP 3 N

genitivo tema

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(27) Estrutura do DP no espanhol TopP 3 Top

DP 3 D

AgrP 3 genitivo Agr’ (possuidor/agente)3 Agr 3 N

NP genitivo tema

A proposta de que DP integra o domínio prolífico de concordância em ambas as línguas encontra respaldo principalmente no fato de que nelas o determinante apresenta morfologia visível de número e gênero, evidenciando que essa categoria participa de relações de concordância dentro da construção nominal: (28) las cosas bonitas / los libros Det-FEM-PL coisas bonitas / Det-MAS-PL livros (29) As coisas bonitas / Os livros Outra assunção na nossa proposta é a de que genitivos com interpretação de agente ou de possuidor são gerados fora do domínio temático do DP, devido à sua natureza não argumental, diferentemente do genitivo tema que corresponde ao verdadeiro argumento do núcleo nominal, seguindo a linha argumentativa apresentada em Grimshaw (1990)9. Outro ponto a ser assumido e de crucial importância é o fato de que genitivos agente e possuidor são licenciados por diferentes categorias no espanhol e no PB: no espanhol, é a categoria AgrP que licencia esses genitivos atribuindo-lhes Caso, como em (27), e no PB é a própria projeção DP que licencia esses genitivos, conforme sugere (26). Essa ideia é baseada 9

Por não dispormos de mais espaço, não desenvolveremos aqui os argumentos que favorecem a proposta de que o genitivo com interpretação de agente é gerado fora do domínio temático da construção nominal. O leitor interessado poderá recorrer ao referido trabalho de Grimshaw (1990) para um estudo acurado sobre estrutura argumental de nomes.

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em trabalhos como os de Engelhardt (2000) e Sedrins (2009) que têm sugerido que genitivos são licenciados por categorias que portam traços de número, e que, por isso, podem atribuir Caso a uma construção genitiva10. O fato de no PB a realização visível do morfema de plural ser obrigatória só no determinante (cf. Scherre, 1988, entre outros) tem sido tomado como forte evidência de que é o núcleo D que porta o traço de número nessa língua (cf. Magalhães, 2004; Avelar, 2006). Já no espanhol, língua que não apresenta as mesmas propriedades do PB em relação ao padrão de marcação visível de pluralidade no sintagma nominal, o traço de número estaria localizado em Agr, um equivalente a NumP da proposta de Ritter (1991)11. Assumindo os três pontos colocados acima, o contraste de extração de genitivos entre o PB e o espanhol pode ser naturalmente explicado. Para ser extraído até a periferia esquerda da sentença, um genitivo tem de estar disponível na periferia do DP, ou seja, na posição [Spec, TopP], acima de DP. No português, um genitivo agente ou possuidor para ser extraído tem de se mover da projeção DP em que é gerado para a projeção de TopP, como mostra (30)12: (30) TopP 3 Top’ 3 Top

DP 3 genitivo D’ (possuidor/agente)3 D 3 N 10

11

12

NP genitivo tema

Em seu estudo sobre extração de adjuntos adnominais no português, Avelar (2006) também argumenta em favor do fato de que a categoria que porta os traços de número no DP licencia alguns adjuntos adnominais atribuindo-lhes Caso. Pensamos nessa categoria Agr como aquela com papel primordial de garantir Caso ao genitivo com interpretação agente/possuidor. O genitivo tema já recebe Caso do nome que o seleciona. Uma questão em aberto é a motivação para o movimento realizado pelo genitivo interrogativo até a posição [Spec, TopP], conforme apontado por um parecerista anônimo. Gostaríamos de sugerir que esse movimento seria engatilhado por necessidade de checagem de algum traço nãointerpretável de Top, provavelmente um traço de natureza Q (interrogativo). A ideia de um traço Q não-interpretável na categoria mais proeminente da construção nominal pode ser encontrada em Gutierrez-Bravo (2001). Ver também nota 5.

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Note-se que o movimento que o genitivo realiza em (30) não viola nem a condição de anti-localidade, nem cruza uma projeção máxima, não transgredindo, portanto, nenhuma restrição sobre movimento. No caso em que o genitivo com interpretação de tema é extraído no PB, temos uma derivação como a apresentada em (31)13: (31) TopP 3 Top’ 3 Top

DP 3 D’ 3 D

NP 3 N

genitivo tema

Em (31), o genitivo tema move-se da sua posição de complemento de N e vai até a posição de [Spec, DP], um movimento intermediário, para em seguida mover-se até a periferia da construção nominal, a posição [Spec, TopP]. O movimento realizado pelo genitivo com interpretação de tema nem viola anti-localidade, já que os movimentos realizados vão de um domínio a outro, nem cruza projeções máximas. No caso das extrações no espanhol, vimos que nessa língua quando o artigo definido é realizado, podemos extrair apenas o genitivo correspondente ao tema, mas não podemos extrair o genitivo com leitura de possuidor ou de agente. Esse padrão de extração é facilmente capturado pela nossa proposta. Uma vez que genitivos agente e possuidor sejam licenciados no domínio de concordância, pela categoria Agr, para que esses genitivos possam ser extraídos, eles têm de estar disponíveis na margem do DP, ou seja, na posição [Spec, TopP]. O problema é que para alcançarem essa posição teríamos duas opções: (i) ele se moveriam diretamente para [Spec, TopP], cruzando a projeção DP, violando, assim, a condição de 13

Caso um outro genitivo estivesse ocupando a posição de Especificador de DP, em (31), poderíamos supor que o movimento do genitivo tema para essa posição, dá-se por adjunção.

minimalidade, como mostra (32); ou (ii) eles fariam um movimento prévio para [Spec, DP] para em seguida moverem-se para [Spec, TopP], mas agora fazendo um movimento dentro de um mesmo domínio, o que não parece ser o caso, uma vez que não há efeito drástico de interface. (32)

TopP 3 Top

DP 3 D’ 3 D

AgrP

3 genitivo Agr’ (possuidor/agente) 3 Agr

NP

3 N

genitivo tema

No caso da extração do genitivo tema no espanhol, quando o DP é definido, a extração se daria como mostra (33): (33)

TopP 3 Top’ 3 Top

DP 3 D’ 3 D

NP 3 N

genitivo tema

Note-se que o movimento do genitivo em (33) não viola nenhuma restrição sobre movimento: o movimento não cruza nenhuma projeção, nem se dá dentro de um mesmo domínio. É crucial assumir que no caso em que o genitivo tema é extraído, AgrP não projeta, não sendo, portanto, uma barreira para que esse genitivo se mova da posição de complemento

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de N até a posição de [Spec, DP]. De fato, como discute Ticio (2003), a extração do tema só é possível quando nenhum outro genitivo está presente na estrutura do DP e isso, de acordo com a autora, se dá porque justamente na ausência do possuidor e do agente, AgrP não projeta. Essa proposta pode ser estendida para os dados do inglês onde o padrão de extração difere tanto do espanhol quanto do PB. No inglês, como discutimos no início deste artigo, o DP definido comporta-se como um domínio de onde não é possível a extração de nenhum constituinte interno a ele. Esse fato pode ser capturado se assumirmos que nessa língua o determinante ocupa a posição [Spec, DP], posição que deveria estar disponível para receber genitivos, a fim de que pudessem alcançar em seguida a posição [Spec, TopP]. Nos casos em que o DP é encabeçado por um artigo definido no inglês, nenhum genitivo, nem mesmo o tema pode ser extraído, porque a única forma de eles estarem disponíveis na periferia da construção nominal seria cruzar a projeção DP, já que seu Especificador está ocupado pelo artigo: (34)

TopP 3 Top

DP 3 D’ 3 D

AgrP

3 genitivo Agr’ (possuidor/agente) 3 Agr NP 3 N genitivo tema

A proposta de que o artigo definido no inglês está na posição [Spec, DP] é apresentada em Abney (1987), onde o autor enumera uma série de argumentos independentes para justificar a presença do artigo nessa posição. Entre seus argumentos, Abney observa que o artigo definido e o possuidor em construções genitivas estão em distribuição complementar:

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(35) a. *John’s the book b. John’s book O contraste em (35) é naturalmente capturado ao assumir-se que John ocupa a posição de Especificador em (35b), posição não disponível em (35a), já ocupada pelo artigo the14.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo apresentamos três padrões distintos de extração de genitivos a partir de construções nominais, representados aqui pelo espanhol, o inglês e o PB. O inglês apresenta uma forte restrição sobre a extração de constituintes a partir de DPs definidos, configurando-se como um contexto de ilha forte. Conforme sugerimos, essa forte restrição deve-se ao fato de que nessa língua o determinante mais definido/mais especificado ocupa a posição de Especificador do DP, como já proposto em Abney (1987). Como a posição de especificador de DP estaria ocupada nos contextos de DPs definidos, o movimento de qualquer constituinte para fora do DP no inglês é bloqueado porque teria de violar a condição de minimalidade para atingir a margem da construção nominal (teria de cruzar a projeção DP). Sobre os dados do espanhol, conforme observado, essa língua permite a extração do genitivo com interpretação de tema, mas não permite a extração de genitivos com a interpretação de agente/possuidor, em contextos de DPs definidos. Já o PB permite a extração dos três tipos de genitivos nos contextos definidos. Conforme sugerimos, o contraste entre essas duas línguas é capturado assumindo-se que os genitivos possuidor e 14

Um parecerista anônimo aponta para a necessidade de um estudo mais acurado acerca das propriedades dos determinantes nas três línguas comparadas, o que demandaria uma maior disponibilidade de espaço neste artigo. Acreditamos que algumas propriedades peculiares ao PB, como a ocorrência de formas expletivas do artigo definido. (diante de pronomes possessivos pré-nominais e de nomes próprios), a ocorrência de nominais nus em posição argumental, bem como o padrão já mencionado sobre a concordância de número podem (ou não) ser fenômenos relacionados à maior permissibilidade de extração de genitivos nessa língua, algo que precisa ser cuidadosamente estudado em trabalhos futuros. Sobre esses fenômenos e a estrutura sintática do DP no PB, sugerimos a leitura de Castro (2006), para uma discussão acerca do determinante expletivo no PB; Magalhães (2004), para uma leitura sobre a concordância de número no DP; Engelhardt (2000), para uma leitura sobre o licenciamento de genitivo por categorias portadoras de traços de número; Müller (2002), para uma leitura acerca de propriedades do sintagma nominal nu do PB.

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agente são licenciados por categorias distintas. Enquanto no espanhol é a categoria Agr que carrega traços de número, licenciando genitivos, no PB o traço de número estaria em D, categoria que licencia genitivos. Uma vez que genitivos possuidor e agente são licenciados já na posição de Especificador de DP, no PB, seu movimento até à margem do DP não viola minimalidade, podendo ser extraído para fora do domínio nominal. No espanhol, os genitivos possuidor e agente, licenciados na posição de Especificador de Agr, para chegarem à margem do DP teriam de violar a restrição de minimalidade, cruzando a projeção DP. Esses genitivos não fazem movimento prévio para o Especificador de DP porque violariam a condição de anti-localidade (que evita movimento dentro de um mesmo domínio prolífico, a não ser que efeitos drásticos sejam observados nas interfaces). A proposta aqui delineada apresenta pelo menos duas vantagens em relação à apresentada em Ticio (2003). Podemos dispensar a especulação sugerida sem motivações empíricas de que no espanhol o artigo definido não projetaria DP na presença de uma construção genitiva com interpretação de tema, bem como acomodar os dados de extração de genitivos no PB. O trabalho de Ticio prevê que a projeção de DP atuaria como uma espécie de barreira para o movimento de qualquer genitivo para fora da construção nominal, o que não pode ser assumido para o PB, língua em que mesmo quando DP é projetado a extração de genitivos é permitida.

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SUJEITOS DESLOCADOS À ESQUERDA E MUDANÇA PARAMÉTRICA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO LEFT-DISLOCATED SUBJECTS AND PARAMETRIC CHANGE IN BRAZILIAN PORTUGUESE Mayara Nicolau de Paula Universidade Federal do Rio de Janeiro Mônica Tavares Orsini Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO O presente artigo investiga uma das estratégias de construção de tópico marcado denominada deslocamento à esquerda de sujeito, nas falas culta e popular do dialeto carioca. Numa perspectiva interlinguística, a ausência de restrições para as construções focalizadas, comportamento não observado em línguas que marcam positivamente o Parâmetro do Sujeito Nulo, como o PE, parece decorrer do fato de o PB ser uma língua de sujeito preenchido, como aponta Duarte (1995), evidenciando, assim, o princípio do encaixamento da mudança linguística, nos moldes de Weinreich, Labov e Herzog (1968[2006]). Palavras-chave: mudança linguística; tópico marcado; deslocamento à esquerda de sujeito.

ABSTRACT The present article investigates a strategy of topic construction, called left dislocated subjects, in popular and highly educated speech of Brazilian Portuguese (BP). In an interlinguistic perspective, the lack of constrains for the target structures, a non-observed behavior in null subjects languages, like European Portuguese (EP), is based on the fact that BP is a full subject language as pointed out by Duarte (1995). It can be an evidence of the principle of embedding described by Weinreich, Labov e Herzog (1968[2006]). Keywords: linguistic change; marked topic; left dislocated subjects.

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INTRODUÇÃO No que diz respeito ao Português Brasileiro (PB), alguns estudos já foram feitos sobre as construções de tópico marcado, expressão utilizada por Brito, Duarte e Matos (2003), tendo sido pioneiro o trabalho de Pontes (1987). É possível identificar no PB quatro estratégias distintas de construções de tópico marcado, a saber: anacoluto, topicalização, deslocamento à esquerda e tópico-sujeito. (cf. Pontes 1987; Berlinck, Duarte e Oliveira 2009). O presente artigo focaliza as construções de deslocamento à esquerda de sujeito (DE sujeito) em amostras de fala culta e popular do Rio de Janeiro, buscando refinar a análise (a) do tipo de elemento que pode ocupar a posição de tópico e (b) da natureza do correferente (elemento cópia) na posição sintática de sujeito, a fim de incrementar a discussão em torno do status do PB no que se refere à tipologia das línguas proposta por Li e Thompson (1976). Trabalhos feitos anteriormente (Vasco e Orsini 2007) apontam para o fato de nosso sistema não se comportar como uma língua de proeminência de sujeito, apresentando características que o aproximam das línguas orientadas para o discurso. As construções de DE sujeito são reflexo da mudança na marcação do Parâmetro do Sujeito Nulo, visto que aquelas são estruturas ausentes nas línguas ocidentais de sujeito nulo (cf. Duarte 1995). Entende-se, desta maneira, que uma mudança se encontra encaixada em um conjunto de outras mudanças em curso, conforme descrito por Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]). Ao se confrontar os resultados para as falas culta e popular, objetivase investigar se o grau de escolaridade interfere na frequência ou nas estratégias de elaboração das construções de DE sujeito, tendo em vista tanto a estrutura do tópico quanto a natureza do correferente.

1. As construções de tópico marcado As estruturas de tópico marcado diferenciam-se das sentenças SVO por apresentarem um elemento na posição de tópico, na periferia esquerda, seguido por um comentário, que se caracteriza por ser uma sentença

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completa. Embora o objeto de análise deste trabalho seja a estrutura do tipo deslocamento à esquerda, descrevem-se brevemente as outras três estratégias presentes no PB. As construções de anacoluto são aquelas em que se verifica conectividade semântica entre o tópico e o comentário, não havendo, porém, conectividade sintática com uma posição interna à sentença, como ilustrado em (1): (1)

A seleção brasileira, quando começou a copa do mundo, um campeonato que é pra valer mesmo, a coisa muda de figura. (fala popular)

Em (1), o informante apresenta o tópico sobre o qual falará – “quanto à seleção brasileira, em relação à seleção brasileira” – para em seguida declarar algo. Nas construções de topicalização, o tópico vincula-se a uma categoria vazia no interior do comentário, como no exemplo (2): (2)

Banana fritai de vez em quando a gente faz __i. (fala culta)

Em (2), o tópico banana frita desempenha a função sintática de objeto direto, tendo sido movido para a posição periférica à esquerda da sentença. As construções de tópico-sujeito reúnem diferentes estruturas em que o tópico ocupa a posição de sujeito numa sentença em que o verbo, em princípio, não projeta argumento externo. Este tipo de construção caracteriza-se por ser uma consequência da tendência atual de preenchimento desta posição sintática no PB, parecendo não estar presente em sincronias anteriores. Estudos com fala espontânea detectam estruturas em que o tópico ocupa a posição de sujeito com verbos meteorológicos, por exemplo, como ilustrado em (3): (3)

Essas janelas estão ventando (fala popular)

Em (3), o SN essas janelas concorda com a perífrase verbal estão ventando, o que sustenta a interpretação de o tópico estar ocupando a posição sintática de sujeito da oração.

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110 1.1 As construções de deslocamento à esquerda

Nas construções de deslocamento à esquerda, há um elemento externo à sentença, que é retomado no interior do comentário por meio de um pronome cópia ou outro elemento equivalente. Embora, nesse tipo de estrutura, o tópico possa estar indexado a um elemento que desempenha qualquer função sintática na sentença comentário, esta análise concentra-se nas construções de DE sujeito, exemplificadas em (4) e (5): (4)

Os vizinhosi, qualquer coisa elesi comunicam à gente. (fala popular)

(5)

O sujeitoi pra fazer qualquer coisa em termos de... de construção de edifícios pra especulação elei teria de comprar com uma porção... uma porção de gente, não é? (fala culta)

Nas sentenças (4) e (5), os sintagmas nominais os vizinhos e o sujeito são retomados, respectivamente, no interior do comentário, pelos pronomes nominativos eles e ele, que ocupam a posição de sujeito da oração, instaurandose uma relação de correferencialidade.

2. As estruturas de DE sujeito e a mudança na marcação do Parâmetro do Sujeito Nulo Os trabalhos de Duarte (1995, 2003 entre outros) apontam para o fato de o PB ser uma língua negativamente marcada para o Parâmetro do Sujeito Nulo, ou seja, passa a preferir ocupar a posição de sujeito ao invés de deixá-la vazia, um reflexo da simplificação do paradigma flexional. Ao observar o percurso da mudança de língua [+ sujeito nulo] para [- sujeito nulo], Cyrino, Duarte e Kato (2000) constatam que os itens [+ referenciais] e [+ humanos] são os primeiros a se tornarem plenos, comportamento que vai progressivamente se estendendo para outros contextos, mais resistentes à mudança. A hierarquia de referencialidade proposta pelas autoras evidencia o caminho percorrido pelo sujeito.

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111 não-argumento

proposição

[±humano]

[+humano]

3ª p. 2ª p. 1ª p. [±animado] [±específico] [-ref]< ---------------------------------------------------------> [+ref.]

Nesta perspectiva, as construções de DE sujeito se caracterizam por ser uma evidência do encaixamento da mudança linguística, pois são recorrentes em línguas de sujeito preenchido, sofrendo pouca ou nenhuma restrição quanto à natureza do elemento que ocupa a posição de tópico. Assim, nossa hipótese é a de que a preferência por sujeitos plenos favorece a ocorrência das construções de DE sujeito, já que, nesses casos, a posição em questão fica sempre preenchida por um pronome lembrete ou outro elemento de mesmo valor. A mudança na marcação do Parâmetro do Sujeito Nulo, em conjunto com outras mudanças em curso na língua, parece revelar que PB caminha em direção às línguas de tópico (línguas orientadas para o discurso, como o mandarim), não sendo um sistema que se organiza somente em torno do sujeito (padrão SVO), como descrevem as Gramáticas Tradicionais (cf. Cunha e Cintra 2001). A tipologia das línguas aqui considerada foi proposta por Li e Thompson (1976). Segundo estes autores, as línguas podem ser classificadas de quatro maneiras distintas: (a) línguas com proeminência de sujeito - neste tipo, a estrutura das sentenças favorece uma descrição com base na relação gramatical sujeito-predicado; (b) línguas com proeminência de tópico – ao contrário do modelo anterior, a relação tópico-comentário determina a estrutura das sentenças; (c) línguas com proeminência de tópico e de sujeito – nestas línguas, há duas construções sentenciais distintas e igualmente importantes: sujeitopredicado e tópico-comentário; (d) línguas sem proeminência de tópico e de sujeito – neste tipo, sujeito e tópico se fundem, deixando de serem categorias distintas. A intenção dos autores com essa tipologia não é negar a existência das categorias tópico ou sujeito nas línguas, mas sim demonstrar que algumas línguas não podem ser descritas com base exclusivamente na

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112

noção de sujeito. O PB compartilha algumas características com as línguas que se estruturam em torno da construção tópico-comentário, como não apresentar restrições quanto ao elemento topicalizado, codificar o tópico por meio de uma posição definida na sentença e rejeitar construções passivas.

3. Aporte teórico-metodológico 3.1 Pressupostos teóricos A pesquisa linguística fundamentada no modelo de estudo da mudança proposto por Weinreich, U., Labov, W. e Herzog, M. (2006 [1968]) precisa alicerçar-se num quadro teórico. Desta forma, utiliza-se, neste estudo, a Teoria de Princípios e Parâmetros (Chomsky 1981), segundo a qual a linguagem, uma propriedade genética humana, apresenta princípios gramaticais invariantes, válidos para todas as línguas, e parâmetros que podem ser positiva ou negativamente marcados, diferenciando as línguas entre si em certas propriedades. A Teoria da Variação (Labov 1994), a seu turno, pressupõe que a variação é inerente a todas as línguas naturais. As formas linguísticas alternantes competem entre si e a preferência por uma ou outra variante é condicionada, numa comunidade de fala, por fatores de ordem estrutural e/ou social, não sendo, portanto, aleatória. Nesse contexto, o estudo da variação é fundamental para a investigação da mudança linguística, já que toda mudança provém do comportamento variável do fenômeno linguístico. O casamento da Teoria Gerativa com os pressupostos da Teoria da Variação tem possibilitado uma análise muito produtiva das mudanças sintáticas em curso no PB (cf. Duarte e Paiva 2006). Se, por um lado, as propriedades dos parâmetros descritas pelo quadro teórico de Princípios e Parâmetros auxiliam no levantamento das hipóteses que sustentam as investigações, bem como na seleção dos grupos de fatores; por outro, a análise variacionista contribui para uma descrição atualizada das propriedades desses parâmetros no PB.

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113

3.2 Metodologia Os dados foram submetidos a uma análise quantitativa, tendo sido utilizado o pacote de programas Goldvarb 2001. Ao empregar tal metodologia, pretende-se, por um lado, identificar possíveis contextos que favoreçam a ocorrência das construções de DE sujeito e, por outro, evidenciar a ausência de restrições para essas construções no PB. No que diz respeito aos fatores estruturais, foram investigados a natureza gramatical do tópico, a natureza do correferente, a constituição interna do tópico quando este é preenchido por um SN, a referencialidade do SN que ocupa a posição de tópico e a configuração sintática da oração em que ocorre o correferente. No que diz respeito aos fatores sociais, trabalhou-se com dois períodos distintos de tempo, grau de escolaridade, faixa etária e gênero dos informantes. 3.2.1 Corpora Para a realização desse estudo, foram utilizadas duas amostras de cada variante linguística focalizada (falas culta e popular), recolhidas em dois momentos distintos. Faz-se, assim, um estudo de tendência (Labov 1994), que consiste em avaliar o comportamento de uma mesma comunidade de fala em dois períodos de tempo diferentes. Os dados de fala culta foram coletados do acervo sonoro do Projeto de Estudo da Norma Urbana Culta do Rio de Janeiro (NURC-RJ). Essa amostra reúne informantes com nível superior completo, distribuídos por gênero e faixa etária (25-35 anos, 36-55 anos e mais de 55 anos). Foram ouvidos dois informantes de cada gênero e de cada faixa etária, totalizando 22 entrevistas, sendo 11 gravadas na década de 70 e outras 11, na década de 901. Os dados de fala popular foram retirados do acervo do Programa de Estudos sobre o Uso da Língua (PEUL-UFRJ). Os informantes, nesse caso, possuem nível fundamental ou médio de escolaridade e encontram-se agrupados por 4 faixas de idade (7-14 anos, 15-25 anos, 26-49 anos e mais de 50 anos). Do acervo, foram ouvidas 17 gravações dos anos 80 e outras 1

Na década de 70, só há uma entrevista do gênero masculino, mais de 55 anos; na década de 90, apenas uma entrevista do gênero feminino, mesma faixa etária. Isso justifica o total de 22 inquéritos e não 24.

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114

19 entrevistas feitas cerca de 20 anos depois2. 4. Descrição dos resultados Em relação à distribuição dos dados por período, nas amostras investigadas, obtiveram-se os seguintes resultados: na fala culta, foram encontradas 110 ocorrências de DE sujeito na década de 1970 e 69, na década 1990; na fala popular, houve 187 ocorrências na década de 1980 e 157, em 2000. A aparente diminuição do número de construções de DE sujeito nas amostras mais recentes pode ser explicada pelo fato de haver um relativo desequilíbrio no tamanho das entrevistas. As realizadas mais recentemente tanto do NURC quanto do PEUL são mais curtas do que as anteriores. Essa redução, contudo, decorrente de questões externas à análise, não invalida a hipótese de que estas construções são muito frequentes no PB oral, não havendo restrições de natureza estrutural para sua ocorrência. 4.1 Natureza gramatical do tópico Ao focalizar o conjunto de dados com base no grupo de fator natureza gramatical do tópico, foram identificadas ocorrências de SN, pronome nominativo de 1ª e 3ª pessoas, pronome com valor arbitrário, pronome demonstrativo e proposição, conforme evidenciado nos exemplos a seguir. (6) O Brasili para exportar, elei tem que comprar. (fala culta) (7) Eui, logicamente isso eui não posso dizer pra você. (fala popular) (8) Elei suponhamos que elei tenha 10 milhões já guardados pelo Fundo de Garantia (fala culta) (9) Vocêi a partir de vinte nove anos, vocêi é considerada velha. (fala popular) (10) essei elei tem quatorze anos (fala culta) (11) essa fome de comprar artigos estrangeirosi issoi é natural (fala culta) O exemplo (6) apresenta uma ocorrência de SN na posição de tópico, retomado por um pronome nominativo. Em (7) e (8), reúnem-se 2

Os dados de fala popular apresentam uma oscilação um pouco maior na constituição da amostra, variando entre 1 e 3 indivíduos por célula.

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exemplos de tópico preenchido por um nominativo de 1ª e 3ª pessoas, respectivamente. No exemplo (9), verifica-se a ocorrência de um pronome com valor arbitrário, já que não se refere a uma pessoa específica. A preferência por sujeitos preenchidos trouxe como consequência o aumento da frequência de construções com pronomes como você e a gente na posição de sujeito como estratégia para sua indeterminação na fala do PB. Em (10), há um pronome demonstrativo e, em (11), uma proposição, ou seja, uma porção maior do enunciado, com presença de verbo. A tabela 1 reúne os percentuais obtidos para cada estrutura em ambas as variedades, nos dois períodos estudados. . TABELA 1: Natureza do tópico nas falas culta e popular em ambos os períodos. FALA CULTA Natureza do tópico

Década de 1970

FALA POPULAR Década de 1990

Nº oco

%

Nº oco

%

SN

77

70%

39

57%

Pronome 1ª

15

14%

16

23%

Pronome 3ª

7

6%

1

1%

7

6%

13

19%

2

2%

-

2

2%

-

Pronome arb. Pronome dem. proposição Total

110 100%

69

100%

Natureza do tópico SN Pronome 1ª Pronome 3ª Pronome arb. Pronome dem.

Década de 1980

Década de 2000

Nº oco

%

Nº oco

%

84

48%

85

54%

55

28%

34

22%

33

17%

23

15%

10

5%

13

8%

5

2%

2

1%

proposição

-

Total

187

100%

157

100%

As ocorrências de SN na posição de tópico foram as mais frequentes, tanto entre os falantes cultos quanto entre os não cultos, nos dois períodos analisados, o que revela que, em ambas as variedades, construções do tipo (12) são mais frequentes que do tipo (13), em que há um pronome na posição de tópico.

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116

(12) Essas descobertasi, elasi nascem dentro do botequim. (fala popular) (13) Eui, normalmente eui cortava assim sem escolher muito o barbeiro. (fala culta) As informações fornecidas pela tabela acima permitem confirmar que, embora o tópico seja preferencialmente um SN, o PB não impõe restrições quanto à natureza do elemento que ocupa esta posição. Em ambos os períodos de tempo, tem-se, entre as construções com pronome, um predomínio das construções com pronome de 1ª pessoa (exemplo 13), tanto na fala culta quanto na fala popular. Tal comportamento se justifica pelo modelo de entrevista aqui utilizado, contexto propício para o surgimento desse tipo de construção, já que, nas entrevistas do tipo DID (diálogo entre informante e documentador), o documentador formula questões genéricas, estimulando o informante a falar sobre suas experiências pessoais. O comportamento das construções com pronome de 3ª pessoa na fala culta sofre mudança em relação às décadas de 1970 e 1990. Na primeira sincronia, os pronomes de 3ª pessoa têm frequência idêntica a de pronomes arbitrários (6%). Na década de 1990, por outro lado, a frequência de pronomes de 3ª pessoa é muito pequena (apenas 1%), o que parece ser um reflexo do aumento, neste período, do percentual de ocorrência de pronome arbitrário na posição de tópico (19%). Este resultado está em consonância com a tendência de o PB oral preferir sujeitos lexicalizados em construções de indeterminação do sujeito, conforme atestado por Berlinck, Duarte e Oliveira (2009). A fala popular, a seu turno, revela comportamento diferente do apresentando pela fala culta, sendo o tópico com pronome de 3ª pessoa a terceira estratégia mais comum, em ambos os períodos estudados – 17%, na década de 1980, e 15%, na década de 2000 – seguido apenas por tópico preenchido por SN e tópico preenchido por pronome de 1ª pessoa. Os tópicos preenchidos por pronome demonstrativo são pouco produtivos tanto na fala culta quanto na popular. Na variedade culta, só há dados na década de 1970, correspondendo a 2% do total de ocorrências. Na variedade popular, há um número muito reduzido de ocorrências nos dois períodos de tempo, correspondendo, na década de 1980, há 2% do total de dados e, em 2000, há 1% do total. Quanto às proposições, elas só ocorrem

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na primeira sincronia da fala culta, sendo também muito pouco frequente na amostra (apenas 2%). Embora as construções com pronome demonstrativo e com proposição na posição de tópico sejam pouco recorrentes, sua ocorrência confirma a hipótese de ausência de restrições no PB para o elemento que ocupa a posição de tópico. É possível ponderar ainda que construções com uma proposição na posição de tópico retomados por um correferente no interior da sentença-comentário, como ilustrado em (11), parecem decorrer da tendência do PB de preencher a posição de sujeito, já tendo sido vencidas todas as etapas de implementação da mudança na marcação do Parâmetro do Sujeito Nulo, conforme se vê na hierarquia de referencialidade, proposta por Cyrino, Duarte e Kato (2000), reproduzida na seção 2 deste artigo. 4.1.1 Caracterização do SN tópico A elevada frequência, nas construções de DE sujeito, de tópico preenchido por um SN, em ambas as variedades, nos períodos investigados, justifica a necessidade de descrever de forma mais detalhada as características deste elemento. Desta forma, a tabela 2 apresenta as possibilidades de constituição interna do SN. TABELA 2: Constituição interna do SN FALA CULTA Const. do SN Preenchido à esquerda Preenchido à esquerda e direita Sem margem preenchida Total

FALA POPULAR

Década de 1970 Nº % oco

Década de 1990 Nº % oco

40

52%

28

71%

32

41%

10

25%

5

7%

1

4%

77

100%

39

100%

Const. do SN

Década de 80 Nº % oco

Década de 00 Nº % oco

Preenchido à esquerda

55

65%

65

75%

25

30%

17

21%

4

5%

3

4%

84

100%

85

100%

Preenchido à esquerda e direita Sem margem preenchida Total

Em ambas as amostras, há uma preferência por SN com a margem esquerda preenchida, seja este elemento à esquerda um determinante (exemplo 14), seja um quantificador (exemplo 15). Tais ocorrências são sempre as mais frequentes tanto na fala culta quanto na popular (fala culta: 52%, na década de 1970, e 71%, na década de 1990; fala popular: 65%, na década de 1980, e 75%, em 2000). Em relação às demais estruturas internas do SN nas amostras, os dados se distribuem em todos os períodos segundo a mesma hierarquia. Assim, há casos de SN preenchido à esquerda e à direita (exemplo 16) e casos de SN sem margem preenchida (exemplo 17), embora esses últimos sejam os menos frequentes nas duas variedades estudadas, em todos os períodos. (14) Meu avôi elei foi destacado pro Sul. (fala culta) (15) Noventa por cento dos cariocai, eu acredito, elesi gosta de cinema (fala popular) (16) O avô do meu maridoi elei é italiano. (fala culta) (17) Ônibusi, tem alguns ônibusi sim. (fala popular) Quanto aos traços semânticos do SN bem como sua especificidade, a tabela 3 reúne os percentuais obtidos para as combinações dos traços considerados: [+ / - humano]; [+ / - animado] e [+ / - específico]. Os casos em que o tópico apresenta traço de pessoa foram codificados como [+ humano] em oposição às ocorrências que fazem referência a animais, que foram tratados como [- humano]; o tópico não humano foi classificado como [- animado]. No que tange ao traço de especificidade, assume-se que o traço [+ específico] está associado ao fato de o falante ter em mente um objeto único, determinado, ainda que o ouvinte não possa reconhecê-lo; já o traço [- específico] caracteriza um objeto não identificável, pois o falante tem em mente um conjunto.

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TABELA 3: Referencialidade do SN tópico FALA CULTA Traços do SN [+ humano + específico] [+ humano - específico] [- humano + específico] [- humano - específico] [- animado + específico] [- animado - específico] Total

FALA POPULAR

Década de 1970 Nº % oco

Década de 1990 Nº % oco

30

39%

17

43%

19

25%

5

14%

-

-

-

-

Traços do SN [+ humano + específico] [+ humano - específico] [- humano + específico] [- humano - específico] [- animado + específico] [- animado - específico]

20

26%

13

33%

8

10%

4

10%

77

100%

39

100% Total

Década de 1980 Nº % oco

Década de 2000 Nº % oco

46

54%

48

56%

16

19%

15

18%

4

5%

-

3

3%

-

13

15%

18

21%

2

2%

4

5%

84

100%

84

100%

Nas duas amostras, em ambos os períodos, o tópico é preferencialmente [+ humano, + específico], exemplificado em (18). (18) Meu irmãoi, na noite de domingo, elei vai na missa a noite. (fala popular) Somando-se as ocorrências de SN tópico [+ humano, + específico] às de SN tópico [+ humano, - específico], chega-se na fala culta, na década de 1970, há 64% do total das ocorrências, e 57%, na década de 1990. Na fala popular, as frequências são ainda mais elevadas: 73%, na década de 1980, e 74%, em 2000, revelando que, nas construções de DE sujeito, os sujeitos deslocados são preferencialmente [+ humano].

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Na fala culta, não se verificam ocorrências de SN tópico [- humano] e na, fala popular, encontram-se poucas, independentemente de sua natureza genérica ou específica. O exemplo (19) apresenta um dado em que o SN tópico é [- humano, + específico]. (19) Aquela cachorrai, ali fora, com a gente elai é uma... dentro de casa não deixa ninguém entrar. (fala popular) Quando o tópico é [- animado], observa-se uma preferência pelo traço [+ específico], como exemplificado em (20). Na variedade culta, esta combinação é a segunda mais frequente em ambas as sincronias. Na variedade popular, ela é, na década de 1980, a terceira mais frequente, estando após as ocorrências de SN [ + / - humano]; já na década de 2000, esta combinação é a segunda mais recorrente, antecedida apenas pelo SN [+ humano, + específico]. (20) A bicicletai a bicicletai não era de ninguém. (fala culta) No que tange ao traço de especificidade, embora os corpora revelem preferência por SN [+ específico], o sistema licencia construções de DE sujeito com SN genérico, retomado por pronome nominativo, como mostra o exemplo (21). (21)

Às vezes o carai elei nem treina continuamente. (fala popular)

Os resultados obtidos para o grupo traços semânticos e especificidade do SN podem ser relacionados ao continuum de referencialidade de Cyrino, Duarte e Kato (2000). Entende-se que a ausência de restrições para o SN que ocupa a posição de tópico, podendo este elemento apresentar traços diversos como [+ / - humano; + / - animado, +/- específico], é reflexo do fato de todos os contextos de resistência para o preenchimento de sujeito já terem sido preenchidos na modalidade oral, tornando-se o PB uma língua [- sujeito nulo].

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4.2 O tópico e o correferente A fim de investigar as combinações licenciadas na modalidade oral entre a natureza do tópico e a estratégia de retomada no interior da sentença-comentário, nas construções de DE sujeito, e detectar quais são mais recorrentes, foi feito o cruzamento dos grupos natureza do tópico e natureza do correferente. A tabela 4 reúne os resultados obtidos para a fala culta e a tabela 5, para a fala popular. TABELA 4: Natureza do tópico x natureza do correferente na fala culta Década de 1970 Tópico SN Tópico pronome Total Década de 1990 Tópico SN Tópico pronome Total

Correferente SN Nº oco % 20 96% 1 4% 21 100%

Correferente Pronome Nº oco % 59 66% 30 34% 89 100%

Correferente SN Nº oco % 21 91% 2 9% 23 100%

Correferente Pronome Nº oco % 18 39% 28 61% 46 100%

TABELA 5: Natureza do tópico x natureza do correferente na fala popular Década de 1980 Tópico SN Tópico pronome Total Década de 2000 Tópico SN Tópico pronome Total

Correferente SN Nº oco % 21 80% 5 20% 26 100%

Correferente Pronome Nº oco % 64 5% 97 95% 161 100%

Correferente SN Nº oco % 14 93% 1 7% 15 100%

Correferente Pronome Nº oco % 70 49% 72 51% 142 100%

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Na fala culta, a tabela 4 revela que o correferente SN ocorre preferencialmente com tópico SN, nos dois períodos de tempo investigados - estrutura SN (tópico) + SN (correferente), como se verifica no exemplo (22). Já o correferente pronominal comporta-se de forma diversa em relação às décadas de 1970 e 1990. Assim, na década de 1970, esta estratégia de retomada ocorre mais frequentemente com tópico SN (66%) e, na década de 1990, com tópico pronome (61%) – estrutura pronome (tópico) + pronome (correferente), exemplificada em (23). (22) O povoi só em época de copa do mundo que neguinhoi se junta mesmo. (fala culta) (23) Vocêi, quando viaja, vocêi entende porque o cara age daquela maneira. (fala culta) Na variedade popular (tabela 5), a estrutura SN (tópico) + SN (correferente) é a mais recorrente em ambos os períodos. Por outro lado, tópico pronominal favorece retomada pronominal em ambas as sincronias. Porém, é importante ressaltar que nesta variedade, na segunda sincronia, há 49% de ocorrências de tópico SN retomado por um pronome, revelando que no PB construções como as exemplificadas em (12) são cada vez mais comuns. 4.3 Configuração sintática das construções de DE sujeito O grupo configuração sintática da oração em que ocorre o correferente objetiva descrever quais são os contextos sintáticos licenciados pelo PB oral para as construções de DE sujeito. Trabalhos anteriores mostram ser o PB uma língua que não impõe restrições para as construções de deslocamento à esquerda, podendo o tópico e o correferente não estar adjacentes. Foram consideradas, nesta análise, as seguintes configurações sintáticas: DE na sentença matriz, em que tópico e sujeito encontramse adjacentes (exemplo 24); DE na sentença encaixada, estando também tópico e sujeito adjacentes, mas, neste caso, ambos no interior de uma sentença subordinada (exemplo 25), e DE em que tópico e sujeito não estão adjacentes, estando o correferente no interior de uma oração subordinada e o tópico na oração matriz (exemplo 26).

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(24) O Brasili veja bem, elei começou a ser migrado por baixo. (fala popular) (25) Acho que elei primeiro elei começou assim. (fala popular) (26) Os gaúchosi, por exemplo, eu tenho impressão de que elesi têm, assim, uma certa semelhança com o castelhano (fala popular) Os resultados presentes na tabela 6 encontram-se em consonância com os referidos estudos. TABELA 6: Configuração sintática da oração em que ocorre o correferente FALA CULTA Tipo de oração DE na sentença matriz DE na sentença encaixada Tópico e sujeito sem adjacência Total

Década de 70 Nº oco

%

FALA POPULAR Década de 90 Nº oco

%

98

89%

60

87%

2

1%

1

1%

10

10%

8

12%

110

100%

69

100%

Tipo de oração DE na sentença matriz DE na sentença encaixada Tópico e sujeito sem adjacência Total

Década de 80

Década de 00

Nº oco

%

Nº oco

%

151

80%

127

79%

9

6%

8

6%

27

14%

22

15%

187

100%

157

100%

Apesar de as ocorrências de DE sujeito em frase matriz serem muito mais recorrentes nas duas amostras, em todos os períodos de tempo, há, tanto na fala culta quanto na fala popular, em todas as sincronias, ocorrências de DE sujeito sem adjacência sintática, isto é, o correferente encontra-se no interior de uma oração subordina e o tópico na oração matriz, evidenciando que para o PB tais estruturas são gramaticais.

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4.3 Fatores sociais Os grupos faixa etária e gênero, semelhante aos resultados obtidos por outros trabalhos sobre as construções de tópico marcado, não se mostraram favorecedores para a implementação das construções de DE sujeito. Em relação ao gênero, tanto na fala culta quanto na fala popular, a distribuição é muito equilibrada: nos dois períodos de tempo, homens e mulheres mantêm uma taxa que varia entre 40% e 60%. Em relação à faixa de idade, não há indícios de que as construções de DE sujeito sejam recentes no sistema, uma vez que foram as faixas etárias mais velhas, em ambas as amostras, que apresentaram os índices de frequência mais elevados. No que tange ao grau de escolaridade, a análise evidenciou que, entre os falantes cultos, nos dois períodos de tempo, o correferente SN condiciona a ocorrência de um tópico SN. Por outro lado, quando o correferente é um pronome, o comportamento muda de um período para o outro. Na década de 1970, há maior incidência da estrutura SN (tópico) + pronome (correferente) – 66%, enquanto que, na década de 1990, há maior frequência da estrutura pronome (tópico) + pronome (correferente) – 61%. Na fala popular, semelhante ao que ocorre na fala culta, o correferente SN é a estratégia preferida de retomada de um tópico também SN. É interessante, porém, destacar que, na década de 2000, há um equilíbrio percentual entre as ocorrências de tópico SN e tópico pronome retomado por um pronome. Verifica-se que a estrutura SN (tópico) + pronome (correferente) alcança 49%, o que pode ser uma decorrência do fato de qualquer SN poder ser retomado por pronome nominativo na posição de sujeito na modalidade oral do PB, independentemente dos seus traços semânticos e da sua especificidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados apresentados revelam que, embora haja uma maior frequência de tópico preenchido por SN, o PB, nas suas variedades culta e popular, não apresenta restrições quanto à natureza gramatical do tópico, podendo esta posição ser preenchida por um pronome nominativo, demonstrativo, de valor arbitrário ou ainda por uma proposição.

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Ao focalizar a descrição do SN tópico nas construções de DE sujeito, constata-se que o PB licencia qualquer tipo de SN, independente de seus traços semânticos e da sua especificidade. Tal comportamento é uma evidência de que a posição de tópico está disponível e pode ser preenchida, uma consequência da mudança na marcação do Parâmetro do Sujeito Nulo já ter atingido todos os contextos previstos pela hierarquia de referencialidade, de Cyrino, Duarte e Kato (2000), evidenciando o princípio do encaixamento, segundo Weinreich, Labov e Herzog (1968[2006]). A constituição interna do SN que ocupa a posição à esquerda nas sentenças de DE sujeito, tanto na fala culta quanto na fala popular, é muito semelhante. Preferem-se elementos com a margem esquerda preenchida. Quanto à sua especificidade, embora sejam preferencialmente [+específico], há também ocorrências, ainda que pouco frequentes, em que o tópico é [- específico], com os traços [+ / - humano] ou [+ / - animado], sendo, inclusive, retomado por pronome nominativo. Quanto à configuração sintática das construções de DE sujeito, verifica-se que o PB licencia construções com ou sem adjacência sintática entre o tópico e o sujeito. A adjacência, por sua vez, ocorre tanto em contexto raiz quanto em contexto encaixado. A análise comparativa das falas culta e popular mostra que estas apresentam comportamentos bastante similares em relação ao objeto de estudo. Porém, o cruzamento dos grupos de fatores natureza do tópico e natureza do correferente revela resultados diferenciados. Quando o correferente é um SN, em ambas as variedades, o tópico é preferencialmente um SN. A fala popular, contudo, mostra, na segunda sincronia, um aumento na frequência da estrutura SN (tópico) + pronome (correferente), apontando que, entre falantes não cultos, essa construção está se tornando cada vez mais comum. A menor frequência na fala culta pode estar relacionada à ação coercitiva da escola que, na língua escrita, condena essa construção. Por fim, é relevante destacar que a ausência de restrições tanto para a descrição estrutural do tópico quanto para o tipo de oração em que ocorrem as construções de DE sujeito contribui, em conjunto com outras características presentes no PB atual, para a interpretação de que o sistema caminha em direção às línguas de tópico.

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ESTUDO DOS COMPLEMENTOS INDIRETOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O ENSINO A STUDY OF INDIRECT COMPLEMENTS IN BRAZILIAN PORTUGUESE: A CONTRIBUTION TO TEACHING Lucilene Lisboa de Liz Universidade do Estado de Santa Catarina RESUMO Este artigo tem por objetivo apresentar o resultado da pesquisa desenvolvida sobre o comportamento dos complementos indiretos de verbos triargumentais, os bitransitivos, para a tradição gramatical. A partir disso, gerar discussões sobre a sua relevância e de que modo pode auxiliar no ensino de língua portuguesa, considerando-se que a motivação inicial para essa pesquisa ocorreu durante o processo de ensino desses verbos. Essa motivação aconteceu diante da observação da dificuldade encontrada pelos alunos, já no ensino médio, em distinguir um verbo triargumental (transitivo direto e indireto) de um biargumental (transitivo simples) acompanhado de um adjunto; isso porque nem sempre é claro para o falante nativo que está estudando língua portuguesa se o elemento que ocupa a posição canônica de complemento indireto é de fato complemento do verbo. Os alunos apresentavam diferentes julgamentos no tocante a quantidade de argumentos que o verbo possuía, demonstrando dúvidas em relação ao que a gramática normativa apresenta como um triargumental (bitranstivo). Nessa proposta, mostramos que a intuição dos alunos era pertinente, já que esses verbos não se apresentam de maneira uniforme. Liz (2009, 2011), mostrou que é possível identificar pelo menos duas classes de verbos triargumentais. Para tanto, partiu-se da hipótese de que as preposições seriam as responsáveis pela diferença de comportamento dentro desta classe de verbos. Portanto, haveria reflexos diretos na sintaxe, acarretando derivações distintas. No tocante à metodologia empregada nesta pesquisa, contou-se com coleta de dados de entrevistas do projeto VARSUL, também com dados de aquisição de linguagem e com testes de introspecção aos moldes do modelo da Gramática Gerativa, quadro teórico que serviu de amparo para esse estudo. Espera-se, neste artigo, mostrar a importância de estabelecer a interface entre os estudos dos fenômenos da língua pautados na hipótese inatista de aquisição de linguagem e o ensino, levando-se em conta que esse modelo teórico preocupa-se não apenas com a adequação descritiva, mas também com a adequação explicativa dos fenômenos linguísticos.

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Palavras-chave: Complemento Indireto; Ensino; Teoria Gerativa; Linguística. ABSTRACT This article aims to present the result of research conducted on the behavior of indirect complements of ditransitive verbs for grammatical tradition. From there, generate discussion on their relevance and how they can assist in the learning of Brazilian Portuguese, considering that the initial motivation for this research occurred during the process of learning these verbs. Keywords: Indirect Complement; Education; Generative Grammar; Linguistics.

INTRODUÇÃO Este artigo tem por finalidade discutir o resultado de minha pesquisa sobre os complementos dos verbos triargumentais, e aliado a isso, discutir essa pesquisa como um estudo que corrobora a intuição do aluno no tocante ao comportamento não uniforme dessa classe de verbos. Esperamos com isso contribuir de alguma forma para o desenvolvimento do trabalho com a língua materna em sala de aula. Muito se tem discutido sobre o papel da escola, no tocante ao ensino de língua; há linguistas que defendem que a função da escola é formar cidadãos com capacidade para se expressar, na oralidade e na escrita, de forma competente e adequada para que dessa forma tenham consciência e exerçam seus direitos na sociedade. Os estudiosos que adotam essa postura partem do entendimento de que a prioridade no ensino de língua (aqui especificamente falando do ensino do português) deve ser o desenvolvimento do que denominam competência comunicativa. Essa competência pode ser entendida, no sentido de Travaglia (2004), como a capacidade que o falante possui de utilizar uma gama de recursos da língua em consonância com situações de interação comunicativas das quais participam. Essas discussões se constroem em função do que se tem ensinado nas aulas de língua portuguesa, ou seja, as críticas que mais pesam ainda hoje sobre o ensino de língua dizem respeito ao ensino de gramática nas salas de aula do Ensino Fundamental e Médio. Ensinar ou não a gramática tem sido o grande tema de debates. Mas esse tema a meu ver deve vir norteado por algumas questões:

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(i)

os estudantes necessitam conhecer a gramática normativa?

Se a resposta a essa questão for afirmativa, então temos de pensar sobre outra: (ii)

em que momentos a gramática deve ser trabalhada e de que modo?

A resposta quanto a esse segundo questionamento necessita de maior reflexão e refinamento; já que a primeira parece consensual: não se pode abandonar o ensino de gramática. Os alunos precisam ter acesso à norma culta, no entanto, é necessário romper com os princípios que norteiam o tipo de saber anteriormente aceito. Para que isso aconteça é fundamental que se mude a concepção de língua e também do seu ensino na escola. Nesse sentido, as palavras de Possenti (1996, p. 17) dão conta do que também acredito ser o papel da escola “[...] ensinar o português padrão, ou, talvez o de criar condições para que ele seja aprendido”. Para que esse aluno se aproprie da norma culta em algum momento, mesmo considerando o trabalho com o texto, ele terá de entrar em contato com a gramática normativa em momentos de dúvida no processo de escrita. No entanto, o olhar sobre algum fenômeno linguístico deverá ser pautado num olhar crítico sobre tal fenômeno. Mas essa reflexão não será possível ao se ter como parâmetro a prescrição, o normativismo da gramática e, fundamentalmente, não atingirá sucesso se não se tiver clareza sobre os objetivos ao “ensinar” a língua portuguesa aos falantes nativos do português. Isso porque, antes de se refletir sobre a competência comunicativa, é preciso considerar a competência linguística de que trata Chomsky, e, que equivocadamente tem sido confundida com a noção de competência comunicativa; as entendo como competências bem diferentes. Para Chomsky, a competência linguística corresponde ao conhecimento intuitivo do falante adquirido após exposição ao input. Corresponde, portanto, a um conhecimento intuitivo das regras da gramática da sua língua materna e graças a ele o falante é capaz de proferir

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sentenças de sua língua (mesmo as que nunca ouviu) e interpretá-las. Em Chomsky (1995, p. 52), o autor assim define a competência e a distingue da performance: Assim, dois problemas fundamentais consistem em determinar, para cada indivíduo (digamos, o Manuel), as propriedades do estado firme [final] que a faculdade da linguagem do Manuel atinge, e as propriedades do estado inicial, que é um dom natural comum aos humanos. Distinguimos a competência do Manuel (o seu conhecimento e compreensão) da sua performance (o que ele faz com o seu conhecimento e compreensão). O estado firme [final] constitui a competência linguística madura do Manuel. Nunca é demais salientar que a preocupação de Chomsky está relacionada a essa competência, a esse conhecimento intuitivo; como o usuário irá utilizar esse conhecimento é uma questão de performance, e aqui situo a competência comunicativa, no sentido de Travaglia (2004) e a distingo da competência linguística defendida por Chomsky. De posse desses conhecimentos, a escola tem a missão crucial de situar os seus alunos sobre o objeto de estudos da disciplina de língua materna; os estudantes devem saber qual é o seu lugar nas aulas de língua, e, principalmente, ter claro o que e porque irá aprender, considerando que já é um falante competente, no sentido de Chomsky, na sua língua materna. Na próxima seção, busco apresentar parte da minha pesquisa sobre os complementos indiretos dos verbos triargumentais, no sentido de imiscuir num olhar crítico e reflexivo os fenômenos linguísticos, isso porque a Gramática, como vimos, não entra em nossa atividade verbal dependendo de nosso querer: ela está lá, em cada coisa que falamos, em qualquer língua, e é uma das condições para que uma língua seja uma língua. Não existe a possibilidade de alguém falar ou escrever sem usar as regras da gramática de sua língua (ANTUNES, 2003, p. 119).

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É fundamental que fique claro que toda língua natural possui uma gramática internalizada; dito de outro modo, o falante nasce com uma gramática universal, incorporada à própria estrutura da mente/cérebro. Nessa Gramática estão presentes as leis gerais das línguas; entendidas como universais, válidas para todas as línguas naturais; uma gramática internalizada comum aos indivíduos da espécie humana. Trata-se, portanto, de uma Gramática que apresenta a estrutura interna das línguas e não pode jamais ser confundida com a gramática normativa, normatizadora, formada a partir da imposição da estrutura de uma língua “modelo” dos cânones da nossa literatura, essa língua que existe apenas nos exemplos apresentados nesses compêndios. É sobre a Gramática internalizada (com letra maiúscula) que os estudos de base inatista se ocupam, e foi ancorando-me nesse pressuposto teórico que desenvolvi a pesquisa sobre os complementos indiretos (CI daqui em diante)1 dos verbos triargumentais e que passo a expor na seção seguinte. 1. Fenômenos linguísticos em sala de aula Inicio esta seção afirmando que o grande problema no que diz respeito ao ensino de língua materna não está em ensinar ou não ensinar gramática normativa; não se trata, muito menos, de abolir sua utilização no ensino. O problema se coloca porque a gramática tal como se apresenta ainda hoje é de natureza prescritiva e nada reflexiva sob os fenômenos linguísticos. O quadro se agrava se pensarmos que o exercício de memorização mecânica ocorre sobre um português que não se realiza nem no português do Brasil nem no português europeu, trata-se de uma “abstração”. A classe dos triargumentais, para citar apenas esse exemplo que é o foco da discussão, é apresentada como se os verbos se distribuíssem exatamente da mesma forma. No meu estudo, a hipótese era de que se houvesse de fato uma diferença de distribuição entre os verbos pertencentes a essa classe, tal distinção se deveria ao estatuto das preposições. Perceba que para a gramática normativa, ter ou não um complemento é uma exigência apenas do verbo; e mais, esses verbos são classificados como se apresentassem um comportamento uniforme. Diante disso, o objetivo do estudo foi mostrar 1

CI (complemento indireto); CD (complemento direto)

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que a intuição do falante está adequada, ao observar que os triargumentais não são uma classe uniforme e que alguns dos verbos pertencentes a essa classe podem prescindir da apresentação do seu complemento indireto, ou seja, em alguns casos os complementos indiretos do verbo estarão presentes e noutros ausentes. Defendo que o ensino de língua pode e deve possa e deva considerar o ensino da gramática normativa, desde que não se restrinja a ele e que o estudo seja crítico-reflexivo de uma língua que de fato se utilize pelos falantes. Essa parece ser ideia de Possenti (1996, p.10) quando afirma que o papel dos linguistas não está relacionado a “[...] introduzir gramáticas melhores na escola”, mas a assumir uma postura e por em prática atitudes que mostrem o que de fato é uma língua. Trata-se, segundo esse autor, de “[...] eliminar preconceitos e dizer coisas óbvias sobre o funcionamento real da linguagem na vida real dos falantes [...] É com esse olhar sobre os estudos dos fenômenos linguísticos que apresento uma parte do estudo sobre os verbos triargumentais, com intuito de que seja uma contribuição para o ensino de língua. Essa contribuição versa, sobretudo, em mostrar que a classe de triargumentais não se apresenta exatamente da forma como a gramática normativa a descreve. 1.1 Os complementos indiretos e a sala de aula O interesse pelo tema verbos triargumentais e seus complementos indiretos (ou como concebe a gramática normativa “verbos bitransitivos”) surgiu ao observar a dificuldade que os alunos apresentavam, em sala de aula em analisar um verbo triargumental. Do modo como os compêndios gramaticais abordam o tema, parece que identificar um verbo triargumental, a partir da noção de que apresenta (sempre) dois “objetos”, torna a questão mais clara para o aluno. Por outro lado, gera-se uma falsa crença de que os verbos concebidos como “triargumentais” apresentam um mesmo comportamento. A intuição dos alunos já aponta que não, já que como falantes, ao fazerem a análise dos verbos que compõem essa classe, apresentam diferentes percepções em relação ao comportamento do verbo. No estudo que realizei em Liz (2009), mostro que há uma diferença de comportamento entre os verbos que compõem essa classe de triargumentais que corrobora a intuição dos alunos a que aludi acima.

