Revista do GELNE, NATAL, V. 14 - ESPECIAL, 2012

July 19, 2017 | Autor: R. Gelne | Categoria: Lingüística, Letras
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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .....................................................................................................................................................................................9 Marco Antonio Martins, Jussara Abraçado ACHEI A FOTO, CLÁUDIA! ................................................................................................................................................................17 Maria Maria Cecilia Mollica

REVISTA DO

RÓTICOS EM CODA SILÁBICA NA FALA DE NOVA IGUAÇU-RJ COM BASE EM DIFERENTES TIPOS DE CORPUS ............................................................................................................................................................................................21 Silvia Figueiredo Brandão, Clarice Braconi da Silva

ELNE

VARIAÇÃO DO RÓTICO E ESTRUTURA PROSÓDICA ..........................................................................................................41 Dinah Callou, Carolina Serra CARACTERIZAÇÃO PROSÓDICA DOS FALARES BRASILEIROS: A ORAÇÃO INTERROGATIVA TOTAL ......59 Joelma Castelo Bernardo da Silva, Cláudia de Souza Cunha

ISSN 1517-7874 versão impressa - ISSN 2236-0883versão online

A EXPRESSÃO DA MODALIDADE DEÔNTICA E EPISTÊMICA NA FALA E NA ESCRITA E O PADRÃO SV .........................................................................................................................................................................................77 Maria Eugenia Lammoglia Duarte

GRUPO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO NORDESTE

A VARIAÇÃO ENTRE NÓS E A GENTE: UMA COMPARAÇÃO ENTRE O PORTUGUÊS EUROPEU E O PORTUGUÊS BRASILEIRO............................................................................................................................................................95 Juliana Barbosa de Segadas Vianna, Célia Regina dos Santos Lopes A EXPRESSÃO DA SEGUNDA PESSOA DO SINGULAR EM CARTAS PESSOAIS NORTE-RIOGRANDENSES DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX...........................................................................................................................117 Marco Antonio Martins, Kássia Kamilla de Moura ASPECTOS DE COMPORTAMENTO SOCIOLINGUÍSTICO ENTRE AS TRÊS CAPITAIS DA REGIÃO SUL: ESPECIFICIDADES E GENERALIZAÇÕES ..............................................................................................................................135 Edair Maria Görski, Izete Lehmkuhl Coelho SUBJETIVIDADE E ORDEM DE PALAVRAS: A ORDEM VERBO-SUJEITO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO E NO GALEGO .....................................................................................................................................................................................161 Jussara Abraçado UMA MUDANÇA ENCAIXADA: CLÍTICOS EM CONSTRUÇÕES PREPOSICIONADAS ...........................................173 Odete Pereira da Silva Menon VARIAÇÃO ESTILÍSTICA NA ESCRITA ESCOLAR MONITORADA: O CASO DA COLOCAÇÃO PRONOMINAL ......................................................................................................................................................................................213 Silvia Rodrigues Vieira, Adriana Lopes Rodrigues-Coelho O PAPEL DO GÊNERO TEXTUAL NA VARIAÇÃO ESTILÍSTICA: EM BUSCA DE PADRÕES COMUNITÁRIOS ..................................................................................................................................................................................239 Maria Alice Tavares PARA ALÉM DOS PACOTES ESTATÍSTICOS VARBRUL/GOLDVARB E RBRUL: QUAL A CONCEPÇÃO DE GRAMÁTICA? ................................................................................................................................................................................259 Christina Abreu Gomes VARIAÇÃO NOS PROCESSOS DE REFERENCIAÇÃO CORRELACIONADA A GÊNEROS DISCURSIVOS .....273 Vera Lúcia Paredes Silva ‘OI? ............................................................................................................................................................................................................301 Maria Cecilia Mollica, Rodrigo Alipio, Thaís Lofeudo, Samara Moura POR ONDE CAMINHA O PROJETO ALIB ................................................................................................................................329 Jacyra Andrade Mota, Suzana Alice Marcelino Cardoso AS VARIANTES LEXICAIS PARA A MONTARIA FEMININA: UM ESTUDO SEMÂNTICO-LEXICAL EM CORPORA GEOLINGUÍSTICOS ....................................................................................................................................................347 Celciane Alves Vasconcelos, Vanderci de Andrade Aguilera ATITUDE: UM CONCEITO TEÓRICO, UM CONCEITO DE VIDA ...................................................................................367 Dermeval da Hora

Vol.10 Vol. 14

ISSN 1678-1805

LÍNGUA, CULTURA E CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE TEUTO-BRASILEIRA/BRASILEIRA-ALEMÃ NO SUL BRASIL ...................................................................................................................................................................................387 Mônica Maria Guimarães Savedra, Ciro Damke

1 nºnºEsp.

Vol. 10

O APAGAMENTO DO TRAÇO LÍNGUA-CULTURA-IDENTIDADE GERMÂNICA NA CIDADE DE JUIZ DE FORA/MG ............................................................................................................................................................................411 Mariana Schuchter Soares, Ana Claudia Peters Salgado

jan./jun. 2012 2011

número 1 Jan/Jun. de 2011

Nº Especial 2012

GRUPO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO NORDESTE

REVISTA DO GELNE Marco Antonio Martins (UFRN) Jussara Abraçado (UFF) (Organizadores)

Revista do Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste

Natal

ISSN 1517-7874 versão impressa - ISSN 2236-0883 versão online

Vol. 14

Número Especial

2012

GRUPO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO NORDESTE Todos os direitos reservados ao GELNE Editoração Eletrônica Patricia Mabel Kelly Ramos Revisão Marly Rocha Medeiros de Vargas Luciana Braga Carneiro Leitão

Revista do GELNE - Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste - Vol. 14 - Número Especial - Natal: EDUFRN, 2012 Semestral ISSN 1517-7874 – versão impressa ISSN 2236-0883 – versão online 1. Língua - Linguistica - Periódicos I. Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste

Endereço para correspondência: Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste Sede Biênio 2010-2012 Universidade Federal do Rio Grande do Norte Av. Salgado Filho, nº 3000, sala 309 Campus Universitário/CCHLA - CEP: 59.078-970 Fone/Fax: (84) 3215-3579 Natal 2012-05-12

REVISTA DO GELNE

Marco Antonio Martins (UFRN) Jussara Abraçado (UFF) (Organizadores)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE COMISSÃO EDITORAL

CONSELHO EDITORAL

Marco Antonio Martins Lucrécio Araújo de Sá Júnior Maria das Graças Soares Rodrigues Sulemi Fabiano Campos

Anna Christina Bentes (UNICAMP) Antonia Dilamar Araújo (UECE) Ataliba Teixeira de Castilho (USP) Carmen Lúcia Barreto Matzenauer (UCPel) Célia Marques Telles (UFBA) Cláudia Roberta Tavares Silva (UFRPE) Dermeval da Hora (UFPB) Erotilde Goreti Pezatti (UNESP) Ingedore Vilaça Koch (UNICAMP) Iveuta de Abreu Lopes (UESPI\UFPI) Izete L. Coelho (UFSC) Janaina Weissheimer (UFRN) José S. Magalhães (UFU) Júlio César Rosa de Araújo (UFC) Jussara Abraçado (UFF) Maria Aparecida Barbosa (USP) Maria do Socorro Simões (UFPA) Maria Lobo (Universidade Nova de Lisboa) Raquel Freitag (UFS) Renato Basso (UFSC) Roberval Teixeira e Silva (Universidade de Macau) Ruth Lopes (UNICAMP) Sônia Maria Van Dijck Lima (UFPB) Stella Maris Bortoni-Ricardo (UNB) Sueli Cristina Marquesi – (PUC\SP) Valdemir Miotello (UFSCar) Valéria Monaretto (UFRGS) Vanda Elias (USP) Vanderci Aguilera (UEL)

CONSELHO TITULARES Profª. Dra. Denilda Moura (UFAL) Prof. Dr. José de Ribamar M. Bezerra (UFMA) Profª. Dra. Márcia Teixeira Nogueira (UFC) Profª. Drª. Maria Auxiliadora F. Lima (UFPI) Prof. Dr. Rubens Marques de Lucena (UFPB) Prof. Dr. Wagner Rodrigues Silva (UFT)

CONSELHO SUPLENTES Prof. Dr. Aldir Santos de Paula (UFAL) Profª. Drª. Conceição de Mª A. Ramos (UFMA) Prof. Dr. Diógenes Buenos Aires (UEMA) Profª. Drª. Catarina de S. S. M. da Costa (UFPI) Profª. Drª. Cláudia Roberta T. Silva (UFRPE) Profª. Drª. Marília de Nazaré O. Ferreira (UFPA)

GRUPO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO NORDESTE - GELNE DIRETORIA – Biênio 2010-2012 Presidente

Prof. Dr. Marco Antonio Martins (UFRN)

Vice-Presidente

Profª. Drª Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN)

Secretária

Profª. Drª Sulemi Fabiano Campos (UFRN)

Tesoureiro

Prof. Dr Lucrécio Araújo de Sá Júnior (UFRN)

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Marco Antonio Martins, Jussara Abraçado

9 ACHEI A FOTO, CLÁUDIA! Maria Cecilia Mollica

17 RÓTICOS EM CODA SILÁBICA NA FALA DE NOVA IGUAÇU - RJ COM BASE EM DIFERENTES TIPOS DE CORPUS Silvia Figueiredo Brandão, Clarice Braconi da Silva

21 VARIAÇÃO DO RÓTICO E ESTRUTURA PROSÓDICA

Dinah Callou, Carolina Serra

41 CARACTERIZAÇÃO PROSÓDICA DOS FALARES BRASILEIROS: A ORAÇÃO INTERROGATIVA TOTAL Joelma Castelo Bernardo da Silva, Cláudia de Souza Cunha

59 A EXPRESSÃO DA MODALIDADE DEÔNTICA E EPISTÊMICA NA FALA E NA ESCRITA E O PADRÃO SV Maria Eugenia Lamoglia Duarte

77 A VARIAÇÃO ENTRE NÓS E A GENTE: UMA COMPARAÇÃO ENTRE O PORTUGUÊS EUROPEU E O PORTUGUÊS BRASILEIRO Juliana Barbosa de Segadas Vianna, Célia Regina dos Santos Lopes

95 A EXPRESSÃO DA SEGUNDA PESSOA DO SINGULAR EM CARTAS PESSOAIS NORTE-RIOGRANDENSES DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX Marco Antonio Martins, Kássia Kamilla de Moura

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ASPECTOS DE COMPORTAMENTO SOCIOLINGUÍSTICO ENTRE AS TRÊS CAPITAIS DA REGIÃO SUL: ESPECIFICIDADES E GENERALIZAÇÕES Edair Maria Görski, Izete Lehmkuhl Coelho

135 SUBJETIVIDADE E ORDEM DE PALAVRAS: A ORDEM VERBO-SUJEITO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO E NO GALEGO Jussara Abraçado

161 UMA MUDANÇA ENCAIXADA: CLÍTICOS EM CONSTRUÇÕES PREPOSICIONADAS Odete Pereira da Silva Menon

173 VARIAÇÃO ESTILÍSTICA NA ESCRITA ESCOLAR MONITORADA: O CASO DA COLOCAÇÃO PRONOMINAL Silvia Rodrigues Vieira, Adriana Lopes Rodrigues-Coelho

213 O PAPEL DO GÊNERO TEXTUAL NA VARIAÇÃO ESTILÍSTICA: EM BUSCA DE PADRÕES COMUNITÁRIOS Maria Alice Tavares

239 PARA ALÉM DOS PACOTES ESTATÍSTICOS VARBRUL/GOLDVARB E RBRUL: QUAL A CONCEPÇÃO DE GRAMÁTICA? Christina Abreu Gomes

259 VARIAÇÃO NOS PROCESSOS DE REFERENCIAÇÃO CORRELACIONADA A GÊNEROS DISCURSIVOS Vera Lúcia Paredes Silva

273 ‘OI? Maria Cecilia Mollica, Rodrigo Alípio, Thaís Lofeudo, Samara Moura

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POR ONDE CAMINHA O PROJETO ALIB Jacyra Andrade Mota, Suzana Alice Marcelino Cardoso

329 AS VARIANTES LEXICAIS PARA A MONTARIA FEMININA: UM ESTUDO SEMÂNTICO-LEXICAL EM CORPORA GEOLINGUÍSTICOS Celciane Alves Vasconcelos, Vanderci de Andrade Aguilera

347 ATITUDE: UM CONCEITO TEÓRICO, UM CONCEITO DE VIDA Dermeval da Hora

367 LÍNGUA, CULTURA E CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE TEUTOBRASILEIRA/BRASILEIRA-ALEMÃ NO SUL BRASIL Mônica Maria Guimarães Savedra, Ciro Damke

387 O APAGAMENTO DO TRAÇO LÍNGUA-CULTURA-IDENTIDADE GERMÂNICA NA CIDADE DE JUIZ DE FORA/MG Mariana Schuchter Soares, Ana Cláudia Peters Salgado

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APRESENTAÇÃO Neste número especial do volume 14 da Revista do GELNE apresentam-se dezenove artigos que refletem as atividades desenvolvidas por pesquisadores do Grupo de Trabalho em Sociolinguística da Associação Nacional de Pesquisa em Letras e Linguística – ANPOLL. Esta publicação constitui uma justa e merecida homenagem do GT à colega de trabalho e amiga Cláudia Roncarati, que incansavelmente contribuiu com a (socio) linguística brasileira. Os três primeiros artigos, Róticos em coda silábica na fala de nova Iguaçu-RJ com base em diferentes tipos de corpus, de Silvia Figueiredo Brandão e Clarice Braconi da Silva, Variação do rótico e estrutura prosódica, de Dinah Callou e Carolina Serra, e Caracterização prosódica dos falares brasileiros: a oração interrogativa total, de Joema Castelo Bernardo da Silva e Cláudia de Souza Cunha, se voltam à análise de aspectos fonéticos/fonológicos e prosódicos de variedades do português brasileiro. No primeiro artigo, analisa-se o –R em coda silábica na fala de Nova Iguaçu/RJ, tendo em vista duas amostras distintas e sob diferentes perspectivas metodológicas. As autoras chegam à conclusão de que a análise “(a) valida, reciprocamente, as tendências detectadas em cada uma delas; (b) confirma a complementaridade das duas linhas de pesquisa, (c) demonstra a importância da elaboração de estudos geolinguísticos que levem em consideração diferentes dimensões, de modo a melhor captar a dinâmica social das localidades e (d) ratifica a observação de Rossi (1984:106) de que ‘os lugares, as áreas, não existem nas ciências humanas como espaços físicos em si, mas como espaços sociais.’”. No segundo artigo, focaliza-se “o apagamento variável do –R em posição de coda final, a partir de dados de um corpus de entrevistas informais com falantes cultos de Salvador e do Rio de Janeiro, gravadas em dois períodos: na década de 1970 e na década de 1990.” Defendendo a hipótese de que a estrutura prosódica condiciona o apagamento do –R, as autoras concluem que “(i) em termos gerais, a fronteira de sintagma entonacional (IP) desfavorece a queda do segmento, (ii) há um processo gradual de apagamento e (iii) da década de 1970 para a de 1990, mesmo a fronteira de IP passa a não inibir o apagamento do segmento”. No terceiro artigo, as autoras analisam “a variação regional da

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entoação em enunciados interrogativos do tipo questão total nos falares de 25 capitais brasileiras”, e concluem que o índice de regionalidade das diferentes capitais “é manifestado, principalmente, através da relação de altura entre as sílabas que compõem o acento nuclear”. No artigo A expressão da modalidade deôntica e epistêmica na fala e na escrita e o padrão SV, Maria Eugênia Lammoglia Duarte, tendo em vista amostras de fala e de escrita, apresenta resultados que evidenciam uma relação entre as inovações na expressão da modalidade e a representação do sujeito pronominal no português brasileiro. A autora defende, portanto, que as inovações na expressão da modalidade estão relacionadas “a um quadro de mudanças mais amplo que afeta a representação do sujeito pronominal no português brasileiro”. No artigo A variação entre nós e a gente: uma comparação entre o português europeu e o português brasileiro, Juliana Barbosa de Segadas Vianna e Célia Regina dos Santos Lopes apresentam resultados de uma análise do processo de variação envolvendo os pronomes “nós” e “a gente”, tendo por base amostras de fala espontânea do português brasileiro (PB) e do português europeu (PE). As autoras apontam para diferenças entre o uso das formas variantes nas duas variedades do português: diferentemente do que se encontra no PB, a variação “nós”/“a gente” no PE “é fundamentalmente determinada por fatores sociais e não caracteriza um processo de mudança em curso”. No artigo A expressão da segunda pessoa do singular em cartas pessoais norte-riograndenses das primeiras décadas do século XX, Marco Antonio Martins e Kássia Kamilla de Moura analisam os usos das formas de “tu” e “você”, em diferentes contextos morfossintáticos, em 65 cartas pessoais, escritas por dois irmãos no início do século XX no Rio Grande do Norte. Os resultados encontrados deixam evidente um uso quase categórico de formas associadas ao inovador “você” em diferentes contextos, mesmo naqueles de resistência a formas associadas ao conservador “tu”, como em construções com sujeito nulo em formas verbais não imperativas. No artigo Aspectos de comportamento sociolinguístico entre as três capitais da Região Sul: especificidades e generalizações, Edair Maria Görski e Izete Lehmkuhl Coelho se analisam as especificidades e

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generalizações no comportamento linguístico das três capitais da Região Sul, tendo em vista três fenômenos variáveis: a monotongação de ditongos decrescentes, a alternância de pronomes de segunda pessoa do singular e a ordem do sujeito. De acordo com a análise proposta, “a Região Sul, representada aqui pelas três capitais, por um lado, compartilha um mesmo padrão sociolinguístico no que tange à variação da ordem do sujeito; por outro lado, apresenta especificidades no que se refere aos efeitos de contexto em relação à monotongação do ditongo decrescente e à alternância entre os pronomes de segunda pessoa tu e você.” No artigo Subjetividade e ordem de palavras: a ordem verbosujeito no português brasileiro e no galego, Jussara Abraçado apresenta os primeiros resultados da pesquisa que desenvolve sobre a ordem verbosujeito (VS) no português brasileiro e no galego, em que busca aferir o emprego da VS em porções do discurso buscando aferir são veiculados enunciados subjetivados. A autora analisa as ocorrências da ordem VS na fala de 12 informantes da Amostra Censo (Projeto Censo da Variação Linguística no Rio de Janeiro, PEUL/UFRJ) e de 13 informantes do corpus A Nosa Fala (Arquivo Sonoro de Galícia, USC) e constata estatisticamente, em relação ao português brasileiro, mas não em relação ao galego, que, além das funções já apontadas em pesquisas anteriores, a ordem verbo-sujeito desempenha também a função de veicular enunciados subjetivado. No artigo Uma mudança encaixada: clíticos em construções preposicionadas, Odete Pereira da Silva Menon põe em foco a colocação dos pronomes clíticos em sintagmas preposicionados, tendo em vista a análise de uma amostra constituída de vinte textos portugueses do século XVI ao XIX. A proposta da autora é a de que a ênclise atestada em textos mais recentes nesses contextos é derivada de uma ambiguidade gerada nas construções Preposição-Clítico-Verbo, o que resultaria, portanto, de uma mudança encaixada, nos termos de Weinreich, Labov & Herzog (1968). A sintaxe dos pronomes clíticos é também o fenômeno analisado no artigo Variação estilística na escrita escolar monitorada: o caso da colocação pronominal, de Sílvia Rodrigues Vieira e Adriana Lopes Rodrigues-Coelho. As autoras observam a colocação pronominal em estruturas verbais complexas em redações escolares e concluem que, além de variáveis linguísticas, o “tipo de instituição escolar” e “o modo de

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organização discursiva” constituem variáveis relevantes no condicionamento da posição do clítico nos complexos. Os resultados a que chegam as autoras vêm reforçar a tese de que “o uso e a ordem dos clíticos pronominais fazem parte do processo de aprendizagem desenvolvido nas escolas”. Em O papel do gênero textual na variação estilística: em busca de padrões comunitários, Maria Alice Tavares analisa os conectores sequenciadores “e”, “aí” e “então” numa amostra extraída de entrevistas sociolinguísticas do Banco de Dados VARSUL. Observando o gênero textual e a constância de padrões comunitários de variação, a autora conclui que: (i) há uma relação entre o uso da variante vernacular “aí” e as narrativas de experiência pessoal, enquanto as variantes de prestígio “e” e “então” são favorecidas pelo relato de opinião; e (ii) “esses padrões permanecem constantes na comunidade de fala, mesmo quando são consideradas as distribuições relativas ao sexo e à idade”. No artigo Para além dos pacotes estatísticos Varbrul/Goldvarb e Rbrul: qual a concepção de gramática?, Christina Abreu Gomes desenvolve discussão sobre a questão da modelagem teórica da variação e a metodologia estatística utilizada na quantificação dos dados variáveis, pautando-se na comparação entre os Programas Varbrul/Goldvarb e Rbrul. É também objeto de discussão em seu texto o papel do indivíduo e do item lexical em relação à variação e à mudança e suas consequências para um modelo teórico que defende um status representacional para a variação sociolinguística. Em Variação nos processos de referenciação correlacionada a gêneros discursivos, de Vera Lúcia Paredes Silva, é discutida a correlação entre processos de referenciação, expressos na retomada de elementos já introduzidos no texto, e os gêneros e tipos textuais em que se inserem. Com base em corpus constituído de gêneros da imprensa escrita carioca, publicados nos últimos 8 anos, a autora discute e postula a aplicação de um tratamento quantitativo a essa correlação, na perspectiva da sociolinguística variacionista, sendo apontadas vantagens de tal abordagem. Paredes Silva exemplifica a proposta com a análise de dois fenômenos: a variação nome/ pronome/zero na referência à terceira pessoa, e a variação no uso do artigo definido ou do pronome demonstrativo como determinante do SN/rótulo.

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Os resultados evidenciam as vantagens de um tratamento quantitativo, ao se considerar a inserção dos fenômenos sintático-discursivos no contexto maior dos gêneros e tipos textuais. O artigo ‘Oi?, de Maria Cecilia Mollica, Rodrigo Alípio, Thaís Lofeudo, Samara Moura, constitui-se em um estudo de caráter exploratório que, sob a perspectiva da Linguística Sociointeracional busca: (1) comprovar que há o uso do marcador conversacional “oi?” (SHIFFRIN, 1987; GUMPERZ, 1982; MARCUSCHI, 1985) como estratégia discursivo-interacional através da qual o interlocutor solicita a repetição de uma pergunta; (2) salientar que existe outro emprego não cooperativo do “oi?”, cujo objetivo é a quebra de face do interlocutor. Jacyra Andrade Mota e Suzana Alice Marcelino Cardoso, em Por onde caminha o projeto ALIB, descrevem o estágio atual do Projeto Atlas Linguístico do Brasil, com destaque para a constituição do corpus e a organização do Banco de Dados. As autoras discorrem também sobre o processo de constituição do corpus, a natureza dos dados a recolher e dificuldades a vencer; a importância de um arquivamento dos dados, de maneira a permitir ampla consulta. Apresentam, ainda, alguns resultados que apontam para a relevante contribuição advinda dos estudos geolinguísticos para o aprofundamento do conhecimento da língua portuguesa no Brasil. O artigo As variantes lexicais para a montaria feminina: um estudo semântico-lexical em corpora geolinguísticos, de Celciane Alves Vasconcelos e Vanderci de Andrade Aguilera, toma como base um estudo semântico-lexical e geossociolinguístico de variantes pertencentes ao campo da montaria e propõe uma análise das lexias documentadas nas cartas nº 144 do Atlas Prévio dos Falares Baianos (ROSSI, 1963), nº 148 do Atlas Linguístico de Sergipe (FERREIRA et alii, 1987), nº 15 do Esboço de um Atlas Linguístico de Londrina (AGUILERA, 1987) e a de nº 62 do Atlas Linguístico do Paraná (AGUILERA, 1994). A partir da etimologia e da data de lexicalização das lexias, busca relacionar cada uma delas ao momento e ao contexto histórico respectivos. Por meio da análise de determinadas variantes relativas à vida do campo, ameaçadas de extinção, o estudo pretende contribuir para o conhecimento da história da Língua Portuguesa falada no Brasil.

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Em Atitude: um conceito teórico, um conceito de vida, Dermeval da Hora apresenta, em linhas gerais, uma visão histórica da atitude linguística; discorre sobre a ideologia que envolve a língua padrão e sobre os fundamentos que norteiam os estudos relacionados à atitude linguística; apresenta as principais abordagens sobre atitude e discute o papel da consciência do falante e sua relação com os processos variáveis, associados à atitude. A partir do relato e das considerações feitas, o autor conclui ser importante que os estudos realizados no Brasil, desenvolvidos sob perspectiva laboviana, se interessem pela possibilidade de aliar aos resultados obtidos uma análise da atitude do falante, em relação à fala do outro e a sua própria fala, uma vez que tal procedimento permitiria a avaliação das diferentes variantes que se estendem pelo país como um todo, possibilitando análises mais acuradas, principalmente, no que concerne aos fatores sociais. No artigo Língua, cultura e construção da identidade teutobrasileira/brasileira-alemã no sul Brasil, Mônica Maria Guimarães Savedra e Ciro Damke abordam alguns aspectos referentes ao conflito de identidade dos imigrantes alemães do Sul do Brasil, desde a vinda dos primeiros imigrantes em 1824, passando pelo período das primeiras colonizações até os dias atuais. Tomando como base estudos que tratam da relação entre história, memória e identidade discutem o desenvolvimento de uma identidade bicultural e o processo de aculturação e deculturação dos emigrantes/imigrantes alemães que deixam sua pátria (Heimat/Vaterland), e migram para o Brasil – uma terra com características linguísticas, socioculturais, políticas e geográficas diferentes de sua terra de origem. Em O apagamento do traço língua-cultura-identidade germânica na cidade de Juiz de Fora/MG, Mariana Schuchter Soares e Ana Cláudia Peters Salgado tratam de questões pertinentes ao apagamento de traços da(s) língua(s) germânica(s) em Juiz de Fora/MG. Considerando que a quantidade de imigrantes germânicos que chegou à cidade teria sido tão grande quanto aquela destinada a outras partes do país, onde a língua se manteve e/ou onde ainda há visíveis marcas no dialeto/cultura da região, e, partindo do pressuposto de que toda língua atua como índice de identidade de seus falantes, as autoras entendem que muitos dos elementos identitários dos povos germânicos acabaram se perdendo ao longo dos

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anos, uma vez que a(s) língua(s) não sobreviveu (sobreviveram) ao processo de urbanização da cidade, bem como ao contato linguístico intenso com os falantes do português e de outras línguas de imigração. As autoras se baseiam nas teorias de Castells acerca da noção de identidade, concebida como a fonte de significado de um povo e, a partir de então, pressupõem que um dos fatores que provavelmente contribuiu para o apagamento dos traços língua-cultura-identidade foi justamente a não identificação coletiva, i.e., a negação da identidade do outro, evitando o reconhecimento de si mesmo como um igual, como possuidor de uma mesma identidade. Marco Antonio Martins Jussara Abraçado Maio de 2012

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Achei a foto, Cláudia!

E nos meus ouvidos ainda ecoam as gargalhadas durante a pausa de trabalho para escrever aquele último texto que nos deu uma dor de cabeça danada. Rindo, Cláudia ridicularizava as nossas pernocas, naqueles tubinhos curtíssimos que nos engordavam, quase todos com cintura alta (tipo princesa), tendência da moda na virada dos 60 para os anos 70. Mas e a foto? Aonde tinha guardado? Da formatura na PUC até a partida para o Ceará, Cláudia seguiu caminhos por onde não andei. Só lá na frente, em meados de 80, o telefone tocou num domingo à noitinha, de Fortaleza. Ouvir sua voz pedindo ajuda e acolhê-la foi o passo para a retomada de um “tempo perdido”. A vida cruzava de novo nossas experiências. Gerativista de formação, Cláudia precisava aprender a rodar o VARBRUL (à época, a versão do atual GoldVarb), com o objetivo de analisar a fala dos cearenses e de controlar o efeito de algumas variáveis em relação à construção sei não (marcador dialetal) em variação com as demais estruturas de negação no PB. Assim, aos poucos, foi acontecendo sua inserção na

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Sociolinguística. Nunca escondeu, porém, seu interesse pelo componente biológico da linguagem, pilar de sustentação teórica de sua tese. Sem que nos apercebêssemos, Cláudia passou a compor a equipe de pesquisadores do PEUL, contribuindo de forma decisiva para o Grupo. De aprendiz, entre uma estada e outra no Rio, logo logo liderou a composição do Banco de Dados Interacionais (BDI) e ajudou a finalizar a Amostra de Jornais. Ainda organizou duas coletâneas, Variação e Discurso e Variação e Aquisição, uma delas com a decisiva e última contribuição da Alzira. De volta ao Rio, ingressar no quadro docente da UFF institucionalizou definitivamente Cláudia na vida acadêmica no Brasil. Lá, a eficiente professora de Língua Portuguesa foi conquistando sucesso entre alunos e colegas, equipada com base teórica sólida, adquirida nos bancos da PUC e complementada pelo doutoramento na UFRJ, sob orientação de Miriam Lemle. Para Niterói, levou a ASSEL-RIO. À frente da Associação, iniciou impressionante trabalho de interiorização, que veio a consolidar-se na gestão em São Gonçalo. Arrebanhando e atraindo um contingente enorme de jovens professores, favoreceu chance única de contato com a Academia a muitos pesquisadores iniciantes. Não satisfeita, integrou a equipe dirigente da ANPOLL durante a gestão de Laura Padilha, por quem tinha admiração. Ainda na UFF, desempenhou de forma determinante para a excelência do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos. A pesquisadora também não deixou por menos. Seus trabalhos, cercados de cautela, eram precedidos de muita reflexão e estudo. Solicitava a leitura de seus textos pelos colegas ilustres antes de expô-los. Naro estava sempre na lista para quem, em parceria com Sebastião, organizou o famoso livro Anthony Julius Naro e a Linguística no Brasil: uma homenagem acadêmica. Fez incursões por todo o país em congressos, bancas, eventos, concursos. A fama de arguidora “que-não-passa-nada” de dissertações e teses correu mundo afora. Criou método próprio de ler trabalhos que ia das referências para a amostra, da análise para a metodologia... Tentei aprender. As aulas não foram suficientes para eu me apropriar completamente da técnica de ler no mínimo 3 ou 4 vezes uma tese e destrinchá-la minuciosamente num espaço mínimo de tempo. Os candidatos queriam-na na banca com um misto de receio-respeito-ansiedade, com a certeza de que

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a pesquisa seria dissecada nos mínimos detalhes e de que as contribuições viriam enriquecer, aprofundar, apontar defeitos e, por que não, receber alguns elogios. Nos idos de 90, partiu para um estágio pos-doutoral nos Estados Unidos. Voltou mais funcionalista. Desde então, muitas inquietações como pesquisadora motivaram-na a investigações novas, com abordagens arrojadas, que culminaram com seu livro de sonho As cadeias do texto: construindo sentidos. A doença apareceu na segunda metade do ano de 2002, durante os preparativos para o mega-evento da ABRALIN no Rio. Após o efeito devastador da cirurgia e do tratamento, a então super Secretária da Associação fez questão de se instalar no Glória para recepcionar os ilustres linguistas daqui e do exterior, durante o Congresso, em fev/mar de 2003. Do café-da-manhã ao jantar, não perdeu um minuto sequer dos encontros acadêmicos e sociais. Anos mais tarde, conquistou assento como Conselheira representando a ABRALIN na região Sudeste. Em segredo, me confidenciou que finalmente realizava um dos muitos sonhos. Atuou como assessora atenta e eficiente às equipes dirigentes sob o comando de Thaís, Dermeval e Maria José. Viveu os anos de luta para reconquistar a saúde curtindo a tão desejada casa nova. A eufórica liberdade de ter o próprio espaço tornou-a ainda mais minuciosa. Tudo novo, nos mínimos detalhes! E como se orgulhou do apartamento de boneca, bem pertinho da mamãe, exatamente em frente, para matar a saudade quando lhe apertasse o coração. Dentre quase 60 imóveis que visitou, era aquele o ideal. Até o número de telefone, de tão parecido com o da mãe, me obrigava a telefonar para D. Iris para relembrar o seu. Este não é seu Memorial de Títulos para o concurso, tão almejado, de Titular da UFF. Basta passear pelo LATTES ainda online (espero) para recompor sua história acadêmica, edificada por vocação, mérito, competência, disciplina e determinação. Aqui mais interessa ressaltar as festas de fim de curso, a cada semestre, com que todas as turmas lhe presenteavam. Não participei de nenhuma delas. A imaginação viajou-me nas recontadas estórias dos bolos, dos doces, dos presentes, através de narrativas vibrantes. A Mestra não admitia terminar um curso sem Le grand final. Fazia parte do ofício de professora

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ministrar excelentes aulas, com disciplina impecável, avaliação minuciosa e a realização de uma homenagem à Tia. Por que somente para as “tias” dos colégios? Aos orientandos, tudo. De ordem, inteira dedicação! Firme e amiga, era a parceira desejada para chegar à conquista da titulação. Todos eles, mestres e doutores, exibem brilho próprio. Não houve quem não tivesse a convicção de que, passada pelo seu crivo, a pesquisa valeria a pena. Assumir cargo de liderança era com a Roncarati mesmo. Numa dobradinha imbatível com Jussara, coordenou o GT de Sociolinguística. As duas criaram a Série PB, que já vai para o terceiro volume, legado deixado na nossa agenda que, rígida e brilhantemente, vem sendo cumprida por Jânia, Dermeval, Mônica Savedra e, agora, Marco Antônio. Também não foi diferente na AILP. Aliada a amigos fiéis – Ricardo, Edila, Jussara, Maria Lúcia – empreendeu gestão marcada por evento internacional de sucesso, no final de 2010. Escondendo uma infecção que lhe custou “caro” depois, lá estava a Presidente, participando e acompanhando toda a programação intensa que, mesmo sob advertência médica, insistiu que fosse implementada. Restava finalizar o pos-doc com o Ataliba, a prestação de contas às Agências que haviam repassado aportes importantes para o evento no campus Gragoatá, o relatório final de pesquisa para o CNPq, a proposta de um novo projeto, o curso do primeiro semestre de 2011, a palestra no IBICT, a entrevista sobre a história do GT, o texto da Quarta Capa do livro da Lucia Cyranka, o artigo para a Stella. Zerou a pauta, a Cláudia, e se foi. E agora, quem irá às compras com a Malu? Quem levará empadinhas para as festas do Naro? Quem fará a revisão dos textos? Quem dará os parabéns nos aniversários? Quem escreverá os posfácios dos livros em homenagem aos colegas? Urgente! Alguém tem que dar a dica da loja que vende o fantástico porta-documentos, levinho, para embarcar nos aviões com aquele incrível sorriso de aventura... Cecilia Mollica

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RÓTICOS EM CODA SILÁBICA NA FALA DE NOVA IGUAÇU-RJ COM BASE EM DIFERENTES TIPOS DE CORPUS RHOTICS IN SYLABLE CODA IN THE SPEECH OF NOVA IGUAÇU-RJ BASED ON DIFFERENT TYPES OF CORPUS Silvia Figueiredo Brandão Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pesquisadora/CNPq Clarice Braconi da Silva Aluna de Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Bolsista de Iniciação Científica do Programa PIBIC/CNPq RESUMO Neste trabalho, analisa-se, em duas etapas, o -R em coda silábica na fala de Nova Iguaçu, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Na primeira etapa, fundamentada na Teoria da Variação e Mudança, analisamse suas variantes minoritárias – a fricativa velar (em contexto interno) e as fricativas velar e glotal consideradas em conjunto (no contexto externo) com o objetivo de verificar os fatores linguísticos e sociais que concorrem para sua manutenção, com base em dados obtidos em entrevistas de perfil sociolinguístico. Na segunda etapa, observa-se a frequência dessas variantes em amostra selecionada de cartas fonéticas de um atlas linguístico que tem Nova Iguaçu como um de seus pontos de inquérito. Palavras-chave: coda silábica; falar fluminense; róticos; variantes minoritárias. ABSTRACT In this paper, we analyse, in two steps, the R in syllable coda in the speech of Nova Iguaçu, a city in the Metropolitan Region of Rio de Janeiro. In the first step, based on the Theory of Variation and Change, we focuse their minority variants fricative velar (in the internal context), and velar and glottal fricatives taken as a whole (in the external context) in order to verify the linguistic and social constraints that contribute to its maintenance, based on data gathered through sociolinguistic interviews. In the second step, we observe the frequency of these variants in a sample selected from some phonetic maps of a linguistic atlas which has Nova Iguaçu as one of its points of inquiry. Keywords: minority variants; rhotics; syllable coda; Rio de Janeiro variety.

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INTRODUÇÃO Convencionou-se denominar de róticos ou sons de -R os segmentos que costumam ser representados sobretudo pela letra “r” nos sistemas ortográficos tradicionais. Esse conjunto, que tem na vibrante realizada com a ponta ou a lâmina da língua ([r]) o seu elemento prototípico, reúne, ainda, a vibrante uvular ([R]), tepes ou flepes, as aproximantes alveolar e retroflexa e as fricativas velar, uvular e glotal, não sendo nem o modo nem o ponto de articulação aspectos definidores de sua interrelação (LADEFOGEd & MADDIESON, 1996: 215). No português do Brasil (doravante PB), vários estudos focalizam os róticos, quer numa perspectiva essencialmente fonológica, quer no sentido de descrever sua distribuição sócio e geodialetal. De acordo com Câmara Jr, numa primeira interpretação (1953), no sistema consonantal do Português, haveria apenas um fonema vibrante (o –r forte, foneticamente uma vibrante alveolar), que se distribuiria pelos contextos pré e pós-vocálico, como em rato, Israel, carta, flor. Em contexto intervocálico, a concretização forte do –r resultaria de uma geminação, enquanto o –r brando seria uma variante posicional enfraquecida com a anulação fonética do primeiro elemento da geminação. Numa segunda interpretação (1977), com base no princípio da oposição fonológica existente em contexto intervocálico (caro x carro), descarta a possibilidade de geminação e passa a postular a existência de duas vibrantes, que só se oporiam nesse contexto, neutralizando-se nos demais. Lopez (1979), com base na teoria gerativa, postula a existência de apenas um fonema rótico, o -r brando, posição também partilhada por Monaretto (1992) que, na perspectiva da Fonologia Auto-segmental e com base na análise de dados da fala do Rio Grande do Sul, admite a existência de um só fonema na estrutura subjacente: o tepe, “que contrasta na posição intervocálica com uma vibrante forte, a geminada”. Recentemente, Abaurre & Sândalo (2003), com apoio na Teoria do Articulador, sustentam também a existência de apenas um fonema rótico, o –r forte (a vibrante), alinhando-se, assim, à primeira interpretação apresentada por Câmara Jr.

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No que toca à variação e mudança, destacam-se aqui os estudos de Callou (1987) e de Brandão (2008) por analisarem os róticos no âmbito do Estado do Rio de Janeiro. Callou (1987), numa primeira abordagem da questão, concluiu que, na fala culta carioca, teria ocorrido posteriorização na articulação de –R, observando que, em contexto interno, havia maior frequência da variante fricativa velar, enquanto, no externo, principalmente em infinitivos, predominaria a concretização aspirada ou o cancelamento. A autora constatou, ainda, em relação ao último contexto, maior propensão à realização de tepe diante de vogal, como em “calor imenso”, em que o –R passa de pós a pré-vocálico. Brandão (2008), em estudo sobre a fala de treze comunidades do Norte e Noroeste do Estado, também demonstrou ser significativo o índice de cancelamento em posição externa, sobretudo na fala dos indivíduos mais velhos. No que tange à posição interna, afirmou que, eliminados os 10% de cancelamento, as variantes [+ ant] – o tepe, a vibrante alveolar e a aproximante retroflexa – correspondiam a 43% dos dados, enquanto as variantes [- ant] – as fricativas velar e glotal – a 57%, o que fazia destas últimas a norma regional. As variantes de R em coda foram, ainda, registradas em outras regiões do Estado nas cartas do MicroAtlas Fonético do Estado do Rio de Janeiro-Micro AFERJ (ALMEIDA, 2008), que contemplou 12 localidades,1 e nas do Atlas Fonético do Entorno da Baía de Guanabara-AFEBG (LIMA, 2006), que englobou quatro municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro2. 1. Objetivos, breve perfil da comunidade, metodologia Neste trabalho, realizado em duas etapas, focaliza-se o -R em coda silábica interna e externa, na fala de Nova Iguaçu, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Na primeira etapa, fundamentada na Teoria da Variação e Mudança (WEINREICH, LABOV &, HERZOG, 2006 [1968]), analisam-se suas variantes minoritárias em contexto interno (a fricativa velar) e externo (as fricativas velar e glotal consideradas em conjunto) 1

2

As localidades são Porciúncula, Barra do Itabapoana, Quissamã, Cabo Frio, Santa Maria Madalena, Cantagalo, Três Rios, Valença, Resende, Cachoeiras de Macacu, Itaguaí, Parati. Trata-se dos municípios de Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Magé e Itaboraí.

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com o objetivo de averiguar, com base em dados obtidos em entrevistas do tipo DID3, os fatores estruturais e extralinguísticos que concorrem para sua manutenção. Na segunda etapa, verifica-se a produtividade dessas variantes em amostra selecionada de cartas do Atlas Fonético do Entorno da Baía de Guanabara-AFBG (LIMA, 2006), que tem Nova Iguaçu como um de seus pontos de inquérito. O interesse em tratar de tais variantes decorreu do fato de as primeiras observações sobre o comportamento do R em coda, na fala desse município, fornecerem evidências de que os índices referentes ao cancelamento em posição externa seriam mais expressivos do que os indicados por Callou e Brandão – tanto na variedade culta quanto na popular – e que o tepe estaria deixando de ser implementado diante de vogal, concorrendo, assim, para a ampliação dos contextos de cancelamento. Em posição interna, parecia predominar a variante fricativa glotal, o que poderia estar vinculado ao incremento do processo de posteriorização ou ao contato interdialetal observado nessa comunidade, que conta com expressivo contingente de nordestinos. Partiu-se, portanto, da hipótese de que, na fala dessa comunidade, a variante glotal e o cancelamento atingiam índices quase categóricos, respectivamente, em posição medial e final de vocábulo, o que sugeria ser interessante verificar o que ainda motivaria a presença das variantes menos produtivas, aqui denominadas de minoritárias. Dentre os 19 municípios que constituem a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Nova Iguaçu (c.f. Mapa), com 865.089 habitantes (IBGE), é, depois da capital, o que apresenta o maior contingente populacional, em grande parte oriundo de outras áreas do país, sobretudo da Região Nordeste e de Minas Gerais. Com alto grau de urbanização, mas grandes contrastes socioeconômicos, mesmo distante 43 km do Rio de Janeiro, muitos de seus habitantes para lá se deslocam diariamente para estudar ou trabalhar, sendo, portanto, intenso o contato entre os habitantes das duas cidades e, ainda, por conta do intenso processo de imigração, o contato interdialetal.

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Diálogo entre Informante e Documentador.

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MAPA: município de Nova Iguaçu, em destaque

Para a análise variacionista, organizaram-se amostras com dados advindos de entrevistas pertencentes ao Acervo de Variedades Linguísticas Fluminenses-AVAL-RJ, realizadas, entre 2009 e 2010, com 18 indivíduos naturais de Nova Iguaçu e distribuídos por sexo, três faixas etárias (18-35 anos; 36-55 anos; 56-75 anos) e três níveis de escolaridade (fundamental: 5 a 8 anos; médio: 9 a 11 anos; superior), tendo sido controladas, com apoio no programa Goldvarb-X, essas três variáveis extralinguísticas e nove variáveis estruturais: (i) posição no vocábulo; (ii) tipo de impedimento à passagem do ar na articulação do segmento subsequente; (iii) modo de articulação (iv) ponto de articulação e (v) sonoridade da consoante subsequente; (vi) contexto antecedente; (vii) intensidade da sílaba em que incide o segmento; (viii) dimensão e (ix) e classe do vocábulo. Tomou-se como valor de aplicação, para o contexto interno, a fricativa velar e, para o externo, as fricativas glotal e velar, que constituíram um único fator. Para a análise realizada com os dados do AFEBG, que se pauta apenas por índices percentuais, selecionaram-se 49 cartas: as trinta em que R está em coda interna e as dezenove, em coda externa. Os informantes do Atlas, seis por localidade e distribuídos por gênero e pelas referidas faixas etárias, têm, no máximo, quatro anos de escolaridade, o que corresponde ao primeiro segmento do ensino fundamental.

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2. Análise variacionista Computaram-se 2.410 ocorrências de R em coda externa e 1.685 em coda interna, tendo-se registrado as variantes que constam da Tabela 1, em que fica claro o predomínio, respectivamente, do cancelamento (90%) e da fricativa glotal (72,9%). TABELA 1: variantes de R em coda silábica externa e interna Variantes de R em coda silábica Contexto externo Tepe

Fric. velar Fric. glotal

Contexto interno Cancelamento

Fric. velar

Fric. glotal

Cancelamento

Oco

%

Oco

%

Oco

%

Oco

%

Oco

%

Oco

%

Oco

%

59

2.4

12

0,5

171

7,1

2168

90%

213

12,6

1228

72,9

243

14,4

Total de dados: 2.410

Total de dados: 1.681

Como se tinha por objetivo verificar os fatores que motivavam a incidência das variantes fricativas, descartou-se, em contexto externo, o tepe – que só ocorreu diante de vogal, em 59 dados –, o que perfez um total de 2.351 ocorrências – e, em contexto interno, o cancelamento, o que redundou em 1442. Quanto ao cancelamento, dos 243 dados, 199 (45% deles) incidiram no vocábulo porque. Para viabilizar a análise, uma vez que os dados com concretização de R mostravam-se dispersos pelas células, amalgamaram-se fatores, criandose, na maioria dos casos, grupos binários. 2.1 Contexto externo Em contexto externo, em confronto com o cancelamento, as fricativas ocorrem em apenas 7.7% dos dados, como se visualiza no gráfico 1.

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GRÁFICO 1: percentuais de ocorrência das variantes de R em coda externa

7,7

92,3

Fric. glotal/velar

Cancelamento

Diante do baixíssimo input (.04) de concretização do R, pode-se afirmar que, na fala espontânea de Nova Iguaçu, o cancelamento está implementado, constituindo, portanto, a norma em contexto externo. Os fatores que ainda propiciam a ocorrência das variantes fricativas são sobretudo os relacionados a variáveis de natureza estrutural: a classe e a dimensão do vocábulo e os segmentos adjacentes. Entre as variáveis extralinguísticas, apenas gênero se mostrou relevante. Conforme relatado em outros estudos (CALLOU, 1987, por exemplo), os nomes (c.f. tabela 2) tendem à concretização do R (fricativas: P.R. .86), enquanto os verbos, em que parece se ter iniciado a mudança em direção ao cancelamento, aparecem com p.r. .38. Em relação ao R em coda, Oliveira (1997: 40) já observara que o apagamento, no âmbito do infinitivo dos verbos, é um fenômeno bem antigo, ao passo que, entre os nomes, teria cerca de século e meio, o que, certamente, justifica ser, ainda, a classe que mais preserva o segmento. No que toca à variável dimensão (cf. Tabela 3), os vocábulos constituídos por uma única sílaba são mais suscetíveis a resguardar o segmento (p. r. . 73) do que os de duas ou mais sílabas (.43).

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TABELA 2 Variável classe do vocábulo OCO

Percentual

P.R.

Nomes

123/466

26,2%

.86

Verbos

60/1845

3,3%

.38

Fatores

Input: .04

Significância: .000

TABELA 3 Fatores Uma sílaba Mais de uma sílaba Input: .04

Variável dimensão do vocábulo OCO Percentual 46/479 137/1872

9.6% 7,3% Significância: .000

P. R. .73 .43

Os resultados referentes ao contexto antecedente (cf. tabela 4) mostram que vogais [+arr] (p.r. .70) são mais propícias às fricativas do que as [-arr]. Isto está em consonância com o que já se observara na tabela 2, uma vez que, em verbos, o R em contexto final é normalmente antecedido por [i], [e], [a] – as vogais temáticas, todas [-arr] –, sendo poucos os casos em que ocorre a [+arr], restritos a pôr e seus derivados. Os nomes, ao contrário, são os ambientes favoráveis às [+ arr]. A última das variáveis estruturais selecionadas é uma das que se detém no contexto subsequente (cf. tabela 5). O controle desse grupo de fatores tinha por objetivo testar a hipótese de que, diante de vogal, o tepe estaria sendo pouco implementado dando lugar ao cancelamento; e, por outro objetivo era verificar se a fricativa glotal detectada nesse contexto – quando da fase preliminar de audição das entrevistas – consistiria num caso isolado ou teria relativa produtividade (relativa, porque a concretização do R externo, somando-se todas as variantes expostas na tabela 1, é de apenas 10%). As hipóteses confirmaram-se: o cancelamento tem altos índices de frequência diante de vogal, contexto em que os 59 dados de tepe foram categóricos; a ocorrência de fricativa glotal não foi aleatória, tendo sido observada em 22 dados, o que, certamente, levou à seleção dessa variável. Assim, embora a presença de consoante e pausa (p.r. .56) no contexto subsequente motive a fricativa, há uma pequena possibilidade de ela ser implementada (p. r. 36) quando ao R se segue uma vogal.

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TABELA 4 Variável contexto antecedente Fatores

OCO

Perc.

P.R.

Vogal [+arr]

73/223

32,7%

.70

Vogal [-arr]

110/2128

5,2%

.47

Input: .04

Significância:.000

TABELA 5 Variável tipo de impedimento à passagem do arna articulação do segmento subsequente Fatores Cons./pausa

OCO

Perc.

P.R.

161/1628

9.9%

.56

22/723

3%

.36

Vogal Input: .04

Significância:.000

Na tabela a seguir, apresentam-se as 22 ocorrências da fricativa glotal diante de vogal, com a indicação dos oito informantes que a produziram4 e que se distribuem pelas três faixas etárias (A, B, C), os três níveis de escolaridade (1, 2 e 3) e os dois gêneros, embora o informante A2m se destaque dos demais (10/22 ocos). TABELA 6 Variante fricativa glotal de R em coda externa diante de vogal, por informante Vocábulo/Contexto tipo de linguajar acho que

A2h

Vocábulo/Contexto

Inform

dar as coisas

A1m

formar em fisioterapia né

dependendo do diretor é

A3m

você pegar a minha sorte

procuro ter essa regra

B1m

você parar e retornar

não tem dor maior igual

que quer estudar mais

4

Inform

A2m

ia ser a mesma coisa

vai me violentar e eu vou ficar

entre a serra do mar e

quando eu começar a trabalhar

do mar onde tá o Tinguá

condições a pagar um plano

o nível do mar entendeu

eu queria ir ao banheiro

professor é saber

pois é doutor eu dei bom dia

menos o meu setor e o

eu dei bom dia pro senhor o

coloca no computador aí

B2m C3h

C3m

Apresenta-se o código do informante, em que A, B e C dizem respeito à faixa etária, respectivamente, 18-35 anos; 36-55; 56-75; 1, 2 e 3, referem-se ao nível de instrução, respectivamente, fundamental (segundo segmento), médio e superior. Em seguida, indica-se o gênero: m= mulher; h= homem.

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Callou (1987: 120), ao tratar o R em contexto externo na fala culta carioca, além do tepe e do cancelamento, assinala “ocorrências esporádicas” de outras variantes diante de vogal: as vibrantes alveolar e uvular e as fricativas velar e glotal, o que, segundo ela, ‘se poderia considerar resultante de situação tensa, mesmo na linguagem coloquial”, acrescentando que, “em situação relaxada, diante de vogal inclusive, é mais frequente a variante R-6”, isto é, o cancelamento. Tendo em vista que se reuniram, na análise, as ocorrências da glotal e as doze da velar, estas restritas aos ambientes que precedem consoante (03 ocos) e pausa (09 ocos), apresentam-se, na tabela 7, os registros de velar, a maioria produzida pelos indivíduos mais velhos (faixa C), que, juntamente com os da faixa intermediária, são os que mais preservam a concretização do segmento. TABELA 7 Variante fricativa velar de R em coda externa por informante Vocábulo/Contexto tá tudo ali no mesmo patamar

Inform A1h

Fica por trás do ator Queirós… Aguiar

Vocábulo/Contexto qualidade de atendimento melhor

C2m

eu tiver uma situação melhor B2m

não, uma trabalha na Rede D’Or

doméstica… do lar

de formar técnicos

não era do lar mesmo

eu queria apenas ter fichas

fica entre a serra do mar.

Inform

C3m

C3h

de Guanabara ou no mar.

Quanto à variável gênero, a última do nível de seleção, são as mulheres (p. r. .60) as mais propensas à preservação. No citado estudo de Callou, elas lideravam o processo de mudança, no que se refere tanto à adoção da variante mais posteriorizada, a glotal, quanto do cancelamento. TABELA 8 Variável gênero Fatores Mulher Homem Input: .04

OCO 132/1380 51/971

Perc. 9.6% 5.3% Significância: .000

P.R. .60 .35

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Já que se mencionou a fala culta carioca e Nova Iguaçu se situa na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, embora a variável nível de instrução não tenha sido selecionada, cabe dizer que os índices de preservação das fricativas entre os indivíduos com nível superior (8%) em nada diferem dos de nível fundamental (8%) e médio (7,3%), o que sugere não ser o cancelamento, com 92% em todos os níveis de instrução aqui computados, uma variante socialmente estigmatizada. 2.2 Contexto interno Em contexto interno, desconsiderado o cancelamento, num total de 1441 dados, confrontaram-se as duas fricativas, cujos percentuais de ocorrência se visualizam a seguir. GRÁFICO 2: percentuais de ocorrência das variantes fricativas de R em coda interna

14,8

85,2

Fricativa velar

Fricativa glotal

Como deixa claro o gráfico 2, é alta a produtividade da glotal (1.228 ocos – 85,2%) em contexto interno, motivo pelo qual se busca depreender os fatores que concorrem para a ocorrência da velar (213 ocos – 14,8%), tomada como valor de aplicação na análise. As variáveis de natureza extralinguística faixa etária, gênero e nível de escolaridade – mostraram-se as mais relevantes, secundadas por classe do vocábulo e modo de articulação da consoante subsequente.

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Curiosamente, são os indivíduos mais jovens os que mais retêm a velar (p.r. .65) em contraposição aos das faixas B e C, cujo comportamento muito semelhante, levou a juntá-los numa faixa única (p.r. .41). As mulheres, que, em contexto externo, preservavam a concretização de R, no interno, mostram-se aqui também mais conservadoras, sendo mais propícias (p.r. .63) do que os homens (p.r. .36) ao uso da variante velar. No estudo de Callou (1987) esta era a variante que predominava largamente no contexto interno, havendo, no entanto, tendências opostas quanto ao uso da glotal, adotada preferencialmente pelos mais jovens e pelas mulheres.

TABELA 9 Variável faixa etária Fatores

OCO

Perc.

P.R.

A-18-35 anos

115/524

21,9%

.65

B/C- 36-75 anos

98/917

10%

.41

Input: .11

Significância:.002

TABELA 10 Variável gênero Fatores

OCO

Perc.

P.R.

Homem

72/709

10,2%

.36

Mulher

141/732

19,3%

.63

Input: .11

Significância:.002

No que se refere à escolaridade, esperava-se que fossem os indivíduos de nível superior os que mais usassem a fricativa velar, o que não se confirmou. Observa-se, mesmo, uma escala de uso: quanto menos escolarizado (fundamental: .pr. 69), mais propenso à velar.

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TABELA 11 Fatores Fundamental (2º seg) Médio Superior Input: .11

Variável nível de escolaridade OCO Perc. 78/330 23,6% 74/462 16% 61/649 9.4% Significância: .002

P.R. .69 .52 .38

Para a análise (cf. tabela 12), amalgamaram-se substantivos e adjetivos na classe dos nomes, que foi contraposta às demais, entre as quais se incluem as formas verbais. É no domínio dos nomes, o conjunto mais numeroso, que a velar é mais preservada (p. r. .55). Das variáveis de natureza fonológica, o modo de articulação foi o único selecionado, sendo as africadas, em contexto subsequente, as que mais preservam a velar (p. r. .64), como nos vocábulos esporte, parte, perde, tarde. As oclusivas, o conjunto mais representado no corpus, é neutra em relação às variantes (.50). TABELA 12 Variável classe do vocábulo Fatores

OCO

Perc.

P.R.

Nomes

165/987

16.7%

.55

Outras classes

48/454

10.6%

.37

Input: .11

Significância:.002

TABELA 13 Variável modo de articul.da cons. subsequente Fatores

OCO

Perc.

P.R.

Oclusiva

100/705

14.2%

.50

Nasal

36/252

12.5%

.44

Africada

55/179

23.5%

.64

Fricativa

22/213

10.3%

.40

Input: .11

Significância:.002

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3. Os dados do AFeBG As análises referentes ao R em coda externa e interna levadas a efeito na seção 2, como já se afirmou, foram realizadas com base em entrevistas de perfil sociolinguístico – portanto, representativas da fala espontânea – há bem pouco tempo (2009-2010), com indivíduos distribuídos por três níveis de escolaridade, entre eles não se tendo contemplado o primeiro segmento do ensino fundamental. Com os informantes do AFeBG, que se inserem nesse último grupo quanto ao grau de instrução, foram realizadas, no biênio 2005-2006, entrevistas de recorte geolinguístico, isto é, que consistiram na aplicação de um questionário, cujas respostas deram origem a 308 cartas. Como se trata de um atlas fonético, cada pergunta deveria gerar como resposta um mesmo item lexical, uma forma isolada, de modo a garantir a comparabilidade dos dados. Tal prática implica, da parte do pesquisador, uma seleção vocabular que propicie o registro de determinados fenômenos o que, a depender do recorte utilizado, pode redundar na maior ou menor frequência das variantes – e da parte do informante, a possibilidade de monitorar sua fala, o que pode levá-lo a usar/evitar formas que valore como positivas/ negativas. Os dados relativos ao R no AFBG serviram para, de um lado, aquilatar a produtividade das variantes de R nos dois contextos entre indivíduos com escolaridade mínima e sua distribuição pelos diferentes gêneros e faixas etárias e, de outro, para observar se um maior monitoramento da fala alteraria os padrões encontrados na fala espontânea, isto é, haveria o incremento de fricativas no contexto externo e o de velares no contexto interno. Em cada localidade retratada no atlas, neste caso em Nova Iguaçu, a princípio, esperam-se seis respostas por questão/carta, referentes aos seis informantes entrevistados, o que nem sempre ocorre.

3.1 R em coda externa com base em 19 cartas fonéticas As dezenove cartas fonéticas do AFeBG em que R se encontra em coda externa estão listadas na tabela 14, apresentando-se o número de ocorrências obtidos para as diferentes variantes em cada uma delas. Comparando-se os índices expostos na tabela 14 (52%) aos percentuais obtidos na análise variacionista (c.f. gráfico 1: 7,7%), percebe-se que, na fala dirigida ou monitorada, o índice de fricativas aumenta consideravelmente. Mesmo os verbos em negrito, na tabela a seguir, que na fala espontânea apresentaram apenas 3,3% de fricativas, nas cartas aparecem com 30% de frequência (15/50 ocos).

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TABELA 14: percentuais de ocorrência de variantes de R em coda externa, em 19 cartas fonéticas do AFeBG Ocos por variante velar glotal canc



CARTA

3/6

3/6

172

motor

4/6

2/6

209

plantar

1/6

5/6

1/6

5/6

219

pregador

4/6

2/6

3/4

220

professor

2/6

4/6

227

queimar

1/6

5/6

1/6

233

rezar

2/6

237

sair

256

trabalhar

268

ventilador



CARTA

004

açúcar

048

calor

061

chover

092

dormir

093

doutor

3/5

2/5

102

esquecer

1/6

4/6

114

flor

4/6

160

mar

162

mastigar

165

melhor

Total parcial

Total geral

1/4

4/5

1/5 5/5

3/5

1/5

16/54

16/54

2/5

3/5

6/6

2/6

3/5

2/5

3/6

1/6

3/6

3/6

20/52

28/52

1/5 22/54 Total parcial

Velar 20/106 = 18%

Fricativas: 5 6 / 1 0 6 = 5 2 %

Ocos por variante velar glotal canc

Glotal 36/106 = 34%

4/52

Cancelamento 50/106 = 48%

Cancelamento: 5 0 / 1 0 6 = 4 8 %

Os índices registrados no gráfico 3, a seguir, sugerem, segundo a hipótese inicialmente formulada, que as mulheres, sobretudo as mais jovens (faixas 1 e 2), estão mais atentas a sua fala do que os homens, motivo que as leva a produzir um maior percentual de fricativas, evitando, assim, o cancelamento. Esse resultado confirma o que se observou na análise variacionista em que a variável gênero (cf. tabela 8) foi uma das selecionadas como motivadora dessas variantes, também com as mulheres apresentando maior incidência da variante.

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36

GRÁFICO 3: índices percentuais de ocorrência, por informante, das variantes fricativas de R em coda externa em contraposição ao cancelamento

3.2 R em coda interna com base em 30 cartas fonéticas Ao se confrontarem as duas análises, verifica-se que, em contexto interno, os resultados referentes à velar são praticamente idênticos: no Atlas, 14,5%, na análise variacionista, 14,8%, o que demonstra, entre outros aspectos, que o contexto interno, quando a fala é monitorada e não está em jogo o cancelamento, não é marcado como o contexto externo. TABELA 15: percentuais de ocorrência de variantes de R em coda interna, com base em 30 cartas fonéticas do AFeBG Nº

CARTA

017

aniversário

021

arco-íris

024

árvore

041

borboleta

046

caderno

053

carnaval

054

carta

Ocos por variante velar



CARTA

132

4/5

velar

glotal

gordo

1/6

5/6

144

lagartixa

2/6

4/6

6/6

170

mordida

1/6

5/6

1/5

4/5

179

nordestino

1/5

1/5

3/5

1/6

5/6

191

órfão

1/6

3/6

2/6

6/6

201

perfume

1/5

2/5

2/5

4/6

202

pergunta

1/5

4/5

1/5

2/6

glotal

canc

2/6

4/6

Ocos por variante canc

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37 continuação tabela 15 057

catorze

205

perto

060

certo

3/6

3/6

214

porquinho

2/5

3/5

076

cortina

1/6

4/6

215

porta

2/6

4/6

091

dormindo

1/6

5/6

250

tarde

092

dormir

1/4

3/4

273

virgem

117

formiga

6/6

290

118

forte

6/6

291

terça-feira quartafeira

127

garfo

5/6

Total parcial

Total geral

2/5

11/85 65/85

3/5

1/6

1/6

298

9/85

Total parcial

Velar 25/171 = 14,5%

Velar: 2 5 / 1 4 9 = 1 7 %

6/6

6/6 1/6

3/6 1/6

março

Glotal 124/171 = 72,5%

5/6

14/86

3/6

5/6 3/6

3/6

59/86

13/86

Cancelamento 22/171 = 13%

Glotal: 1 2 4 / 1 4 9 = 8 3 %

No que tange às variáveis extralinguísticas, houve algumas convergências. Entre os informantes do atlas (cf. gráfico 4), as mulheres sobressaíram em relação à produção da velar, sobretudo a pertencente à faixa intermediária (58%). Entre os homens, somente o da faixa intermediária usou a variante (11%), não apresentando os demais nenhuma ocorrência. Quanto à instrução, considerados os níveis cobertos pelos diferentes corpora, verifica-se que a variante velar é mais produtiva entre os indivíduos de nível fundamental, embora os que têm de cinco a oito anos de escolaridade (23,6%, na amostra sociolinguística) sejam mais sensíveis a essa variante do que os que frequentaram a escola por quatro anos (amostra do atlas: 17%), índice, neste caso, bem próximo dos de ensino médio (amostra sociolinguística: 16%). Os informantes de nível superior destacam-se dos três grupos, com os menores percentuais (9% na amostra sociolinguística).

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GRÁFICO 4: índices percentuais de ocorrência, por informante, da variante fricativa velar de R em coda interna, em contraposição à glotal

CONSIDERAÇÕES FINAIS A experimentação aqui realizada – o enfoque de uma variável linguística por meio do confronto de resultados de análises desenvolvidas numa mesma localidade por distintos pesquisadores e segundo diferentes procedimentos metodológicos –, entre outros aspectos, (a) valida, reciprocamente, as tendências detectadas em cada uma delas; (b) confirma a complementaridade das duas linhas de pesquisa, (c) demonstra a importância da elaboração de estudos geolinguísticos que levem em consideração diferentes dimensões, de modo a melhor captar a dinâmica social das localidades e (d) ratifica a observação de Rossi (1984:106) de que “os lugares, as áreas, não existem nas ciências humanas como espaços físicos em si, mas como espaços sociais.”