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Ao aluno afirmar “mas professora o verbo dar pode acontecer sem o ‘objeto indireto’, porque eu posso dizer ‘ dei um lápis’, ‘dei meu lápis’”, estava constituído o meu objeto de estudos. Em algum momento, nós como professores temos de dar atenção a esses comentários, levar mais a sério as dúvidas dos nossos alunos em lugar de duvidar de sua capacidade, de sua intuição. Esse mesmo aluno que levantou a questão de o verbo dar poder aparecer sem o “objeto indireto” destacou que no caso do verbo “por”, isso não era possível. Segundo as teorias lexicalistas, um item lexical é retirado do léxico (mental) com informações tanto categoriais quanto semânticas; dentro dessas últimas é possível incluir as informações a respeito da grade temática desses itens. Tais informações são imprescindíveis no processo de formação de sentenças, já que as frases são elaboradas a partir de predicados relacionados a argumentos. O predicado tem a propriedade intrínseca de selecionar argumentos; o número desses últimos variará de acordo com as propriedades de cada predicado. Assumiremos que os tipos de predicado em relação ao número de argumentos que este seleciona são os seguintes: predicados de nenhum lugar, (1a), predicados de um lugar, (1b), predicados de dois lugares, (1c), predicados de três lugares, (1d) e, embora as línguas humanas não apresentem muita simpatia em lexicalizar predicados com mais de três lugares, é possível conceber verbos que selecionam quatro argumentos como o apresentado em (1e) abaixo, (c.f. ADGER, 2003): (1)

a. b. c. d. e.

Choveu. (ERA EXEMPLO (3)) O Juca desapareceu A Maria comeu o bolo. O Juca deu um presente para a Ana. O Juca vendeu o carro da Maria para o Pedro.

Diante dessas questões lancei-me à pesquisa para procurar entender o comportamento desse tipo de verbo e sua relação com o seu “complemento”, considerando a dificuldade que o falante nativo (o aluno) tinha em aceitar o prescritivismo da gramática em relação a esse fenômeno. Para tanto, parti da hipótese da não uniformidade de comportamento na relação entre esses verbos e seus complementos, contrariando a verdade absoluta da gramática normativa.

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Investiguei, em Liz (2009), as propriedades temáticas e casuais dos complementos indiretos (daqui em diante CIs), os sintagmas preposicionais (daqui em diante PPs), em construções triargumentais numa comparação translinguística. Para clarificar o objeto de estudos, quando me refiro a construções triargumentais, estou reportando-me, em tese, à estrutura em que o verbo seleciona dois complementos: um complemento direto e um indireto, conforme ilustram os dados em (2). Não considerei na investigação os complementos sentenciais. (2)

a. João deu um presente para os garotos.(ERA (4) b. Maria colocou os livros na estante.

Para dar conta da investigação, realizei um recorte, em que procurei estabelecer uma distinção, baseada na teoria dos papéis temáticos, entre as construções formadas por CIs beneficiários, alvo e fonte, de um lado, (2a), por exemplo; e, de outro, as que projetam um CI locativo, (2b). Parti então da hipótese de que a distinção na distribuição desses verbos poderia ser explicada em termos de propriedades preposicionais e, consequentemente, em função do estatuto temático dos CIs: CIs locativos seriam encabeçados por preposições semilexicais, enquanto os CIs alvo, fonte, beneficiário seriam encabeçados por preposições meramente funcionais, seguindo a proposta de Littlefield (2006).2 A proposta de Littlefield (2006), em linhas gerais, estabelecia a existência de mais uma classe de preposições, situadas no domínio semilexical; essa classe apresenta tanto propriedades funcionais como lexicais, portanto, além de poder atribuir Caso, graças a seus status funcional, também apresenta propriedades de seleção, graças ao seu status lexical. A Figura a seguir, extraída de Littlefield (2006, p.59) ilustra o lugar onde se situa o domínio semilexical:

2

Em função do espaço para discussões neste artigo, remeto o leitor a Littlefield (2006), Liz (2009), Liz (2011) para mais detalhes sobre a evidência e a proposta que justificam a existência dessa terceira classe de preposições.

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FIGURA 1

1.1.2 Em busca de evidência: os dados de fala adulta e os dados de aquisição Resumindo um pouco a trajetória dos meus estudos nessa pesquisa, recorri aos bancos de dados de fala adulta para investigar a possibilidade de (3a), e a impossibilidade de (3b), fornecidos mediante introspecção: (3)

a. A Maria deu um livro. b. *A Maria colocou um livro.

Diante dos testes de introspecção, a diferença entre o que era normativamente/classicamente concebido como um “bitransitivo” e, portanto, só poderia existir mediante a presença do seu complemento indireto, era evidente. Esse foi o segundo passo da investigação. Diante disso, lancei-me em busca dos dados de fala adulta no banco de dados do projeto VARSUL. Após um longo processo de análise desses dados, ao menos um tipo de verbo na relação com seu complemento, mantinha um comportamento uniforme. Esses dados extraídos do Banco de Dados do VARSUL mostraram que não havia apagamento da preposição (ou preposição nula) ou apagamento do seu complemento indireto quando estava em jogo a preposição locativa. Os dados apontaram uma baixa frequência de apagamento do CI com relação aos verbos cujos CIs são locativos como colocar, pôr, botar, deixar, guardar. Quando ausentes nas sentenças, o contexto era fortemente cercado (em ambiente de pausa, hesitação) e havia a possibilidade de recuperação do referente.

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(4)

a. eu coloco (os produtos) na embalagem b. - E daí eu coloquei a comida no prato dele, ele não 1023quis comer c. - aí ponhava tudo em cima da janela 1240, né! E varria tudinho o chão.

(5)

a. Pois que toda 798- semana tem um cidadão que vai lá e bota o- o lixo na lixeira pra poder ficar livre! Ent97ão agora botei 800- um cartãozinho ali na porta, ali, né? b. Fui deixar ali na casa do rapaz. O rapaz mora aqui 0282na costeira, ali c. 667- Ele tinha uma arma em casa. Ela sabia668- que ele guardava em casa, NE?

No entanto, quando se vislumbrava as construções triargumentais que selecionam um CI beneficiário ou um CI alvo, havia uma taxa alta de apagamento de CI.Observe os dados retirados da amostra em (6) e (7): (6)

a. O então ela dava o saquinho e a gente pesava, né! b. o pai vendeu a fazenda, a chácara, e 84- veio pra cidade c. não posso transmitir isso porque não tenho

(7)

a. Eles oferecem uns vinhos, uns queijos b. ele ganhou uns presentes, no Natal c. entregavam os diplomas

Esses dados seriam mais uma evidência da diferente distribuição dos CIs de construções triargumentais. Outra forma de evidenciar essas diferenças, como um método para testar e validar as propostas, é voltar-se para aquisição de primeira língua. Então, remeti-me aos dados de aquisição de linguagem e pude comprovar o que estava presente nos dados de fala adulta.

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Nos dados, coletados da fala de duas crianças no período de aquisição de linguagem evidenciavam as predições e corroboravam os dados de fala adulta obtidos no banco de dados do projeto VARSUL. Em sentenças formadas por verbos como botar, colocar e pôr, nos dados de aquisição, a taxa de ocorrência maior era de verbos acompanhados de seus complementos direto e indireto, exemplos em (8); quando um dos complementos estava ausente da sentença, era fortemente cercado por contextos que permitiam a recuperação imediata do complemento, conforme se pode observar nos dados em (9). (8)

a. *X: e agora eu vou bota(r) minha massa no meu forno b. *X:eu vou bota(r) essi [*] [/] esse esse coisa aqui na minha panela

(9)

A mãe se reportava à panela, então a criança dizia a. *X:eu boto as cenourinhas [*]. b. *XNA:acho que eu [/] eu [/] acho que eu quero botar esse coisa

O verbo colocar comportou-se do mesmo modo, ou seja, a presença dos dois complementos se verificou em 12 de 32 ocorrências, perfazendo 37% dos dados; o CD é apagado em apenas 21% dos casos, num total de 7 ocorrências de apagamento; e em 40% dos dados, 13 ocorrências, o CI (complemento indireto esteve presente nas sentenças proferidas pelas crianças. (10) a. *Y:ela pode colocar o pé lá embaixo. b. *Y:é uma xícara pra colocar aqui. Observe o contexto marcado pela mãe: Mãe: Ana coloca o azul dentro da caixa.... (11) a. *Y: eu vou coloca este b. *Y:Ela vai coloca um desse

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O mesmo comportamento se verificou em relação aos demais verbos relacionados a um Complemento Indireto locativo, em que a maior ocorrência é de uma sentença formada com S V CO CI (Sujeito, verbo, complemento direto, complemento indireto). TABELA 1 – Percentual de CIs apagados em contraposição aos presentes nas construções Triargumentais no Português Brasileiro Fonte: Liz (2009, p. 112)

Verbos

Presença Presença de CD de CI (complemento (complemento direto) N/% indireto)N/%

Presença dos dois complementos CICO N/%

Total

%

Botar

21/44

5/10

21/44

47

29

Colocar

13/40

7/21

12/37

32

19

Pôr

6/46

4/44

3/23

13

8

Dar

0/0

1/12

7/87

8

4

Ganhar

10/90

1/9

0/0

11

6

Tirar

5/45

1/9

5/45

11

6

Fazer

5/50

2/20

3/30

10

6

Ganhar

4/44

1/11

4/44

9

5

Deixar

2/33

1/9

3/50

6

3

Emprestar

1/33

1/33

1/33

3

1

Mostrar

1/33

0/0

2/66

3

1

Derrubar

0/0

0/0

2/100

2

1

Entregar

1/100

0/0

0/0

1

0

Total

70/43

26/16

66/40

162

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1.1.3 Investigando as propriedades de atribuição de Caso As evidências de uma distribuição distinta dos complementos indiretos dos verbos triargumentais, em razão das propriedades temáticas, conduziu à investigar de que modo esse comportamento repercutia na sintaxe. Com base numa investigação translinguística, verifiquei que os complementos indiretos não são marcados pelo mesmo tipo de Caso. Caso Dativo/Oblíquo recai sobre complementos indiretos beneficiários, alvo, fonte; a evidência emergiu de dados de línguas que marcam Caso morfologicamente; essas línguas mostraram que Caso Dativo cobre itens marcados -θ como alvo, fonte ou beneficiário, mas não os marcados com papel -θ locativo, já que nessas línguas, os argumentos são marcados com Caso Locativo. Adicionalmente, constatou-se que a preposição apresenta traços de concordância. Essa era evidência necessária para corroborar minha hipótese de que a preposição seria uma sonda capaz de valorar os traços de Caso do DP/NP com quem entram em relação de concordância, merge. Ancorados em Woolford (2006), em Larson (1988), Chomsky (1995; 1998; 1999), cheguei a duas estruturas que traduzem a diferença entre, de um lado, as construções triargumentais a cujos complementos indiretos são atribuídos os papéis -θ beneficiário, alvo ou fonte; e, de outro, as construções triargumentais cujos complementos indiretos são tematicamente marcados como locativos; As construções triargumentais tematicamente marcadas papéis –θ (temáticos) beneficiário, alvo ou fonte apresentam duas camadas vP, proposta por McGinnis e incorporada por Woolford (2006), a fim de acomodar os argumentos alvo que se elevam para a posição de Spec vP em DOCS. Observe a estrutura projetada em (12):

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(12)

No que diz respeito às construções triargumentais cujos complementos indiretos são tematicamente marcados como locativos, são acomodadas numa camada vP- VP, conforme Chomsky (1995), incorporando a proposta VP Shell de Larson (1988). (13)

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E, finalmente, considerando a comprovação da hipótese de preposição como sonda, propus uma camada pP-PP, de modo paralelo à camada vP-VP, conforme projeção acima.3 Após apresentados aqui os resultados de minha pesquisa, ainda que de uma forma sintética, é possível perceber como a intuição do falante não pode ser desconsiderada. No ensino de língua materna essa intuição deve ser explorada e direcionada para um ensino de gramática crítico e reflexivo. Neste caso em particular, ou seja, no estudo dos triargumentais, esse estudo mostrou que a classe dos triargumentais não é homogênea, sendo assim, apresentar os triargumentais sob o prisma da gramática normativa, sem o respaldo em uma investigação que busque adequação explicativa, não dará conta de dar respostas às dúvidas do aluno que possui uma intuição sobre a estrutura de sua língua. Portanto, dizer que os triargumetais exigem dois complementos na sentença não basta para explicar o comportamento dessa classe de verbos, nem tampouco afirmar que a exigência por esse complemento é uma prerrogativa dos verbos, já que as preposições juntamente com os verbos são responsáveis pelas informações temáticas e também de Caso, portanto, traduzindo em termos mais apropriados ao ensino, não se trata de uma exigência apenas do verbo, mas também está relacionada ao tipo de preposição com quem o verbo se relaciona. Em suma, o ensino de língua materna necessita ser pautado no real comportamento dos fenômenos linguísticos e numa atitude pedagógica que não admita mais o ensino como a transmissão de conteúdos fechados, prontos, subordinados à gramática normativa, mas como um processo de construção dos conhecimentos em conjunto com os alunos e com base num olhar crítico e reflexivo sobre o objeto de estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa mostrou que a intuição do aluno ao não aceitar uma distribuição fixa, como regra rígida com relação aos verbos triargumentais, não se devia a um déficit de aprendizagem, comumente utilizado para explicar as dificuldades que os alunos têm em as determinações da gramática normativa. Antes sim, se deve ao estatuto distinto dos elementos, descrito e 3

Para mais detalhes sobre a proposta remeto o leitor à Liz (2009) e Liz (2011 a sair).

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explicado via pesquisa linguística. Isso parece explicar porque elementos até então tratados, na gramática normativa, sob o rótulo de bitransitivos com comportamento imutável, com número fixo de elementos “exigidos pelos verbos”, poder apresentar distribuições diversas ou atípicas. O entendimento de que há necessidade de explicação para as intuições dos falantes, independentemente do que a gramática normativa estabelece como leis, poderá fazer a diferença no processo de ensino aprendizagem em sala de aula. Claro, essa explicação deverá ser palatável aos alunos e apresentar adequação descritiva e também explicativa, porque não se pretende fazer simplesmente uma substituição de metalinguagem, uma passagem da metalinguagem da gramática normativa, para a metalinguagem utilizada pelos diferentes campos da linguística, como alguns gramáticos têm disseminado. Mostrar ao aluno, quando for o caso, que a língua não é gramática e que a gramática não é a Bíblia Sagrada, pode ser o primeiro passo. Ao situar-me na área do ensino e considerando meu campo de pesquisa, relacionado à linguística formal, mais precisamente à teoria gerativa, vejome com um duplo papel a desempenhar: o de pesquisar os fenômenos linguísticos, buscando adequação descritiva e explicativa; e, por outro lado, o de articular as pesquisas realizadas nesse campo do conhecimento com o ensino de língua, mostrando a relevância dos estudos advindos da linguística para o trabalho em sala de aula. Há muito que fazer para atingir tal propósito, mas muitos estudos já foram realizados na linguística nos últimos anos. Eis aqui mais um estudo que buscou desmistificar e mostrar outra visão sobre um fenômeno linguístico, neste caso, o da classe dos triargumentais.

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O PROCESSAMENTO DE EXPRESSÕES CORREFERENCIAIS EM PORTUGUÊS BRASILEIRO: NOMES REPETIDOS, PRONOMES PLENOS E PRONOMES NULOS PROCESSING COREFERENTIAL EXPRESSIONS IN BRAZILIAN PORTUGUESE: REPEATED NAMES, OVERT PRONOUNS, AND NULL PRONOUNS Jefferson de Carvalho Maia Universidade Federal de Minas Gerais Maria Luiza Cunha Lima Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO Neste artigo, investigamos o papel de nomes repetidos, pronomes plenos e nulos no estabelecimento da coesão referencial em português brasileiro. Apresentamos resultados de um experimento de leitura autocadenciada que mostram que, nessa língua, pronomes nulos são as formas mais facilmente processadas quando da retomada de antecedentes em posição de sujeito. Comparamos esses resultados com os já obtidos para o inglês, o chinês e o espanhol e, por fim, discutimos as suas contribuições para o debate em torno do parâmetro pro-drop em português brasileiro. Palavras-chave: Anáfora; Penalidade do nome repetido; Sujeito nulo; Parâmetro pro-drop. ABSTRACT In this paper we investigate the role of repeated names, overt and null pronouns in the promotion of referential cohesion in Brazilian Portuguese. We report the results of a self-paced reading experiment that show that, in this language, null pronouns are the most easily processed forms when referring to antecedents in subject position. We compare these results with the ones previously obtained for English, Chinese and Spanish and, in the end, we discuss their contributions to the debate on the pro-drop parameter in Brazilian Portuguese.

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Keywords: Anaphor; Repeated-name penalty; Null subject; Pro-drop parameter.

INTRODUÇÃO Entidades introduzidas em um discurso podem ser potencialmente retomadas em enunciados subsequentes através de diferentes formas referenciais anafóricas (e.g., nomes repetidos, pronomes plenos e nulos), as quais exercem um papel fundamental no estabelecimento da coesão de um discurso. Tendo em vista que esta coesão pode ser fomentada através do uso de diferentes formas anafóricas, questões que naturalmente surgem são: o que leva os falantes a escolherem uma ou outra forma? Quais são os fatores que comandam essa escolha? E, além disso: em determinados contextos linguísticos, quais dessas formas são mais facilmente compreendidas e processadas pelos ouvintes/leitores? Este estudo constitui tentativa de resposta às essas perguntas, com a investigação, através de um experimento de leitura autocadenciada,1 da carga de processamento de nomes repetidos, pronomes foneticamente plenos (também lexicalizados, ou simplesmente pronomes) e pronomes foneticamente nulos (também pro, ou simplesmente nulos), em retomadas anafóricas nas posições de sujeito e de objeto em português brasileiro (doravante PB). Tal investigação do fenômeno da correferência, especialmente no que concerne aos sujeitos nulos, torna-se ainda mais interessante em virtude da mudança no paradigma flexional verbal pela qual o PB tem passado, o que estaria provocando o virtual desaparecimento dos sujeitos nulos pessoais e constituiria uma mudança em direção a uma marcação negativa dentro do parâmetro pro-drop. Desse modo, os resultados desta pesquisa contribuirão tanto para a discussão sobre aspectos relacionados ao processamento mental da referência quanto para o debate em torno do parâmetro pro-drop em PB. Em tentativa de resposta às questões anteriormente mencionadas, tem-se argumentado, na literatura (PRINCE, 1981; GUNDEL; HEDBERG; ZACHARSKI, 1993, inter alia), que os possíveis antecedentes de um 1

Uma definição desse paradigma experimental será apresentada ao fim desta introdução e maiores esclarecimentos serão fornecidos na seção 1 deste artigo.

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termo anafórico qualquer diferem entre si em termos de proeminência, acessibilidade ou saliência cognitiva. Argumenta-se, por conseguinte, que essas diferenças de status cognitivo dos antecedentes têm profundo impacto na escolha das respectivas formas referenciais. Desse modo, entidades em foco tendem a ser retomadas através de formas não marcadas (e.g, pronomes plenos e nulos), ao passo que entidades que não estão em foco tendem a se realizar através de formas marcadas (e.g., descrições definidas). Por sua vez, os fatores determinantes desses diferentes graus de acessibilidade ou saliência de referentes introduzidos em um discurso têm sido alvo de intenso debate na literatura psicolinguística. Pesquisas experimentais sobre o processamento mental da referência têm mostrado que alguns desses fatores seriam posição sintática de sujeito/objeto, posição de tópico na oração ou sentença, paralelismo sintático entre anáfora e antecedente, propriedades semânticas do verbo, prosódia (quando em situação de fala), dentre outros. Em uma série de experimentos de leitura autocadenciada elaborados com o objetivo de investigar o comportamento de nomes repetidos e pronomes plenos no estabelecimento da coesão referencial em inglês, Gordon, Grosz e Gilliom (1993) descobriram a existência, nessa língua, de uma penalidade de processamento que relaciona forma referencial à posição sintática do antecedente, penalidade esta que foi nomeada de repeated-name penalty (RNP, ou penalidade do nome repetido). Em termos simples, em inglês, nomes repetidos demoram mais para ser lidos (isto é, são mais difíceis de ser processados) do que pronomes plenos quando em retomada de antecedentes em posição de sujeito, desaparecendo essa diferença de comportamento entre as duas formas anafóricas quando o antecedente se realiza em posição de objeto.2 De modo a testar a generalidade desses achados, Yang et al. (1999) investigaram, através de adaptações dos experimentos elaborados e 2

Esses resultados se contrapuseram a Gernsbacher (1989), para quem quanto mais explícita fosse a forma anafórica, mais rápido e efetivo seria, consequentemente, o estabelecimento da correferência. Assim, para a autora, a mera repetição do nome seria, em qualquer contexto, a forma mais fácil de ser processada, já que contém maior carga de informações semânticas, capazes de ativar representações mentais previamente geradas, e refere-se sem ambiguidade ao seu antecedente, sem introduzir informação nova nem exigir processos inferenciais de interpretação. Todavia, as evidências experimentais obtidas por Gernsbacher para validar suas hipóteses foram fortemente criticadas devido à metodologia por ela empregada.

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conduzidos por Gordon, Grosz e Gilliom (1993), o processamento correferencial de nomes repetidos, de pronomes plenos e também de pronomes nulos em chinês, sistema linguístico que difere em muitos aspectos do inglês, principalmente nos de natureza sintática, entre estes a marcação do parâmetro pro-drop. A definição desse parâmetro engloba uma série de propriedades, sendo as mais importantes a possibilidade de inversão do sujeito e o licenciamento de sujeitos nulos. Assim, em línguas totalmente pro-drop, como o chinês, é obrigatória a omissão do sujeito em determinados contextos, a rigor em sentenças de tipo afirmativa, no indicativo e com verbo finito. Já em línguas não pro-drop, como o inglês, o sujeito precisa estar sempre lexicalmente presente nesse tipo de sentença para que a ela seja conferido o estatuto de gramatical.3 Apesar de tais diferenças de natureza sintática entre inglês e chinês, os resultados dos experimentos conduzidos por Yang et al. (1999) revelaram um comportamento semelhante entre os dois sistemas linguísticos: o efeito de RNP também foi encontrado em chinês e, além disso, não houve diferenças estatisticamente significativas entre os tempos em que pronomes plenos e nulos foram processados, fato que levou os autores a afirmar que eles constituem um caso de variação livre em chinês, sendo a escolha entre uma ou outra forma de natureza estilística. Tomados em conjunto, os resultados experimentais de Gordon, Grosz e Gilliom (1993) e Yang et al. (1999) sugerem que (i) referentes introduzidos em posição de sujeito adquirem alto nível de saliência, ficando bastante acessíveis na memória discursiva, o que faz com que, nesse contexto, a carga de processamento de formas anafóricas não marcadas (pronomes) tenda a ser menor do que a de formas anafóricas marcadas (nomes repetidos), e que (ii) a RNP possa ser um princípio de processamento cognitivo universal, no sentido de independente do parâmetro pro-drop. Por sua vez, o estudo das línguas românicas mostra-se potencialmente esclarecedor para tais fenômenos sob investigação, devido à sua maior riqueza flexional, que pode ser mobilizada durante o processo de resolução da referência. 3

A esse respeito, é importante levar em consideração a existência de contextos universais (i.e., independentes do parâmetro pro-drop) de ocorrência do sujeito nulo, como, por exemplo, o de coordenações com sujeitos correferentes.

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É sabido que o chinês possui um sistema morfossintático bastante empobrecido, carente de marcas de concordância verbal, o que, consequentemente, obriga seus falantes a dependerem fortemente de pistas contextuais e pragmáticas para a interpretação de pronomes nulos, ao passo que o uso do pronome pleno é discursivamente motivado e justificado, uma vez que contém traços semânticos (como pessoa, gênero e número) que auxiliam na identificação de um referente. Já nas línguas românicas, como o italiano, o espanhol e o português,4 as pistas semânticas oferecidas aos falantes pelos pronomes plenos são redundantes (i.e., não introduzem informação nova), visto que esses traços já estão codificados nas desinências verbais, ao contrário do que ocorre em chinês. Os pronomes nulos, por sua vez, apesar de não serem redundantes, também não adicionam informação nova sobre seus referentes, podendo seus antecedentes ser facilmente inferidos através das marcas de concordância verbal: (...) as línguas que admitem uma categoria vazia em posição de sujeito de uma sentença com tempo finito têm também [geralmente] um paradigma verbal capaz de identificar essa categoria vazia de forma a lhe garantir a interpretação correta (FIGUEIREDO SILVA, 1996, p. 29). Em decorrência disso, algumas questões que demandam investigação são: por que as gramáticas dessas línguas licenciam tanto a existência de pronomes plenos quanto de nulos? O que justifica a existência de ambas as possibilidades de retomada anafórica? Estariam elas também em variação livre nas línguas românicas? Em resposta a alguns desses questionamentos, Alonso-Ovalle et al. (2002) e Gelormini-Lezama (2008) oferecem evidências de que, ao menos em espanhol, pronomes plenos e nulos não se encontram em variação livre (como em chinês), mas sim em distribuição complementar. Em um estudo de questionário realizado por Alonso-Ovalle et al., solicitava-se a falantes nativos de espanhol que fossem lidas frases como as que se seguem (2002, p. 3-4): 4

Considerações acerca das mudanças pelas quais tem passado o PB, no tocante ao seu paradigma verbal, serão feitas posteriormente neste artigo.

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(1) (2)

“Juan pegó a Pedro. (pro) Está enfadado.” “Juan pegó a Pedro. Él está enfadado.”

Em seguida, os informantes deveriam responder a uma pergunta sobre qual era o referente (Juan ou Pedro) do sujeito gramatical da segunda sentença. Quando esse sujeito era nulo, como em (01), a maioria das respostas (73,2%) apontou o sujeito da primeira sentença como o antecedente correto; por outro lado, quando esse sujeito era um pronome foneticamente pleno, como em (02), a porcentagem de respostas indicando o sujeito da primeira sentença como antecedente caiu para 50,2%. Os resultados dessa pesquisa, de mais três estudos de questionário e de um estudo envolvendo julgamentos mostraram que o espanhol exibe a mesma diferença que o italiano (CARMINATI apud ALONSO-OVALLE et al. 2002) no tocante ao comportamento de expressões anafóricas reduzidas: nulos buscam seus antecedentes preferencialmente na posição sintática mais alta da oração (Spec, IP), ao passo que pronomes plenos tendem a estabelecer correferência com antecedentes em posições sintáticas inferiores.5 Todavia, questionários e tarefas de julgamento como os empregados pelos autores correspondem a métodos off-line de experimentação, isto é, que não são sensíveis ao processamento linguístico em tempo real e, portanto, não são comparáveis aos estudos sobre o inglês e o chinês reportados neste artigo. Além disso, não estava no escopo do trabalho de Alonso-Ovalle et al. mostrar se a RNP se manifestaria também em espanhol. Esta tarefa foi levada a cabo por Gelormini-Lezama (2008). O autor elaborou dois experimentos de leitura autocadenciada com vistas a investigar, em espanhol, o efeito de RNP e a carga de processamento de nomes repetidos, pronomes plenos e nulos em retomadas anafóricas com antecedentes em posição de sujeito e de objeto. Segundo análise de Gelormini-Lezama, seus resultados comprovaram a existência de RNP, já que, na retomada de antecedentes em posição de sujeito, nomes repetidos 5

Para Allonso-Ovalle et al. (2002), que se valem da Position of Antecedent Hypothesis ou PHA (CARMINATI apud ALONSO-OVALLE et al. 2002), a saliência de um antecedente é determinada exclusivamente pela posição sintática por ele ocupada, sendo propriedades morfológicas, semânticas, pragmáticas e cognitivas totalmente desconsideradas na explicação do fenômeno da correferência.

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foram processados mais lentamente em comparação com pronomes nulos, fato que fortalece o argumento de que essa penalidade possa ser, de fato, de natureza linguística universal.6 Curiosamente, os resultados também revelaram que, para tais antecedentes em posição de sujeito, são os pronomes plenos que elicitam uma penalidade de processamento, de natureza linguística específica (até agora, descoberta apenas em espanhol), que foi nomeada de overt pronoun penalty (OPP, ou penalidade do pronome pleno): elipses anafóricas são preferidas a pronomes plenos, sendo estes penalizados por não serem capazes de oferecer nenhuma vantagem diferencial em um contexto onde um antecedente pode ser identificado sistematicamente através de marcas de concordância verbal. Em outras palavras, isso significa dizer que, em espanhol, passagens como (03) são processadas mais facilmente em relação a passagens como (04), que por sua vez são mais facilmente processadas em relação a (05), conforme exemplos extraídos de Gelormini-Lezama (2008, p. 17): (3) (4) (5)

“Juan se encontró con María. La vio triste.” “Juan se encontró con María. Juan la vio triste.” “Juan se encontró con María. Él la vio triste.”

Já nos casos de correferência com antecedentes em posição de objeto, as diferenças nos modos como nomes repetidos e pronomes plenos foram processados em espanhol não foram estatisticamente significativas, tendo sido nulos as formas anafóricas mais penalizadas em comparação com as outras duas, elicitando os tempos de reação mais elevados dentre todas as condições testadas. 6

Cabe notar que Gelormini-Lezama (2008) interpreta seus dados à luz da Informational Load Hypothesis ou ILH (ALMOR, 1999), que propõe que o custo processual de uma anáfora precisa estar justificado em termos de sua função discursiva dentro de um contexto específico. A ILH também postula a existência de uma relação entre processamento linguístico e memória de trabalho verbal. Assim, processar um nome repetido implica processar mais material fonológico e reativar mais informação do que o necessário para recuperar um referente que já está em foco, desperdiçando, portanto, espaço precioso na memória. Por outro lado, formas referenciais menos informativas e mais leves do ponto de vista processual (como pronomes plenos e nulos) não só são capazes de garantir uma recuperação correta de um antecedente saliente como até mesmo o fazem de maneira mais eficiente do que nomes repetidos, economizando recursos dos sistemas de memória e atenção.

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Português e espanhol são línguas bastante semelhantes morfológica e sintaticamente, o que levanta questionamentos sobre se o padrão encontrado para o espanhol também corresponderia ao padrão de processamento de expressões anafóricas existente em PB. Essa comparação torna-se ainda mais instigante porque o PB tem passado por uma rápida simplificação em sua morfologia verbal, o que estaria levando a um uso cada vez mais frequente do sujeito explícito e ao virtual desaparecimento do sujeito nulo pessoal, conforme tem sido vastamente atestado por diversos autores, dentre eles Duarte (In: ROBERTS; KATO, 1996, p. 107) e Tarallo (In: ROBERTS; KATO, 1996, p. 89), respectivamente: De fato, a mudança que se observa no português do Brasil, que parece estar evoluindo de uma marcação positiva para uma marcação negativa dentro do parâmetro ‘pro-drop’, coincide com significativa redução ou simplificação nos paradigmas flexionais. Com base nos resultados obtidos em Tarallo (1983, 1985), que atestavam o crescimento de sujeitos lexicais acompanhado de um decréscimo no objeto direto anafórico, um argumento forte pode ser feito em relação à modalidade brasileira como um sistema em fase de transição de língua ‘pro-drop’ para ‘não pro-drop’, isto é, uma mudança paramétrica. Diante disso, é possível prever que, em PB, diferentemente do que foi atestado em espanhol, sujeitos nulos correferenciais sejam as formas anafóricas mais penalizadas (i.e., as mais difíceis de serem processadas), já que o antecedente não pode mais ser inferido através dos traços de concordância verbal. Seria também de se esperar que o processamento de nomes repetidos, supostamente regido por princípios universais, fosse penalizado no contexto em que seus antecedentes são sintaticamente salientes (i.e., realizam-se em posição de sujeito). Nesse contexto, esperarse-ia que, em uma escala decrescente de facilidade de processamento, nulos fossem seguidos por nomes repetidos e, por fim, pronomes, que seriam, então, a forma anafórica mais favorecida cognitivamente; em outras palavras, esperar-se-ia verificar a existência de RNP, mas não de OPP. Já

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na retomada de antecedentes não salientes (i.e., em posição de objeto), a expectativa seria de que não houvesse diferenças significativas entre nomes repetidos e pronomes, dado que essas diferenças não foram verificadas nem em inglês, nem em chinês e nem em espanhol. Até onde é do conhecimento dos autores deste artigo, os principais, dentre os poucos trabalhos psicolinguísticos desenvolvidos e publicados em PB sobre os problemas acima esboçados, são os de Leitão (2005) e Queiroz e Leitão (2008). Em Leitão (2005), são reportados dois experimentos de leitura autocadenciada, dos quais o de maior interesse para nós é o primeiro, por ser o que busca mais diretamente investigar a existência ou não de RNP em PB. Nesse experimento, o autor investigou apenas o processamento de nomes repetidos e pronomes plenos (formas anafóricas nulas não foram alcançadas pelo escopo da pesquisa), sendo que tanto a expressão anafórica quanto seu antecedente se encontravam em posição de objeto direto. Segundo o autor, seus resultados indicaram a existência de RNP em PB, mostrando, ao contrário de Gordon, Grosz e Gilliom (1993), que nomes repetidos, em comparação com pronomes plenos, podem também ser penalizados em retomadas anafóricas em posição de objeto. Entretanto, acreditamos que o trabalho de Leitão (2005), apesar de seu caráter seminal em PB, não possa ser diretamente comparado ao de Gordon, Grosz e Gilliom (1993), pois o fato de seu experimento ter mostrado a ocorrência de RNP em retomadas com antecedentes objetos nada revela sobre a existência dessa penalidade nos outros contextos sintáticos, como os que têm sido classicamente estudados desde Gordon, Grosz e Gilliom (1993), isto é, contextos de retomadas anafóricas com antecedentes em posição de sujeito. No contexto sintático mencionado, nomes repetidos e pronomes plenos foram investigados pela primeira vez em PB por Queiroz e Leitão (2008), que conduziram outros dois experimentos de leitura autocadenciada, bastante semelhantes aos reportados em Leitão (2005). Os resultados do primeiro experimento mostraram que nomes repetidos foram penalizados em relação a pronomes plenos, elicitando tempos de reação significativamente maiores. Portanto, foi verificada a existência de RNP em retomadas anafóricas também na posição de sujeito, e não só na de objeto, conforme já demonstrado apenas por Leitão (2005).

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Entretanto, mesmo testando a posição de sujeito, acreditamos que o trabalho de Queiroz e Leitão (2008) também não permite que os resultados obtidos sejam diretamente comparados aos de Gordon, Grosz e Gilliom (1993), uma vez que os primeiros não investigaram a natureza do processamento correferencial de nomes repetidos e pronomes plenos fazendo uso das mesmas estruturas linguísticas utilizadas pelos últimos. Em primeiro lugar, os itens experimentais de Queiroz e Leitão (2008) consistiram em duas orações coordenadas, fragmentadas em nove segmentos (com o sexto segmento como crítico); todavia, quatro dos cinco experimentos descritos em Gordon, Grosz e Gilliom (1993) e os demais estudos envolvendo experimentos de leitura autocadenciada aqui reportados utilizaram orações independentes, não fragmentadas em segmentos menores, ou seja, tais estudos tiveram como estímulos orações inteiras, e não fragmentos de oração.7 Em segundo lugar, os seus itens experimentais continham anáforas intrassentenciais, isto é, com antecedentes dentro de uma mesma sentença; no entanto, são anáforas intersentenciais (com antecedentes presentes em outra sentença) que têm sido o tipo de forma referencial estudado nos trabalhos reportados sobre o inglês, o chinês e o espanhol. Diante do que foi exposto, com vistas a (i) investigar o comportamento de nomes repetidos, pronomes plenos e pronomes nulos, (ii) verificar a existência ou não de RNP e OPP e, por fim, (iii) oferecer uma análise do fenômeno da correferência em PB que possa ser diretamente comparada aos trabalhos de Gordon, Grosz e Gilliom (1993), Yang et al. (1999) e GelorminiLezama (2008), elaboramos um experimento de leitura autocadenciada, cujo delineamento8 corresponde ao do primeiro experimento descrito em Yang et al. (1999). 7

8

A necessidade de se levar em consideração essas diferenças no modo de apresentação dos estímulos linguísticos encontra respaldo, por exemplo, no estudo de Nair e Almor (apud GELORMINILEZAMA, 2008), que forneceu evidências de que a RNP ocorre em função de processos integrativos (e não locais) de leitura, não sendo, portanto, necessariamente elicitada no segmento ou sintagma em que a forma anafórica se localiza. Por delineamento, entenda-se delineamento experimental, termo que se refere ao plano para se atribuir sujeitos a condições experimentais e à análise estatística associada a esse plano. Um desenho experimental também especifica as variáveis dependentes e independentes, bem como os ruídos ou vieses, ou seja, as fontes que influenciam negativamente a variável dependente e que ameaçam a validade das generalizações feitas a partir dos dados. Para uma boa introdução ao tema, ver Kirk (1995).

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Um experimento no paradigma experimental de leitura autocadenciada (self-paced reading, ou ainda leitura automonitorada) consiste na medida dos tempos de reação (reaction times ou RTs) de sujeitos na leitura seja de palavras, seja de fragmentos ou sintagmas, ou ainda, como foi o caso deste experimento, de sentenças inteiras de um dado conjunto de textos. Esse tempo de reação corresponde à medida do intervalo entre a apresentação de um estímulo linguístico na tela do computador, sua leitura e o acionamento posterior de uma tecla. Além disso, o tempo de exposição de cada sentença é controlado pelo próprio sujeito, sendo medido com grande precisão, na ordem de milésimos de segundo (ms). A premissa subjacente a esse paradigma é a de que tempos de reação baixos são indicativos de facilidade no processamento de uma determinada estrutura linguística, ao passo que quanto maiores os tempos de reação, assume-se que mais difícil foi o processamento. Um exemplo das sentenças utilizadas como estímulos linguísticos no experimento que conduzimos encontra-se na Tabela 1. Como se vê, esses estímulos consistiram em passagens compostas por três sentenças, constituintes de um minidiscurso semanticamente coerente, sendo a segunda sentença o local onde se deram as manipulações das variáveis independentes, a saber, forma anafórica e posição sintática. Foram atribuídos diferentes tipos de expressões referenciais (nomes repetidos, pronomes e nulos) a diferentes posições sintáticas (sujeito e objeto), tendo diferentes combinações entre os níveis das duas variáveis independentes gerado um delineamento com seis condições experimentais, a saber: Nome-Nome, Pronome-Nome, Nulo-Nome, Nome-Pronome, PronomePronome, e Nulo-Pronome. O tempo de reação (doravante RT) da segunda sentença de cada passagem foi a variável dependente do experimento, isto é, a variável mensurável, onde se esperava encontrar alterações em função das manipulações nas variáveis independentes.

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TABELA 1 - Exemplo de estímulo experimental SENTENÇA INICIAL: Bruna namora Vítor há mais de dois anos e meio. CONDIÇÕES:

SENTENÇA CRÍTICA (6 VERSÕES):

Nome-Nome

Bruna conheceu Vítor em uma viagem à França.

Pronome-Nome

Ela conheceu Vítor em uma viagem à França.

Nulo-Nome

Conheceu Vítor em uma viagem à França.

Nome-Pronome

Bruna conheceu-o em uma viagem à França.

Pronome-Pronome

Ela conheceu-o em uma viagem à França.

Nulo-Pronome

Conheceu-o em uma viagem à França. SENTENÇA FINAL: É possível encontrar um grande amor em outro país.

1. O experimento 1.1 Participantes 62 voluntários falantes nativos de PB participaram do experimento, dentre os quais 36 do sexo feminino e 24 do sexo masculino. A idade média dos sujeitos foi de 25 anos, variando entre 17 e 46 anos. 1.2 Estímulos Foi elaborado um conjunto de 42 passagens experimentais, como a que está exemplificada na Tabela 1. Conforme mencionado anteriormente, cada passagem continha três sentenças, constituindo um minidiscurso semanticamente coerente e obedecendo aos seguintes controles: • A primeira sentença introduzia, através de nomes próprios dissílabos, dois indivíduos de gêneros distintos, dispostos na ordem sujeito-verbo-objeto (SVO), de modo que uma entidade se realizava na posição de sujeito, enquanto a outra, na de objeto (direto ou indireto). A escolha de nomes próprios de gêneros diferentes e da ordem SVO se deu pautada, respectivamente, na necessidade de se eliminar qualquer influência de ambiguidade de gênero sobre o

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processo de resolução anafórica e no fato de a ordem SVO ser, atualmente, a ordem sintática não marcada em PB. Além disso, metade das passagens experimentais continha nomes próprios masculinos seguidos por femininos, enquanto na outra metade essa sequência se invertia, ou seja, nomes femininos seguidos por masculinos. •

Havia uma relação de paralelismo sintático entre as duas primeiras sentenças, isto é, as funções sintáticas exercidas pelas entidades na sentença inicial eram mantidas na segunda sentença, a sentença crítica, da qual foram construídas seis diferentes versões, a partir de associações entre os níveis das variáveis independentes. Além disso, as sentenças críticas tiveram seus tamanhos controlados em função do número de sílabas. Cumpre também mencionar que pronomes nulos não foram utilizados em posição de objeto para que o desenho experimental reproduzisse fielmente aquele utilizado por Yang et al. (1999) para o chinês, correspondendo este, por sua vez, exatamente ao desenho utilizado por Gordon, Grosz e Gilliom (1993), com exceção da inclusão de formas nulas na condição sujeito. Desse modo, os resultados deste experimento serão diretamente comparáveis aos resultados já obtidos em chinês e inglês.



A terceira sentença, de conteúdo genérico, não fazia menção a nenhuma das duas entidades presentes nas sentenças anteriores, tendo sido incluída de modo que a sentença crítica não aparecesse no fim da passagem, local onde o RT é naturalmente mais longo devido a processos semântico-discursivos de integração.

Foi também construído um conjunto adicional de 84 passagens distratoras (ou fillers), destinado a mascarar as passagens experimentais, disfarçando, para os sujeitos, qual o objetivo do teste. Assim como as passagens experimentais, as distratoras também eram compostas por três sentenças, contendo referentes introduzidos por nomes próprios ou outros tipos de descrições definidas e indefinidas, constituindo minidiscursos semanticamente coerentes. Por fim, cabe notar que tais passagens distratoras possuíam estruturas diversas, não diretamente relacionadas às manipulações experimentais.

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1.3 Procedimento O experimento foi rodado em um computador pessoal, em uma única sessão de aproximadamente quarenta minutos de duração. Os sujeitos foram instruídos a ler cada sentença no seu ritmo mais natural possível, nem muito apressada, nem muito vagarosamente. Após lerem as instruções na tela, eles iniciavam uma sessão de treinamento com cinco passagens distratoras, para que pudessem se familiarizar com a tarefa de leitura autocadenciada, apreender a parte mecânica da tarefa antes do início do experimento propriamente dito e também tirar suas dúvidas. Ao término da sessão de treinamento, os sujeitos eram avisados de que, ao pressionarem a barra de espaço, o experimento teria início. Antes da apresentação de cada passagem (tanto experimental quanto distratora), aparecia a seguinte sentença no centro da tela do computador: “Pressione a barra de espaço para ler a oração seguinte”. Ao pressionarem a barra de espaço, os sujeitos viam então a primeira sentença da passagem. Ao pressionarem novamente a barra de espaço quando do término da leitura, a sentença anterior desaparecia da tela e era substituída, no mesmo local, pela sentença crítica (sendo o tempo de reação desta sentença a variável dependente do experimento), e assim sucessivamente, até que os sujeitos chegassem à terceira sentença. Ao final de cada passagem, isto é, após a leitura da terceira sentença, uma pergunta de compreensão aparecia no centro da tela. Os sujeitos respondiam a ela pressionando ou a barra de espaço, para dizerem “sim”, ou a tecla shift (direita ou esquerda, a depender de o sujeito ser destro ou canhoto), para responderem “não”. Essas perguntas de compreensão, incluídas também nos estímulos de treinamento, não exigiam a rememoração dos nomes próprios mencionados, mas sim das estruturas dos eventos descritos nas passagens. Além disso, elas foram elaboradas de modo que metade das respostas corretas fosse “sim” e a outra metade fosse “não”. Suas funções eram, por um lado, contribuir para disfarçar o objetivo do experimento e, por outro, garantir a atenção dos sujeitos durante toda a tarefa de leitura. Foi utilizado o programa E-prime9 para aleatorizar, diferentemente 9

Maiores informações sobre o programa estão disponíveis em: (acesso em: 9 abr. 2012).

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para cada sujeito, a ordem dos estímulos experimentais e distratores a ser apresentada na tela do computador, de modo a eliminar possíveis efeitos da ordem de apresentação dos estímulos nos resultados. O programa também fazia com que as sentenças críticas das passagens experimentais fossem apresentadas a cada sujeito em apenas uma das seis condições possíveis; ou seja, em cada passagem, os sujeitos só viam uma dentre as seis possíveis versões da sentença crítica. No entanto, considerando o conjunto de todos os sujeitos, todas as sentenças críticas das passagens ocorreram igualmente em todas as seis condições testadas. 1.4 Resultados A Tabela 2 (região central) mostra as médias dos RTs da segunda sentença em todas as condições testadas (Nome-Nome, Pronome-Nome, Nulo-Nome, Nome-Pronome, Pronome-Pronome e Nulo-Pronome).10 A partir desses dados, foram calculadas, para cada uma das formas referenciais (nome repetido, pronome pleno e nulo) associadas a antecedentes na posição de sujeito, as médias dos RTs das sentenças críticas que as continham (independentemente da forma referencial presente na posição de objeto dessas sentenças). Do mesmo modo, foram calculadas as médias dos RTs das sentenças críticas que continham nomes repetidos e pronomes plenos com antecedentes na posição de objeto (independentemente da forma referencial presente na posição de sujeito). As médias calculadas através desse segundo procedimento podem ser visualizadas tanto na Tabela 2 (região marginal) quanto na Figura 1. Os RTs das sentenças críticas contendo nomes repetidos e pronomes plenos como sujeitos gramaticais foram, respectivamente, 2674 e 2659 ms, sendo os primeiros, portanto, apenas 15 ms mais lentos em comparação com os segundos. Por sua vez, o processamento das sentenças contendo sujeitos nulos foi comparativamente mais rápido, com diferenças superiores a 250 ms em relação a nomes repetidos e pronomes plenos. Já as sentenças contendo nomes repetidos e pronomes plenos como objetos gramaticais levaram, respectivamente, 2641 e 2501 ms para serem processadas, tendo sido a diferença entre os RTs de apenas 140 ms. 10

Do conjunto inicial de 62 sujeitos, 2 foram excluídos, devido aos seus índices de acerto nas respostas às perguntas de compreensão terem sido inferiores a 80%, limite de corte estabelecido como aceitável a partir da própria média de acertos do conjunto de todos os informantes (=87%, variando de 80 a 98%).

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TABELA 2 - Médias dos RTs (em ms) das sentenças críticas segundo forma anafórica e posição sintática OBJETO

POSIÇÃO SINTÁTICA DO ANTECEDENTE

SUJEITO MÉDIA

Nome repetido

Pronome

MÉDIA

Nome repetido

2737 ± 109

2612 ± 114

2674 ± 79

Pronome

2724 ± 113

2594 ± 115

2659 ± 81

Nulo

2463 ± 101

2298 ± 115

2381 ± 77

2641 ± 63

2501 ± 67

FIGURA 1 – Médias dos RTs (em ms) das sentenças críticas segundo posição sintática

De modo a testar os graus de significância de tais diferenças, procedemos a uma análise estatística de variância (ANOVA) dos dados, conduzida tanto por sujeitos (F1) quanto por itens experimentais (F2). Os resultados revelaram que, quando a expressão referencial retomava

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antecedentes sintaticamente salientes, o efeito de forma anafórica foi significativo tanto por sujeitos (F1 (2,118) = 14.8, p < 0.001) quanto por itens (F2 (2,82) = 10.1, p < 0.001). Similarmente, estando as expressões referenciais associadas a antecedentes sintaticamente não salientes, o efeito de forma anafórica atingiu significância por sujeitos (F1 (1,59) = 11.1, p < 0.01) e por itens (F2 (1,41) = 6.1, p < 0.05). Por fim, a interação de forma anafórica e posição sintática do antecedente não se mostrou significativa nem por sujeitos (F1 (2,118) = 0.09, p = 0.92), nem por itens (F2 (2,82) = 0.1, p = 0.90). Em seguida, com vistas a explorar mais detalhadamente as interações entre os níveis de posição sintática (sujeito e objeto) e de forma anafórica (nomes repetidos, pronomes plenos e nulos), procedemos a um teste post hoc de Fisher. Os resultados mostraram que (i) nomes repetidos e pronomes plenos apresentaram comportamentos idênticos entre si, não havendo as manipulações do fator posição sintática gerado efeitos significativos sobre eles (p > 0.05), e que (ii) só houve diferença significativa entre nulos sujeitos e demais condições (p < 0.001). Em síntese, os resultados revelaram que pronomes nulos que se realizam na posição de sujeito e têm antecedentes que também são sujeitos gramaticais de suas respectivas sentenças são as formas mais favorecidas do ponto de vista do processamento correferencial, ao passo que nomes repetidos e pronomes plenos, independentemente da saliência sintática de seus antecedentes, são igualmente penalizados entre si.

2. Discussão As hipóteses iniciais não foram inteiramente corroboradas pelos dados. Devido à simplificação do paradigma flexional verbal pela qual o PB tem passado, a identificação dos sujeitos nulos não pode mais se dar através das desinências de concordância, o que conduziu à previsão de que pronomes nulos seriam as formas correferenciais mais penalizadas. Esperava-se também encontrar RNP, devido à alegação (YANG et al., 1999; GELORMINI-LEZAMA, 2008) de que essa penalidade se trataria, provavelmente, de um universal linguístico, visto que foi verificada tanto em línguas totalmente pro-drop (como o chinês e o espanhol), quanto em línguas

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não pro-drop (como o inglês). Por conseguinte, esperava-se que pronomes plenos associados a antecedentes sintaticamente salientes fossem as formas anafóricas processadas mais rapidamente. Todavia, em retomadas anafóricas na posição de sujeito, sujeitos nulos foram as formas mais fáceis de serem processadas pelos leitores, com nomes repetidos e pronomes plenos sendo igualmente penalizados entre si, o que indica, de acordo com nossa análise, a existência de OPP, mas não de RNP. Esse resultado se contrapõe aos de Gordon, Grosz e Gilliom (1993) e aos de Queiroz e Leitão (2008), pois que foi verificado que a RNP não possui natureza universal, não se estendendo ao PB, e também aos de Yang et al. (1999), já que encontramos diferenças significativas entre pronomes nulos e pronomes plenos. O padrão de processamento encontrado guarda, contudo, semelhanças com os resultados provenientes do espanhol, sistema linguístico em que, de acordo com Gelormini-Lezama (2008), pronomes nulos são processados mais facilmente do que nomes repetidos, que por sua vez são processados mais facilmente do que pronomes plenos (quando da retomada de antecedentes sintaticamente salientes). Portanto, tanto em PB quanto em espanhol, pronomes nulos foram penalizados em comparação com nomes repetidos. Gelormini-Lezama (2008) interpreta essa penalização como uma instância de RNP. Nós, contudo, não a interpretamos da mesma maneira, e tal análise decorre da opção teórica de nos mantermos fiéis à caracterização original da RNP feita por Gordon, Grosz e Gilliom (1993). Nesse estudo clássico, verificou-se que nomes repetidos foram penalizados em relação a pronomes plenos (visto que o inglês não autoriza a existência de pronomes nulos, salvo nos contextos supostamente universais), e foi a partir de tal dado que a RNP foi nomeada e caracterizada. Mesmo em estudos posteriores que incluíram a categoria dos pronomes nulos no seu escopo de investigação, como o de Yang et al. (1999), a penalização de nomes repetidos foi verificada em relação à classe de expressões referenciais reduzidas (pronomes plenos e nulos) como um todo, e não em relação a membros isolados da classe, como o foi em Gelormini-Lezama (2008). Ainda que o modo de interpretação da RNP não seja consensual, a preferência pelo nulo verificada em espanhol e em PB pode ser explicada dentro do quadro teórico proposto por Gundel, Hedberg e Zacharski

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(1993): quanto mais saliente for o antecedente, ― sendo a saliência, no caso do nosso experimento, determinada pela posição sintática do antecedente ― menos informativo precisa ser o termo anafórico; em outras palavras, nulos são as formas mais eficientes na retomada de referentes que estão em foco, no centro atencional dos falantes. A explicação para a preferência pelo nulo pode também ser buscada na relação entre processamento linguístico e memória de trabalho verbal proposta por Almor (1999): processar um nome repetido ou um pronome implica processar mais informação do que o necessário para recuperar um referente saliente; nesse contexto, uma forma referencial nula, bem mais leve do ponto de vista do processamento, é capaz de garantir a recuperação correta do antecedente, sendo o seu uso justificado, portanto, em termos de economia de recursos dos sistemas de atenção e memória de trabalho verbal. Já em retomadas anafóricas na posição de objeto, não verificamos diferenças significativas nos comportamentos de nomes repetidos e pronomes plenos, dado que contrasta com os achados de Leitão (2005), mas que vai de encontro às hipóteses de trabalho e que se aproxima dos resultados de Gordon, Grosz e Gilliom (1993), de Yang et al. (1999) e de Gelormini-Lezama (2008). Analisando os padrões de processamento que foram encontrados, relacionados à retomada de antecedentes tanto sintaticamente salientes quanto não salientes, levantamos uma objeção importante: poderiam ter as diferenças inerentes ao tamanho das sentenças críticas (em suas seis possíveis versões) enviesado os dados, ou seja, poderiam elas ter interferido negativamente na manipulação da variável dependente? No experimento que conduzimos, bem como no de Yang et al. (1999), o número total de sílabas das sentenças críticas variou em função das manipulações de forma anafórica (rever Tabela 1). Desse modo, houve sentenças com 16 sílabas nas condições Nome-Nome e Pronome-Nome; com 14 sílabas na condição Nulo-Nome; com 15 sílabas nas condições Nome-Pronome e PronomePronome; e, por fim, sentenças com 13 sílabas na condição Nulo-Pronome. Tais diferenças foram inevitáveis, porquanto ocorreram em função de diferenças no tamanho dos nomes repetidos empregados (todos dissílabos) e dos pronomes tônicos (também dissílabos) em relação aos pronomes clíticos (monossilábicos) e aos pronomes nulos (elipses).

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Todavia, descartamos tal objeção levantada, visto que a literatura fornece inúmeras evidências (YANG et al., 1999; GELORMINI-LEZAMA, 2008, inter alia) de que pequenas diferenças no número de sílabas das sentenças não são capazes de interferir na magnitude das penalidades de processamento reportadas: por um lado, em inglês (GORDON; GROSZ; GILLIOM, 1993) e em chinês (YANG et al., 1999), nomes repetidos foram penalizados em relação a pronomes plenos apenas quando da retomada de antecedentes em posição de sujeito, e não em posição de objeto, mas as manipulações de forma anafórica geraram, contudo, as mesmas diferenças de tamanho em ambas as posições sintáticas envolvidas, nos dois experimentos; e, por outro lado, nos dados provenientes do espanhol (GELORMINI-LEZAMA, 2008), sentenças contendo formas referenciais nulas foram as processadas mais rapidamente na retomada de antecedentes em posição de sujeito, mas, ao mesmo tempo, as mais penalizadas na retomada de antecedentes em posição de objeto, não tendo havido nenhuma diferença no tamanho das sentenças contendo pronomes nulos em ambas as condições de retomada que explicasse tal inversão na escala de preferência processual. Em síntese, nossos resultados colocam o PB em uma posição singular frente às demais línguas que têm sido objeto de estudo em psicolinguística comparada: o padrão de processamento das expressões anafóricas estudadas não se assemelha nem ao inglês, nem ao chinês, nem completamente ao espanhol. No entanto, é com este último sistema linguístico que o PB apresentou mais similaridades, muito provavelmente em função da proximidade lexical, morfológica e sintática que as duas línguas apresentam, advinda de sua origem comum. Os resultados acabam também por ultrapassar o domínio do processamento correferencial e levantam questionamentos sobre se haveria ocorrido, de fato, uma mudança dentro do parâmetro pro-drop em PB (ao menos para os tipos de passagens estudadas neste experimento), a despeito do que vem sendo vastamente afirmado na literatura linguística. Nesse ponto, é necessário que a pesquisa psicolinguística dialogue com estudos sociolinguísticos sobre o tema, de modo que se possam encontrar corroborações empíricas para as evidências experimentais obtidas.

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Um desses estudos é o de Cabana (2004),11 que investigou o comportamento da variável sujeito pronominal nulo ~ sujeito pronominal pleno na variedade de PB falada em Belo Horizonte (MG). A autora realizou três estudos variacionistas, dois em tempo aparente e um em tempo real, chegando à conclusão de que há um equilíbrio nos usos das variantes, com um leve crescimento no uso do sujeito nulo de 1980 a 2004, sendo essa preferência maior nas gerações mais jovens, em ambos os momentos. No seu corpus de 2004, obtido por meio de entrevistas sociolinguísticas com falantes belo-horizontinos, foram encontrados 55% de sujeitos nulos e 45% de sujeitos pronominais plenos, indicando, portanto, equilíbrio no comportamento das variantes, com leve preferência pelos sujeitos nulos. Logo, não se identificou o abandono de uma forma mais arcaica (supostamente o sujeito nulo) em favor de outra inovadora (sujeito pronominal pleno). Já no corpus da década de 1980, também constituído por dados de fala, obtidos através de entrevistas sociolinguísticas com falantes belo-horizontinos no período de 1982 a 1984, foram encontrados índices de 49% de sujeitos nulos e de 51% de sujeitos pronominais plenos; ou seja, as variantes também se encontravam, há trinta anos, em equilíbrio na comunidade de fala de Belo Horizonte. Procedendo-se a uma comparação entre os dois corpora, é perceptível um ligeiro crescimento no uso de sujeitos nulos de 1980 para 2004, e uma queda no uso de sujeitos pronominais plenos, o que constitui evidência contra o desaparecimento do sujeito nulo no PB, ao menos em sua variedade belo-horizontina.12 Além disso, os fatores linguísticos selecionados pelo programa VARBRUL como condicionadores do comportamento da variável em questão, nos dois corpora analisados, foram pessoa gramatical, tipo de oração e presença/ausência de elemento que antecede a posição de sujeito. No 11

12

Além de Cabana (2004), outro trabalho sociolinguístico que também apresenta evidências empíricas contra a ocorrência de uma mudança paramétrica em progresso é Nicolau (1995). É também relevante considerar que a maioria dos trabalhos sociolinguísticos que aponta para uma mudança em direção ao preenchimento da posição de sujeito apresenta dados provenientes de São Paulo (cf. TARALLO In: ROBERTS; KATO, 1996) e Rio de Janeiro (cf. DUARTE In: ROBERTS; KATO, 1996), ao contrário de Cabana (2004), cujos dados (assim como os do experimento reportado neste artigo) referem-se à variedade de PB falada em Belo Horizonte (MG). Logo, não se pode descartar a possibilidade de que as variantes sujeito nulo e sujeito pleno constituam um caso de variação diatópica, não atingindo homogeneamente todo o diassistema do PB.

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grupo de fatores sociais, apenas idade foi selecionado como relevante.13 De acordo com os resultados: •

As terceiras pessoas (tanto do singular quanto do plural) são altamente favorecedoras do sujeito nulo, com as maiores porcentagens de ocorrência de formas nulas associadas aos pesos relativos mais elevados.14



Os tipos de oração mais favorecedores da ocorrência de sujeitos nulos são orações coordenadas não iniciais e orações independentes.



A ausência de elementos antes da posição de sujeito favorece fortemente o uso do sujeito nulo, ao passo que a presença de algum elemento nessa posição o desfavorece, uma vez que dificulta a acessibilidade a um referente previamente introduzido.



Quanto ao fator idade, foi encontrada uma preferência pelo uso do sujeito nulo na geração mais jovem (14 a 19 anos), tornando-se essa preferência cada vez menor ao longo das gerações intermediária (36 a 45 anos) e velha (55 a 67 anos), onde foi encontrado o menor índice de sujeitos nulos. Portanto, não se pode afirmar que a suposta variante inovadora (sujeito pronominal pleno) esteja mais presente na fala da geração mais jovem, evidência necessária, contudo, para se caracterizar, no tempo aparente, uma variação como constituindo mudança em progresso.

É interessante observar que, fortuitamente, os contextos linguísticos anteriormente descritos, demonstrados por Cabana (2004) como os mais favorecedores da ocorrência de sujeitos nulos, correspondem exatamente às características estruturais das passagens experimentais utilizadas no presente experimento de leitura autocadenciada. Esse fato pode explicar, a 13

14

Cabana (2004) realizou análises quantitativas posteriores incluindo o fator marcação verbal. Curiosamente, a despeito da suposta relação existente entre possibilidade de omissão do sujeito em sentenças finitas e marcas de concordância verbal, defendida, por exemplo, por Duarte (In: ROBERTS; KATO, 1996), esse fator não foi selecionado pelo programa VARBUL como relevante para a variável sob investigação, não influenciando na escolha entre forma nula e forma plena. Mesmo no trabalho de Duarte (In: ROBERTS; KATO, 1996), cujos dados, provenientes da comunidade de fala do Rio de Janeiro, apontam para um aumento no uso de sujeitos pronominais plenos, a terceira pessoa do singular apresentou índices bastante elevados de sujeitos nulos, em comparação com as demais pessoas do discurso.

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partir de uma perspectiva outra que não as das teorias psicolinguísticas e da referenciação, o porquê de sentenças contendo sujeitos nulos terem sido as mais favorecidas do ponto de vista do processamento correferencial em PB, ao contrário das hipóteses iniciais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A confirmação dos resultados experimentais reportados neste artigo exigirá a elaboração de novos experimentos (com diferentes delineamentos), bem como um levantamento mais aprofundado de estudos sociolinguísticos sobre o tema. Apesar disso, este estudo já lança luzes sobre questões cruciais do domínio do processamento mental da referência, domínio este que ainda se encontra relativamente subdescrito em PB.

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PADRÕES DE USO DO LOCATIVO AÍ NO PORTUGUÊS ESCRITO DO SÉCULO XVIII AO XX USAGE PATTERNS OF THE LOCATIVE “THERE” IN PORTUGUESE WRITING OF THE EIGHTEENTH CENTURY TO THE TWENTIETH Mariangela Rios de Oliveira Universidade Federal Fluminense Rodrigo da Costa Barcellos Professor do Ensino Médio do Rio de Janeiro RESUMO Este artigo tem como objetivo levantar, descrever e analisar os padrões de uso, em termos de sentido e de ordenação, do locativo “aí” em dramaturgias dos séculos XVIII ao XX. A definição desse objeto de estudo deve-se à alta frequência com que é utilizado, além de sua mudança categorial de advérbio para conector, detectada em alguns contextos. A análise é realizada com base em quatro variáveis: ordenação, referenciação, foricidade e frame. Para tal, lança-se mão dos estudos funcionalistas na vertente norte-americana, segundo os quais itens lexicais passam por processo de gramaticalização, isto é, em determinados contextos linguísticos, servem a funções gramaticais, e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais (HEINE; KUTEVA, 2007). Palavras-chave: Locativo; Funcionalismo; Ordenação; Gramaticalização. ABSTRACT This article aims at describing and analyzing usage patterns of the locative “there”, in terms of meaning and order, in the dramaturgy of the eighteenth century. This focus is due to the high frequency this locative is used and also because of its categorical change from adverb to connector, as found in some contexts. The analysis is based on four variables: ordering, referring, phoricity and frame. To accomplish this task, we use North American functionalist studies, according to which lexical items undergo the process of grammaticalization, that is, in certain linguistic contexts, they have grammatical functions, and once gramaticalized, continue to develop new grammatical functions (HEINE; KUTEVA, 2007). Keywords: Locative; Functionalism; Ordering; Grammaticalization.

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Introdução Trazemos aqui os resultados de uma pesquisa maior, que se dedica à análise interpretativa dos padrões funcionais que marcam o uso dos pronomes adverbiais locativos aí, ali, aqui, cá e lá, bem como sua expressão aglutinada à preposição de, nas formações daí, dali e daqui, em textos de peças teatrais de língua portuguesa dos séculos XVIII ao XX, conforme se encontra em Barcellos (2011) e Oliveira (2008; 2009), entre outros. Trata-se de um conjunto de investigações empreendidas no âmbito do Grupo de Estudos Discurso & Gramática, em torno da polissemia, da ordenação e da mudança gramatical de adverbiais no português. Neste artigo, voltamo-nos especificamente para um desses locativos, o aí, em contexto pragmáticodiscursivo também específico, as peças teatrais. Tomamos como fundamento pressupostos teóricos funcionalistas (BYBEE, 2010; HEINE; KUTEVA, 2007; TRAUGOTT; DASHER, 2005), segundo os quais os padrões de uso linguístico são resultantes de convencionalização motivada por pressões de ordem cognitiva e discursivopragmática, considerando-se ainda fatores de frequência e de estrutura. Também conforme os autores referidos, categorização prototípica e gradiência são entendidas como traços constitutivos dos níveis gramaticais da língua, no sentido de que as classes morfossintáticas não são discretas e nitidamente definidas, apresentando pontos de interseção categorial e difusão funcional. Temos como hipótese que o uso do locativo aí tende ao posicionamento pós-verbal no português contemporâneo, principalmente na função prototípica de advérbio, isto é, com referência mais concreta, relativa a espaços delimitados, conforme Oliveira (2007; 2008). Por outro lado, como conector, aí, em início de oração, guardaria resquícios da ordenação mais antiga dos advérbios na história do português, a pré-verbal. Assumimos também que os padrões de uso de aí têm relação com o contexto discursivo em que é articulado, concorrendo principalmente para as tendências de sua referenciação e enquadramento (ou frame). Essa segunda hipótese, por se vincular ao tipo de texto em elaboração, não se restringe a uma sincronia específica, perpassando os três séculos pesquisados – XVIII, XIX e XX.

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A escolha do gênero dramaturgia deve-se a traços específicos que o marcam e, nesse sentido, motivam a seleção e o uso de categorias gramaticais mais específicas, como nosso objeto de análise. Textos dramatúrgicos tendem à articulação de referência física concreta, com o uso de referência exofórica ou dêitica, em torno de cláusulas de frame espacial. Em termos de registro, trata-se de fontes em que detectamos usos mais formais e outros mais informais, estes últimos principalmente no discurso direto de personagens populares. Usos de aí como conector tendem a ser motivados justamente nesses ambientes discursivos mais informais das peças teatrais. Este artigo divide-se em quatro seções. Na primeira, apresentamos a fundamentação teórica assim como os mecanismos de gramaticalização envolvidos no uso do locativo aí. Na segunda seção, apresentamos os corpora em análise e discutimos a natureza das fontes que utilizamos; listamos e descrevemos, ainda, nesta seção, a metodologia e os fatores usados para a classificação dos dados, quais sejam: ordenação, referenciação, foricidade e frame. Na terceira seção, procedemos efetivamente à análise, com a apresentação dos dados pelos séculos XVIII ao XX, respectivamente, de acordo com os quatro fatores selecionados. Na última seção, com base nos resultados obtidos, tecemos algumas considerações gerais sobre o uso do referido locativo no gênero dramaturgia, com destaque para o que se revela como estabilidade, na caracterização constitutiva do gênero, e como mudança, na captação de trajetórias de polissemia e possível gramaticalização.

1. Fundamentação teórica e mecanismos de gramaticalização A teoria funcionalista, de acordo com Heine e Kuteva (2007), entre outros, compreende a língua como um instrumento de comunicação na situação social, e considera que os usos linguísticos não podem ser vistos como fenômenos autônomos. Assim, a língua é entendida como uma estrutura parcialmente estável, submetida a pressões extralinguísticas e também linguísticas, integrada por níveis mais ou menos icônicos ou arbitrários de articulação. O foco de interesse da pesquisa de ordem funcionalista, desse modo, encontra-se no uso, tendo as condições de produção papel central. Depreende-se a estrutura gramatical como efeito ou resultado da situação

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comunicativa como um todo: o propósito do ato de fala, seus participantes e seu contexto pragmático-discursivo, levando-se ainda em consideração questões de ordem estrutural, como as relativas à ordem linear dos constituintes e sua natureza gramatical. Desse modo, de acordo com tendência atual dos estudos funcionalistas (BYBEE, 2010; TRAUGOTT, 2008), consideramos a organização estrutural como parcialmente estável, e, portanto, a gramática como formada por níveis de maior ou menor motivação discursivo-pragmática. Assim, a ordenação sintática é resultante de motivações icônicas e pressões estruturais, daí sua relativa maleabilidade. Fundamentamo-nos também em Hopper (1991), no que diz respeito aos princípios de camadas e divergência. Trata-se de dois fenômenos associados ao processo de gramaticalização, considerados característicos de estágios iniciais de mudança categorial. O primeiro princípio refere-se ao fato de que uma língua pode ter mais de uma forma linguística para desempenhar funções semelhantes, sendo, nesses casos, importante registrar que a forma nova não implica o desaparecimento da forma já existente (FURTADO DA CUNHA et alii, 2003). Camadas são consequentes do fato de que é muito comum uma língua ter disponíveis mais de uma forma para desempenhar funções similares, incluindo-se neste conjunto os modos de organização sintática. No caso da divergência, tem-se um conjunto de formas com a mesma etimologia, porém desempenhando funções distintas. Esses novos usos não implicam o desaparecimento do uso primário. Vale apontar que a divergência está associada ao conceito de inferência sugerida (TRAUGOTT; DASHER, 2005), segundo o qual locutores derivam sentidos mais abstratos ou complexos, a partir de combinações semânticas mais primárias, no intuito de atuar sobre seus interlocutores. Para tanto, lançam mão de termos de sentido mais referencial, no plano do léxico, para dar conta de sentidos mais lógicos ou pragmaticamente condicionados, no plano da gramática ou do discurso. Logo, inovações e mudanças linguísticas ocorrem por escolhas estratégicas feitas pelos emissores (falantes e escritores) e pelas negociações com seus receptores (ouvintes e leitores). A assunção da inferência sugerida nos conduz aos conceitos de metáfora e metonímia. Para o funcionalismo, esses processos têm relação com a emergência da gramática, referindo-se a mecanismos participantes das

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mudanças ocorridas nas produções linguísticas cotidianas dos falantes, conforme postulam Traugott e Dasher (2005). Determinados usos, em contextos específicos (metonímia), adquirem força expressiva, de tal maneira que, muitas vezes, são reinterpretados (metáfora) por conta justamente do ambiente em que ocorrem. Por essa razão, os referidos autores consideram a metaforização como consequente da metonimização. Nesse processo, usos fonte perdem sentido mais referencial, em prol da articulação de sentidos vinculados ao plano gramatical ou pragmático. Trata-se da tomada de velhas formas para novas funções. No caso dos advérbios, é clássica a trajetória que registra sua migração para categoria mais gramatical. Trata-se de tendência translinguística, alicerçada na teoria localista (BATORÉO, 2000; TRAUGOTT; HEINE, 2003), que defende a derivação semântica espaço > tempo > texto como uma das motivações da gramaticalização. Assim, do sentido espacial (Ele está aí na sala), derivamos o temporal (Ele chega aí pelas três da tarde) e o textual (Ele chegou atrasado, aí perdeu a prova). No terceiro uso, o textual, como conector, em relação aos demais, o espacial e o temporal, ocorre gramaticalização, nos termos de Traugott e Heine (2003), uma vez que detectamos a mudança categorial de advérbio para conector. Cumpre observar ainda que os advérbios, nesse viés, não são considerados como unidades discretas, pertencentes a uma única categoria. Assim, durante o levantamento, foram encontradas estruturas que não se inserem mais nas categorias adverbiais – pelo menos de forma prototípica –, tais como a partir daí. Esses arranjos são interpretados por nós como unidades pré-fabricadas (UPF), conforme a proposta de Erman e Warren (2000). De acordo com as autoras, UPF definem-se como convencionalizações de sequências de palavras, em que pelo menos um dos constituintes não pode ser trocado; assim, a partir daí é entendida como uma UPF, um todo de forma e sentido, uma expressão indecomponível na referência a um marco textual. Em relação a estudos funcionalistas a respeito dos usos de aí e sua gramaticalização, vale destacar a pesquisa de Tavares (1999; 2003; 2009). Nesses estudos, a autora tem destacado a variabilidade e a mudança linguística que marcam tais usos, no destaque dos processos de metaforização e metonimização aí envolvidos.

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2. Seleção e tratamento dos corpora Tomamos como corpora textos representativos da dramaturgia portuguesa e brasileira. Trata-se de textos cômicos e tragicômicos, em que o tom crítico a aspectos histórico-culturais se destaca, envolvendo personagens simples e populares. Ademais, são textos escritos com a finalidade de serem encenados por atores que representam situações reais. Devido às marcas discursivas desse gênero, consideramos que os dados levantados podem se aproximar do que seriam os usos de fala da época em que tais textos foram produzidos. Foram selecionadas, do século XVIII, oito peças populares e uma peça do dramaturgo Antonio José da Silva, judeu nascido no Brasil e residente em Portugal; seis peças do século XIX: três do lusitano Almeida Garret, escritas na metade do século, e outras três do brasileiro Martins Pena, no início do século; e, do século XX: três de Nelson Rodrigues e uma de Sergio Sant’anna. A seguir, vêm discriminadas as peças utilizadas neste artigo, com as siglas adotadas ao apresentar os dados: !Século XVIII: •

De Antonio José da Silva – Guerras do Alecrim e da Manjerona (GAM);



Peças populares (entremezes) – Entremez famoso do Frade presumido, Novo Entremez intitulado A Escola de Amor, Novo Entremez intitulado As Loucuras da velhice, Novo Entremez intitulado O Estudante bazofio e desgraçado, Novo Entremez intitulado O Casamento sem esperança de Dous Velhos, Novo Entremez intitulado Dezenganos para os homens nam se fiarem em mulheres, Novo e Divertido Entremez intitulado A Grande Desordem de huma Velha com hum Peralta, Novo e Gracioso Entremez intitulado Novas Indústrias de Amor proveitosas aos amantes (Etmz).

!Século XIX: •

De Almeida Garrett – Falar Verdade a Mentir (FVM), As Prophecias do Bandarra (PB) e Camões do Rocio (CR);



De Martins Pena – O Noviço (Nov), O Juiz da Paz da Roça (JPR) e Quem Casa, Quer Casa (QC).

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!Século XX: •

De Nelson Rodrigues – Vestido de Noiva (VN), Viúva, porém honesta (VPH) e Anti-Nelson Rodrigues (ANR);



De Sergio Sant’anna – O Romance de Geração (RG).

No tratamento desses dados, trabalhamos com quatro fatores. Salientamos que somente selecionamos os objetos em análise em cláusulas verbais, uma vez que a ordenação em relação ao verbo foi nosso ponto de partida para coleta e análise dos dados. Destacamos ainda que os quatro fatores foram aplicados a todos os dados indistintamente, sem levar em conta a funcionalidade mais específica de aí, se advérbio ou conector. O primeiro dos fatores refere-se, justamente, à ordenação dos locativos em relação ao verbo. Por esse fator, testamos se, de fato, do século XVIII ao século XX, os pronomes adverbiais exibiam maior tendência ao posicionamento pósverbal, a fim de comprovar a nossa hipótese. Em termos de ordenação, classificamos os dados em análise em cinco posições: três pré-verbais (P1, P2 e P3) e duas pós-verbais (P4 e P5). A seguir, apresentamos e ilustramos, com dados dos corpora, as cinco ordenações trabalhadas; destacamos que X é um constituinte ou grupo de constituintes inserido entre o advérbio e o verbo, ou vice-versa: a)

P1: sujeito + advérbio + verbo (1) Elles ahi vêm: entra depressa, esconde-te. (FVM, p.06 / séc. XIX)

b)

P2: advérbio + verbo (2) Mas espera; olha, ahi vem a senhora D. Amalia (FVM, p. 03 / séc. XIX)

c)

P3: advérbio + X + verbo (3) Isso aí tudo era eu que tinha de falar... (RG, p. 25 / séc. XX)

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d)

P4: verbo + advérbio (4) D. CLÓRIS – Põe aí [no colo] cinquenta molhos (GAM, p 57 / séc. XVIII)

e)

P5: verbo + X + advérbio (5) Deu vontade de passar uma vassoura por aí, arrumar tudo, dá um banho nele. (RG, p.88 / séc. XX)

O segundo fator trabalhado diz respeito à dimensão semântica. Verificamos a polissemia dos pronomes locativos, com base na trajetória de derivação espaço > tempo > texto. Assim, classificamos os dados em análise em quatro grupos: o físico concreto (FC) refere-se ao espaço delimitado, em que se pode apontar ou dar medidas exatas, como a localização debaixo da janela da cozinha em (6); ao contrário do físico virtual (FV), em que o espaço é menos delimitado, por ser mais indefinido, conforme se observa em (7). O abstrato temporal (ATp) refere-se ao sentido mais polissêmico do advérbio, transitando já da referência locativa para a de tempo. E abstrato textual (ATx) é a comprovação da mudança categorial, quando o advérbio deixa de ser um circunstanciador para assumir função conectiva. Os trechos (8) e (9) ilustram, respectivamente, os dois últimos conjuntos referidos: (6) (7) (8) (9)

Fagundes: Pois espere-me aí [debaixo da janela da cozinha], que eu lhe direi o que há na matéria. (GAM, p. 07 / séc. XVIII) OSWALDINHO – Vou arranjar um aumento aí pra você. Já sei. Meu assessor. (ANR, p. 485 / séc. XX) Porque foi aí – logo depois da minha maior perda – que eu tive a ideia luminosa. (RG, p. 33 / séc. XX) FLORÊNCIA — E aí encontraste-me banhada em lágrimas. (Nov, p. / séc. XIX)

Em (8), o item locativo, relacionado ao sintagma adverbial logo depois, estabelece um marco temporal que delimita o ponto em que a personagem teve a ideia. Já em (9) o grau de abstratização é maior, uma vez que o constituinte aí, por conta do trecho em que é articulado, admite a leitura como elemento de conexão sequencial, principalmente por vir seguido da conjunção aditiva e.

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Há, ainda, a categoria intermediária (CI), outro fator relevante que observamos, que diz respeito à presença de alguns advérbios que oscilam entre o Físico concreto e o Físico virtual, ou do Físico virtual para o Abstrato textual conforme detectamos em (10): (10) MÃE –(agressiva) Então vou entregar o caso à polícia. Aí quero ver. (VN, p. 385 / séc. XX) No exemplo acima, o uso de aí não fica bem delimitado no contexto da obra, o que enseja dúvida no momento de definirmos a referenciação. Não fica claro se o advérbio faz referência a um local vago, ao momento da fala ou se é um sequenciador. Interpretamos essa ambiguidade funcional da CI como consequente da atuação da inferência sugerida, como referida na seção anterior, como polissemia resultante de pressões no plano metonímico. O terceiro fator classifica o locativo em exofóricos (Exo) ou endofóricos. No segundo caso, verifica-se, ainda, se o locativo registra conexão anafórica (Ana) ou catafórica (Cata). Os exemplos abaixo ilustram tais conexões na ordem apresentada aqui: (11) Dr. J.B. – (...) Venha cá, minha filha, vem cá. Senta aí... (VPH, p. 452 / séc. XX) (12) aquella alcôva... e tem uma porta que dá direita na escada... Elles ahi vêm: entra depressa, esconde-te. (Nov, p. 06 / séc. XIX) (13) Tiburcio. Anda para alli ladrão, senta-te ahi nesse banco. (Sentase a escrever). (GAM, p. 22 / séc. XVIII) O último fator tem fundamento cognitivo, uma vez que classifica o frame em que o locativo aí é usado. Na investigação desse fator, ampliamos a análise para toda a oração, levando em conta ainda a sequência tipológica e a cena comunicativa. No caso do locativo em destaque, quanto mais essa cena tem a ver com uma situação espacial e física, menos favorecedora à gramaticalização, uma vez que o enquadre espacial favorece a articulação

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do sentido espacial e da função circunstanciadora de aí. Classificamos o locativo em espacial (Esp) ou não-espacial (Não-esp), conforme registrados nos exemplos (14) e (15): (14) MÃE – Você ainda está aí [no quarto]? Todo mundo já desceu! (VN, p.375 /séc. XX) (15) D. LAURA –(maliciosa) Qual o quê! Está aí, não acredito! Tão moça, tão cheia de vida (VN, p. 374 / séc. XX) Em (14) o locativo aí tem sentido espacial pela referência a no quarto e pelo tipo de verbo estativo que escopa, que indica permanência em um determinado lugar. Diferente funcinalidade tem-se em (15), em que aí se encontra integrado ao verbo estar, que tem outro valor, indicando certa ênfase na afirmação dita anteriormente. 3. Padrões de uso do locativo aí Nesta seção, apresentamos os resultados obtidos por meio do levantamento exaustivo do locativo aí nas obras pesquisadas, combinando o viés qualitativo e o quantitativo. Para tanto, a seção é dividida em quatro subseções, relacionadas aos fatores em análise, que buscam apresentar os padrões de uso de aí nos três séculos, a partir da variável estrutural – a ordenação em relação ao verbo. A ordenação é, desse modo, a base ou o ponto de partida para a detecção de trajetórias semântica e categorial de aí. Com base nessa variável, investigamos os clines de polissemia e gramaticalização do item referido. Conforme já destacamos, nosso objetivo é o levantamento exaustivo das ocorrências de aí nas peças pesquisadas, independentemente da funcionalidade de que é revestido – se adverbial ou conectora. Das tabelas que integram esta seção, somente a primeira referese à ordenação distribuída pelos séculos XVIII ao XX. Nas demais, que investigam os outros fatores, os dados são apresentados sem levar em conta os séculos, mas somente a ordenação, uma vez que a distinção temporal não se mostrou relevante para referenciação, foricidade e frame. Nas tabelas, os dados percentuais são lidos horizontalmente.

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3.1. Ordenação: análise estrutural do locativo A Tabela 1, apresentada a seguir, refere-se ao primeiro fator em análise, com a distribuição dos locativos pelos tipos de ordenação em relação ao verbo. Retomamos a designação das posições levantadas: Pré-verbais: P1 = sujeito + advérbio + verbo P2 = advérbio + advérbio P3 = advérbio + X + verbo

Pós-verbais: P4 = verbo + advérbio P5 = verbo + X + advérbio

TABELA 1: Ordenação do locativo aí nos três séculos PRÉ-VERBAL

POSIÇÃO DO

P1

VERBO

P2

P3

P4

P5

Total

XVIII

03

20

36,36%

02

3,63%

29

52,72%

01 1,81% 55

100%

XIX

08 10,81% 38

51,35%

03

4,05%

22

29,72%

03 4,05% 74

100%

XX

00

10%

19

23,75%

50

62,5%

03 3,75% 80

100%

Total

5,45%

PÓS-VERBAL

0% 11

08

66 101

24

101

07

209

108

O primeiro aspecto que ressaltamos, pela observação geral da Tabela 1, é a tendência, ainda que sutil, da ordenação pós-verbal do locativo aí em duas sincronias – século XVIII e XX, enquanto no século XVIII prevalece a ordenação pré-verbal, com 51,35% dos usos de aí em P2. Se, à primeira vista, tal resultado poderia se configurar como surpreendente ou inusitado, o exame mais apurado dos contextos de uso é capaz de apontar a motivação para tais padrões. No século XIX, a maior frequência de ordenação pré-verbal ocorre por conta da articulação de um tipo de UPF muito comum nos textos de dramaturgia, que assume a configuração aí + verbo. Trata-se de um tipo de expressão que é muito recorrente como artifício para a chamada de um personagem à cena, como em: (16) Um dos rapazes que ahi vem almoçar é que me hade servir de padrinho. (FVM, p.14 / P2 / séc. XIX)

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(17) CARLOS — Aí vem ele. (Nov, p.14 / P2 / séc. XIX) Assim, consideramos que em (16) e (17) os personagens anunciam a entrada de outros personagens que entrarão em cena, indício de uma UPF típica desse tipo de discurso e da modalidade falada – aí vem. Cabe ainda ressaltar que a anteposição de aí também é indício de seu processo de gramaticalização, colocando-se antes do verbo, para, em seguida, atuar como conector. Embora no século XX os casos de ordenação pré-verbal de aí sejam menores face aos outros dois séculos, como atesta a Tabela 1, o que mais significativo é que, em sua grande maioria, surgem como elementos de articulação textual, como observamos em (18): (18) FLORÊNCIA — E aí encontraste-me banhada em lágrimas. (Nov, p.37 / P2 / séc. XIX) Se, no século XIX, o aí assume posição pré-verbal por conta da alta frequência de padrões verbais mais fixos, próprios do texto dramatúrgico, nos século XVIII e XX, a posição não-marcada é a pós-verbal. Nesses contextos, o elevado número de dados em posição P4 se deve ao pronome funcionar em sua classe prototípica adverbial, ou seja, posposto ao verbo e com referência espacial. A tendência pós-verbal, que se destaca mais ainda nos usos contemporâneos do século XX, vai ao encontro dos resultados de outras pesquisas sobre ordenação de advérbios do português, como a de Martelotta (2006), que constata a tendência de os advérbios prototípicos se posicionarem após o elemento verbal na trajetória da língua. Os dois próximos dados ilustram nosso comentário: (19) PEDRO –(jovial) D. Lígia está indignada. Me disse que vocês se trancaram aí [no quarto] e não deixam ninguém entrar. (VN, p.372 / P4 / séc. XX) (20) ELE: (...) Você quer saber o motivo por que eu escrevo, então grava aí [no gravador]: é pra comer as mulheres, pra elas gostarem de mim. (RG, p.15 / P4 /séc. XX)

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Em ambos os casos, o pronome apresenta uso prototípico adverbial, ou seja, contíguo ao verbo e com função locativa, ainda que em (20) a referência locativa remeta-se a no gravador. Em relação à posição marcada P3 – com número de ocorrências significativas no século XX – interpretamos que seja motivada pela articulação de construções gramaticalizadas específicas, como discutimos adiante. 3.2. Referenciação: análise semântica do locativo Nesta seção, apresentamos e discutimos os dados da Tabela 2, que traz o levantamento acerca do segundo fator de análise: a polissemia dos locativos. Retomamos aqui as siglas usadas na referida tabela: FC = Físico Concreto FV = Físico Virtual ATp = Abstrato Temporal ATx = Abstrato Textual CI = Categoria intermediária TABELA 2: Referenciação do locativo aí a partir da ordenação Referenciação

P1

P2

P3

P4

P5

Total

FC

02

5,40%

05 13,51% 01

2,70%

28

75,67%

01

2,70%

37

100%

FV

07

5,46%

54 42,18% 05

3,90%

57

44,53%

05

3,90%

128

100%

ATp

00

0%

01 33,33% 01 33,33%

01

33,33%

00

0%

03

100%

ATx

00

0%

04 19,04% 13 61,90%

04

19,04%

00

0%

21

100%

CI

02

10%

02

11

55%

01

5%

20

100%

Total

11

10% 66

04

20% 24

101

07

209

Como podemos observar pela tabela aqui trazida, dos 209 dados gerais, 128 articulam referência virtual, demonstrando a tendência à abstratização de sentidos articulada por aí. Portanto, em mais de 50% dos dados, prevalecem referências que se afastam do eixo prototípico dos

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locativos. Tal eixo mais básico e padrão de referência FC é apresentado por intermédio dos fragmentos a seguir: (21) Anna - Dê cá (Tomando o embrulho). Deixe-me ir guardar isto onde hade ser preciso. E esteja ahi quieto que eu vou chamar a menina. (PB, p.46 / P4 / FC / séc. XIX) (22) HELE NICE – Dr. Salim, o patrão da Joice está aí [no portão]! (ANR, p.505 / P4 / FC / séc. XX) Como observamos, o pronome aí se apresenta prototípico, ou seja, pós-verbal em P4 e com função locativa bem delimitada (FC), em ambos os fragmentos. O dado (21) evidencia o local da cena, a saber, a sala da casa; enquanto o dado (22) faz referência a no portão. Contudo é a referência FV – em que se configura espaço mais indefinido e vago – que lidera o número de ocorrências, como mencionamos. O fato de haver maior inclinação para as posições imediatamente junto ao verbo já era esperado, mas não a sua concorrência entre FC e FV. A posição antes do verbo (P2) apresenta 54 dados, enquanto a posição pós-verbal (P4), 57 ocorrências. Seguem-se os exemplos: (23) Aí chegam os amigos. (QC, p.73 / P2 / FV / séc. XIX) (24) TEREZA (assombrada) – Que é que você está fazendo aí? (VPH, p. 473 / P4 / FV / séc. XX) (25) ALAÍDE – Ele vem aí! Digam que eu não sou daqui! (VN, p.351 / P4 / FV / séc. XX) (26) JUCA, da janela — Primo, aí vem ele! (Nov, p.21 / P2 / FV / séc. XIX) (27) Sevadilha: Vá-se daí, malcriado, aleivoso, maligno; (GAM, p.33 / P4 / FV / séc. XIX)

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Os cinco exemplos anteriores são relevantes, pois evidenciam o motivo pelo qual o pronome, com referência FV, concorre em P2 e em P4. O dado (23) serve apenas para indicar a entrada da personagem, por isso o foco no pronome na posição pré-verbal; diferentemente do que ocorre em (24), em que a cláusula se encontra na ordem direta, deixando a circunstância locativa ao final, em posição pós-verbal. Consideramos, entretanto, que a grande ocorrência de dados nas posições contíguas ao verbo e com função FV deve-se ao grande uso das expressões vem aí (25) e aí vem (26). As duas construções ocorrem nos textos de todos os séculos como marca para a entrada de um personagem em cena. Trata-se de uso recorrente nas peças do século XIX, caracterizando uma UPF muito comum no gênero textual em análise. O número de ocorrências FV, portanto, deve-se, provavelmente, a termos cristalizados, isto é, termos semanticamente mais integrados do ponto de vista semânticosintático. Ambas as expressões nos remetem ao princípio de camadas, em que formas competem na articulação de sentidos similares. Assim, vem aí e aí vem configuram-se como alternativas para o anúncio da entrada de personagens em cena, num tipo de papel também passível de cumprimento por chegou, aqui está, eis aqui, entre outras. Esses comentários podem ser feitos também em relação aos significativos casos de CI (20 ocorrências). Como já assinalamos, pertencem à CI os dados em que detectamos sobreposição de sentidos, em que não se pode identificar com maior precisão o sentido de aí ou mesmo sua classe gramatical. Os dados (28) e (29) ilustram a referência híbrida de CI: (28) aquella alcôva... e tem uma porta que dá direita na escada... Elles ahi vêm: entra depressa, esconde-te. (FVM, p.06 /P1 / FCFV / séc. XX) O dado (28) possui referência complexa, já que há um lugar definido antes do pronome, constituído pelos termos aquella alcôva e uma porta. Nesse trecho, o personagem instrui um outro acerca da direção a se tomar

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e, em seguida, avisa que outros personagens entrarão em cena. Não fica claro, portanto, se o pronome retoma anaforicamente aquella alcôva ou um outro lugar não mencionado anteriormente. Complexidade similar ocorre no fragmento apresentado em (29), em que se admitem duas leituras: aí pode ter o sentido prototípico de que a personagem deva permanecer no lugar onde se encontra; ou uso mais convencionalizado, na formação da expresssão Espera aí, funcionando como uma UPF equivalente ao sentido de Preste atenção. Quanto às ocorrências de referência ATp, foram registrados apenas três casos, distribuídos em P2, P3 e P4. Em se tratando da referência ATx, registrou-se número significativo de dados (21), principalmente em P3 (ordem marcada). Fato é que a maioria dos casos em que aí apresenta referência ATx aparece nos textos de Sergio Sant’anna, no século XX. Por agora, ressalta-se que só foram encontradas duas na dramaturgia brasileira do século XIX. O dado (30) apresenta um caso de ATp, e o (31), de ATx: (30) Lazaro - De madrugada muito cedo. Até ahi sei eu. (PB, p.56 / P2 /ATp/séc. XIX) (31) CARLOS - Fugi do convento, e aí vêm eles atrás de mim. (Nov, p.7 / P2 / ATx / séc. XIX) Ambos os fragmentos acima confirmam o que foi proposto nos estudos de Batoréo (2000) e Traugott e Heine (2003) acerca da gramaticalização, que parte da trajetória polissêmica espaço > tempo > texto, isto é, um percurso do concreto ao mais abstrato. Em (30) o pronome ahi retoma a oração De madrugada muito cedo, ou seja, faz-se referência temporal; enquanto em (31) observa-se que o locativo aí, motivado pelo conector e, assume função distinta na cláusula, configurando expressão de valor textual, e não mais de valor locativo. Assim, constatamos que, embora a forma permaneça a mesma, o sentido do locativo se modifica e, em alguns casos, a classe gramatical também. Essa evidência confirma o princípio de divergência, em que uma forma surge com duas funções diferentes, por conta de processo gerador de polissemia, ou seja, da articulação de novas funções com o aproveitamento

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de antigas formas. São extensões de sentido como as aqui apresentadas que motivam trajetórias de gramaticalização. De qualquer modo, o uso divergente de aí confirma o que Paiva (2003) e Tavares (1999; 2003; 2009) defendem quanto ao papel do encadeamento dêitico e da gramaticalização do aí de advérbio para conector. Conforme constata Paiva (2003: 141), os pronomes locativos no português “se submetem a um processo de dissociação entre a dêixis e a foricidade”, de tal sorte que têm enfraquecido seu papel referencial de espaço em prol da articulação de sentidos fóricos, funcionando como articuladores de natureza regressiva ou progressiva. 3.3. Foricidade: análise textual do locativo Pesquisamos aí também em termos das relações dêiticas e fóricas que poderia articular. A Tabela 3 ilustra o levantamento a partir da função textual assumida pelo referido item, no apontamento para o ambiente externo (exofórico) ou interno ao texto (endofórico), subdividido, nesta segunda categoria, em função anafórica ou catafórica: TABELA 3: Foricidade do locativo aí a partir da ordenação P1

Forici-dade Anafó-rico

03

Catafó00 rico Exofórico Total

08

P2

11,11%

07

0%

01

4,65%

58

11

P3

25,92% 01 10%

01

3,70% 10%

P4

P5

Total

16 59,25% 00

0%

27

100%

07

10%

10

100%

70%

01

33,72% 22

12,79% 78 45,34% 06 3,48% 172 100%

66

24

101

07

209

Inicialmente, o que detectamos é um panorama regular, com grande ocorrência de dados de remissão exofórica, principalmente nas posições contíguas ao verbo. Dos 209 dados, 172 apontam para fora do ambiente textual. Os três exemplos a seguir ilustram a evidência: (32) Um dos rapazes que ahi vem almoçar é que me hade servir de padrinho. (FVM, p. 14 / P2 / Exo / séc. XIX)

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(33) Semicúpio: Ai, que é D. Gil! Pois agora farei com que me tenha por valoroso. Quem está ai? Fale, quando não despeça-se desta vida que o mando para a outra. (GAM, p. 18 / P4 / Exo / séc. XVIII) (34) Dr. J.B. – (...) Venha cá, minha filha, vem cá. Senta aí... (VPH, p.452 / P4 / Exo / séc. XX) Com base nesses dados, constatamos que a grande ocorrência de referência exofórica se deve ao que já foi dito acerca da construção aí vem, tal como ocorre em (32). Em casos desse tipo, ainda há a noção dêitica no locativo, contudo esvaziada de sentido, pois não se faz referência a um local determinado, físico, conforme observamos também em (33) e (34). O personagem do fragmento (33) ouve vozes, porém não sabe de onde essas vozes vêm; e em (34), a personagem chama o outro para perto de si por meio da expressão vem cá, mas manda sentar em outro espaço, desconhecido (aí), quando deveria utilizar o pronome aqui, isto é, o pronome referente ao uso próximo da pessoa que fala. A concorrência de P2 e P4 se registra também nos dados em que há remissão anafórica, a segunda em termos de ocorrência nos corpora. Esse registro tem relação com a trajetória de gramaticalização advérbio > conector, uma vez que a função anafórica é considerada, na perspectiva teórica adotada e com base em resultados de pesquisa de gramaticalização, uma das motivações para a articulação de sentidos lógicos e consequente mudança categorial. Estamos nos referindo a contextos como os seguintes: (35) Dom Gilvaz: Mas a galanteria é que todas as suas idéias redundam em nosso proveito. Semicúpio: Aí é que está a filigrana do jogo, Fagundes a semear e nós a colher. (GAM, p.49 / P2 / Ana / séc. XVIII) (36) Semicúpio: Lá vem a Sevadilha: ora, o certo é que donde a galinha tem os ovos aí se lhe vão os olhos. (GAM, p.63 / P2 / Ana / séc. XVIII)

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Em (35), o personagem Semicúpio, por meio do locativo aí, retoma toda a fala do personagem Dom Gilvaz, por remissão anafórica. Em (36), o mesmo item retoma toda a declaração anterior, demonstrando como tal constituinte tem se distanciado da função adverbial em prol do papel de conector textual. Vale ressaltar ainda que, em ambos os dados, o locativo se encontra em P2. Diferente situação ocorre em relação à remissão catafórica. Dos dez registros desse tipo de ocorrência, sete se encontram na posição P4, conforme os exemplos abaixo: (37) Semicúpio: Rapaziadas. Ora, ande, vá-se aí para dentro e não faça outra: (GAM, p.72 / P4 / Cata / séc. XVIII) (38) Vai aí fora e traz dois limões (JPR, p. 56 / P4 / Cata / séc. XIX) (39) HELE NICE – Dr. Salim, o patrão da Joice está aí no portão! (ANR, p.505 / P4 / Cata / séc. XX) Em todos os três casos, constatamos que as remissões catafóricas ocorrem em P4, pela necessidade de o emissor especificar o espaço mencionado, isto é, a referência locativa. Em (37) apresenta-se o especificador para dentro; em (38) o pronome busca a referência fora; e em (39) remete-se a no portão. 3.4. Frame: análise pragmática do locativo A partir desse quarto fator, medimos o enquadramento da cláusula em que se articula o locativo aí, com vistas à verificação de uma das nossas hipóteses, segundo a qual o sentido espacial é atinente não só ao aí, mas está presente na cláusula como um todo, e, de outra parte, a referência nãoespacial também se apresenta com um traço geral, partilhado pelo verbo e demais constituintes. A Tabela 4 registra quantitativamente os dados por nós levantados:

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TABELA 4: Frame do locativo aí a partir da ordenação Fori-cidade

P1

Espa-cial

11 8,73%

40

31,74%

02

1,58%

68

53,96%

05 3,96% 126

100%

Nãoespacial

00

26

31,32%

22

26,50%

33

39,75%

02 2,40%

100%

Total

0% 11

P2

66

P3

24

P4

101

P5

07

Total

83

209

Observa-se que, em relação ao pronome aí, há concorrência entre o frame espacial e não-espacial, com leve tendência aos sentidos espaciais. Consideramos que a maior frequência de cláusulas de frame espacial deve-se ao gênero dos textos que nos servem de fonte, uma vez que peças teatrais são muito ancoradas na referência locativa. Nesse gênero, informações e referências a espaço físico são, via de regra, fundamentais para a caracterização e atuação dos personagens. Uma das evidências desse traço é a grande ocorrência das UPF aí vem e aí está, que concorrem para anunciar e marcar, respectivamente, a movimentação dos personagens no espaço cênico. A seguir, apresentamos um exemplo de cada um dos frames, na retomada de dois exemplos já apresentados: (30) Lazaro - De madrugada muito cedo. Até ahi sei eu. (PB, p.56 / P2 /ATp/séc. XIX) (31) CARLOS - Fugi do convento, e aí vêm eles atrás de mim. (Nov, p.7 / P2 / ATx / séc. XIX) Revendo os fragmentos (30) e (31), observamos que no primeiro o frame é não-espacial, enquanto no segundo fragmento o enquadramento é espacial. Para chegarmos a tal classificação, valemo-nos dos traços semânticos verbais de saber e vir, respectivamente, bem como dos demais constituintes da cláusula em que se inserem. Devemos mencionar, contudo, que, em (31), é possível a consideração de certo hibridismo semânticocategorial, uma vez que e aí pode ser interpretado como sequenciador textual.

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Com base nesses resultados, pudemos constatar que a “espacialidade” não é propriedade inerente ao locativo aí de modo específico ou exclusivo. Antes, constatamos que se trata de marca que perpassa todos os constituintes envolvidos no fragmento articulado. O frame tem a ver, assim, não só com os participantes da estrutura oracional (verbo e seus argumentos e adjuntos), como também guarda referência com a sequência maior, que diz respeito ao período como um todo. Esses resultados também ratificam que, ao pesquisar padrões de uso linguístico, é preciso levar em conta o contexto textual-discursivo de sua ocorrência, uma vez que esse ambiente concorre para a seleção, a frequência e o tipo de uso dos constituintes articulados. Nossos resultados apontam que o aí espacial está inserido em fragmentos marcados por outras referências também espaciais; nesse caso, o locativo funciona como mais um dos concorrentes para a expressão desse sentido. De outra parte, o sentido temporal de aí e o textual-discursivo, ambos mais abstratizados, estão inseridos em sequências em que dividem e partilham essa abstratização com outros constituintes da tessitura textual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do levantamento e da análise dos padrões de uso do locativo aí em textos dramatúrgicos de três sincronias do português, do século XVIII a XX, podemos chegar a algumas tendências gerais que aqui destacamos. A primeira delas diz respeito ao uso pós-verbal de aí ligado a sua prototípica função de circunstanciador espacial. Esse resultado vai ao encontro de uma série de pesquisas sobre ordenação adverbial que destacam tal posicionamento estrutural dos advérbios em geral como a ordem nãomarcada para o português contemporâneo, conforme Martelotta (2006) e Oliveira (2008), entre outros. Em termos de referenciação, o sentido físico virtual, relativo a espaço vago e impreciso, é a maior tendência de uso do locativo aí. Consideramos que esse resultado tem a ver com dois aspectos: um reside na segunda pessoa gramatical, que se encontra mais afastada do espaço em relação à primeira pessoa; outro fator diz respeito à tendência de aí para polissemia e gramaticalização, fazendo deste elemento candidato a articular de sentidos mais abstratos e assumir função conectora.

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Com relação à foricidade e frame, entendemos que o padrão exofórico e o enquadramento espacial, tendências destes dois fatores, estão intimamente relacionados ao contexto discursivo trabalhado, conforme destacamos no final da seção anterior. Assim, nossos resultados confirmam as hipóteses iniciais, segundo as quais, nos padrões de uso de aí atuam pressões de ordem estrutural e discursivo-pragmáticas. Consideramos que essa combinação de pressões deve ainda atuar na fixação de muitos outros usos linguísticos, no âmbito dos locativos de base pronominal. Assim, continua aberta uma vasta e instigante agenda de pesquisa em termos dos usos do português.

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O VERBO “METER”: DA ESTRUTURA PROTOTÍPICA ÀS EXTENSÕES SEMÂNTICO-COGNITIVAS THE VERB “METER”: FROM THE PROTOTYPIC STRUCTURE TO THE SEMANTIC AND COGNITIVE EXTENSIONS Isabella Venceslau Fortunato Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

RESUMO Um dos grandes “choques” linguísticos entre falantes do PE (português europeu) e PB (português brasileiro) – para além das diferenças fonéticas e lexicais – é a maneira como cada variedade combina seus lexemas na formação de sintagmas verbais. Há uma tendência, nas línguas naturais, de fazer com que – a partir dessas combinações e da sua frequência de uso – essas adquiram certo grau de fixidez, tanto sintática como semântica. Isso explica como é possível que um determinado domínio cognitivo possa ser verbalizado por uma combinação específica de itens lexicais em uma variedade e que essa mesma sequência seja agramatical em outra, mostrando que traços semânticos podem ser ativados ou permanecer latentes, a depender das necessidades comunicativas de cada comunidade linguística. Partindo de um verbo específico como “meter”, observaremos como o PB e o PE utilizam o mesmo verbo para denominar domínios semânticos diferentes, mostrando que a combinação semântico-sintática do verbo com seus complementos apontam não só para uma diferença cultural, mas para uma distinção mais profunda, de natureza cognitiva, tanto na peculiaridade do recorte que cada um faz do mundo como na maneira de categorizar as informações dele extraídas. Palavras-chave: semântica cognitiva; construções com verbo-suporte; verbos de movimento. ABSTRACT One of the great linguistic “shocks” between PE (European Portuguese) and PB (Brazilian Portuguese) speakers - besides the phonetic and lexical differences - is the way each variety combines its lexemes in the formation of verb phrases. Because of frequency of use of these combinations, there is a trend in natural languages to make them acquire a degree of fixity, both

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syntactic and semantic. This explains how it is possible that a particular cognitive domain can be verbalized by a specific combination of lexical items in a variety and that the same sequence is agrammatical in another variety of the same language, showing that semantic features can be activated or remain inactive, depending on the communicative needs of each language community. Starting from a particular verb as “meter” we will observe how PB and PE use the same verb to denote different semantic domains, showing that the semantic-syntactic combination of the verb with its complements point to a cultural difference, not only a cultural difference, but a deeper cognitive distinction, both in the peculiarity of the cut that each one makes of the world and on the way they categorize the information extracted from its existence and experience. Keywords: Cognitive Semantics; Support Verb Constructions; Verbs of Motion

INTRODUÇÃO Quando os itens lexicais se unem para compor uma oração, cada um deles põe em evidência os traços semânticos necessários para dar as nuances de significado que o falante deseja. Se é verdade que cada item lexical tem seus traços inerentes, é a associação destes com os dos seus vizinhos que vai contribuir para o significado final e global da sentença. É por este motivo que é tão comum, frequente e linguisticamente produtivo que se formem expressões com diferentes graus de fixidez e que a junção destes itens adquira, com o tempo, com o uso e com o contexto, significados próprios. No nosso estudo utilizaremos, como corpus, ocorrências dos jornais Público de Lisboa e Folha de São Paulo (disponibilizadas pelo banco de dados Linguateca) e temos dentre os objetivos, descrever – tomando como base o verbo “meter” – como essa associação de lexemas pode servir a verbalizar domínios cognitivos diferentes e, muitas vezes, não previsíveis. Mas antes de nos focarmos na análise específica do verbo “meter”, descreveremos a composição do movimento de uma maneira geral, a fim de termos as ferramentas necessárias para traçar a diferença de funcionamento do verbo “meter” no PB e no PE desde o seu uso prototípico até a formação de construções semifixas e com verbo-suporte.

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1. Estrutura cognitiva e traços que constituem o “movimento” Dentre as eventualidades do mundo representadas linguisticamente por verbos, podemos enumerar, ainda que não exaustivamente, os tipos em que são classificados os verbos na literatura: Movimento físico (com ou sem deslocamento), Estado/Condição, Percepção, Cognição, (transferência de) Posse, Comunicação, Fenômenos Naturais, entre outros1. Difícil é traçar uma linha divisória entre as classes que não seja passível de interseções e regiões nebulosas. No âmbito dos verbos de movimento, há diferentes subtipos que ganham configurações sintáticas diferentes em função da estrutura conceitual deste e dos elementos que a compõem. Podemos pensar em movimentos que o Sujeito [+ ANIMADO] executa com o próprio corpo, de corpo inteiro, com ou sem deslocamento (correr e balançar, respectivamente), ou somente com partes do corpo (acenar), movimentos com deslocamento de um Objeto que não seja inalienável ao Sujeito (pegar). O movimento pode ser voluntário ou involuntário (acertar pode ser os dois), com controle ou sem (escrever e espirrar respectivamente). O verbo, a depender da sua estrutura léxico-conceitual, pode enfocar um ou outro elemento que constitui a eventualidade, “ignorando” outros que não sejam fundamentais na verbalização, por exemplo, num movimento com deslocamento de um Objeto, não lexicalizar o Ponto de partida ou o de chegada (atirar). Tratando especificamente desta classe de verbos, que é o nosso objetivo nesta seção, uma eventualidade de movimento, segundo Talmy (1985, p. 6065), é qualquer situação que envolva movimento ou manutenção de uma locação estacionária (“move” ou “be located”) de um Objeto conceitualmente movível (Figura – Figure, na nomenclatura de Talmy) sendo posicionado em relação a outro Objeto de referência (Fundo - Ground), ao longo de um Percurso (Trajetória - Path). São também elementos constitutivos do movimento o Manner (Modo de ação) e Cause (Causação/Causatividade), mas considerados pelo autor como externos ao mesmo e, por este motivo, secundários. Esses elementos, todos inerentes à idéia de movimento em si, lexicalizam-se de maneira diferente segundo o tipo de língua, podendo manifestar-se através dos traços semântico-lexicais do próprio verbo, por 1

Sobre propostas de classificação ver JACKENDOFF, 1990; LEVIN, 1993, VAN VALIN, 1993; DOWTY, 1979)

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sintagmas na função de argumento ou adjunto ou ainda por satélites, como acontece em algumas línguas como o inglês. O movimento, independentemente de ter Trajetória ou não, tem uma direcionalidade própria, ou seja, pode centrar-se no Sujeito ou em um Objeto. Em relação ao Sujeito devemos distinguir o Sujeito sintático, que é o argumento externo, posicionado na margem esquerda da oração e o Sujeito conceitual que é o participante que é a origem do movimento, no nosso caso. Por outro lado, chamaremos de Tema, o Objeto conceitual, aquele participante que não tem controle e de argumento interno a posição argumental logo à direita do verbo. Por Objeto entenderemos um Objeto concreto, algo que o indivíduo possa manipular. Vamos considerar dois subtipos de eventualidades de movimento: as intransitivas e as transitivas, não no sentido sintático destas palavras, mas no sentido cognitivo: o evento intransitivo é aquele que se encerra em um único participante. Este pode ser o Sujeito, aquele que age ou que tem (ou pode ter) controle da ação, já que é [+ANIMADO]. Mas esse participante pode também ser o Tema, que não tem controle, mas, tal como uma definição de Figura, é um Objeto localizado ou que se move em relação a outro. Um exemplo dos dois tipos de participantes pode ser “A Mônica gritou” e “A pedra rolou”: os verbos pedem um único argumento, sintaticamente falando, e cognitivamente, podemos ver que temos somente um participante. No primeiro “a Mônica” age, com controle, enquanto no segundo, “A pedra” é Tema. Em uma eventualidade transitiva, a ação pede pelo menos dois participantes, dos quais um “age” sobre o outro. Age não no sentido de ser Agente, mas de que o evento incide de um participante 1 para um participante 2, como se a eventualidade em si tivesse uma “direcionalidade” abstrata. O foco aqui é um Tema, normalmente um Objeto concreto, como em “O Eduardo chutou a bola”. A bola sofre uma mudança de lugar, de um ponto A para um ponto B, o movimento é feito por um Sujeito Agente que efetua a ação com o pé. Esta é uma informação muito clara e lexicalizada no verbo “chutar”. Esse tipo de abordagem será interessante para melhor entender, caracterizar, e, se possível, traçar um esquema com as possíveis estruturas léxico-conceituais do verbo “meter” desde a mais prototípica até as

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eventualidades que este é capaz de recobrir no âmbito do discurso e da comunicação, em função da tomada de atitude pelo Sujeito, no campo cognitivo, da percepção, do sentimento, e na localização abstrata. 1.1 Estrutura léxico-conceitual: recategorização do “meter” para a denotação de novas eventualidades A nossa análise dos dados resulta do cruzamento entre os principais campos semânticos cobertos pelo verbo “meter” e a estrutura argumental e temática do verbo e da expressão; ou seja, observamos quais os sintagmas que adquirem centralidade na predicação, à medida que o significado se afasta do significado prototípico. Em uma primeira observação, constatamos que o verbo “meter” pode recobrir eventualidades em que há movimento concreto de um objeto que é deslocado de um ponto de partida, por um ser humano agindo intencionalmente, para um ponto final que represente um lugar que disponha de uma parte interior. As expressões com o verbo “meter” partem dessa configuração prototípica para alargarem o seu significado até domínios mais abstratos, em que, tanto sintaticamente como semanticamente, esse valor se perde. A configuração léxico-conceitual de uma dada eventualidade estabelece a estrutura temática e, consequentemente, a argumental de um determinado verbo pleno, o qual permitirá que determinados sintagmas preencham esta estrutura. À medida que as expressões se fixam e que a compatibilidade entre os traços semânticos do verbo e destes argumentos se torna mais estreita, a expressão, como um lexema único, passa a selecionar semanticamente outros argumentos para dar conta da nova estrutura formada. O “meter” pleno apresenta três argumentos, dois internos (um preenchido por um Sintagma Nominal, na função de Objeto Direto, e outro por um Sintagma Preposicional na função de Locativo) e um externo, o Sujeito. Quando ocorre a fixação dos seus elementos, há três possibilidades: a fixação dos dois internos, formando uma expressão fixa, bem como podemos ter a fixação de um único argumento, restando o outro em aberto e sendo s-selecionado pela expressão formada com a fixação dos outros dois. Centrar-nos-emos nas expressões que fixam um só argumento

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e veremos que os processos de fixação sintática, semântica e conceitual são diferentes. Apresentaremos os dados coletados mais à frente, na seção 3. 2. Construções com verbo-suporte Qualquer verbo, inclusive os de movimento que aparentam ter uma estrutura cognitiva tão concreta, está passível de formar expressões mais fixas, tanto do ponto de vista semântico como do sintático, sofrendo uma reconfiguração na sua estrutura léxico-conceitual e sintática, passando, neste processo, por uma aparente perda semântica, consequência de uma transferência do centro predicativo do próprio verbo para outros elementos, como o nome. Analisaremos, na presente seção, como isso acontece, a fim de verificar como o verbo “meter” se comporta ao passar por este processo tão produtivo linguisticamente. Ao tratarmos da estrutura interna das CVSup, procuraremos descrever os elementos que a compõem, as mudanças que sofrem em relação à construção que lhe deu origem. A contribuição semântica do sintagma nominal (doravante SN) será fundamental neste processo de fixação, sobretudo a dupla função que o substantivo assume na expressão: de definir a área temática da expressão e dar informações sobre aspecto e aktionsart2.