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VARIAÇÃO DO RÓTICO E ESTRUTURA PROSÓDICA VARIATION OF RHOTIC AND ACCENTED STRUCTURE Dinah Callou Professor Emérito, Universidade Federal do Rio de Janeiro/CNPq Carolina Serra Universidade Federal do Rio de Janeiro RESUMO Este trabalho focaliza o apagamento variável do R em posição de coda final a partir de dados de um corpus de entrevistas informais com falantes cultos de dois centros urbanos do Brasil, Salvador e Rio de Janeiro, gravadas em dois períodos, na década de 1970 e na década de 1990, para um estudo em tempo real de curta duração (estudo de tendência). A análise foi realizada com o aparato metodológico da sociolinguística e da teoria da hierarquia prosódica. A hipótese é a de que, além de fatores linguísticos e sociais, a estrutura prosódica também desempenha um papel no processo, na medida em que o apagamento do R seria mais frequente em níveis mais baixos do que em níveis mais altos da hierarquia prosódica. É possível concluir que (i), em termos gerais, a fronteira de sintagma entonacional (IP) desfavorece a queda do segmento, (ii) há um processo gradual de apagamento e (iii) da década de 1970 para a de 1990 mesmo a fronteira de IP passa a não inibir o apagamento do segmento. Palavras-chave: estrutura prosódica; rótico; variação. ABSTRACT This paper focuses on the variable deletion of R in final coda position using data from a corpus consisting of informal interviews with university graduates (standard dialect) from two urban centers of Brazil, Salvador and Rio de Janeiro, recorded in two different periods of time, the 1970’s and the 1990’s, for a short term real trend study. The analysis makes use of sociolinguistic methodology and the theory of prosodic hierarchy. The hypothesis is that, besides linguistic and social factors, the prosodic structure also plays a role in this process as far as R-deletion would be more frequent at lower levels rather than at higher levels. It is possible to conclude that (i) the phonological phrase boundary (IP) disfavors R-deletion, (ii) there is a gradual process of deletion and (iii) from the 1970’s to the 1990’s even the IP boundary no longer inhibits the deletion of the segment. Keywords: prosodic structure; rhotics; variation.

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UM BREVE RETROSPECTO A variabilidade de realização da chamada vibrante múltipla, ou R forte, atestada em pesquisas já realizadas, no português brasileiro (Callou, 1987; Callou et alii, 1996; 2002, entre outras), é bastante saliente – seja em posição de ataque, seja em posição de coda – principalmente, ao confrontar falares de diferentes regiões. As múltiplas realizações do R na posição específica de coda, medial ou final – martelo/ lar/ viajar – vão desde uma vibrante alveolar, uma fricativa velar, uma fricativa laríngea surda (aspiração) até [Ø]. Este contínuo tem sido explicado antes pelo enfraquecimento da articulação que pela interferência de fatores externos. Determinado regionalmente, o fenômeno é visto como uma tendência à articulação posteriorizada, tendência universal, ao que parece, e como uma etapa necessária à perda desse segmento fônico, em posição final de palavra (fechar, por exemplo), produzindo o padrão silábico básico CV: Rà x à h à Ø. Quando o vocábulo subsequente começa por vogal, pode ocorrer uma ressilabificação e a consoante realizar-se como um tepe entre vogais: fechaR a porta à fe-cha–ra-por-ta. No início do processo, o apagamento do R era considerado um marcador social e, nas peças de Gil Vicente, no século XVI, era usado para caracterizar a fala de escravos. Essa estratificação fez surgir a hipótese de se tratar de uma mudança de baixo para cima, em termos labovianos (Labov, 1994). Pelos séculos seguintes, no entanto, o fenômeno se espalhou progressivamente por todas as classes sociais e por todos os níveis educacionais, não sendo mais estigmatizado, a não ser, talvez, na fala culta, em não-verbos monossilábicos, como bar e mar, principalmente, ao que parece, em final de enunciado, ou seja, em fronteira de sintagma entonacional (IP).

1. Revisitando os róticos Em trabalhos já realizados sobre o R, em várias perspectivas (Mateus, 1975; Hammarström, 1953; Abaurre & Sândalo, 2003; Monaretto, 2010), costuma-se afirmar que o domínio estrito do apagamento é a sílaba (Callou et alii, 1998) ou nem se entra na discussão sobre o tema. Até onde vai o nosso conhecimento, postula-se, pela primeira vez, que o domínio do

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cancelamento vai além da sílaba e que seu locus tem relação, na verdade, com o tipo de fronteira prosódica, analogamente ao que já foi observado para outros processos de sândi. A possível relação entre o apagamento do R e o tipo de fronteira prosódica em que este segmento se encontra auxiliaria no entendimento dos altos índices de apagamento em final de vocábulo, em contraste com os baixos valores de apagamento no interior de vocábulo. Resumindo, a hipótese é a de que este fenômeno apresente também uma motivação de natureza prosódica. Admita-se, assim, que, além de fatores linguísticos e sociais, tais como: • classe morfológica – verbos (cantar), em oposição a não-verbos, fator que engloba todas as outras classes (por exemplo, substantivo, adjetivo, preposição, advérbio, etc.: mar, melhor, por, devagar); • faixa etária (adultos acima de 36 anos e idosos retêm mais o segmento, ao contrário dos jovens de 25 a 35 anos); e • região (no Norte e Nordeste; o apagamento é mais frequente, no Sudeste e no Sul, em que há por vezes a manutenção da articulação anterior da vibrante, menos frequente). A estrutura prosódica também desempenha um papel relevante na atuação do processo. Para este artigo, contamos com três conjuntos de dados de fala culta do português do Brasil: dois gravados no Rio de Janeiro (RJ), em dois períodos discretos de tempo: o primeiro na década de 70, o segundo, na década de 90, além de um terceiro, em Salvador (SSA), relativo apenas à década de 70. A amostra foi extraída de um corpus mais amplo de falantes cultos (Projeto NURC), estratificados por faixa etária, gênero e região geográfica. Quatro aspectos são levados em consideração: (i) o apagamento do R é quase categórico em falantes jovens; (ii) no que se refere à área geográfica de origem do falante, o fenômeno seria mais frequente em Salvador (região Nordeste) que no Rio de Janeiro (região Sudeste); (iii) fronteiras de constituintes prosódicos maiores inibiriam o processo; (iv) da década de 70 para a de 90, o índice de apagamento seria mais elevado, na cidade do Rio de Janeiro. Os objetivos são, pois, retomar, em linhas gerais, uma análise em tempo real de curta duração, um estudo de tendência (Labov 1994),

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restrito ao Rio de Janeiro e fazer uma comparação, no mesmo período de tempo, entre o comportamento linguístico de falantes oriundos de duas áreas distintas, áreas essas que apresentam características sócio-históricas também distintas. Essa opção justifica-se pelo fato de processos variáveis analisados anteriormente, nesses mesmos centros urbanos, apresentarem comportamentos diferenciados em relação à direção da mudança, não só no que se refere a fenômenos do nível fonético-fonológico, mas também a do nível morfossintático (Leite & Callou, 2002). A análise foi feita em duas etapas; a primeira, com base na metodologia da sociolinguística quantitativa laboviana (Labov, 1994) e, a segunda, na teoria da hierarquia prosódica (Selkirk, 1984; Nespor & Vogel, 1986). Observa-se, no momento, apenas o comportamento de adultos jovens, de 25 a 35 anos, homens e mulheres, a fim de tentar explicar a trajetória do processo, do início à completude, já que está fortemente concentrado em falantes dessa faixa etária (72% de apagamento), pelo menos, no período enfocado. 1.1 Análise variacionista De início, é possível observar que o processo de apagamento do R, já na década de 70, não atua da mesma forma nos jovens das duas cidades, sendo o índice de frequência em Salvador quase o dobro do da cidade do Rio de Janeiro (Figura 1). FIGURA 1: apagamento do R em posição de coda final, na fala culta do Rio de Janeiro e de Salvador, na década de 70, em falantes de 25 a 35 anos. 89%

100%

SSA

80% 46%

60% 40% 20% 0%

RJ

década 70

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Se considerarmos um número maior de falantes – não só os jovens – distribuídos por três faixas etárias (Callou et alii, 1996), é possível verificar que, em Salvador, há uma nítida curva de mudança em curso e, no Rio de Janeiro, de estabilidade (Figura 2). FIGURA 2: apagamento do R em posição de coda final, na fala culta do Rio de Janeiro e de Salvador, na década de 70, por faixa etária. 100%

SSA 89%

RJ

80% 60%

46%

52%

48%

40% 40%

20% 8%

0% 25 - 35

56 --

36 - 55

A julgar por esses falantes, pode-se dizer que, no Rio de Janeiro, o processo se encontra a meio termo e, em Salvador, quase completo, afetando quase todos os vocábulos em que o segmento está inserido, não importa se verbo ou não-verbo, sempre acima de 70%. No Rio de Janeiro, por outro lado, a oposição entre verbos e não-verbos ainda é flagrante (Figura 3). FIGURA 3: apagamento do R em posição de coda final, na fala culta do Rio de Janeiro e de Salvador, na década de 70, de acordo com a classe morfológica. 97% 81%

100% 80% 60% 40%

verbos 78%

20% 0%

3%

RJ

SSA

não-verbos

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Esta análise confirma análises anteriores com diferentes amostras, inclusive, de fala não padrão (www.letras.ufrj.br/peul), que apontaram sempre a classe morfológica como a variável mais significativa. Esse comportamento vai de encontro a afirmações correntes na literatura de que material fonológico que carreie informação morfológica tende, nos processos de mudança, a ser preservado. Callou (1987) discute a questão de o apagamento ser mais frequente em verbos, não obstante transmitir informação semântica relevante, por ser marca de infinitivo ou de futuro do subjuntivo (quereR; se eu quiseR). Já se comprovou que a característica morfofonêmica do segmento afeta a distribuição das variantes, sendo a taxa de [Ø} mais alta quando representa a marca de infinitivo. Se, por um lado, isso contraria o que afirma Labov (1972), ao assinalar, a propósito de simplificação de grupos consonânticos, que fatores gramaticais tendem a reduzir a aplicação de regras variáveis, por outro, confirma os resultados de Cedergren, para o espanhol do Panamá (1972), e de Votre (1978) para a fala não-culta do Rio de Janeiro, ao tratarem do cancelamento do R em posição final de vocábulo. A tabulação cruzada de classe morfológica e década mostra que a variável condicionadora classe gramatical vem perdendo força de uma década para a outra (Figura 3), não mais retendo tão frequentemente o segmento (Figura 4). FIGURA 4: apagamento do R em posição de coda final, na fala padrão do Rio de Janeiro, (25-35), nas duas décadas, levando em conta classe morfológica.

81% 66%

100% 80% 60% 40%

46%

90

20%

3%

0% verbos

não-verbos

70

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Não há dúvida de que a grande oposição reside na classe morfológica: nos verbos, o percentual de cancelamento está sempre acima de 60%, os valores mais altos em falantes de menor escolarização (Callou, 2008). Observe-se (Figura 5) que somente nos falantes com grau universitário há um aumento da frequência de apagamento, da década de 70 para 90, o que é mais um forte indicativo de se tratar de uma mudança “de baixo para cima”. FIGURA 5: apagamento do R em verbos e não-verbos no NURC (fala padrão) e no PEUL (fala não-padrão), sem levar em conta faixa etária. verbos

não-verbos

100% 80% 60% 40% 20% 0% NURC/70

PEUL/80

NURC/90

PEUL/00

1.2 Análise prosódica Da mesma forma que em relação a outros fenômenos, sândi externo, por exemplo, que leva em conta fronteiras de constituintes prosódicos (Bisol, 1996; 2002; Tenani, 2002), a hipótese é a de que, como se disse, o cancelamento do R seja também sensível à posição da sílaba relativamente ao domínio prosódico. Dentro do quadro da teoria Autossegmental e Métrica – Teoria AM (Beckman & Pierrehumbert, 1986; Ladd, 1996), a prosódia de um enunciado é tratada como estrutura hierárquica, organizada fonologicamente em determinados constituintes e cabeças. A teoria da hierarquia prosódica (Nespor & Vogel, 1986) fornece essa organização hierárquica dos segmentos de fala em constituintes. Tal organização é determinada por relações de proeminência relativa em cada nível da estrutura, como se pode vislumbrar

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na Figura (6), abaixo, na constituição do enunciado “A exposição, segundo dizem, apresenta a pintura dos impressionistas”. FIGURA 6: Estrutura Prosódica e relação de proeminência relativa nos domínios prosódicos. Enunciado fonológico Sintagma entonacional Sintagma fonológico Palavra prosódica Sílaba Em um contínuo de fala, composto de mais do que uma palavra lexical, verifica-se a distribuição hierárquica de proeminências acentuais, na qual cada nível de proeminência corresponde a um constituinte prosódico. A relação de proeminência relativa dentro de cada constituinte se caracteriza pela marcação de um elemento como sendo o forte (s – strong) e de todos os demais, na projeção máxima de cada domínio, como fracos (w – weak). Em línguas como o português, de recursividade à direita, ou seja, cujas árvores sintáticas se ramificam à direita, a cabeça mais à direita é rotulada como s e todos os demais elementos dentro da projeção máxima do constituinte são rotulados como w. Cada constituinte prosódico atua como âmbito de processos fonológicos específicos, que podem ser aplicados ou bloqueados de acordo com os limites desses domínios (Nespor & Vogel, 1986). Além disso, mais recentemente, a entoação também tem sido considerada importante para a determinação de domínios prosódicos (Hayes & Lahiri, 1991; Truckenbrodt, 1995; Frota, 2000; Frota & Vigário, 2000; Tenani, 2002; Serra, 2009).

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Os algoritmos de formação dos constituintes prosódicos adotados aqui são os seguintes1: •





Palavra prosódica (Pω) – uma palavra prosódica tem um único acento primário e uma palavra prosódica máxima (Pωmax ) tem um único elemento proeminente. Todo elemento com acento de palavra tem de estar incluído numa palavra prosódica (Vigário, 2003). Sintagma fonológico (PhP/f) – um sintagma fonológico deve ser formado por uma cabeça lexical (núcleos de sintagmas sintáticos cuja natureza é lexical e não funcional) + todos os elementos do lado esquerdo dentro da projeção máxima de Lex + XP complemento do seu lado direito, que contenha apenas uma Pω (Frota 2000, Tenani 2002). Dessa forma, atendendo às condições necessárias, um f deve ser constituído por mais do que uma palavra prosódica, formando um único f com um complemento não ramificado. Sintagma entonacional (IP) – um sintagma entonacional deve conter toda sequência não estruturalmente anexada à oração raiz ou todas as sequências de fs em uma oração raiz (Nespor & Vogel, 1986). A formação de IP está sujeita a condições de tamanho prosódico: sintagmas longos (em número de sílabas e de palavras prosódicas) tendem a ser divididos, da mesma forma que sintagmas pequenos tendem a formar um único I com um I adjacente, o que leva à formação de sintagmas com tamanhos equilibrados (Frota, 2000; Serra, 2009).

Para o mapeamento dos constituintes acima de Pω, incluive, fazse uso substancial de noções morfossintáticas, ou seja, de informações não fonológicas. Para a constituição da palavra prosódica interagem informações do componente fonológico e do componente morfológico da gramática. Noções como a de projeção máxima de sintagmas sintáticos e as de sentença-raiz, parentética, vocativo são fundamentais para a constituição dos domínios sintagma fonológico e sintagma entonacional, respectivamente. 1

Pω faz referência ao nome do constituinte em inglês – prosodic word, bem como PhP e IP, respectivamente, a phonological phrase e a intonational phrase.

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Serão levadas em conta, portanto, na observação do comportamento do R em coda final, as fronteiras desses três domínios prosódicos em função de mapearem informação morfossintática em constituintes fonológicos, o que não acontece em constituintes mais baixos da hierarquia prosódica, que fazem uso de informação estrita do componente fonológico – a sílaba e o pé métrico –, nem no componente mais alto, o enunciado fonológico, constituinte para a formação do qual devem ser levados em conta conteúdos semânticos e condições pragmáticas (Nespor & Vogel, 1986). Vejamos a segmentação de alguns trechos de fala espontânea em constituintes prosódicos, a título de exemplificação, constantes da tese de Serra (2009). (1) (2) (3)

(([mas também)ω tive)ω cursos)ω]f [muito)ω fracos)ω]f )I ([né) ω] f)I ) Imax ([agora)ω eu)ω]f [vou)ω estudar)ω]f [pra valer)ω]f )I ([que foi)ω um curso)ω]f [que eu)ω]f [não)ω vou)ω esquecer)ω] f )I

A palavra prosódica é, por exemplo, o domínio do abaixamento datílico e de neutralizações em favor da vogal alta, em PB (Battisti & Vieira, 1996). Em termos estritamente entonacionais, os domínios imediatamente acima da palavra, f e I, são importantes para a organização melódica dos enunciados da língua. Diferentemente de em PE, o f é caracterizado em PB pela ocorrência regular de um acento tonal no seu elemento mais proeminente (Frota & Vigário, 2000; Tenani, 2002; Fernandes, 2007). O domínio de I, em PB, é marcado por um contorno nuclear (acento tonal + tom de fronteira) e uma potencial pausa em sua fronteira direita. Há ainda a ocorrência preferencial de um tom L+H* associado à primeira sílaba acentuada de I, independentemente de esta sílaba ser ou não a mais proeminente de f (Tenani, 2002; Moraes, 2007; Silva, 2011). O domínio de I – em muitas línguas – é (i) o locus de alongamentos préfronteira, (ii) de inserção de pausas, e (iii) altamente relevante para a entoação, ou seja, é o constituinte, por execelência, ao qual se agregam os contornos entonacionais através da distribuição de eventos tonais: acentos tonais associam-

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se à cabeça desse constituinte prosódico e/ou à sua fronteira2. Em razão disso, parte-se da hipótese de que o apagamento do R seria mais frequente nos níveis mais baixos que nesse nível mais alto da hierarquia, como se pode verificar no exemplo (4): (4)

[(…é)pω (possível)pω ]php ]IP [(conviveØ...)pω ]php ]IP [[(e... vamos) (dizeØ...)pω ]php ]IP [[(conduzir)pω ]php [(essas populacões)pω pω (pobres)pω ]php ]IP [...]

Embora não tenha sido ainda testada a relevância das fronteiras de Pω, PhP e IP – e contrariando a hipótese de ser a sílaba o domínio do apagamento – essa interpretação poderia servir para explicar a maior frequência de apagamento na posição de coda final (46%, no geral) e a baixa frequência na posição de coda interna (3%, na década de 70), segundo Callou et alii (1998).

2. Conclusões parciais Após a análise prosódica, procedeu-se a uma análise multivariada de 232 ocorrências, que revelou que as fronteiras de sintagma fonológico e de sintagma entonacional favorecem a preservação do segmento enquanto a fronteira de palavra favorece o apagamento do R. Deve-se lembrar que para esta análise não foram consideradas as ocorrências em que o R se encontre seguido de vogal ou tenha sido registrado na preposição por, como nos exemplos (2), (3) e (4). (5) (6) (7)

em menor escala [me-no-ris-ca-la] por enquanto [po-rin-quanto] por falta de [por-fal-ta-de]

No primeiro caso, há usualmente uma ressilabificação; no segundo, o segmento é interpretado como em de posição de coda interna – e não externa – na medida em que a preposição não recebe basicamente acento e se junta ao vocábulo subsequente, quer seja seguido de vogal (exemplo 3), 2 Cf. os princípios gerais da teoria AM em Ladd, 1996, entre outros.

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com ressilabificação, como no exemplo (2), quer seja seguido de consoante (exemplo 4), passando a constituir uma Pωmax com o vocábulo subsequente. Foi possível chegar à conclusão de que há um processo gradual de mudança e que da década de 70 para a de 90 mesmo as fronteiras de IP e PhP não mais inibem o apagamento do segmento (Figura 7). FIGURA 7: apagamento do R em posição de coda final, na fala culta do Rio de Janeiro, em falantes de 25 a 35 anos, das duas décadas, de acordo com a fronteira prosódica. 93%

91%

100%

85%

80%

64%

60% 40%

39%

31%

20%

RJ 90 0%

PW

RJ 70 PhP

IP

Mais uma vez, não pode ser descartada a oposição entre verbos e nãoverbos, que se mantém significante, pois apenas se for analisada cada fronteira separadamente será possível obter uma visão geral do processo (Figura 8). FIGURA 8 - apagamento do R em posição de coda final, na fala culta (Rio de Janeiro, falantes de 25 a 35 anos), na década de 70, de acordo com a fronteira prosódica. 100%

88%

75%

71%

80% 60% 40%

20%

20%

0%

0%

PW

PhP

0%

IP

verbos não-verbos

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Na década de 1970, no dialeto do Rio de Janeiro, o apagamento do R em não-verbos se restringe à fronteira de palavra prosódica (Pω). Em Salvador, a frequência de apagamento em não-verbos atinge 44% em fronteira de palavra. Em verbos, o processo está praticamente completo e nenhuma fronteira prosódica inibe o apagamento. Na década de 1990, no Rio de Janeiro, a regra avançou em verbos e, em não-verbos, o quadro não é tão consistente, talvez pela distribuição irregular e o número baixo de ocorrências. Não obstante, tanto as variáveis gramaticais quanto as prosódicas são menos relevantes (Figura 9). FIGURA 9: apagamento do R em posição de coda final, na fala culta do Rio de Janeiro, na década de 90, de acordo com cada fronteira prosódica. FRONTEIRA PROSÓDICA

Pω 93% verbo 100%

não-verbo 33%

PhP 91% verbo 100%

não-verbo 60%

IP 85% verbo 96%

não-verbo 67%

Como se pode verificar, até o final da década de 70, na fala culta do Rio de Janeiro, o apagamento em não-verbos estava restrito à fronteira de palavra (PW), enquanto em Salvador a frequência de apagamento, em nãoverbos, já atingia 44%, nessa mesma fronteira e, em verbos, o processo estava quase completo, nenhuma fronteira inibindo o apagamento. Estes resultados são semelhantes aos que chegaram Bisol (1996) e Tenani (2002), no que se refere à degeminação silábica, como no exemplo (8). Nenhuma fronteira bloqueia o processo; porém, quanto maior a fronteira silábica, menor a frequência de aplicação da regra. (8)

[A laranja] Ø [alcanÇOU] bom preço

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Resumindo, estamos ainda tentando entender a interrelação de restrições gramaticais, sociais e prosódicas que regem o apagamento do R no português brasileiro. Com base em estudos realizados nessa linha, resultou um conhecimento mais preciso de certas características e tendências do português brasileiro, na área da fonologia, entre as quais as seguintes: vocalização da lateral em posição pós-vocálica como em pape[l] > pape[u], sa[l]to > sa[u]to – que se vem generalizando no sul do país (Tasca, 1999; Collischonn e Quednau, 2010); a posteriorização e a fricativização da vibrante – que se vem tornando fricativa, como em ca[rr]o > ca[x]o (Monaretto, 1997); o ditongo que se perde como em ouro>oro, coro>coro (Cabreira, entre outras). A monotongação é uma realidade também no português europeu, mas os dois primeiros fenômenos singularizam o português brasileiro, independentemente de poderem estar presentes em outros dialetos como o português africano ou asiático, ou mesmo o europeu. No que tange à região geográfica de origem do falante, é necessário lembrar que nas regiões Norte e Nordeste, o apagamento é mais frequente, enquanto no Sudeste e Sul, em que há por vezes a manutenção da articulação anterior da vibrante, a tendência é preservar o segmento (Leite, 2011). Será interessante observar, nas localidades em que ainda há a manutenção do segmento, quais são os contextos prosódicos mais favorecedores do apagamento/preservação do R, capturando, assim, as etapas do processo. Serão analisadas futuramente as capitais de São Paulo e Porto Alegre, nas décadas de 1970 e de 1990 (Projeto NURC), e serão agregados novos dados do Rio de Janeiro, já do século XXI (Serra, 2009). Outros estudos virão... Só com a ampliação da amostra e a extensão da análise a outras faixas etárias e regiões do país se poderá chegar a traçar um quadro geral da fala culta brasileira, em tempo real de curta duração. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABAURRE, M. B. & SANDALO, M. F. Os róticos revisitados. In: HORA, D. & G. COLLISCHONN. (orgs.)Teoria Linguística: Fonologia e outros temas. João Pessoa, Editora Universitária: 2003. p. 144-180.

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CARACTERIZAÇÃO PROSÓDICA DOS FALARES BRASILEIROS: A ORAÇÃO INTERROGATIVA TOTAL PROSODIC DESCRIPTION OF BRAZILIANS PORTUGUESE SPEECH: THE YES-NO QUESTION Joelma Castelo Bernardo da Silva Universidade Federal do Rio de Janeiro Cláudia de Souza Cunha Universidade Federal do Rio de Janeiro RESUMO O presente trabalho objetiva descrever a variação regional da entoação em enunciados interrogativos do tipo questão total nos falares de 25 capitais brasileiras, utilizando o corpus do projeto Atlas Linguístico do Brasil. Foram ouvidos 4 informantes por capital, distribuídos equitativamente por duas faixas etárias - 18 a 30 anos e 50 a 65 anos. A linha de pesquisa é a da fonética experimental e, para a análise dos dados, usou-se o programa computacional Praat. A interpretação fonológica teve por suporte o modelo autossegmental métrico O comportamento da frequência fundamental (F0) foi observado em dois pontos da frase entoacional – a sílaba tônica inicial e as átonas adjacentes e a sílaba tônica final e as átonas adjacentes. Os resultados indicam que o índice de regionalidade é manifestado, principalmente, através da relação de altura entre as sílabas que compõem o acento nuclear. Palavras-chave: entoação regional; prosódia; questão total. ABSTRACT The present work intends to describe the regional variation of the intonation on yes no question interrogative statements in 25 Brazilian capitals’ speak, using the corpus from “Projeto Atlas Linguístico do Brasil”. Four informants were heard by capital, distributed equally across two age groups - 18 to 30 years and 50 to 65 years. The line of research is experimental phonetics ones, and for data analysis, we used the computer program Praat. The phonologic interpretation had the autossegmental model as support. The behavior of the fundamental frequency (F0) was observed in two points of intonation phrase - the initial and final stress syllables and the adjacent unstressed syllables. The results indicate that the regionality index is mostly manifested in the relation of height among the syllables which compose the nuclear tone. Keywords: prosody; regional entonation; yes no question.

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INTRODUÇÃO Os índices regionais concernentes à prosódia do Português do Brasil (PB) são passíveis de interpretação e sistematização linguística. Reconhecidos intuitivamente pelos falantes de uma dada língua, os traços regionais da prosódia é um assunto presente quando se deseja singularizar um determinado falar ante a outros. “Fazem-se desde descrições genéricas – com referências a um ‘cantar’ ou a um ‘falar cantando’– até descrições que buscam qualificativos mais específicos: falar ‘descansado’, ‘devagar/ rápido’, ‘com a boca mole’, ‘em tom de briga’” (CUNHA, 2000, p.3). As descrições populares a respeito da(s) prosódia(s) brasileira(s) corroboram o fato de os falares regionais apresentarem particularidades em sua camada suprassegmental, que merecem ser apuradas cientificamente. Antenor Nascentes (1958) foi um dos pioneiros a levar o fenômeno em consideração. Baseando-se em impressões a respeito de uma oposição regional no que tange à abertura das vogais e à cadência da fala, o dialectólogo delimitou dois grandes grupos de falares vernáculos: o do Norte, que abrange os falares amazônico e nordestino, em que observou vogais pretônicas abertas e uma cadência da fala mais “cantada”; e o do Sul, que abrange os falares baiano, fluminense, mineiro e sulista, em que observou vogais pretônica fechadas e um falar mais “descansado”. O famoso falar “cantado” usado para referir-se à prosódia do outro, apresenta, de fato, uma característica comum a todos os falares: a melodia realizada a partir da frequência fundamental. Dessa maneira, todos eles são em determinada medida “cantados”, porém cada um com seu conjunto de notas particular. O atual cenário de estudos sobre a prosódia regional do Português e de outras línguas conta com importantes trabalhos e projetos que objetivam conhecer o comportamento melódico dos enunciados e descrever o que esse comportamento apresenta de comum e de diferente entre as línguas do mundo, bem como entre dialetos de uma mesma língua. O estudo de variedades do inglês falado nas ilhas britânicas (GRABE, 2004), o de variedades do espanhol falado na Espanha e na América (SOSA, 1999) e o de variedades do Português do Brasil (CUNHA, 2000; SANTOS, 2008; LIRA, 2009; NUNES, 2011; SILVA, 2011) são alguns desses estudos.

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Estão em andamento também a formação de corpora que se destinam à descrição fonético-fonológica da entoação em diferentes línguas. A saber: 1) projeto Atlas Multimídia Prosódico do Espaço Românico (AMPER), que pretende investigar a entoação das línguas românicas; 2) projeto Intonation Variation in English (IViE), que pretende investigar a entoação do inglês nas Ilhas Britânicas; 3) projeto Atlas Linguístico do Brasil (ALiB), que tem por objetivo descrever as variantes do PB no que tange a todos os níveis da gramática e apresenta em sua pauta cartas destinadas à diferenciação regional da entoação; e 4) Atlas Interativo da Entoação do Catalão, que tem por objetivo investigar a entoação regional do Catalão, disponibilizando na rede mundial de computadores, materiais na forma de áudio e vídeo, referentes às 46 variedades investigadas na região da Catalunha. Inserido nesse contexto, o objetivo do presente trabalho é apresentar e discutir os resultados encontrados para o comportamento entoacional da questão total em 25 capitais brasileiras. Pretende-se, através dessa abordagem, responder às seguintes questões: 1) Quais são as implementações fonéticas dos acentos nucleares do sintagma entoacional da questão total nos falares das capitais brasileiras? 2) Qual é a distribuição geográfica dos padrões regionais da questão total no PB? A fim de conhecer as realizações fonéticas das questões totais nas variedades do PB, far-se-á uma descrição do parâmetro prosódico frequência fundamental (F0). O corpus será retirado das gravações realizadas pelo Atlas Linguístico do Brasil (ALiB) nas 25 capitais brasileiras investigadas pelo projeto. A linha de pesquisa é a da fonética experimental, método que busca resgatar a integração da fonética e da fonologia, contribuindo para comprovar, através da análise do comportamento físico do som, as previsões dos modelos fonológicos abstratos. O programa computacional PRAAT será empregado para segmentar e medir os valores da F0 nas sílabas. A interpretação dos dados tem por suporte teórico-metodológico o modelo autossegmental e métrico desenvolvido a partir da tese de Pierrehumbert (1980) para descrever um inventário finito de melodias possíveis para o inglês por meio de apenas dois tons: alto (H) e baixo (L). Esse modelo serviu de base para o desenvolvimento do sistema ToBi, que, atualmente, é largamente utilizado em trabalhos na área de prosódia.

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1. As características fonológicas da questão total A proeminência tonal gerada em determinados pontos da frase entoacional é responsável por uma série de oposições observadas no nível gramatical, semântico e pragmático. No que respeita à melodia das questões totais, dois domínios são importantes: o domínio da primeira tônica e de suas átonas adjacentes, que formam o acento pré-nuclear e o domínio da tônica final e de suas átonas adjacentes, que formam o acento nuclear. Embora tanto o início quanto o final da interrogação sejam portadores de informação fonológica, muitos autores (GRICE, 2006; FONAGY, 1993; MORAES, 2008; HISRT e DI CRISTO, 1998; SOSA,1999) afirmam que a força ilocutória da interrogação se identifica sobretudo pela subida contida no acento nuclear da frase fonológica. Tal subida desempenha um papel fundamental na distinção “entre interrogativas e assertivas se não há uma sintaxe interrogativa ou uma partícula de questão” (GRICE, 2006, p. 9). Segundo Fónagy (1993, p.44), “a busca de tensão que parece caracterizar a entoação das interrogativas as associa de forma evidente aos enunciados inacabados”. Sendo assim, a função apelativa que rege esse tipo de enunciado faz com que apresente na porção final do seu material sonoro um índice que o diferencia do enunciado assertivo. Ao contrário desta modalidade, a questão total mostra a intenção do falante em completar uma informação através da resposta sim/não de seu interlocutor, o que justifica, semanticamente, apresentar uma curva ascendente, semelhante a de frases inacabadas. Sobre o contorno pré-nuclear, Navarro Tomás (1939, apud SOSA, 1999, p.150) afirma que a questão total parte “desde o princípio de uma nota mais alta do que a que corresponderia a essas mesmas sílabas no grupo enunciativo, com o qual o sentido interrogativo ou enunciativo da frase começa a fazer-se perceptível desde suas primeiras sílabas”. Com relação à questão total do Português do Brasil, Moraes (2008: 5) propõe a seguinte notação fonológica: /L+H*/ para o acento prenuclear e /L+ passaram a ser empregados para indicar, respectivamente, o alinhamento do pico à direita da sílaba que forma nela um movimento predominantemente ascendente; ou à esquerda da sílaba, que forma nela um movimento predominantemente descendente.