Verbo pleno

>

Verbo em expressões semifixas

>

Verbosuporte

>

Verbos copulativos

>

Verbos auxiliares

Assumimos que o verbo passa por um processo de gramaticalização – e consequentemente de “perda” semântica (bleaching) – encontrando-se, portanto, em relação ao seu verbo pleno correspondente, destituído de alguns dos seus traços semânticos originais, sobretudo a capacidade de atribuir o papel semântico de locativo ao seu argumento interno, tornandose essencialmente um veiculador de informação aspectual e de estado de coisas, além das informações gramaticais de modo, tempo, número e pessoa (PLAZA, 2005, p. 12). 2

Por aktionsart, o vocábulo alemão para aspecto lexical, entendemos o estado de coisas da situação descrita, a combinação de informações de tempo, aspecto e modo de ação.

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O substantivo que funciona como núcleo do sintagma nominal será o lexema responsável pela predicação da estrutura inteira. Com esse processo de transferência, ele deixa de exercer sua função prototípica de referenciação, ou seja, designação de objetos e entidades do mundo extralinguístico, adquirindo a dupla função de transmitir informações sobre a área temática e as de estado de coisas (ATHAYDE, 2001, p. 38-40), mas é ele, como núcleo da predicação, que será responsável pela atribuição de um papel temático. O SN, sendo agora o centro da predicação, será responsável pela abertura de espaços vazios a serem preenchidos pelos argumentos da construção inteira, portanto, à medida que a CVSup vai se tornando mais fixa, o SN deixa de ser argumento do verbo passando a parte inerente deste e seus complementos serão complementos da estrutura inteira. Sofrem, por consequência do processo de transferência da função predicativa e da gramaticalização do verbo, uma abstratização o que corrobora com a sua nova função valencial. O processo de fixação sintático-semântica se dá, portanto, em dois níveis interrelacionados: (i) Sofrendo ou não mudança sintática, a combinação verbo + parte nominal torna-se, por força do uso, uma expressão única correspondente a um verbo. A aceitação e a institucionalização por parte do falante será feita de forma arbitrária, por isso estamos diante de um fenômeno de lexicalização (PLAZA, 2005, p. 174). A depender do grau de repetição por parte do falante essa fixação sintático-semântica aumenta, trazendo consigo mudanças na expressão como um todo. À medida que a fixação aumenta, as possibilidades de combinação e de variação sintática diminuem e a parte nominal deixa de ser um argumento do verbo para ser parte inerente deste (ATHAYDE, 2005, p. 38). (ii) Mudanças acontecem também no plano semântico: o verbo sofre perda do seu sentido concreto original de denotar espaço e movimento, passando por contínuas abstratizações que advêm da própria natureza do espaço e do movimento, pois são facilmente suscetíveis de serem reinterpretados com significados da esfera da cognição, da emotividade, do tempo, entre outras. A expressão pode se fixar sintaticamente ou não a depender do seu uso.

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Ao nosso ver, e os dados nos confirmam isso, a transferência de predicação não será suficiente para definir as CVSup, já que, a depender da natureza do nome – abstrato, concreto, eventivo – a contribuição do verbo muda, bem como os processos que subjazem à formação da expressão. O desafio é saber delimitar com precisão se esta mudança de significado é apenas uma consequência da metaforização do conceito primeiro do espaço e do movimento ou se é realmente resultado de um processo de fixação em que a expressão como um todo caminha para a lexicalização. Falaremos melhor desta diferença na seção 2.2. 2.1 Construções com Verbos-Suporte: delimitação face a outras construções Como vimos na seção anterior, o grau de fixação sintático-semântica das CVSup está entre o da combinação livre e o da fraseologia verbal. Nesta última categoria, verbo e parte nominal estão lexicalizados ao ponto de não favorecerem a intercalação de elementos no seu interior e seu significado não corresponde a soma dos significados dos seus componentes. Na combinação livre do verbo pleno com seus argumentos, os espaços vazios abertos pelo predicado verbal podem ser preenchidos por elementos que estão em relação paradigmática entre si e que constituem uma classe aberta, na qual os falantes podem escolher aquele que mais lhe apraz e que melhor expressa a idéia que quer transmitir. Essa combinação será livre desde que sejam respeitadas as “regras”3 sintáticas da própria língua. Para Duarte (2003, p. 311) os verbos que formam a CVSup – por ela chamados “verbos leves”) – são dar, fazer e ter, os quais possuem traços gerais e são, por este motivo, polissêmicos, podendo-se combinar com uma extensa gama de itens lexicais e, através dessa combinação, adquirir os mais variados sentidos. As autoras apresenta os seguintes exemplos:

3

(1)

O João deu uma contribuição decisiva para o debate.

(2)

A Maria fez imensas queixas aos amigos.

(3)

Eles têm bastante influência na comissão.

“Regra” entendida aqui não no sentido normativo do termo, mas como a estrutura do sistema da língua em questão.

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A substituição dessas estruturas por verbos correspondentes – normalmente com a mesma base lexical –, é usada como critério de identificação das mesmas, como podemos observar no seguinte exemplo extraído da Gramática supracitada: (4)

O João contribuiu decisivamente para o debate.

Mas alguns autores4 reconhecem que este não deve ser um critério categórico por diversos motivos, entre os quais: (i) a estrutura argumental do verbo correspondente pode não ser igual à estrutura da CVSup como acontece em: (5)

Pedro dá um abraço em Maria Pedro abraça Maria

em que o tema da ação expressa pelo verbo é representado no primeiro exemplo por um SP com função de objeto indireto e no segundo por um SN com função de objeto direto; (ii) o significado da expressão tem matizes de significado não presentes no verbo correspondente como amar e fazer amor; (iii) fazendo um estudo comparativo com outras línguas podemos verificar que a maneira como cada uma delas recorta e verbaliza a realidade é determinante para a existência ou não dessa correspondência: entrar em pânico e to panic (do inglês); (iv) ou até mesmo no âmbito de uma mesma língua, podemos ter uma falsa correspondência como no caso de dar o peito (amamentar) e peitar; (v) ou uma correspondência com bases lexicais diferentes: vir ao mundo e nascer. Mesmo reconhecendo estas diferenças sintático-semânticas, o fato de que a expressão funciona e é armazenada como um único lexema é um importante indício de lexicalização. 2.2 Verbos-suporte e verbos em expressões semifixas Entretanto, a diferença de que trataremos aqui é aquela entre o verbo de expressões semifixas e o verbo-suporte. Este último, assumiremos aqui, é aquele que se combina com N eventivos/abstratos, transferindo para estes suas propriedades predicativas. A seleção semântica e a atribuição 4

Cf. PLAZA (2005, p. 147-163); ATHAYDE, (2005, p 45); MATEUS (2003, p. 311).

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de papel temático fica a cargo do predicador, neste caso, o Nome. Diferentemente, os verbos que se combinam com nomes concretos e que passam a funcionar como um lexema único, formarão uma expressão que, como um todo, sofrerá um processo de metáfora ou metonímia, a partir do seu significado original. A estrutura argumental se mantém, os papéis temáticos continuam sendo atribuídos pelo verbo e a fixação se dá junto com a recategorização dos domínios cognitivos. A partir desta fixação será possível que os elementos (verbo e nome) em conjunto atribuam papéis temáticos e selecionem semanticamente novos argumentos que fiquem em aberto. Isso significa que a expressão passa a ser o predicador, não somente o nome, ou seja, aqui há transferência da predicação do verbo para a expressão e não somente para o nome. Os substantivos que formam as CVSup são eventivos ou abstratos: estes últimos são definidos na gramática tradicional como “nomes que não possuem existência autônoma”, em outras palavras apresentando uma “dependência ontológica: para poderem referenciar necessitam de um suporte ou de um argumento” (RIO-TORTO; ANASTASIO, 2004, p. 213). Os eventivos não são necessariamente deverbais, mas as entidades que designam possuem limites temporais e podem ser acompanhadas da preposição “durante”. Elas podem também designar acontecimentos em objetos concretos (governo, tratamento). Outro teste para sua identificação é verificar se podem exercer a função de sujeito de “ter lugar” ou objetos de “presenciar”. Embora nem todos os substantivos que integram as CVSup sejam eventivos, sua informação semântica os aproxima, do ponto de vista aspectual, dos verbos, por este motivo, dizemos que esta classe é bivalente.

3. “METER” prototípico: verbo de movimento Embora nosso objetivo principal seja trabalhar com expressões que se afastem da construção composicional, nos dados encontrados, coletamos alguns exemplos efetivos do “meter” para servir de cotejo nas comparações das estruturas que nos propusemos analisar: as fixas, as semifixas e as construções com verbo-suporte, sobretudo porque algumas delas apresentam um correspondente transparente e composicional.

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O exemplo (6) é uma expressão com significado prototípico para que possamos, a partir dela, observar as mudanças semânticocognitivas ocorridas. Nas expressões que analisaremos, veremos que o protótipo apresenta um sujeito controlador, [+HUMANO] e que age intencionalmente, sendo, portanto, o evento designado [+CAUSATIVO]; o Argumento Interno é um Objeto Concreto e o Locativo tem uma cavidade interna que será o ponto final do deslocamento deste objeto. Lembrando que as suas características físicas devem ser compatíveis entre si, ou seja, o Locativo deve comportar, em tamanho, forma, material, etc, o Objeto. No que diz respeito à decomposição do evento prototípico nos subeventos que o compõem, o enfoque é no ponto final do accomplishment e no estado subsequente, no qual o Objeto estará alocado no lugar em questão. (6) F940312-005: Meti as contas já pagas no bolso, as mãos trêmulas, saí cambaleando do guichê. b. P940420-147: Ao fim da tarde, o polícia metia o apito no bolso, fechava a sombrinha e rolava o estrado para um canto. a.

Mas logo os exemplos começam a se afastar desta estrutura original: meter algo no lixo não é simplesmente deslocar um objeto de lugar, mas esse objeto tem que ter o traço “+descartável”, e a ação como um todo designa o descarte deste mesmo objeto, não simplesmente a mudança de lugar, pois o ponto final do deslocamento é um lugar específico. (7)

P940828-068: Quando bastava esticar o braço para meter o papel no lixo.

Meter no correio, assim como a anterior, é uma expressão em que a função do locativo vai além de indicar um lugar, mas a ação que neste lugar ocorre: meter uma carta no correio é enviá-la para algum lugar, independentemente de se ter ido a uma estação de correio ou de tê-la depositado em uma caixa postal, por exemplo.

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(8) a.

P941014-119: Foi em Genebra, onde tem, com o irmão Alian, uma empresa de óculos e fatos de neve, que Patrick Vuarnet meteu no correio as cartas de despedida dos membros da seita, onde anunciavam que iam em trânsito para o futuro.

As expressões meter na cadeia e meter na prisão podem ser interpretadas de duas maneiras: (i) um sujeito colocando, de fato e literalmente, outro indivíduo numa cela ou (ii) como um sujeito dando voto de prisão a outro e fazendo com que ele tenha que ser conduzido à prisão. (9) a. P940617-155: Depois dos problemas que houve em Itália, sobretudo com os negócios escuros que envolveram estruturas do Mundial ou realizadas para o Mundial -- o processo Mãos Limpas já meteu diversos responsáveis na cadeia -- este Novo Mundo é uma bênção do céu para a FIFA. b. P940323-061: Não só conseguiu que a Polícia o libertasse, podendo viajar tranquilamente para Bagdad no dia seguinte, como logrou meter os cúmplices todos na prisão para o resto da vida. A ocorrência (10) a seguir, do português brasileiro, tem uma parte do corpo do sujeito na posição de objeto direto e um objeto sem cavidade interna no sintagma preposicional. A expressão como um todo representa uma ação em que o sujeito “agarra” bruscamente (traço Manner) este objeto. Percebese que, embora continue se tratando de um movimento tangível, com deslocamento, o frame muda, pois o SP não representa mais um Locativocontainer, mas um Objeto. (10) F940701-106: Ele vem aqui e mete a mão no microfone assim, tum, abre e fala. 3.1 “METER” em construções semifixas Como dissemos na seção 2, nas expressões semifixas temos o verbo formando uma expressão única com um de seus argumentos e deixando o outro “em aberto”, mas atribuindo a ele papel temático bem como exercendo sobre ele seleção semântica.

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(11) METER A MÃO [EM___] A expressão “meter a mão em algo” pode ter vários significados e quem vai dar o domínio cognitivo em que poderemos encaixar o significado final da construção é o Nome que constará como núcleo do SP e, de um ponto de vista mais geral, o contexto. No primeiro caso, “meter a mão em algo de valor” e que não pertença ao Sujeito significa “roubar”. “Meter algo no bolso de alguém”, como veremos adiante, também pertence ao mesmo domínio, compartilhando, com esta expressão os mesmos participantes e a mesma estrutura conceitual. a.

F941109-017: Não meti a mão em dinheiro de ninguém para estar sendo exposto dessa maneira, como se estivesse na época da Inquisição, disse o dono da Constran.

Também de uma maneira muito semelhante à expressão meter no bolso, como veremos adiante, no sentido de “ganhar”, “faturar”, mas com um quê de “garra” a mais. b.

F941010-057: E assim segue o Palestra: com um certo tédio, vai somando as vitórias necessárias, mesmo que seja de 1 a 0, à espera da hora de meter a mão na taça.

“Meter a mão” em alguém ou em alguma parte do corpo de uma pessoa tem esse traço de agressividade: (i) o sujeito é aquele que bate, (ii) na posição de objeto direto temos o membro com o qual essa pessoa vai bater, sendo a mão o objeto direto, podemos dizer que a ação é “dar um tapa”, “estapear”, (iii) no sintagma preposicional podemos ter ou não o lugar específico do tapa, ou então a pessoa que o vai receber. Assim como os outros casos em que aparece o traço Manner, a expressão nesta acepção é típica do PB. a.

F940122-025: Quando cheguei e ia subindo para o segundo andar ele ia descendo e ele meteu a mão em mim.

b.

F940724-093: Se Branco não tivesse recorrido ao expediente de meter a mão na cara de um, depois no peito de outro e se atirado para o juiz marcar a falta que ele mesmo converteu em gol da vitória, quem pode garantir qual seria o resultado final ?

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(12) METER O PÉ [EM___] Expressão tipicamente brasileira, “resgata” o traço “violência/agressividade” típica desta variedade. O Locativo não é interno e representa um objeto concreto. O evento também é concreto, físico, mas o que contribui de maneira relevante para a significação final é a junção deste traço + o objeto direto “pé” que nos diz com que parte do corpo foi feito o movimento. A ação é equivalente à de “chutar”, dando a expressão uma intensidade maior do que o verbo correspondendo, informação esta que só pode ser apreendida contextualmente. O “objeto do chute” será representado no sintagma preposicional, pelo qual, usualmente, como vimos até aqui, é expresso o Locativo. a.

F941021-064: Ninguém meteu o pé na porta das casas e foi atirando.

No caso da expressão (b), meter o pé na Europa, o Locativo não apresenta cavidade interna e passa a ser superficial e/ou um locativo externo, como podemos ver a seguir, embora continue sendo possivel “resgatar” o movimento original. Sendo o Locativo aberto para qualquer localização geográfica, meter o pé em determinado lugar é acabar de chegar neste lugar. Evidenciemos a forte marca aspectual do verbo nesse tipo de construção: b. P951210-047: A capoeira -- arte do ritmo e da ginga afro-brasileira, que nasceu na Bahia no tempo da escravidão, mete o pé na Europa e afirma-se em Lisboa com a presença de mestres brasileiros, empenhados em projectos culturais e sociais nas comunidades. (13) METER [___] A BOCA [EM___] Como veremos a seguir, “boca” tem uma gama de possibilidades de extensão semântica, nesse caso, acrescente-se o traço agressividade do verbo “meter” no PB, o significado de falar mal de algo ou de alguém. Atrelada à [+agressividade] do verbo, temos a presença de lexemas de conotação negativa como “nariz empinado”, “protestar”, “incauto”. a.

F950206-105: Sempre que leio alguém falando com o narizinho empinado de cultura de videogames ou metendo a boca em filmes inspiradas em videogames, fico superfeliz.

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b. F951115-101: Os torcedores reuniam-se à porta do clube para protestar; os cronistas metiam a boca no dirigente incauto. (14) METER O PAU [EM___] Embora o nome seja concreto, o significado final da expressão insere-se no domínio cognitivo da fala e, como é comum ao uso deste verbo no português do Brasil, adquire, como a anterior, o traço negativo de “falar mal”. a.

F940522-018: E hoje precisa meter o pau no Lula, a contragosto a polarização dos dois é o mecanismo para manter o Quércia longe.

b. F940307-156: Outro que não vai ter dificuldades em meter o pau na violência que toma conta do esporte é o corintiano Rodrigo Sacomani Leite, 14. (15) METER A UNHA [EM___] Essa expressão, típica do Português Europeu, tem o significado de “pegar”, “agarrar”, “tomar para si”. O traço [+POSSE] fica evidente e é reforçado pela escolha da “unha”, em vez da “mão”, quase que lembrando as garras de um animal. a.

P940426-157: Há os que -- a vasta maioria -- se adaptaram humildemente às vantagens económicas do apartheid e nunca meteram uma unha na politica, nem sequer em anteriores votações reservadas a brancos.

b. P941201-095: […] falas mais reservadas entre políticos, advogados famosos e homens de negócios sempre preocupados em meter a unha nos processos de decisão da democracia norueguesa. (16) METER AS CARAS [EM___] / METER OS PEITOS [EM___] Meter as caras é uma expressão tipicamente brasileira na qual observamos uma metonínia: a “cara” representa a parte mais exposta do corpo humano, por isso a expressão tem esse significado de expor-se, sem medo, sem

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receios, para a realização de alguma atividade. Formalmente ela pode ser intransitiva ou ter um sintagma preposicional representando o evento alvo, no qual esta “coragem” será depositada. a.

F951204-071: É só meter as caras, Corinthians.

b. F950209-087: Jovens e bonitos, que metem as caras em qualquer desafio e, claro, em romances inesperados. “Meter os peitos” é uma variação de meter as caras na qual podemos acrescentar um traço de [FORÇA], além da coragem e da exposição da expressão anterior. c.

F950109-063: Com a experiência bem-sucedido como empresário na área do marketing esportivo, Kleber mete os peitos na construção de um Flamengo poderoso dentro das quatro linhas.

(17) METER O NARIZ/A COLHER/O BEDELHO [EM___] O “nariz” é a parte do rosto mais protuberante, adquirindo, através de um processo metonímico, um significado de intrometimento: ao olhar algo (que normalmente não nos diz respeito) muito de perto, automaticamente o nariz toca esse “alguma coisa” de maneira invasiva. Metaforicamente, podemos transpor uma situação parecida com esta para o domínio mais abstrato do discurso (meter o nariz em algum assunto) e dos eventos (meter o nariz numa conversa), em que faria sentido alguém se intrometer. a.

P950326-080: Tudo garantido pelo Estado, que, em contrapartida, não tem o direito de lá meter o nariz.

b. P940919-099: Não meto o nariz em questões financeiras. “ c.

P941013-121: Se o assunto que levou ali o actor foi a publicação da sua autobiografia, poderá pensar-se que está a dizer ao Larry King para ele não meter o nariz onde não é chamado.

Variações semanticamente mais opacas do que meter o nariz, são as expressões (d) a (e) que têm o mesmo significado da anterior:

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d. F940917-025: Quando o governo mete a colher, o processo acaba mal. F950219-141: […] Jurandir Freire Costa, que nos últimos anos vêm usando o arsenal teórico de Sigmund Freud para meter a colher em assuntos que até há pouco eram exclusivos de sociólogos, antropólogos e críticos literários. F940603-092: A rigor, o intelectual é aquele que mete a colher onde não é chamado. e.

F941228-064: Quanto menos o governo meter o bedelho, melhor. P940526-063: Não apreciamos lá muito que outros metam o bedelho nos nossos assuntos internos mais delicados, confiou à agência Reuter um diplomata da Europa Central, mas sabemos que este é um obstáculo que vamos ter de saltar para um dia entrar na UE. “ F940106-155: Através deles desfila o século, testemunhado pela consciência alerta, irônica e compassiva desse católico de esquerda que sempre metia o bedelho onde não era chamado.

(18) METER ÁGUA EM [___] Para a expressão “meter água” encontramos no corpus tanto a expressão no seu uso concreto e como ocorrências com um significado já abstratizado por extensão semântica. O esquema cognitivo desta expressão é interessante, pois constitui um dos casos de construção não-causativa dos dados. a.

P940102-093: Os aparelhos tiveram que operar no meio de fortes ventos para retirar as pessoas do Monte Stello, um navio de carga e de transporte de passageiros que sofrera um rombo e estava a meter água.

b. P940113-097: Em consequência do embate, o barco ficou a meter água pela proa. Quando algo está metendo água, seja um barco, um navio ou um túnel, é porque as coisas estão funcionando mal: ou um cano partiu-se, ou está com uma fuga de água e corre perigo de afundar ou inundar o local. A partir desse evento (mais precisamente da consequência do evento), constrói-se metaforicamente esse significado abstrato da expressão, na qual o sujeito

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deixa de ser concreto, assim como a água, passando a representar um evento em que uma entidade ou um evento “dá errado”, “corre mal”. d. P941203-148: O banco meteu água, ao que diz, no mercado das PME e, por isso, terá que assumir elevadas perdas no final do actual exercício. e.

P950205-011: Waterworld, o filme mais caro alguma vez realizado em Hollywood mete água por todos os lados.

(19) METER [___] NO BOLSO “Meter algo no bolso” apresenta uma gama extensa de significados, a depender do contexto e dos Nomes que figuram como Argumento Interno. Temos primeiro uma série de ocorrências que apresentam o “bolso” como Locativo, mas que têm um sentido distinto do original, prototípico, que apresentamos anteriormente5: Como vimos anteriormente, em (11), com quantias de valor na posição do objeto e entidades, na sua maioria administrativas, como sujeito, adquire o sentido de “roubar”6: a.

P950102-036: A supressão dos subsídios e depois o bloqueio económico imposto por Moscovo começaram a provocar a erosão do seu poder e o empobrecimento da população, enquanto as mafias tchetchenas iam ganhando mais poder e metendo ao bolso os rendimentos do petróleo.

Caso o objeto e o sujeito mudem para um prêmio e o ganhador deste prêmio, o sentido muda para “ganhar”, “faturar”. É preciso dizer que o sujeito aqui deixa de ter o traço [+intencionalidade]: b. P940906-094: E, mesmo que amanhã venha a meter mais um Grammy no bolso de Jarreau, não passará de mais uma história da pequena história. 5 6

Reproduzimos o exemplo (9). Cfr. os exemplos (22-23) meter a mão no bolso e (49) meter a mão com a mesmo Estrutura LéxicoConceitual.

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Quando o objeto é abstrato e denota uma qualidade, o domínio é o das atitudes. Essa qualidade/decisão precisa ser escondida, guardada, por isso “no bolso”. c.

P940412-176: A própria Grã-Bretanha, depois da intransigência inicial, lá meteu o orgulho no bolso e retomou as reuniões no grupo de ligação para a questão de Hong Kong.

Meter no bolso também traz essa componente de “inferiorização”: uma entidade (objeto, evento, pessoa) que põe outra no bolso é fisicamente maior (retomando a estrutura cognitiva prototípica do evento de “meter”). d. P940125-143: Como não podia deixar de ser, tinha que nos presentear com uma canção latino-americana, e Adonde voy mete no bolso as baladas de Gloria Estefan. e.

P950223-024: Assim aconteceu também com Portugal, que sobretudo nesses quinze minutos iniciais meteu a Holanda no bolso.

Podemos observar que as restrições semânticas do sujeito e do objeto diluem-se nesse tipo de expressão, perde-se a intencionalidade do sujeito e é a relação entre este e o objeto que funciona como centro da predicação. (20) METER [___] À/NA BOCA Como já mencionamos anteriormente, “boca” é uma parte do corpo humano, bastante produtiva em termos de extensão semântica por processos metonímicos: pode representar o lugar pela qual a voz sai, sendo, portanto, o “centro” da fala, mas pode também representar o trato inicial do aparelho digestivo e, portanto, pode ser tomado também como esse significado. À medida que a abstratização aumenta, adquire novos traços. Nos primeiros três exemplos, temos objetos que são inseridos na cavidade bucal, aproximado-se muito do significado prototípico do verbo “meter” como verbo pleno. Nas outras duas, acrescenta-se o subevento consequente de ingestão, que envolve “subprocessos” como mastigar, engolir, processar, entre outros.

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a.

P940107-065: A existência de paredes degradadas nas habitações e com pinturas em mau ‘tado é apontada como uma das principais causas da ingestão de quantidades daquele produto, visto que é normal as crianças gostarem de descascar a tinta das paredes e meter pequenos pedaços na boca.

b. P950802-034: Por isso, uma parte importante da formação do ciclista é saber os momentos em que deve meter comida ou água à boca. c.

P940220-056: A condutora argumentava que a água e os refrigerantes não embebedam, o guarda apresentava como prova os valores do balão, o comandante apoiava o subordinado e já falava em análises ao sangue a realizar no hospital, quando viu a senhora meter à boca um chocolate.

Na acepção (d), temos um jogo de causatividade: reconhecemos que a “boca” aqui é o centro da fala, e quem profere os sons e as palavras, verbalizando o discurso, é o “possuidor” da boca, normalmente, o sujeito. Neste caso, procura-se tirar a intencionalidade deste sujeito e fazer com que ele seja “forçado” por uma terceira entidade (um terceiro participante da eventualidade) a falar. Temos dois subeventos causativos, sendo que o sujeito do primeiro tem o traço [+CONTROLE], o segundo não. Especificamente no exemplo (73e) não é Moisés a escolher suas palavras, mas uma entidade, como a Bíblia, cujo autor é quem vai fazer com que coisas sejam ditas. d. P950608-006: Quando a Bíblia mete na boca de Moisés qualquer coisa como esta, ela indica um itinerário, uma direcção. (21) METER [___] NA CABEÇA Meter algo na cabeça: fica claro que aqui, por metonímia, “cabeça” torna-se o centro do raciocínio e que se pode “meter” nela é qualquer coisa que possa ser processada como raciocínio, ou seja, ideias, histórias. A estrutura sintática permite, dada essa abstratização, que o objeto/tema seja representado por uma oração encaixada, como podemos ver no exemplo (28b). a.

P940401-081: Agora percebo que era já Berlusconi a tentar meter na cabeça das pessoas a ideia de uma ‘Itália nova’

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b. F940306-023: O PT tem que meter na cabeça que a tarefa de transformação da sociedade não é exclusiva de nenhum partido. (22) METER [___] NA GAVETA A expressão a seguir, “meter na gaveta” como se pode observar pelos exemplos selecionados, pode ser interpretada como designando o evento prototípico: a.

P940208-093: Aconteceu, em poemas mais longos, escrever o mesmo poema às prestações, em dias sucessivos: meter o papel na gaveta, sentindo que o poema ainda não acabou, e no dia seguinte sair naturalmente o resto...

ou com uma extensão de sentido, em que o objeto da ação fica restrito a um evento ou tema que são passíveis de serem adiados, que é o significado da expressão como um todo: b. P940408-081: […]a definição do relacionamento financeiro entre o Estado e as regiões, e a extinção do cargo de ministro da República, questão que os Açores meteram na gaveta. c.

P941224-079: Cavaco Silva […] meteu na gaveta o projecto de regionalização do país.

(23) METER [___] NO MAPA Meter algo/alguém no mapa, embora se possa conceber uma ação em que isso aconteça literalmente, significa aqui, atribuir importância a algo ou alguém em um determinado cenário, dar destaque a algo ou alguém, naquela determinada área (informação que será dada tanto pelo objeto direto como pelo adjunto que especifica o tipo de “mapa”). É justamente o lexema que aparece como núcleo do Locativo o primeiro a sofrer uma extensão semântica rumo à abstratização, consequentemente todo a estrutura cognitiva também sofre alteração, mas sem esquecer que “mapa” é um nome concreto e que o significado da expressão pode ser depreendido do significado das suas partes. a.

P951101-110: P. -- Tem alguma ideia da actual situação da fotografia em Portugal? R. -- Andámos anos a tentar meter a fotografia no mapa.

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(24) METER [___] NOS TRILHOS Assim como meter no mapa, meter nos trilhos parte de uma hipotética situação concreta para uma situação abstrata, estando as duas em ligação direta e, por isso, facilmente dedutível do evento concreto que lhe deu origem. O objeto direto será uma entidade, uma pessoa ou uma situação que necessita ser “reposta” no rumo certo, por isso, o paralelo com os trilhos de um trem: um trem descarrilhado não consegue andar, assim como, no caso do nosso exemplo, uma empresa fora do caminho certo não consegue evoluir. a.

P940205-140: E como a situação financeira da Sopete é, seguramente, ainda menos brilhante, o actual número um da empresa poveira, Joaquim Reis, tem dado voltas à cabeça para meter a empresa poveira nos trilhos.

(25) METER [___] NO PREGO Na expressão que segue, temos uma idiomatização (não conseguimos deduzir o significado global a partir do significado das partes) a não ser com uma bagagem cultural muito bem sedimentada e articulada. Meter algo no prego é penhorar algum objeto de valor (e essa já é uma restrição semântica do objeto direto). Embora seja possível, após saber o significado global da expressão, pensar em um passado em que o penhor envolve de fato um locativo com pregos, um falante estrangeiro, por exemplo, não necessariamente chega a esse significado a partir da soma dos significados dos seus componentes: a.

P950328-141: Apesar de possuir agora poucos móveis em casa e de mais mês menos mês não sobrar nem uma colher de chá para meter no prego, a troca da loja de roupa de senhora pela Igreja do Tabernáculo foi a melhor coisa que me aconteceu na vida.

(26) METER [___] NO AR Meter no ar é uma expressão na qual: (i) o núcleo da predicação é, literalmente, um Locativo externo, justamente o oposto da construção inicial com Locativo com cavidade interna; (ii) além do mais, na expressão

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como um todo, “no ar” perde o seu significado prototípico, concreto, “idiomatizando” a construção, não obstante se possa, historicamente “resgatar” por dedução a origem da expressão; (iii) assim, o objeto direto fica restrito ao campo semântico das transmissões7 pelos principais meios de comunicação de massa, como a televisão e o rádio. Finalmente, a expressão inteira pode corresponder a “transmitir”, com a peculiaridade de que o que será transmitido e o meio de transmissão são informações já presentes na construção inteira. a.

P950802-057: Esquecia-me de que existiam filmes de artes marciais tipo Kickboxer, com o Chuck Norris ou o Stallone, para meter no ar.

(27) METER A PORRADA [EM___] Expressão típica do PB, em meter a porrada é a única nesta variedade composta com um Nome eventivo. Como dissemos anteriormente, a grande diferença entre o PB e o PE é que o primeiro, por ter um verbo marcado pelo traço Manner na sua estrutura léxico-conceitual prototípica, não permite a formação de Construções com Verbo-Suporte. Embora aqui a expressão apareça com um Nome eventivo e funcione como um lexema único, não há bleaching no verbo, que continua carregando seus traços semânticos de Manner e [+agressividade]. O que defendemos aqui, portanto, é que o processo de formação da expressão meter porrada é diferente formação das expressões de (30) a (34) que analisaremos a seguir. Sintaticamente a expressão meter porrada pode ser intransitiva ou apresentar um sintagma preposicional alvo. a.

F950421-130: Não quero isso para mim, mas minha revolta maior é com os policiais que metem a porrada e fazem o pessoal virar bandido, conta.

b. F941120-095: Diziam à diretoria que queriam meter porrada nos corintianos que, sem serem filiados, usa camisas da Gaviões. 7

O objeto será obrigatoriamente algo que possa ser transmitido pela mídia eletrônica.

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3.2 “METER” como verbo-suporte O que acontece quando “meter” se torna verbo-suporte? Ou melhor, como é que “meter” se torna verbo-suporte? O verbo objeto do nosso estudo, como vimos na seção 4.2, a partir do momento que ele, como pleno, denota eventualidades diferentes, ativando traços semânticos distintos e, portanto, sendo classificado de maneira diferente no PB e no PE, quando servir de base para a formação de expressões fixas e semifixas, entre elas as construções com verbo-suporte, contribuirá semanticamente também de maneira distinta, como era de se esperar. Pelos dados encontrados, o PE é altamente produtivo para a formação de construções com verbo-suporte, enquanto o PB parece evitar esse tipo de formação lexical. Isso porque no PE ele não é marcado semanticamente com o traço manner que, como vimos, se lexicaliza no PB, impedindo que ele se “enfraqueça” semanticamente na formação de CVSup. O que não quer dizer que o PB não forme expressões em que o verbo não seja pleno, assim acontece, mas o processo não será esvaziamento semântico + deslocamento da predicação para o nome (normalmente eventivo): a combinação verbo + argumento interno, neste caso, passará a designar uma nova eventualidade por metáfora e/ou metonímia, a partir da significação primeira, por extensão semântica ou do verbo sozinho (quando ele se combina com substantivos abstratos) ou do verbo + sintagma nominal-argumento interno ou do verbo + locativo ou dos dois. Portanto, dentre as construções que sofrem Extensão Semântica, consideramos que só algumas constituem Construções com VerboSuporte, já que estas exigem um deslocamento da predicação, bem como um substantivo eventivo e que tenha, preferivelmente, um verbo correspondente com a mesma base lexical, como veremos adiante: (28) METER CONVERSA (COM [___]) Expressão composta com um nome eventivo na posição do objeto direto, fazendo com que a expressão inteira denote uma ação, aproximando esse tipo de construção das Construções com Verbo-suporte (CVSup): a predicação desloca-se do verbo para o nome e toda a estrutura denota um evento no mundo que poderia ser substituída por um verbo (o qual pode ter a mesma base lexical deste nome). O Locativo desaparece tornando

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a expressão intransitiva ou a expressão pode aparecer com um sintagma preposicional introduzido por “com”, marcando o alvo do discurso ou da situação comunicativa. a.

P940216-092: Um dia, num piquenique, Jerry e um amigo metem conversa com duas ciclistas adolescentes […]

(29) METER MUDANÇA (DE [___]) Meter mudança é uma expressão parecida com a anterior, mas com um sintagma preposicional introduzido por “de” que especifica o tipo de mudança, aquilo que sofreu a mudança. Já o sujeito é Agente e Desencadeador da ação. a.

P940427-136: Ter chegado onde chegou é, já de si, um feito importante para o clube de Pinto da Costa, mais a mais numa época atribulada que até meteu mudança de treinador.

(30) METER TRAVÃO Típica do PE, meter travão relaciona-se com “travar”, no Português do Brasil não temos o verbo com a mesma base lexical, mas “frear”, já que não é comum o uso do verbo “travar” neste sentido. A expressão é intransitiva e o nome virá sempre no plural, dando-lhe uma fixidez formal, embora não haja propriamente fixidez do ponto de vista semântico8. a.

P940723-137: O táxi mete travões e o motorista grita

(31) METER [___] EM ACÇÃO Meter algo em ação relaciona-se com “acionar”: a.

P951115-063: O disc-jockey abriu com a música de Vangelis, ao mesmo tempo que metia em acção o sofisticado movimento de luzes.

(32) METER[___] EM PAUSA Meter em pausa corresponde a “pausar”: a. 8

P950216-081: Rebobinar vida, meter o tempo em pausa.

Como vimos em 4.2.2, as expressões que se formam já com eventivos e abstratos, não sofrem extensão semântica nem mudança de domínio.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Recapitulando: no presente trabalho os critérios usados para a análise da estrutura das CVSup são: (i) Funcionamento da expressão como um lexema único; (ii) combinação do verbo com um N eventivo/abstrato; (iii) transferência da centralidade predicativa para o N; (iv) perda de capacidade de atribuição de papel temático. (33)

O João deu uma contribuição para o debate.

A possibilidade de uma dupla leitura, uma como construção composicional e uma como construção semifixa não será possível com as CVSup, já que a sua constituição não é derivada de uma original referencial, obtida em decorrência de uma recategorização cognitiva. As expressões semifixas, por serem compostas a partir de uma mudança de domínios de uma expressão transparente e composicional para outra em vias de idiomatização, permite uma dupla leitura, dando margem, em alguns casos, à ambiguidade. (34) No cinema, Eduardo passou a perna na minha e eu me aborreci. (35) Marcelo passou a perna na família inteira. A diferença entre as CVSup e os verbos das expressões semifixas está, portanto, no fato de: (i) o verbo se combinar com N concreto que se abstratiza por metáfora/metonímia; (ii) a centralidade predicativa é transferida para a expressão, em decorrência da fixação e do processo de metáfora/metonímia; (iii) as expressões semifixas mantêm a estrutura argumental do verbo e os papéis continuam sendo atribuídos por ele. A grande distinção entre PE e PB é que o primeiro é a única variedade a permitir a formação de CVSup com o verbo “meter”, isso porque, como o verbo original é neutro e não-marcado do ponto de vista semântico, ele sofre bleaching, permitindo a formação de expressões em que não dá contribuições significativas à predicação. O PB, por apresentar, na sua estrutura cognitiva original, o traço Manner, bloqueia essa possibilidade, tendo sempre uma marca semântica mais forte, tentando mais à formação de expressões semifixas que sofrem metáfora/metonímia a posteriori, não sendo o verbo produtivo como no PE para a formação de CVSup.

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GERUNDISMO: LINGUÍSTICO

VARIAÇÃO

GERUNDISMO: PREJUDICE

VARIATION

E

PRECONCEITO

AND

LINGUISTIC

Fábio Fernandes Torres Universidade Federal do Ceará Márluce Coan Universidade Federal do Ceará RESUMO Esta pesquisa centra-se no estabelecimento de critérios para definir uma perífrase gerundiva como gerundismo: forma, natureza temporal, aspecto e modalidade. Além disso, apresentamos hipótese acerca da origem do gerundismo, bem como tecemos considerações sobre preconceito linguístico, devido ao fato de que algumas construções com gerúndio são estigmatizadas enquanto outras não desencadeiam atitude preconceituosa. Palavras-chave: gerúndio; gerundismo; preconceito linguístico. ABSTRACT This research focuses on criteria to define a gerund periphrase as gerundismo: form, temporal nature, aspect and modality. Aditionally, we present a hypothesis about the origin of gerundismo, and offer considerations about linguistic prejudice, because of the fact that some gerund constructions are stigmatized while others do not give rise to prejudiced attitudes. Keywords: gerund; gerundismo; linguistic prejudice.

INTRODUÇÃO1 O uso de perífrases gerundivas, na codificação de tempo, tem sido objeto de discussão na mídia, disseminando-se a idéia equivocada de que este emprego constitui o que se passou a chamar de gerundismo. Sendo 1

As considerações e os exemplos apresentados neste artigo integram o capítulo dois da dissertação intitulada “O gerúndio na expressão de tempo futuro: um estudo sociofuncionalista”, de Fábio Fernandes Torres, sob orientação da Profa. Dra. Márluce Coan.

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legítimo e prescrito nas gramáticas o uso do gerúndio, faz-se necessário verificar as restrições, se houver, às perífrases emergentes. É preciso esclarecer que nem todas as construções em que o gerúndio se alia a outro verbo para expressar tempo, seja passado, presente ou futuro, podem ser consideradas gerundismo. Se tratássemos todas as construções gerundivas como gerundismo, teríamos de considerá-las como variantes de uma mesma variável2, o que definitivamente não é. O gerúndio pode aliarse a outro verbo para expressar diferentes tempos e modos em Português brasileiro e acrescenta a essas construções nuanças aspectuais diferentes. Em Eu estava correndo das 8 às 10 da manhã de ontem, há uma situação anterior ao momento de fala, uma expressão de tempo passado, que tem como verbo principal uma forma no gerúndio, que expressa uma situação durativa e acabada no passado; em Estou estudando o gerúndio, a situação codificada pela perífrase com o gerúndio é não-acabada no presente, é concomitante ao momento de fala e expressa duratividade; em Amanhã estou viajando para Curitiba, a situação verbal é posterior ao momento de fala, uma expressão de tempo futuro, igualmente durativa, mas não-começada. Essas construções (perífrases com dois verbos) são antigas na língua, não sofrem estigmas e são variantes de variáveis diferentes, expressam passado, presente e futuro, respectivamente. Em se tratando das construções gerundivas com três verbos, é preciso estabelecer critérios que procurem demonstrar diferenças entre uma e outra construção, visto que sobre o emprego dessas construções têm sido alardeados mitos e radicado o preconceito linguístico e são justamente essas construções as chamadas indiscriminadamente de gerundismo. Neste artigo, propomos uma definição de gerundismo baseada em critérios como forma, natureza temporal, aspecto e modalidade3, que o incluem como uma variante na codificação de tempo futuro em Português brasileiro contemporâneo; apresentamos considerações sobre o surgimento da perífrase gerundiva e, ao final, tratamos de preconceito linguístico.

2

3

Conforme Labov (1978), dois enunciados que se referem ao mesmo estado de coisas com o mesmo valor de verdade constituem-se como variantes de uma mesma variável (regra variável). As considerações sobre o complexo Tempo-Aspecto-Modalidade são pautadas em Givón (1984).

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1. Por uma definição de gerundismo4 Considerando que a expressão de tempo futuro em Língua Portuguesa é codificada (a) pela forma sintética – futuro simples (Cantarei); (b) pela perífrase com o verbo haver (Hei de cantar); (c) pela perífrase com o verbo ir (Eu vou cantar); (d) pelo presente (Amanhã, eu canto) e (e) por meio de perífrases com gerúndio, a construção denominada gerundismo deve satisfazer aos seguintes critérios: a) Tempo – a construção denominada gerundismo deve ser uma variante da codificação de futuro do presente do indicativo, ficando descartadas as variantes de futuro do pretérito (eu iria estar viajando na semana que vem) e futuro do subjuntivo (quando eu puder estar viajando, eu aviso). b) Aspecto – a construção denominada gerundismo deve expressar a noção de aspecto durativo5. c) Referência – as perífrases gerundivas apresentam comportamento diferenciado, o que nos permite organizá-las em três subvariáveis: futuro iminente (eventos que envolvem o momento de fala e se estendem para o futuro, cuja ênfase durativa está no início), futuro médio (eventos situados à direita do momento de fala, em que não se especifica o início e o término de sua duração) e futuro resultativo (situado à direita do momento de fala, com ênfase no término do evento). A construção denominada gerundismo deve ocorrer à direita do momento de fala, configurando o futuro médio. d) Substituição – o paradigma em que a construção denominada gerundismo ocorrer deve permitir a comutação por outras formas que expressem tempo futuro, ou seja, o contexto de tempo futuro deve permanecer o mesmo a ponto de permitir a substituição de uma forma por outra, sem comprometer o significado referencial em um mesmo enunciado. Vejamos o exemplo:

4

A definição que propomos aqui dá conta do gerundismo como variante da expressão de tempo futuro que permita a comutação com outras formas de codificação de tempo futuro (futuro simples, perifrástico etc), contudo há casos considerados como gerundismo em situações como: pretendo neste próximo semestre começar uma faculdade PRA TA MELHORANDO meu currículo PRA TA CRESCENDO mais (corpus Torres).

5

Conforme Givón (1984), Aspecto refere-se à noção de delimitação do período de tempo.

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(1)

Eu acho que daqui um tempo VAI TA CHEGANDO não nos interiores no sertão mas também na cidade na cidade grande. (corpus Torres6). ...vai chegar... ...chegará... ...chega...

Os critérios acima são suficientes para inserir o gerundismo em contexto de variação de tempo futuro, mas nem todas as construções gerundivas que expressam tempo futuro são tratadas como gerundismo, razão pela qual consideramos, na sequência, forma, natureza temporal, aspecto e modalidade na análise do status das construções gerundivas. As construções gerundivas, na codificação de tempo futuro, podem ser encontradas em português brasileiro contemporâneo nas seguintes formas: (I) ir (presente) + estar (infinitivo) + gerúndio (O grande P. C. vai estar conversando com a gente!); (II) modal (presente) + estar (infinitivo) + gerúndio (eu posso estar marcando a consulta outro dia); (III) ir (presente) + qualquer infinitivo + gerúndio (Vamos continuar tentando para que o senhor possa receber a encomenda em sua casa); (IV) modal (presente) + qualquer infinitivo + gerúndio (Se você não se prevenir, você pode acabar se contaminando); (V) estar (futuro do presente) + gerúndio (estaremos marcando a nova data das provas); (VI) estar (presente) + gerúndio (estou pedindo o relatório na semana que vem). As construções acima são diferentes quanto à forma. As construções (V) e (VI) não podem ser consideradas gerundismo, visto que, conforme Menon (2004), construções como (V) são antigas na língua, portanto não são emergentes, como se espera ser o fenômeno em discussão; a construção (VI) é uma forma de presente com função de tempo futuro e seu uso não 6

Corpus organizado por Fábio Fernandes Torres, em 2009. Integram o corpus 60 entrevistas realizadas com informantes de Fortaleza/CE, estratificados de acordo com sexo, faixa etária e profissão.

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causa estranhamento, visto que essa possibilidade de codificação (o presente pelo futuro) é gramaticalmente prevista. Cunha (1986), por exemplo, embora não trate dessa construção e dessa função especificamente, afirma que estar + gerúndio indica ação durativa e ir + gerúndio indica ação durativa que se realiza progressivamente ou por etapas sucessivas, o que nos permite dizer que a forma, indubitavelmente, uma forma de presente, está em perfeito acordo com a gramática normativa quando expressa tempo futuro. Essa discussão leva-nos a fazer uma primeira afirmação: o gerundismo é típico das construções gerundivas com três verbos. As construções com três verbos são aparentemente semelhantes quanto à forma, visto que os verbos que aparecem, na primeira e segunda posições, podem expressar funções outras, como nuanças modais diferentes. Isso se deve ao seguinte: (i) o verbo que preenche a primeira posição pode ser um mero auxiliar (ir) ou um verbo modal (poder, dever, querer, entre outros); (ii) o verbo que preenche a segunda posição pode ser estar (importante para a caracterização de gerundismo) ou outro verbo no infinitivo que pode emprestar à construção nuanças aspectuais diferentes (telicidade, duratividade, pontualidade, iteratividade, entre outras)7. A relevância do aspecto para uma definição de gerundismo pode ser observada nos seguintes exemplos: (2) (3) (4) (5)

Eu vou acabar jantando mais cedo hoje! (telicidade) Eu vou continuar estudando o gerúndio. (duratividade) Eu vou acabar chegando exatamente às 10 horas, mais cedo que pensava. (pontualidade) Eu vou ficar trocando as flores dos vasos a cada meia hora. (iteratividade)

As duas considerações acima são bastante pertinentes para a discussão que ora empreendemos. Levando-se em consideração a observação (i), essas construções mesmo sendo iguais quanto ao número de verbos (uma perífrase com três verbos) e embora mantenham o mesmo significado referencial, o que nos permite mantê-las como variantes de uma mesma variável, de modo algum são iguais em todos os sentidos e suas diferenças precisam ser elucidadas, uma vez que, ao mudar o verbo modal, teremos modalidades diferentes: 7

Há de se levar em consideração que, embora o verbo no infinitivo empreste à perífrase diferentes nuanças aspectuais, os advérbios também desempenham essa função, daí a diferença aspectual entre os exemplos 02 e 04.

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a) epistêmica (no sentido de possibilidade): (6)

João deve estar entregando o relatório amanhã.

b) deôntica (no sentido de obrigação): (7)

Você deve estar pagando a fatura ainda hoje.

Contudo, essas diferenças não são suficientes para se dizer com exatidão o que configura de fato o gerundismo, olhando-se apenas o tipo de verbo da primeira posição: auxiliar ou modal. Quanto à observação (ii), as diferenças entre uma construção e outra podem ser mais perceptíveis a ponto de não tratarmos todas as construções como gerundismo. O verbo que aparece na segunda posição, sendo um verbo de aspecto imperfectivo, mesmo que acrescido de nuanças aspectuais diferentes (telicidade, por exemplo), pode ser mais adequado8 a uma construção durativa, como são as construções com gerúndio, a que se costuma chamar de bom uso do gerúndio. Vejamos os exemplos: (8)

Se eu jogar, vou acabar ganhando.

(9)

Se eu jogar, vou continuar ganhando.

A diferença entre essas duas construções se estabelece pela forma e pelas nuanças aspectuais expressas. Os exemplos (8) e (9) codificam o tempo futuro diferentemente, como um futuro resultativo e como um futuro já começado, respectivamente. O verbo acabar não expressa uma duração, aponta para um determinado fim, emprestando à perífrase um caráter de aspecto resultativo e, nesse caso, a nuança aspectual do verbo no infinitivo não é incompatível com a duratividade expressa no gerúndio. Essa construção seria pouco propensa a estigmas. Quanto ao verbo continuar, expressa uma ação durativa, também dividida em fases, mas não se pode identificar seu início e seu fim, é uma ação durativa por excelência. Dificilmente, a construção em (9) seria estigmatizada. 8

Se um verbo no infinitivo pode ser visto como constituído de uma duração interna, como dividido em fases (início, meio e fim), seu uso em perífrases gerundivas é apropriado (adequado), dado o caráter durativo dessas construções.

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Em se tratando dos casos em que a segunda posição é do verbo estar, um verbo de estado permanente, estar funciona como auxiliar e enfatiza a noção aspectual do outro verbo da perífrase. Esse traço é importante para a caracterização de gerundismo, visto que são justamente as construções gerundivas com estar as mais estigmatizadas. Considerem-se as seguintes construções: (10) Eu vou ficar chutando a bola. (11) Eu vou estar chutando a bola. Essas construções têm o mesmo verbo no gerúndio, o verbo chutar, considerado um verbo tipicamente de aspecto pontual, contudo não há dúvidas quanto à duratividade expressa nas construções acima. Na construção (10), o verbo ficar, embora seja um verbo de estado (manutenção do estado), empresta à perífrase um caráter iterativo, o que nos permite inferir que o falante do enunciado (10) chutará a bola por tempo indeterminado. O mesmo não se pode afirmar da construção (11), causando estranheza o fato de a perífrase com um verbo pontual no gerúndio expressar duratividade, já que, neste caso, o aspecto iterativo está descartado. O mesmo fato ocorre nos exemplos seguintes: (12a) Eu vou estar enviando os convites. (12b) Eu vou ficar enviando os convites. (13a) Eu vou estar transferindo cem reais para sua conta. (13b) Eu vou ficar transferindo cem reais para sua conta. Enviar é um processo único, sem distinção de fases, contudo, quando aparece em construções como (12b), identifica-se iteratividade, repetições do processo, compatível com a duratividade expressa pelo gerúndio. Da mesma forma, transferir (dinheiro) é um processo único, cuja repetição só pode ser evidenciada pela perífrase em (13b), podendo-se entender que

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o falante desse enunciado fará transferências (indefinidamente, até que se esgote o saldo). Essa interpretação seria forçada, caso a atribuíssemos ao significado de (13a), a não ser que acrescentássemos expressões como várias vezes, por dez vezes, indefinidamente etc. É preciso notar que teríamos, necessariamente, de adicionar advérbios ou expressões adverbiais que dêem idéia de repetição, porque se adicionássemos expressões que forneçam a idéia de duração, continuaria a interpretação de um evento único, conforme exemplo seguinte: (12c) Eu vou estar transferindo cem reais (por trinta minutos, por meia hora, a tarde inteira, etc). (13c) Eu vou estar enviando os convites (por trinta minutos, por meia hora, a tarde inteira, etc). O que soaria estranho em (12c) e em (13c) seria o fato de o falante desses enunciados precisar de muito tempo para realizar uma ação que pode ser feita em poucos minutos, mas uma interpretação iterativa seria, ainda, muito forçada. Ficar, por si próprio, expressa a noção de aspecto iterativo; estar necessita de expressões adverbiais adicionais para expressar essa mesma noção. Essa discussão leva-nos a fazer uma segunda afirmação: das construções com três verbos, só poderão ser consideradas gerundismo aquelas em que o verbo da segunda posição é o verbo estar, funcionando como auxiliar. Apresentada a importância da forma verbal e do aspecto para a discussão que vimos empreendendo, consideremos, agora, a modalidade e a natureza temporal expressas pelas perífrases gerundivas. Se o futuro possui, conforme Fiorin (1996), um valor temporal que não permite expressar uma modalidade factual, no caso das construções gerundivas, essa avaliação tem de ficar muito mais evidente, caso se queira estabelecer uma verdade mais provável, como no exemplo seguinte: (14) Amanhã, com certeza, vai estar chovendo.

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No caso do exemplo acima, esse estado de coisas só será uma fato verdadeiro se levarmos em consideração o contexto em que o enunciado foi produzido (período de chuvas, baseado nas previsões meteorológicas, no conhecimento do clima do local etc). Então, o exemplo (14) não pode ser confundido com gerundismo, ele expressa tempo futuro e uma modalidade mais provável, aceita pelos falantes, que não depende da forma verbal usada para expressar tempo futuro, mas da expressão “com certeza” e não poderia ser confundido com uma promessa ou com um estado de coisas possível. Isso nos leva a fazer uma terceira afirmação: o gerundismo expressa um estado de coisas possível, uma modalidade não-factual. São enunciados que não expressam certeza, mas promessa ou possibilidade de um determinado fato ocorrer. Associada ao aspecto e à modalidade está a natureza temporal das construções gerundivas. Observem-se os seguintes exemplos: (15) Quando você chegar, eu já vou estar dormindo. (16) Amanhã, João vai estar viajando. (17) Amanhã, João vai confirmar que, na semana que vem, ele vai estar viajando. Nenhuma das construções poderia ser tratada como gerundismo, visto que o aspecto expresso pelas perífrases com gerúndio mantém a natureza durativa do gerúndio nos três exemplos. No caso do exemplo (15), há uma ação durativa futura concomitante à outra. (15) [Quando você chegar] [eu já vou estar dormindo] O mesmo é válido para o exemplo (16), no qual o advérbio amanhã engloba toda a ação expressa pela construção com gerúndio: (16) [Amanhã, (João vai estar viajando)] No exemplo (17), é a oração na semana que vem que engloba a construção com gerúndio:

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(17) [Na semana que vem (ele vai estar viajando)] Em todos os exemplos, há uma condição que permite a expressão de duratividade. Se substituíssemos a perífrase por uma forma simples, essa noção aspectual não mais poderia ser expressa pela forma verbal substituta, mas por advérbios. No caso do exemplo (15), dificilmente se poderia expressar duratividade por uma forma simples, mesmo com o auxílio de advérbios: (15.1)

Quando você chegar, eu já dormirei (há horas) (?)

(15.2)

Quando você chegar, eu já durmo (há muito tempo) (?)

(15.3)

Quando você chegar, eu já estarei dormindo.

No caso dos exemplos (16) e (17), seriam necessários advérbios para marcar a duratividade, caso substituíssemos a perífrase por uma forma simples: (16.1)

Amanhã, João viajará (o dia inteiro).

(17.1)

Na semana que vem, João viajará (a semana inteira).

Essa discussão leva-nos a fazer uma quarta afirmação: o gerundismo, como variante da codificação de tempo futuro, deve ocorrer posteriormente ao momento de fala e ao momento de referência ou a qualquer outra expressão de futuridade, mas nunca pode ser cotemporal ao momento de referência, como nos exemplos acima, que não se configuram gerundismo. Com base na discussão que ora empreendemos, propomos a seguinte definição para gerundismo: (i) O gerundismo é tipicamente uma construção gerundiva com três verbos; (ii) Das construções com três verbos, só poderão ser consideradas gerundismo aquelas em que o verbo da segunda posição é o verbo estar, funcionando como auxiliar; (iii) O gerundismo expressa um estado de coisas possível, uma modalidade nãofactual. É um enunciado que não expressa certeza, mas promessa ou possibilidade de um determinado fato ocorrer;

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(iv) O gerundismo, como variante da codificação de tempo futuro, ocorre posteriormente ao momento de fala e ao momento de referência ou a qualquer outra expressão de futuridade, mas nunca é cotemporal ao momento de referência. Ao se propor uma escala das construções gerundivas, assumimos que mais de um critério tem de ser levado em consideração. Assim ficariam distribuídas essas construções da mais representativa do gerundismo (construção em I) à menos representativa (construção em VI), a ponto de não ser considerada gerundismo, conforme definição proposta nesta seção: (I) ir (presente) + estar (infinitivo) + gerúndio (O grande P. C. vai estar conversando com a gente!); (II) modal (presente) + estar (infinitivo) + gerúndio (eu posso estar marcando outro dia); (III) ir (presente) + qualquer infinitivo + gerúndio (Vamos continuar tentando para que o senhor possa estar recebendo a encomenda em sua casa); (IV) modal (presente) + qualquer infinitivo + gerúndio (Se você não se prevenir, você pode acabar se contaminado); (V) estar (futuro do presente) + gerúndio (estaremos marcando a nova data das provas); (VI) estar (presente) + gerúndio (estou pedindo o relatório na semana que vem).

2. A origem do gerundismo: uma hipótese O futuro simples em Língua Portuguesa é derivado de uma formação perifrástica na língua-mãe, o Latim, a partir da aglutinação do verbo habere, auxiliar, com o infinitivo de um outro verbo. Esse processo que pressupõe variação e mudança não é um processo acabado no português contemporâneo: pesquisas variacionistas, tais como Gibbon (2000), Santos (2000) e Oliveira (2006), mostram que há um predomínio estatístico de frequência de uso do futuro perifrástico sobre o futuro simples, de forma que o processo parece ser cíclico e não linear. A expressão de tempo futuro obedeceu a um esquema:

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forma simples > forma perifrástica > forma simples > forma perifrástica amabo > amare habeo/habeo amare (em Latim) amar hei/hei de amar > amarei > vou amar (em Português) Partindo-se desse fato, podemos lançar uma hipótese para o aparecimento da perífrase com três verbos, expressando tempo futuro. A forma simples foi decomposta em uma forma perifrástica, por exemplo, amarei > vou amar; e essas formas coexistem no português contemporâneo com outras formas de expressão de futuro, como aquelas formadas pelo futuro simples + gerúndio (estarei amando). Se o futuro simples não é tão recorrente em dados de fala, sendo substituído, conforme Oliveira (2006), tanto em contextos formais quanto informais pelo futuro perifrástico, é possível que, em estarei amando, o falante substitua, na primeira posição, o verbo estarei (visto como auxiliar) por vou estar, forma mais usada e reconhecidamente preferida para expressar tempo futuro, resultando em uma perífrase vou estar amando. Vejamos o diagrama abaixo: hei de estar > estarei > vou estar estarei amando > vou estar amando Nesse caso, o falante mantém a codificação de tempo futuro com a perífrase ir (presente) + infinitivo, mas como sua necessidade não é a mera expressão de tempo futuro, mas também de aspecto e modalidade, o resultado é uma perífrase com gerúndio. Essa hipótese está de acordo com o que se tem verificado no processo de codificação de tempo futuro na Língua Portuguesa. Para continuarmos essa discussão, tomemos as noções modais de certeza e incerteza, em natureza escalar, e consideremos os seguintes exemplos: (18) Eu ligarei para a senhora na segunda-feira (se for possível, se o telefone estiver funcionando, se eu estiver trabalhando, se meu chefe autorizar etc).

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(19) Eu vou ligar para a senhora na segunda-feira (se for possível, se o telefone estiver funcionando, se eu estiver trabalhando, se meu chefe autorizar etc). (20) Eu vou estar ligando para a senhora na segunda (se for possível, se o telefone estiver funcionando, se eu estiver trabalhando, se meu chefe autorizar etc). Não há dúvidas de que o tempo dos exemplos é futuro, as formas usadas para codificar essa função são, inclusive, intercambiáveis, sem prejuízo para essa codificação. Contudo, há diferenças modais entre as formas: em (18), embora ainda se possa identificar um valor modal ligado ao temporal, há uma intenção mais segura, parece mais provável que se realize a ação; em (19), há intenção de se realizar a ação expressa pela perífrase, marcando-se também o tempo futuro; mas, em (20), a informação parece indicar que há menos certeza em termos de execução da ação. A propósito, o que está entre parênteses pode ser interpretado pelo interlocutor levandose em consideração a forma em (20). Se se quisesse dizer o que está entre parênteses, em (18) e (19), teríamos de escrever, de fato, todo conteúdo dos parênteses, o que não parece necessário quando se usa a perífrase gerundiva, interpretação, talvez, mais ligada ao preconceito linguístico do que ao valor semântico da construção em si. Tomando-se a noção de certeza e incerteza em natureza escalar, já que se trata de eventos futuros, a forma é suficiente para expressar menos certeza em (20) do que em (18) e (19), isto é, mesmo em se tratando de possibilidade, há um grau maior de certeza associado à forma verbal em (18), um grau de certeza intermediário associado à forma verbal em (19) e um menor de certeza associado à forma verbal em (20). Como falar de economia linguística nesse caso? Não há dúvidas de que, na escolha de uma forma simples em vez de uma forma perifrástica, há uma economia do ponto de vista estrutural, mas é preciso considerar que a perífrase gerundiva acumula outras funções e seu uso na língua evita que se acrescentem mais itens linguísticos para expressar modalidade (incerteza, dúvida, possibilidade etc) e aspecto (duratividade, telicidade, pontualidade, iteratividade), constituindo-se uma alternativa para o falante expressar mais com menos itens linguísticos.

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3. O gerundismo e o preconceito linguístico Nas seções anteriores, empreendemos uma discussão que teve por objetivo estabelecer uma definição para gerundismo, analisando as perífrases gerundivas em relação à forma, à natureza temporal, ao aspecto e à modalidade. Em seguida, lançamos uma hipótese sobre o surgimento das perífrases gerundivas com três verbos como uma variante das formas de codificação de tempo futuro, supondo que a formação de perífrases desse tipo é relativamente recente no Português, o que pode explicar, em termos, o preconceito linguístico atribuído ao emprego dessas perífrases. A noção de preconceito, no que diz respeito à linguagem, parece ter uma relação estreita com o surgimento de formas alternativas e novas para expressar um determinado estado de coisas na língua, visto que o que é novo em outras áreas do conhecimento, como a da tecnologia, por exemplo, tem recebido uma valorização positiva pela sociedade moderna, mas o que é novo em linguagem sofre resistência e preconceito. A sociedade contemporânea, sem dúvida, está extremamente ligada a inovações de todos os tipos. A última década do século passado e a primeira década do presente século estão marcadas por inovações tecnológicas e por uma distribuição parcialmente democrática das novas tecnologias. A internet proporcionou ao homem moderno o acesso quase irrestrito a informações de todos os tipos. Estamos sempre em alerta, com a sensação de “o que vem por aí?” e quase sempre esse novo é bem acolhido. O que é novo, contudo, até mesmo na tecnologia, vem ocupar um lugar que não era seu e por isso entra em competição com o elemento que realizava determinada função, considerado agora obsoleto e ameaçado pelo “novo e desconhecido”. Assim aconteceu com a máquina de escrever, substituída pelo computador; com o telefone fixo, constantemente ameaçado pela praticidade do telefone móvel. Nas palavras de Bagno (2000), o “novo” assusta, subverte as certezas, compromete as estruturas vigentes. Assim, dizemos que não há lugar para o “novo”. O que é novo chega sorrateiro, mostra sua diferença, faz um jogo de marketing e, quando menos se espera, ocupa um espaço que não estava especificamente reservado para ele, e, só depois, conseguimos valorizar suas qualidades a ponto de afirmarmos “agora vivemos melhor e com mais conforto, graças à/ao...”

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Contudo, essa receptividade para o novo não ocorre em todos os níveis da experiência humana. No que diz respeito à linguagem, o que é novo é quase sempre tachado como inferior, impróprio, ruim, modismo, entre outros. Labov (2001), por exemplo, observa que, geralmente, as pessoas aprovam as novas danças, novas músicas e novos aparelhos eletrônicos, mas não se ouve elas dizerem “é maravilhosa a forma como os jovens falam hoje, é melhor que o modo como falávamos quando éramos crianças” (LABOV, 2001, p. 6).9 Essa atitude é responsável pelo preconceito linguístico. É preciso debater como essa prática, a do preconceito linguístico, tem sido valorizada, mesmo diante das constantes investidas de linguistas para desmitificar essas posturas. A sociedade moderna tem se mostrado muito propensa a garantir os direitos das minorias ou de grupos segregados. Não raramente, têm sido criadas leis de amparo e de proteção a grupos como os homossexuais, os afrodescendentes, dentre outros, na tentativa de garantir a essas pessoas o respeito, a dignidade, o acesso aos serviços públicos. Manifestações públicas de solidariedade a esses grupos estão cada vez mais comuns e os resultados têm sido comemorados. São sempre ações bem intencionadas, responsáveis por tirar do abandono, do desprezo, da incompreensão e da segregação pessoas que experimentam a dor do sofrimento pelo simples fato de serem diferentes, de pertencerem a outro grupo. Paradoxalmente, a noção de diferença parece estar em voga na atualidade. O que vemos é uma verdadeira busca por implementação da identidade ou de um modo de vida particular, a cultura punk10 é um exemplo disso. Infelizmente, na contramão dessas atitudes tão nobres e benevolentes, está a ratificação do preconceito linguístico. É lamentável que, num Estado democrático em que a garantia de direitos é uma atitude imperativa, a prática do preconceito linguístico encontre respaldo e aprovação nos veículos de comunicação disponíveis. Numa postura de educação às avessas, a 9

10

Traduzido livremente de:”It’s wonderful the way young people talk today. It’s so much better than the way we talked when I was a kid.” O termo cultura punk aplica-se aos “estilos de produção cultural que possuem certas características comuns àquelas ditas punk, como por exemplo, o princípio de autonomia do faça-você-mesmo, o interesse pela aparência agressiva, a simplicidade, o sarcasmo niilista e a subversão da cultura. Entre os elementos culturais punks estão: o estilo musical, a moda, o design, as artes plásticas, o cinema, a poesia, o comportamento (podendo incluir ou não princípios éticos e políticos definidos), expressões linguísticas, símbolos e outros códigos de comunicação”. (Fonte: http:// pt.wikipedia.org/wiki/Cultura_punk).

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contribuição que, em grande parte, a mídia tem dado para a discussão das questões relacionadas à língua é para ratificar o preconceito linguístico. Em linguagem, tornou-se uma prática comum a supervalorização dos compêndios gramaticais, criando, assim, uma grande confusão entre língua e gramática normativa, a ponto de se promover a segregação de indivíduos pura e simplesmente pelo fato de eles desobedecerem a algumas leis do mandamento gramatical. Fundamentado nessa confusão, o preconceito, não importa qual seja o seu nível, é responsável pela segregação dos falantes em dois grandes grupos: os que conhecem a língua e são bons usuários dela versus os que não conhecem a língua e são deturpadores dela. Ao primeiro grupo, pertence uma classe privilegiada, com dons inquestionáveis de dominar o idioma; ao segundo, a grande maioria da população brasileira, acusada de assassinar o idioma. Não raramente, pertencem ao grupo acusado de deturpar a língua pessoas da zona rural, com pouca ou nenhuma instrução formal, ou pessoas da zona urbana, também segregadas dos serviços públicos básicos, como educação, saúde e saneamento, representantes das periferias das grandes cidades. É o resultado de um país extremamente marcado pela má distribuição de renda e de serviços públicos, um país marcado por uma exploração colonizadora que dividiu a sociedade entre ricos e pobres, brancos, pretos e mestiços, colonizador e colonizado e, em pleno século XXI, ainda encontra formas de segregar cidadãos por meio do preconceito linguístico. Sob a égide desse discurso, lemos em jornais e na internet colunas inteiras que ganham lugar de destaque pelo tom de deboche e de desprezo de seus autores para com outros registros da Língua Portuguesa, em nome de um ufanismo demagogo, oportunista e falso de defesa da Língua Portuguesa e de um amor ao idioma. Essas colunas estão, geralmente, recheadas de preconceitos, quase sempre um preconceito que se volta para o usuário de determinado registro linguístico, que tenta culpar o brasileiro por deturpar a Língua Portuguesa, ainda com um sentimento subserviente, colonizado e com os olhos voltados para o padrão europeu, sob o pretexto, conforme Bagno (2000), de que o que não é falado em Portugal simplesmente não é Português.

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Dentre essas posturas de defesa, merece destaque o uso do gerúndio em perífrases verbais para expressar tempo futuro. Em artigo publicado inicialmente no Jornal da Tarde / O Estado de São Paulo, na edição de 16/02/2001, o jornalista Ricardo Freire saiu em defesa da Língua Portuguesa em um artigo intitulado Manifesto Antigerundista11. Nesse artigo, o jornalista reconhece o fenômeno linguístico como “uma praga terrível da comunicação moderna”, “vício maldito” e “infelicidade linguística”. O que o jornalista não levou em consideração, ao redigir o manifesto, foi o fato de a Língua Portuguesa ser uma língua viva, e como tal, está submetida a processos de variação e mudança, fenômenos tão importantes para todas as línguas, responsáveis inclusive pelo surgimento de novas línguas, como a que ele intenciona defender. Se essa verdade fosse negada, teríamos de afirmar que espanhóis, italianos e franceses falam o Latim. Falamos uma língua que, por se distanciar do Latim padrão ou clássico, por sofrer os mesmos processos de variação e mudança a que todas as línguas estão submetidas, diferenciou-se a ponto de ser considerada uma nova língua. Esses processos aconteceram em todas as regiões dominadas pelo império romano e foram responsáveis pelo surgimento das línguas neolatinas. O jornalista também desconsiderou que a codificação de tempo futuro em Língua Portuguesa é um fenômeno reconhecidamente em variação, que pode ser codificado por várias formas, dentre elas estão as perífrases com gerúndio: (I) ir (presente) + estar (infinitivo) + gerúndio; (II) modal (presente) + estar (infinitivo) + gerúndio; (III) ir (presente) + qualquer infinitivo + gerúndio; (IV) modal (presente) + qualquer infinitivo + gerúndio; (V) estar (futuro do presente) + gerúndio; (VI) estar (presente) + gerúndio. Se um fenômeno está em variação, uma variante não pode ser considerada melhor que outra, o que pode ser verificado é o prestígio social entre uma variante e outra. Trata-se de questões de adequabilidade e aceitabilidade e não de conceitos como certo e errado. De acordo com Bagno (2000), só se poderia considerar erro de português um enunciado que não 11

FREIRE, Ricardo. Manifesto Antigerundista. Disponível em acesso em 03 de maio de 2007. FREIRE, Ricardo. Em 2004, Gerundismo Zero. Disponível em acesso em 19 de junho de 2007.

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fosse representativo de nenhuma variedade do português, mas um fenômeno observado em vários setores da sociedade não poderia ser considerado erro. No mínimo, diríamos que é um fenômeno que precisa ser estudado, ter mapeados seus contextos de usos e suas funções. Sendo um fenômeno em variação, o trabalho do jornalista, por melhor que tenha sido a intenção, torna-se inócuo, visto que é impossível barrar um fenômeno que é próprio da língua. Por mais que as gramáticas normativas de Língua Portuguesa insistam em afirmar que expressamos o futuro em Língua Portuguesa pelo futuro do presente simples, as recentes pesquisas, tais como Gibbon (2000), Santos (2000) e Oliveira (2006), que trataram da variação de tempo futuro mostraram que, em Português Brasileiro, principalmente na fala, há uma preferência de uso, observada estatisticamente, pela forma perifrástica. Se fossem eficientes as tentativas de barrar fenômenos em variação, o fato de as lições de gramática normativa serem tão valorizadas pela mídia e continuarem a ser repetidas, por sinal sem grandes mudanças, seria suficiente para manter o sono do jornalista: o que ele denomina indiscriminadamente de gerundismo não teria a menor chance. Mas, felizmente, em língua as coisas não funcionam assim. A Língua Portuguesa falada no Brasil é minha, do jornalista, do operador de telemarketing, do vendedor, do professor, é de todos e não é de ninguém por mais paradoxal que essa afirmação possa parecer. É de cada um no sentido de que cada um é falante nativo e legítimo representante dessa língua, mas não é no sentido de que sozinho não se pode barrar ou começar um fenômeno linguístico. Outra ação protecionista em favor da Língua Portuguesa foi a do exgovernador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (DEM), que demitiu o gerúndio através do Decreto Nº 28.314, de 28 de setembro de 2007, publicado no Diário Oficial do Distrito Federal. O GOVERNADOR DO DISTRITO FEDERAL, no uso das atribuições que lhe confere o artigo 100, incisos VII e XXVI, da Lei Orgânica do Distrito Federal, DECRETA: Art. 1° - Fica demitido o Gerúndio de todos os órgãos do Governo do Distrito Federal. Art. 2° - Fica proibido a partir desta data o uso do gerúndio para desculpa de INEFICIÊNCIA.

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Art. 3° - Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação. Art. 4º - Revogam-se as disposições em contrário. Brasília, 28 de setembro de 2007. 119º da República e 48º de Brasília JOSÉ ROBERTO ARRUDA12 Segundo Santos (2008), pelos esclarecimentos que se seguiram à publicação do Decreto, dados pelo próprio governador e seus assessores, o problema era com o gerundismo e não com o gerúndio, por causa do abuso da forma usada pelos funcionários públicos para “enrolar”. Para a autora, se a atitude do governador tornou sua administração mais eficiente, ainda é cedo para se saber, mas em nada tem a ver com a demissão do gerúndio. A autora, que fez sua pesquisa em Brasília, afirma: A justificativa dessa demissão baseada na explicação de que o gerúndio não combina com governo eficiente, pois um governo assim está sempre com a coisa feita e nunca fazendo, reforça o mito de que funcionários públicos não trabalham porque são acomodados e de que estão protegidos pela estabilidade e tenta camuflar, por meio desse álibi, a má gestão e a corrupção, as verdadeiras causas do péssimo serviço prestado à população. (SANTOS, 2008, p. 86) Não é a primeira vez que se tenta barrar, por meio de legislação, um fenômeno linguístico. Não faz muito tempo, o deputado federal Aldo Rebelo saiu em “defesa da língua”, com tão comentado e já célebre Projeto de Lei n°1676, de 1999, que “Dispõe sobre a promoção, a proteção, a defesa e o uso da Língua Portuguesa e dá outras providências.”13 Essas atitudes bem demonstram como nossos políticos e a mídia brasileira desconhecem, ou pelo menos ignoram, a Linguística moderna, uma ciência que 12

13

DIÁRIO OFICIAL DO DISTRITO FEDERAL, Ano XLI, Nº188. Disponível em: >. Disponível em > acesso em 17/10/2008.

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desde o fim do século XVIII, vem construindo um saber científico sobre as línguas humanas. Essa ciência – a linguística – já está solidamente estabelecida nas universidades do mundo todo e vem acumulando um saldo apreciável de observação e análises que corroem até o cerne tanto a reverência quase religiosa às velhas gramáticas, quanto o discurso mítico do senso comum. (FARACO, 2001, p. 37-38) Essas posturas protecionistas bem demonstram o anti-cientificismo com que esses defensores tratam fenômenos da língua, como afirma Bagno (2001, p.60): A falta de informação científica é evidente em todas as afirmações do purismo linguístico que, há vários séculos, vêm jurando de pé junto que a Língua Portuguesa está sendo assassinada, que dentro de poucos anos ela não vai existir mais, que os estrangeirismos vão destruir a estrutura do português, que o desprezo dos falantes pela sua própria língua vai condená-la ao desaparecimento etc, etc. A Língua Portuguesa, embora se tenha preconizado seu trágico fim, não está em crise, ocorre justamente o contrário, o Português é cada vez mais falado e difundido mundo afora, segundo Bagno (2001). Voltando ao caso do governador, cuja atitude foi abusiva e autoritária, não nos parece razoável que demitir uma forma linguística seja a atitude esperada para se melhorar os serviços públicos. Geralmente, nas empresas, quando um funcionário não cumpre com eficiência as tarefas a ele atribuídas, a postura esperada é que este funcionário seja demitido e não impedido de falar uma ou outra forma verbal, de pedir desculpas ou de justificar-se. Mas o governador optou pela segunda alternativa. A nossa sociedade parece ser profícua ao preconceito linguístico. Marcada que é pelas diferenças sociais, estabelecer a diferença entre os que sabem e os que não sabem o Português tem se mostrado uma postura não só

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aceita pelos meios de comunicação, bem como considerada louvável. Essa postura tem aberto espaço para o preconceito e intolerância linguísticos na mídia, palavras que à primeira vista parecem ser sinônimas, mas que, segundo Leite (2008), merecem ser definidas em separado. Para a autora, “preconceito é a idéia, a opinião ou o sentimento que pode conduzir à intolerância”, que por sua vez pode ser definida como “atitude de reagir com violência ou agressividade a certas situações” (LEITE, 2008, p. 20). A intolerância constitui “um comportamento, uma reação explícita a uma idéia ou opinião contra a qual se pode objetar” (LEITE, 2008, p. 20). Sendo a intolerância uma atitude de ódio, de agressividade quase irracional para com indivíduos e grupos de pessoas, com a maneira de ser, com o estilo de vida, com as crenças, com as convicções, com o modo de falar, ela pode se manifestar de vários modos, como com expressões do tipo “eu odeio a fala do carioca”, “eu não suporto o sotaque nordestino”, “eu não consigo falar com mineiro”, “eu odeio gerundismo”, entre outras. Essas atitudes são muito frequentes e precisam ser repensadas numa sociedade democrática. Para Leite (2008), a intolerância gera discursos sobre a verdade (ou verdades) bem como sobre a compatibilidade/incompatibilidade teórica ou prática de duas verdades que se contrapõem. O preconceito e a intolerância têm em comum a não aceitação da diferença, que se manifesta por comportamento de aversão ao outro. O preconceito não surge exclusivamente de uma dicotomia. Pode ser uma rejeição, um “não-querer”, um “não-gostar” sem razão, amorfos, e pode até mesmo não se manifestar; a intolerância, por sua vez, nasce necessariamente de julgamentos, de contrários, e se manifesta discursivamente. É resultado da crítica e do julgamento de idéias, valores, opiniões e práticas. (LEITE, 2000, p. 22). Para Fiorin (2002), os preconceitos aparecem quando se considera uma especificidade como toda a realidade ou como um elemento superior a todos os outros. Neste caso, tudo o que é diferente é visto como inexistente, inferior, feio ou errado. O autor afirma que a raiz do preconceito está na

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consideração das diferenças como patologia, erro, vício etc. e defende, ainda, que, no caso do uso da língua, os conceitos de bonito e feio, usados para tachar os diferentes modos de falar, nada têm a ver com a língua, mas com um modo de perceber as diferenças no seio de uma formação social. Bagno (2003) chama atenção para a dimensão que a sociedade dá ao “erro” linguístico, visto que se o “erro” já se tornou uma regra na língua falada pelos cidadãos mais letrados, embora contrarie as regras da gramática normativa, não é motivo para espantos. Por outro lado, se o erro vem de alguém da classe sem prestígio social, assume proporções gigantescas. Para ele, “existem erros mais errados que outros” (BAGNO, 2003, p.28). Se for um falante da classe social de prestígio, diz-se que foi um lapso. A escala de erros tidos como graves é inversamente proporcional à posição do falante na escala de prestígio social: quanto mais baixo ele estiver na pirâmide social, mais erros graves é passivo de cometer. A elite letrada tem seus “erros” perdoados porque no fundo quem dela faz parte “erra” por descuido, mas “sabe” falar a língua. Dessa forma, o preconceito linguístico não tem sustentação nem respaldo científico, como esclarece Neves (2006, p. 156): (...) a proposta e a manutenção de uma dicotomia com certo x errado, no exame do uso linguístico, não são condenáveis simplesmente pelo que elas poderiam representar de antidemocrático e preconceituoso, mas, especialmente, pelo que elas representam de anticientífico e antinatural, já que certo e errado são categorias que nem emanam da própria língua nem, no geral, se sustentam por uma autoridade social legítima.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, discutimos o status das perífrases gerundivas, comumente chamadas de gerundismo, que entraram em competição com outras formas da língua para expressar tempo futuro; propomos uma definição para gerundismo e lançamos uma hipótese sobre seu surgimento. Como se trata de um fenômeno novo, essas formas têm sofrido preconceito, surgindo a

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necessidade de uma discussão sobre o preconceito linguístico. Da discussão proposta, pode-se depreender que: a) o gerundismo é tipicamente uma construção gerundiva com três verbos; b) o verbo da segunda posição é o verbo estar, funcionando como auxiliar; c) expressa um estado de coisas possível, promessa ou possibilidade – modalidade não-factual; d) ocorre posteriormente ao momento de fala e ao momento de referência. Na expressão de tempo futuro, as perífrases gerundivas codificam, como as formas simples e perifrásticas, a noção temporal, mas acrescentam outras noções: acentuam o caráter modal do futuro, ou seja, a modalidade epistêmica (incerteza, dúvida, possibilidade etc) e evidenciam traços aspectuais (duratividade, telicidade, pontualidade, iteratividade), constituindo-se uma alternativa para o falante expressar mais com menos itens linguísticos.

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A MOTIVAÇÃO TOPONÍMICA NA ESCOLHA DOS DESIGNATIVOS DE ORIGEM INDÍGENA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL THE TOPONYMIC MOTIVATION ON THE CHOICE OF DESIGNATORS FROM INDIGENOUS ORIGIN IN MATO GROSSO DO SUL STATE. Lucimara Alves da C. Costa Universidade do Estado de São Paulo São José do Rio Preto RESUMO Este trabalho tem por objetivo discorrer sobre a motivação toponímica que justifica o processo de nomeação dos designativos indígenas das regiões de Aquidauana, Corumbá e Miranda, no Estado de Mato Grosso do Sul. O corpus de análise consistiu no conjunto de 131 topônimos indígenas e híbridos – indígena/ português, selecionados e retirados de cartas topográficas na escala 1: 125.000, disponibilizadas pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Como método classificatório toponímico, recorremos ao modelo taxionômico proposto por Dick (1990), no qual são apresentadas 27 categorias, divididas em 11 taxes de natureza física e de 16 taxes de natureza antropocultural. Procuramos, por meio da análise semântica dos termos selecionados, definir, apresentar a classificação, taxonomia e provável motivação toponímica dos topônimos indígenas presentes no processo de nomeação dos acidentes físicos e humanos existentes na zona rural das regiões supracitadas. Palavras-chave: Motivação toponímica; topônimos indígenas; Mato Grosso do Sul. ABSTRACT This paper aims to discuss the motivation toponymic that justifies the nomination process of designators indigenous regions of Aquidauana, Miranda and Corumbá, in Mato Grosso do Sul The corpus consisted of analysis set of 131 hybrid and indigenous toponyms - Indian / Portuguese, selected and taken from topographic maps in scale 1: 125,000, provided by IBGE - Brazilian Institute of Geography and Statistics. As a method of classification toponymic we turn to the taxonomic model proposed by Dick (1990), which are presented in 27 categories, divided into 11 physical nature

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of taxes and taxes of 16 antropocultural nature. We search through semantic analysis of selected terms, define the present classification, taxonomy and probable motivation toponymic indigenous place names within the process of appointment of existing human and physical accidents in rural areas in those regions. Keywords: Motivation toponymic; indigenous toponyms; Mato Grosso do Sul.

INTRODUÇÃO Ao se propor a refletir sobre a prática da nomeação dos acidentes físicos e humanos de uma região, é necessário, antes de tudo, considerar que esse processo se constitui na relação entre ambiente, cultura e vida de um povo. Dick (1990, p. 5) ressalta que a nomeação dos lugares é uma prática exercida pelo homem desde os primeiros tempos alcançados pela memória humana, uma vez que essa simples ação proporcionava àquele não apenas um maior contato com o acidente nomeado, mas também uma inegável relação de posse entre possuidor e objeto nominado. Nesse constante processo de nomeação, surgiram ruas com nomes de personalidades históricas, rios relacionados a nomes de animais ou vegetais e cidades relacionadas a etnias indígenas, entre outros. A respeito desse processo, Sapir (1969) ressalta que léxico e cultura relacionam-se diretamente, uma vez que é na língua que se reflete o ambiente físico e social de um povo. Nesse sentido, “o léxico completo de uma língua pode se considerar, na verdade, como o completo inventário de todas as idéias, interesses e ocupações que açambarcam a atenção da comunidade” (op cit, p.45)1. Segundo o autor, isso se fundamenta, em especial, quando tratamos das línguas indígenas e acrescenta que: se houvesse à nossa disposição um tesouro assim cabal da língua de uma dada tribo, poderíamos aí inferir, em grande parte, o caráter do ambiente físico e as características culturais do povo considerado. Não é difícil encontrar exemplos de línguas cujo léxico traz assim o sinete do ambiente físico em que se acham situados os seus falantes.2 1 2

Idem. Ibidem

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Nesse sentido, Nida (1985, p. 79) defende que “a linguagem não é apenas uma parte da atividade humana. É o aspecto mais característico do comportamento humano e o uso de línguas distintas é certamente o mais óbvio aspecto que distingue as culturas humanas”. Sendo assim, este trabalho tem por objetivo discorrer sobre a motivação toponímica que resultou e justifica o processo de nomeação dos designativos indígenas das regiões de Aquidauana, Corumbá e Miranda, no Estado de Mato Grosso do Sul. Nosso corpus de análise consistiu no conjunto de 131 topônimos indígenas e híbridos – indígena/ português, selecionados e retirados de cartas topográficas na escala 1: 125.000, disponibilizadas pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; mapas físicos, políticos, de relevo e bacias hidrográficas do estado de Mato Grosso do Sul, mapas municipais estatísticos dos municípios estudados, e mapas rurais estatísticos (MRU) disponíveis no site do IBGE, criados em 2007 a fim de recenseamento do estado. Como método classificatório toponímico, recorremos ao modelo taxionômico proposto por Dick (1990), no qual são apresentadas 27 categorias, divididas em 11 taxes de natureza física e de 16 taxes de natureza antropocultural. Procuramos, por meio da análise semântica dos termos selecionados, definir, apresentar a classificação, taxonomia e provável motivação toponímica dos topônimos indígenas presentes no processo de nomeação dos acidentes físicos e humanos existentes na zona rural das regiões supracitadas. 1. A motivação toponímica dos designativos de origem indígena Ao observar a relação binômica homem e ambiente, constatamos que o ato da nomeação sempre foi uma atividade inerente à condição humana, pois “a necessidade de referir-se a um ponto geográfico de uma maneira que não seja ambígua, nos obriga a nomeá-lo3”. (SOLIS FONSECA, 1997, p. 22). Na Bíblia Sagrada há um exemplo da necessidade e importância do ato designativo ao afirmar que a primeira tarefa dada por Deus ao homem foi nominar toda a criação:

3

La necesidad de referirse a un punto geográfico de una manera no ambigua obliga a nominarlo.

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O senhor Deus da terra formou todos os animais do campo e todas as aves do céu, e os trouxe ao homem para ver como lhes chamaria; e tudo o que o homem chamou ao ser vivente, esse foi seu nome. O homem deu nomes a todos os animais domésticos, às aves do céu e a todos os animais do campo (Gênesis 2.19-20 - ALMEIDA, 1965) Nesse sentido, o processo de nomeação tornou-se um importante mecanismo para que o homem pudesse organizar e controlar o mundo, a fim de facilitar sua socialização e, consequentemente, possibilitar um melhor conhecimento da realidade que o rodeia, utilizando quase sempre o próprio ambiente como forma de motivação desse ato. Esse mecanismo de apropriação tornou-se atividade comum, especialmente no que diz respeito às etnias indígenas, nas quais se recorre constantemente a elementos do ambiente, como a fauna e a flora, para nomear os acidentes físicos e humanos de uma região. Sampaio (1987) assim explica essa relação: O indígena fazia uso, globalmente, de elementos descritivos do seu ambiente e, [...] não apenas dos descritivos puros, mas também dos descritivos associativos porque é portador de uma visão prática e objetiva. [...] Assim, os diversos sistemas toponímicos apresentam expressões que significam, em seu universo onomástico, o mesmo fato, ou traduzem uma condição semelhante (SAMPAIO, 1987, p.8). A respeito dessa afirmação, Dick (1990, p 41) destaca que, “quando Sampaio fala em nomes descritivos deve fazê-lo não apenas voltando-se para as cargas naturais e permanentes [...] que transformam o topônimo em um espécime simbólico ideal”, ou seja, o topônimo não é sempre a representação ideal do que se deseja exprimir, nem um símbolo dessa representação, uma vez que, além dos descritivos puros, há os descritivos associativos, como os fatos temporários e circunstanciais que identificam um lugar ou acidente, traços esses que, mesmo não sendo ligados diretamente aos aspectos descritivos, não são menos importantes para o processo

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253

designativo desses acidentes. A autora exemplifica sua posição ao ressaltar a influência da fauna e da flora como forma de motivação toponímica: É o caso da vegetação brasileira, que contribuiu com tantos nomes para a toponímia fitonímica, ou dos próprios animais que, independente de um determinado espaço, definido como habitat próprio, o distinguem pela sua presença, isolada ou em bandos (DICK, 1990, p. 41). Ainda sobre a relação homem-língua-ambiente, Sapir (1969, p.43-44) declara ser importante ter em mente que, apesar de haver uma forte tendência a reduzir todas as manifestações de vida e do pensamento humano às influências do ambiente, isso nem sempre corresponde à realidade, uma vez que o processo de atribuição de nomes pode resultar de várias motivações que nem sempre são físicas. Elas podem estar relacionadas aos fatos históricos ou culturais de acordo com as especificações da comunidade na qual estão inseridas e também com a natureza dos acidentes que nomeiam. Seguindo esse raciocínio, retomamos Solis Fonseca (1997, p. 22) ao afirmar que a maior parte dos topônimos surge de maneira espontânea, porém outros topônimos surgem de atos fundacionais, dados por fundadores, muitas vezes em eventos formais, nos quais podem estar inclusos documentos oficiais4. Como exemplo dessas motivações, podemos citar os nomes de ruas que retomam acontecimentos ou personalidades marcantes da história e topônimos que retratam aspectos culturais de um povo. Esses nomes só podem ser compreendidos mediante um estudo mais aprofundado que considere a história e a transformação desse topônimo no decorrer do tempo e também no contexto que originou sua criação e que justifica seu uso. Para Dick (2001, p. 79), a relação entre nome e objeto nomeado fundamenta-se da seguinte forma: A fixação das bases lexicais para definir lugares ou identidades pessoais dispensa, muitas vezes, a necessidade de se situar o objeto em um plano efetivo de representação [...] É o simbolismo das formas linguísticas que transforma nomes 4

La mayor parte de los topónimos surge de esta necesidad espontánea. Otros topónimos surgen de actos fundacionales, daos por los fundadores, muchas veces en eventos fundacionales de los cuales incluso pueden quedar documentos.

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254

em lugares existenciais e indivíduos em personalidades sociais. A configuração de um local só acontece a partir do nome [...]. A esse respeito, Solís Fonseca (1997, p. 14) advoga que os nomes nada mais são que produtos de algo que os implica, ou seja, o sistema denominativo criado por diferentes culturas para nomear as entidades que sua atividade cognitiva percebe. Desse modo, Salas (1999, p. 2) destaca que “o pesquisador não pode se esquecer que todo nome de pessoa, animal, planta ou coisa, não é uma palavra qualquer, pois além de carregar um significado, carrega também uma filosofia de vida”5.

2. A pesquisa: apresentação e análise dos dados A pesquisa, como já foi dito anteriormente, consistiu na coleta e análise de 131 topônimos que designam os acidentes físicos e humanos das regiões de Aquidauana, Corumbá e Miranda no Estado de Mato Grosso do Sul. Os dados foram retirados de cartas topográficas na escala 1: 125.000, disponíveis no site do IBGE. Por meio da análise dos dados, pudemos verificar a classificação, a taxonomia e a provável motivação toponímica que justificasse a escolha dos designativos. Passemos à apresentação e análise dos topônimos expostos na tabela a seguir:

Corpus selecionado

5

TOPÔNIMO

CLASSIFICAÇÃO

TAXEONOMIA

MUNICÍPIO

Córrego Acaiá Fazenda Acurizal Vazante Aguaçú Fazenda Aguassuzinho Fazenda Aguapé

Acidente físico Acidente humano Acidente físico

Fitotopônimo Fitotopônimo Dimensiotopônimo

Corumbá Corumbá Aquidauana/ Corumbá

Acidente humano

Dimensiotopônimo

Aquidauana/Corumbá

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana

El investigador no puede olvidar que todo nombre de persona, animal, planta o cosa no es palabra vana, pues al margen de portar un significado, encierra también una filosofía de vida.

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255 continuação tabela TOPÔNIMO

Fazenda Amambai Fazenda Angico Córrego Angical

CLASSIFICAÇÃO

TAXEONOMIA

MUNICÍPIO

Acidente humano

Fito/hidrotopônimo Aquidauana

Acidente humano Acidente físico

Fitotopônimo Fitotopônimo

Córrego Anhuma

Acidente físico

Zootopônimo

Rio Aquidabã

Acidente físico

Rio Aquidauana

Acidente físico

Córrego Araras

Acidente físico

Fazenda Ariranha Fazenda Aroeira Fazenda Babaçú Rio Bacuri Córrego Baguaçuzinho Córrego Baguani Córrego Betione Fazenda Bocaiúva Fazenda Bacaiuval

Acidente humano Acidente humano Acidente humano Acidente físico

Etnotopônimo Hidro/ Dimensiotopônimo Zoo/etno/ Ergotopônimo Zootopônimo Fitotopônimo Fitotopônimo Fitotopônimo

Aquidauana Aquidauana Aquidauana/Corumbá Corumbá

Acidente físico

Fitotopônimo

Aquidauana

Acidente físico Acidente físico Acidente humano

Zootopônimo Zootopônimo Fitotopônimo

Corumbá Miranda Aquidauana/Corumbá

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana

Fazenda Buriti

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana/ Corumbá/ Miranda

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana/Miranda

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana/Miranda

Acidente físico Acidente físico Acidente físico Acidente físico

Etnotopônimo Fito/ etnotopônimo Fitotopônimo Fitotopônimo

Aquidauana/Corumbá Aquidauana Aquidauana Corumbá

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana

Fazenda Buritizal Fazenda Buritizinho Vazante Caboclo Vazante Caeté Córrego Cajuru Baía do Cambará Fazenda Cambarazal Fazenda Cambarazinho

Aquidauana/Corumbá Aquidauana Aquidauana/ Corumbá/ Miranda Corumbá Aquidauana/Miranda Aquidauana/Corumbá

Revista do Gelne

256 continuação tabela TOPÔNIMO

CLASSIFICAÇÃO

TAXEONOMIA

MUNICÍPIO

Córrego Capivara Rio Capivari Rio Caracará Vazante Caraguatá Rio Caraguazinho Fazenda Carajá

Acidente físico Acidente físico Acidente físico

Zoo/ Fitotopônimo Hidrotopônimo Zoo/etnotopônimo

Corumbá Aquidauana Corumbá

Acidente físico

Fitotopônimo

Aquidauana/Corumbá

Acidente físico Acidente humano

Fazenda Carandá

Acidente humano

Fitotopônimo Corumbá Etno/Zootopônimo Aquidauana/Miranda Aquidauana/ Fitotopônimo Corumbá/ Miranda Aquidauana/ Fitotopônimo Corumbá/Miranda

Fazenda Carandazal Colônia Carandazinho Fazenda Caranday

Acidente humano Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana

Acidente humano

Fito/ergo/Hidro

Corumbá

Rio Chapena

Acidente físico

Ergotopônimo

Morro do Chané Córrego Cipó Colônia Cipolândia Córrego Congonha Retiro Cumbaru

Acidente físico Acidente físico

Etnotopônimo Fitotopônimo

Aquidauana/ Corumbá/ Miranda Corumbá Corumbá

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana/ Corumbá

Acidente físico

Fitotopônimo

Corumbá

Acidente humano

Fito/zootopônimo

Fazenda Curicaca

Acidente humano

Zootopônimo

Aquidauana Aquidauana/ Corumbá/ Miranda

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana/ Corumbá

Acidente humano

Hidro/ Ergotopônimo

Aquidauana/Corumbá

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana/Corumbá

Acidente físico

Fitotopônimo

Corumbá

Acidente humano Acidente físico Acidente humano

Etnotopônimo Zootopônimo Mitotopônimo

Aquidauana Corumbá Aquidauana

Fazenda Guabiroba Fazenda Guanabara Fazenda Guanandi Vazante Guanandizal Fazenda Guarani Corixo Guirá Retiro Iara

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257 continuação tabela TOPÔNIMO

CLASSIFICAÇÃO

TAXEONOMIA

MUNICÍPIO

Fazenda Iguaçú Aldeia Imbirussu

Acidente humano Acidente humano

Dimensiotopônimo Fitotopônimo

Aquidauana/Corumbá Aquidauana

Córrego Indaiá

Acidente físico

Fitotopônimo

Aquidauana/Corumbá

Fazenda Indaial Vazante Ingá Rio Ingazal Retiro Itacatu Fazenda Jabuti Lagoa Jacaré Corixo Jacu

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana

Acidente físico Acidente físico Acidente humano Acidente humano Acidente físico Acidente físico

Fitotopônimo Fitotopônimo Litotopônimo Zootopônimo Zoo/fitotopônimo Zootopônimo

Fazenda Jacutinga

Acidente humano

Zoo/litotopônimo

Fazenda Jaguaretê Fazenda Jaguatinga

Acidente humano

Zootopônimo

Aquidauana Corumbá Aquidauana/Miranda Aquidauana/Corumbá Aquidauana/ Corumbá Corumbá Aquidauana/ Corumbá/ Miranda Aquidauana/Miranda

Acidente humano

Zootopônimo

Corumbá

Fazenda Jaraguá

Acidente humano

Geo/ Fitotopônimo

Córrego Jatobá Córrego Jenipapo

Acidente físico Acidente físico

Fitotopônimo Fitotopônimo

Aquidauana/ Corumbá/ Miranda Aquidauana/Corumbá Corumbá

Córrego Jibóia

Acidente físico

Zoo/ Fitotopônimo

Aquidauana/Corumbá

Morro Lalima

Acidente físico

Hidrotopônimo

Córrego Macaúba Fazenda Mangaba Vazante Mangabal Córrego Mangabinha Rio Nabileque Rio Naitaka Córrego Naxedaxe Fazenda Nhumirim

Acidente físico Acidente humano

Fitotopônimo Fitotopônimo

Aquidauana/ Corumbá/ Miranda Aquidauana/Corumbá Corumbá

Acidente físico

Fitotopônimo

Aquidauana

Acidente físico

Fitotopônimo

Aquidauana/Corumbá

Acidente físico Acidente físico

Litotopônimo Animotopônimo

Corumbá Corumbá

Acidente físico

Ergotopônimo

Miranda

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana/Corumbá

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258 continuação tabela TOPÔNIMO

CLASSIFICAÇÃO

Baía Nhuvai Fazenda Nhuverá Rio Nioaque

Acidente físico Acidente humano Acidente físico

Fazenda Panamá

Acidente humano

Rio Paraguai Vazante Piauí Córrego da Pindaíba Córrego Pindaival Córrego Pindaivão Fazenda Pindorama Fazenda Pirah Fazenda Piracicaba Fazenda Pirapó Córrego Piraputanga Fazenda Piratininga Fazenda Pirizal Córrego Pitangueira Fazenda Piúva Fazenda Piuval Córrego Pombeiro Córrego Sapé Fazenda Sapucaia

Acidente físico Acidente físico Acidente físico

TAXEONOMIA

Fitotopônimo Fitotopônimo Somatopônimo Zoo/fito/ Ergotopôni Mo Hidrotopônimo Hidrotopônimo Ergo/animo/ Fitotopônimo

MUNICÍPIO

Corumbá Corumbá Corumbá Aquidauana/Miranda Corumbá Corumbá Corumbá

Acidente físico

Fitotopônimo

Corumbá

Acidente físico

Fitotopônimo

Aquidauana

Acidente humano

Coro/ Fitotopônimo Corumbá

Acidente humano

Zootopônimo

Aquidauana

Acidente humano

Hidrotopônimo

Corumbá

Acidente humano

Hidro/zootopônimo Aquidauana

Acidente físico

Zootopônimo

Aquidauana/Corumbá

Acidente humano

Zoo/corotopônimo

Aquidauana

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana/ Corumbá/Miranda

Acidente físico

Fitotopônimo

Corumbá

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana

Acidente humano

Fitotopônimo

Corumbá

Acidente físico Acidente físico Acidente humano

Mitotopônimo Fitotopônimo Zoo/ Fitotopônimo

Fazenda Seriema

Acidente humano

Zootopônimo

Fazenda Sucupira

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana Aquidauana/Corumbá Corumbá Aquidauana/ Corumbá/Miranda Corumbá

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259 continuação tabela TOPÔNIMO

CLASSIFICAÇÃO

TAXEONOMIA

MUNICÍPIO

Retiro Sucupiral

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana

Córrego Sucuri

Acidente físico

Zootopônimo

Aquidauana/ Corumbá/Miranda

Acidente humano

Zootopônimo

Aquidauana

Acidente humano

Polio/litotopônimo

Corumbá/Miranda

Acidente humano

Fito/ dimensiotopônimo

Aquidauana

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana

Acidente físico

Fitotopônimo

Corumbá

Acidente humano

Zootopônimo

Fazenda Tapera

Acidente humano

Ecotopônimo

Fazenda Taquara Córrego Taquaral Fazenda Taquaralzinho Fazenda Taquaretinha Brejo do Taquari Córrego Taquarussu Sítio Tarigara Córrego Tarumã Córrego Tarumãzinho Fazenda Tereré Baía Tucum Fazenda Tucumã Fazenda Tuiuiu Fazenda Tupaci

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana Aquidauana/ Corumbá/Miranda Corumbá

Acidente físico

Fitotopônimo

Aquidauana/Miranda

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana/Miranda

Acidente humano

Fitotopônimo

Corumbá

Acidente físico

Fito/hidrotopônimo Aquidauana

Acidente físico

Fitotopônimo

Aquidauana/Corumbá

Acidente humano Acidente físico

Mito/zootopônimo Fito/etnotopônimo

Aquidauana Aquidauana/ Corumbá

Acidente físico

Fitotopônimo

Corumbá

Acidente humano Acidente físico

Fitotopônimo Fito/zootopônimo

Corumbá Corumbá

Acidente humano

Fitotopônimo

Corumbá

Acidente humano Acidente humano

Zoo/litotopônimo Hagiotopônimo

Aquidauana/Corumbá Corumbá

Fazenda Sucurizinho Fazenda Tabatinga Fazenda Taboca Fazenda Tabocal Corixo Taboquinha Sítio Tangará

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260 continuação tabela TOPÔNIMO

CLASSIFICAÇÃO

Fazenda Urucum

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana/ Corumbá/ Miranda

Acidente humano

Fitotopônimo

Aquidauana/Miranda

Acidente humano

Fitotopônimo

Miranda

Fazenda Urumbeva Estrada do Xatelodo

TAXEONOMIA

MUNICÍPIO

2.1 Quanto à natureza dos topônimos Quanto à natureza ou classificação dos topônimos, verificamos o predomínio de nomes de natureza física, em detrimento dos topônimos de natureza antropocultural, como podemos observar nos gráficos a seguir: QUADRO 1: Quantificação dos topônimos de natureza física

QUADRO 2: Quantificação dos topônimos de natureza antropocultural

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A predominância de elementos de natureza física justifica-se pela relação de proximidade e mesmo de cumplicidade entre o indígena e o ambiente, comprovando a tese de Sampaio (1987), de que o indígena recorria, constantemente, a elementos de seu ambiente para nomear os acidentes físicos e humanos de seu convívio. Nesse sentido, o ambiente físico funciona como a principal motivação do processo de denominação toponímica em que o nome confunde-se, muitas vezes, com o próprio acidente nomeado. 2.1.2 Quanto às taxonomias e motivação toponímica Quanto às taxonomias e motivação toponímica, observamos que a categoria mais produtiva nas três regiões é a dos fitotopônimos, totalizando um número de 51 termos na região de Aquidauana, 52 em Corumbá e 13 no município de Miranda. A segunda categoria mais produtiva é a dos zootopônimos, com um número de 24 termos em Aquidauana, 19 em Corumbá e 9 em Miranda. Podemos comprovar o exposto no gráfico a seguir. GRÁFICO 1: taxonomias mais produtivas nas três regiões Animo

Coro

Eco

Ergo

Etno

Fito

Geo

Hidro

Lito

Soma

Zoo

Mito

Hagio

Dimensio Polio

51

52

24

0 11

46

19 13 9 6 5 5 3 3 4 3 1 2 1 1 1 1 01 1 1 11 00 1 3 0 001 1 0 0 0 9

Aquidauana

Corumbá

Miranda

Ao analisarmos a proporção dos topônimos das diferentes taxonomias no gráfico anterior, observamos a grande incidência de fitotopônimos, que totalizam um número de 116 dentre os 195 analisados. Esse índice comprova a influência da vegetação no processo de designação dos topônimos que nomeiam as regiões analisadas.

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Comprovamos também que grande parte desses fitotopônimos refere-se a palmeiras e plantas ornamentais, como é o caso dos designativos: bocaiuva, babaçu, carandá, bacuri e caraguatá, que designam palmeiras ou plantas do gênero das palmas com frutos e seivas utilizados para enfeite e confecção de materiais indígenas. Todas essas espécies vegetais próprias do cerrado costumam apresentar como características marcantes os troncos e galhos retorcidos, como é o caso do angico e da mangaba, sendo a última delas o nome de uma fazenda do município de Corumbá. Outra fonte de motivação toponímica também muito presente nessas regiões são as árvores frutíferas, que remetem, de certa forma, não só à importância da alimentação na vida do homem, mas também ao hábito do cultivo dessas árvores como forma de garantir o sustento de muitos povos indígenas que habitaram ou habitam essa região. Como exemplo desses topônimos, podemos citar acaiá, conhecido como cajá – uma designação para o fruto da cajazeira, bastante conhecido na região; jatobá, árvore de casca grossa e de frutos comestíveis e do qual se extrai resina; e jenipapo, fruto do jenipapeiro muito utilizado para se fazerem compotas, doces e xaropes e do qual os indígenas extraem uma tinta preta que utilizam em artesanatos e pintura corporal. Essas e muitas outras espécies vegetais abundantes na região deram origem a inúmeros designativos para rios, córregos, morros e fazendas do município de Aquidauana, Corumbá e Miranda. Também fazem parte da vegetação do Pantanal Sul-Mato-Grossense plantas próprias de regiões alagadiças, como é o caso do aguapé, conhecido como vitória-régia, e algumas espécies mais resistentes, como o buriti, a embaúba, o carandá, bem como outras variedades de coqueiros bastante comuns nessa região, que conseguem sobreviver e fortalecer-se nesse espaço, formando imensos aglomerados. A segunda categoria mais produtiva é a dos zootopônimos, totalizando um número de 52. Observamos que os espécimes comuns na fauna local funcionam como a segunda fonte mais produtiva de motivação toponímica. Como exemplos desses designativos, aparecem em nossos dados os topônimos: jacaré, sucuri, jacutinga, curicaca, jaguaretê, anhuma e tuiuiú, espécimes comuns nas matas, córregos e alagados da região. O último desses designativos, o tuiuiú, também conhecido como a cegonha do Pantanal e

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ave símbolo dessa região, é definido por Taunay (1868, p. 93), em seus relatos de viagem, como “a maior das aves ribeirinhas, todo branco com uma coleira vermelha, bico longo e tubulado, que se nutre de peixe e anda no lodo das bordas dos rios”. Após os zootopônimos, os hidrotopônimos, com um número de 16 topônimos, ocupam um lugar bastante significativo nesse processo de nomeação. O grande número de córregos, rios, corixos e alagados, próprios do bioma pantanal, justificam essa grande influência de designativos relacionados à água. Como exemplos desses topônimos, podemos citar os designativos: Aquidauana, caranday, guanabara, lalima, Paraguai, Piauí e Piracicaba, que nomeiam rios, fazendas e córregos das regiões analisadas. É interessante observar que, em especial nos nomes de origem kadiwéu, como é o caso de Aquidauana e Lalima, o significado dos topônimos em sua maioria remete à água. Não encontramos, porém, registros que relacionem as características dos acidentes ao nome que recebem, ou seja, não obstante o significado original de Aquidauana, “rio estreito”, aparentemente não há registros de obras que descrevam tal característica desse rio. Tampouco Lalima, que significa “sumidouro”, termo definido por Sampaio (1901, p. 58) como “curso subterrâneo das águas do rio através de rochas calcáreas”, aparece em registros escritos como um rio ou córrego com essa característica. Quanto aos hidrotopônimos de origem tupi e guarani que fazem parte de nossos dados, podemos constatar que, geralmente, essa formação se faz com a justaposição do termo água –y/i a uma base de origem indígena, que, por sua vez, já possui um significado próprio. Nesse sentido, os dois termos se juntam e um passa a ser parte do outro, como é o caso de Piaui, Paraguai e caranday, que significam ‘rio do piau’, ‘rio dos papagaios’ e ‘rio dos carandás’, respectivamente. Bastante próximos dos hidrotopônimos em número de ocorrências, aparecem, nessa cadeia de motivação toponímica, os etnotopônimos, que totalizam 13 topônimos, e os ergotopônimos, com um total de 12 termos. Relacionados às etnias indígenas, os etnotopônimos designam seis (6) acidentes da região de Aquidauana, seis (6) em Corumbá e um (1) em Miranda. Isso se justifica pelo grande número de aldeias existentes na região, embora devamos destacar que muitas dessas etnias já foram extintas ou juntaram-se a outras, sendo absorvidas por elas, como é o caso dos

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264

kinikinaos, que, conforme apontamos ao falar da ocupação indígena em Miranda e Aquidauana, juntaram-se às aldeias terenas desses municípios. Como exemplos desses topônimos, constam em nossos dados os topônimos: araras, caeté, carajá e guarani. Trata-se de etnias já extintas ou que não residem mais na região, mas que participaram efetivamente do processo de criação e desenvolvimento do estado de Mato Grosso do Sul, como é o caso dos guaranis, os indígenas mais explorados como mão de obra no ciclo da mineração. É interessante destacar também a referência ao topônimo cabloco, que, embora não designe nenhuma etnia indígena em particular, é apresentado nos dicionários consultados como o índio manso e catequizado pelos jesuítas, exatamente como aconteceu com muitos indígenas, particularmente os tupis e guaranis no processo de povoamento do estado. Na escala de motivação dos acidentes físicos e humanos desses três municípios, aparecem os litotopônimos com 10 designativos, os dimensiotopônimos com nove (9) ocorrências, os eco, os mito e os geotopônimos, com três (3), os coro, pólio e animotopônimos com dois (2) designativos e, em último lugar, aparecem os soma e hagiotopônimos, com apenas 1 designativo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme mencionamos na introdução deste trabalho, nosso objetivo geral consistiu na realização de um estudo lexical dos nomes de origem indígena que designam os acidentes físicos e humanos presentes na zona rural das regiões de Aquidauana, Corumbá e Miranda, no estado de Mato Grosso do Sul. Foi dada, também, atenção especial à classificação taxonômica e à análise desses designativos de modo a apresentar seus significados, etimologias e uma provável motivação toponímica que justificasse a escolha desses nomes. Consideramos como principal hipótese de trabalho o fato de que o grande número de aldeias existentes nessa região influenciou diretamente a escolha dos topônimos, o que justifica o alto índice de nomes indígenas em nossos designativos

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Confirmamos ainda que o princípio básico da nomeação dos acidentes físicos e humanos dessa região consiste, acima de tudo, na relação de proximidade entre o homem e o meio, sendo ele quase sempre físico, como é o caso dos designativos relacionados aos elementos do ambiente, como relevo, formações do solo, cursos de água e, em especial, flora e fauna. Essa constatação justifica nossas categorias mais produtivas, como é o caso dos fitotopônimos, com 116 ocorrências e dos zootopônimos, com 52 termos. Convém destacar, porém, que os aspectos sociais e culturais das etnias indígenas também influenciaram diretamente o ato da denominação dos acidentes físicos e humanos dessa região. Isso se comprovou especialmente nos topônimos relacionados tanto a elementos étnicos e materiais dessas culturas, como é o caso dos etnotopônimos e ergotopônimos, que totalizaram um número de 25 termos, como também aos seus elementos religiosos e míticos próprios, como os mitotopônimos e hagiotopônimos. Evidenciamos que, em grande parte dos topônimos, a motivação toponímica e também a etimologia só podem ser recuperadas se recorrermos à história, uma vez que muitos desses nomes estão estreitamente vinculados à linguagem oral, ao hábito de contar histórias e aos acontecimentos relacionados à vida e às andanças desses povos. Um exemplo do que foi dito são os topônimos de origem kadiwéu, como nabileque, naitaka e nioaque, que, mesmo sendo termos já dicionarizados, sua motivação só pode ser compreendida por meio dos acontecimentos históricos que envolveram a escolha de tal designativo para os rios em questão. Essa preocupação histórica e com o relato oral desses povos torna-se ainda mais justificável em relação aos termos de origem terena, já que, em face da inexistência de dicionários dessa língua, esses dados só podem ser identificados por meio de obras sobre essa etnia, conforme o procedimento de nossa pesquisa, ou por meio de um trabalho exaustivo de coleta e entrevista com os próprios falantes.