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3. Resultados 3.1 A implementação dos padrões regionais da questão total no português do Brasil Antes de proceder à análise dos modelos abstratos da questão total no português do Brasil, faz-se necessário apresentar sua realização fonética, uma vez que a partir dela se chega às representações dos padrões regionais inscritos na gramática internalizada do falante. Inicia-se, pois, nessa seção, a análise dos resultados por meio da evidência instrumental e acústica para, posteriormente, propor notações tonais subjacentes da questão total no português brasileiro na próxima seção. A descrição fonética do comportamento entoacional dos padrões encontrados nas capitais brasileiras será ilustrada através da questão total “Você vai sair hoje?”, produzida por informantes das seguintes capitais: Teresina, João Pessoa, Maceió, Cuiabá e Florianópolis. Sua análise será feita abordando-se os seguintes aspectos: o movimento descendente formador da primeira configuração, que se inicia no ataque e vai até o último vale da frase e o(s) movimento(s) que forma(m) a configuração final, iniciada nesse último vale e concluída ao final do enunciado. Esses dois movimentos serão importantes para discussão das perguntas-chave apresentadas na introdução do artigo. O acento pré-nuclear apresentou-se homogêneo na maioria das capitais analisadas: a proeminência inicial do enunciado interrogativo recai predominantemente na sílaba tônica, formando uma configuração circunflexa inicial. As diferenças regionais foram encontradas principalmente no acento nuclear. Nesse domínio entoacional, observou-se que o comportamento das elocuções analisadas confirma o contorno ascendentedescendente final descrito por Moraes (2008) através da notação L+H*L% em praticamente todas as capitais brasileiras. Esse tipo de configuração tonal, no entanto, apresenta distinções no que respeita à altura dos picos nucleares, que podem ser observadas nos três exemplos a seguir. A elocução “Você vai sair hoje?”, produzida pela informante mulher da primeira faixa etária de Teresina, apresenta um ataque bastante elevado da F0, 342 Hz, localizado na primeira sílaba acentuada da frase “vai”. Esse pico é seguido por uma descida saliente de 124 Hz que ocupa as duas sílabas

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seguintes. Após alcançar seu ponto mínimo, localizado na fronteira entre pretônica e tônica final, a F0 empreende uma configuração ascendentedescendente cujas variações são de, respectivamente, 24 e 22 Hz, cinco vezes menores do que as variações observadas na configuração inicial. FIGURA 1: frase Você vai sair hoje?, dita pela informante M1 de Teresina

O enunciado “Você vai sair hoje?”, produzido pelo informante homem da segunda faixa etária de Cuiabá, exemplifica o mesmo padrão encontrado em Teresina, porém com pico nuclear em uma altura mais nivelada ao do pico pré-nuclear. Essa frase é formada por uma subida de 35 Hz na tônica. A partir dessa sílaba, a linha melódica diminui 41 Hz até a sílaba pretônica final, formando um vale nessa região. A F0 volta a aumentar 65 Hz ao longo da tônica final, atingindo seu pico à direita dessa sílaba. A frequência diminui em direção à postônica.

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FIGURA 2: frase Você vai sair hoje?, dita pelo informante H2 de Cuiabá.

A elocução “Vai sair hoje?”, produzida pela informante mulher da segunda faixa etária de Florianópolis, assim como os demais enunciados analisados até agora, apresenta configuração ascendente-descendente final. Nessa frase, no entanto, constata-se que o primeiro pico da F0, que recai na sílaba tônica, sofre uma de 19 Hz a caminho da sílaba pretônica final, que é bem menor em relação à subida de 54 Hz que forma o circunflexo final. Essa subida atinge seu ápice à direita da sílaba tônica. A sílaba postônica foi ensurdecida.

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FIGURA 3: frase Vai sair hoje?, dita pela informante M2 de Florianópolis

Além do padrão nuclear ascendente-descendente mais comum, foram encontrados também outros dois padrões, dessa vez, concernentes a uma inflexão melódica ascendente final. Esses padrões de questão total foram produzidos sobretudo na região nordeste brasileira, embora tenham aparecido também em algumas capitais do norte e do sul do Brasil. As diferenças entre as subidas finais, descritas nos exemplos a seguir, estão na localização da sílaba hospedeira do movimento. O enunciado “Vai sair hoje?”, dito pelo informante homem da primeira faixa etária de João Pessoa, possui pico melódico inicial hospedado na primeira tônica. Esse pico é seguido por um movimento descendente de 64 Hz que termina na sílaba pretônica final. A partir da última tônica, a frequência sofre um aumento de 100 Hz que, por conseguinte, forma a altura mais elevada da frase na postônica final.

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FIGURA 4: frase Vai sair hoje?, dita pelo informante H1 de João Pessoa

O enunciado “Cê vai sair hoje?” foi produzido pelo homem da segunda faixa etária de Aracaju. Ele apresenta pico da F0 na primeira tônica e declínio de respectivamente 67 Hz ao longo da frase. Diferentemente do enunciado de João Pessoa, o vale do interior da frase está localizado na sílaba tônica, que apresenta o nível mais baixo de toda frase. Na sílaba postônica, a frequência aumenta 66 Hz, formando um movimento ascendente. FIGURA 5: frase Cê vai sair hoje?, dita pela informante M1 de Aracaju

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3.2 A distribuição geográfica dos padrões entoacionais da questão total O português do Brasil é uma língua que não possui outros recursos além da entoação para marcar a questão total. Dessa forma, já era esperado que o movimento ascendente final estivesse presente em 100% das questões totais analisadas de todas as regiões brasileiras, uma vez que configura um dos principais correlatos físicos empregados para expressar a força ilocutória da interrogação. Ao contrário do acento pré-nuclear, a subida fonológica implementou-se de modo bastante diversificado nas capitais brasileiras analisadas. O padrão mais recorrente consiste em uma configuração circunflexa formada por pico alinhado à direita da última tônica e frequências mais baixas associadas às átonas adjacentes. A notação L+ formas verbais imperativas > pronomes possessivos > pronomes complementos não preposicionados > formas verbais não imperativas? Ou, dito de outro modo, por que o “você” “entra” no sistema do PB seguindo essa mesma hierarquia se considerados os diferentes contextos morfossintáticos? O artigo está organizado da seguinte maneira: na primeira seção, retomamos alguns estudos sobre a implementação de “você” na diacronia do PB; na segunda seção, apresentamos a descrição dos usos encontrados nas cartas dos irmãos Paiva, buscando explicar a preferência pelo “você” nos diferentes contextos; na terceira e última seção, apresentamos as conclusões a que o estudo ora apresentado nos permitiu chegar.

1. Um retrato da implementação de “você” na história do Português Brasileiro A variação pronominal na referência de segunda pessoa do singular no PB depende tanto de contextos socioestilísticos – do tipo de relação estabelecida entre os falantes, do gênero textual e do contexto da interação – quanto de fatores estruturais – ou contextos morfossintáticos. No Brasil, estudos mostram que coexistem, de forma geral, as formas de tratamento “o senhor”, “você” e “tu”, que variam entre si pelo imenso território do país3. 2

3

Essa é uma questão central da pesquisa de mestrado em andamento, desenvolvida por Kássia Kamilla de Moura junto ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Não faremos aqui uma retomada da distribuição de uso na atualidade do “tu” e do “você” no Brasil. Para essa retomada, remetemos o leitor aos textos, entre outros, de Menon (1995), Lopes (2007), Coelho e Görski (2011).

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Retomaremos, a seguir, resultados de estudos que se voltam à análise dos padrões de uso de “tu” e “você” na diacronia do PB, tendo em vista, em sua maioria, diferentes córpus constituídos de cartas pessoais escritas por brasileiros no curso dos séculos XIX e XX. Lopes e Machado (2005)4, ao analisarem 41 cartas pessoais, escritas no último quartel do século XIX, entre 1872 e 1879, pelo casal carioca Christiano Benedicto Ottoni e Bárbara Balbina de Araújo Maia Ottoni a seus netos Mizael e Christiano, que residiam em Paris, apresentam um panorama do português – padrão e não-padrão – no Rio de Janeiro no século XIX. Com o objetivo de identificar a produtividade de cada uma das duas estratégias no final do século XIX, a isto aliando a conjectura de Labov (1990) acerca do comportamento inovador das mulheres frente à mudança linguística, as autoras observaram a variação “tu”/“você” e o processo de concordância dessas formas com outras formas pronominais de 2ª pessoa e de 3ª pessoa nas cartas dos Ottoni. Em relação ao comportamento das mulheres, a hipótese era a de que essas usassem mais a forma inovadora “você”. Um dos importantes quadros retificados pelas autoras responde ao fato de que as repercussões gramaticais causadas pela inserção do pronome “você” no PB atingiu diferentes contextos sintáticos. Por ter origem em uma base nominal que leva o verbo para a terceira pessoa do singular, o emprego de “você” acarretou modificações, como, por exemplo, um rearranjo no sistema pronominal, com a fusão dos paradigmas de P2 e de P3 e com a eliminação do paradigma de P5. No que se refere, especificamente, à mudança categorial de nome para pronome da forma “você”, as autoras assumem o que defende Lopes (1999, 2003) ao estudar a implementação da forma nominal “a gente” no PB: não se perderam todos os traços formais nominais de “você”, assim como não foram assumidos também todos os traços intrínsecos aos pronomes pessoais. Essa hipótese aventada pelas autoras condiz com dois princípios de gramaticalização discutidos por Hopper (1991, apud LOPES e MACHADO, 2005): o princípio da persistência e o da decategorização. O primeiro princípio determina que nos processos de gramaticalização alguns traços do significado original aderem à nova forma gramaticalizada e detalhes da 4

Esse trabalho é retomado no volume VI dos Anais do Projeto nacional para a História do Português Brasileiro (PHPB): Lopes; Machado; Pagotto; Duarte; Callou; Oliveira, Joseane; Martelotta (2006).

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história lexical do item podem se refletir em tais formas durante estágios intermediários. Segundo as autoras, no caso de “você”, talvez haja mais resquícios formais do que semânticos na forma pronominal. Esse pronome mantém traços do significado original, como, por exemplo, a concordância com verbos na terceira pessoa, do singular e a impessoalidade da terceira pessoa, que fica evidenciada na expansão do emprego do pronome em contextos de referência indeterminada. O segundo princípio refere-se à neutralização das marcas morfológicas e propriedades sintáticas da categoria-origem (no caso do “você” - nome ou sintagma nominal) e adoção de atributos da categoria-destino (forma pronominal). Em relação aos usos de “tu” e “você” nas cartas dos avós Ottoni, Lopes e Machado (2005) chegam aos seguintes resultados: (1) Há preferência pelo pronome “tu” na maior parte do córpus analisado pelas autoras, principalmente nas cartas do avô; (2) O missivista Christiano prefere o “tu” combinando com formas de P2 (te/teu/tua) e o “vocês” na função de sujeito; (3) Já a avó Bárbara deixa evidenciar um maior nível de desprendimento em relação aos preceitos gramaticais, ao apresentar maior variação na combinação entre “tu” e “você” com formas de P2 e de P3. As autoras defendem que a significativa presença do “você” nas cartas de Bárbara não estaria só relacionada a uma assimetria de tratamento de superior para inferior; mas, se trataria de “um uso mais generalizado do que um pronome de poder ou de solidariedade” (2005, p.53), visto que tal forma, cada vez mais, coocorre nos espaços funcionais típicos de “tu”. Em relação às cartas de Christiano, as pesquisadoras supõem que os baixos índices de frequência de “você” possam ser uma estratégia que estivesse emergindo em contextos restritos, discursivamente motivados. O contrário é detectado nas cartas da avó Bárbara, pois não se percebe uma motivação discursiva aparente, mas a generalização de “você” como forma de 2ª pessoa. Ainda nas palavras das autoras, o comportamento diferenciado com relação ao gênero – masculino/feminino – parece referendar mais uma vez a hipótese laboviana sobre o inovadorismo feminino na maioria dos fenômenos de mudança com o uso de formas “não-padrão”.

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Uma das importantes conclusões a que Lopes e Machado chegam é a de que é possível encontrar na escrita de brasileiros cultos, já no final do século XIX, o uso de “você” com formas de “tu”, o que configura a presença, já nos textos desse período, de uma “mistura de tratamento”. A confirmação da hipótese de que as mulheres lideram no processo de mudança na implementação do inovador “você”, na história do PB, dá-se também com o trabalho de Rumeu (2008). Em seu trabalho de doutoramento, a autora analisa 30 cartas íntimas da família Pedreira FerrazMagalhães trocadas entre pai e filhos, mãe e filhos, avô e netos, netos e avô e entre irmãos, em que o universo discursivo, na maioria das vezes, versa sobre questões pessoais. Ela divide o córpus em três períodos de tempo, com um intervalo de 20-25 anos cada um – de 1877 a 1897; de 1898 a 1923; e de 1924 a 1948 –, e investiga a variação entre as formas de referência à segunda pessoa do discurso “tu” e “você” nas cartas. Assim como nos trabalhos anteriores de pesquisadores do grupo do Rio de Janeiro do Projeto temático para a história do Português Brasileiro (PHPB), Rumeu retifica que a inserção do “você”, no quadro pronominal do PB, não se deu da mesma forma em todos os contextos morfossintáticos. Para a autora, pronomes sujeitos, pronomes complementos preposicionados e formas verbais imperativas representam contextos implementadores de formas relacionadas a “você”, enquanto pronomes possessivos, pronomes complementos não preposicionados e formas verbais não-imperativas se mostram como contextos de resistência do “tu”. Considera que o fato de “você” ter advindo de uma forma nominal (Vossa Mercê) mas fazer referência à segunda pessoa do discurso impulsionou novos arranjos no sistema pronominal. Novas possibilidades combinatórias de “você” com te~lhe, “você” com teu~seu, tua~sua é, nesse sentido, um sinal de pronominalização dessa forma inovadora no PB. Observa-se nesse pronome um caráter híbrido concernente à especificação semântico-discursiva, haja vista referirse à segunda pessoa do discurso (traços de propriedade pronominal) ainda que estabeleça concordância com P3 (manutenção do traço original) (cf. LOPES e RUMEU, 2007).

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Um outro arranjo no quadro pronominal ocasionado pela inserção do “você” foi a passagem do pronome possessivo seu, que era de terceira pessoa, para o paradigma de segunda pessoa. Essa migração levou a forma genitiva “dele” (de + ele) a se constituir como um possessivo de terceira pessoa, a fim de evitar a ambiguidade do possessivo, pois o pronome “seu” pode identificar tanto a segunda quanto a terceira pessoa do discurso, desta forma concorrendo com os pronomes “teu/tua”. Rumeu verifica, com a análise, que a famigerada “mistura de tratamento”, contestada pelas Gramáticas Tradicionais, já é evidente nas cartas pessoais da família Pedreira Ferraz- Magalhães do final do século XIX e início do XX. As formas de “tu” mostram-se preferencialmente combinadas com as formas de P2, com índices de 90% nos dados. Todavia, tais formas aparecem, mesmo que timidamente, combinadas com as formas de P3, em 20% nos dados nas cartas do período em questão. Ainda referente à mistura de tratamento, a pesquisadora encontra um dado interessante de autocorreção. O missivista Pe. Jerônimo Pedreira, ao escrever para seu irmão Fernando, emprega uma forma verbal imperativa de “tu” precedida de “você”: (1)

[...] agradecendo tudo que fez por você, (...) Sêja bem grato [...]. (Carta de Jerônimo Pedreira ao irmão Fernando) (RUMEU, 2008, p. 129)

O missivista hesita entre as formas verbais imperativas de “você” – Seja bem grato – e de “tu” – Sê bem grato – e, embalado nessa hesitação, chega a rasurar a sua carta, optando pela forma de “tu”, o que mostra a mescla de tratamento e a provável integração da forma “você” no sistema pronominal do PB ainda no final do século XIX. Lopes e Marcotulio (2011) apresentam a descrição e a análise da variação “tu”/“você” em um córpus composto por 18 cartas, escritas a Rui Barbosa, no período de 1866 a 1899. Os pesquisadores buscam identificar as origens da variação entre as formas de referência à segunda pessoa do singular, além de averiguar se houve a criação de um paradigma pronominal supletivo no PB. Com esse objetivo, foram considerados os seguintes contextos: (i) como realização de P2 – “tu” (sujeito), “te” (objeto

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direto), “contigo” (complemento), “teu/tua” (pronomes possessivos) e as desinências verbais de segunda pessoa do singular no imperativo ou não; (ii) “você” e variantes rotulados como P3 – “você” (pronome pessoal sujeito), “você”/“lhe”/“o” (objeto), “com você” (complemento), “seu/sua” (pronome possessivo) e as desinências verbais correspondentes imperativas ou não. Na análise, foram identificados 322 dados, dentre os quais 69 ocorrências (21%) são formas de “você” e 253 ocorrências (79%) são formas de “tu”. Dois grupos de fatores foram controlados: as formas precedentes na carta (sequência discursiva) e o grupo categoria gramatical/ função sintática. O emprego de “você” se mostrou mais produtivo, com 87 ocorrências (55%), quando realizado na função de P3 precedido de outra forma de P3. O mesmo foi observado com o pronome “tu”, com 85% das ocorrências. Ainda em relação às cartas a Rui Barbosa, os autores concluem que os contextos mais frequentes para a realização do “você” são: pronomesujeito (84%, PR. 0.97), imperativo (69%, PR.92) e pronome complemento preposicionado (16%, PR.60). Corroborando os resultados de estudos anteriores, eles defendem que os resultados encontrados nas cartas a Rui Barbosa parecem indicar vestígios de reestruturação do sistema pronominal do PB. Os resultados dessa análise reforçam que reflexos da variação “tu” e “você” são identificados em cartas escritas por brasileiros no século XIX, mesmo que de forma tímida. Contudo, a forma inovadora “você” ainda mantém traços formais e discursivos que remetem a uma maior formalidade e distanciamento em relação ao “tu” íntimo, que não se perderá completamente no século XX. Analisando 13 bilhetes amorosos produzidos no Rio de Janeiro no início do século XX – 1908, Lopes, Marcotulio e Rumeu (2011) apresentem um quadro bastante semelhante. Os bilhetes foram escritos por Robertina de Souza (apelidada de Chininha) e estavam anexados a um processo judicial que investigava o assassinato do amante da referida senhora, senhor Álvaro da Silva Mattos. Robertina escrevera ao seu amante e ao seu companheiro Arthur, de modo que a distribuição do uso de “tu” e “você” é bastante reveladora: quando o bilhete era dirigido ao amante, Robertina fazia mais uso do “tu” e quando era dirigido ao seu companheiro, Arthur, as formas

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pronominais associadas ao inovador “você” eram mais utilizadas. Tal distribuição mostra uma postura mais intimista e de maior proximidade comunicativa da informante ao escrever para o seu amante, senhor Álvaro, o que reforça o caráter mais íntimo do “tu”, como estudos têm mostrado: quanto maior o grau de informalidade maior as chances de ocorrência do “tu”. De um modo geral, os autores atestam nos bilhetes amorosos do início do século XX o mesmo quadro descrito em estudos anteriores em relação à implementação do “você” no PB: (1) há expressivas ocorrências de mescla de tratamento; (2) pronomes complementos não-preposicionados (“te”), verbos no imperativo indicativo e formas verbais não-imperativas são contextos de resistência do inovador “você”; (3) “você” está associado a um sistema com sujeito preferencialmente preenchido e a formas pronominais complementos preposicionadas. Tendo em vista esse retrato do processo de implementação do “você” na história do PB no final do século XIX e início do XX, apresentamos, na próxima seção, um quadro da variação entre as formas de “tu” e de “você” em cartas pessoais escritas no Rio Grande do Norte, nas décadas inicias do século XX.

2. Notícias de “você” nas cartas norte-riograndenses dos irmãos Paiva da primeira metade do século XX Conforme já dito, analisamos 65 cartas pessoais trocadas, entre 1916 e 1924, pelos dois irmãos da família Paiva, nascidos no Rio Grande do Norte, no final do século XIX. No total, foram encontradas 203 ocorrências de formas pronominais e verbais associadas a “tu” e “você”, distribuídas nos seguintes contextos morfossintáticos: pronome sujeito, pronomes possessivos, pronomes complementos preposicionados e não preposicionados, formas verbais imperativas e não-imperativas. A tabela 1, a seguir, apresenta essa distribuição e o percentual de uso das formas associadas ao pronome “você” nos diferentes contextos.

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TABELA 1: distribuição e frequência das formas de “você” em cartas norte-riograndenses do século XX. Contexto sintático Pronomes sujeitos Pronomes Possessivos Pronomes complementos não-preposicionados Pronomes complementos preposicionados (a/para/ com você~vocês) Formas verbais imperativas Formas verbais não-imperativas Total

Apl/Total 7/7 100% 85/85 100% 45/45 100% 15/15 100% 10/12 83% 37/39 95% 203

Como se pode observar, os missivistas norte-riograndenses, no início do século XX, fazem uso, quase categórico, das formas associadas ao inovador “você”, motivo pelo qual não faremos referência, nesta análise, ao peso relativo. Em relação às construções com preenchimento do sujeito pronominal, na amostra analisada, encontramos apenas sete ocorrências com o pronome lexicalizado, sendo todas com a forma inovadora “você”, como ilustram os dados em (2) e (3). (2)

Monte Alegre, 1º de Abril de 1921 || Theodosio || Estava nos [inint.] quando chegou uns | remédios que você mandou para Aninha, que logo | estava a fazer uzo delles, mas até ante-hontem | quaze que não apresentava melhora, sempre | deitando sangue pela rotura das veia, mas em pequena quantidade, porque tambem ella | não se deita [inint.] mesmo para dormir, a [inint.] fas | mesmo assustada na cama, porque baixando a | cabeça o sangue vem com excesso. (Carta 40 – de Theodósio para João de Paiva, 1/4/1921).

(3)

Monte Alegre, 11 de agosto de 1922 || Theodosio || Como vai você do seu estomago? Ja melhorou delle? (Carta 50 – de Theodósio para João de Paiva, 11/8/1922).

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O quadro já descrito sobre a implementação de “você” na escrita brasileira do final do século XIX e início do XX mostra que esse seria um ambiente favorecedor do uso da forma inovadora na gramática do PB (LOPES e MACHADO, 2005; RUMEU, 2008). De acordo com esses estudos, o “você” está associado a uma gramática cujo sujeito pronominal tende a aparecer preenchido, enquanto o “tu” ainda é mais produtivo em contextos com sujeito nulo. De um modo geral, tal quadro se deixa também transparecer nas cartas norte-riograndenses. No entanto, nas cartas dos irmãos Paiva, “você” sujeito associado a formas verbais nulas – imperativas ou não – é ainda assim significativamente produtivo: 10 de 12 ocorrências (83%) de “você” nulo com formas verbais imperativas e 37 de 39 (95%) com formas verbais não imperativas, conforme exemplos (4)-(7). (4)

(5)

[...] Nestes restos de dinheiro desconto o que me | Ø mandou ultimamente do seu e do [inint.] do dinheiro. || (Carta 65 – de João de Paiva para Theodósio, 28/10/1918). | [...] Certo do que me Ø dis sobre o mercado de algodão | cujo artigo, parece, vai melhorando em Pernambu- | co, conforme os jornães de lá, de 23 e 24 deste. || (Carta 65 – de João de Paiva para Theodósio, 28/10/1918).

(6)

[...] Espero terminar com o conserto da caldeira | na próxima semana, e entrarei logo um desça- | roçamento pois está entrando e vai a melhorar, | tanto que precisa vender mais vinte carro de | algodão para botar na semana seguinte, e por con- | ta della presizo logo 3: [inint.] que a ser possi- | vel Ø mande pelo companheiro Alfredo Henrique, se conseguir | com Faselli, dita quantia. || (Carta 33 – de João de Paiva para Theodósio, 15/10/1919).

(7)

[...] Ø veja se Tonho consegui vender na fabrica | 50 fardos de algodão, aumenos a 40 [inint.] e se for | possivel me avize amanhã o resultado, para | firmar aqui um negocio dependente deste. || (Carta 28 – de Theodósio para João de Paiva, 10/3/1919).

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Justamente em contextos com sujeito não-preenchido, com formas verbais imperativas ou não, encontramos quatro ocorrências com o conservador “tu”: (8)

Natal, 3 de outubro de 1918|| João|| Pelo compadre Horacir me foi entregue| a sua carta de hontem datada, a qual respondo.|| Temos [inint.] para guardar os 60 far|dos de lã que se [inint.], portan|to Ø manda os referidos fardos para aguar| dar em [inint.] aqui que será melhor.|| (Carta 23 – de Theodósio para João de Paiva, 3/10/1918).

(9)

Natal, 29 de outubro de 1918||João [...] Ø manda-me sem falta amanhã até| aqui o nosso compadre Horacir| para acompanhar a menina Luiza|que não quer continuar, a[inint.] [inint.] pequeno baú de| bagagem. (Carta 25 – de Theodósio para João de Paiva, 29/10/1918).

(10) Natal, 24 de setembro de 1918.|| João [...] Depois d’amanhã (5ª feira), Tonho pretende remetter-lhe 500 sacos p[o]r| Caroço e as esteiras suvidas que| Ø podes obter da fabrica.|| Recebemos as 2 caixas de fructos que| nos remetteram, em agradecimento.|| Continuamos bem e nos recommendamos a si.|| (Carta 19 – de Theodósio para João de Paiva, 24/9/1918). (11) Monte Alegre, 4 de Outubro de 1918 || Theodosio || Pelo compadre Horacio me foi entregue sua | carta de hontem datada, bem como 15:017 [?] 400 réis | de que foi postada, conforme seu aviso na cita- | da carta, como Ø tinhas [?]. || (Carta 64 – de João de Paiva para Theodósio, 4/10/1918). Observe-se que nas cartas norte-riograndenses, aqui analisadas, não parece haver diferença entre o uso de “tu” com formas verbais nulas imperativas e não-imperativas. Proporcionalmente, há mais formas de “tu” com formas verbais nulas imperativas (2 de 12) do que com formas verbais nulas não-imperativas (2 de 39). Como já dito, têm-se mostrado que, no processo de implementação do “você” no PB, as formas não-imperativas

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são contextos de resistência do pronome “tu”, enquanto que as imperativas são ambientes favorecedores do inovador “você”. Essa diferença não parece ser, no entanto, significativa nas cartas dos irmãos Paiva. Salientamos, todavia, que não realizamos uma análise com PR. e são poucos os dados para uma análise mais detalhada da influência do modo verbal no uso de uma ou outra variante em contexto de sujeito nulo. É importante referir que no estudo de Lopes, Rumeu e Marcotulio (2011), há bilhetes amorosos do século XX, tal diferença também não se mostrou relevante e tanto as formas verbais imperativas como as formas verbais não-imperativas foram apontadas como contextos favorecedores para a aplicação da regra de uso de “tu”, com PR. de .59 e de .56, respectivamente. Bastante interessante é o fato de que, já nas duas primeiras décadas do século XX no Rio Grande do Norte, mesmo em contextos de resistência das formas de “tu”, nas cartas dos irmãos Paiva, encontramos apenas formas associadas ao inovador “você”: com pronomes possessivos (“seu/ sua”) e com complementos não-preposicionados (“lhe/você”), conforme, respectivamente, dados em (12)/(13) e (14). (12) Monte Alegre, 2 de Julho de 1919 || Theodóosio || [...] Ainda más mandei os 8 sacos de caroço de | seu pedido, aguardando para tirar de um algodão, que | por atropello ainda não tive tempo de descaro- | çar. || (Carta 29 – de Theodósio para João de Paiva, 2/7/1919). (13) Monte Alegre, 21 de Julho de 1919 || Theodósio || Estou respondendo sua carta de hom- | tem datada, de cujos dizeres fico inteirado. || (Carta 30 – de Theodósio para João de Paiva, 21/7/1919). (14) Monte Alegre, 6 de Junho de 1917 || Theodósio || Não recebemos mais gado de João dos Santos, a | não ser as das partidas de que ja lhe forneci | as listas. || (Carta 8 – de Theodósio para João de Paiva, 6/6/1917).

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No que se refere aos pronomes complemento preposicionados, encontramos 12 ocorrências da forma “a(s) você(s)”, duas ocorrências de “para você” e uma de “com você, conforme dados da amostra a seguir. (15) Monte Alegre, 30 de setembro de 1918|| Theodósio|| tive sua carta hontem, pelo compr.| Horacir, e quatro contos de reis e tambem 500 cigarros,| obrigado.|| Não foi fora de proposito o alvitre delle| levando o algodão para ahi, muito teria cido muito enve|niente vendel-o mesmo em [ilegível] a 59:000$ existindo assim atropelho a mim e (a) V.|| (Carta 21 – de Theodósio para João de Paiva, 30/9/1918). (16) Monte Alegre, 1º de Abril de 1921 || Theodósio || [...] Minhas saudades a vocês. || Irmão e amigo João de Paiva. (Carta 40 – de Theodósio para João de Paiva, 1/4/1921). (17) Monte Alegre, 1º de Abril de 1921 || Theodósio || [...] Minhas saudades a vocês. || Irmão e amigo João de Paiva. (Carta 40 – de Theodósio para João de Paiva, 1/4/1921). (18) Monte Alegre, 20 de Junho de 1921 || Theodósio || Desde sábado que tenho estado duen- | te de um forte refluxo, hontem passei o dia | cahido, mas ja hoje amanheci melhor felis- | mente, assim suponho não poder ir passar | o São João com vocêis, como desejava, e ao mesmo | tempo temendo deixar o armazem só, cheio | de lã como está agora, dexando ai muitos | fuguentes de São João, irei por isso outro qualquer dia. || (Carta 42 – de Theodósio para João de Paiva, 20/6/1921). (19) Monte Alegre, 17-2-923 || Theodósio || Vai tambem 3 caixões de | mangas para voceis. || (Carta 52 – de Theodósio para João de Paiva, 17/2/1923). É importante observar que a grande maioria das formas de você com complemento preposicionado formado por ‘a+ você(s)’ está associada à expressão “saudades a você/vocês”, o que nos leva a aventar a hipótese

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de que a recorrência dessa construção na amostra esteja relacionada a uma expressão cristalizada. Sobre a relação entre a distribuição das formas associadas aos pronomes “tu” e “você” nas cartas e fatores extralinguísticos, é interessante observar o perfil social dos irmãos Paiva, a fim de investigar se há alguma influência deste na escrita dos missivistas. Theodósio Paiva, que morava na capital Natal, detinha uma boa condição financeira e ocupava um cargo importante na esfera política do estado, tendo um elevado status social, diferentemente do seu irmão, João, que apenas administrava os negócios e os bens de Theodósio, na cidade de Monte Alegre/RN e redondezas. Observando separadamente os informantes, percebe-se que Theodósio apresenta um perfil aparentemente mais conservador em relação ao uso de formas associadas ao “tu” e ao “você”: apesar de o número de cartas por ele escritas ser reduzido (seis cartas apenas, no total das 65 analisadas), das quatro ocorrências de formas associadas ao pronome “tu” (em formas verbais nulas), três foram encontradas nas cartas de sua autoria. Das 61 cartas escritas por João de Paiva, encontramos apenas uma ocorrência de “tu”. Diante dessa distribuição, aventamos a hipótese de que Theodósio de Paiva, provavelmente, tinha um maior monitoramento dos padrões de escrita da época, ao escolher as formas de referência ao seu interlocutor. Os resultados encontrados com a análise das cartas dos irmãos Paiva mostram que os missivistas norte-riograndenses fazem uso, majoritariamente, das formas inovadoras relacionadas a “você”. Isso parece corroborar o que é atestado por Lopes e Machado (2005), uma vez que no PB a forma “você” suplanta o uso de “tu”, a partir do século XX.

CONCLUSÕES Neste trabalho, nos propomos a dar as primeiras notícias de uma mudança em curso no PB, tendo em vista a escrita norte-riograndense do início do século XX. Dos objetivos elencados na introdução, podemos afirmar que no conjunto de cartas pessoais aqui analisadas, os irmãos Paiva fazem uso, majoritariamente, das formas pronominais e morfossintáticas relacionadas ao inovador “você”. Ressaltamos, todavia, que essa análise

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tem um caráter preliminar, e que para o estudo da implementação desse pronome na gramática do PB, refletida na escrita norte-riograndense, mais cartas, incluindo outros informantes, devem ser consideradas. Em relação aos contextos de resistência do pronome “tu”, o uso quase categórico das formas de “você” não nos permite dizer quase nada. Acrescentamos apenas que na amostra em questão, assim como naquela analisada por Lopes, Rumeu e Marcotulio (2011), as formas verbais imperativas e nãoimperativas parecem não condicionar o uso de “você”, apresentando-se como contextos de resistência das formas de “tu”. REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS COELHO, I. L.; GORSKÏ, E. M. A variação no uso dos pronomes tu e você em Santa Catarina. In: COUTO, L. R.; LOPES, C. R. dos S. (orgs.). As formas de tratamento em português e em espanhol variação, mudança e funções conversacionais. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense (UFF), 2011. p. 263-287. LOPES, C. R. dos S.; RUMEU, M. C de B.; MARCOTULIO, L. L. O tratamento em bilhetes amorosos no início do século XX: do condicionamento estrutural ao sociopragmático. In: COUTO, L. R.; LOPES, C. R. dos S. (Orgs.). As formas de tratamento em português e em espanhol – variação, mudança e funções conversacionais. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense (UFF), 2011. p. 315-348. LOPES, C, R. S.; RUMEU, M. C. B. O quadro dos pronomes pessoais do português: as mudanças na especificação dos traços intrínsecos. In: In: CASTILHO, A.; TORRES MORAIS, M. A.; LOPES, R.; CYRINO, S. (Org.). Descrição, história e aquisição do Português Brasileiro. Campinas: Pontes, 2007. p. 419-435. LOPES, C. R. S.; MACHADO, A. C.; PAGOTTO, E.; DUARTE, E.; CALLOU, D.; OLIVEIRA, J.; ELEUTÉRIO, S.; MARTELOTTA, M. A configuração da norma brasileira no século XIX: análise das cartas pessoais dos avós Ottoni. In: Tânia Lobo, Ilza Ribeiro, Zenaide Carneiro e Norma Almeida (orgs.). Para a História do Português Brasileiro. Vol. VI – Novos dados, novas análises, Tomo II. Salvador: EDUFBA, 2006. p. 781-815.