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266

REFERÊNCIAS BIBILOGRÁFICAS ALMEIDA, J. F. Bíblia Sagrada. Edição Revista e corrigida. São Paulo: Editora Sociedade Bíblica Brasileira, 1965. DICK, M. V. P. A. Toponímia e antroponímia no Brasil. Coletânea de Estudos. 2. ed. São Paulo: USP, 1990. ______. O sistema onomástico: bases lexicais e terminológicas, produção e frequência. PIRES DE OLIVEIRA, A.M.P; ISQUERDO, A.N. (Orgs). As ciências do léxico. Lexicologia, Lexicografia e Terminologia. 2. ed. Campo Grande: UFMS, 2001. IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mapas digitais- MUE e MRU, 2007. Disponível em: http://www.ibge.gov.br NIDA, E. A. Costumes e Culturas. São Paulo: ed. Vida Nova, 1985. SAMPAIO, T. O tupi na geographia nacional. Instituto Histórico e geográphico de São Paulo: São Paulo, 1901. ______. O tupi na geographia nacional. 5. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1987. SAPIR, E. Língua e ambiente. In: ______. Linguística e Ciência. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1969, p. 42-62. SOLIS FONSECA, G. La gente pasa, los nombres quedan. Introduccion en la Toponímia. Lima: Ed. Lengua y Sociedad, 1997.

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NOTÍCIA EM JORNAL IMPRESSO: ATIVIDADE E EFEITOS DE SENTIDO

DISCURSO,

NEWS IN A PRINTED NEWSPAPER: DISCOURSE, ACTIVITY AND SENSE EFFECTS Élida Lima Universidade Regional do Noroeste do Estado do RS Maria da Glória Corrêa di Fanti Pontifícia Universidade Católica do RS RESUMO Este artigo tem como objetivo analisar características da constituição da notícia em jornal impresso, de modo a apreender pistas que recuperem, ainda que em parte, facetas da atividade discursiva do jornalista no que se refere a aspectos do debate entre normas que antecedem o fazer jornalístico e suas renormalizações na atividade de produção da notícia. Para tanto, é analisada uma notícia, publicada no Jornal Zero Hora (RS) em 24 de julho de 2006, que focaliza o descontentamento de pais com a utilização de um artigo assinado pelo líder do MST, João Pedro Stedile, em livro didático de geografia, na 5ª. série. Os pressupostos teóricos centrais que subsidiam a reflexão partem dos estudos desenvolvidos por Bakhtin e seu Círculo e estabelecem interlocução com a abordagem ergológica, possibilitando observar particularidades da constitutiva e tensa relação com o discurso do outro e possíveis implicações na atividade do jornalista. Palavras-chave: notícia em jornal impresso; constituição dialógica do discurso; renormalização; atividade do jornalista. ABSTRACT This paper aims at analyzing characteristics of the constitution of news in a printed newspaper in order to identify marks able to retrieve, at least partially, facets from journalists’ discursive activity as regards the confrontation among norms preceding journalistic actions and these norms’ renormalizations in the news producing process. For doing this, we examine a piece of news published by Zero Hora, a newspaper from Rio Grande do Sul, Brazil, in July 24, 2006 about the negative reaction of some Brazilian groups to the use of an article by João Pedro Stedile, the leader of MST, a Brazilian landless movement, in a geography textbook used in primary education. The main theoretical grounds

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for informing our reflection come from studies developed by Bakhtin and his Circle in a dialogue with French’s ergological approach, and makes possible to identify particular aspects of the constitutive and tense relationship of the enunciator and the other discourses and the implications this may have for journalists’ activity. Keywords: printed newspaper news; discourse’s dialogical construction; renormalization; journalists activity.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Tendo em vista a complexidade da atividade do jornalista na produção da notícia, no que tange à diversidade de normas que antecedem o seu fazer e as sucessivas renormalizações que se concretizam na singularidade do trabalho vivo, temos o propósito de analisar, neste artigo, características da constituição da notícia em jornal impresso, de modo a apreender pistas que recuperem, ainda que em parte, facetas da atividade discursiva do jornalista relativas à produção da notícia. Para atingir esse fim e considerando que esta reflexão não visa a generalizações, analisamos uma notícia, publicada no Jornal Zero Hora (RS) em 24 de julho de 2006, que focaliza o descontentamento de pais com a utilização de um artigo assinado pelo líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stedile, em livro didático de geografia, na 5ª. série. Justificamos a escolha desta notícia pelo fato de apresentar uma heterogeneidade de elementos, que suscitam o presente estudo. A reflexão tem como pressupostos teóricos centrais os estudos desenvolvidos por Bakhtin e seu Círculo e a abordagem ergológica.1 Da teoria bakhtiniana, recuperamos especialmente o princípio dialógico e as noções de enunciado e gênero do discurso, e da ergologia as concepções de atividade, normas antecedentes e renormalizações, que, em interlocução, contribuem para a compreensão de características do trabalho jornalístico no que tange às dimensões éticas e históricas dos saberes presentes nas atividades humanas2. 1

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O Círculo de Bakhtin é formado por um grupo de estudiosos de diferentes áreas, cujos principais integrantes da área da linguagem são M. Bakhtin, V.N. Volochinov e P.N. Medvedev. Não entramos na discussão existente sobre a autoria de alguns textos, por isso utilizamos os nomes conforme constam das obras consultadas. Além dessas perspectivas teóricas centrais, são consideradas, conforme a exigência da discussão, contribuições tanto da área da Comunicação Social quanto dos Estudos da Linguagem.

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No que diz respeito à atividade do jornalista, podemos dizer que há uma tensão entre as técnicas de redação, o fato e o jornal, que exige do profissional da comunicação fazer escolhas para a produção da notícia, o que faz ressoar pistas sobre seus próprios saberes, valores e interesses. Tal observação remete ao que Schwartz chama de fazer história, pois a aproximação da atividade com a história “nos conduz a tocar com o dedo naquilo que o trabalho nos engaja e nos custa, porque ele nos obriga sempre, mais ou menos, a criar, a inventar e, por isso mesmo, a nos reinventar” (2003, p.25). Nessa perspectiva, considerando o estatuto lacunar das normas e o caráter industrioso da atividade de trabalho, pretendemos com esta análise resgatar aspectos da produção da notícia e da singularidade (heterogênea) do fazer do jornalista frente ao gênero notícia e aos pretensos efeitos de objetividade, veracidade e neutralidade no tratamento dos fatos.

1. Perspectiva dialógica e abordagem ergológica Críticos da concepção de língua como um sistema de normas imutáveis e do entendimento de que a enunciação é um ato individual, os integrantes do Círculo de Bakhtin ressaltam a dinamicidade da língua e a concretização da enunciação como interação social, situada historicamente. Integrando uma discussão ideológica mais ampla, a enunciação instaura variadas relações de sentido entre discursos (responde, refuta, confirma, antecipa etc.), o que exige a observação do seu vínculo com a situação concreta, pois “nasce, vive e morre no processo da interação social” (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 2004, p.107; VOLOSHINOV, 1981, p.198)3. É por esse caminho que se vislumbra o princípio dialógico da linguagem, que instaura uma permanente interação entre discursos, mais ou menos aparentes, desencadeando variadas relações de sentido, também designadas como relações dialógicas (BAKHTIN, 2010).

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As rubricas “enunciação” e “enunciado”, na obra bakhtiniana, conforme explica o tradutor Paulo Bezerra (BAKHTIN, 2003), advêm do termo russo viskázivanie, significando tanto o ato de enunciar em palavras, como o seu resultado. Por isso, o tratamento dado ao enunciado equivale ao da enunciação.

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O enunciado, para o pensador russo, é um elo na cadeia da comunicação discursiva, o que significa dizer que não só está ligado aos enunciados precedentes como também aos subsequentes. Nessa concepção, o falante, ao elaborar enunciados, ao mesmo tempo que responde a já-ditos, não deixa de antecipar dizeres. A antecipação acontece como forma de respostas a objeções que porventura possam ser feitas pelo interlocutor (presente ou presumido). Assim, “o enunciado se constrói levando em conta as atitudes responsivas, já que o interlocutor não é um ouvinte passivo, mas sim participante ativo” (BAKHTIN, 2003, p.301). Considerando o enunciado como a unidade mínima da comunicação discursiva, por meio do qual a língua se materializa, seja na forma oral, seja na forma escrita, Bakhtin observa que os enunciados são concretos e únicos, sendo proferidos por integrantes de um ou outro campo de atividade. Embora cada enunciado seja individual, ele integra os gêneros do discurso, “tipos relativamente estáveis de enunciados”, representantes de esferas específicas (BAKHTIN, 2003, p.261, 262). Os gêneros são constituídos por elementos que fazem ressoar particularidades da relação empreendida com a esfera de produção, circulação e recepção do discurso, revelando certa estabilidade em sua constituição. O tema, o sentido singular de uma materialização do gênero, a forma composicional, a construção organizacional em diferentes dimensões, e o estilo da linguagem, recursos lexicais e gramaticais da língua, engendram-se nas produções enunciativas concretas, configurando-se como gêneros do discurso. Tais particularidades revelam o estilo individual, dialógico, do locutor no enfrentamento do gênero. Logo, seguindo Bakhtin, “a intenção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade”, relaciona-se ao gênero escolhido, ou ainda, “constitui-se e desenvolve-se em uma determinada forma de gênero” (2003, p.282). Por essa razão, destacamos a afirmação do pensador russo, segundo a qual “falamos através de determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo” (2003, p.282).

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Partindo da teoria bakhtiniana, estabelecemos interlocução com a Ergologia, abordagem especializada na análise do trabalho4, que tem como preocupação a valorização do humano nas trocas laborais (SCHWARTZ, 1994, 2003, 2010). Sob esse enfoque, baseada num paradigma pluridisciplinar, a Ergologia, dentre o quadro científico que estuda o trabalho, passa a questionar formas racionalizadas, como as propagadas pelo taylorismo5. Muito mais do que proporcionar ganhos econômicos para a civilização no início do século XX, o período taylorista trouxe à tona questionamentos sobre a forma mecanicista como era encarada a força de trabalho humana, devido ao fato desse regime não dar espaço para a contribuição intelectual do trabalhador. Isso pode ser observado no modo como as relações laborais eram regidas naquela época: os administradores eram os criadores de regras e os empregados, considerados simples cumpridores. O ser humano era visto como mero executor de tarefas, uma simples engrenagem da organização. Contestando esse paradigma, surgem novas teorias de análise do trabalho, como a Ergonomia da Atividade, que, tendo como foco a atividade humana, problematiza o trabalho real, considerando-o não como uma execução do prescrito, mas sim mostrando, a partir de análises concretas, a distância entre o prescrito e o real. A Ergologia (foco deste artigo) dá um passo à frente aos estudos da Ergonomia ao propor a análise do trabalho vivo a partir de um conjunto de várias disciplinas, as quais têm como preocupação a valorização do conhecimento de cada trabalhador. O pesquisador Yves Schwartz (1994, 2003, 2010), em seus estudos, enfatiza o ser humano, na atividade de trabalho, como fabricante de história, com capacidade de (re)questionar e (re)combinar os saberes, (re)elaborando em permanência novas tarefas para o conhecimento. 4

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Trata-se de estudos realizados por pesquisadores vinculados à Analyse Pluridisciplinaire des Situations de Travail (APST) da Université de Provence (Aix-Marseille I). Entre as reflexões desenvolvidas pelo grupo, destacamos a proposta da Ergologia, desenvolvida pelo filósofo Yves Schwartz, que apresenta uma concepção comprometida com características do trabalho (as atividades laborais do sujeito) no que tange às dimensões éticas e históricas dos saberes presentes nas atividades humanas. O termo taylorismo refere-se a Frederick Taylor e ao método por ele criado de simplificação das relações de produção, difundido pelo mundo no período pós-guerra até o início do seu declínio nos anos 80 (SCHWARTZ, 2006). Nesse modelo, falar significava perda de tempo. Tal concepção ganhou difusão a partir do tipo de trabalho adotado nas linhas de montagem idealizadas por Henry Ford (da indústria automobilística Ford), onde se preconizava o controle de tempo e ritmo de trabalho.

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A atividade de trabalho é reconhecida como lugar de se fazer história na medida em que o ser humano, tratando daquilo que não é antecipável, realimenta e transforma as configurações culturais e sociais. Schwartz, dessa forma, não descarta as prescrições do trabalho, mas sobretudo as redefine como normas antecedentes, as quais, embora mantenham a mesma natureza das prescrições, não se limitam a elas6. Para o filósofo, as normas antecedentes são importantes e podem orientar, em parte, o que vai ser produzido no vivo da atividade; entretanto, não pré-definem o real do trabalho, já que a história da atividade é sempre inacabada e lacunar. Se este concentrado de história é sempre, por uma parte, inacabado, lacunar, isto significa que a história se reescreve em permanência, que novas normas de construção de saberes, de construção do social, “renormalizações” incessantes reaparecem em todos os lugares onde os grupos humanos se mobilizam para produzir. (SCHWARTZ, 2003, p.24) Considerando essas observações, Schwartz (1994, 2003, 2010) propõe que se observe o debate entre normas antecedentes (objetivos, planejamentos) e renormalizações (o trabalho vivo) para o entendimento de características da atividade. Nesse debate, ocorrem subversões das normas, momento em que cada um, na relação incessante com o outro, preenche lacunas e faz história, revelando renormalizações mais ou menos engenhosas e criativas. Segundo Schwartz (2003, p.27), os saberes estão na dependência dos debates de normas, que, inseridos na história que se faz no dia-a-dia, não podem se desenvolver na neutralidade, assim como o trabalhador não pode ser neutro quando faz a própria história. Trata-se de um ato único a (re)significação das normas, o preenchimento das lacunas com o heterogêneo saber. A atividade “é sempre um ‘fazer de outra forma’, um ‘trabalhar de outra forma’”, pois “é uma espécie de obrigação [...] já incluir uma dimensão de transformação” (SCHWARTZ, 2010, p.35).

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Sobre as particularidades do trabalho prescrito e das normas antecedentes, consultar Telles e Alvarez (2004).

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2. A notícia jornalística Tendo em vista o propósito deste artigo de analisar características da constituição da notícia a fim de apreender pistas da atividade discursiva do jornalista no que se refere a aspectos do debate entre normas antecedentes e renormalizações, passamos a discutir, nesta seção, características gerais da notícia em relação à esfera jornalística e às orientações dos manuais de redação para, na seção seguinte, procedermos à análise da notícia selecionada. A indissociável relação entre as esferas7 da atividade humana e os seus enunciados pode ser observada no campo jornalístico a partir dos gêneros do discurso que, ao serem publicizados, adquirem nuances peculiares às operações da esfera midiática. Por isso, podemos considerar que há um espaço simbólico de apresentação, com especificidades discursivas que possibilitam o reconhecimento da notícia como gênero jornalístico. Há de se considerar também que a produção dos enunciados relativamente estáveis da esfera jornalística, previstos nas técnicas de redação e subjacentes às rotinas de produção da notícia e aos valores que orientam a profissão, é definida por um projeto enunciativo, que pode ser observado, conforme Bakhtin (2003), na realização da vontade discursiva do falante na escolha de um gênero de discurso, próprio de uma dada esfera de atividade. Na forma peculiar das produções jornalísticas, o projeto enunciativo do falante é desenvolvido e (re)significado, mostrando sua (inter)subjetividade frente ao outro (interlocutor, espaço, objeto do discurso etc.) em um determinado gênero. Isso pode ser observado pelos acentos sociais de valor engendrados nos enunciados, que revelam aspectos do estilo do locutor nas trocas verbais. No âmbito dos estudos da área de comunicação, Pena (2005, p.69) observa que há dois grandes grupos que organizam os gêneros encontrados nas edições dos jornais impressos: informativos e opinativos. O jornalismo informativo é representado por nota, notícia, reportagem e entrevista. O 7

Esfera é um dos conceitos da extensa malha teórica bakhtiniana. Faraco (2006, p.112) explicita esse conceito quando afirma que “o pressuposto básico da elaboração de Bakhtin é que o agir humano não se dá independente da interação; nem o dizer fora do agir. Numa síntese, podemos afirmar que, nesta teoria, estipula-se que falamos por meio de gêneros no interior de determinada esfera da atividade humana. Falar não é, portanto, apenas atualizar um código gramatical num vazio, mas moldar o nosso dizer às formas de um gênero no interior de uma atividade”.

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jornalismo opinativo, por outro lado, apresenta-se via editorial, comentário, artigo, resenha, coluna, crônica, caricatura, carta, entre outras possibilidades. A distinção entre nota e notícia, para o autor, está na progressão dos acontecimentos: “A nota corresponde ao relato de acontecimentos que estão em processo de configuração e por isso é mais frequente no rádio e na TV. A notícia é o relato integral de um fato que já eclodiu no organismo social.” A notícia, por conseguinte, é o gênero que ocupa maior espaço nos jornais diários e pode ser compreendida, em sua estrutura, como o relato de uma série de fatos a partir do fato mais importante. Tal estrutura, de acordo com Lage (1998, p.60), segue uma lógica (que configura o texto como notícia), porém os critérios de importância ou interesse envolvidos em sua produção são marcados por questões ideológicas, como comportamentos de mercado e oportunidades. Para a compreensão de características da produção da notícia, recorremos aos manuais de redação dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, que apresentam a organização de preceitos epistemológicos e a definição de regras para a padronização da produção jornalística, nos quais estão descritas as recomendações, a partir do viés empresarial, para a operação dos profissionais do Jornalismo. Os recursos prescritos nesses manuais, como precisão dos fatos, texto conciso, discurso citado, exclusão de adjetivos, reclamam efeitos de objetividade, os quais se fazem necessários no jornalismo informativo. Os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo disponibilizam seus manuais para venda ao público externo à redação, sendo comum o uso de tais publicações em aulas de redação dos cursos de jornalismo. Os manuais, além de trazerem as regras que norteiam o trabalho dos profissionais e as técnicas de redação, também apontam os critérios utilizados para a avaliação da importância de um fato. Destacamos a seguir alguns desses critérios, considerados elementares, para definir a importância da notícia, segundo o Manual de Redação do Jornal Folha de S. Paulo (2005, p.43-44): • •

ineditismo – a notícia inédita é mais importante do que a já publicada; improbabilidade – a notícia menos provável é mais importante do que a esperada;

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interesse – quanto mais pessoas possam ter sua vida afetada pela notícia, mais importante ela é; apelo – quanto maior a curiosidade que a notícia desperta, mais importante ela é; empatia – quanto mais pessoas puderem se identificar com os personagens e a situação da notícia, mais importante ela é; proximidade – quanto maior a proximidade geográfica entre o fato gerador da notícia e o leitor, mais importante ela é.

Embora os manuais de redação busquem normatizar o fazer jornalístico, é consenso entre os estudiosos que o texto de jornal sofre tantas influências desde a escolha da pauta até a publicação nos periódicos que seria inapropriado considerá-lo como objetivo. Ainda assim, o efeito de objetividade é ponto referencial para o jornalismo e uma característica do gênero notícia. Segundo Pena (2005, p.50), isso ocorre “porque há uma percepção de que os fatos são subjetivos, ou seja, construídos a partir da mediação de um indivíduo, que tem preconceitos, ideologias, carências, interesses pessoais ou organizacionais”. Portanto, faz-se necessário tentar neutralizar pontos de vista que possam refletir opiniões pessoais sobre um dado fato, o que, no entanto, seguindo o paradigma bakhtiniano, não garante imparcialidade, pois a linguagem é sempre dialógica (BAKHTIN, 2003), e, assim sendo, constitui-se por interlocuções ímpares com outros enunciados que não deixam de refratar visões de mundo. Não se desconsidera, entretanto, a importância das normas antecedentes (SCHWARTZ, 2003), no caso o manual de redação, como uma orientação que tenta amenizar marcas de pessoalidade no relato dos acontecimentos, que são renormalizadas no processo de produção da notícia e deixam emergir a singularidade da atividade do jornalista.

3. Reflexões analíticas Para desenvolvermos o objetivo proposto neste artigo, organizamos a reflexão em duas instâncias. Na primeira, apresentamos características sobre o contexto de produção da notícia e, na segunda, apresentamos a análise da notícia a partir de critérios definidos.

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FIGURA 1: Notícia “Mãe, o vovô é latifundiário?”

3.1 Contexto de produção da notícia A notícia selecionada para esta reflexão foi publicada no jornal Zero Hora, em 24 de julho de 2006, página 24, da Editoria Geral, sob o título “Mãe, o vovô é latifundiário?”. Essa notícia trata do descontentamento de pais de crianças que estudam na Escola Auxiliadora, em Bagé-RS, com a utilização

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de um artigo assinado pelo líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stedile, em livro didático de geografia, usado na 5ª série da referida escola. O líder do MST é um personagem da política brasileira que ganhou notoriedade em função de ser o principal porta-voz dos agricultores semterra no Brasil e, nesse sentido, tem gerado, por um lado, grande simpatia entre os membros do Movimento e, por outro, aversão dos proprietários rurais de segmentos produtivos organizados. Stedile, entre outras atividades voltadas para a projeção do MST, costuma escrever artigos para jornais e revistas brasileiras e, no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (entre 2003 e 2006), ganhou espaço também em algumas esferas do Governo Federal. No caso da notícia em análise, entretanto, é focado o descontentamento com um artigo de Stedile publicado em livro didático de geografia, da 5ª série, utilizado por uma tradicional instituição de ensino privado de Bagé, a Escola Auxiliadora, que integra a rede salesiana (gerenciada pelos irmãos salesianos e com vínculo à Igreja Católica). Nesse contexto, é preciso considerar que o município está localizado numa região onde as atividades do MST são muito contestadas, a fronteira sudoeste gaúcha, local em que os embates entre os proprietários rurais e o Movimento são acirrados. Sob esse ponto de vista, não causa estranhamento que o texto apresentado no livro didático, favorável às ações do MST, tivesse algum tipo de reação. O que talvez não fosse esperado é que houvesse cobertura jornalística do episódio, que atinge uma parcela reduzida de pessoas (no caso, os pais de crianças de uma turma da Escola Auxiliadora e a direção do educandário), considerando o espaço destinado ao fato no jornal. A notícia8 foi publicada no primeiro caderno do jornal Zero Hora, o mais importante periódico do Rio Grande Sul, na editoria Geral, onde são publicadas as notícias de interesse comunitário e com enfoque local 8

Compreendemos notícia como um gênero discursivo, relativamente estável, que se materializa em situação de enunciação concreta, tendo em vista projeto enunciativo, interlocutores, espaço e tempo histórico, empresa de comunicação e esfera de atividade jornalística, cujas características interferem nas escolhas dos recursos verbais (textos, títulos, cartolas etc.) e não-verbais (imagem, cor, recursos gráficos etc.). Assim, embora tenhamos conceituado notícia na seção 2 “como o relato de uma série de fatos a partir do fato mais importante [...]” e que “tal estrutura segue uma lógica” (LAGE, 1998, p.60), consideramos que o termo é mais abrangente, referindo-se à informação publicada e aos elementos que compõem o espaço enunciativo-discursivo.

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do Estado. A matéria9 ocupa o tópico principal da página, distribuída em quatro colunas de largura, das cinco que subdividem a página, e toda a extensão vertical. Apresenta elementos gráficos, que reproduzem o livro, com destaque para uma parte significativa do texto de Stedile, e um pequeno box, intitulado Quem é ele, no qual é traçado um breve perfil do líder sem-terra. Há ainda uma segunda matéria (texto), como complemento à primeira, na qual há opiniões de pessoas que o locutor trata como especialistas da área. A matéria Abordagem de tema seria prematura, dizem especialistas traz também um box, intitulado Contraponto, espaço usado para a “manifestação” de quem está sendo “questionado”, neste caso a rede salesiana. O título do texto principal foi retirado de uma observação feita por uma menina, de 11 anos, que frequenta a 5ª série da Escola Auxiliadora. Ao chegar em casa, após as aulas e a leitura do artigo apresentado em seu livro de geografia, a menina questionou a família: Mãe, o vovô é latifundiário?. A pergunta parece ter desencadeado a reação dos pais, que, segundo a notícia, são produtores rurais, e a consequente mobilização das lideranças do setor. Com relação à utilização da expressão da criança no título é válido ressaltar que o uso de citações em título não é prática usual no jornal Zero Hora, a não ser em declarações feitas por autoridades/figuras públicas e sobre um assunto de impacto para a sociedade.10 A notícia em foco é apresentada na sua forma clássica, a pirâmide invertida, ou seja, os elementos enunciativos principais são dispostos do início para o fim do texto. Tal recurso é recorrente em textos do jornalismo informativo, o que nos permite relacionar a uma das características da relativa estabilidade do gênero notícia. Sob esse ponto de vista, embora haja recorrência dessa particularidade, entre outras, tratando-se de gênero discursivo, como prevê Bakhtin (2003), haverá necessariamente dinamicidade, permitindo singularizações, ressignificações, por parte do locutor. As características do gênero discursivo, considerando a tensão entre o repetível e o irrepetível, ratificadas via princípio dialógico, entram em consonância com o que Schwartz (1994, 2003, 2010) chama de dimensão humanizada do trabalho (valores, saberes, experiências, história), que considera o permanente debate com as normas, configurando 9 10

Matéria no jargão jornalístico equivale à notícia. Um exemplo são declarações de presidentes da República sobre reeleição, que merecem destaque por ter consequências no cenário político nacional.

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renormalizações diversas. Na notícia em foco, pistas discursivas da relação norma/renormalização podem ser percebidas na abertura da matéria em questão, o que em jornalismo se chama de lead (o primeiro parágrafo) e sublead (segundo parágrafo, quando também apresenta informações básicas): Em uma região marcada por confrontos entre ruralistas e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o livro de geografia usado na Escola Auxiliadora, uma das mais tradicionais instituições particulares de Bagé, causa polêmica entre os pais dos estudantes. As queixas se referem a trechos considerados ideológicos e à presença de um artigo do líder nacional dos sem-terra João Pedro Stedile. A publicação é usada na 5ª série do Ensino Fundamental de algumas escolas da rede salesiana no Brasil, à qual pertence a instituição. Por um lado, o jornalista/jornal segue a pirâmide invertida como recomendam as técnicas de redação.11 O lead e sublead respondem às perguntas clássicas: O quê? (reclamações em relação ao conteúdo de um livro de geografia, da Escola Auxiliadora), Quem? (pais dos alunos), Onde? (em Bagé, região marcada por conflitos entre ruralistas e sem-terra), Quando? (apesar de não precisar a data, o texto fornece pistas de que o fato é atual em relação à data de publicação), Por quê? (o livro traz um artigo do líder do MST, João Pedro Stedile). Por outro lado, a escolha da pauta, a seleção dos entrevistados, a forma de apresentação das informações, as opções linguísticas feitas pelo jornalista/jornal, como veremos na próxima seção, são fruto de escolhas, o que nos permite considerar, remetendo-nos a Schwartz (1994, 2003, 2010), que o trabalhador se vale das prescrições como normas lacunares e inacabadas para a produção da notícia. Essas observações permitem que se considere o debate entre normas e renormalizações como constitutivo da atividade do jornalista, o que pode ser constatado pela análise da notícia via tensão entre movimentos, não-excludentes, de aproximação e de distanciamento em relação às técnicas de redação e estilo. Nesse sentido, o jornalista deixa 11

Utilizamos a forma “jornalista/jornal” para designar o responsável pela notícia, considerando que a rotina de produção de uma matéria jornalística pode passar pela edição de vários profissionais (repórter, subeditor, editor, editor-chefe etc.).

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fluir particularidades (ética, valores, saberes) na relação com o outro (fato, jornal, normas, leitor, MST etc.). 3.2 A constituição discursiva da notícia A fim de procedermos à análise da notícia, passamos a observar quatro aspectos constitutivos do material em foco: (a) equilíbrio de fontes: entrevistados da comunidade e especialistas da área, (b) a questão do referente: o outro lado, (c) generalizações e avaliações e (d) citações. Em todos, mas especialmente nos dois primeiros, podemos observar o embate entre norma e renormalização. Nos dois últimos, a subversão do prescrito é analisada a partir de marcas linguísticas específicas. (a)

Equilíbrio de fontes: entrevistados da comunidade e especialistas da área

O teor das entrevistas pode ser observado no texto principal da notícia em análise, no qual é apresentada a polêmica estabelecida em Bagé em torno da publicação do texto de Stedile em livro escolar. É merecedor de destaque o fato de haver uma disparidade no número de fontes (e suas respectivas opiniões) entrevistadas sobre o uso do artigo de Stedile. Enquanto três entrevistados da comunidade condenam o uso, apenas uma fonte é ouvida para justificar a publicação12: (a.1) - Só falta exigir que os alunos levantem e aplaudam – diz Daniela Gomes, administradora e mãe de uma menina de 10 anos. (a.2) A agrônoma Eveline Almeida ficou impressionada com a pergunta da filha de 11 anos: - Mãe, o vovô é latifundiário? Segundo Eveline, a filha teria aprendido, a partir do livro, que a presença de máquinas no campo seria responsável pelos desempregados que chegam às cidades. - Quando ouvi aquilo, não acreditei. Minha filha estava se sentindo culpada por ser filha e neta de produtor rural – espanta-se Eveline. 12

Os trechos são apresentados na ordem em que aparecem no texto.

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(a.3) O Sindicato Rural da cidade contatou a instituição para protestar. - Publicar um texto escrito por um cidadão processado por pregar o assassinato de produtores rurais é, no mínimo, curioso – comenta o presidente do Sindicato Rural de Bagé, Paulo Ricardo Dias. A única fonte que não critica o uso do artigo de Stedile e que, no jargão jornalístico, serve de contraponto às fontes que condenam o material didático aparece no penúltimo parágrafo do texto da matéria principal: (a.4) A direção da escola informou que revisará o conteúdo no próximo ano. - Estamos abertos a críticas e somos contra invasões e depredações. Vamos discutir a mudança com toda a rede salesiana – informa o diretor da escola, padre Dácio Bona. Além do texto principal, a notícia é complementada por uma segunda matéria, intitulada Abordagem de tema seria prematura, dizem especialistas, na qual são mostradas opiniões de três especialistas. A prática de ouvir especialistas ou autoridades da área é uma das principais estratégias de produção textual em jornalismo, de forma a conferir credibilidade às informações e oferecer nuances de veracidade aos fatos. No debate entre normas antecedentes e renormalizações, novamente se observa a disparidade no número de fontes ouvidas. Dois especialistas escolhidos são contrários ao uso do texto, enquanto um só o defende (o contraponto): •

Opinião de especialistas (a.5) O caso sobre o material didático usado na escola de Bagé chegou ao conhecimento do fundador da ONG Escola Sem Partido (www.escola-sempartido.org), criada em 2004 para combater a doutrinação ideológica nas escolas brasileiras.

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- Neste caso, estão tentando fazer a cabeça das crianças em uma idade em que elas não têm condições de discernir. Então, se vai se colocar uma visão, no caso o texto do Stedile, que se coloque também uma outra – critica Miguel Urbano Nagib, fundador da organização não-governamental. (Parágrafos 1 e 2) (a.6) Para a coordenadora do curso de Geografia da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), Cláudia Luísa Pires, textos como os apresentados pela escola são muito complexos para alunos com essa idade: - Não digo que esteja certo ou errado. Afirmo que esses estudantes são imaturos para receber informações complexas como essa. Eles não têm maturidade para opinar. (Parágrafos 3 e 4) •

Contraponto (a.7) O que diz Maria Ignez Diniz, diretora pedagógica da rede salesiana, a qual pertence a escola: - Não há nenhum juízo de valor. É um livro com conteúdo de geografia. (Box)

Observando o debate entre normas antecedentes e renormalizações, temos de considerar que, embora nos manuais de redação haja prescrições para que, na elaboração da notícia, sejam ouvidas todas as possibilidades a respeito do caso, respeitando e dando o mesmo espaço para diferentes opiniões, o que se percebe na notícia em análise é um maior espaço dado a pontos de vista que condenam o artigo assinado por Stedile, publicado no livro didático. Essa disparidade, ainda que possa ser explicada pelos estreitos prazos de fechamento da edição de jornal impresso, que no dia a dia os jornalistas se defrontam, cujo equilíbrio pode ser mais facilmente realizado, em função do tempo disponível, nas revistas semanais que se dedicam ao jornalismo, chama atenção o número de fontes ouvidas e seus posicionamentos. Os efeitos de sentido gerados pela notícia e observados pelos índices discursivos no tecido textual remetem ao fato de que o

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jornalista/jornal subverte as prescrições dos manuais de redação, os quais recomendam isenção e equilíbrio no número/posicionamento das fontes a serem entrevistadas, ao preencher valorativamente os espaços lacunares das normas. (b)

A questão do referente: o outro lado

O cerne da polêmica gerada em Bagé e mostrada na notícia é a publicação do texto de uma figura pública (líder do MST, João Pedro Stedile) em um livro didático. Em seu desenvolvimento, a notícia traz diferentes opiniões dos entrevistados sobre a publicação do texto de Stedile. A matéria não se restringe, no entanto, a apresentar as divergências e o embate entre um grupo de pais e a direção de uma escola. Ao inserir a opinião do presidente do Sindicato Rural de Bagé (entidade emblemática do setor e reconhecida por repudiar as ações e as ideias de Stedile), o jornalista/jornal sai do âmbito que até então a notícia estava inserida (a divergência sobre o conteúdo do material didático em uma instituição de ensino) e traz pistas discursivas do motivo que gerou tal polêmica: as diferenças ideológicas entre ruralistas e MST. Tendo em vista essa ampliação, parece-nos adequado considerar que, mesmo indiretamente, Stedile é uma das partes envolvidas no assunto. Isso se deve à possibilidade de considerar o caso a partir de duas dimensões interdependentes: (i) a que coloca em confronto familiares de alunos e a Escola e (ii) a que coloca em confronto as posições dos ruralistas e as do MST. Logo, como, para desenvolver a notícia, o jornalista/jornal consultou um representante dos ruralistas, poderíamos esperar que também consultasse um do MST, como o próprio Stedile. Nesse âmbito, de acordo com o Manual de Redação da Folha de S. Paulo (2005, p.27), caso o jornalista não consiga obter a opinião de uma das partes envolvidas no assunto, ele deve explicitar para o leitor os motivos por que isso ocorreu, de forma a demonstrar que foi aberta a possibilidade de manifestação/argumentação dos envolvidos na notícia. O Guia de Ética e Responsabilidade Social da RBS (2004, p.16) recomenda, no item Acusações, que qualquer pessoa, entidade, empresa, governo ou organismo que sofra alguma acusação deve ser entrevistado e ter sua versão divulgada simultaneamente com a notícia. Em caso

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de recusa de entrevista ou esgotadas todas as possibilidades de localização do entrevistado, tal informação deve constar na notícia. A ausência da voz de representante do MST ou de Stedile remetenos à questão da não-pessoa, proposta por Benveniste. Segundo esse autor, na enunciação, entendida como um processo em que o locutor se apropria do aparelho formal da língua e a transforma em discurso (1989), o sujeito falante se utiliza do emprego da primeira pessoa (eu) em contraste a uma segunda pessoa (tu) que implica reciprocidade e intersubjetividade. A terceira pessoa, ao se referir a um objeto (pessoa, assunto) colocado fora da alocução, é considerada não-pessoa. É o caso do ele, uma posição de ausência a quem não é dada a palavra, pois está em um espaço diferente da ocupada pelo locutor e interlocutor: fala-se dele e não com ele. Na notícia em análise, a posição da não-pessoa pode ser observada em um dos elementos gráficos da página, um box em que é traçado breve perfil de Stedile. Esse box tem o sugestivo título Quem é ele, com uma pequena foto (boneco, no jargão jornalístico) na parte superior. O debate renovado entre normas antecedentes e renormalizações pode ser observado no decorrer da notícia analisada, trazendo índices das características do trabalho do jornalista, como o modo de interagir com o fato, o jornal, a comunidade. O Guia de Ética e Responsabilidade Social da RBS (2004, p.24), no item Imparcialidade, afirma que “os veículos da RBS não mantêm índex de nomes ou assuntos proibidos para divulgação. A notícia deve abrir espaço a todos os envolvidos no assunto, sem qualquer preconceito, favorecimento ou perseguição”. Apesar de contemplada no manual, a recomendação de cruzamento de informações, especialmente o espaço para a versão do outro lado, não é absorvida integralmente na notícia em análise. A subversão da norma é explicada por Schwartz (2003, p.24) quando afirma que “a história se re-escreve em permanência, que novas normas de construção dos saberes, de construção do social, renormalizações incessantes reaparecem em todos os lugares onde os grupos humanos se mobilizam para produzir”.

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(c)

Generalizações e avaliações

Uma das recomendações dos manuais de redação é que o jornalista evite generalizações, as quais podem abarcar na notícia todo um grupo, sem que, no entanto, a totalidade esteja contemplada ou atingida pelo fato em questão, mas apenas parte dele. O Manual de Redação do Jornal O Estado de S. Paulo (1997, p.19-20) traz a seguinte recomendação no capítulo sobre as normas internas e de estilo do jornal: “o Estado não admite generalizações que possam atingir uma classe ou categoria, raças, credos, profissões, instituições, etc.” Na notícia em análise, podemos identificar apenas a voz de duas mães de alunos (Daniela Gomes e Eveline Almeida). Porém, ao longo do texto são encontradas expressões como por pais de alunos (subtítulo), entre os pais dos estudantes (parágrafo 1) e os pais (parágrafo 2), as quais, além de não mostrarem os autores dessas informações, também oferecem a impressão de que muitos pais foram ouvidos e teriam a mesma opinião sobre o texto de Stedile. Mais uma vez, o prescrito sofre subversão renormalizante, isto é, o profissional, ao desenvolver a tarefa, por mais que tente seguir as recomendações técnicas da sua área, sempre vai se deparar com lacunas existentes, sejam nas normas, sejam nas surpresas do trabalho, o que revela a atividade industriosa do sujeito que exige criatividade e mobilidade no preenchimento de espaços. Esse preenchimento, segundo Schwartz (2003, p.27), é realizado conforme os saberes do trabalhador, o que nos permite aproximar ao pensamento de Bakhtin (2003), no que se refere ao entendimento de que o enunciado é sempre avaliativo. Por isso, a compreensão de que as normas antecedentes nunca são neutras são afins aos estudos bakhtinianos, pois, em sendo constituídas pela linguagem, são enunciados, e cada interlocutor, no caso o trabalhador, tem atitude ativa diferente em relação a elas/eles, podendo, inclusive, (re) criar normas para gerir o trabalho. Ao enunciar, o jornalista/jornal, além de trazer a sua história, também direciona o seu dizer. Em outras palavras, o falante sabe o que é dizível em um dado contexto, sabe o que é admissível, pois ao enunciar faz projeções, antecipando o que o outro pode contrapor. Desse modo, o locutor, ocupando uma posição ativa em relação ao outro (por exemplo, o interlocutor, esfera de atividade, fato, jornal, comunidade etc.), empreende diferentes relações dialógicas com discursos que o antecedem e o sucedem.

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Observamos, nessa perspectiva, o uso de palavras avaliativas para designar a reação dos pais, expressões que conferem acento valorativo ao fato, aceitas numa notícia publicada no jornal Zero Hora. Alguns enunciados apresentam itens lexicais mais marcados valorativamente: os pais ficaram indignados (parágrafo 3), A agrônoma Eveline Almeida ficou impressionada (parágrafo 5), espanta-se Eveline (parágrafo 8). Tais enunciados carregam avaliações que aparecem na notícia e que não deixam de ressoar as escolhas efetuadas pelo jornalista/jornal. Ainda que todo enunciado seja ideológico, um signo ideológico, que expresse sempre uma posição avaliativa (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004), nem sempre as posições assumidas pelo locutor são facilmente percebidas pelos interlocutores. A partir dessa reflexão, podemos compreender que, embora a avaliação seja constitutiva de todo dizer, alguns enunciados apresentam marcas avaliativas mais evidentes do que outros. Os segmentos analisados, apesar de usuais em notícias, também não seguem as prescrições dos manuais de redação, que recomendam a busca de isenção e neutralidade e desaconselham o uso de palavras que possam fornecer avaliações feitas pelo profissional. Essas interferências do jornalista/jornal, no entanto, não comprometem o texto no que tange ao gênero notícia, que, se por um lado, está de acordo com a relativa estabilidade dos tipos de enunciados (BAKHTIN, 2003), diferentes possibilidades de concretizar o gênero, desde que algumas recorrências possam ser percebidas, por outro, ratifica o estatuto lacunar das normas e do trabalho (imprevistos), preconizado por Schwartz (2003), em que há sempre espaço para (re)elaborações do trabalhador. (d)

Citações

Duas principais formas de citação são resgatadas na análise: o discurso direto e a destacabilidade. Do ponto de vista das características constitutivas do gênero do discurso notícia, vale ressaltar o uso do discurso citado. A noção de discurso citado, desenvolvida por Bakhtin/Volochinov (2004, p.144) como “o discurso no discurso, a enunciação na enunciação (...) um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação”, remete, por um lado, ao fato de que todo discurso é constituído por diferentes graus de

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inserção da palavra de outrem, e por outro, ao fato de que existem marcas linguísticas (em algumas inserções) que assinalam a presença da voz alheia. No que se refere à notícia em análise, chama-nos atenção, dentre as possibilidades do discurso citado, o uso predominante do discurso direto, no caso marcado por travessão, que, além de inscrever sintaticamente as declarações dos entrevistados, orienta o modo de apreensão, a atitude ativa do locutor citante em relação ao discurso do outro. Ao lançar mão das declarações dos entrevistados via discurso direto, são criados efeitos de veracidade, autenticidade e objetividade (característicos do gênero notícia) (MAINGUENEAU, 2001, p.141).13 Todavia, temos de ficar atentos, na notícia em foco, para os modos de avaliação do discurso do outro, como é o caso do cuidado com a seleção dos trechos citados e as escolhas lexicais que engendram a citação. Não se pode desconsiderar ainda que as citações apresentadas no texto são constitutivas da construção da notícia, que segue uma certa organização: inicialmente, explora um determinado fato (no caso, o descontentamento dos pais) para então apresentar opiniões, via citações, de atores de campos sociais de alguma forma envolvidos na informação. Isso ocorre por que o jornalismo se ocupa de temas de diferentes campos sociais e traz à cena pública acontecimentos impregnados de valores-notícia. O que se observa é que, no desenvolvimento da reprodução dos falares em outro contexto, no caso jornalístico, há uma reconstrução da situação de enunciação, o que configura, seguindo Maingueneau (2001, p.141), a não objetividade do discurso direto, pois sempre será “um fragmento de texto submetido ao enunciador do discurso citante”. Quanto à destacabilidade, Maingueneau (2006, p.80) observa que é próprio dos “procedimentos midiáticos situar enunciados em posições textuais escolhidas [...] de modo a torná-las destacáveis, a favorecer sua circulação posterior”. Afirma ainda que “a citação está inscrita no próprio funcionamento da máquina midiática, cujos atores gastam seu tempo destacando fragmentos de textos para convertê-los em citações (para os títulos e os intertítulos, as resenhas, os resumos, as entrevistas, etc.)”. Nessa perspectiva, podemos dizer que o enunciado-título “Mãe, o vovô é latifundiário?” foi destacado da notícia da parte referente à entrevista com a mãe da menina que teria feito a pergunta, o que o configura como discurso 13

Sobre essa questão, consultar Brait e Rojo (2003), Grillo (2004) e Sant´Anna (2004).

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direto que procura criar efeito de veracidade. Conforme Maingueneau (2006, p.80), o gênero filtra tipos de enunciados destacáveis e relevantes, porém “nada impede que um jornalista converta soberanamente em ‘pequenas frases’, graças a uma manipulação apropriada, qualquer sequência de um texto”.14 No caso em foco, podemos perceber que, embora o jornal Zero Hora não costume destacar como título falas de pessoas que não sejam públicas, o enunciado se presta à destacabilidade por ser relativamente breve e por apresentar uma síntese semântica do conflito de valores postos em cena na notícia, já que a pergunta é representativa do impasse entre as famílias de produtores rurais e o conteúdo do livro didático. Causa estranheza, no entanto, o uso da fala de uma criança no título da notícia, que funciona como uma tentativa de atrair a atenção do leitor, causar impacto. Esse tipo de destacamento que mantêm um elo com o texto, de acordo com Maingueneau (2006, p.86), “confirma os resultados dos trabalhos recentes sobre o discurso direto, que acentuam seu caráter de simulação e a intervenção constante do locutor que cita”. O enunciado “Mãe, o vovô é latifundiário?”, além de revelar pistas da subjetivação do jornalista/jornal, cria efeito de autenticidade ao dar destaque à fala infantil, renormalizando as orientações dos manuais de redação que desaconselham o uso de apelos emotivos em notícias jornalísticas. Tais pistas fazem ressoar acentos apreciativos que, se por um lado se distanciam dos manuais de redação, por outro parecem se aproximar da linha editorial da empresa de comunicação, que tem demonstrado, através de editoriais, discordar das ações de movimentos sociais como o MST.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo, ainda que breve, nos permitiu resgatar índices da atividade discursiva do jornalista, especialmente no que se refere à tensão entre as técnicas de redação, o fato e o jornal. Para tanto, foi fundamental o embasamento da teoria dialógica do discurso e da abordagem ergológica. Enquanto, pela teoria dialógica, fizemos reflexões predominantes sobre o entendimento da notícia como gênero discursivo que indissocia o enunciado 14

O autor apresenta vários exemplos enfocando a diferença entre as citações e os textos-origem.

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concreto da atividade do jornalista, pelo enfoque ergológico, a principal reflexão tange às contribuições para a compreensão do trabalho humano, especialmente o debate entre normas antecedentes e renormalizações. Na notícia analisada, observamos a ratificação da lógica da construção das notícias, ou seja, a exploração inicial de um determinado contexto e a sucessiva expansão para outros campos sociais envolvidos na informação, que se encarregam de reagir à temática. Essa prática parece interessante ao modo de fazer jornal hoje, ainda que, tecnicamente, seja recomendável nos manuais de redação que o jornalismo dê espaço a todas as possibilidades discursivas. A fim de organizarmos metodologicamente a reflexão, elegemos critérios de observação da notícia, passando pelo contexto de produção até aspectos pontuais, como equilíbrio de fontes, questão do referente, generalizações/avaliações e citações. Desse modo, resgatamos pistas discursivas de que o jornalista na sua atividade está sempre em debate com normas partilhadas historicamente. O fato da disparidade das fontes, tanto dos entrevistados da comunidade quanto dos especialistas no assunto, além do uso do discurso citado, para dar credibilidade ao que está sendo dito, não deixa de ressoar as escolhas (conscientes ou não) efetuadas na elaboração da matéria. Da mesma forma, o modo como o referente é construído no texto não deixa de apresentar pistas da atividade jornalística e do modo como o jornalista se subjetiva na notícia. As generalizações e avaliações foram observadas em conjunto na análise devido ao fato de não se excluírem, pois entendemos que a generalização é uma forma de avaliação, no caso a inserção da voz de duas mães de alunos como se vários pais tivessem sido ouvidos. Já a avaliação pode ou não remeter a generalizações, o que acontece no enunciado os pais ficaram indignados, que parece incluir todos os pais como indignados. O quarto e último aspecto constitutivo da notícia, analisado neste artigo, referese à citação. Chama a atenção o uso predominante do discurso direto, estratégia que cria uma encenação com efeitos de veracidade, objetividade e autenticidade. O título da matéria (“Mãe, o vovô é latifundiário?”) não só traz características do discurso direto, como também de outra forma de apreensão do discurso do outro, a destacabilidade, tal como desenvolvida por Maingueneau (2006). O uso da fala de uma criança é uma tentativa de

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conquistar a atenção do leitor, neste caso, por uma enunciação de impacto, eis que a temática reforma agrária exige reflexões aprofundadas, para as quais dificilmente uma criança de 11 anos estaria preparada. Com a análise, pudemos verificar o tensionamento entre normas e renormalizações, fazendo emergir modos de criar e reinventar a própria atividade (SCHWARTZ, 2003). Nesse sentido, pudemos compreender características, ainda que parciais, da singularidade da atividade jornalística, via construção discursiva da notícia e o embate com a busca da objetividade no tratamento dos fatos. A precisão almejada procura passar efeitos de veracidade, o que Lage (1998, p.26) enfatiza ao destacar que “não basta ser verdadeiro; é preciso parecer”. Essa afirmação nos remete à prática da utilização do discurso direto como recurso ao dizer verdadeiro do entrevistado. O que não podemos esquecer é que “aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p.147), que se projetam, de diferentes formas, na materialização do discurso. Esse é o caso do locutor-jornalista da notícia analisada.

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ATIVIDADES DE COMPREENSÃO DE GÊNEROS DIGITAIS EM LIVROS DIDÁTICOS1 COMPREHENSION ACTIVITIES ON DIGITAL GENRES IN TEXTBOOKS Benedito Gomes Bezerra Universidade Federal de Pernambuco Amanda Cavalcante de Oliveira Lêdo Universidade Federal de Pernambuco RESUMO Na tentativa de representar em suas páginas a diversidade de gêneros que circulam na sociedade e se fazem recorrentes no cotidiano dos estudantes, os livros didáticos de língua portuguesa vêm incorporando gêneros digitais como conteúdos pertinentes para o processo de ensino-aprendizagem. Admitindose que não se trata apenas de incluir os gêneros digitais no livro didático, mas incluí-los e explorar sua presença de forma adequada para a formação dos estudantes, este trabalho tem como objetivo investigar e delinear uma tipologia dos exercícios propostos pelos manuais de ensino ao lidarem ou fazerem referência a gêneros oriundos do ambiente digital. Buscamos aporte teórico nos estudos desenvolvidos por Marcuschi (1996, 2005, 2008) sobre o trabalho com a compreensão em livros didáticos, aplicando a tipologia proposta pelo autor aos exercícios relacionados com gêneros digitais como blogs e e-mails encontrados em 09 coleções de livros didáticos de língua portuguesa do ensino fundamental (6º. ao 9º. anos) e 05 coleções do ensino médio (1ª. a 3ª. séries). Os resultados evidenciam que os gêneros digitais ainda figuram timidamente nos livros didáticos e são pedagogicamente explorados de forma limitada. Palavras-chave: Gêneros digitais; livro didático; atividades de compreensão. ABSTRACT In an attempt to best represent in their pages the diversity of genres that circulate in society and are largely recurrent in students’ daily lives, the textbooks 1

Apresentado originalmente como comunicação oral no V Encontro das Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino (Natal, UFRN, 2011). Agradeço a Amanda Carla S. Teixeira e Joselma Alves de Goes, bolsistas de IC, e a Maria Estela M. de Oliveira, graduanda em Letras, pela coleta e análise inicial dos exemplos mencionados neste trabalho.

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for the teaching of Portuguese language are increasingly incorporating digital genres as relevant contents in teaching and learning process. Assuming that it is not just a matter of including digital genres in the textbook, but including them and adequately exploiting their presence for the formation of students, this study aims to investigate and to devise a typology of exercises proposed by textbooks when they deal or make reference to genres from digital environments. We seek theoretical support in studies by Marcuschi (1996, 2005, 2008), on working with comprehension in textbooks, applying the typology proposed by the author to the exercises related to digital genres such as blogs and e-mails found in 09 collections of textbooks for Portuguese language teaching in primary education (6. to 9. grades) and 05 collections for high school level (1st. to 3rd. series). Results show that the digital genres still appear timidly in textbooks, and there is certain limitation in the pedagogical exploitation of these genres. Keywords: Digital genres; textbook; comprehension activities.

INTRODUÇÃO Uma diversidade de gêneros textuais característicos do ambiente digital passou, nos últimos tempos, a fazer parte do cotidiano das pessoas em geral e, considerando os objetivos deste trabalho, dos alunos do ensino fundamental e médio em particular. Através da leitura e da escrita como práticas sociais incontornáveis, as pessoas assumiram esse ambiente como lócus privilegiado para a interação, utilizando-se das diversas mídias digitais como canal ou suporte para eventos comunicativos igualmente diversificados. Na tentativa de representar em suas páginas a diversidade de gêneros textuais que circulam na sociedade e se fazem recorrentes no cotidiano dos estudantes, os livros didáticos de língua portuguesa vêm, ainda que timidamente, como mostraremos adiante, incorporando ou aludindo a gêneros digitais como conteúdos pertinentes para o processo de ensinoaprendizagem, por vezes explorando-os em atividades especificamente voltadas para a leitura e produção textual. Com isso, os livros didáticos buscam, em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e outras diretrizes oficiais de ensino, cumprir seu papel de servir como ferramenta mediadora do processo pedagógico na educação básica.

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Admitindo-se que não se trata apenas de incluir os gêneros digitais no livro didático (LD), mas incluí-los e explorar sua presença de forma qualitativamente pertinente para a formação dos estudantes, este trabalho tem como objetivo investigar e delinear uma tipologia dos exercícios propostos pelos manuais de ensino ao lidarem ou fazerem referência a gêneros oriundos do ambiente digital, com uma atenção especial para a forma como se propõe a compreensão dos gêneros em questão. Com essa finalidade, retomamos estudos desenvolvidos por Marcuschi (1996, 2005, 2008) sobre o trabalho com a compreensão em livros didáticos, aplicando a tipologia proposta pelo autor2 aos exercícios relacionados com gêneros digitais como blogs e e-mails encontrados em 09 coleções de livros didáticos de língua portuguesa do ensino fundamental (6º. ao 9º. anos) e 05 coleções do ensino médio (1ª. a 3ª. séries). O artigo está organizado de acordo com os seguintes tópicos: primeiramente, mencionaremos pesquisas anteriores sobre a ocorrência e exploração pedagógica de gêneros digitais no livro didático de língua portuguesa, situando-os como base para este estudo de natureza qualitativa. Em seguida, apresentamos e discutimos a noção de compreensão que adotamos, teoricamente ancorada nos princípios da linguística de texto. Como terceiro momento do estudo, apresentamos a tipologia de perguntas de compreensão proposta por Marcuschi (2005, 2008) para, finalmente, apresentarmos os resultados de nossa análise dos exercícios relacionados com gêneros digitais no livro didático de língua portuguesa do ensino fundamental e médio.