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ASPECTOS DE COMPORTAMENTO SOCIOLINGUÍSTICO ENTRE AS TRÊS CAPITAIS DA REGIÃO SUL: ESPECIFICIDADES E GENERALIZAÇÕES ASPECTS OF SOCIOLINGUISTIC BEHAVIOR IN THE THREE CAPITAL CITIES OF THE SOUTH REGION OF BRAZIL: SPECIFICITIES AND GENERALIZATIONS Edair Maria Görski Universidade Federal de Santa Catarina Izete Lehmkuhl Coelho Universidade Federal de Santa Catarina/CNPq

RESUMO O propósito deste trabalho é discutir aspectos de comportamento sociolinguístico das três capitais da Região Sul (Curitiba, Porto Alegre e Florianópolis), buscando evidenciar especificidades e generalizações linguísticas. Examinamos em que medida efeitos de contexto que se mostram condicionadores de fenômenos como monotongação de ditongos decrescentes, alternância de pronomes de segunda pessoa do singular e variação na ordem do sujeito atuam em uma mesma direção (ou em direções opostas) nas diferentes capitais, e que fatores seriam responsáveis pelas especificidades e generalizações no comportamento linguístico da Região Sul. Palavras-chave: especificidades; generalizações; Região Sul. ABSTRACT This work aims to discuss some aspects of sociolinguistic behavior in the three capital cities of the states of the South Region of Brazil (Curitiba, Porto Alegre and Florianópolis), in order to highlight linguistic specificities and generalizations. We examine to what extent contextual effects that regulate some phenomena such as monophthongization of descending diphthongs, alternation of second person singular pronouns and variation in subject order operate in the same direction (or in opposing directions) in those three cities. We also investigate what factors might be responsible for the specificities and generalizations in the linguistic behavior of Southern Brazil. Keywords: generalizations; specificities; South Region.

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INTRODUÇÃO Este trabalho tem como propósito discutir aspectos de comportamento sociolinguístico da Região Sul, notadamente entre as três capitais – Curitiba, Porto Alegre e Florianópolis –, com foco em diferenças e semelhanças, buscando evidenciar especificidades e generalizações linguísticas.1 Para levar a cabo esse objetivo, examinamos alguns resultados de trabalhos descritivos de variação fonológica, morfossintática e sintática: a monotongação de ditongos decrescentes, a alternância de pronomes de segunda pessoa do singular (tu/você; teu/seu) e a variação na ordem do sujeito: sujeito-verbo (SV) / verbo-sujeito (VS), respectivamente, realizados a partir de amostras de fala da Região Sul (dados do Projeto VARSUL).2 Averiguamos (i) em que medida efeitos de contexto que se mostram condicionadores dos fenômenos descritos atuam na mesma direção nas diferentes capitais; e (ii) caso haja diferenças, que fatores seriam responsáveis pelas especificidades no comportamento linguístico da Região Sul. Do ponto de vista metodológico, gostaríamos de salientar a importância não só de buscar descrever padrões gerais de variação sociolinguística, mas também de procurar identificar se esses padrões gerais se mantêm idênticos nos subgrupos que compõem a região mais ampla. Em outras palavras: ao se analisar amostras robustas que abrangem um escopo geográfico amplo (por exemplo, Região Sul), é importante averiguar se os resultados gerais seguem a mesma direção em cada subamostra analisada (por exemplo, as capitais). Esse procedimento metodológico fornece ao pesquisador resultados mais apurados acerca das variáveis linguísticas em estudo, autorizando-o, ou não, a fazer generalizações de âmbito regional. Feita essa breve introdução, passamos à organização do trabalho. Na primeira seção, será apresentada uma breve discussão teórica sobre comunidade de fala, com base em Guy (2000; 2001), seguida das questões e hipóteses que conduzirão este estudo. Resultados comparativos para as três capitais em relação às variáveis linguísticas escolhidas para controle serão mostrados na segunda seção, acompanhados de reflexões sobre o 1

2

Este trabalho retoma, sob outra perspectiva, parte da discussão de Görski na mesa-redonda “Os estudos de variação: balanço crítico e panorama atual”, no 59º Seminário do GEL, Bauru/SP, julho de 2011 – texto a ser publicado na Revista Estudos Linguísticos, nº 41. Agradecemos a leitura atenta e as sugestões feitas por Christiane Maria Nunes de Souza e pelos editores da Revista. Informações sobre o Projeto VARSUL podem ser obtidas no site: http://www.varsul.org.br/.

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comportamento sociolinguístico dos fenômenos analisados. Por fim, na terceira seção, sistematizaremos os resultados da discussão aqui proposta. 1. Ponto de partida Para abrir a discussão sobre o comportamento sociolinguístico no que se refere a efeitos de contexto e da frequência de uso de fenômenos variáveis na Região Sul, partimos das reflexões de Guy (2000; 2001) sobre comunidade de fala, a qual fornece “uma base fundamentada para explicar a distribuição social de semelhanças e diferenças linguísticas” (GUY, 2000, p. 18). Essa base, vista como um modelo explicativo, deve apresentar (i) características linguísticas compartilhadas; (ii) densidade de comunicação interna relativamente alta; e (iii) normas compartilhadas. O compartilhamento de características linguísticas em uma comunidade de fala, segundo o autor, inclui as restrições de processos de variação. Semelhanças e diferenças linguísticas podem ser observadas nos efeitos de contexto (expressos em percentuais e, principalmente, em pesos relativos) de variáveis independentes sobre o fenômeno em variação. Quando as variáveis apresentam efeitos diferentes, particulares, entre duas ou mais localidades, mostram em geral coerência entre um grupo de falantes. As restrições compartilhadas identificam, contrastivamente, os membros de uma comunidade de fala e de outra. Para o autor, o que explica os traços linguísticos compartilhados são as outras duas características definidoras de comunidade de fala: a alta densidade de comunicação e as normas compartilhadas. No primeiro caso, os falantes têm mais acesso e exposição aos usos linguísticos de outros membros do grupo: “fala-se como as pessoas COM as quais se fala” (2000, p. 20). No segundo caso, os membros de uma comunidade compartilham normas e atitudes sobre o uso da língua, como por exemplo, normas sobre o que seria mais ou menos apropriado a contextos formais ou a contextos informais. Além dos efeitos particulares, muitas restrições apresentam efeitos bem gerais, ou mesmo universais. A título de ilustração, o autor considera o padrão silábico das línguas neolatinas. Sabe-se que esse padrão é preferencialmente marcado por sequências CV a sequências CC, o que implica dizer que o apagamento de determinada consoante de final de palavra

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é favorecido quando for seguido por consoante e não favorecido quando for seguido por vogal, de modo a manter o padrão silábico. Essa generalização é atestada no português, em trabalhos que tratam do apagamento do /r/ pós-vocálico (cf. MONARETTO, 2000), por exemplo. Como essa restrição seria devida a universais estruturais, não deveriam existir diferenças entre as comunidades de fala no que se refere a esse fenômeno específico. Guy (2001) propõe que os limites entre uma comunidade de fala e outra devem ser vistos em termos de diferenças gramaticais e não, simplesmente, em termos de diferenças na frequência de uso de determinada variável. Nesse sentido, é possível distinguir entre: 1) diferenças de frequência em diferentes comunidades de fala, sendo que o efeito de contexto permanece semelhante; e 2) diferenças em termos do efeito de contexto entre as comunidades, o que determinaria diferenças estruturais ao invés de diferenças simplesmente quantitativas (o que apontaria para diferentes gramáticas). Considerando as particularidades e as generalizações advindas dos resultados estatísticos, daria para supor, segundo Guy, que umas comunidades de fala estariam mais encaixadas ou interligadas que outras e que muitas outras estariam sobrepostas ou cruzadas. Não obstante a dificuldade em se operacionalizar o conceito de comunidade de fala, a proposta de Guy, acima descrita, parece adequada para guiar o nosso olhar sobre os resultados das pesquisas expostos e discutidos na seção seguinte, embora o foco de nosso interesse não recaia exatamente sobre a noção de comunidade de fala, e sim sobre padrões sociolinguísticos convergentes ou diferenciados na Região Sul do Brasil. Serão examinados alguns efeitos de condicionadores internos sobre três fenômenos variáveis, em diferentes níveis gramaticais, do português falado na Região: 1) monotongação de ditongos decrescentes – com base em resultados de Cabreira (2000), Brescancini (2009) e Haupt (2011); 2) alternância de pronomes de segunda pessoa do singular (tu/você; teu/seu) – a partir de resultados de Loregian (1996) e Loregian-Penkal (2004) para tu/você, e de Menon (1996) e Arduin (2005) para teu/seu; e 3) variação na ordem do sujeito (SV/VS) – considerando resultados de trabalhos de Coelho (2000), Zilles (2000) e Berlinck (1988), os quais analisam a fala das localidades de Florianópolis, Porto Alegre e Curitiba, respectivamente. Vale ressaltar que

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todos esses trabalhos se apoiam nos pressupostos teórico-metodológicos da Sociolinguística laboviana ou quantitativa (Cf. WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006 [1968] e LABOV, 2008 [1972]) e utilizam o pacote VARBRUL na análise estatística. Procuraremos orientar a discussão à luz das seguintes questões e hipóteses: (i)

(ii)

A Região Sul do Brasil, representada pelas capitais (Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre), compartilha um mesmo padrão sociolinguístico no que tange a cada um dos fenômenos linguísticos averiguados neste estudo? No caso de haver diferenças, como se explicariam as especificidades?

Com relação à questão (i), nossa expectativa é de que efeitos de contexto mostrarão mais diferenças do que similaridades entre as três localidades, no que se refere aos fenômenos linguísticos investigados, e que as generalizações estão atreladas principalmente à natureza do fenômeno: quanto mais fonético-fonológico o fenômeno variável, mais particularidades serão encontradas; quanto mais sintático, mais generalizações serão licenciadas. No que se refere à questão (ii), as especificidades devem estar atreladas a aspectos regionais e culturais concernentes à identidade.

2 Resultados comparativos entre as três capitais Consideramos, nesta seção, alguns resultados estatísticos sobre o efeito de variáveis internas e externas em cada um dos fenômenos observados, buscando semelhanças e diferenças, particularidades e generalizações. 2.1 A monotongação de ditongos decrescentes Para discutir esse fenômeno, tomamos como base o trabalho de Cabreira (2000) acerca da monotongação dos ditongos orais decrescentes [ay], [ey] e [ow] na Região Sul, em que foram analisados 12 informantes por capital. Adicionalmente, comentamos os trabalhos de Brescancini

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(2009) e de Haupt (2011), realizados com amostra de Florianópolis/SC. Cabreira, num exame preliminar dos dados, constata que: (i) o ditongo [ay] só é monotongado diante de fricativa palato-alvelolar (como em caixa); (ii) o ditongo [ey], apenas antes de fricativa palato-alveolar e de flap (como em peixe e dinheiro); e (iii) o ditongo [ow] não apresenta restrição contextual linguística. Assim sendo, o autor realiza três análises, de acordo com os contextos linguísticos apontados acima para cada ditongo. Como a variável geográfica só foi estatisticamente significativa para os dois primeiros ditongos, deixamos de detalhar os resultados para [ow], nos centrando nos ditongos [ay] e [ey].3 A tabela 1 exibe os resultados percentuais e em pesos relativos para a variável geográfica em relação aos dois contextos específicos analisados pelo autor. TABELA 1: Monotongação dos ditongos [ay] e [ey] nas três capitais da Região Sul (Adaptada de CABREIRA, 2000, p. 147-148.) Contextos linguísticos [ey] + flap [ey] e [ay] + fricativa palato(dinheiro) alveolar (beijo, caixa)

Localidades

Percentual

PR

Percentual

PR

Florianópolis/SC Porto Alegre/RS Curitiba/PR

96% 99% 97%

0,32 0,35 0,79

48% 98% 94%

0,62 0,46 0,22

Região Sul

98%

66%

Focalizando os pesos relativos, observamos que Porto Alegre apresenta o comportamento mais aproximado em relação aos dois contextos linguísticos, com PR oscilando entre 0,35 e 0,46, abaixo do ponto neutro. Já Curitiba e Florianópolis apresentam uma distribuição quase complementar: enquanto na capital catarinense a monotongação é privilegiada nos ditongos [ey] e [ay] seguidos de fricativa palato-alveolar (0,62), sendo desfavorecida no ditongo [ey] seguido de flap (0,32), na capital paranaense a redução tende a ocorrer mais no ditongo [ey] seguido de flap (0,79), sendo inibida diante de fricativa (0,22). 3

Segundo Cabreira (2000), a monotongação de [ow] é a mais generalizada entre as cidades da Região Sul (com 96% de redução), e a mais avançada em todos os contextos linguísticos. A monotongação total de [ey] é de 32% e de [ay] é de apenas 4%.

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Observemos agora os resultados dos pesos relativos no gráfico 1 para uma melhor visualização. GRÁFICO 1: resultados estatísticos (PR) da monotongação de ditongos decrescentes, de acordo com o contexto linguístico seguinte, em amostras de fala da Região Sul (Adaptado de CABREIRA, 2000, p. 147-148.) Efeito do contexto seguinte sobre a monotongação do ditongo decrescente 1,00 0,80 0,60

Florianópolis

0,40

Porto Alegre

0,20

Curitiba

0,00 /ey/seguido de flap

/ay/ e /ey/seguido de palatoalveolar

O que podem apontar os resultados polarizados em relação aos diferentes contextos dos ditongos? Retomamos essa questão adiante. No quadro 1, podemos comparar os grupos de fatores que foram selecionados pelo programa computacional VARBRUL como estatisticamente relevantes para ambas as variáveis contextualmente delimitadas. QUADRO 1: grupos de fatores linguísticos e extralinguísticos estatisticamente significativos para a monotongação dos ditongos [ey] e [ay] na Região Sul (Organizado com base em CABREIRA, 2000, p. 147-148.) Fenômenos variáveis

Condicionadores significativos

(i) Monotongação de [ey] e [ay] seguidos por fricativa palato-alveolar (beijo, caixa)

Natureza morfológica: radical: feijão, paixão (e não o sufixo: móveis, vais) Sexo: feminino Escolaridade: primário Localidade: Florianópolis

(ii) Monotongação de [ey] seguido por flap (dinheiro)

Natureza morfológica: radical: feira (e não o sufixo: financeiro) Sexo: feminino Escolaridade: primário Localidade: Curitiba

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Como podemos perceber, os fatores condicionadores atuam na mesma direção em ambos os contextos tomados como duas variáveis, à exceção do fator ‘localidade’. É nesse fator que nos detemos a seguir, focalizando especialmente o contexto ‘ditongo seguido de fricativa palatoalveolar’ em Florianópolis. Trazemos à discussão, brevemente, resultados de trabalhos realizados com dados da capital catarinense, que podem auxiliar no entendimento do fenômeno em questão. Antes, porém, convém salientar que a monotongação, nos dados analisados por Cabreira, parece não ocorrer em sílabas fechadas por consoante (como em seis e mais). Em um estudo de Brescancini (2009) sobre a redução de ditongos decrescentes seguidos por fricativa em coda (contexto de sílaba fechada) em Florianópolis, a autora examinou uma amostra estendida do VARSUL, inserindo também informantes de dois distritos não urbanos – Ribeirão da Ilha e Barra da Lagoa, comunidades pesqueiras da Ilha –, considerando o fato de que o português falado em Florianópolis é reconhecidamente influenciado pela colonização açoriana e, em menor escala, madeirense, iniciada no século XVIII. A autora verificou que, das 875 ocorrências com ditongo decrescente levantadas, apenas 10 casos de redução se deram em contexto de coda alveolar ([sejs] ~ [ses]), enquanto 224 ocorreram em contexto de coda palato-alveolar ([sejS] ~ [seS]), com predomínio do item mais na amostra (426 ocorrências = 49% dos dados). Brescancini (2009) constata que (i) a redução é um processo condicionado lexicalmente, mas que ainda apresenta resíduos de condicionamento estrutural, principalmente da flexão verbal (vais ~ vá); (ii) na perspectiva da comunidade, trata-se de uma regra variável de aplicação relativamente baixa (27% de monotongação diante de fricativa); na perspectiva do indivíduo, porém, há uma situação de polarização entre os diferentes distritos – zona urbana de Florianópolis com maior variação intra-individual e Barra da Lagoa com menor variação intra-individual (o que, segunda autora, pode ser justificado como uma herança da colonização, mantida nos distritos mais distantes do centro urbano); (iii) a redução do ditongo decrescente diante de coda fricativa palato-alveolar perde força entre os mais jovens, principalmente os do sexo masculino; (iv) há, em Florianópolis, uma relação entre o fenômeno de redução de ditongo decrescente e o fenômeno de palatalização de /S/ em coda, o que se confirma pela preferência das mulheres à aplicação de ambas as regras.

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Outro resultado que gostaríamos de mencionar é o de Haupt (2011), que analisou, nas entrevistas de Florianópolis, todos os ditongos decrescentes com a semivogal [y]. Vamos nos ater aos ditongos [ey] e [ay], para os quais a autora encontrou, respectivamente, 43,3% e 25% de monotongação. A autora conduz sua análise separando os dados conforme o tipo de sílaba: aberta (como em peixe e caixa) e fechada (como em seis e mais). Nas ocorrências de monotongação, a análise de Haupt mostra, para o ditongo [ey], 44% de monotongação em sílabas abertas e 38% em sílabas fechadas; e para o ditongo [ay], apenas 11% de monotongação em sílabas abertas contra 41% de monotongação em sílabas fechadas. A autora salienta que esse resultado corrobora os obtidos por Brescancini (2009) para sílabas fechadas por fricativa, mas contraria o resultado encontrado por Cabreira (1996), “que afirma que a monotongação não ocorre nesse tipo de sílaba [fechada] por se tratar de um ditongo verdadeiro” (HAUPT, 2011, p. 107).4 Haupt verifica que os contextos em que há mais monotongação são aqueles em que há mais tendência de palatalização, ratificando uma das constatações de Brescancini (2009). Isso posto, o que podemos dizer acerca da monotongação dos ditongos [ey] e [ay] na Região Sul? Existem padrões de variação sociolinguística compartilhados entre os falantes dessa Região? Considerando os resultados da tabela 1 e do quadro 1, Cabreira (2000, p. 152) registra apenas que esses processos “devem estar ainda em andamento, em fases diferentes nas três cidades”, de forma distinta da monotongação de [ow], que se encontra em fase mais avançada, tendo já atingido um ponto de equilíbrio nas capitais. O autor não menciona, em seu trabalho aqui referido, se foram realizadas rodadas estatísticas específicas por capital, o que seria necessário para se poder avaliar se existem ou não padrões semelhantes nas comunidades, visto que a variável geográfica se mostrou significativa para a monotongação de [ey] e [ay] nos diferentes contextos, na rodada geral da Região Sul. Outras pesquisas realizadas com amostras de Florianópolis, contudo, podem lançar luzes sobre o comportamento diferenciado entre as capitais. Senão vejamos: para o fenômeno de monotongação de [ey] e [ay] seguidos por fricativa palato-alveolar, o resultado geral de Cabreira (2000), reunindo as 4

Haupt faz referência, nessa passagem, à dissertação de Cabreira, que serviu de base ao trabalho de 2000, por nós referido: A monotongação dos ditongos orais decrescentes em Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. Dissertação de Mestrado. PUC/RS, Porto Alegre, 1996.

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três capitais, aponta a natureza morfológica do contexto em que se encontra o ditongo – no caso, o radical – como fator linguístico condicionador da monotongação, e o sufixo como fator inibidor. Brescancini (2009), porém, verifica o oposto em amostras de Florianópolis (com a devida ressalva de que a autora só analisou dados com fricativa em coda), ou seja, o contexto estrutural favorecedor da monotongação é justamente a flexão verbal (a despeito do reduzido número de dados encontrados por ela nesse contexto). Isso aponta para o fato de que o padrão estrutural verificado em Florianópolis não acompanha aquele identificado por Cabreira. É sabido, por exemplo, que a palatalização da fricativa em coda silábica só ocorre em Florianópolis, como herança da colonização fortemente açoriana, aparecendo nas outras duas capitais. Ademais, a análise de Haupt (2011) aponta para a produtividade da monotongação de [ey] e [ay], especialmente o último, em sílabas fechadas na amostra de Florianópolis, contrastando significativamente com os resultados apresentados por Cabreira (2000). Por outro lado, especificidades não estruturais significativas, como os efeitos lexicais, foram identificadas por Brescancini (2009) nas amostras de Florianópolis, além de condicionadores sociais diferentes daqueles encontrados por Cabreira (2000) para a Região Sul. No caso das mulheres florianopolitanas, o peso relativo mais alto associado à monotongação em sílabas fechadas chega a 0,68 entre aquelas que têm nível universitário, o que aponta para ausência de avaliação negativa desse fenômeno. Em contrapartida, os resultados de Cabreira mostram, para a Região Sul, uma tendência de monotongação pelos informantes com nível de escolaridade primário, o que talvez indique um valor de menos prestígio para a monotongação que ocorre, basicamente, em sílabas abertas. Em resumo: podemos assegurar que (i) sem análises particularizadas por cidade não é possível afirmar com certa segurança se existem ou não padrões sociolinguísticos compartilhados entre os falantes da Região Sul; (ii) há indícios, a partir de análises específicas de amostras de uma das capitais, de que os padrões sociolinguísticos de Florianópolis destoam dos padrões gerais da Região Sul no que diz respeito à monotongação dos ditongos decrescentes [ey] e [ay], provavelmente em decorrência da formação sócio-histórica da Ilha. Com efeito, pronúncias monotongadas em sílabas fechadas (como [seS] para seis; [vaS] para vais) se constituem em

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marcas dialetais típicas do manezinho da ilha.5 2.2 A alternância de pronomes de segunda pessoa do singular A alternância dos pronomes tu/você implica dois fenômenos correlacionados: a forma de referência à segunda pessoa, envolvendo também o uso de possessivos, e a concordância verbal. Tomaremos, como base para discussão nesta seção, os trabalhos de Loregian (1996) e Loregian-Penkal (2004). Ao final, trataremos rapidamente do uso variável dos possessivos de segunda pessoa teu/seu a partir do estudo de Menon (1996) e de Arduin (2005). Loregian-Penkal (2004) analisa o uso dos pronomes tu e você e a concordância verbal com o pronome tu na fala de informantes do VARSUL de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Não foram encontradas ocorrências de tu nos 24 informantes de Curitiba, o que opõe Curitiba às demais capitais da Região Sul.6 A autora levanta dados em todas as cidades gaúchas e catarinenses do VARSUL (num total de oito cidades); para este trabalho, porém, vamos considerar apenas as capitais e o distrito do Ribeirão da Ilha, zona não urbana de Florianópolis (localidade também considerada por Brescancini (2009)). Uma primeira diferença significativa quanto aos fenômenos variáveis examinados diz respeito à utilização dos pronomes de segunda pessoa pelos informantes. O comportamento dos florianopolitanos e porto-alegrenses é muito parecido: em 24 entrevistas, apenas um entrevistado usa somente você em cada capital; 13 e 14 informantes usam somente tu; e 10 e 9 alternam os pronomes, respectivamente. Já a situação de Ribeirão da Ilha (uma das mais antigas e tradicionais comunidades da Ilha de Santa Catarina, localizada distante do centro de Florianópolis) é um pouco diferente: a proporção de entrevistados que usam somente tu praticamente dobra em relação aos que variam os pronomes.

5

6

Manezinho é termo que identifica os moradores nativos da Ilha de Santa Catarina (Florianópolis), de origem açoriana-madeirense. Existem poucas ocorrências de tu nas entrevistas do interior do Paraná (Pato Branco, Irati e Londrina) que compõem o projeto VARSUL. Para cerca de 2.500 ocorrências de você, há apenas 40 de tu, todas sem marca de concordância verbal (GODOY, 1999, apud LOREGIAN-PENKAL, 2004, p. 65).

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Passemos aos resultados. A tabela 2 exibe os resultados para as duas primeiras variáveis em discussão nesta seção. TABELA 2: uso de tu vs. você e concordância verbal com tu (Adaptada de LOREGIAN-PENKAL, 2004, p. 133; p. 167.) Localidades Florianópolis/SC Ribeirão da Ilha Porto Alegre/RS Região Sul (sem Curitiba)

Uso de tu vs. você Percentual

PR

76% 96% 93%

0,32 0,78 0,61

87%

Concordância verbal com o pronome tu Percentual PR 43% 60% 7%

0,857a 0,91 0,35

40%

Em relação à variável pronominal, observe-se que Florianópolis é a localidade em que se verifica mais alternância entre os pronomes (76% para tu e 24% para você), contrastando significativamente com Ribeirão da Ilha e Porto Alegre, onde o percentual de uso de você encontrado nas entrevistas é de 4% e 7%, respectivamente. Curiosamente, o distrito interiorano da Ilha aproxima-se mais da capital gaúcha do que da zona urbana da capital catarinense, quanto ao uso variável dos pronomes de P2. Já quanto à variável concordância, a situação se inverte e o Ribeirão exibe um comportamento mais próximo ao de Florianópolis, opondo-se, dessa forma, Santa Catarina ao Rio Grande do Sul. Note-se que o percentual de concordância verbal em Porto Alegre é baixíssimo (7%).7b Loregian-Penkal (2004) efetuou rodadas estatísticas por cidade ao estudar o comportamento dos indivíduos, incluindo apenas os informantes que fazem uso variável dos dois fenômenos estudados. O quadro 2 mostra os condicionadores linguísticos mais significativos em cada cidade.

7a

Os PR da concordância verbal foram retirados de uma rodada que inclui também outras cidades do interior do estado gaúcho (Flores da Cunha, Panambi e São Borja, todas com PR próximos ao de Porto Alegre), em que cada cidade correspondia a um fator da variável geográfica.

7b

Nas demais cidades do interior gaúcho que compõem o VARSUL o percentual de concordância é ainda mais baixo, oscilando entre 2% e 5%. Na cidade de Pelotas/RS, na amostra VarX, que inclui também universitários, Amaral (2003) encontrou 7% de concordância com o pronome tu.

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QUADRO 2: grupos de fatores linguísticos mais significativos para as variáveis de P2 em Florianópolis, Ribeirão da Ilha e Porto Alegre (Organizado a partir de LOREGIAN-PENKAL, 2004, p. 155-156; p. 196-197.)8 Uso de tu vs. você determinação do referente Florianópolis/SC (‘determinado’); explicitação do pronome (‘sem pronome’); gênero textual (‘argumentativo’).

determinação do referente Ribeirão da Ilha/ (‘determinado’); gênero SC textual (‘argumentativo’). Porto Alegre/RS gênero textual (‘argumentativo’); determinação do referente (‘determinado’).

Concordância verbal com tu explicitação do pronome (‘sem pronome’); tempo verbal (‘pretérito perfeito’); determinação do referente (‘determinado’); gênero textual (‘argumentativo’ e ‘explicativo’). explicitação do pronome (‘sem pronome’); tempo verbal (‘pretérito perfeito’); determinação do referente (‘determinado’); gênero textual (‘explicativo´ e ‘argumentativo’). paralelismo (‘casos mistos’ e ‘verbo isolado’); explicitação do pronome (‘sem pronome’).

Quanto à variável ‘tempo verbal’, nota-se que o fator ‘pretérito perfeito’ aparece como condicionador da concordância verbal com o pronome tu em Santa Catarina, tanto para Florianópolis como para o Ribeirão da Ilha. A respeito disso, vale a pena conferir a tabela 3. TABELA 3: distribuição das formas flexionais do pretérito perfeito associadas ao pronome tu (Adaptada de LOREGIAN, 1996, p. 87.) Localidades Florianópolis/SC Ribeirão da Ilha/SC Porto Alegre/RS 8

–ste 4%

–sse 84%

Ø 12%

7%

99% 9%

1% 84%

Variáveis sociais e estilísticas também se mostraram significativas para os dois fenômenos em pauta. Tendem a usar o pronome tu: em Florianópolis, informantes do sexo feminino e com escolaridade colegial; em Porto Alegre, informantes do sexo masculino e com idade superior a 50 anos. Além desses fatores sociais, em Porto Alegre a variável ‘tipo de interlocução’ também se revelou significativa para os dois fenômenos estudados: ‘discurso relatado de 3ª pessoa’ favorece o uso de tu, enquanto ‘discurso relatado do próprio falante’ e ‘discurso para o entrevistador’ favorecem a concordância verbal.

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Algumas tendências em termos de condicionadores linguísticos podem ser notadas: - em relação ao uso de tu e você, há uma convergência dos condicionadores linguísticos nas três localidades (Florianópolis, Ribeirão da Ilha e Porto Alegre), evidenciando um mesmo padrão contextual; - em relação à concordância, a variável ‘explicitação do pronome’ mostrou-se relevante nas três localidades: ausência de pronome leva à flexão verbal canônica e presença de pronome dispensa a flexão; - ainda em relação à concordância, Ribeirão da Ilha e Florianópolis compartilham o mesmo padrão contextual: verbo no pretérito perfeito, particularmente a forma assimilada –sse, condiciona a concordância no Ribeirão da Ilha (praticamente de forma categórica) e também em Florianópolis; referente determinado e gênero textual argumentativo e explicativo também propiciam a concordância nessas duas localidades catarinenses. Por outro lado, em Porto Alegre a variável que se mostrou mais significativa foi o paralelismo. Esses resultados levam Loregian-Penkal (2004) a corroborar a hipótese de Menon e Loregian-Penkal (2002) de que há diferentes marcas de identidade atreladas ao uso do pronome tu e à concordância verbal: (i) uso do pronome tu, sem flexão verbal de P2 (tu vai) – marca de identidade gaúcha e de valores regionais;9 (ii) forma verbal canônica para P2 (vais) – marca de identidade do ilhéu, associada fortemente à forma –sse (fosse ~ foste) no Ribeirão da Ilha (zona não urbana) e em Florianópolis (zona urbana). Os resultados de Loregian-Penkal (2004) são inequívocos quanto ao fato de que, para além de diferenças na frequência de uso das formas variantes, as duas capitais em foco (Florianópolis e Porto Alegre) exibem padrões sociolinguísticos diferenciados em relação à referência de segunda pessoa e à concordância com o pronome tu. Não obstante as particularidades encontradas entre as localidades, não podemos deixar de ressaltar uma certa generalização de uso. Em Florianópolis e Porto Alegre, os dois pronomes se alternam na referência à segunda pessoa do discurso, diferentemente de Curitiba, em que o uso do pronome você é categórico. O gráfico 2 dá luz a esse comportamento. 9

Esse uso é evidente não só em Porto Alegre, mas também nas demais cidades gaúchas que integram o VARSUL – Flores da Cunha, Panambi e São Borja –, além de Chapecó, cidade catarinense com forte influência da cultura rio-grandense.

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GRÁFICO 2: resultados estatísticos (PR) da alternância entre os pronomes de segunda pessoa do singular em amostras de fala da Região Sul (Adaptado de LOREGIAN-PENKAL, 2004, p. 121; p. 133.) Alternância entre os pronomes Tu e Você na região sul 1,20 1,00 0,80

Florianópolis

0,60

Porto Alegre Curitiba

0,40 0,20 0,00 Pronome Tu

Pronome Você

Ainda no âmbito da segunda pessoa do discurso, é bastante produtiva na Região Sul a alternância entre os pronomes possessivos teu/seu. Vamos comentar brevemente alguns resultados de estudos dessa variável, como contraponto à discussão desta seção. Em um trabalho em que examina dados do VARSUL de Curitiba, Menon (1996) constatou que os curitibanos, embora façam uso categórico de você, empregam tanto seu como teu para se referirem à segunda pessoa, com uma tendência maior de ocorrer a primeira forma possessiva na fala dos mais velhos. A autora verifica que existe uma regularidade no que concerne à escolha de uma forma ou de outra, relacionada com aspectos de familiaridade, respeito e formalidade na relação entre os falantes. Arduin (2005) estuda a alternância teu/seu em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. No que tange às capitais, encontrou 97% de uso de teu em Porto Alegre e 85% em Florianópolis. Além da correlação naturalmente evidenciada com o pronome tu, ela também constatou que a variação dos possessivos de segunda pessoa é estilisticamente motivada, sendo o uso de teu favorecido em relações assimétricas de superior para inferior e nas relações simétricas entre iguais. Quanto aos fatores sociais, as mulheres e os informantes mais jovens tendem a utilizar a variante teu. Diferentemente do que ocorreu nos trabalhos discutidos até aqui, a variável geográfica ‘localidade’ não foi significativa para esse fenômeno. Arduin conclui que o que rege a variação dos pronomes possessivos de segunda pessoa são os fatores socioculturais.

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Retomemos os resultados de Menon e Arduin para uma melhor visualização, no gráfico 3. GRÁFICO 3: resultados percentuais da alternância entre os pronomes possessivos teu/seu em amostras de fala da Região Sul (Adaptado de ARDUIN, 2005 e MENON, 1996.) Alternância entre os pronomes Tu e Você na região sul 1,20 1,00 0,80

Florianópolis

0,60

Porto Alegre Curitiba

0,40 0,20 0,00 Pronome Tu

Pronome Você

Há nitidamente a mesma curva nas três localidades investigadas. Do ponto de vista da frequência de uso, todas as cidades (incluindo Curitiba) se mostram na mesma direção. As semelhanças verificadas em relação ao uso do possessivo apontam para um uso majoritário do pronome teu nas três capitais, independentemente da forma pronominal usada na marcação da segunda pessoa do singular (tu ou você), e também para um mesmo tipo de efeito contextual. No caso da variação teu/seu, portanto, os padrões sociolinguísticos são compartilhados pelas três capitais da Região Sul, diferentemente do que ocorre com a alternância tu/você e com a regra de concordância verbal com o pronome tu. 2.3

A variação da ordem do sujeito Para investigar efeitos de variáveis independentes sobre a ordem do sujeito, um fenômeno de natureza sintática, observamos em especial alguns ambientes favorecedores ou inibidores da ordem verbo-sujeito, selecionados pelo pacote estatístico VARBRUL nos trabalhos que tomaremos para discussão.

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QUADRO 3: grupos de fatores linguísticos mais significativos para a ordem verbo-sujeito em Florianópolis, Porto Alegre e Curitiba (Organizado a partir de COELHO, 2000, ZILLES, 2000 e BERLINCK, 1988.)10 Amostra

Florianópolis/SC

Porto Alegre/RS

Curitiba/PR

Grupos de fatores condicionadores da ordem verbo-sujeito tipo de verbo (‘inacusativo’ e ‘existencial’) traços de definitude e de especificidade (‘SN – definido e – específico’) forma de realização do SN (‘SN pleno’) estatuto [+/- pesado] do SN (‘SN + pesado’) animacidade do SN (‘SN – animado’) forma de realização do SN (‘SN pleno’) tipo de verbo (‘intransitivo’) animacidade do SN (‘SN – animado’) SN pesado (‘+ pesado’) status informacional do SN (‘primeira menção’) forma de realização do SN (‘SN pleno’) referência do SN (‘+específico com genericidade’) animacidade do SN (‘SN – animado’) status informacional do SN (‘SN novo’) tipo de verbo (‘intransitivo’ e ‘existencial’) tipo de predicador (‘processo e estado’) concordância verbal (‘ausência’) estatuto da oração (‘subordinada’) valor aspectual do enunciado (‘resultado/singular/pontual’)

Os trabalhos evidenciaram em diferentes amostras que os grupos de fatores extralinguísticos não foram selecionados pelas rodadas estatísticas, atestando que a variação na ordem do sujeito é um fenômeno interno ao sistema linguístico. Em todos os trabalhos, três variáveis idênticas se mostraram significativas: tipo de verbo, forma de realização do SN e animacidade do SN. Discutiremos a seguir cada uma delas; separadamente. Com relação ao tipo de verbo, nas amostras de Florianópolis, de Porto Alegre e de Curitiba, a ordem verbo-sujeito é circunscrita a verbos de um argumento, os conhecidos monoargumentais. A transitividade do verbo constitui um elemento importante na definição da ordem dentro da sentença. O trabalho de Berlinck (1988) salienta que verbos transitivos mostram-se inibidores da ordem posposta, diferentemente dos 10

Coelho (2000) e Zilles (2000) utilizam amostras de fala das localidades de Florianópolis e de Porto Alegre, pertencentes ao banco VARSUL. Já Berlinck (1988) utiliza amostras de fala de Curitiba, coletadas especificamente para a sua dissertação de mestrado.

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verbos intransitivos existenciais. A peculiaridade de comportamento das construções existenciais, dentre as intransitivas, no entanto, e sua rigidez na ordem verbo-sujeito, um total de 99%, contra 46% de intransitivas não existenciais, já vem estabelecer possíveis diferenças entre os verbos monoargumentais. Em 2000, Zilles também atesta que a ordem verbo-sujeito é praticamente nula com verbos transitivos e favorecida pelos verbos intransitivos (os monoargumentais, de um modo geral). Coelho (2000) foca sua discussão no estatuto dos verbos monoargumentais por encontrar 100% dos verbos transitivos na ordem sujeito-verbo-objeto (SVO). A autora amplia os contextos sintáticos de investigação dos verbos monoargumentais controlando diferentemente os verbos agentivos (conhecidos na literatura como intransitivos) e os inacusativos (não-agentivos). E separa, ainda, nesses últimos, os que são existenciais dos não existenciais. Os resultados comparativos desses três trabalhos estão expostos na tabela 4. TABELA 4: Uso da ordem verbo-sujeito segundo o tipo de verbo (Adaptada de COELHO, 2000, p.142; ZILLES, 2000, p. 84; BERLINCK, 1988, p. 88.)

Localidades

Florianópolis/ SC Porto Alegre/ RS Curitiba/PR

Verbo transitivo

Verbo de ligação

%

%

PR

PR

Verbo intransitivo

Verbo inacusativo não existencial

Verbo inacusativo existencial

%

PR

%

PR

%

PR

01

0,12

39

0,68

95

0,95

99

0,99

01

0,35

09

0,57

15

0,86

03

0,26

23

0,60

46

0,82

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GRÁFICO 4: resultados estatísticos (PR) da ordem verbo-sujeito, segundo a variável transitividade do verbo (Adaptado de COELHO, 2000, p.142; ZILLES, 2000, p. 84; BERLINCK, 1988, p. 88.)11 Efeitos do verbo em relação à ordem verbosujeito na região sul 1,20 1,00 0,80

Florianópolis Porto Alegre

0,60

Curitiba

0,40 0,20 0,00 Verbo transitivo

Verbo de ligação

Verbo intransitivo

Verbo inacusativo não existencial

Verbo inacusativo existencial

De modo geral, vale ressaltar que os resultados de Zilles (2000) e Berlinck (1988), provenientes de amostras de Porto Alegre e Curitiba, atestam o fato de que as chances de se encontrar ordem posposta do sujeito são remotas em contextos com verbos de mais de um argumento. Uma das justificativas para essa restrição de monoargumentalidade está em Tarallo (1993). O autor afirma que a ordem verbo-sujeito deveria ser bloqueada com verbos transitivos (VSO/VOS), a fim de não permitir a colisão de papéis temáticos atribuídos aos argumentos internos selecionados pelo(s) verbo(s). Com respeito à monoargumentalidade, os resultados de Coelho (2000) indicam uma simetria entre a ordem dos argumentos dos verbos intransitivos (mais agentivos) e transitivos, de um lado, e entre a ordem dos argumentos dos verbos inacusativos (menos agentivos), sejam existenciais ou não existenciais, de outro. A autora pondera que a possibilidade de posposição, nesse último caso, deve-se ao fato de o argumento de um verbo inacusativo ser interno, comportando-se como um objeto direto (localizado preferencialmente à direita do verbo), diferentemente do argumento de um verbo intransitivo. 11

Nos resultados apresentados no gráfico 4 foram repetidos os valores para verbo intransitivo e inacusativo não existencial das amostras de Porto Alegre e de Curitiba, 0,86 e 0,46, respectivamente, pois Zilles e Berlinck não separam as construções intransitivas não existenciais das inacusativas. Por outro lado, o peso relativo alto encontrado por Zilles para verbos intransitivos (0,86) provavelmente deve-se ao fato de a autora não separar verbos monoargumentais existenciais dos não existenciais, da maneira como Berlinck e Coelho fizeram.

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Os resultados do efeito da transitividade do verbo em relação à ordem verbo-sujeito mostram que todas as localidades examinadas apresentam uma taxa de posposição do sujeito com verbos transitivos na casa de 0,20, enquanto contextos com verbos existenciais ficam próximos do 1 (na casa de 0,90). Além disso, verbos de ligação apresentam-se com possibilidades restritas de ordem verbo-sujeito. Os efeitos dos condicionadores e das restrições são bem gerais: a preferência por uma ordem sujeito-verbo-objeto no português da Região Sul. Contextos que se manifestam inequivocamente favoráveis à ordem verbo-sujeito são construções inacusativas, preferencialmente com verbos existenciais. Observemos, na tabela 5 a seguir, os resultados do efeito de uma outra variável linguística sobre a ordem verbo-sujeito, a forma de realização do SN. TABELA 5: Uso da ordem verbo-sujeito segundo a forma de realização do SN (Adaptada de COELHO, 2000, p.166; ZILLES, 2000, p. 83; BERLINCK, 1988, p. 72.) Localidades

Florianópolis/ SC Porto Alegre/ RS Curitiba/PR

Pronome pessoal

Pronome demonstrativo

Pronome indefinido

SN pleno (simples)

SN pleno (composto)

%

PR

67

0,83

%

PR

%

PR

%

PR

%

PR

0,5

0,17

20

0,26

44

0,49

65

0,85

00

0,27

08

0,73

18

0,93

15

0,88

24

0,41*2

47

0,47*3

Como se pode observar, os efeitos do contexto pronome pessoal, controlados nas três amostras, apontam para restrições à ordem verbosujeito, enquanto o SN pleno (simples ou composto) apresenta-se como contexto favorecedor dessa ordem, como a curva mostrada no gráfico 5 ilustra. *2

*3

Berlinck (1988) não separa pronomes pessoais dos demonstrativos e indefinidos. Esse fato deve contribuir para explicar a pouca diferença entre os sujeitos realizados por pronomes (0,41) e por SNs (0,47) em Curitiba, diferentemente do que os resultados de Porto Alegre e Florianópolis indicam. Berlinck (1988) controla a forma de realização do SN pleno de diferentes modos, a saber: SN pleno simples (0,47), SN + SN (0,83), Quantificador + (det) + (poss) + N + SP (0,39), contextos de SN, Det + N + SN (0,31), N + relativa (0,40), nome próprio (0,17), Det + (poss) + N + SP (0,10). Para efeitos de comparação vão ser expostos apenas os percentuais e os pesos relativos dos dois primeiros contextos.

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GRÁFICO 5: resultados estatísticos (PR) da ordem verbo-sujeito, segundo a variável forma de realização do SN (Adaptado de COELHO, 2000, 166; ZILLES, 2000, p. 83; BERLINCK, 1988, p. 72)12

Efeitos de forma de realização do SN segundo a ordem verbo-sujeito na região sul 1,00 0,90 0,80 0,70 0,60 0,50 0,40 0,30 0,20 0,10 0,00

Florianópolis Porto Alegre Pronome pessoal

SN pleno simples

SN pleno composto

Curitiba

O que mostram os resultados? De um lado, em todas as localidades, quando o sujeito está representado por um pronome pessoal (ou demonstrativo), a ordem sujeito-verbo é a preferida. De outro lado, sujeitos representados por sintagmas plenos compostos preferem a ordem verbo-sujeito. No intermédio, aparece o sujeito realizado por SN pleno simples, formado por Determinante + Nome, controlado separadamente por Berlinck (1988). Nas pontas, a curva de favorecimento e de não favorecimento atua na mesma direção em todas as localidades investigadas. Por último, observamos em cada uma das capitais da Região Sul o efeito do contexto animacidade do SN sobre a ordem verbo-sujeito, conforme pode ser observado nos resultados percentuais e de peso relativo expostos na tabela 6.

12

Como Coelho (2000) e Zilles (2000) fazem o amálgama das formas de SN pleno simples e de SN composto, preferimos para efeitos de comparação com Berlinck (1988), duplicar os resultados das autoras para SN pleno simples e SN pleno composto.

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TABELA 6: Uso da ordem verbo-sujeito segundo o traço de animacidade do SN (Adaptada de COELHO, 2000, p.170; ZILLES, 2000, p. 86; BERLINCK, 1988, p. 83.) Localidades

SN [+animado]

SN [-animado]

%

PR

%

PR

Florianópolis/SC

13

0,46

73

0,58

Porto Alegre/RS

02

0,45

24

0,78

Curitiba/PR

09

0,37

96

0,63

Nas três capitais, os resultados concernentes ao efeito dos traços de animacidade na ordem verbo-sujeito vão em uma mesma direção: SN [+ animado] é um ambiente favorecedor da ordem sujeito-verbo e SN [-animado] é favorecedor na ordem verbo-sujeito. Os resultados podem ser visualizados com mais nitidez no gráfico 6. GRÁFICO 6: resultados estatísticos (PR) da ordem verbo-sujeito, segundo a variável animacidade do SN (Adaptado de COELHO, 2000, 170; ZILLES, 2000, p. 86; BERLINCK, 1988, p. 83.) Efeitos do traço de animacidade do SN segundo a ordem verbo-sujeito na região sul 0,90 0,80 0,70 0,60 0,50 0,40 0,30 0,20 0,10 0,00

Florianópolis Porto Alegre SN (+animado)

SN (-animado)

Curitiba

Com impressionante coerência todas as localidades têm efeitos de contexto idênticos: é no ambiente de menos animacidade que a posposição do sujeito se apresenta com uma probabilidade maior de 0,50 de peso relativo.

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O tratamento sistemático dos efeitos das restrições na ordem verbosujeito sugere uma gramática compartilhada, comum a todas as localidades investigadas. A maioria das restrições discutidas parece ter efeitos bem gerais, extensíveis ao PB. Sumarizando, os trabalhos com amostras das três capitais da Região Sul mostram que o mesmo tipo de efeito de contexto é encontrado preferencialmente na ordem verbo-sujeito, a saber: • verbos existenciais (e inacusativos não existenciais); • sujeitos realizados com SN pleno (e composto); • sujeitos marcados com traço [-animado]. ALGUMAS PALAVRAS FINAIS... Na busca por padrões regulares de uso que possam ser abstraídos de manifestações linguísticas individuais, encontramos especificidades e regularidades estatísticas na estrutura sociolinguística da Região Sul. Tomando como referência a cidade de Florianópolis, observamos que (i) apresenta características distintas de Porto Alegre e de Curitiba no que se refere à monotongação dos ditongos decrescentes [ay] e [ey]; (ii) se assemelha a Porto Alegre, compartilhando o uso do pronome de segunda pessoa do singular tu – em contraste com Curitiba –, embora com características dialetais distintas (o ilhéu tende a marcar a concordância no verbo enquanto o portoalegrense tende à não concordância canônica); e (iii) no nível mais abstrato, quando a variação está no campo da sintaxe (como constatado nos trabalhos sobre a ordem do sujeito), Florianópolis se assemelha às outras duas localidades, partilhando com elas as mesmas restrições contextuais. Podemos dizer, portanto, que a Região Sul, representada aqui pelas três capitais, por um lado, compartilha um mesmo padrão sociolinguístico no que tange à variação da ordem do sujeito; por outro lado, apresenta especificidades no que se refere aos efeitos de contexto em relação à monotongação do ditongo decrescente e à alternância entre os pronomes de segunda pessoa tu e você. Retomando a proposta de comunidade de fala de Guy (2001), parece possível dizer que as especificidades linguísticas, que estão atreladas a aspectos regionais e culturais, apontam para comunidades distintas, ao passo que as regularidades indicam que as três localidades devem pertencer a uma comunidade de fala mais geral. As comunidades investigadas estariam, portanto, sobrepostas e cruzadas, como sugere o autor.

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SUBJETIVIDADE E ORDEM DE PALAVRAS: A ORDEM VERBO-SUJEITO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO E NO GALEGO SUBJECTIVITY AND WORD ORDER: VERB-SUBJECT ORDER IN BRAZILIAN PORTUGUESE AND GALICIAN Jussara Abraçado Universidade Federal Fluminense

RESUMO Neste trabalho, apresentamos os primeiros resultados de pesquisa em desenvolvimento sobre a ordem verbo-sujeito no português brasileiro e no galego, em que buscamos aferir seu emprego na veiculação de enunciados subjetivados. Analisamos as ocorrências da ordem verbo-sujeito na fala de 12 informantes da Amostra Censo (Projeto Censo da Variação Linguística no Rio de Janeiro, PEUL/UFRJ) e de 13 informantes do corpus A Nosa Fala (Arquivo Sonoro de Galícia, USC) e, com os resultados que obtidos, podemos constatar, estatisticamente, em relação ao português brasileiro - mas não em relação ao galego - que, além das funções já apontadas em pesquisas anteriores, a ordem verbo-sujeito desempenha no português brasileiro também a função de veicular enunciados subjetivado. Palavras-chave: galego; ordem VS; português brasileiro; subjetividade. ABSTRACT In this paper, we present the first results of ongoing research on subjectverb order in Brazilian Portuguese and Galician. This study investigates the use of verb-subject order in the placement of statements subjectified. We have analysed the occurrence of VS in the speech of 12 Brazilian informants (Projeto Censo da Variação Linguística no Rio de Janeiro, PEUL/UFRJ) and in the speech of 13 Galician informants (corpus A Nosa Fala: Arquivo Sonoro de Galícia, USC)). The results statistically indicate, in relation to Brazilian Portuguese - but not for the Galician – that, beyond the functions already mentioned in previous research, the verb-subject order in Brazilian Portuguese also plays the role of conveying subjective statements. Keywords: brazilian portuguese; galician; subjectivity; verb-subject order.

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INTRODUÇÃO Este artigo é fruto de pesquisa em desenvolvimento no âmbito do projeto intitulado Variação e mudança no sistema linguístico histórico galego-português: primeiros encontros para uma comparação entre o galego e o português popular brasileiro, apoiado pela CAPES e desenvolvido por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF), da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Santiago de Compostela (USC), cujo objetivo principal é o de promover investigação de traços ou características das falas galegas e brasileiras. Assim sendo, começamos por justificar o porquê de estudarmos o galego e o português brasileiro, para depois, então, focalizamos a ordem verbo-sujeito (VS) que investigamos com o propósito de aferir seu emprego na veiculação de enunciados subjetivados no português brasileiro (PB) e no galego contemporâneos. 1. Por que estudar o Galego e português brasileiro? Considerando-se a origem comum das variedades linguísticas em comparação, é proposta dos pesquisadores envolvidos no projeto Variação e mudança no sistema linguístico histórico galego-português: primeiros encontros para uma comparação entre o galego e o português popular brasileiro investigar os fenômenos linguísticos e pragmático-discursivos observados na Galiza e no Brasil, buscando: (1) ampliar o escopo comparativo até agora utilizado na explicação dos traços próprios do PB, e (2) compreender melhor os fenômenos até então considerados característicos do galego. Adicionalmente, busca-se, no âmbito desse projeto maior, resgatar a importância do galego na história do português, uma vez que, sob o rótulo de “português arcaico” muitas das vezes é omitida a origem comum do galego e do português. Bagno (2011, p. 34), discorrendo sobre a procedência do português, levanta a questão de ser o latim a origem do português. A esse respeito vale a pena citar as palavras de Esperança Cardeira, autora portuguesa de um livro sobre a história da sua língua: À entrada do ano mil, no Noroeste peninsular, a Galécia Magna, uma região que se estendia da Galiza a Aveiro abarcando, ainda, uma faixa das Astúrias, delimitava já um

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romance com contornos peculiares. [...] Não é ainda Portugal, não é ainda língua portuguesa. [...] Antes de Portugal, antes do Português, no limiar do século X, já estava constituído um romance [...] (2006: 36-37). Se “não é ainda Portugal, não é ainda língua portuguesa” e se a própria autora diz que esse romance era falado em toda a Galécia Magna, que outro nome se poderia dar a essa língua que não seja galego? Por que chamar de galego português uma língua que surgiu “antes de Portugal, antes do Português”? A resposta, segundo Bagno (2011), está no desejo de, no período renascentista, aproximar do latim a recém-normatizada “língua portuguesa”, buscando conferir estatuto de beleza, riqueza, elegância e funcionalidade para a língua que a partir de então seria um dos muitos instrumentos do imperialismo português. Afinal, era preciso que um povo conquistador como o português também tivesse, como o povo romano conquistador, uma língua digna de se tornar elemento de unificação de um império que estava para ser criado (p. 35). Todavia, como observa o autor, No mesmo gesto, se cumpriu também uma outra tarefa, desta vez não explicitada, oculta, dissimulada: apagar a verdadeira origem do português, sua real genealogia, que é a de ser uma língua derivada, não do latim clássico, nem sequer do latim vulgar, mas sim uma língua derivada do galego (p. 35). A pesquisa que desenvolvemos tem como objeto a ordem de palavras. Neste artigo, apresentamos os primeiros resultados relativos ao emprego da ordem VS na veiculação de enunciados subjetivados. Os dados que

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analisamos foram extraídos de corpora constituídos de narrativas orais do século XX. Entretanto, em etapas posteriores, corpora referentes a sincronias anteriores também serão analisados em busca de mais subsídios que nos auxiliem na explicação do fenômeno em investigação e na descrição das variedades estudadas.

2. A ordem VS no PB e no galego A pesquisa sobre a ordem VS no PB e no galego, em princípio, baseiase nos seguintes pressupostos: a. A subjetividade refere-se a meios existentes nas línguas naturais que permitem a seus usuários a expressão de si mesmos, de suas atitudes e crenças . b. Por diferir da ordem neutra do Galego e do PB (a ordem SV(O), na qual o sujeito antecede o verbo), a ordem VS se prestaria à função de veicular enunciados que correspondem à expressão dos pontos de vista, sentimentos e opiniões do falante, destacando-as das demais ideias básicas comumente veiculadas pela cláusula canônica/neutra. Nas secções seguintes, vamos discorrer brevemente sobre esses pressupostos.

3. Subjetividade e subjetivação De acordo com Lyons (1982), subjetividade refere-se a meios existentes nas línguas naturais que permitem a seus usuários a expressão de si mesmos, de suas atitudes e crenças. Traugott (2010), trazendo para discussão a distinção entre semântica e pragmática, associa a subjetividade à subjetivação, ao entender a subjetivação como um processo diacrônico de semanticização da subjetividade. Para a autora, há uma distinção (embora não rígida) a ser feita entre o estado sincrônico (subjetividade) e o processo diacrônico (subjetivação). Nesses termos, a subjetivação envolve a reanálise de significados pragmáticos que surgem em contextos em que falante e ouvinte negociam significados que

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expressam a atitude ou o ponto de vista do falante1. Nesse mesmo artigo, Traugott (2010, p.21) também destaca a relação entre subjetividade e ordem de palavras. Um número crescente de estudos tem sugerido que [...] elementos linguísticos subjetivados são usados em posições cada vez mais periféricas. Normalmente, a mudança é para a esquerda nas línguas VO, e para a direita nas línguas OV. Em inglês, muitos marcadores discursivos estão associados com a periferia esquerda (algumas vezes com a direita), e seu uso nessa posição pode ser correlacionado com a subjetivação do seu significado (ver, por exemplo, Traugott e Dasher de 2002, sobre indeed, in fact, actually, Brinton a ser publicado em breve sobre I mean). Tem sido também sugerido que os adjetivos com significados subjetivados são encontrados na periferia esquerda do SN, a exemplo do que afirma [...], Breban (2006) sobre as correlações da ordem de palavras, subjetivação e gramaticalização no desenvolvimento de adjetivos como different, distinct. Da mesma forma, em japonês, muitos itens que são subjetivados ou intersubjetivados, vêm sendo usados na periferia da cláusula (ver, por exemplo, Onodera 2005, Onodera e Suzuki a ser publicado). Como se pode observar, a relação entre ordem de palavras e subjetividade se verifica em diversas línguas, o que respalda nossa investigação. Também nos serve de respaldo estudo de Givón (1985) sobre ordem de palavras, conforme detalharemos a seguir. 4. Subjetividade e a ordem VS Adotando a perspectiva teórica funcionalista, consideramos a gramática como um conjunto de regularidades decorrentes de pressões de usos linguísticos que, por sua vez, relaciona-se a um conjunto complexo de aspectos de natureza cognitiva e discursivo-pragmática. Sob tal viés, consideramos ser a ordenação de constituintes o primeiro nível de fixação de padrões sistemáticos que, obedecendo a tendências regulares, levam ao estabelecimento de uma ordem básica/neutra. A cláusula canônica/neutra é aquela que conta quem fez o quê para quem, quando, onde, como ou porquê e para quê, comunicando a ideia básica 1

Traugott (2010) postula relação análoga para intersubjetividade/intersubjetivação, sendo que, neste caso, os significados expressariam a atenção do falante para a auto-imagem do destinatário.

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dos eventos/ações/estados e carregando a maior parte da informação nova no discurso. Contudo, mesmo sendo o mais simples domínio funcional na sintaxe, é bastante complexa, pois codifica os papéis semânticos dos vários participantes e ainda as diferenças entre estado (sem mudança), evento (mudança no tempo) e ação (mudança precipitada por um agente). Além do mais, a cláusula canônica/neutra costuma ser responsável pela atribuição de um papel pragmático relevante: o de tópico/sujeito (GIVÓN, 1985). Os tipos de variação comumente processados sobre a cláusula canônica/neutra desempenham funções comunicativas importantes (como, por exemplo, a passiva, cuja motivação principal é a de encobrir o agente, que costuma ter sua identidade expressa na cláusula canônica/neutra). Voltando-nos para o PB e para a VS, destacamos que Votre e Naro (1989), pesquisando a base discursiva da VS em narrativas no PB, observaram que a VS Tende a ocorrer em contextos de fundo, fora de cadeias tópicas; e o S, nessas construções, não é o item de que se está falando. O S em VS, em decorrência disso, tende a não ser referido anteriormente no discurso. É tipicamente não agentivo e não individuado já que referentes com valor positivo destas características seriam normalmente foco de atenção (p. 177). Votre e Naro concluem que a VS está a serviço de uma estratégia discursiva, que consiste em apresentar eventos e situações sem tópico, em plano de fundo, com baixa transitividade, e que, em geral, não são retomados na progressão discursiva. Thompson e Hopper (2001, p. 53) assinalaram a correlação entre baixa transitividade e subjetividade na conversação, em virtude do fato de nossas conversas serem principalmente sobre “como as coisas são sob nossa perspectiva”, ou seja, serem reflexos da subjetividade em nosso uso diário da língua. Considerando o exposto, postulamos que a VS se prestaria à função de veicular comentários, ou melhor, enunciados que correspondem à expressão dos pontos de vista, sentimentos e opiniões do falante.

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5. VS em enunciados subjetivados no PB e no Galego Neste trabalho, como já destacamos, apresentamos a primeira fase da análise, que consiste em mensurar, as ocorrências da VS veiculando subjetividade. Os dados aqui analisados foram extraídos da fala de 12 informantes da Amostra Censo (Projeto Censo da Variação Linguística no Rio de Janeiro, PEUL/UFRJ) e de 13 informantes do corpus A Nosa Fala (Arquivo Sonoro de Galícia, USC). Ambos os corpora são constituídos de narrativas orais referentes ao século XX. Devido à discrepância no total de dados coletados no PB e no Galego (ocorrências de VS: 163, no PB e 30, no galego), submetemos os resultados encontrados ao teste estatístico do Qui Quadrado (x2). A discrepância no total de dados explica-se em função da diferença, em termos de duração, das entrevistas que compõem um corpus e o outro. Enquanto que no corpus do galego, as entrevistas têm em média setecentas palavras, no corpus do PB, a média de palavras é de dez mil. Postulamos a relação entre enunciados subjetivados e a ordem VS, quando observamos, nos dados analisados, que muitas das ocorrências da VS acontecem em momentos em que o informante fala de si mesmo, de seus sentimentos, ou tece comentários sobre alguém ou sobre algum acontecimento, como no exemplo seguinte: (1)

(...) eu acho que vale a pena. Mas não... acho que não vai dar porque acho aquilo muito pequeno para tanta gente. Tem lugares que já esgotou. Esgotou, (hes) já esgotaram os ingressos e não vou. É assim, às vezes tenho vontade de fazer as coisas e acabo não fazendo. (FAL 30)

A seguir, outro exemplo, em que o informante fala de uma terceira pessoa, mas que, apesar de não falar de si, é evidente o caráter subjetivo da porção do discurso em que a VS ocorre: (2)

Eu sei que mais cedo ou mais tarde [essa]- essa vida assim tão ingênua- não sei se pode se dizer ingênua, porque eles não são ingênuas. Essa vida natural, essa confiança, (est) a tendência‚ terminar. Vai chegando as pessoas da cidade, vão trazendo vício. (FAL 43)

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No galego, também encontramos casos semelhantes: (3)

Eu salín de alí, meus hòmes, fomïando. Salín fomïando por arriba polo camiño arriba astra cheghar á casa. Aquèla noite non dormín. Foi unha couça que, ¡Diòs nos libre que hoxe çentiran tanto as cousas como sintíamos nôs daquèla! Hoxe non hai verghonça… (FAL1)

(4)

Esisten aquí nel puèblo unhas agrupaciòis, que tan encaminadas a ser a pauta pra irse mellorando. Hòi, hai unha de cuatro vecíus, que pòde poñer camín de cèn vacas, si lles axudan, el Estado, Òrdenación Rural i Estènsiôn Agraria; i esos elemèntos, el Estado con crêditos, Ordenación Rural reparándolle os camíus i, Estènsión Agraria, con servicios tênicos... Teño que reconocer que eghtos servicios, i eght(os) que vaian facèndo estas agrupaciòis, melloran un pouco… (FAL 18)

Nos exemplos apresentados, pode-se observar marcas estruturais, como a presença da primeira pessoa do singular, de verbos como saber, reconhecer, sentir e achar (este empregado como verbo de cognição) que confirmam tratar-se de porções do discurso que correspondem à expressão dos pontos de vista, sentimentos e opiniões do falante. Tais exemplos ilustram as ocorrências de VS que categorizamos e contabilizamos como VS veiculando enunciados subjetivados (+ sub). Os exemplos (5) e (6) ilustram ocorrências de VS em enunciados em que a subjetividade não é proeminente. Assim sendo, tais ocorrências foram categorizadas e contabilizadas como não-subjetivas (-sub): (5)

(...) nada floresce, (hes) a não ser, claro, evidente, se você deixar a planta selvagem, não? (est) Agora, se você vai cultivar uma planta, você tem que podar, [você tem que regar], você tem que tratar, tirar as folhas secas, para que nasçam novas- (est) então a planta cuidada ‚ diferente, não? E elas são plantinhas cuidadas. (FAL 43)

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(6)

È antes tamên había moitos lingueiróns, que lingueiróns, alkhúns inda hai, prinsipalmente en ese sètor da Toxa, en eses lombos que hai aí contra o Khròve. È iban as mullères, embarcadas, a eles. (FAL 4)

As ocorrências de VS em enunciados subjetivados correspondem à fatia significativa do total de ocorrências da VS no PB, conforme exibe a Tabela1 apresentada a seguir. TABELA 1: VS veiculando subjetividade no PB PB VS - Sub + Sub

N 99 64 163

% 61 39 100

Prob 0,6 0,4

A significância acima referida foi constatada através do teste estatístico do Qui Quadrado2 em que o valor de x2 foi igual a 7,5; maior, portanto, do que o valor crítico de 3,84. No que diz respeito ao galego, embora os números exibidos na Tabela 2 aparentemente confirmem os resultados obtidos no PB, a hipótese de a VS ocorrer em enunciados subjetivados não foi comprovada estatisticamente (X2= 3,3 < 3,84).

TABELA 2: VS veiculando subjetividade no Galego GALEGO VS Não sub Sub

2

N 20 10 30

Grau de Liberdade (GL) igual a 1.