1. Sobre gêneros digitais no livro didático de português A partir dos PCN, tornou-se lugar comum, para os professores em geral, a tese de que o ensino de língua deve se basear numa “diversidade de gêneros textuais”. Admite-se ainda que os gêneros selecionados para tratamento como objeto de ensino devem estar bem distribuídos em contínuos que abranjam a oralidade e a escrita, os registros formais e informais, a diversidade de suportes e outros aspectos que contribuam para 2

Cabe mencionar a proposta de redimensionamento dessa tipologia apresentada por Chacon (2010), que não será considerada para os fins deste estudo.

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uma adequada representação da complexidade das práticas comunicativas e interacionais humanas mediadas pela linguagem. Nesse processo, o livro didático de língua portuguesa desempenha um papel relevante, dada a sua centralidade como ferramenta de ensinoaprendizagem nas mãos de professores e alunos. Explicada, entre outros motivos, pela sobrecarga de trabalho do professor, o que dificultaria ou até mesmo o impediria de recorrer a outras fontes para basear suas aulas, essa centralidade do livro didático no processo pedagógico dificilmente seria questionada na realidade da educação básica brasileira. Embora não haja uma diretriz oficial explícita para inclusão dos gêneros digitais no livro didático, essa inclusão é de alguma forma pressuposta ou pelo menos poderia ser esperada, considerando-se as alusões dos PCN à relação entre novas tecnologias e ensino. Para Araújo-Júnior (2008, p. 62), haveria três motivos por que os gêneros digitais deveriam ser incorporados ao livro didático: em primeiro lugar, pela atual e indiscutível importância desses gêneros no contexto social, dada a responsabilidade da escola em privilegiar atividades de ensino que enfoquem as práticas comunicativas mais recorrentes e centrais nesse contexto. Em segundo lugar, porque haveria situações em que a única ou principal forma de contato dos alunos com os gêneros digitais seria o livro didático.3 Em terceiro lugar, porque se espera que o livro didático acompanhe a evolução e as transformações tecnológicas inclusive do ponto de vista do impacto destas sobre o processo de ensino-aprendizagem. Coscarelli e Santos (2007, p. 3) defendem o ponto de vista de que “independentemente do julgamento que se faz do universo digital é inevitável que ele seja objeto de uso e de reflexão na escola, uma vez que faz parte da vida contemporânea”. Conforme as autoras, trata-se de possibilitar a pessoas (neste caso, os alunos) que ainda não têm acesso ao ambiente digital a oportunidade de conhecê-lo e de se familiarizar com ele. Para que isso seja possível, consideram as autoras ser “importante que [os] livros didáticos ajudem o professor a fazer uso desse material”. Admitido que 3

Embora seja provável que essas situações ocorram minimamente no Brasil de hoje, pelo menos até onde é do nosso conhecimento. O acesso aos gêneros digitais no seu próprio ambiente tem sido bastante democratizado inclusive para quem não possui computador. Veja-se a proliferação de lan houses, em que se pode acessar a Internet a um custo mínimo por hora. De toda forma, considerando as imensas dimensões geográficas e a grande diversidade social reinante no país, não descartamos a possibilidade levantada pelo autor.

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à escola cabe ocupar-se dos gêneros digitais como práticas comunicativas relevantes e recorrentes no contexto social, e que o livro didático configurase como um dos principais instrumentos de que a instituição escolar lança mão para cumprir seus objetivos, segue-se a inevitabilidade da incorporação dos gêneros digitais nos manuais de ensino, de acordo com critérios condizentes com as noções de linguagem, língua, texto e gênero hoje bem estabelecidas na academia e já introduzidas nos PCN e demais diretrizes oficiais de ensino. Tratando-se de uma discussão necessariamente recente, como recente é a história da gradual popularização do acesso às mídias digitais e respectivos gêneros de texto, não há muitos estudos sobre a temática da introdução e exploração pedagógica dos gêneros digitais no livro didático. Todavia, não se trata de um assunto absolutamente novo. Nesses últimos anos, algumas pesquisas têm vindo à luz, contribuindo para colocar o assunto na agenda dos estudos da linguagem aplicados ao ensino de línguas. Através desses estudos, sabemos, por exemplo, que livros didáticos de língua estrangeira (espanhol) começam a utilizar de forma clara os gêneros digitais como parte de seus conteúdos de ensino. Nesse particular, Araújo-Junior (2008) dedicou-se a analisar propostas de atividades com gêneros digitais em livros didáticos de espanhol como língua estrangeira, especialmente considerando o modo como as atividades propostas exploravam aspectos relacionados com a linguagem e com a estrutura composicional dos gêneros, além de se perguntar se essas atividades conduziam o aluno à prática da comunicação no meio digital. Embora constate a presença de gêneros digitais como o e-mail, o chat e o fórum no livro didático, o que em si é um bom sinal, o autor conclui que as atividades desenvolvidas “não tratam das características desses gêneros no que tange à sua linguagem, em particular de sua escrita, e aos seus aspectos composicionais” (ARAÚJO-JÚNIOR, 2008, p. 116). Por vezes as atividades parecem inadequadas até por se concentrarem em aspectos meramente formais, alheios aos propósitos comunicativos e retóricos dos gêneros. De acordo com o autor, o aspecto positivo é que as atividades procuram levar o estudante a vivenciar concretamente o ambiente digital.

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Em estudo sobre as resenhas dos livros didáticos submetidos ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2007, Barbosa (2009) pondera que, ao lado de visíveis avanços na qualidade do livro didático, percebem-se sinais de um uso apressado dos gêneros digitais e de outros recursos do meio digital. Os gêneros provenientes desse meio, quando apresentados no LD, via de regra não são objeto de um trabalho de qualidade, capaz de contribuir para o letramento digital do aluno. Para a autora, quando se trata de explorar pedagogicamente os gêneros típicos do ambiente digital, pode-se afirmar que “praticamente inexiste um trabalho sistematizado e gradual com os textos dessa esfera discursiva” (BARBOSA, 2009, p. 17). Numa análise talvez mais positiva e otimista, Coscarelli e Santos (2007) elencam uma série de elementos típicos das novas tecnologias que têm sido incorporados ao livro didático de língua portuguesa: o uso de ligações entre conteúdos simulando os links do meio digital, a configuração de textos segundo o formato de textos da Internet, a indicação de sites para o aprofundamento de temas sob estudo, propostas de desenvolvimento de projetos utilizando programas de computador, atividades de reconhecimento de ferramentas de navegação na Internet, o uso ilustrativo de simbologia típica da Internet, a apresentação de textos que tematizam a Internet e, finalmente, a análise e produção de gêneros digitais. Apesar disso, as autoras reconhecem que a forma de inserção das novas tecnologias no livro didático nem sempre é a melhor: embora todas essas formas de explorar o ambiente digital contribuam para o letramento dos alunos, “a presença desses elementos, no LD... não significa que o letramento digital tem sido bem abordado nas atividades e seja um objetivo traçado pelos materiais. Muitas vezes a abordagem é ainda esporádica e superficial” (COSCARELLI e SANTOS, 2007, p. 17). No âmbito do nosso próprio grupo de pesquisa, intitulado Práticas Discursivas, Interação Social e Ensino (DISCENS), alguns estudos exploratórios têm sido feitos, oferecendo subsídios para uma compreensão mais clara e informada da questão. Cabe mencionar alguns deles aqui, até por constituírem a base principal sobre a qual se assenta a análise empreendida por nós e relatada neste trabalho.

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Após examinar 05 coleções de livros didáticos de português do ensino fundamental, Teixeira (2010) constatou que o LD raramente apresenta gêneros digitais e, quando o faz, mostra acentuada preferência por e-mails e blogs, por vezes enfocando também os chats. Resultados semelhantes foram encontrados também por Oliveira (2010), na análise de outras 05 coleções de LDs também do ensino fundamental. As ocorrências de gêneros digitais variam de um a três por coleção, geralmente localizados em apenas um dos volumes em cada coleção. Conforme demonstrou Bezerra (2011), além do modo esporádico como são utilizados no LD, as atividades desenvolvidas com os gêneros digitais concentram-se em aspectos superficiais de sua forma composicional, quando não se limitam ao estudo de conteúdos gramaticais tratando os gêneros como mero pretexto para esse tipo de exercícios. Além disso, os gêneros muitas vezes são apresentados em configurações formais e linguísticas que pouco lembram sua aparência real na Internet. É forçoso concluir que o trabalho com os gêneros digitais no LD de português ainda não é satisfatório. Quanto ao livro didático de português do ensino médio, a investigação realizada por Goes (2011) evidencia um quadro semelhante àquele traçado para o ensino fundamental, talvez com algumas diferenças qualitativas. O gênero digital mais recorrente ainda é o e-mail, sendo positivo o fato de que este é descrito algumas vezes com ênfase nos seus propósitos comunicativos socialmente reconhecidos. Negativamente, fica a impressão de que por vezes o gênero é apresentado apenas como uma espécie de curiosidade ou distração para o aluno, não sendo objeto de nenhuma atividade específica.

2. Aspectos de uma teoria da compreensão textual De acordo com Marcuschi (1996, p. 71), “não são muitos os princípios básicos para fundamentar um bom trabalho no estudo da compreensão”. O primeiro aspecto considerado importante pelo autor é a concepção de língua que se adota. Criticando uma geração de livros didáticos anteriores aos PCN, Marcuschi (1996, p. 71) constata que estes “concebem a língua simplesmente como um código ou um sistema de sinais autônomo, totalmente transparente, sem história, e fora da realidade social dos falantes”.

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Essa noção de língua explicaria por que as atividades propostas no livro didático dificilmente conduziam realmente à compreensão textual. Seria necessário conceber a língua como atividade social, cognitiva e interacional, muito mais do que um simples código ou estrutura. A partir dessa concepção de língua, o texto seria visto como lugar de produção de sentidos, e não como um depósito de significados prontos e acabados. O sentido do texto não é visto como dado na imanência linguística, mas como construído na relação autor-texto-leitor. Diante disso, perdem o sentido atividades como “identificar a ideia central do texto”, uma vez que esta não se encontra necessária e inequivocamente inscrita na superfície textual. Conforme Marcuschi (1996, p. 73), o texto não deve ser tratado nem como uma “cesta natalina”, “onde a gente bota a mão e [de onde] tira coisas”, nem como uma “caixinha de surpresas” ou uma “caixa preta”, de onde pode sair qualquer coisa. Assim, não se trata de um “vale tudo” na interpretação, nem de um único sentido possível préinscrito no texto, mas é sempre possível haver leituras diferentes umas das outras e, ainda assim, aceitáveis ou “corretas”. Para Marcuschi (1996, p. 73), “compreender o texto não será mais uma atividade de garimpagem de informações. Um texto oferece muito mais surpresa que um garimpo e tem muito mais coisas escondidas que um garimpo”. Seguindo Beaugrande (1997, p. 10), Marcuschi (2008, p. 242) ainda define o texto como um evento comunicativo para o qual convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas. O terceiro aspecto destacado por Marcuschi (1996, p. 74) como importante para uma teoria da compreensão é a noção de inferência, entendida como “aquela atividade cognitiva que realizamos quando reunimos algumas informações conhecidas para chegarmos a outras informações novas”. Assim, a compreensão é vista como um processo inferencial, vale dizer, uma atividade de produção de sentidos que não se identifica com a mera extração de informações do texto. Os sentidos são construídos tanto com base no que está no texto como com base no que está na mente do leitor, no seu conhecimento de mundo, em suas crenças e valores. Ainda de conformidade com Marcuschi (1996), a compreensão do texto pode se dar em cinco diferentes “horizontes”: (1) a falta de horizonte, em que não há compreensão e apenas se copia e repete o que está na superfície textual; (2) um horizonte mínimo, em que o leitor opera uma

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espécie de leitura parafrástica, sendo capaz de repetir o conteúdo textual com outras palavras, mas pouco acrescentando em termos de compreensão; (3) um horizonte máximo, que utiliza as inferências e, portanto, vai além da repetição e da paráfrase, sendo capaz de “ler nas entrelinhas” ou produzir sentidos; (4) um horizonte problemático, em que o processo inferencial é extrapolado, produzindo leituras idiossincráticas e já correndo certo risco de distanciar-se demasiadamente de uma leitura aceitável do texto; e (5) um horizonte indevido, marcado por uma leitura inaceitável ou “errada”, que não guarda relação aceitável com o universo de sentidos proposto pelo texto. Como fica claro por essas considerações teóricas, “compreender não é uma ação apenas linguística ou cognitiva. É muito mais uma forma de inserção no mundo e um modo de agir sobre o mundo na relação com o outro dentro de uma cultura e uma sociedade” (MARCUSCHI, 2008, p. 230). É muito mais do que compreender palavras ou frases e extrair conteúdos textuais.

3. Atividades de compreensão no livro didático Marcuschi (1996) parte da observação de que a maioria dos livros didáticos de língua portuguesa apresenta uma seção intitulada “compreensão textual”, “interpretação de texto” ou algo semelhante. De fato, em um processo de ensino de língua baseado em textos, e não em formas ou frases isoladas, a compreensão é aspecto fundamental e necessita ser trabalhada. Entretanto, a partir de um olhar crítico sobre os livros didáticos, o autor se pergunta se de fato essas seções se prestam a desenvolver atividades reais de compreensão ou, antes, se dedicam a propor exercícios de “copiação”. Ao olharmos para as atividades propostas em conexão com a apresentação de gêneros digitais, ou ainda, atividades propostas a partir de comentários sobre gêneros digitais no livro didático, igualmente levantamos a pergunta pela possibilidade de essas atividades realmente promoverem a adequada compreensão daqueles gêneros. Conforme Marcuschi (1996), a maioria dos exercícios de compreensão em livros didáticos se estrutura na forma de perguntas e respostas, faltando nas propostas o estímulo claro à reflexão. As perguntas são marcadamente estereotipadas e repetitivas (quem, onde, como, qual). Quando as atividades

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fogem do esquema pergunta-resposta, muitas vezes apelam para formas verbais imperativas atreladas à mera extração de informações textuais (copie, ligue, retire, complete). O problema com as atividades de compreensão, conclui Marcuschi (2005), não é a sua ausência nos livros didáticos, mas a natureza inadequada desse trabalho. Pontualmente, o autor identifica quatro limitações do tratamento da compreensão nos LDs que analisou: (1) a compreensão é tratada como decodificação ou extração de informações; (2) as questões de compreensão aparecem misturadas com outras que nada têm a ver com o assunto; (3) os exercícios muitas vezes não têm relação com o texto a que pretensamente se referem; e (4) os exercícios de compreensão raramente levam à reflexão crítica sobre os textos. Dessa forma, percebe-se que os livros didáticos não conseguem tratar sistematicamente a compreensão e, na maioria das vezes, não conseguem estimular uma mentalidade crítica por parte do aluno. Em síntese, Marcuschi (1996, p. 71) classifica as atividades de compreensão em livros didáticos em quatro categorias. Segundo o autor, nos livros que examinou, mais da metade das perguntas são (1) perguntas respondíveis sem a leitura do texto, (2) perguntas não respondíveis, mesmo lendo o texto, (3) perguntas para as quais qualquer resposta serve e (4) perguntas que só exigem exercício de caligrafia. Em trabalhos posteriores, Marcuschi (2005, 2008) refina e amplia essa tipologia para propor nove diferentes categorias de perguntas conforme se vê no quadro: TABELA 1: Tipologia de perguntas de compreensão (MARCUSCHI, 2005, p. 54-55) Tipos de perguntas

Explicitação

1. A cor do cavalo branco de Napoleão

São perguntas respondidas pela própria formulação (“Qual a cor do cavalo branco de Napoleão?”)

2. Cópias 3. Objetivas

Perguntas que sugerem atividades mecânicas de transcrição de informações. Perguntas que indagam sobre conteúdos objetivamente inscritos no texto.

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303 contimuação tabela 1 Tipos de perguntas 4. Inferenciais 5. Globais 6. Subjetivas 7. Vale tudo 8. Impossíveis 9. Metalinguísticas

Explicitação Perguntas complexas que exigem conhecimentos textuais, contextuais e enciclopédicos, além de análise crítica para busca de respostas. Perguntas que levam em conta o texto como um todo, além de aspectos extratextuais. Perguntas que têm pouca relação com o texto, cuja resposta depende do aluno. Perguntas que admitem qualquer resposta, sem ligação forte com o texto. Perguntas que não podem ser respondidas com base no texto, exigindo outros conhecimentos. Perguntas que indagam sobre questões formais relacionadas com a estrutura do texto.

Olhando com certa atenção essas categorias, é possível afirmar que as perguntas contemplam: a mera extração ou identificação de informações (1, 2 e 3); a construção de sentidos baseada em operações inferenciais (4 e 5); perguntas que se relacionam de forma inadequada com o texto (6, 7 e 8); perguntas centradas em aspectos da estrutura textual (9). Na análise a seguir, procuramos identificar quais dessas categorias se encontram nas atividades propostas para compreensão de textos que versam sobre gêneros digitais ou que procuram representá-los no livro didático de ensino fundamental e médio.

4. Atividades de compreensão de gêneros digitais em livros didáticos Conforme discutimos anteriormente neste trabalho, não é difícil constatar, ao examinarmos os livros didáticos de língua portuguesa, que a ocorrência de gêneros digitais nesses manuais ainda é bastante esporádica. Consequentemente, os exercícios de compreensão relacionados com gêneros digitais não poderiam ser encontrados com grande frequência no LD. Globalmente, tanto no ensino fundamental como no médio, os exercícios em geral não são numerosos, e os exercícios de compreensão são mais raros ainda. Por vezes, encontramos exercícios dedicados a aspectos

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gramaticais e até à oralidade que em alguma medida envolvem gêneros digitais. Nesta análise, nos dedicaremos especificamente aos exercícios de compreensão. Numa visão de conjunto das 09 coleções de LDs do ensino fundamental e 05 do ensino médio às quais nos referimos neste trabalho, verificamos que, das perguntas que constam na tipologia proposta por Marcuschi (2005, 2008), apenas as perguntas do tipo “cor do cavalo branco de Napoleão” e “impossíveis” não ocorrem em nenhum momento. As demais categorias estão em maior ou menor medida representadas nos exercícios que analisamos. Em um LD do ensino fundamental, uma atividade voltada para a compreensão do gênero e-mail concentra-se prioritariamente em questões estruturais e propõe questões que exigem apenas a identificação e extração de informações, com pouca ou nenhuma implicação para os processos inferenciais. No Exemplo 1, as perguntas do tipo “cópia” estão representadas de forma clara: Exemplo 1: Perguntas do tipo “cópia” Qual é o endereço eletrônico do remetente? E o do destinatário? (CEREJA; MAGALHÃES, 2009, 6. Ano)

Para responder às perguntas, tudo que o aluno tem a fazer é observar o texto, identificar e extrair as informações solicitadas, que estão postas de forma inequívoca, marcadas pelas expressões “de” e “para”, respectivamente, de modo que o exercício não exige maior esforço cognitivo da parte do aluno (cf. Figura 1).4

4

Do ponto de vista do letramento no gênero, ressalte-se que a atividade pelo menos alude a um provedor real de serviços de e-mail, ao contrário de outros exemplos em que o e-mail é representado de forma artificial ou “naturalizado” no LD via literatura.

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FIGURA 1: E-mail no livro didático do ensino fundamental

Fonte: Português: linguagens (CEREJA; MAGALHÃES, 2009, 6. ano, p. 147)

Por vezes, talvez essas atividades exijam um mínimo de atividade inferencial ou de conhecimento metalinguístico, apesar de se concentrarem na mera identificação e cópia de informações presentes no texto. É o que ocorre nos exemplos abaixo, em que precisa utilizar conhecimentos prévios para identificar uma fórmula de despedida e uma interjeição, respectivamente. Exemplo 2: Pergunta “cópia” exigindo identificar fórmula de despedida Que expressão Thete usou para se despedir de Thaih? (CEREJA; MAGALHÃES, 2009, 6. Ano) Exemplo 3: Pergunta “cópia” envolvendo metalinguagem Os e-mails, assim como as cartas e os bilhetes, costumam começar com uma saudação. Releia a saudação do e-mail. Que interjeição foi empregada? (PENTEADO; MARCHETTI, 2009, 6. Ano) Essas questões, por outro lado, apontam para a dificuldade de se enquadrar as perguntas em uma categoria marcuschiana de forma absoluta. Por vezes, as perguntas apresentam mais complexidade do que dão a entender as categorias. Também muito frequentes são as perguntas do tipo “objetivas”, que em geral exigem do aluno apenas o trabalho de apontar alguma informação explícita no texto. Contudo, também nessas perguntas há certa gradação,

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em que algumas parecem implicar algum processo inferencial para que sejam respondidas, enquanto outras nem sequer exigem propriamente a leitura do texto. Vejamos os exemplos: Exemplo 4: Pergunta “objetiva” exigindo identificação de informações De acordo com o e-mail, faça um esquema em seu caderno, indicando: o endereço eletrônico do remetente, o endereço eletrônico do destinatário, a data do envio da mensagem, o cumprimento, o nome do assunto do e-mail e a despedida e a assinatura. (SOUZA; CAVÉQUIA, 2009, 7. Ano) Seja qual for o sentido do termo “esquema” no comando da questão, fato é que as informações exigidas do aluno deverão ser simplesmente coletadas no exemplar de e-mail, não exigindo qualquer processo inferencial significativo. A atividade, bastante recorrente nos LDs, reflete por outro lado uma preocupação em ressaltar os aspectos estruturais do e-mail como gênero. De forma um pouco diferente, é o que faz a questão abaixo, que após apontar para o início da mensagem, onde estão os nomes do remetente e do destinatário, indaga ao aluno qual o objetivo da mensagem e em qual item ela está resumida. Assim, além de solicitar do aluno a localização de informações que se encontram na superfície do texto, ainda o direciona de forma inequívoca para o campo “assunto” do e-mail. Exemplo 5: Pergunta “objetiva” conduzindo à identificação de informações Ainda na abertura do texto se veem os nomes do remetente e do destinatário. Qual é o objetivo da mensagem? Em que item ele está resumido? (SARMENTO; TUFANO, 2009, 1. Série) Noutra atividade, a pergunta, apesar de “objetiva”, pelo menos apresenta o mérito de propor a leitura das informações visuais contidas nos emoticons, após o comando típico expresso pela forma verbal “localize”.

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Quer dizer, pelo menos, além de “localizar” informações explícitas no texto, o aluno tem que “dizer o que significam”, vale dizer, envolver-se numa atividade de produção de sentidos. Exemplo 6: Pergunta “objetiva” envolvendo produção de sentido Em alguns momentos de seu texto, Carol utilizou emoticons (sequências de caracteres simulando carinhas) para dar maior expressividade a seu e-mail. Localize os emoticons e diga o que eles significam. (SOUZA; CAVÉQUIA, 2009, 7. Ano) Apesar de ser virtualmente preocupante a larga ocorrência de perguntas tipo “cópias” e “objetivas”, com o que também concorda Marcuschi (2005), surpreendentemente encontramos algumas atividades que claramente exigem a ativação de processos inferenciais para sua execução bem sucedida. Nesta categoria enquadram-se as perguntas definidas por Marcuschi (2005, 2008) como “inferenciais” e “globais”, ambas bastante recorrentes nos LDs que analisamos. Ainda presas aos aspectos estruturais do e-mail, essas questões podem exigir operações relativamente simples como inferir a natureza da informação que consta após o campo data, conforme o exemplo: Exemplo 7: Pergunta “inferencial” simples Depois da data, aparece 17:10. O que significa isso? (CEREJA; MAGALHÃES, 2009, 6. Ano) Entretanto, no exemplo seguinte, a questão aponta para um aspecto mais interessante, que é a reflexão sobre o tipo de linguagem utilizada no e-mail, e pergunta por que foi utilizada, possibilitando pensar a respeito do tipo de relação entre os interlocutores, do grau de formalidade representado na interação, bem como sobre a questão do reconhecimento de autoridade ou demonstração de respeito expresso pela forma de tratamento (uso da forma “senhora”), apesar de não esclarecer que nem todo e-mail necessariamente terá essa forma, esse tipo de linguagem. De toda forma, a pergunta exige

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um significativo processo inferencial para sua resolução, exigindo que o aluno vá além das informações expressas na superfície textual. Exemplo 8: Pergunta “inferencial” exigindo conhecimentos extratextuais Que tipo de linguagem foi empregada no e-mail? Por quê? (SARMENTO; TUFANO, 2009, 1. Série) A questão exige do aluno não uma informação explícita, mas aspectos que levam a pensar sobre o motivo de se escrever de determinado modo para determinada pessoa, como se dirigir ao interlocutor em determinada situação, ou seja, exigem levar em consideração os aspectos extratextuais que organizam os variados processos interacionais de que se participa. No Exemplo 9, a seguir, a pergunta aponta para uma distinção formal entre cartas e e-mails, afirmando que as primeiras são mais longas que os últimos, e solicita que o aluno elabore uma hipótese sobre o motivo por que isso ocorre. É uma questão bastante interessante na medida em que possibilita a reflexão a respeito de como esses gêneros se relacionam e sobre o papel de fatores contextuais da interação em moldá-los. Por exemplo, considerar que no meio eletrônico, em que ocorre o e-mail, existe certa preocupação com o tempo, de forma que nesse contexto os gêneros da comunicação pessoal tendem a ser mais breves. Parece, portanto, relevante solicitar ao aluno que reflita a esse respeito. Exemplo 9: Pergunta “inferencial” relacionando e-mails e cartas Uma diferença evidente entre as cartas e as mensagens eletrônicas é a extensão dos textos. Formule uma hipótese para explicar por que os e-mails são bem mais curtos e as cartas, mais longas. (SARMENTO; TUFANO, 2009, 1. Série) Quanto às perguntas do tipo “globais”, caracterizam-se por demandar do aluno um olhar sobre o conjunto do texto a fim de, por meio de processos inferenciais mais ou menos complexos, chegar a sentidos que não se encontram explícitos na superfície textual. Neste estudo, a categoria

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está representada por perguntas que por diferentes caminhos se concentram no campo “assunto” do e-mail. Vejamos dois exemplos: Exemplo 10: Pergunta “global” sobre o assunto do e-mail A palavra Oieeee!!!, escrita no campo destinado ao assunto, resume o assunto da mensagem enviada? (CEREJA; MAGALHÃES, 2009, 6. Ano) Aspecto interessante neste exercício é que, apesar de apontar para um detalhe estrutural do gênero, aparentemente objetivo, exige do aluno a reflexão sobre a relação entre “assunto” e conteúdo textual. No caso, a percepção de que o “assunto” não corresponde aos temas efetivamente tratados deverá levar o aluno a uma visão mais profunda sobre a constituição retórico-discursiva do gênero e-mail. Abaixo, segue um exemplo similar, em que se pressupõe que o termo escolhido para designar o assunto do e-mail pode ser substituído, ou por não guardar correspondência precisa com o conteúdo, ou porque este de alguma forma poderia ser visto por outro ângulo. Em ambas as hipóteses, propõe-se ao aluno a possibilidade de participar da construção dos sentidos do texto. Exemplo 11: Pergunta “global” relacionando “assunto” e conteúdo Como você observou, Carol escolheu a palavra saudades para identificar o assunto de seu e-mail. Que outra palavra ou expressão poderia designar o assunto desse e-mail? Justifique sua resposta. (SOUZA; CAVÉQUIA, 2009, 7. Ano) Já no Exemplo 12, combina-se a preocupação com o padrão gráfico típico de alguns ambientes virtuais, representado pelas abreviações, com uma questão abertamente subjetiva, relacionada com o texto “de maneira apenas superficial” (MARCUSCHI, 2008, p. 271). Nesse tipo de pergunta, a resposta fica essencialmente por conta do aluno, que pode responder “qualquer coisa”, de acordo com suas vivências e sua interpretação do texto. Neste ponto, pode-se chegar a uma compreensão que extrapola as possibilidades de construção do sentido do texto.

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Exemplo 12: Pergunta “subjetiva” relacionada com formas O texto da página 20 é uma mensagem eletrônica, mais conhecida como e-mail. Nele, aparecem algumas palavras abreviadas. Observeas: Blz, vc, msg, tb, abs. Em sua opinião porque elas foram escritas dessa forma? (SOUZA; CAVÉQUIA, 2009, 7. Ano) A categoria “vale tudo” está representada por perguntas cuja resposta não está sujeita a qualquer parâmetro, visto que se perde qualquer relação direta com o texto a que pretensamente se referem. Consideremos o exemplo: Exemplo 13: Pergunta “vale tudo” sobre a linguagem do texto Esse e-mail não é real; ele foi tirado de uma obra de ficção. Um(a) adolescente real usaria essa linguagem? Por quê? (PENTEADO; MARCHETTI, 2009, 6. Ano) Forçosamente, qualquer resposta apresentada pelo aluno terá de ser levada em consideração, visto que tudo depende de sua visão de mundo, e não do que está registrado no texto que aparentemente serve de base para o exercício. Ainda, surpreendente no comando da questão é a admissão, por parte dos autores do LD, de que estão discutindo o gênero e-mail a partir de um exemplo que “não é real”. Os autores não apresentam nenhuma justificativa para essa escolha, apesar de ser razoável esperar que optassem por trabalhar com um exemplar autêntico do gênero como forma de tornar o ensino mais eficaz. A última categoria representada nas atividades do LD com gêneros digitais é chamada por Marcuschi (2005, 2008) de perguntas “metalinguísticas”. Nessas questões, frequentemente se enfocam aspectos estruturais ligados à forma do gênero ou a aspectos linguísticos. Vejamos um exemplo:

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Exemplo 14: Pergunta “metalinguística” comparando estruturas formais Observe a estrutura do e-mail e explique em aspectos ele é semelhante à carta pessoal. (SARMENTO; TUFANO, 2009, 1. Série) Afirmamos que a questão enfoca o gênero como forma, já que é pedido ao aluno que observe a estrutura do e-mail e explique suas semelhanças com a carta pessoal. Note-se que não há nenhum problema em se fazer essa comparação, especialmente se ela não se reduzir a um confronto de formas, que é possivelmente o que está em foco na questão.5 De toda forma, podese afirmar que o paralelo com cartas é um procedimento recorrente nas atividades com e-mails no LD. Outro tipo de pergunta “metalinguística” está representado no Exemplo 15: Exemplo 15: Pergunta “metalinguística” envolvendo abreviações No e-mail de Thete, a que palavras se referem as abreviações: a) Nusss b) Tah c) Td d) Tô e) Bjnhusssss (CEREJA; MAGALHÃES, 2009, 6. Ano) Se, do ponto de vista da compreensão do gênero, a atividade tem o mérito de mostrar a possibilidade de usar abreviações, por outro lado, ao invés de investir nessa compreensão, prefere concentrar-se na “tradução” das formas. É de se ressaltar ainda que esse tipo de atividade parece sugerir que as formas a serem “traduzidas” devem ser consideradas erradas (cf. BAGNO, 2007) e consequentemente passadas para a norma ortográfica oficial. Embora seja importante, necessário e até inevitável ressaltar as peculiaridades eventualmente assumidas pela escrita em gêneros digitais 5

Admitimos a possibilidade de ver nessa questão alguns aspectos inferenciais, visto ser exigido do aluno o conhecimento prévio do que seria uma carta, a fim de poder relacionar as similaridades que ela possui com o e-mail.

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como o e-mail, o modo como se faz não contribui para uma compreensão da natureza variada e variável (heterogeneidade) da língua e de sua modalidade escrita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao final deste estudo, é inevitável admitir que os resultados evidenciam certa limitação na exploração pedagógica dos gêneros digitais em livros didáticos, por privilegiarem exercícios que não contribuem para uma compreensão profunda do gênero como evento comunicativo (SWALES, 1990) e como ação social (MILLER, 2009). Por vezes, prefere-se propor atividades que se limitam a explorar aspectos meramente formais presentes na superfície textual ou aspectos relativos à organização estrutural do gênero, ainda quando se está pretensamente trabalhando a compreensão. Embora os aspectos quantitativos não façam parte do escopo deste trabalho, cabe mencionar que, ao contrário dos resultados de Marcuschi (2005, 2008), nos quais cerca de 70% das questões analisadas foram classificadas como “cor do cavalo branco”, “cópias” ou “objetivas”, ou seja, tratava-se de questões que não promoviam uma compreensão textual mais profunda e não exigiam do aluno a operação de inferências, neste estudo encontramos uma distribuição mais equilibrada entre essas categorias de perguntas e as questões “inferenciais” e “globais”. Houve uma ocorrência esporádica de questões “subjetivas” e “vale tudo”, categorias que compreende perguntas com pouca ou nenhuma ancoragem no texto a que se referem. Não se verificou a ocorrência de questões do tipo “cor do cavalo branco” e “impossíveis”, que representam os extremos entre a mera identificação/extração de informações e a extrapolação dos limites textuais. Por outro lado, destacam-se as questões “metalinguísticas”, representando certa consciência da novidade das práticas comunicativas realizadas no ambiente digital. Tipicamente, os autores do LD procuram ressaltar os aspectos estruturais da composição dos gêneros digitais, procurando quase sempre compará-los com similares no suporte escrito convencional. De modo bastante estereotipado, e-mails são sempre comparados a cartas e eventualmente a bilhetes, enquanto blogs são apresentados como originados dos diários pessoais de adolescentes. Essa

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abordagem não contribui significativamente para a real compreensão dos gêneros, cuja origem é sempre mais complexa do que parece nos livros didáticos.6 Aspecto que chama a atenção nas atividades do livro didático com gêneros digitais é a recorrência do e-mail. O gênero é praticamente absoluto nos exercícios de compreensão. De forma nem sempre adequada, há indicações de que os autores dos LDs vão gradualmente se sentindo à vontade para explorar o e-mail como objeto de ensino, o que não acontece com os blogs, o segundo gênero digital mais referido pelos manuais de ensino. Estes em geral apresentam textos sobre os blogs, e não os próprios blogs, como fazem com os e-mails, embora se deva lembrar que os exemplos apresentados como e-mails nem sempre correspondem a e-mails reais, mas a representações de “e-mails” retiradas de obras de ficção, cuja aparência formal em nada lembra qualquer interface de e-mail conhecida. Ainda uma observação importante diz respeito à linguagem utilizada nos e-mails (reais ou não) exibidos nos livros didáticos. Dois caminhos opostos costumam ser seguidos: o primeiro consiste em abolir o estilo de escrita mais espontâneo dos e-mails, através de artifícios como privilegiar, no exemplo, a comunicação formal entre profissionais como professores e editores de revistas. Nesse caso, apenas se ressalta que o e-mail “pode” utilizar uma linguagem mais informal dependendo dos interlocutores e da situação de comunicação. O segundo caminho, oposto a esse, é apresentar no e-mail (geralmente fictício) um grau elevado de formas típicas do assim chamado internetês, que seria a “linguagem da Internet”.7 Assim, fica parecendo que o e-mail é sempre escrito num padrão gráfico desviante que frequentemente deve ser objeto de exercícios didáticos de “correção” ou “tradução”, embora esses termos não sejam assumidos pelos manuais. Globalmente, lembremos um aspecto do qual Marcuschi (2005, 2008) já tinha plena consciência: a classificação de uma questão didática em categorias como “objetiva” ou ‘inferencial” nem sempre é simples e inequívoca. Particularmente, é razoável admitir que mesmo as questões 6

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Por exemplo, hoje se torna óbvio que não se pode reduzir grande parte dos blogs, e com certeza os mais visitados, a meros “diários pessoais na Internet”. Conceito em si absurdo e contraditório, visto que a Internet não possui uma linguagem única, mas abre espaço para variadas formas de interação, variados estilos e variadas formas de uso da escrita. Ademais, é evidente que muitos gêneros ambientados na Internet distanciam-se completamente do internetês, que não pode ser sua “linguagem”.

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do tipo “cópias” e “objetivas”, bem como as questões “subjetivas”, “vale tudo” e “metalinguísticas”, não se fazem sem algum processo inferencial. Em outras palavras, não desejamos afirmar, neste trabalho, que algumas questões lançam mão de inferências e outras não, de forma absoluta e dicotômica. O mais provável, como pudemos perceber na análise de algumas questões apresentadas pelo LD, é que não existe inferência zero na resolução de atividades. O que há é a exploração indevida ou insuficiente dos processos inferenciais a serem ativados e exercitados pelos alunos. De resto, por sua pertinência, evocamos a sugestão de Marcuschi (2008, p. 273) de que seria aconselhável fazer “a análise comparativa entre os manuais de ensino de língua referentes ao período anterior ao surgimento dos PCNs e os manuais que já foram produzidos com uma nova mentalidade a respeito do ensino de língua”, com o fim de se ampliar o olhar sobre o trabalho com a compreensão no livro didático. Considerando que a utilização ou a simples alusão a gêneros digitais no livro didático é algo presumivelmente mais recente que os PCNs, caberia, no que tange ao objeto deste trabalho, comparar as primeiras ocorrências desses gêneros em manuais um pouco mais antigos e nos livros mais atuais. Esperamos que aí, nesse curto lapso de tempo, também se constate uma “nova mentalidade” sobre os gêneros digitais como formas incontornáveis de ação social no contexto das novas tecnologias de informação e comunicação.

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ENSINO MÉDIO ABAURRE, Maria Luiza; PONTARA, Marcela Nogueira; ABAURRE, Maria Bernadete M. Português: contexto, interlocução e sentido. 1.-3. séries. São Paulo: Moderna, 2009. AMARAL, Emília; FERREIRA, Mauro. Língua portuguesa: novas palavras. 1.-3. séries. São Paulo; FTD, 2009. FARACO, Carlos Alberto. Português: língua e cultura. 1.-3. séries. Curitiba: Base, 2009. SARMENTO, Leila Lauar; TUFANO, Douglas. Português: literatura, gramática e produção de texto. 1.-3. séries. São Paulo: Moderna, 2009. TERRA, Ernani. NICOLA, José de. Português para o ensino médio: língua, literatura e produção de textos. 1.-3. séries. São Paulo: Scipione, 2008.

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GÊNEROS TEXTUAIS E LETRAMENTO NO CONTEXTO DA SURDEZ TEXTUAL GENRES AND LITERACY IN CONTEXT OF DEAFNESS Wagner Teobaldo Lopes de Andrade Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal da Paraíba Francisco Madeiro Universidade Católica de Pernambuco RESUMO O presente trabalho apresenta uma discussão teórica sobre as habilidades de letramento e do uso dos gêneros textuais, enfocando-os como estratégia possibilitadora de otimização da escrita do surdo. Esta modalidade escrita da língua tem se mostrado uma importante forma de comunicação dos surdos, dada a sua dificuldade em desenvolver a oralidade. Sabendo que a fala e a escrita são práticas sociais que se fundam em um continuum, pode-se inferir que a estimulação de recursos auxiliares do desenvolvimento da habilidade escrita com base em alguns aspectos da oralidade pode ser uma importante estratégia de inserção social e escolar do surdo. Nesse panorama, destacam-se os gêneros textuais e o letramento, que podem proporcionar uma maior aproximação entre o autor surdo e a língua portuguesa, otimizando o seu processo de inclusão social. Para o presente estudo, foram acessadas publicações sobre letramento e gêneros textuais e foi desenvolvido um paralelo entre as propostas lançadas pelos diversos autores e as suas possibilidades de realização junto aos aprendizes surdos, na intenção de contribuir para a disseminação do conhecimento e sua aplicabilidade prática junto à comunidade surda. Dentre as principais estratégias e materiais possíveis de ser utilizados, destacam-se a internet (e sua enorme gama de possibilidades textuais, multimodais ou não, incluindo hipertextos), livros (didáticos ou não), jornais, revistas e gibis. Além disso, deve-se atentar para o fato de que os gêneros devem ser selecionados de acordo com o interesse dos sujeitos e devem ser consumidos não só na escola, mas também, e principalmente, em casa. A escrita coletiva e a escrita individual também parecem ser estratégias interessantes para o desenvolvimento das habilidades linguísticas escritas do surdo. Palavras-chave: Letramento; Gêneros Textuais; Surdo.

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ABSTRACT This paper presents a theoretical discussion about the skills of literacy and the use of textual genres as strategy to possibility optimal writing of the deaf. This linguistic modality has shown to be an important way for the deaf communication due to his difficulty on developing orality. Considering that speaking and writing are social practices developed within a continuum, we may infer that the stimulation of auxiliary resources in the development of writing ability based on some aspects of orality can be an important strategy for social inclusion and education of the deaf. In this overview, we highlight the textual genres and literacy, which can provide a greater proximity between the deaf author and the Portuguese, optimizing the process of social inclusion. For the present study, we accessed publications on literacy and textual genres and we developed a parallel between the proposals made by authors and their chances of achieving with deaf learners, with the intention of contributing to the spread of knowledge and its practical applicability by the deaf community. Among the main strategies and possible materials to be used out, Internet (and its enormous range of possibilities of texts, including hypertexts), books (educational or not), newspapers, magazines and comics stand out. In addition, attention should be paid to the fact that the genres should be selected according to the interest of subjects and should be consumed not only in school, but also and especially at home. The collective writing and individual writing also seems interesting strategies for the development of written language skills of the deaf. Keywords: Literacy; Textual Genres; Deaf.

INTRODUÇÃO O primeiro contato com um texto escrito por um surdo é, em geral, para o ouvinte, desconcertante. Isso decorre do fato de que o ouvinte, que desconhece a realidade do surdo, supõe que este tenha como língua única e/ou materna a língua portuguesa. Uma vez lembrado que a percepção sensorial do surdo é essencialmente visual, tendo ele, portanto, restrito ou nenhum acesso à modalidade oral do português, o ouvinte ainda se surpreende com o fato de que o surdo escolarizado demonstre domínio tão restrito da língua portuguesa, que esta língua seja tão opaca ou que anos de escolarização não tenham o efeito esperado nestes sujeitos.

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Dentre as diferentes possibilidades comunicativas do surdo1, neste trabalho, considerar-se-á o bilinguismo, a filosofia educacional que preconiza que o surdo deve desenvolver habilidades comunicativas em duas línguas, sendo a primeira língua (L1), a de sinais e, a segunda língua (L2), no caso do Brasil, a portuguesa, especialmente na modalidade escrita2. Em termos do ensino de linguagem, não específico para o surdo, já há muitos anos tem-se frisado a necessidade de pôr o aluno em contato com práticas sociais efetivas. Nas duas últimas décadas, tem-se criticado enfaticamente, portanto, o trabalho com exercícios de fixação (p. ex., análises sintáticas) em que o sujeito da linguagem é apagado (Bonini, 2007). Na década de 90, a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs – Brasil, 1998) veio solidificar essa orientação, pois esse documento traz o gênero textual como noção central. Além disso, propõe que o ensinoaprendizagem seja realizado em dois eixos: o das práticas de uso e o das práticas de reflexão quanto à língua e a linguagem. Segundo Soares (1997), existe um desconhecimento, por parte do alfabetizador e do professor de língua portuguesa, das teorias de linguagem que embasam os documentos oficiais, pois elas não fazem parte da maioria dos programas dos cursos de Pedagogia e de Letras que os formam. E isto, de acordo com Kleiman (2008), é uma das razões para as incertezas do professor face à mudança paradigmática profissional, que inclui as considerações acerca do letramento e da teoria dos gêneros textuais como facilitadores do processo de aprendizagem da linguagem escrita. Acredita-se que não é o conhecimento de uma determinada teoria, por mais recente ou por maior que seja seu poder ou sua eficácia para explicar os fenômenos da linguagem, o que faz do alfabetizador ou do professor de língua materna um profissional bem formado na sua área. Um novo saber pode ser aprendido pelo professor que transita tranquilamente pela prática de leitura de textos acadêmicos, ou de divulgação científica, ou de análise do livro didático, ou que consegue coordenar um projeto pedagógico (Tinoco, 2008), enfim, pela via da ação em diversas práticas sociais. 1

2

As formas de comunicação do surdo perpassam pela adoção de uma das seguintes filosofias educacionais: oralismo (utilização exclusiva da língua padrão do país na modalidade oral); comunicação total (utilização de qualquer forma de comunicação, seja ela uma língua ou não) e bilinguismo (Goldfeld, 2002). O bilinguismo permite duas formas de implantação coincidentes apenas no que se refere à primeira língua (de sinais). Com relação à segunda (a língua padrão do país), pode-se optar pelo desenvolvimento da língua oral ou escrita.

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Tendo este panorama como pano de fundo, o presente trabalho tem como objetivo central desenvolver uma discussão crítica da literatura, baseada em artigos publicados e dissertações e teses produzidas nos últimos cinco anos sobre gêneros textuais e letramento e intenciona trazer algumas contribuições da Linguística no que se refere a questões sobre gêneros textuais e letramento aplicadas ao contexto da surdez, a fim de fomentar a realização de pesquisas e desenvolvimento de práticas desses processos junto a sujeitos surdos. Percebe-se, atualmente, uma grande quantidade de publicações sobre letramento e gêneros textuais voltados para os ouvintes e, no que se refere aos surdos, os estudos (a exemplo de Cárnio et al., 2006; Andrade et al., 2010a; Brito et al., 2010; Schneider; Souza; Deuschle, 2010) tem, sistematicamente, relevado a importância de um ou ambos aspectos para o desenvolvimento linguístico destes sujeitos. No entanto, poucos estudos se voltam à apresentação de estratégias de otimização da linguagem do surdo a partir do letramento e da utilização dos gêneros textuais. Assim, neste estudo, foi realizada uma analogia entre as estratégias propostas para os ouvintes como possibilitadoras do desenvolvimento da escrita dos surdos, considerando, obviamente, as particularidades destes sujeitos. 1. Fundamentação Teórica A literatura especializada em surdez, até meados da década de 1990, era praticamente unânime em um aspecto referente à escrita do surdo: ele escreve mal, sem domínio das regras do português e apresenta uma grande influência da língua de sinais na sua produção textual (Ferreira-Brito, 1995; Quadros, 1997; Góes, 1999). Acreditava-se, ainda, que as dificuldades na escrita eram inerentes à surdez. Entretanto, o avanço da ciência na área promoveu uma mudança de concepção a respeito do desempenho dos surdos. Passou-se a investigar o processo de leitura e escrita acreditando existirem outras explicações. O surdo passou a ser visto como um indivíduo bilíngue, cuja primeira língua não apresenta modalidade escrita3. 3

Aqui, não consideramos o sign writing por não acreditarmos, ainda, na sua efetividade para a comunicação do surdo.

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As características linguísticas, sociais, culturais, educacionais e cognitivas dos surdos passaram a ser o foco de investigação a fim de que se entendessem os processos relacionados ao aprendizado da escrita em sua segunda língua. As pesquisas também incluíam surdos não fluentes na língua de sinais (surdos oralizados), mas partindo do pressuposto que suas dificuldades na escrita deveriam também estar ligadas a aspectos educacionais e linguísticos. Dessa forma, a primeira década do século XXI ficou marcada pela emergência de estudos voltados não só para o aspecto sintático da língua, mas para a construção do texto e compreensão dos processos que levam o surdo a escrever bem ou mal (Sampaio, 2004; Midena, 2004; Andrade, 2007). Apesar de muitos trabalhos apontarem para o “fracasso da escrita” em relação ao surdo, que teria uma escrita “desarrumada”, parte-se do princípio de que o texto escrito pode ser um recurso importante como fonte de informação e conhecimento, motivo pelo qual se buscam melhores caminhos à sua efetivação. Nos tempos atuais, onde grande parte das interações é mediada pela escrita, o domínio desta modalidade pode promover a formação de indivíduos socialmente criativos e participativos. Além disso, é uma possibilidade de constituição do sujeito e da sua linguagem, especialmente em se tratando de crianças e adolescentes surdos. De acordo com Marcuschi (2004), a oralidade e a escrita são práticas e usos da língua que permitem a construção de textos coesos e coerentes, a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais, variações estilísticas, sociais e dialetais, entre outras. Os enunciados linguísticos se manifestam nas interações (orais e escritas) através de formatos tipificados de textos que dispõem de funções específicas e variadas. Os textos tipificados tornam-se recorrentes nas atividades sociais e conhecidos daqueles que fazem parte da sociedade na qual circulam. Desta forma, esses textos servem para minimizar dificuldades comunicativas e favorecer a interação. Ao se conhecerem os padrões textuais recorrentes numa determinada sociedade, é possível participar das atividades sociais com maior êxito. Da mesma forma que, para se comunicar, se precisa dominar os padrões estruturais (formais) da língua (também de conhecimento social), não se comunica sem o domínio dos padrões sociais de organização dos textos (Bakhtin, 1992). Os padrões

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sociais de organização de textos, ou tipificações, são denominados gêneros textuais. De acordo com Bazerman (1997, 2004 apud Dionísio, 2005), os gêneros textuais são categorias de enunciado associadas aos tipos de atividade dita, feita ou pensada pelas pessoas. Segundo Marcuschi (2002), os gêneros textuais são considerados fenômenos históricos vinculados à vida cultural e social e são definidos como textos materializados que apresentam características sócio-comunicativas marcadas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica. Bonini (2004, 2007) considera gênero textual como sendo um conjunto de características que possibilitam a existência de um texto como fato materializado de linguagem. À medida que agrupa uma determinada quantidade de marcas de caracterização do texto, traz consigo também um modo de se construir e de se consumir esse texto. No contexto da surdez, os gêneros textuais assumem grande importância, pois conhecendo e se apropriando da existência de diferentes contextos de produção, os aprendizes da escrita podem desempenhá-la de forma mais próxima do adequado para aquele determinado contexto. Menezes (2007), em sua tese de doutorado, que aborda os eventos de letramento em comunidades de surdos, identificou a recorrência de gêneros textuais escritos nas interações do dia-a-dia da comunidade, tanto em situações informais (ambiente familiar ou eventos sociais de lazer) quanto em situações formais, como nas instituições educacionais, religiosas e associações de apoio social ao surdo. Esta autora mostra que os gêneros textuais que circulam na comunidade de surdos apresentam funções específicas, relacionadas às práticas e eventos sociais da comunidade. Esses achados enfatizam a natureza sociocultural dos gêneros textuais e apontam para a importância de investigações sobre seus usos em grupos sociais específicos. Menezes (2007) mostra, ainda, que textos escritos associados a imagens ou movimento (textos digitais) são preferidos por aprendizes surdos, pois os aspectos multimodais dos textos ajudam a construção do sentido. A multimodalidade, segundo Dionísio (2005), ocorre quando, ao falar ou escrever um texto, é feito uso de mais de um modo de representação dos gêneros textuais, como, por exemplo, a associação de palavras e gestos ou palavras e imagens.

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Segundo Dionísio (2005), todos os gêneros textuais escritos são multimodais. Alguns gêneros são bastante conhecidos pelos surdos, como, por exemplo, a carta pessoal, os gêneros de circulação doméstica (lista de compras, anotações, bilhetes), os gêneros de circulação urbana (encontrados em outdoors, placas etc.), os gêneros digitais, entre outros. Possivelmente, esses gêneros são conhecidos e utilizados por surdos por apresentarem elementos visuais, proprioceptivos e/ou sinestésicos e por serem de uso frequente nas atividades sociais de que participam. No entanto, os surdos podem apresentar certa dificuldade em identificar o contexto em que determinada produção escrita é realizada, quando esta é apresentada sem os elementos visuais pertinentes, em função da parca familiaridade com as características linguísticas presentes em tais gêneros. Nestes casos, a sinestesia atua de forma importante para a compreensão do contexto de produção pelo surdo, o que não acontece, necessariamente, com a compreensão do conteúdo textual. No cotidiano com os surdos, percebe-se que eles identificam, de forma imediata, diversos gêneros textuais escritos e sabem descrever a função de vários, apesar de muitas vezes não saber o que está escrito naquele determinado material. Por exemplo, um surdo identifica facilmente um envelope e sabe que será postado no correio para enviar algo a uma pessoa que vive em outro local, no entanto, se perguntado para quem ou para que cidade vai aquele envelope, não necessariamente saberá identificar em função da falta de domínio do conteúdo linguístico propriamente dito. Marcuschi (2008), para quem a língua é uma atividade social e cognitiva em contextos historicamente delineados e interativamente construídos, vem discutindo os gêneros textuais lembrando que são uma forma de ação social. Fairclough (2001) considera que o gênero, enquanto uma forma particular de organização social e parte dela, associa-se a um tipo de atividade ratificada socialmente, a exemplo de um artigo científico ou uma mesaredonda. No enfoque faircloughiano, os gêneros são fundamentalmente sociais. Na opinião de Marcuschi (2002, 2004, 2008), a sociedade também está organizada em função dos gêneros, sendo que a interação sempre se dá dentro de algum gênero. O gênero, para Fairclough (2001), está associado não só a um tipo de atividade, mas também a um determinado estilo ou estilos alternativos.