% 67 33 100

Prob 0,6 0,4

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Considerando tais resultados e a origem comum do galego e do português, investigaremos o mesmo fenômeno em sincronias anteriores no galego, no português europeu (PE) e no PB, buscando esclarecer se o emprego da VS em enunciados subjetivados é uma característica do português (PE e PB em oposição ao galego); se é apenas do PB (PB em oposição ao PE e ao galego); e ainda se, historicamente, já foi uma característica também do galego.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, analisando as ocorrências da VS na fala de 12 informantes da Amostra Censo (Projeto Censo da Variação Linguística no Rio de Janeiro, PEUL/UFRJ) e de 13 informantes do corpus A Nosa Fala (Arquivo Sonoro de Galícia, USC), constatamos que a VS, no PB, tende a ocorrer em porções do discurso em que o informante fala de si mesmo, de seus sentimentos, ou tece comentários sobre alguém ou sobre algum acontecimento. Entretanto, no que diz respeito ao galego, pelo menos o contemporâneo, a hipótese de a VS ocorrer em enunciados subjetivados não foi comprovada estatisticamente. Considerando a origem comum do galego e do português, nosso próximo passo será o de investigar o mesmo fenômeno em sincronias anteriores no galego, no PE e no PB, esperando obter respostas para as questões que continuam em aberto. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAGNO, Marcos. O português não procede do latim: uma proposta de classificação das línguas derivadas do galego. Disponível em http://www. editorialgalaxia.es/imxd/libros/doc/1320761642191_Marcos_Bagno.pdf. Data de acesso: 20/03/2012. GIVÓN, T. Function, Structure, and Language Acquisition. In: D.I. SLOBIN (ed.) The crosslinguistic study of language acquisition, v. 2: Theoretical issues. New Jersey, Lawrence Erlbaum Associates, Publishers, 1985.

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LYONS, J. Deixis and subjectivity: Loquor, ergo sum? In : JARVELLA, R. J.; KLEIN. W. (eds.), Speech, Place, and Action: Studies in Deixis and Related Topics, New York: Wiley, 1982. p.101-124. VOT RE, S; NARO, A.J. Mecanismos funcionais do uso da língua. DELTA, São Paulo v.5, n.2, p. 169-84, 1989. ______. S. Linguística funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1992. THOMPSON, S. A.; Hopper, P. Transitivity, clause structure, and argument structure: Evidence from conversation. In: Bybee, J. L.; Hopper, P. (Ed.) Frequency and the Emergence of Linguistic Structure. Amsterdam/ Philadelphia: Benjamins, 2001. p. 27-60. (Typological Studies in Language 45). TRAUGOTT, E. C. Revisiting subjectification and intersubjectification. In: CUYCKENS, H.; DAVIDSE, K.; VANDELANOTTE, L. (Ed.). Subjectification, Intersubjectification and Grammaticalization. Berlin and New York: Mouton de Gruyter, 2010. (Topics in English Linguistics).

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UMA MUDANÇA ENCAIXADA: CLÍTICOS CONSTRUÇÕES PREPOSICIONADAS

EM

A CASE OF EMBEDDED CHANGE: CLITICS IN PORTUGUESE PREPOSITIONAL SYNTAGMAS Odete Pereira da Silva Menon Universidade Federal do Paraná (UFPR/CNPq)

RESUMO O trabalho tem como objetivo discutir a posição dos clíticos em português, num contexto bem específico — nos sintagmas preposicionados — com vistas a apresentar um caso de mudança encaixada (cf. Weinreich, Labov & Herzog, 1968: 101), a partir de uma amostra constituída por vinte textos portugueses, do séc. XIV ao séc. XIX. Em dado momento da língua antiga, a representação de um fato concomitante a outro se fazia com [em + gerúndio]: em passando; porém, houve uma mudança e passou-se a empregar a construção [ao + verbo no infinitivo]: ao passar. Essa mudança foi decorrente do processo de nominalização dos verbos com o artigo o, antecedido da preposição a, usada para indicar movimento, o que gerou uma estrutura semelhante ao que chamo PCV (preposição-clítico-verbo): a o passar, em que o o é clítico anafórico de terceira pessoa (objeto direto). Ocorre, então, uma ambiguidade, que bloqueou o uso de PCV; o que se resolveu (no período dos sécs. XVI-XVII) com a posposição do pronome: a passá-lo. Ora, a regra anterior nesse caso era a próclise; a ênclise vai afetar inicialmente só os PCVs. regidos pela preposição a; porém podendo se estender, mas não necessariamente, às demais preposições (de, em, para, por, sem), o que vai ficar evidenciado nos autores do século XIX. A mudança também vai atingir outro tipo de construção preposicionada, as perífrases compostas por verbo transitivo indireto, com a preposição a ou outras: lhe tornar a fazer, o haver de fazer (CVaV) passam a (VaVC): tornar a fazerlhe; haver de fazê-lo, respectivamente. Palavras-chave: clíticos; gramaticalização da ordem das palavras; nominalização; sintagmas preposicionados.

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ABSTRACT This study aims to discuss the position of clitics in Portuguese in a specific context – prepositional syntagmas — with the purpose of presenting a case of embedded change (cf. Weinreich, Labov & Herzog, 1968: 101). The data sample is comprised of 20 Portuguese texts from the period between the 14th and the 19th centuries. At an earlier time, the representation of one fact concomitant to another was made through [em + gerund]: em passando. However, a change later occurred to use the construction [ao + verb in the infinitive]: ao passar. This change resulted from the process of verb nominalization with the article o, preceded by the preposition a, used to indicate movement, which generated a construction similar to what I call PCV (preposition-clitic-verb): a o passar, in which the o is a third person anaphoric clitic (direct object). An ambiguity then occurred, blocking the use of PCV. The resulting ambiguity was resolved (in the period of the 16th and the 17th centuries) through pronoun postposition: a passá-lo. Thus, we can say that the previous rule in this case was proclisis; enclisis initially affected only the PCVs governed by preposition a, even though enclisis could be extended to other prepositions (de, em, para, por, sem), as evidenced by authors in the 19th century. Such change also affected another type of prepositional construction: periphrastic constructions composed of an indirect transitive verb, followed by a preposition, a or others, as in: lhe tornar a fazer, o haver de fazer (CVaV) became (VaVC): tornar a fazer-lhe; haver de fazê-lo, respectively. Keywords: clitics; nominalization; prepositional syntagmas; word-order grammaticalization.

INTRODUÇÃO Um dos fatos linguísticos que marcariam uma diferença acentuada entre o PB (português do Brasil) e o PE (português europeu) é a chamada colocação dos pronomes: próclise preferencial para o PB e ênclise majoritária para o PE. Essa questão, que já atingiu as raias da nacionalidade, no tempo de Alencar, também já fez correr muita tinta. Referenciar os trabalhos que já trataram do assunto, extremamente polêmico em algumas abordagens, levaria muitas dezenas de páginas. Por que então dedicar mais um estudo sobre o tema? Ainda há o que discutir? Há, realmente, regras de colocação pronominal ou tudo é questão de ouvido, de eufonia? Se prevalecesse essa última, teríamos tantas colocações quantos falantes houvesse, visto que

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cada indivíduo pode ouvir e sentir a língua de maneiras distintas... Além disso, seria admitir que a variação é aleatória. Porém, partindo da premissa da Sociolinguística de que a língua é um sistema heterogêneo (cf. Weinreich, Labov e Herzog (doravante WLH) (1968: 100): “it will be necessary to learn to see language – whether from a diachronic or synchronic vantage – as un object possessing orderly heterogeneity”), a variação é regulamentada por fatores tanto lin1guísticos ou estruturais, quanto por sociais ou extralinguísticos. Na pesquisa de busca de fontes escritas para fundamentar a história do sistema pronominal em português, tenho lido uma extensa gama de textos – de várias épocas e de diferentes assuntos. Foi me chamando a atenção o fato de aparecer um número significativo de próclise em textos antigos, dos séculos XIV, XV ou XVI. Ora, se a característica primordial do PE seria a posição enclítica do pronome, o que estariam fazendo esses pronomes antes do verbo? Daí, a pergunta: o PE mudou as regras2 e o PB teria conservado o estado de língua do séc. XVI? Ou as chamadas “regras” são equivocadas e não dão conta dos fatos da língua? Além disso, fui observando que diferentes estruturas mostravam comportamentos distintos na distribuição dos pronomes. Como a experiência com dados sincrônicos de língua falada (oriundos de projetos como o NURC, o VALPB e o VARSUL) tem me mostrado, quando juntamos levantamentos de dados e os submetemos a rodadas estatísticas, pode acontecer um fenômeno de neutralização dos resultados: em termos de frequência, para se obter 50% podemos ter qualquer uma destas distribuições: (10 + 90); (20 + 80); (30 + 70); (40 + 60) e (50 + 50). Isso quer dizer que a média mascara as particularidades. Então, quando numa amostra reunimos dados de contextos diferentes, estamos anulando a diversidade que porventura eles possam apresentar e, por conseguinte, enviesando os resultados e as análises deles decorrentes. No 1

2

Respectivamente: Projeto da Norma Urbana Culta; Variação Linguística na Paraíba (PB); Variação Linguística Urbana na Região Sul. Francisco Adolpho Coelho expõe lucidamente a sua posição (embora ainda considere a mudança como “corrupção” da língua) no tocante à questão que provocou muitas susceptibilidades dos dois lados do Atlântico no séc. XIX (mas que adentrou largamente no XX) – o fato de se considerar o português do Brasil como dialeto do de Portugal: “não se deve dizer que o brasileiro é um português degenerado e tende a formar um dialeto; degenerados são ambos, e ambos se corrompendo, cada um a seu modo talvez, mas corrompendo-se.” (COELHO: 1882, Notas complementares, p. 117, apud TARALLO (1993: 36)).

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tocante aos casos de próclise e ênclise3, a média pode ser enganosa e, mais grave, pode fazer parecer completamente aleatória a distribuição de uma ou outra. Vejamos uma ilustração do fato: se eu tenho uma amostra em que determinada estrutura (correspondente a 10% dos dados) apresenta mais próclise e outra construção (responsável por 90% dos dados) utiliza mais a ênclise, ao juntar ambas obtenho a média de 50%, o que permitiria afirmar que a “regra” de distribuição das ocorrências de próclise e ênclise é aleatória (meio a meio). Por isso, se impõe a necessidade de estudar separadamente os contextos de ocorrência e verificar se podemos conceber regras variáveis diferenciadas. E parece ser esse o caso para se poder proceder a uma reconstrução da história das regras de colocação pronominal pois, na observação dos textos portugueses compulsados, as estruturas com pronomes foram se revelando interessantes: 1. a ênclise ao gerúndio ocorre categoricamente desde as fases iniciais da língua; quando é precedido da preposição em ou quando apresenta sujeito, ocorre próclise;

3

2.

verbos no futuro do presente ou do pretérito podem aparecer com pronomes em próclise ou em ênclise (te farei ou farei-te);

3.

pode aparecer próclise em início absoluto de período;

4.

ocorre próclise ou ênclise com sujeito expresso, ou não, com verbo simples (ele se foi ou ele foi-se);

Não considero aqui a possibilidade de existir a chamada “mesóclise”, por duas razões: (i) nos textos antigos, sejam manuscritos, sejam os editados (impressos) que mantenham fidelidade aos originais, o que ocorre é ênclise ao primeiro verbo, o que fica evidente quando as formas não aparecem ligadas (os escribas – e também a imprensa, nos seus estágios iniciais – escreviam outras palavras juntas, não só as formas verbais e seus clíticos) como podemos constatar no seguinte trecho de D. João de Castro: “e se istiver hũ que se chama ho Fallquão tomallo eys e não tomãdo Casquais e tendo tempo pera pairar na bara mãdareis buscar ho dito pilloto e tralloeis comvosquo e depois de serdes ẽ Lixboa ho paguareis e muy bem ha minha custa.” (Cartas, p. 89, 1543, itálicos acrescentados); (ii) tecnicamente, isto é, prosodicamente, não existe “mesóclise”: é impossível uma palavra se apoiar simultaneamente no acento de outras duas; ou ela se apoia no da anterior e temos pronome enclítico, ou na seguinte, e temos próclise. A justificativa alegada por alguns, de que se deve entender mesóclise como “posição entre os dois verbos” é pior ainda, pois esse é um critério de posição na estrutura (sintático, portanto), enquanto o conceito de clíticos é de natureza prosódica (de “apoio” de palavra átona no acento de palavra tônica). Não é possível misturar alhos com bugalhos, usar a mesma nomenclatura para fatos de tão diversa natureza.

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5.

com locução (ou sintagma) verbal, inicialmente próclise preferencial ao primeiro verbo; mais tarde, ênclise preferencial ao segundo (se pode fazer > pode fazer-se); sendo mais rara a ênclise ao primeiro dos verbos da locução: pode-se fazer.

6.

ocorrências com [haver de + infinitivo] e com verbos transitivos indiretos são estruturas complexas que têm comportamento bastante distinto: podem apresentar próclise inicial à locução (épocas mais antigas: o haver de fazer; a começar de pedir, lhe tornar a fazer) e, depois, ênclise final à locução (haver de fazê-lo; começar de pedi-la; tornar a fazer-lhe); porém, às vezes, podem apresentar ênclise ao primeiro ou próclise ao segundo verbo da locução ou sintagma.

7.

os sintagmas preposicionados, isto é, estruturas que denomino PCV (preposição – clítico – verbo) e PVC (preposição – verbo – clítico), que correspondem o mais das vezes a um complemento nominal ou são reduzidas de infinitivo (adverbiais finais e condicionais; relativas), se revelaram constituir uma mudança encaixada, de que vou me ocupar neste estudo.

1. As “regras” de colocação pronominal Na busca de trabalhos que pudessem lançar alguma luz sobre essas questões, encontrei uma obra extensa, a de Sampaio Dória (1959), para discutir parte do assunto, porque esse autor fez levantamentos de obra e autores e tentou delinear o panorama das chamadas “regras de colocação”, abarcando o período que vai do séx. XVI ao XIX. A exemplificação de Sampaio Dória é farta, tanto em autores como nas situações levantadas: ele compulsou as obras e fez levantamentos numéricos das ocorrências, tanto em próclise quanto em ênclise, em autores como João de Barros, Camões, Frei Luís de Sousa, Vieira, Pe. Manuel Bernardes, Castilho, Herculano, Camillo, Machado de Assis e Rui Barbosa, além de outros, como Eça de Queirós, que ele menciona, inclusive quantitativamente, mas a quem não dedica capítulo especial como fez aos outros dez.

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Uma das bandeiras por ele levantadas é a de que, além das “regras — que ele contesta com abundância de exemplos —, existe um fator mais importante que regula a colocação dos pronomes: o ouvido (SAMPAIO DÓRIA, 1959: 10): Escrevendo como se falava, João de Barros deixou patente, nos Panegíricos e nas Décadas, que a colocação de pronomes era problema de ouvido: é, em regra, mais eufônica a anteposição dos pronomes que sua posposição aos verbos. A próclise, reconhecida como norma, é a grande surpreza4. À questão da outiva, Sampaio Dória (1959: 10-15) acrescenta uma outra possibilidade, sempre acalentada por quem trata do assunto: haveria palavras “atrativas”, isto é, com alguma força (oculta, porque até hoje ninguém explicou em que consiste essa “força”) para chamar para perto de si o pronome, mas que nem sempre funciona, como ressalta o autor após verificar os resultados do seu levantamento: A teoria corrente é a de que certas palavras têm o dom de atrair, para junto de si, os pronomes átonos e a apassivadora se. No sentir geral, estas palavras são as conjunções subordinativas, os pronomes relativos, os advérbios, ou qualquer negativa. Sem a presença, antes do verbo, de qualquer destas palavras, a posição natural do pronome átono seria depois do verbo. Os factos, porém, não confirmam essa teoria. No Panegírico de D. João III, há mais de cem anteposições sem a presença, antes do verbo, de conjunções subordinadas, pronomes relativos, advérbios ou qualquer negativa. No Panegírico da Infanta D. Maria, vinte anteposições sem atracção. [...] 4

Nas citações, reproduzo exatamente a grafia utilizada pelos autores, qualquer que seja a (orto) grafia em uso.

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Ora, se a próclise fosse consequência de atração, onde não houvesse atração, não haveria próclise. Mas, se ausentes as palavras que atraem, ainda se verifica a próclise, fôrça é concluir que nenhuma relação de causalidade ha entre a próclise e palavras que se dizem atraentes. A realidade encontrada por Sampaio Dória (1959: 18-22) na linguagem empregada por João de Barros (1496-1570)5 (legítimo representante da língua da primeira metade do séc. XVI), se contrapõe à teoria daqueles que trataram do pronome: [...] a conclusão final se impõe: na linguagem de João de Barros, o grande clássico de século XVI, o pronome átono precede em geral o verbo, independentemente de palavra que o possa atrair. [...] Muito raras as posposições. Passam de mil as anteposições. Donde se vê que o infinito com regência preposicional reforça a norma geral da próclise. E quais os casos de posposição? Há, na linguagem de João de Barros, posposições obrigatórias? Há posposições facultativas? Quais? Em primeiro lugar, no começo de proposição, ou período. No estilo do grande mestre do século XVI, poucas vezes o verbo abre o período. E, mesmo na abertura de período, não é obrigatória a posposição, se o período se ligar ao anterior por conjunção coordenada6 [...] No Panegírico da Infanta D. Maria e nas Décadas, a norma se confirma. 5

6

Sempre que aparecerem, entre parênteses, duas datas hifenizadas, elas devem ser lidas como data de nascimento e de morte do autor. É possível que não se tenha conseguido estabelecer uma delas: nesse caso, quando se presume mais ou menos a data, aparece a abreviatura c., do latim circa, “cerca de”. As datas foram obtidas em consulta à ficha catalográfica de obras dos autores, constantes do catálogo geral da Biblioteca Nacional de Lisboa. No caso dos autores estudados na extensa obra de Sampaio Dória (431 p.) aparecem, logo após a entrada do capítulo com o nome do autor, as datas entre parênteses. Relaciona, a seguir, as páginas onde se localizam os 54 casos que menciona.

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Aliás, sôbre esta topologia pronominal o acôrdo entre os entendidos é maciço: não se começa, com pronome átono, proposição não precedida de conjunção coordenada. Se o verbo estiver no futuro, o pronome pode ser intercalado, estará antes ou no meio do verbo, nunca depois.7 Sampaio Dória (p. 27) prossegue na sua explanação discutindo outros casos da dita posposição no PE: com gerúndio, em início absoluto da proposição; “Com o verbo no modo indicativo ou imperativo, há um caso singular de anteposição ou posposição indiferentemente. Tanto faz: [...]”. Nas págs. 33-35, se questiona: E quando antes, e quando depois? Questão de ouvido, e nada mais. [...] só por eufonia ou ênfase se pospõe o pronome átono ao verbo no indicativo ou imperativo, não precedido de negativa.” Cabe, aqui, uma nota explicativa. Estas excepções por eufonia ou ênfase de posposições do pronome no indicativo, tão parcas em João de Barros, passaram a demasias em clássicos posteriores. [...] Porque? Diferenças na pronúncia do século XVI com a moderna, sobretudo em Portugal? Com base nos seus resultados, Sampaio Dória (1959: 35) ensaia uma interpretação histórica da diferença, ao comparar os usos de João de Barros aos de outro prosador ilustre, Eça de Queirós, do século XIX. Não nos esqueçamos de que três séculos permeiam a obra dos dois autores: Talvez se rastreie a explicação, no antagonismo, em colocação de pronome, de Eça de Queiroz. Nos seus primeiros livros, se orientou pela teoria de que a ênclise é a posição natural do pronome átono, admitindo-se a próclise por atracção. Ao contrário, em A Ilustre Casa de Ramires e em A Cidade e as Serras, a posição natural passa a ser a anteposição, só avaramente escapando a posposição. 7

Aqui se confirma a necessidade que temos de se fazer mais pesquisa em textos antigos: a simples leitura da Demanda do Santo Graal demonstra que, para a língua antiga, essa afirmação categórica não vale. Há muitos exemplos de ênclise com futuro na Demanda (e em outros textos coevos).

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Os Maias: P: 3050 As Cidades e as Serras P: 1234

E:+ de 3740 total: c. 6800 E: 29 total: 1263.

Até à página a revisão de cujas provas tipográficas a morte lhe permitiu, sómente deixou passar estas posposições: “fôra mais divertido pesca-lo do que come-lo” “Eil-a ahi, belo Jacinto!” “Eil-a agora coberta de moradas” Das seguintes, talvez a lima do artista tivesse transposto algumas para antes dos verbos, se sua tivesse sido a revisão final. A Ilustre Casa de Ramires P: 1934 E: 09 total: 1943. Ele também se propõe a dar uma explicação técnica, a fim de legitimar a tese da eufonia (SAMPAIO DÓRIA, 1959: 35-36): Era a índole do idioma que se impunha, e o afinado ouvido que se estabelecia. Nada de mistérios: a colocação de pronomes é problema de eufonia, e, pois, de aperfeiçoamento da língua. O pronome átono, por isto que átono, se pronuncia, na frase, como se fora uma das sílabas do verbo, a que se junta. Ora, são mais audíveis e melhor articuláveis as sílabas pretônicas, que as posteriores às tônicas de qualquer vocábulo. Logo, entre figurar o pronome átono como sílaba pré ou postônica, a limpidez na pronuncia e a clareza na audição explicam a preferência da próclise. Porém, ele não chegou a postular uma mudança nas regras, nesses mais de trezentos anos. Aí ele volta ao séc. XVI e passa a analisar as ocorrências em Camões (1524-1580), “aclamado por modêlo supremo do idioma pátrio.” (p. 47). Retoma a questão do dogma da ênclise, para mostrar as contradições entre regra e fatos da língua:

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Nas iniciações da gramática, o que logo se dogmatiza em posição normal dos pronomes átonos, é a ênclise. A próclise será por atração que sôbre os pronomes exerçam certas palavras. Ainda aqui, gramáticos que alçam Camões ao maior de todos, não lhe guardam a consequente fidelidade. Nos Lusíadas, se contam aproximadamente 1580 vezes o pronome átono com verbos em modo finito: 1414 antes, e 173 depois. Orça por quase 90% a próclise, e a ênclise pouco mais de 10%. Dos 1414 proclíticos, 1172 [1175, na p. 48] estão acompanhados de palavras havidas com fôrça de atracção, e 239 sem a presença de palavras imans. Logo, se a próclise fôra excepção à ênclise, como posição natural dos pronomes complementos, Camões teria, só nos Lusíadas, errado centenas de vezes, na colocação dos pronomes. (negrito acrescentado). Mas, como, nesta matéria, acêrto ou êrro é a conformidade, ou não, com os factos da língua, a increpação de erronias ao grande clássico por colocar mal os pronomes, não tem razão nem senso. Camões reproduz sem divergências a João de Barros, seu contemporâneo e seu mestre. e um e outro registaram o português correto de sua época. (negrito meu). Sampaio Dória prossegue na exposição dos fatos encontrados em Camões, assinalando: “O que a observação dos Lusíadas autoriza a inferir, em colocação de pronomes, é que o pronome átono precede, em geral, os verbos em modo finito.” (p. 48). Os dados em Camões também refutam a tese de que o pronome não pode ocorrer em início de período: “sete exemplos de próclise com verbos dicendi, iniciando o período: em incisa, claro: lhe diz; lhe dizia, lhe disse, lhe responde, te afirmo e asselo8, me dize, Lhe diz.” (p. 52). Tenta distribuir os casos por contextos, mas resvala, ainda, na tese do “soar melhor”: “As 173 posposições (salvo ligeiro êrro de contagem) se distribuem por três grupos: 144 em verbos que abrem 8

Primeira pessoa do presente do verbo asselar, “pôr selo”. O uso de selos era necessário para autenticar um documento. Equivale ao nosso “afirmo e assino embaixo”.

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proposições, 22 em verbos de oração principal precedidos de oração subordinada, e 7 por soar melhor.” (p.53). Como podemos constatar, ao dispor de uma quantidade maior de dados é possível detectar que as “regras” de colocação pronominal são artificiais e não dão conta dos fatos reais da língua. Sampaio Dória analisou extenso leque de ocorrências em autores representativos (clássicos, como ele os denomina) da literatura em prosa vernacular, tanto da portuguesa como da brasileira. Mas ele se limitou a descrever o uso dos autores e, em alguns casos, comparou os empregos de um autor com os de outro; não fez estudo longitudinal no tempo, para captar eventuais diferenças e tentar explicá-las via possível mudança de regras. No entanto, é categórico em dizer que os autores (quando analisa João de Barros e Camões) retratam o “português correto” do seu tempo, para fazer face àqueles que muitas vezes condenam Camões, por ter “se equivocado”9. Apesar de afirmar que a próclise é favorecida em João de Barros pela larga ocorrência do que estou denominando PCV, sintagmas preposicionados com verbos no infinitivo, Sampaio Dória não chegou a perceber um fenômeno de mudança ocorrido nessa estrutura. Como seu objetivo maior é dar conta dos verbos em “modo finito”, ele se limita a mencionar os casos de “verbo no infinito regido de preposição”, conforme exemplifica na sua conclusão ao expor os usos de Rui Barbosa (p. 415): Resta o exame da topologia pronominal com verbos no infinito. Com verbos no infinito regidos de preposição, é indiferente a posição do pronome átono. É a tradição antiga e moderna. (negritos acrescentados). Tanto se diz: “para me reduzir a pó” (Réplica, p. 8) como “a vomitar-me feros e afrontas” (idem, p. 8) 9

Todos nós aprendemos na escola, segundo o que se repete nas gramáticas normativas, que Camões também teria “errado” no uso da passiva pronominal, ao usar o pronome se mais agente da passiva expresso, no exemplo sempre citado: “mares que dos feios focas se navega” ... que era, na realidade, uma estrutura vigente naquela época (e também depois).

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Quando ele diz que “é tradição antiga e moderna” (que, no seu entender, se aplica a autores portugueses e brasileiros, como depreendemos da afirmação sobre Rui Barbosa), deixa claro que não conseguiu discernir nenhuma regra atuando na distribuição dos pronomes nesse contexto, além de considerar como “indiferente” a posição do clítico.. Os dados históricos que passo a apresentar, colhidos em textos manuscritos, ou em manuscritos com edição impressa, e em impressos sem cotejo com originais manuscritos (como é o caso de Camilo Castelo Branco), revelam regularidades e apontam para a questão do encaixamento de uma mudança (“How are the observed changes embedded in the matrix of linguistic and extralinguistic concomitants of the forms in question? What others changes are associated with the given change in a manner that cannot be attributed to change? (WLH, 1968: 101:)) isto é, como um processo de variação e/ou mudança em um setor da língua pode afetar a realização de outros fatos linguísticos. Como a mudança da regra PCV > PVC ocorre na língua portuguesa num momento em que a sua implantação inicial no Brasil mal havia iniciado, limito a busca a autores portugueses. Em abordagens usando o referencial da gramática gerativa, Pagotto (1992, 1993) tenta discernir as diferenças no uso e na colocação dos clíticos nas duas variedades do português (PB e PE). Na dissertação de mestrado (1992, apud PAGOTTO 1993), analisou a posição dos clíticos a partir do século XVI, em 1436 dados extraídos de cartas e documentos oficiais, presentes em “sentenças raiz (coordenadas ou não) com verbos simples”; em “grupos verbais”; em sentenças infinitivas (preposicionadas ou não) e gerundivas”; e “verbos precedidos de advérbios de negação”, chegando à conclusão de que os resultados, sobretudo em sentenças raiz, foram surpreendentes: na média total com 75% de próclise, de “forma bastante consistente” do séc. XVI ao XVIII, mantendo-se “em torno de 85% no período. Por outro lado, a partir do séc. XIX cresce o percentual de ênclise.” (PAGOTTO, 1993: 186-189). Porém, infelizmente, Pagotto (1993) não menciona quais teriam sido as constatações de Pagotto (1992) sobre as ocorrências de clítico em construções com infinitivo preposicionado: ele se atém somente aos infinitivos sem preposição. A partir desses resultados, inesperados (que, aliás, são muito semelhantes aos encontrados por Dória), (i) no PB, em

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que não se esperaria encontrar ênclise, pois o padrão apregoado seria o proclítico e (ii) do PE clássico, que se apresentou muito semelhante ao PB atual, ou seja, com mais próclises, ele se pergunta: “Não teria havido mudança, então?” (PAGOTTO, 1993: 189). A resposta seria a de que tal mudança teria acontecido, “mas ela só seria visível no microscópio da teoria gramatical que trate diferentemente a superfície e níveis mais profundos da sentença” que ele passa a explanar. Advogando o papel central que as regras de movimento desempenham na língua, ele conclui que lidar com a posição dos clíticos é lidar com essas regras de movimento. Para ele, (1993: 202) os resultados mostraram um português clássico relativamente estável no que diz respeito às regras de posição dos clíticos na sentença. O processo de mudança do qual resultou o português brasileiro fez com que este último perdesse a possibilidade de subida do clítico nos grupos verbais, a próclise à negação e a ênclise em sentenças infinitivas e gerundivas. Nos dois primeiros casos, foi argumentado que houve a perda do movimento individual do clítico; no segundo caso, foi argumentado que a perda do movimento do verbo teria sido a razão do atual padrão do PB. À conclusão de que houve mudança nos casos acima, segue-se que teria havido mudança também nos verbos simples de sentenças raiz, nas quais o português clássico apresentava um padrão superficial bastante próximo do PB atual, havendo apenas a ocorrência de ênclise quando o verbo era cabeça do período. De um lado, esta última característica reforça a tese de movimento do verbo; de outro, argumentouse que teria havido uma mudança nas regras que produzem a próclise e a ênclise – elas seriam diferentes: no português clássico, haveria movimento do verbo até T, tendo como consequência uma posição superficial de próclise; no PB atual, nem o clítico nem o verbo se moveriam, e o resultado superficial seria igualmente de próclise.

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Vemos que, embora a intenção de Pagotto tivesse sido dar conta de mudança nas regras da colocação pronominal, ele relegou a segundo plano justamente a estrutura que interessa no presente estudo, qual seja, a dos sintagmas preposicionados cujo núcleo é um verbo no infinitivo. Desse modo, ficamos sem saber se as “regras de movimento” de que ele trata dariam conta dessa mudança ocorrida no PE. Mas ele tem razão em dizer que devemos examinar o fato ao microscópio para que ele se torne visível. É o que pretendemos fazer aqui, utilizando a proposta de WHL (1968), sobre o encaixamento da mudança. Vamos escarafunchar os dados o suficiente para demonstrar que se trata de uma mudança que afetou primeiramente a estrutura dos sintagmas preposicionados com a preposição a e que se estendeu à construção de perífrases verbais constituídas por verbo transitivo indireto (V), com regência da preposição (a) seguida de infinitivo (V) cujo complemento fosse um clítico (C). No português antigo, predominava a ordem CVaV e havia também VaCV que, posteriormente à mudança de que tratamos, passou a se realizar como VaVC. Como vamos ver com o resultado dos dados, essa extensão também afetou a posição do clítico no PCV quando as preposições regentes eram outras, como podemos depreender das duas ocorrências do grande humanista Manuel Severim de Faria, – que viveu e escreveu justamente durante o período da implementação da mudança (séc. XVI-XVII) – as quais mostram ambas as possibilidades: (1)

E tendo eu naquele tempo [1625] uma obra grande, que intitulava: Notícia de Portugal, e suas conquistas: já quase em estado para se poder imprimir, como testificam [...] (NP, “Aos leitores”, p. 5)

(2)

No segundo se refere a ordem da Milícia, com que este Reino se defendeu de seus contrários por espaço de quase 500 anos, e os meios, e forças que agora tem, para poder melhor conservar-se, que de antes. (idem, ibidem)

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Cadê o poder de atração do advérbio melhor? Segundo as regras tradicionais, advérbios teriam poder de “puxar” o pronome para a posição anterior ao verbo: ora, em (02) e em inúmeras outras atestações no córpus10 não é o que acontece ... 2. A amostra 2.1. As variantes Como já mencionei, tenho realizado um trabalho de varredura em textos antigos, de diferentes séculos, para tentar reconstituir a história do sistema pronominal. Nessas leituras, foi saltando aos olhos que algum fato estava acontecendo na distribuição dos pronomes nos sintagmas preposicionados ao longo do tempo. Fiquei intrigada pelo fato de, nos mais antigos, observar que a próclise era a regra e que só muito esporadicamente, aparecia uma ênclise nesses sintagmas. Conforme ia anotando, na margem nos textos, as siglas PCV para casos de próclise e PVC para os de ênclise, constatava, no fim da leitura de um texto, que havia muito mais casos de PCV, com todas as preposições (as mais frequentes: a, de, em, pera/para, per/ por, sem; para efeito de apresentação na Tabela 02, mais adiante, as demais preposições foram englobadas como outras; porém o seu levantamento foi personalizado). Entretanto, à medida que a época do texto ia avançando no tempo, o comportamento de uma preposição destoava dos demais; tratava-se da preposição a: aqui e lá, apareciam casos de ênclise. Esse fato se confirmava, muitas vezes, com os constantes na introdução do editor/ anotador dos textos (manuscritos) antigo: (3)

10

[...] De facto, e como implica a observação supra-citada de M. Banniard, o problema das “origens românicas”, a colocar-se, deve ser perspectivado não em termos de qual o critério ou qual o limiar (temporal, linguístico ou cultural) pertinente [...] isto é, quais as variáveis significativas e qual o número significativo de ocorrências, e em que época, que se deve verificar para se obter um contraste linguístico significativo. (EMILIANO, 2003:312)

Utilizo a forma aportuguesada córpus, com acento, como qualquer paroxítona terminada em –u (como em bônus, tônus, húmus, lótus...).