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Para Marcuschi (2008), dominar um gênero textual não equivale, propriamente, a dominar uma forma linguística e, sim, à capacidade do falante de realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares. Infere-se, dessa perspectiva, que o enfoque sobre gênero incide apropriadamente sobre o que conhecemos, mais precisamente, sobre as escolhas e organização das formas linguísticas constitutivas dos textos, nos meios pelos quais os sujeitos realizam ou formalizam linguisticamente suas intenções sociocomunicativas. Sob o prisma do ensino, o acesso aos diversos gêneros textuais circulantes na sociedade, chamados de megainstumentos de interação social por Schneuwly e Dolz (2004), possibilita ao professor quebrar o paradigma do trabalho exclusivo com a redação escolar, gênero de circulação limitada ao ambiente discursivo escolar, e do uso do texto como pretexto para os exercícios estruturais, quase sempre prescritivos, acerca da gramática da língua, o que concorda com os achados de Nascimento, Gonçalves e Saito (2007), que identificaram tendências à gramaticalização do gênero textual, ou seja, uso do gênero como pretexto para ensinar gramática. Ao se falar em gêneros textuais, é impossível não se remeter a questões relacionadas ao processo de letramento. Segundo Scribner e Cole (1981), o letramento é um conjunto de práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico em contextos específicos, com objetivos específicos. Já Soares (2004, 2008) define letramento como o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita. Seria o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita. Em termos gerais, o letramento estaria relacionado ao conjunto de práticas sociais orais e escritas de uma sociedade e, segundo Tfouni (1996), também à construção da autoria. Duarte (2008) afirma que letramento não deve ser visto apenas como produto restrito do ato de se letrar, porque sendo ele uma prática social, há condições para que ele ocorra, especialmente relacionadas a aspectos socioculturais. Por exemplo, o alfabetizado deve ter acesso a variados tipos de gêneros textuais ou até mesmo a bibliotecas, a fim de praticar seu hábito de ler e, consequentemente, de ler cada vez melhor. Soares (2000) afirma que o letramento é o resultado da ação de letrarse, de ensinar e aprender as práticas de leitura e escrita, pois um indivíduo

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alfabetizado não é necessariamente letrado. Letrado seria o indivíduo que vive em estado de letramento, aquele que usa e pratica a leitura e a escrita, interagindo com diversos gêneros e tipos de leitura e escrita. Soares (2000) leva, no entanto, à dúvida sobre o conceito de letramento, pois se ele é fruto da ação de letrar-se, o que falar daqueles indivíduos que não sabem ler nem escrever? Isto mostra a complexidade que envolve a discussão sobre letramento. Como já foi dito anteriormente, para ser letrado, mesmo que em uma situação em que se requer um grau de letramento pequeno, não é necessário conhecer a fundo o sistema gráfico da língua, porque o fato de se viver em uma sociedade que se fundamenta na escrita evidencia o quanto se é influenciado por ela; tão influenciado que se sabe identificar marcas de produtos sem saber ler. Desta feita, ter em mente todas estas considerações é reconhecer que a leitura, o letramento, a oralidade e a escrita são práticas sociais. São estes os conceitos que os professores de Língua Portuguesa necessitam para sua prática docente, mas infelizmente, como salientam Preti (1998) e Marcuschi (1998), o acesso que eles têm à bibliografia especializada sobre estas e outras discussões é muito restrito ou inexistente. O letramento é um importante aspecto a ser desenvolvido no contexto da surdez, a fim de ser cada vez mais explorado pelos educadores e profissionais envolvidos no processo de educação do sujeito surdo. Nesta concepção, não se pensa na aquisição da escrita como sendo parte apenas de um processo de alfabetização, mas num processo de letramento, um processo de “letrar alfabetizando” (Nascimento e Zirondi, 2009). Silva (2007) acrescenta que o ensino do letramento deve apoiar-se no estudo dos gêneros textuais. Segundo Fernandes (2006a), uma das distinções básicas entre a alfabetização e o letramento reside no fato de que o primeiro processo envolve um conjunto de habilidades de codificação e decodificação de letras, sons, sílabas e palavras. Já o letramento seria prazer, lazer, acesso à informação, comunicação. Seria o exercício da cidadania por meio de diferentes práticas sociais. Para Soares (2004), a alfabetização e o letramento seriam duas faces de uma mesma moeda e dissociá-los é um equívoco, pois no quadro das concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de leitura e escrita,

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a entrada da criança no mundo da escrita ocorre simultaneamente por estes dois fenômenos. A alfabetização e o letramento são interdependentes e indissociáveis. Cardoso e Nantes (2010) afirmam que é mais adequado usar o termo “letramento” e não “alfabetização” para surdos, tendo em vista que, segundo Fernandes (2006b), o termo “letramento” amplia a concepção de alfabetização por demonstrar um vínculo entre leitura e escrita e suas várias possibilidades de usos sociais. Além disso, as autoras afirmam que o método comunicativo para o ensino de Língua Portuguesa para a pessoa surda deve privilegiar os usos dessa língua. Para isso, os alunos devem ser expostos tanto à leitura como à produção de diferentes gêneros e tipos textuais. No entanto, deve-se ressaltar que, no caso dos surdos, essas práticas devem ser vivenciadas primeiramente em Libras (Língua Brasileira de Sinais). Segundo Svartholm (1998), a única forma de assegurar que os textos se tornem significativos para os surdos é interpretá-los na língua de sinais. A autora propõe que, no trabalho com a segunda língua, a atenção deva estar voltada para a apresentação do máximo de textos possível às crianças surdas. Além disso, visto que os surdos valem-se muito do aspecto visual para a compreensão, é importantíssimo que o professor traga recursos visuais, como fotos, figuras e objetos, ao trabalhar com os textos escritos. A multimodalidade, quando se lida com surdos, é algo de extrema importância e, segundo Menezes (2007), está muito presente no seu contexto educacional. Considerando a língua de sinais como a “oralidade” dos surdos, como o faz Ferreira-Brito (1995), percebe-se claramente a sua influência na escrita desses sujeitos, da mesma forma como a língua oral influencia a escrita de crianças ouvintes. Andrade, Aguiar e Madeiro (2009, 2011) tem mostrado que, mesmo não sendo oralizados, os surdos apresentam marcas de oralidade, como marcadores discursivos e repetições, na sua escrita. Além disso, Andrade et al. (2010b) mostram que o uso de marcas de oralidade na escrita influencia positivamente a compreensão da escrita do surdo pelo ouvinte. De acordo com Góes (1999), em se tratando de sujeitos surdos bilíngues, há a tendência a escrever apoiando-se em recursos da língua de sinais, apresentando no texto, escrito em português, características daquela língua.

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Os surdos usuários de língua de sinais não apresentam, em seus textos escritos, as mesmas características de um falante de português, mas as de um sujeito falante de uma segunda língua. Isso demonstra que, no processo de aprendizagem de uma nova língua, há uma tendência em transferir aspectos da estrutura sintática da língua nativa, no caso dos surdos, a de sinais. Além disso, a ordem das sentenças nem sempre coincide com a convencional (sujeito – verbo – objeto) (Góes, 1999; Salles et al., 2004). Segundo Menezes (2007), esta forma peculiar de escrita encontra-se muitas vezes intermediando interações em atividades sociais vivenciadas por surdos e ouvintes. Em situações sociais onde a escrita emerge com função comunicativa, surdos e ouvintes preferem produzir textos da forma que, na opinião deles, melhor transmite a informação ao surdo que o recebe. Por isso, textos escritos através de um português sob a influência da Libras são frequentemente utilizados quando o objetivo é comunicar-se com surdos.

2. Discussão De acordo com Schemberg, Guarinello e Santana (2009), trazer para o âmbito da surdez a discussão sobre letramento implica considerar as práticas de leitura e escrita dos surdos e seus familiares. Em pesquisa acerca da prática de letramento na escola e na família de crianças surdas, as autoras destacam que, entre os materiais de leitura mais consumidos, estão a Bíblia e livros. Já entre os materiais de escrita mais produzidos, estão os textos de tipologia informativa, seguidos pelos textos descritivos e narrativos. Já na sala de aula, os professores referiram utilizar, em maior escala, os textos dos livros didáticos que tem a função de ensino da língua portuguesa. Além deste, o gênero textual mais utilizado pelos professores foi a história em quadrinhos. Segundo Tavares (2010), as revistas em quadrinhos são um excelente material de trabalho e de aprendizagem das práticas letradas. Em função da multimodalidade apresentada por este gênero, pode-se considerálo um gênero interessante a ser utilizado em casa e na sala de aula com surdos. O livro didático ainda se mostra crítico em relação à abordagem dos gêneros textuais. Em muitos livros, os gêneros não são apresentados como deveriam. Em outros, são apresentados com superficialidade. Fabri e

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Nogueira (2009), analisando um livro didático, concluem que as definições de tipo e gênero textual apresentadas não contribuem para a construção de leitores capazes de estabelecer diferenças claras entre estes dois conceitos, cujo conhecimento facilitará o uso competente da língua. Se considerada a população surda universitária, segundo Guarinello et al. (2009), 60% referem ler diariamente e 95% referiram ler revistas. Com relação à escrita, 50% referiram produzir cartas e 40%, bilhetes. No contexto de lazer, os gêneros textuais mais recorrentemente consumidos pelos surdos universitários foram romance, suspense, artigo científico e poesia. Guarinello et al. (2009) afirmam, ainda, que a internet faz parte dos hábitos de leitura de metade dos sujeitos surdos universitários participantes. Segundo Menezes (2007), entre os gêneros textuais mais consumidos pelos surdos, encontram-se matérias (jornalísticas ou de entretenimento) veiculadas na internet. Com relação à produção, destacam-se os gêneros textuais digitais de relacionamento: e-mail, MSN e chats (conversação simultânea via internet), Orkut (contato através de mensagens curtas, nem sempre com respostas imediatas), além dos SMS (mensagens via celular). A utilização de e-mails, MSN, Orkut e SMS também foi referida pelos sujeitos da pesquisa de Guarinello et al. (2009). Pode-se, incluir, atualmente, outros sites de relacionamento, como Facebook, Hi5 e Twitter. Em pesquisa sobre o “lugar” da internet e a sua influência no processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, Barreto (2010) identificou que 60% dos professores e 100% dos alunos entrevistados (todos ouvintes) afirmaram que o interesse pela leitura de materiais impressos diminuiu com o advento da internet. Isso é uma questão esperada, tendo em vista a grande quantidade de materiais escritos veiculados na internet com a vantagem da dinamicidade com que são veiculados. Tendo em vista o desinteresse, muitas vezes apresentado pelos surdos, em relação à leitura e à escrita em função da dificuldade em lidar com a língua padrão do país, o uso da internet, apesar de todas as desvantagens possíveis, pode ser um grande facilitador do acesso do surdo à língua escrita. Desta forma, acredita-se nas potencialidades que o uso da internet pode proporcionar ao processo de letramento e de gêneros textuais dos surdos. Além disso, Barreto (2010) observou os seguintes resultados: 50%

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dos alunos utilizam a internet todas as semanas, enquanto apenas 34% dos professores o fazem, o que mostra o maior interesse dos alunos em utilizar as ferramentas digitais. Com isso, não se quer dizer que a internet deva ser o carro-chefe do ensino infantil e fundamental, tendo em vista a importância dos livros didáticos sugeridos pelo MEC. No entanto, a internet não pode, nos dias atuais, ser ignorada como uma facilitadora do processo de aprendizagem da linguagem escrita. Considerando o crescente interesse das crianças e jovens pelos textos virtuais, o estímulo às habilidades de ler hipertextos também parece ser uma alternativa interessante para o desenvolvimento da linguagem escrita. Segundo Coscarelli (2009), é necessário ensinar os alunos a lidar com textos e gêneros em todos os ambientes, inclusive o digital. Em pesquisa com livros didáticos, Coscarelli (2009) observa que, apesar de os hipertextos estarem presentes, não são satisfatoriamente explorados. Desta forma, a autora propõe que os ambientes digitais sejam vistos não como uma ruptura, mas como uma continuidade do impresso. Os blogs, chats, fóruns, sites e e-mails, como referem Silva e Campos (2010), caracterizam-se por apresentar códigos próprios e formas de escrever peculiares. Isto deve sempre ser considerado pelo professor de língua portuguesa, não para que sejam aceitas quaisquer formas de escrever, mas para que se estimule o exercício desta leitura e desta escrita, geralmente bastante prazerosas e para mostrar as suas diferenças em relação ao português padrão. Os surdos, por apresentarem uma percepção visual apurada, tendem a internalizar rapidamente a utilização de tais símbolos e, não raro, utilizamnos para atividades mais formais de escrita. Esses sujeitos, que não tem acesso natural à oralidade da língua precisam entender que esta forma de escrita particular pode e deve ser utilizada no ambiente virtual, mas não em situações mais formais de produção linguística, como a elaboração de um curriculum vitae e a redação voltada, por exemplo, para o vestibular. Santos (2007) afirma que, considerando os ambientes virtuais, é um erro escrever de acordo com as normas gramaticais e a norma neste veículo é cortar palavras, usar abreviaturas, emoticons, onomatopeias, gírias e pontuações que tornem a comunicação bem informal.

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Silva e Campos (2010) afirmam que o “internetês” apresenta funções como qualquer outro tipo de texto e se constitui uma das inúmeras formas de linguagem, capaz de imprimir todas as intenções dos interlocutores envolvidos, como emoções, sentimentos, informações, desejos etc. O uso dos gêneros textuais apenas na escola, sabidamente, não é uma estratégia eficaz para a adequada internalização dos gêneros e desenvolvimento das habilidades de letramento. Faz-se necessário, então, que se conheça quais são os gêneros textuais possíveis de ser utilizados em casa e em outros ambientes nos quais o aprendiz passa parte do seu tempo. Koerner (2006) apresenta resultados parciais de sua pesquisa sobre os gêneros utilizados em casa e na escola com alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental. A autora mostra que, entre os gêneros mais utilizados em casa por sujeitos ouvintes em fase de aprendizagem da escrita, encontramse livros (20%), revistas (12%) e gibis (11%). Além disso, percebeu um crescimento no número de itens consumidos (leitura) conforme o avanço das séries, com aumento mais importante entre a 2ª e a 4ª série. Já na escola, os livros mantem-se como o gênero mais utilizado (26%), seguido por textos (11%) e livros didáticos (8%). Apenas 7% referiram usar gibis na escola. Desta forma, deve-se, sempre, conhecer os materiais de interesse dos alunos para que se possa incentivar o seu consumo na escola e em casa, promovendo o incremento das habilidades de letramento. O gibi, por exemplo, segundo Koerner (2006), é um material que vai gradativamente sendo um dos itens mais lidos à medida que a criança fica mais velha. Assim sendo, é importante que se considere a grande relevância da família no desenvolvimento do letramento infantil, pois é através da interação entre adulto/criança que a criança consegue se inserir mais rapidamente no mundo da escrita (Tavares, 2008). Percebe-se, assim, que os materiais tradicionais de leitura, como livros, revistas, gibis e jornais podem e devem ser incentivados pelos professores, associando-os a atividades interativas mais atuais, como a leitura de matérias jornalísticas on-line. O uso destes e de outros gêneros textuais escritos, como bulas de remédio, já é realidade em alguns centros de educação de surdos, no entanto, ainda se encontram lacunas na atuação do professor, que nem

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sempre sabe fazer uso adequado destes materiais (HILA, 2009). Martins (2008) afirma que, apesar de o professor tentar diversificar gêneros textuais trabalhados em sala de aula, por meio de seu discurso, percebe-se que ele não relaciona esses textos com uma prática que desencadeia uma ação social, não se preocupa em trabalhar textos autênticos, com a linguagem em funcionamento e com as situações de produção. O professor deve se preocupar em trazer para a sala textos com maior circulação social, como folhetos publicitários, outdoors, cartazes, jornais, gibis e revistas, uma vez que “são veículos portadores de textos significativos pela relação que têm com o cotidiano do aluno, permitindo-lhes fazer associações com seu conhecimento prévio” (FERNANDES, 2006b, p. 17). Uma das maiores orientações de professores a pais de crianças em fase de aprendizagem da leitura e da escrita é a de que a criança deve desempenhar estas atividades em todos os momentos em que é possível. Desta forma, considerando o processo de aprendizagem específico da escrita, pode-se pensar na escrita coletiva e na escrita individual. Silva (2008) menciona a escrita coletiva (elaboração de um jornal escolar, que é, por natureza, multimodal) como uma atividade que integra eventos de letramento do cotidiano dos alunos. Este é um gênero que poderia possibilitar ao surdo a expressão de suas ideias por meio da escrita, sob mediação de um professor/reabilitador e dos demais colegas que integram a coletividade. Ribeiro (2009) reitera a importância do consumo do material de jornal, tendo em vista que o leitor seleciona o que quer ler, o que pode motivar ainda mais a produção de um jornal projetado para diversos interesses pessoais. Por outro lado, a escrita individual pode ser uma estratégia importante para despertar o interesse pela escrita, além de estimular a produção/ consumo de materiais em diferentes situações de produção (Thies e Peres, 2009), que, sabe-se, são importantes para o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita. Da mesma forma, não podemos esquecer que o uso do suporte do gênero textual produzido e consumido deve ser dominado pelo sujeito. Segundo Ribeiro (2009), dominar o suporte não significa compreender o seu conteúdo e vice-versa, mas está relacionado com o conhecimento sobre como usá-lo. Desta forma, deve-se estimular não só a realização dos

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gêneros textuais orais e escritos como também, no caso destes, desenvolver a habilidade de utilização do suporte em que eles acontecem. Carmo e Reis (2009) descrevem os resultados de uma pesquisa em que foi realizada uma intervenção pedagógica com base no uso de um jornal e seu impacto sobre as habilidades de letramento de um grupo de estudantes. Os autores perceberam que tanto estudantes de escolas públicas quanto de escolas privadas conseguiam identificar o “o que aconteceu” e o “onde aconteceu” dos textos, além do que, conseguiram identificar os diferentes gêneros textuais presentes no jornal. Mostram, dessa forma, que o jornal pode ser um instrumento interessante para o desenvolvimento do letramento infantil. Moura (2009), descrevendo a intervenção sobre as habilidades de leitura e escrita de jovens por meio de uma oficina trabalhando com gêneros textuais, mostra que a escolha adequada dos textos, voltada à realidade dos leitores, proporcionou um maior envolvimento pessoal e afetivo com a comunidade local, um bom nível de informação e clareza na argumentação de aspectos relacionados ao tema trabalhado e interesse pela leitura, revelado quando todos fizeram questão de ler em voz alta individualmente. LopesRossi (2006) concorda, afirmando que os “melhores” gêneros textuais não podem ser definidos previamente, sendo preciso levar em consideração as características, interesses e necessidades dos alunos. Baltar et al. (2006) descrevem uma experiência de sucesso em relação ao trabalho com os gêneros textuais. A atividade desenvolvida pelos autores foi denominada “circuito de gêneros” e se dá através da leitura de um texto gerador, um texto com aparente simplicidade, mas com rica complexidade a ser explorada. Após a leitura do conto, o professor orienta a classe no intuito de desencadear um processo criativo que remeta a atividades de linguagem e a gêneros textuais passíveis de serem atualizados pelos envolvidos nesse enredo. Segundo os autores supra-citados, o trabalho com o “circuito de gêneros” possibilita aos estudantes ler e escrever os textos que necessitam saber para interagir socialmente: desde um bilhete até uma carta de pedido de emprego; desde uma resenha até um artigo científico; desde uma receita até um manual de instruções; desde um boletim de ocorrência até uma procuração; desde um anúncio classificado até um conto.

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Dois estudos realizados na Fonoaudiologia se sobressaem em meio aos muitos estudos desenvolvidos pela Linguística. Brito et al. (2010) apresentam uma proposta de intervenção fonoaudiológica enfocando as habilidades de letramento em crianças ouvintes do 1º ano do Ensino Fundamental. As autoras utilizaram o Programa Fonoaudiológico de Estimulação do Letramento – PFEL, desenvolvido por Cárnio et al. (2006), em que eram trabalhadas, em sete semanas, habilidades de recontagem oral de histórias, compreensão global de texto e a vivência com diferentes gêneros textuais, e verificaram que a intervenção mostrou-se eficaz, promovendo mudanças qualitativas relevantes no vocabulário, letramento, consciência fonológica e leitura. Já Schneider, Souza e Deuschle (2010) apresentam um resultado de intervenção fonoaudiológica enfocando o uso de gêneros textuais em um grupo de sujeitos com queixa de distúrbio de aquisição da linguagem escrita. Foram realizadas 30 sessões, inicialmente em um único grupo e, depois, em dois grupos. Foram trabalhados os gêneros mais referidos como de interesse pelos sujeitos: quadrinhos e carta. As autoras concluíram que a terapia com gêneros textuais foi motivadora para outras práticas de leitura e escrita no grupo estudado. Além disso, o estudo de casos demonstra que não se tratam de distúrbios, mas práticas de letramento insuficientes. Desta forma, esta é uma estratégia que pode ser reveladora de habilidades linguísticas interessantes dos surdos, a ser desenvolvidas por fonoaudiólogos. A experiência junto aos surdos permite, empiricamente, afirmar que, na “cultura surda”, se é que se pode usar tal termo, a oralidade é um aspecto secundário. Pelo contrário, ser “surdo não mudo” é, algumas vezes, inaceitável, pois isto significa que o sujeito ou sua família fez opções em direção à negação da surdez e à sua (re)habilitação. Desta forma, a busca da fala não é sempre bem vista pelos membros da comunidade, pois uma das marcas desta cultura é a utilização de uma língua própria: a de sinais. Isto, no entanto, não faz com que os surdos não precisem da escrita. Por viver em um mundo de letramentos, a escrita perpassa por todos os âmbitos da vida do surdo: pessoal, profissional, social etc. Mesmo em se tratando de uma aquisição trabalhosa e que, muitas vezes, não obtém êxito absoluto, a escrita é uma importante ferramenta para a inserção do sujeito surdo na sociedade ouvinte a partir da possibilidade da comunicação interpessoal e,

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mais do que isso, para a aquisição e transmissão de conhecimentos, por ser este veículo de informação de natureza visual. Silva (2010) apresenta uma proposta de trabalho em pontuação utilizando gêneros textuais e evidenciou que a pontuação usada pelos alunos relaciona-se, de algum modo, às características dos gêneros textuais que foram produzidos. Tendo em vista que, muitas vezes, para pontuar, é realizado apoio na oralidade (entre outros aspectos, destaca-se a entoação), o uso de tais símbolos é de difícil utilização pelos surdos, à exceção dos pontos de interrogação, que tem uma função bem definida e pode ser relacionada à expressão facial de dúvida, presente na Libras. Uma vez alcançada a funcionalidade da escrita do surdo, pode-se pensar em usar gêneros textuais para o trabalho de pontuação em sujeitos surdos, no intuito de “lapidar” o texto produzido aproximando-o ainda mais da norma padrão do português. Segundo Pereira (2010), apesar de os PCNs apresentarem uma proposta inovadora para o ensino de língua portuguesa no Brasil, redirecionando o enfoque do ensino de leitura e produção textual de uma tradição ineficaz para uma visão mais próxima da realidade social e das necessidades dos aprendizes, nota-se que ainda há muitos problemas no sentido de implementar as propostas presentes nesses documentos. Esperase, no entanto, que esta realidade seja modificada em um tempo curto, a fim de possibilitar aos sujeitos, especialmente os surdos, o acesso a adequadas estratégias de desenvolvimento linguístico, tendo em vista o seu difícil acesso à modalidade oral da linguagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A relação oralidade/escrita e, nos casos dos surdos, sinais/escrita é um assunto premente, apesar dos vários estudos já realizados, pelo fato de que, com a concepção cada vez crescente de língua de sinais como L1 e instrumento de acesso ao conhecimento do mundo, o português na modalidade escrita (L2) assume o papel de alternativa à instrução formal e uma das fontes de conhecimento da cultura ouvinte, na qual o surdo também se insere.

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Neste contexto, se torna importante a estimulação do desenvolvimento dos vários gêneros textuais pelos surdos, o que lhes possibilitará um maior conhecimento sobre as diversas situações em que a escrita poderá ser produzida e, com isso, otimizar as suas habilidades de leitura e escrita. Desta forma, o letramento e os gêneros textuais podem se configurar em importantes estratégias de inclusão escolar do surdo, proporcionando a otimização das suas habilidades de linguagem escrita e, consequentemente, propiciando a sua inclusão social e otimizando a sua qualidade de vida. Entre as principais considerações que podem ser traçadas ao final deste trabalho, encontram-se: •

A singularidade linguística dos surdos requer uma diferenciação quando se considera o processo de aprendizagem da leitura e da escrita, ou seja, não se pode pensar em alfabetizar o surdo da forma como se alfabetiza o ouvinte. Nessa perspectiva, deve-se pensar no letramento e no uso dos diversos gêneros textuais para que o surdo compreenda o uso social da escrita. Isso, possivelmente, otimizará o acesso dos surdos ao português escrito e, consequentemente, a maiores anseios no âmbito profissional.



Na perspectiva do bilinguismo, o desenvolvimento do letramento com base nos gêneros textuais foca a língua-padrão do país, considerada L2 para o surdo. Desta forma, é importante que essa particularidade seja sempre considerada, a fim de que a intervenção pedagógica ou de reabilitação se adeque à realidade dos surdos.



Os professores e reabilitadores de surdos devem considerar a internet como uma parceira no processo de desenvolvimento do letramento, já que é conhecido o interesse dos surdos pelos gêneros digitais, como chats.



No ensino da leitura, tendo em vista a multimodalidade dos textos, percebe-se que outros campos da comunicação não verbal ainda tem muito a contribuir para compreender criticamente os textos que nos rodeiam.



A Fonoaudiologia, além dos esforços já direcionados para os estudos sobre a linguagem na surdez, possui um arsenal teórico fabuloso que pode ser aplicado aos surdos, especialmente sob a forma de

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um programa de intervenção sobre as habilidades de letramento, adequado às particularidades do uso da língua portuguesa escrita por esta população. Ressalte-se, no entanto, a importância de os eventos de letramento e uso de gêneros textuais serem mediados pela língua de sinais para que não se perpetue o contexto da exclusão linguística a que estes surdos vem sendo, historicamente, submetidos, já que a educação e as práticas de letramento e gêneros textuais utilizadas com aprendizes surdos nem sempre se aproximam da prática social da linguagem destes sujeitos. Pode-se pensar, portanto, concordando com Kleiman (2001), na aculturação como gatilho para que uma real inclusão aconteça. Isto não deve fazer, no entanto, com que o surdo perca as suas raízes advindas das comunidades surdas, em que a comunicação se dá sob mediação da língua de sinais. De acordo com as referências consultadas, percebe-se uma enorme gama de possibilidades a serem exploradas pelos profissionais que lidam com os surdos, especialmente professores e reabilitadores. No entanto, essas possibilidades exigem novos profissionais. Não outros profissionais, mas profissionais renovados, conscientes da singularidade do surdo e comprometidos com a sua causa. Finalmente, deve-se considerar a língua de sinais e a escrita como ponto de partida e ponto de chegada, para que se possa alcançar o desenvolvimento dos gêneros textuais orais (considerando a língua de sinais como a oralidade dos surdos, segundo Ferreira-Brito, 1995) e escritos, assim como a oralidade e a escrita o são para os sujeitos ouvintes.

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O ESTÁGIO CURRICULAR E A FORMAÇÃO CRÍTICA DOS PROFESSORES THE CURRICULLUM PHASE TRAINING FOR CRITICAL TEACHERS Lucrécio Araújo de Sá Junior Universidade Federal do Rio Grande do Norte Sulemi Fabiano Campos Universidade Federal do Rio Grande do Norte RESUMO Este capítulo tem como objetivo de refletir sobre a formação de professores, para tanto analisamos um excerto de relatórios produzidos por alunos concluintes da disciplina Estágio Supervisionado de Formação de Professores IV de um curso de Letras-Português, no período de 2009/2 a 2010/1 de uma IES prédefinida. Os objetivos do estudo são: (i) observar problemas que suscitam discussões acerca da ausência da pesquisa na formação do aluno de graduação em Letras; (ii) procurar entender o que não deveria ser considerado como uma escrita resultante de um processo de formação crítica; (iii) apontar possíveis mecanismos que contribuam para uma formação crítica, considerando o que Adorno define como concepções de formação cultural. Tal estudo apontará para uma mudança frente à formação de professores, considerando que a prática de ensino como sustentação crítica do conhecimento se aplica numa postura em que o professor não deva assumir frente aos seus alunos um ensino pautado em métodos pré-moldados, através de conteúdos pré-definidos e leituras engessadas. Palavras-chave: Estágio docente; Formação; Pesquisa; Educação. ABSTRACT This paper has as objective to reflect on the formation of professors, for in such a way analyzes an excerpt of Reports produced for pupils of disciplines Supervised Period of training of Formation of Professors IV of a course of Letter-Portuguese, in the period of 2009/2 the 2010/1 of a predefined IES. The objectives of the study are: (i) to observe problems that excite quarrels concerning the absence of the research in the formation of the pupil of graduation in Letters; (II) to look for to understand what it would not

have to be considered as a resultant writing of a process of critical formation; (III) to point possible mechanisms that contribute for a critical formation, considering what Adornment defines as conceptions of cultural formation. Such study it will point with respect to a change front to the formation of professors, having considered that the practical one of education as critical sustentation of the knowledge if it applies in a position where the professor does not have to assume front to its pupils an education in daily pay-molded methods, through predefined contents and plastered readings. Keywords: Teaching period of training; Formation; Research; Education.

INTRODUÇÃO Este trabalho inscreve-se num movimento de reflexão sobre a formação inicial e continuada de professores na universidade. Ao olharmos para a universidade nos moldes como seu ensino é hoje estruturado, há certa inquietação frente ao tipo de professores que estamos formando. A universidade oferece uma formação que se caracteriza por fatores que condizem com a modernidade, que conduz a construção da hegemonia, tendo por base a ideia de competitividade do mercado de trabalho. Temos como objetivos neste artigo observar problemas que suscitam discussões acerca da ausência da pesquisa na formação dos professores da graduação e analisar o que Adorno define como formação cultural (Bildung) na prática docente. Ou seja, procurar entender o que não deveria ser considerado como uma escrita resultante de um processo de formação crítica. Tomamos como objeto de estudo relatórios de estágio supervisionado produzidos por alunos concluintes do curso de Letras (no Ensino Médio), no período de 2009/2 a 2010/1 de uma Universidade Federal. Do corpus, apresentamos apenas recortes que consideramos ser relevantes para a amostra da análise qualitativa que propomos. No entanto, acreditamos que seja possível ampliar o alcance da reflexão que aqui empreendemos para outras áreas de conhecimento. O artigo está dividido em três partes. Na primeira apresentamos algumas considerações sobre a constituição da Universidade na Idade Média seguindo de uma abordagem sobre o modelo de universidade da modernidade; na segunda analisamos um excerto retirado de relatórios escritos por alunos no final de graduação em Letras: os resultados dessa

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amostra apontam para uma escrita amorfa, cuja base, comprova a ausência de uma formação crítica e, na terceira parte reiteramos discussões sobre o estágio e a formação de professores.

1. Um pouco sobre a universidade: do modelo medieval ao modelo atual Um estudo sobre a universidade na Idade Média nos faz entender que desde aquela época era prioridade à formação do homem do saber, um tipo de conhecimento fundamentado na filosofia, que fosse capaz de permiti-lo estruturar ‘racionalmente’ o pensar. Jaques Verger (1973) em sua obra As universidades na Idade Média aponta que o homem do saber nesse período tinha de ter posse de uma intelectualidade devido a uma certa ideia acerca da noção de cultura, era alguém que dominava o conhecimento e tinha um longo período de estudo. No âmbito da universidade havia uma exigência para que alguém fosse considerado um homem do saber, este tinha de dominar a língua latina e as bases filosóficas de Aristóteles. Naquela época os poucos escritos eram publicados em latim e as traduções em língua vernácula não tinham reconhecimento no mundo dos intelectuais. Portanto, saber o latim era sinal de poder, prestígio e respeito. Os homens das letras, assim como eram conhecidos os eruditos na Idade Média, pertenciam ao grupo de pessoas do saber. Porém, Le Goff (1957) em sua obra Os intelectuais na Idade Média publica um estudo sobre a intelectualidade na Idade Média e critica que o homem intelectual desse período tinha suas funções escolares quase que estritamente voltadas à Igreja, inclusive eram denominados como clérigos, sobretudo monges. Feito esse breve percurso, ponderamos que, após os 40 anos da publicação da obra de Le Goff (1957), a concepção do mundo universitário medieval que nele se apresenta não se desgastou. Depreendemos ainda hoje o modelo de universidade que se tinha nos séculos XII e XIII, pois há um resquício daquilo que foi definido como universidade e intelectual, atrelado a ideia de se prender a alguma normatização que impede a formação do sujeito crítico. Por um lado, temos hoje uma universidade não presa à

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Igreja, mas presa às questões políticas neoliberais, uma universidade que está mais a serviço da profissionalização do que do produzir conhecimento, uma universidade que perdeu sua autonomia frente à criação da figura do intelectual. Um intelectual que se define mais como um profissional com habilidades para preencher vagas no mercado de trabalho do que um profissional que tem seu tempo dedicado à docência e à pesquisa. Outro modelo de universidade que surgiu no final da década de 90, o chamado Tratado de Bologna, propõe um enxugamento nos prazos dos cursos e uma intensificação da profissionalização. Uma universidade nova que prevê dentre outros elementos, o crescimento do ensino à distância, turmas com módulos e com um maior número de alunos por sala. Em termos práticos, tal acordo possui como metas a serem atingidas a homogeneização das titulações universitárias para que funcionem como engrenagens facilitadoras do reconhecimento mútuo entre os países integrantes da União Europeia e a flexibilização de suas estruturas como mecanismo que viabilize sua adaptação às necessidades da sociedade e favoreça o intercâmbio entre os países que compõem este bloco. De uma maneira bastante sintética, podemos dizer que a relevância do Tratado de Bologna se localiza no estabelecimento dos pilares para a construção de um Espaço de Ensino Superior ao qual se outorga o cumprimento de duas funções primordiais, a saber: o incremento das oportunidades de emprego e a transformação do sistema de formação superior em um chamariz que venha atrair tanto estudantes quanto professores, acelerando assim o processo de globalização, ao mesmo tempo, em que eleva o próprio conceito do sistema universitário. Diante dessa explanação, pode-se extrair pelo menos dois reflexos presentes nas instituições de ensino superior. O primeiro reflexo é a mercantilização do ensino, a comparação da universidade com o supermercado, onde se vendem produtos prontos e não se “fabrica” o conhecimento. Chauí (2001) descreve essa comparação entre a universidade com o supermercado. Pois no supermercado não há fabricação, criação, transformação, lá os produtos são colados em prateleiras para serem escolhidos e vendidos, muitos nem imaginam quais são os processos pelos quais passaram o produto para chegar até às prateleiras do supermercado. Os consumidores compram e os consomem sem se preocuparem com a fabricação, isso, na

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universidade, é equivalente aos alunos que só querem ser aprovados no final do curso e adquirir um diploma, uma autorização de uma instituição que lhe certifique uma formação universitária, embora essa formação seja altamente questionável. O segundo reflexo é a perpetuação de aulas na universidade em que a pesquisa se apresenta distante do contexto de sala de aula. E a pesquisa é uma prática que deveria ser intrinsecamente imbricada ao ensino de graduação. Para Adorno (2006) algumas ciências humanas altamente desenvolvidas, como as filologias das línguas antigas, bem como os estudos linguísticos e literários, assumiram tal peso próprio, que dispõem de uma metodologia e uma temática a tal ponto elaboradas, que para elas a auto-reflexão (filosófica) parece quase um diletantismo. A constatação disso é recorrente nos relatórios dos estágios supervisionados produzidos pelos estudantes de Letras de uma dada instituição pública levando imediatamente a concluir a ausência da formação crítica/cultural (Bildung) necessária a quem pretende ser um formador. Para Ghedin (2005), o estágio deve tomar por base e como princípio formativo “a reflexão na ação e sobre a reflexão na ação”, onde o conhecimento faz parte da ação, numa apropriação de teorias que possa oferecer uma perspectiva de análise e compreensão de contextos históricos, sociais, culturais, éticos, políticos, estéticos, técnicos, organizacionais e dos próprios sujeitos como profissionais, para apresentar novas propostas de transformação da escola como espaço de construção da identidade profissional e da autonomia do professor. Como observam Ghedin, Almeida e Leite (p. 17) é preciso que os cursos de formação de professores se organizem de forma a possibilitar os docentes, antes de tudo, superar o modelo de racionalidade técnica para lhes assegurar a base reflexiva na sua formação e atuação profissional. Como observam os autores, a pesquisa, ao constituir-se como eixo sobre o qual se articula a relação teoria-prática, leva o estagiário a perceber que sua prática educativa é fonte tanto da atividade reflexiva como da prática investigativa.

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2. Reflexo da ausência de uma formação crítica na escrita de alunos da graduação em Letras O excerto analisado é parte de relatórios finais da disciplina Estágio Supervisionado de Formação de Professores (Ensino Médio) do curso de Letras de uma dada instituição pública. O corpus foi dividido em 06 (seis itens) e vários subitens, dos quais selecionamos os itens 04 (as partes da problemática) e 06 (as partes da conclusão) para analisar. Salientamos que os itens foram copiados na mesma extensão que os alunos escreveram, ou seja, não há nada escrito antes ou depois dos parágrafos que foram transcritos para fins de análise. Elegemos esses trechos para mostrar a relação do sujeito com o conhecimento no final de um curso de graduação. Apresentamos os dados a serem analisados, Excerto do Corpus1 Aluno Concluinte (AC) 4. PROBLEMÁTICA Percebi que as metodologias de ensino dos professores da rede pública estão “enraizadas” através de conceitos ultrapassados. Segundo Deleuze: “Não podemos ficar parados com conceitos antigos sem dinamizar...”. Esta seria a proposta para que haja uma progressão na educação: Desterritorializar conceitos arcaicos para depois reterritorializá-los no campo da educação com a finalidade de incentivar a criação, incitar, abrir possibilidades de uma nova forma de conhecimento aos alunos da rede pública. Infelizmente, o curto período de tempo das regências e alguns obstáculos impediram um melhor desempenho desse conceito de Deleuze. Mesmo assim, foi muito gratificante a experiência adquirida durante o estágio. 6. CONCLUSÃO O curso de Letras foi extremamente importante para minha vida “profissional” e particular, pois proporcionou uma maneira peculiar de ver o mundo, criticando-o construtivamente, pois os ensinamentos que obtive na vida acadêmica, mais especificamente com o curso de Letras, qualificaram-me para isso. Conceitos, diretrizes, orientações de diversos livros, apostilas e professores desta imponente instituição “X”, possibilitou a transição de uma nova etapa da minha vida que abrirá caminhos para vários sucessos profissionais e familiares. 1

Grifos nossos.

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Análise do excerto: Observamos o que o aluno escreveu na problemática e na conclusão do relatório de estágio: Percebi que as metodologias de ensino dos professores da rede pública estão “enraizadas” através de conceitos ultrapassados. Em diversas passagens do relatório há marcas do sujeito como controle do saber e da realidade: percebi (problemática), minha vida (conclusão), qualificaram -me (conclusão), obtive (conclusão). Seria demais imaginar que com essas palavras o estudante possa perceber o que existe de questionável em sua iniciação docente justamente a acerca de seu futuro. A auto-reflexão e o esforço crítico são dotados de uma possibilidade real, a qual seria precisamente o contrário da dedicação férrea pela qual se decidiu realizar a atividade do estágio. Aqui a consciência coisificada coloca a ciência como procedimento entre si própria e a experiência vivida. Mas na incapacidade do pensamento em se impor, já se encontra à espreita o potencial de enquadramento e subordinação a uma autoridade qualquer. Isso se revela em (problemática): Segundo Deleuze: “Não podemos ficar parados com conceitos antigos sem dinamizar...”. Aqui temos nas palavras do estudante o complemento da vulgaridade do saber, o argumento da autoridade como elemento de erudição e a inclinação pelo uso de palavras situadas fora do horizonte de quem delas faz uso. Tratam-se apenas do uso pelo requinte da linguagem. O uso desses termos contraria a formação crítica, na medida em que de antemão são definidos pela apropriação de algo previamente existente e válido, em que faltam: o sujeito, o formando ele próprio, seu juízo, sua experiência, o substrato da liberdade. Fazendo uso do que diz Adorno (2006, p. 70), as pessoas acreditam estar salvas quando se orientam conforme regras científicas, obedecem a um ritual científico, se cercam de ciência. E nessa escrita os estudantes procuram sacramentar o próprio encantamento científico como sendo o que o jargão da autenticidade denomina vinculo autêntico, é o que revela a seguinte passagem: desterritorializar conceitos arcaicos para depois reterritorializá-los no campo da educação com a finalidade de incentivar a criação, incitar, abrir possibilidades de uma nova forma de conhecimento aos alunos da rede pública.

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A base de sustentação para a apropriação de conceitos é a ideia de ciência atualmente disseminada no ambiente acadêmico. O que permite aos estudantes aceitar sem verificação e comprovação a emancipação de dogmas científicos heterônomos. Enganam-se, pois não conseguem encontrar além do uso de certos termos o espírito autônomo, e quedam na heteronomia constituída pelo objetivo prático de uma postura automática. Para Adorno, uma das características da consciência coisificada é manter-se restrita a si mesma, junto a sua própria fraqueza, procurando justificar-se a qualquer custo. A ocupação com a docência deveria promover a identidade de seu interesse verdadeiro com o ensino da disciplina que elegeram, mas na verdade apenas aumenta a auto-alienação. Esta possivelmente se avoluma ainda mais na medida em que o conteúdo das disciplinas é percebido como um peso morto que dificulta a aquisição de conhecimentos úteis, seja na preparação para a vida, seja na aquisição de conhecimentos profissionalizantes. Dessa maneira, ao invés de se conduzir pelo saber ao encontro de si mesmo, prestase apenas a demonstrar a todos o fracasso da situação atual do ensino. Na referida amostra, outros elementos ainda podem ser analisados: (a)

evidências que se sobrepõem à sustentação do conhecimento: -infelizmente, o curto período de tempo das regências e alguns obstáculos impediram um melhor desempenho desse conceito de Deleuze. (problemática)

(b)

modos abstratos de ver o conhecimento e falta de definição do saber adquirido durante o curso de graduação: - conceitos, diretrizes, orientações de diversos livros, apostilas e professores desta imponente instituição (problemática)

A escrita apresenta a qualificação do saber como algo superficial no uso de pronomes indefinidos. E no relatório não há domínio da forma do gênero, uma vez que a conclusão se assemelha com um agradecimento

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inicial do texto monográfico. Como enfatiza Amaral (2010), a má formação dos professores e o currículo do curso contribuem para um conhecimento deficitário, que contribuem, por sua vez, para os alunos não desenvolverem sua competência comunicativa e, assim, lerem pouco e escreverem menos ainda. Muito do que foi dito sobre a produção do conhecimento na universidade se aplica à discussão sobre a escrita, como por exemplo, questões relativas aos tipos de conhecimentos envolvidos na atividade de leitura, aos esquemas mentais e aos elementos de textualidade. Apoiando-nos nessas propostas podemos afirmar que a universidade reproduz um conhecimento, conforme está estruturada. Quando nos referimos à universidade não estamos falando nos sujeitos empíricos que compõem o corpo docente, discente, diretores, e sim da posição que cada um assume frente a uma dada formação ideológica pré-estabelecida. Por exemplo, não há como exigir das produções textuais analisadas uma transformação, se a própria instituição não ocupa um lugar ideológico de formadora. Como diz Amaral (2010), o estudante é também o grande responsável pela construção de seus conhecimentos. Obviamente, ele opta por não aprender algo, por não participar desse processo de aprendizagem. Mas se decide participar desse processo, ele automaticamente assume um papel cognitivamente ativo na construção de seus conhecimentos. Não se poderia também pensar que a produção do conhecimento estaria vinculada ao pensamento da inovação das mentalidades, da criação de imaginação humana ou do desarranjo dos hábitos do pensamento. O conhecimento se dá por meio do efeito e é parte de um processo histórico determinado pela produção econômica.

3. Teoria e prática na formação docente: a construção das identidades De acordo com Pimenta e Lima (2010) o reducionismo dos estágios às perspectivas da prática instrumental e do criticismo expõe os problemas na formação profissional docente. A dissociação entre teoria e prática aí presente resulta em um empobrecimento das práticas nas escolas, o que evidencia a necessidade de explicitar por que o estágio é teoria e prática (e não teoria e prática). Para Sacristán (1999), a prática é institucionalizada; são as formas de educar que ocorrem em diferentes contextos institucionalizados,

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configurando a cultura e tradição. Essa tradição seria o conteúdo e o método da educação. A ação refere-se aos sujeitos, seus modos de agir e pensar, seus valores, seus compromissos, suas opções, seus desejos e vontade, seu conhecimento, seus esquemas teóricos de leitura de mundo. Para Pimenta e Lima, a ação, em sentido amplo, designa a atividade humana em oposição a um estado passivo. Assim, as autoras denominam ação pedagógica as atividades que professores realizam no coletivo escolar supondo o desenvolvimento de certas atividades materiais orientadas e estruturadas. Tais atividades têm por finalidade a efetivação do ensino e da aprendizagem por parte dos professores e alunos. Esse processo de ensino e aprendizagem é composto de conteúdos educativos, habilidades e posturas científicas, sociais, afetivas, humanas. Mas, nem sempre os professores têm clareza sobre os objetivos que orientam a sua ação no contexto escolar e no meio social em que se inserem. Nesse processo, o papel das teorias filosóficas é iluminar e oferecer instrumentos para análise e investigação que permitem questionar as práticas institucionalizadas e as ações dos sujeitos e, ao mesmo tempo, colocar elas próprias em questionamento, uma vez que muitas das teorias e dos procedimentos de ensino são explicações sempre parciais e provisórias, não conseguindo contemplar a totalidade do real. A prática educativa (institucional) é um traço cultural compartilhado que tem relações com o que acontece em outros âmbitos da sociedade e de suas instituições. Portanto, no estágio dos cursos de formação de professores, compete possibilitar que os futuros professores compreendam a complexidade das práticas institucionais e das ações aí praticadas por seus profissionais como alternativa no preparo para sua inserção profissional. (PIMENTA; LIMA, 2010, p. 43). Para as autoras, isso só pode ser conseguido se o estágio for uma preocupação, um eixo de todas as disciplinas do curso, e não apenas daquelas erroneamente ditas “pedagógicas” e denominadas “práticas”. Dessa forma, num curso de Licenciatura é preciso situar todas as disciplinas como sendo pedagógicas e práticas.

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Pimenta e Gonçalves (1990) consideram que a finalidade do estágio é propiciar ao aluno uma aproximação à realidade na qual atuará. Assim, o estágio se afasta da compreensão até então corrente, de que seria a parte prática do curso. As autoras defendem uma nova postura, uma redefinição do estágio, que deve caminhar para a reflexão. Nesse âmbito, é preciso que os professores dos cursos de licenciatura procedam no coletivo junto aos alunos para refletir sobre a formação docente, para analisá-la e questioná-la criticamente. Segundo Pimenta e Lima (2010, p. 45), essa caminhada conceitual certamente será uma trilha para a proposição de novas experiências. Nesse âmbito, a pesquisa no estágio é uma estratégia a ser percorrida. Desde que traduzida na ampliação da percepção crítica dos alunos e não apenas no desenvolvimento de habilidades de ensino. Tal pesquisa deve ser orientada na busca pelo conhecimento que problematize o estado de coisas existente, novos olhares sobre o saber-fazer docente através de uma postura investigativa sobre aquilo que constitui a relação do próprio sujeito com a realidade, com a institucionalização do saber, com a produção/ reprodução/inovação. Encontramos em John Dewey uma forte valorização da prática na formação dos professores, uma prática reflexiva que possibilite os questionamentos e as respostas geradas nas situações de incertezas, indefinições e inseguranças. Baseado nessa proposta Donald Shön propõe que a formação dos profissionais não mais se dê nos moldes de um currículo normativo que primeiro apresenta a ciência, depois a sua aplicação e por último um estágio que supões a aplicação pelos alunos dos conhecimentos técnicos-profissionais adquiridos ao longo de sua formação. Para o autor, o profissional assim formado não consegue dar respostas às situações que emergem no dia a dia profissional, porque as questões a ele postas ultrapassam os conhecimentos elaborados pela ciência e as respostas técnicas que poderia oferecer ainda não foram previamente formuladas (por outrem). Dessa maneira, Shön propõe uma formação baseada numa epistemologia prática, ou seja, na valorização da prática profissional como momento de construção de conhecimento por meio de reflexão, análise e problematizarão dessa prática e a consideração do conhecimento tácito, presente nas soluções que os profissionais encontrem em ato. Essa linha de

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formação docente é capaz de conferir estatuto próprio de conhecimento ao desenvolvimento de saberes. Tal perspectiva não é formada apenas na experiência concreta do sujeito em sala de aula, devendo ser nutrida pela formação cultural, já enfatizada na tradição filosófica alemã. Assim, os sujeitos serão dotados de um poder formativo e também de potencialidades variadas sobre sua ação concreta no mundo, uma vez que os saberes teóricos propositivos se articulam aos saberes práticos, ressignificando-os e sendo constantemente ressignificados. Segundo Pimenta e Lima (2010), o desenvolvimento desse processo só pode ser possibilitado pela atividade de pesquisa, que se inicia com a análise e a problematização das ações e das práticas, desde que confrontadas com as explicações teóricas, com a experiência de outros atores e olhares de outros campos de conhecimento, com os objetivos pretendidos e com as finalidades da educação na formação da sociedade. Navarro (2000) considera que nem sempre os professores tem clareza sobre os objetivos que orientam suas ações no contexto escolar e no meio social onde se inserem, dessa maneira é imprescindível investir nos processos de reflexão nas e das ações pedagógicas (e não pedagógicas). Na mesma direção Libâneo (1998) destacou a importância da apropriação e produção de teorias como marco para a melhoria das práticas de ensino e de sues resultados. Também Contreras (1997) chama a atenção para o fato de que a prática dos professores precisa ser analisada, considerando que a sociedade é plural, no sentido d pluralidade de saberes, mas também desigual, no sentido das desigualdades sociais, econômicas, culturais e políticas. Na mesma direção, Carr (1995) aponta para o caráter transitório e contingente de prática dos professores e para a necessidade de transformála numa perspectiva crítica. De acordo com Pimenta e Lima (2010) a análise contextualizada do conceito de professor reflexivo permite superar suas limitações, afirmando-o como um conceito político-epistemológico que requer o suporte de políticas públicas consequentes para sua efetivação. Caso contrário, se transforma em mero discurso ambíguo, falacioso e retórico, servindo apenas para se criar um discurso que culpabiliza os professores. Discurso que ignora

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ou mesmo descarta a análise do conjunto de suas teorias e, principalmente, dos contextos nos quais foram produzidos e para os quais, eventualmente, tem sido férteis no sentido de potencializar a efetivação de uma democracia social com mais igualdade, para o que contribui a democratização quantitativa e qualitativa dos sistemas escolares (PIMENTA; LIMA, 2010, p. 54). Para as autoras, esse conhecimento envolve o estudo, a análise, a problematização, a reflexão e a apropriação de soluções às situações de ensinar e aprender. Envolve experimentar situações de ensina, aprender e elaborar, executar e avaliar projetos de ensino não apenas nas salas de aula, mas também nos diferentes espaços. Dessa forma, é importante desenvolver nos alunos futuros professores não apenas habilidades de ensino, a utilização e a avaliação de técnicas, métodos e estratégias de ensino. Mas desenvolver a habilidade de leitura e reconhecimento de saberes que o permitam melhor se relacionar no mundo e com o mundo, algo que traga contribuição para sua experiência de vida que culmine em projetos de experiências que não sejam desligados da realidade pessoal-histórico-social. Com tal reflexão sobre a prática o estágio não será feito por si mesmo apenas como componente curricular, mas irá constituir um verdadeiro projeto político-pedagógico de formação (Bidung), cuja marca é alavancada pela pesquisa. Tal perspectiva deverá ocorrer desde o início dos cursos de Licenciaturas, possibilitando que a relação entre os saberes teóricos e os saberes pessoais das práticas garanta a autonomia de se reconhecer como formadores, ultrapassando a mera competência de executar uma profissão. Essa proposta considera que teoria e prática estão presentes tanto na universidade quanto nas instituições escolares, e mais ainda no universo pessoal-social, do Eu relacionando-se com o mundo. Nos cursos de formação de professores, o desafio é proceder então o intercambio, durante o processo formativo á luz dos fundamentos teóricos das disciplinas curriculares e das experiências culturais dos seus agentes. Dessa maneira, o eixo curricular central dos cursos de formação de professores irá possibilitar aspectos indispensáveis à construção de identidades, dos saberes e das posturas políticas específicas ao exercício

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intelectual docente. Os estudos e pesquisas sobre a identidade docente têm dado muita atenção ao profissionalismo, na busca de compreensão das posturas assumidas pelos professores. Mas discutir a profissão e a profissionalização docente requer um olhar mais cuidadoso sobre o universo cultural, social e histórico da construção dessa identidade. De acordo com Guimarães (2004), os estudos sobre identidade profissional docente têm recebido um caráter interdisciplinar e complexo, podendo receber significados diferentes no campo da Psicologia, da Sociologia e de outras ciências. Para o autor, os cursos de formação podem ter importante papel nessa construção ou fortalecimento da identidade, à medida que possibilitam a reflexão e a análise crítica das diversas representações sociais historicamente construídas e praticadas na profissão. Será no confronto com as representações e as demandas sociais que a identidade construída durante o processo de formação será reconhecida, para o qual são necessários os conhecimentos, os saberes, as habilidades, as posturas e a responsabilidade. Trata-se, pois, de se trabalhar nos cursos de formação a identidade em formação, definida pelos saberes, e não apenas pelas atividades docentes. A consideração dos processos subjetivos e objetivos na construção da identidade do formador. O papel do professor, de acordo com Rios (2002), traz para o indivíduo a necessidade de um preparo para o desempenho adequado. Além de saber os conhecimentos sobre determinada área da realidade, que se converterá no conteúdo do ensino, alia-se para transmissão, partilha e socialização dos conhecimentos. Além disso, é preciso uma visão crítica dos princípios que fundamentam sua prática, dos objetivos por ela visados, dos compromissos por ela requeridos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Guimarães (2001) mostrou em sua pesquisa de doutorado que a formação específica nos cursos de licenciatura, em geral, promove no aluno a qualidade teórico-científica, mas o aprendizado de ser professor é adquirido por eles quase sozinhos. A tese reforça o peso das demandas do contexto, articulada aos modos como os cursos são desenvolvidos, nas disposições dos alunos quanto à identificação com a profissão. Dessa forma, segundo Pimenta e Lima (2010), os saberes, a identidade profissional e as práticas

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formativas presentes nos cursos de formação docente precisam incluir aspectos alusivos ao modo como a profissão é representada e explicada socialmente. Para autoras, mobilizar os saberes da experiência é o primeiro passo, O curso, o estágio, as aprendizagens das demais disciplinas e experiências e vivências dentro e fora da universidade ajudam a construir a identidade docente. O estágio, ao promover a presença do aluno estagiário no cotidiano na escola, abre espaço para a realidade e para a vida e o trabalho do professor na sociedade (PIMENTA; LIMA, 2010, p. 68). A formação passa sempre pela mobilização de vários tipos de saberes: saberes de uma prática reflexiva, saberes de uma teoria especializada, saberes de uma militância política (pedagógica), o que coloca os elementos para produzir conhecimento e exercer com autonomia a profissão docente. Segundo Pimenta e Lima os problemas da prática profissional docente não são meramente instrumentais, mas comportam situações problemáticas que requerem decisões num terreno de grande complexidade, incerteza, singularidade e conflito de valores. Nesse sentido, a formação envolve um duplo processo: o de autoformação dos professores a partir da reelaboração constante dos saberes que realizam em sua prática, confrontando suas experiências nos contextos escolares, e o de formação nas instituições escolares onde atuam. Por isso é importante tornar a escola um espaço de trabalho e formação, o que implica gestão democrática e práticas curriculares participativas, propiciando a constituição de redes de formação contínua cujo primeiro nível é a formação inicial (PIMENTA; LIMA, 2010, p. 68). Atualmente, em muitos cursos de formação a pesquisa comparece apenas na atividade docente com foco no ensino e na aprendizagem, por vezes apenas no treinamento de competências modelares, esquecendo-

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se do processo de construção das identidades, da formação cultural (Bidung). A tendência que valoriza o professor como pesquisador e reflexivo emerge em contraposição à formação do professor como técnico, consequentemente aponta a importância da qualificação docente diante das novas exigências sociais. A pesquisa da prática docente não deve desconsiderar o multiculturalismo, as políticas atuais de globalização e os paradigmas da pós-modernidade. O desenvolvimento pleno da prática docente deve ser construído através de políticas que tenham o objetivo de valorizá-lo enquanto ser, não considerando apenas a competência baseada na racionalidade técnica, que os considera os professores meros executores de decisões alheias. Os cursos de licenciatura devem ocorrer numa perspectiva que possibilite a autonomia docente para inventar, criar, decidir e confrontar suas ações cotidianas com as produções teóricas. Isso só é possível uma vez que se pesquisa a prática. Dessa maneira espera-se dos professores universitários que atuam na formação docente o desenvolvimento de conhecimentos que possibilitem aos professores em formação inicial (e continuada) construir seus saberes/fazeres a partir das necessidades e desafios que se apresentam no cotidiano. No ambiente acadêmico de formação docente deve se mobilizar nos conhecimentos pedagógicos a compreensão do ensino como possibilidade de mudança da realidade social. Nesse âmbito, deve-se provocar os futuros professores para que construam e transformem seus saberes/fazeres docentes num processo contínuo de suas identidades. Para além do exercício profissional, o professor é um ser de cultura que possui conhecimentos específicos sobre uma determinada área, mas possui outros aportes para compreender e se relacionar com o mundo. Dessa maneira, os cursos de formação de professores devem provocar o desvelamento desse ser, o desabrochar de um analista crítico que produz conhecimento sobre sua área de atuação específica e sobre o estar no mundo. Assim, as transformações sobre as práticas docentes só se efetivarão à medida que o professor consiga ampliar sua consciência sobre si mesmo, sobre a própria prática, o que pressupõe os conhecimentos teóricos, práticos e críticos sobre a realidade. Há a necessidade de a universidade investir numa formação em que o aluno não somente reproduza um conhecimento mecanizado e reproduzido em sala de aula. Os alunos precisam ser afetados pelos discursos que

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sustentam sua formação e têm de se reconhecerem como sujeitos do discurso e daquilo que eles produzem. Todos esses fatores contribuem para questionarmos que tipo de conhecimento/cientificidade a universidade hoje oferece aos alunos, ou mesmo, o que pode ser considerado ciência nos cursos de Licenciatura, aqui entendida como produção de conhecimento. Com o exemplo retirado de um relatório de estágio exposto nesse trabalho consideramos que a formação docente produzida na graduação mostra-se malsucedida no ponto de vista da apropriação do conhecimento e isso é consequência direta de uma ausência de pesquisa. Defendemos que a inserção de uma efetiva prática da pesquisa na sala de aula sustentaria a apropriação de um conhecimento na produção textual e não um ensino cuja prática é sustentada pela repetição.

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