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(4)

Estas compilações [...] e que foram transcritas num único códice, sem qualquer tentativa de as coligir ou interligar [...] (EMILIANO, 2003: 83)

(5)

[...] limito-me a apontar este ponto sem o desenvolver. (EMILIANO, 2003: 125)

Comecei, portanto, a refinar os critérios de busca, prestando muita atenção ao que acontecia em outras construções da língua. Então observei que, à medida que se passava dos textos mais antigos para os mais “modernos”, aumentava a ocorrência de nominalizações de verbos com anteposição do artigo o ao infinitivo, em concorrência com a construção [em + gerúndio], extremamente frequente na língua mais antiga, para expressar um fato concomitante a outro. Não fiz o levantamento numérico dos casos de gerúndio, como “em amanhecendo” comparado com os das nominalizações “ao amanhecer”, porque ia já adiantada a coleta dos dados e seria preciso revisar uma vez mais todos os textos já levantados, o que não seria possível no momento. Também me parece que não seja necessário esse levantamento quantitativo, visto que o número de ocorrências de nominalizações que aparecem, de início, com a preposição a é diminuto e dificilmente se encontra um “par mínimo” como em amanhecendo / ao amanhecer (empresto essa designação da fonologia, para designar idêntica ocorrência, num mesmo texto, das variantes em concorrência, para demonstrar seja a variação, seja a mudança em curso). Não descarto a hipótese de vir a fazer tal levantamento para outro trabalho mas, para os fins a que me proponho aqui, os dados registrados serão suficientes. Basta ressaltar que essas nominalizações vão ficando mais evidenciadas à medida que se lê uma maior quantidade de textos. Quanto à vitalidade de [em + gerúndio] na língua atual, a construção parece estar circunscrita à escrita formal (ou em discurso de parlamentares: aliás, a linguagem dos políticos é reduto de uma série de arcaísmos, usados para impor respeito e impressionar positivamente, efeitos do uso da língua nos registros mais próximos da ponta do continuum na direção da formalidade), como uma espécie de esnobismo gramatical, para o autor demonstrar que conhece a língua (assim como, equivocadamente, usa a tal da mesóclise, para demonstrar erudição, uma vez que na língua oral o futuro sintético vai perdendo terreno para a construção perifrástica [ir + infinitivo]).

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Dessa maneira foi se delineando a hipótese de que a mudança na expressão da nominalização poderia estar tendo consequências na colocação do pronome, quando a preposição era a: como interpretar a o ler de (06)? (6)

[...] pensae que o seu leer é obra meritoria [...] nunca vos enfadees de tornar a o leer. (LC, p. 339)

Trata-se de construção verbal ou nominal? Em algumas situações, a ocorrência num determinado texto dependia de uma interpretação contextualizada, isto é, havia necessidade de lançar mão de outros indícios, como referenciação, fatos anteriormente mencionados, para decidir se se tratava do artigo o (portanto nominalização) ou do pronome objeto (logo, construção verbal, para indicar ação concomitante a outra). Mas em outros, como quando o pronome estava no feminino (07) ou no plural, já não se justificava a ambiguidade e o pronome podia aparecer tanto antes quanto depois do verbo em idêntico contexto (par mínimo em (08-09)): (7)

As quaaes avemdo laa noua darmada quese fazia, vinham tambem comtra Liboa a sabello e troualla se podessem. (AH, p. 192)

(8)

Serão os Sacerdotes [de Goa] de maior efeito na pregação; porque, como naturais da terra, hão de permanecer sempre nela, e não vir-se logo como fazem os nossos; e com natural amor, que têm aos de sua nação, se moverão com natural zelo aos ensinar, e eles os ouvirão com muito melhor vontade [...] (NP, p. 204

(9)

Pelo que resta somente vermos os meios com que isto se há de fazer: estes são notoriamente dois, ou vindo os sujeitos de Guiné aprender a Portugal, ou indo os Pregadores de Portugal a ensiná-los. (NP, p. 209).

Por conseguinte, quando a posposição se estendeu aos demais pronomes, em que não haveria nenhuma possibilidade de leitura ambígua, vemos evidenciada a mudança na regra, não se caracterizando mais como situação ad hoc.

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2.2 As fontes Para dar conta da hipótese aqui defendida, vou me valer de um conjunto de obras selecionadas ao acaso, dentro das que dispunha para cada período, pertencentes a gêneros textuais diversos (documentos oficiais, cartas íntimas e oficiais, crônicas – as antigas e as modernas, relatos de viagens, cartas ânuas (no caso dos jesuítas) e um texto técnico, descritivo). Esse procedimento evita o enviesamento da amostra, porque cobre um espectro muito amplo das possibilidades de expressão da língua, ainda que escrita. Vai mostrar também, como veremos mais adiante na análise dos resultados, que a estrutura linguística do caso em estudo parece não ser afetada por fatores estilísticos ou sociais (tipo de escritor, intimidade com o receptor), a não ser pelos números, com raras exceções, como poderemos constatar. No estabelecimento do córpus, dei preferência a apresentar mais documentos das fases mais antigas – sécs. XIV, XV, XVI – para demonstrar que, independentemente do autor, a próclise era constante, ou mesmo, categórica. Na sequência, fui reduzindo o número de documentos, conforme se pode ver na Tabela 01, o que não impediu de mostrar a evolução dos dados e a mudança que ia sendo introduzida, como se vai verificar nas Tabelas 02 e 03, mais adiante. TABELA 01: Constituição da amostra Século(s)

Datas (* - †) [out]

Autor e/ou Obra

XIV:

[1325-1357]

Cortes Afonso IV (AF4)

[1357-1367]

Cortes D. Pedro I (DPI)

XIV-XV

[trad. quatrocentista] [1391-1438] (c.1380-c.1458)

XV

(c.1440-c.1522) (1445-1517)

Vida e feitos de J. César (VJC) D. Duarte, Leal Conselheiro (LC), Fern. Lopes, Crón. D. João I (FL) R. de Pina, Crón. D. Dinis (RUI) Duarte G., D. Af.o Henriques (AH)

Tipo de texto legal: cartas, forais, alvarás legal: cartas, forais, alvarás narrativa/ biografia reflexões; auto-ajuda crônica crônica crônica

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191 continuação da tabela 01 XV-XVI

[c.1529]

XVI

[2.a met., ant. a 1580] (c.1566-1571-1656) (1574-1651)

XVI-XVII

(1583-1655)

Itinerário Antonio Tenreiro (AT) Itinerário Mestre Afonso (MA) Thomé P. Veiga, Fastigimia (FA) Fr. Leão Beneditina Lusitana (BL) S. Faria, Notícias de Portugal (NP)

narrativa de viagens relato de viagens; análise social história da ordem de São Bento ensaios, resenha histórica

[1604-1613]

Cartas Pe. Xavier (JX)

XVII

(1608-1666)

DFMM, Apólogos Dialogais (AD)

narrativa moral

XVIII

[1731, data no ms.]

Frei J. Correia,.S. J.o Deus (JD)

vida e obra de S.J. de Deus

Dalla Bella, Mem. do Azeite (AZ) Cartas António Feijó (FEI) Dispersos de Camilo CB (CB)

ensaio técnicocientífico cartas íntimas, ao irmão crónicas e crítica teatral

(1730-c.1823) XIX

(1859-1917) (1825-1890)

Jerónimo

narrativa de viagens

cartas (relatórios)

ânuas satírico-

Obs.: As datas entre parênteses são referentes ao nascimento e morte do autor, quando foi possível localizar; aquelas entre colchetes são das datas dos documentos ou outros indícios de datação. As siglas entre parênteses são utilizadas nas tabelas e para referenciar as abonações.

2.3 Papel da preposição a A mudança de posição do clítico parece, então, ser decorrente de uma mudança na expressão da simultaneidade de dois eventos no tempo: nos períodos mais recuados da língua se usava ou a construção [EM + gerúndio] ou gerúndio simples para indicar a concomitância de um fato com outro e equivalia a uma adverbial temporal (equivalente a [quando/ como + verbo no imperfeito do indicativo]). Vejamos ocorrências dessas expressões (10-11) em Fernão Lopes (primeira metade do séc. XV, quando ainda ocorria o emprego de SEM mais gerúndio) e em carta de D. João de Castro (12-13), datada de outubro de 1541 (um intervalo de um século):

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(10) [...] e el que os semtio, sem sabendo quem eram, rreçeousse muito e tornou atras [...] (FL, Crón. DJI, p.5) (11) E em sse rrecolhemdo o dito Martim Correa e [os] outros com elle, deitou em pos elle hũu Escudeiro [...] (FL, Crón. DJI, p. 150) (12) A 28 dyas amanhecendo nos fezemos a vella. [...] Ho outro dya que forã 29 Rompendo a menhã nos fezemos a vella [...] Ẽ entrãdo no porto nos tyrarã algus tyros de artelharia. (SANCEAU, p. 80) (13) A 3 de abrill amanhacẽdo nos fezemos a vella da Aguada de Soleymã. [...] Este dia em anouteçendo correo hũ Rayo debayxo da lua escontra ho orezonte levãdo apos sy grãde e fermoso Resprandor. (SANCEAU, p. 81) No entanto, como na língua antiga aconteceu um sincretismo entre o particípio presente (em –nte) e o gerúndio (em –ndo)11, é possível encontrar exemplos como (14): (14) [..] e dali moueraõ ao saraõ e andaraõ toda a noite atee a brenha em erma de pernas e chegaraõ ahi à sesta feira amanheçente. (Crón. 5 reis, p. 84) Também se usavam nominalizações de verbos, como o comer e o beber. Tais nominalizações já eram frequentes na estrutura [oŇde X]12, como em 11

12

Ver em MENON (2004, 2006, 2008) explanação sobre essa confluência, devida ao fato de o particípio presente não ter sobrevivido em português com valor verbal, equivalente/equivalendo a uma relativa: só restaram substantivos e adjetivos (estudante, presidente, ausente). O valor verbal ficou sendo expresso pela forma idêntica à do gerúndio, aquela que é condenada pelos gramáticos tradicionais como “construção francesa”, mas que está presente em português desde os textos mais antigos. Temos um bom espécime dessa alternância no seguinte trecho, tirado do primeiro livro impresso em Portugal, em português: “Porẽ mandamos q͂͂ se macho cõ macho fezerẽ pecado sodomitico em remiinto de suas almas jajuem .xxi. coresma. A p͂meira a pã e agoa tirãdo o domı͂ go e coma ẽ ele viãda de coresma se q͂͂ser e daq͂las .xxi. coresmas as .xiiij. pode soltar por cartas de solturas, das sete nõ pode aver remiimẽto salvãte p̰ seu obispo quãto lhe der [...]” (Tratado de confissom, 1973: 193] Leia-se: [artigo + nome oriundo de verbo + de + complemento nominal].

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o nascer do sol. Temos no córpus, desde o séc. XIV-XV: ao filhar das cidades (VJC); ao abrir das portas, ao embarquar de seu corpo, ao emtrar de Triana (AH); ao nacer do sol, ao fahir das portas da cidade pera os arrabaldes (AT); ao passar do mar (MA); ao parecer de todos, ao sair do sol (JX). Esse tipo de nominalização não se confundia com a expressão do objeto pronominal o em situação proclítica, porque sempre tinha um complemento com a preposição de (15, 18). A hipótese é a de que o problema vai começar quando a nominalização se torna mais produtiva13 a partir da estrutura [artigo o + verbo], que passa a ser idêntica à estrutura [pronome o + verbo]. (15) Saibham que o leer dos boos livros e boa conversaçom faz acrecentar o saber e virtudes. (LC, p. 10) (16) O Gozil se offereceo a o fazer, porque tinha elle enueja do que o Vedor da fazenda auia dos nossos, e se foi a ElRey, e lhe falou polo modo que os Mouros com elle falárão [...] (CORREIA, 1975: 94) (17) Esta ilha [Ormuz] he nosa e o emxofre que se apanha dela não sae fora senão per mão de nosos ofiçiais, de modo que ao nõ quererem vemder aos mouros em toda esta teraque cõprende hῦa terça parte do mῦdo não averia hῦa mã chea de polvora. (SANCEAU, carta de 29.10.1539, p. 45) (18) [..08.] e os possa mandar trazer livremente pera esta cidade pera despeza de sua casa sem ao tirar do dito pão nem ao pasar delle pellos lugares per omde vyer, lhe ser posto embarguo allgũ e esto sem embarguo de quaisquer minhas provijsões defesas e posturas de camaras que aja em contrario. (Alvará, 06.06.1555, Cartas e alvarás, p. 93) 13

Como de início não tinha percebido o papel dessas nominalizações, não efetuei levantamento específico. Entretanto, elas vão ficando mais perceptíveis (isto é, aparecem em quantidade suficiente para chamar a atenção) a partir do séc. XVI. Outrossim, o processo de nominalização atinge outras classes de palavras: ao depois (advérbio, JD, p. 95, 149; AZ, p. 45); e todas as composições de oração reduzida de infinitivo, que ficam disponibilizadas para as subordinações: “basta o pedilo para tudo lhe chegar a dar” (JX, p. 180); “apertou-se-me o coração ao ler a notícia da tua retirada.” (FEI, p. 121); “para que o romance, ao erguer-se esfarrapado dos typos, vá, cuspido e apupado do público, sumir-se no refugio extremo da estupidez audaciosa.” (CB, p. 274). Fica para trabalho posterior uma descrição desse processo de mudança.

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(19) [...] lhe vir ordem do rei do que devia faser como logo veo e foy que se fosse pera onde el rei vinha ao encontrar com a mais gente que pudesse levar [...] (JX, p. 178) (20) Não queremos nos apertar ao pedir (que elle o daria a nos) por ser a terra roim [...] (JX, p. 100) Se (18) não oferece dúvida na identificação da nominalização, ela se manifesta no trecho imediatamente posterior ao alvará, na licença que se concede ao deão da capela para o transporte do referido pão (= trigo), isento de taxas e impostos (21). Interpõe-se então a possibilidade de interpretar a nominalização [Art. + nome] ao passar, como sintagma preposicionado PCV [prep.a + pronome o + V], visto que não há complemento com de, como em (18): não seria impedido de tirar o trigo para levar a outro lugar (havia leis que impediam isso, enumeradas no alvará (18)), nem pagaria impostos (peagem, “pedágio”) para passar (=transportar) o pão a esses outros lugares: (21) Licença a dom Sancho de Noronha, dayão de vosa capela que possa tirar dos celeiros das suas Jgrejas que tem na villa d(e) Obidos xii moios de pão [...] sem ao tirar do dito pão nem ao passar pellos lugares per omde vier lhe ser posto embargo allgũ [...] (Licença, 06.06.1555, Cartas e alvarás, p. 93) A língua, todavia, dispunha de uma maneira de desambiguizar14 14

Uma das maiores dificuldades iniciais de quem se propõe a trabalhar com textos portugueses antigos é justamente a questão da ordem; como ela em geral era OVS (objeto-verbo-sujeito), o leitor moderno tende a interpretar a oração ao contrário, até se dar conta de que a leitura tem que ser às avessas. Além disso, a colocação pronominal decorrente dessa diversidade na ordem dos constituintes da oração pode provocar confusão entre artigo e pronome. Vejamos um exemplo: no texto abaixo, o leitor moderno pode considerar que o Paio é um sintagma nominal, considerando que o é artigo; no entanto esse o é pronome objeto: “[…] vendo que se nam podiã salvar, cortaram ho cabo que tinha dado á nao, sem ho Paio de sousa saber.” (GOIS: 70). Para quem está familiarizado com as regras da língua antiga, não ocorre a possibilidade de engano, visto que os nomes próprios não eram acompanhados de artigo. Além disso, teria que haver um complemento para o verbo saber, se a interpretação como sintagma nominal se impusesse. Neste caso, excepcionalmente, ocorre logo depois um outro enunciado que elucida o fato, aparecendo de novo o nome próprio, sem artigo. Mais ainda, aparece novamente a frase, com anáfora pronominal: sem ho elle saber: “Desamarrada ha galé de Paio de sousa, dom Lourenço, pôsto que pera isso, sem ho elle saber, lhe tivessem aparelhado ho paráo.” […] (GOIS: 71)

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o sentido: bastava deslocar o pronome para depois do verbo, em posição enclítica (a passá-lo). Está criado, pois, ambiente favorável para desenvolvimento de nova regra de colocação do pronome. Por outro lado, talvez devido a uma reanálise de construções que utilizavam a preposição a, sobretudo na expressão da finalidade (22), esta passou a ser empregada para expressar o tempo de uma ação concomitante a outra. Para fazer referência a um dado momento, a língua dispunha de uma nominalização deverbal (23), a luta (digamos mais estático, “produto”); para indicar o desenrolar da “ação” (que, depois, por gramaticalização, se estende a outros verbos, até como pensar), passou a contar com a nominalização do verbo (24), o lutar (mais dinâmico, “processo”): (22) O fidalgo ia a Ceuta a/para lutar com os mouros. (23) A luta com os mouros foi acirrada. (24) Ao lutar com os mouros em Ceuta, o fidalgo recebe uma flechada. Há uma diferença sintagmática e paradigmática entre os dois nomes: a luta pode ser selecionada para aparecer em oração absoluta; o lutar, antecedido de a, só pode ser selecionado para uma oração dependente, subordinada, as chamadas reduzidas de infinitivo. Enquanto desenvolvia a hipótese, lendo uma antologia de excertos de Damião de Góis, organizada e anotada por Dória, constatei que uma das notas explicativas dava conta exatamente dessa questão. Vejamos o que diz esse editor (1944: 29, nota 48): (48) Ao chegar. No português arcaico e no médio o particípio presente era precedido da preposição em quando se indicava o momento da realização duma acção em simultaneidade com outra. Actualmente empregase o infinito regido de a. Note-se, porém, que quando o particípio presente15 designa tempo, condição ou hipótese 15

Em Portugal, na época de Dória, ainda se denominava o gerúndio por particípio presente.

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pode fazer-se preceder de em, se se indicar com o verbo subordinante hábito ou futuridade. Por ex.: em se fazendo tarde vem embora, isto é, logo que se faça tarde, etc. Embora Dória diga que é “atualmente” que se usa “infinito regido de a”, ele não localiza o que seja “atualmente”. Como em todo fenômeno de mudança, uma vez introduzido/ regularizado um paradigma, a estrutura fica disponível na língua e tende a se implementar rapidamente, estendendo o alcance da aplicação da regra. Desde que foi possível nominalizar qualquer verbo, a regra se estendeu a nominalizar toda estrutura que contivesse um verbo no infinitivo (inclusive o flexionado). Como uma oração reduzida de infinitivo pode ter complementos e eles podem vir a ser retomadados anaforicamente por pronomes (25)16, a nominalização vai abarcar toda a estrutura oracional (26), em processos de subordinação de diferentes níveis17. (25) aueria em algũas partes negligencia em propor a dita fefta, & faltando o propola, faltaria tãobem o celebrala em algũ tẽpo, & lugar. (BL, p 231) (26) Dos quaes o ver claramente a Deos he dote que refponde a Fe. O gozar de Deos [...] a Charidade. O cõprehender a Deos, alcançalo, telo, & pofuillo como coufa propria he dote q refponde a Efperança. (BL, p. 88) (27) [...] e, como impaciente de tamanho bem, como o vêr-me diante de vossos fermozos olhos, temo o juizo [...] (VEIGA, Fastigimia, p. 309). A oração reduzida subordinada a nome pode, por sua vez, sofrer nova subordinação e passar de núcleo a elemento regido, como em (28), subordinado à preposição em que constrói o adjunto adverbial de tempo, ou em (29), como componente do sintagma preposicionado que exerce 16

17

Como é fácil deduzir, nessa estrutura a ênclise será obrigatória, pois a sequência o a propor é agramatical, tanto no PE como no PB. Isso talvez venha em ajuda de uma explicação para as ocorrências de ênclise na sequência alcançalo, telo & pofuillo ... Ver também a nota 13.

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a função de complemento nominal na estrutura do adjunto adverbial de assunto. A nominalização também podia ocorrer com uma oração com verbo finito, como em (30) por que hiam, que se subordina à preposição a do complemento nominal emtrada (ou objeto indireto, se se considerar que dar emtrada é verbo suporte): (28) Por onde não fò o gloriofo Patriarcha foi como Anjo no aprender, [...] fenão tambem foi Anjo no viuer. (BL, p. 38) (29) [...] guardando o q manda a Santa Regra acerca do receber os hofpedes. (BL, p. 71) (30) [...] e emcomtramdosse com os christaãos, vieram aas cutilladas brauamente: os nossos por darem começo e emtrada ao por que hiam, e os mouros polla tolher amtes que o mall mais creçesse. (DAH, p. 114) Não faz parte da intenção deste estudo deslindar o estatuto dos clíticos que porventura apareçam nessas estruturas subordinadas: é um problema melindroso tentar decidir se o pronome da sequência alcançalo, telo & pofuillo do exemplo (26) constitui ênclise normal. Será que se trata de retomada anafórica só de a Deos (objeto direto preposicionado) ou de todo o sintagma anterior O cõprehender a Deos, com apagamento do artigo? 2.4 Os resultados Ao ler a Tabela 02, salta aos olhos uma linha evolutiva: (i) ocorrência categórica ou largamente majoritária, de próclises; (ii) aparecimento esporádico de ênclises; (iii) equilíbrio entre próclise e ênclise (praticamente meio a meio em Camilo: 135 próclises contra 125 ênclises). Pode-se argumentar que se trata de números absolutos e não de pesos relativos, como deveria ser o caso para se falar em aplicação da regra (quando aplicamos o programa Varbrul a dados codificados segundo grupos de fatores linguísticos e sociais que consideramos pertinentes para tentar deslindar os mecanismos da variação). Entretanto, quando lidamos com história da língua, fica difícil estabelecer grupos de fatores: primeiro, porque as amostras são de língua escrita; segundo, por essa razão, muitas vezes não

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temos como datar exatamente os textos; terceiro, em muitos casos nem a data de nascimento exata do autor é possível localizar e, muitas vezes, o autor tem uma única obra (resta, então, a época do texto que, como vimos, também é de rara certeza, sobretudo nos períodos mais recuados da língua) ou as cópias existentes são muito posteriores (o que, para alguns casos de variação em sintaxe, pode ter efeitos minimizados). Assim, o mecanismo que nos permite entrever a mudança é a quantidade de dados: à medida que as ocorrências se tornam mais frequentes, podemos partir do pressuposto de que a variação já se instalou e pode se pensar em uma mudança em curso. No presente caso, as ocorrências de ênclise nos primeiros textos podem parecer anômalas. Algumas podem ser devidas a problemas de cópia, mas as quatro ocorrências em DPI podem ser atribuídas à interferência da coordenação: trata-se de uma fórmula legal repetida várias vezes nos documentos entre as páginas 80 e 90: temos uma construção preposicionada e dois verbos no infinitivo ligados pela conjunção e. As quatro ocorrências de ênclise em (33, 35, 36) poderiam ter sido interpretadas pelo escrivão como início de período (ffazer lhys); como não se pode senão conjecturar a respeito do que pode ter interferido, pode-se ao menos argumentar que o número maior de casos ainda é de próclise – doze! (31) pera eu todo vẽer e lhjs ffazer merçee (p. 80,) (32) pera o eu vẽer e lhys ffazer merçee (p.81, 82xx, 84xxx, 86, 88xx, 89) (33) pera ho eu vẽer e ffazer lhys por ello merçee (p. 82) (34) pera o vẽer e lhys ffazer merçee (p. 85) (35) pera o vẽer e ffazer lhys merçee (p. 86) (36) pera o Eu vẽer e ffazer lhys merçee (p. 90xx) Em VJC as ênclises podem ser atribuídas à incerteza de datação do manuscrito: diz-se no título e na introdução que se trata de tradução quatrocentista; ela pode ser mesmo da segunda metade do século XV, quando a regra variável já se manifesta, como podemos ver nos demais resultados do século. Se em RUI não há ocorrência de ênclise e em LC (04 dados) e FL (01 dado) ela ainda é tímida, em AH já é maior, com nove casos.

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Não importa se AT não apresente nenhum PVC e o seu contemporâneo (António Baião, no prefácio, diz: “Cinco anos após a primeira publicação do Itinerário de Tenreiro foi efcrito o de Meftre Afonfo.” (Itinerarios, p. XIV) MA tenha seis ocorrências: essa é uma questão muito importante quando se trabalha com variação. Em Menon (1996) relatei a experiência com os dados do NURC-SP, na seleção dos informantes, para defender que um maior número deles evita um paradoxo: ter zero ou 100% de ocorrências, fato que pode ser decorrente do estilo individual de cada falante. O resultado de uma pesquisa sobre determinado fenômeno pode vir a ser enviesado se se dispuser de um número muito pequeno de informantes por célula: no NURC eu consegui dispor de quatro informantes por sexo, faixa etária e tipo de entrevista. Ora, em alguns casos, uma das variantes de indeterminação do sujeito dividia-se ao meio: dois informantes sempre a empregavam e os outros, nunca. Pode-se imaginar o alcance das conclusões a que se chegaria sobre variação e mudança na língua no (a)caso de se dispor somente de um dos dois grupos: resultados diametralmente opostos. Por isso, neste estudo, procurei apresentar vários autores, sobretudo do período que imagino ter sido o do início da variação (sécs. XV-XVI) e dois do período final da abrangência (séc. XIX). Assim, o panorama das ocorrências tenderia a refletir as diferentes realizações individuais da língua (lembro que a seleção dos autores foi ao acaso: a contagem dos dados foi feita depois). Um resultado, no entanto, merece considerações especiais: Frei Leão de São Tomás, autor da BL, nasceu no século XVI18 e escreveu a sua obra provavelmente no decorrer XVII, período em que a variação já estava se manifestando, como vimos acima. Por que, então, não aparece nenhum caso de PVC na sua obra? Quando fiz a anotação inicial dos casos, tinha me ficado a impressão de ter visto na BL ênclises com a preposição a. Fui reler a obra e conferir as anotações à margem e verifiquei que havia, sim, essas ocorrências; porém elas estavam na estrutura VaVC, que não foram computadas nesta amostra, justamente por serem estruturas diferentes. 18

Uma das premissas da sociolinguística (sobretudo para análises em tempo aparente; mutatis mutandi, pode se aplicar o mesmo princípio para a pesquisa histórica da variação/mudança) é a de que o falante reflete o estágio da língua falada nos primeiros vinte, vinte e cinco anos de sua vida (período de aquisição e consolidação da língua): assim, mesmo que uma obra tenha sido escrita no séc. XVII, se o escritor nasceu no XVI, a língua usada nos seus textos vai ser representativa ainda de algum período do século anterior, conforme a sua data de nascimento.

DPI VJC LC FL RUI 14 14-5 14-5 14-5 15-6 01 01 04 03 01 22 105 62 112 30 -02 14 07 01 46 16 65 63 20 10 42 76 43 12 -05 02 04 02 01 ---02 80 171 223 232 68 AD: Apólogos Dialogais AF4: Cortes Afonso IV AH: Crón. D.Afonso Henriques AT: Itinerário Antonio Tenreiro AZ: Memórias do Azeite BL: Beneditina Lusitana

AT MA FA BL 15-6 15-6 15-6 16-7 --09 02 07 18 53 32 02 02 20 26 25 32 74 103 19 63 45 23 11 11 32 04 04 10 27 07 87 68 136 260 197 CB: Dispersos de Camilo CB DPI: Cortes D. Pedro I FA: Fastigimia FEI: Cartas António Feijó FL: Fernão Lopes- Crón. D. João I JD: São João de Deus

AH 15-6 02 36 06 26 15 02

NP 16-7 11 48 08 69 41 05 03 185

JX 16-7 12 37 08 48 21 11 07 144

Prep. Séc. A DE EM P.A POR SEM Out. Total

AF4 14 ---------

DPI 14 ---04 ---04

VJC 14-5 03 01 -----04

LC 14-5 -02 02 ----04

FL 14-5 ------01 01

RUI 15-6 ---------

AH 15-6 03 02 02 01 01 --09

AT 15-6 ---------

MA 15-6 02 02 01 -01 --06

FA 15-6 09 -01 01 -01 -12

BL 16-7 ---------

NP 16-7 02 01 -----03

JX 16-7 02 02 03 01 04 05 01 18

AD 17 03 03 -04 01 02 -13

JD 17-8 01 --01 ---02

AZ 18 06 19 05 23 01 04 01 59

FEI 19 22 -04 04 --01 31

CB 19 40 52 05 25 -02 01 125

AD JD AZ FEI CB 17 17-8 18 19 19 -01 --01 31 35 18 65 43 05 19 -05 01 14 131 26 109 70 08 20 04 10 07 02 11 01 15 09 01 02 -01 04 61 219 49 205 135 JX: Cartas Pe. Jerónimo Xavier LC: Leal Conselheiro MA: Itinerário Mestre Afonso NP: Notícias de Portugal RUI: Rui de Pina Crón. D. .Dinis VJC: Vida e feitos de Júlio César

TABELA 03: Ocorrências de pronomes com posição PVC (preposição-verbo-clítico): sécs. XIV a XIX

Prep. AF4 Séc. 14 A -DE 21 EM 01 34 P.A POR 02 SEM -Out. -Total 58 Legenda:

TABELA 02: Ocorrências de pronomes com posição PCV (preposição-clítico-verbo): sécs. XIV a XIX

93 84 23 64 08 14 05 291

Total

48 775 127 971 461 127 69 2578

Total

Revista do Gelne

200

17 02

18

04 23 80

06 03

12 04 06

03 04 04 58

DPI 25

AF4 07

VJC 28 11 20 05 03 01 45 03 05 40 10 171

61 42 05 13 06 223

LC 43 15 15 11 12 60 03 17 39 01 232

FL 83 10 13 02 04

01 17 02 68

19

RUI 18 01 03 02 05 04 03 31 07 02 16 02 87

AH 09 08 05

10 01 68

22 06

AT 06 02 05 01 15

Pron. lo la los las me te se nos vos lhe lhes Total

AF4

04 04

DPI

04

02

02

VJC

04

09

01

03

AH 04

02

RUI

01

01

FL

02

LC

TABELA 05: Ocorrências dos pronomes em PVC

Pron. o a os as me te se nos vos lhe lhes Total

TABELA 04: Ocorrências dos pronomes em PCV

AT

136

38

33 11

MA 18 08 05 03 20

06

01

01

01

MA 03

84 18 14 27 05 260

FA 33 17 17 19 26

12

01

FA 03 04 02 03 01

BL 46 23 16 17 02 01 65 04 02 17 04 197

BL

03

01

01 01

NP

37 01 185

88 01

NP 22 07 17 10 02

02 01 18

02 01

06

JX 06

28 09 03 27 07 144

JX 39 07 13 03 08

13

AD 06 02 01 03 01

12 02 10 07 05 61

AD 12 02 02 04 05

02

01

01

JD

JD 36 06 21 07 06 01 79 09 03 50 01 219

59

01

17 01

29 01

AZ 08 02

49

01

32

09 02

AZ 05

31

06

FEI 04 01 01 01 12 02 04

205

29

FEI 26 08 03 01 77 33 27 01

CB 10 09 03 09 21 04 32 04 06 20 07 125

CB 19 08 03 05 19 03 41 11 03 22 01 135

Total 43 21 17 45 37 06 63 06 06 35 12 291

Total 475 133 176 106 216 42 762 129 68 398 73 2578

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Assim, se na BL não ocorre nenhum caso de PCV/PVC, a alternância se manifesta nas construções com VTI (verbo transitivo indireto), demonstrando que a variante inovadora já estava se estendendo a outros contextos. Na Tabela 06, vemos que, aparentemente, se passou da colocação mais antiga, com o clítico antecedendo o primeiro verbo (CVaV), diretamente para a posposição do pronome ao segundo verbo (VaVC). A posposição do pronome ao primeiro verbo (VCaV) pode ser devida ao escrúpulo de, na escrita, não iniciar período com o pronome clítico. Raramente se atestam, no corpus, ocorrências de anteposição do pronome ao segundo verbo (VaCV), como é moeda corrente no Brasil, quando o clítico não é o, a, os, as (p. ex. em: “a tarefa começou a se tornar cansativa”.). TABELA 06: Beneditina Lusitana: alternância em construções com VTI CVaV

VCaV

VaVC

o mar da concupifcencia fe começava a empolar (p. 31)

Tornoulhe o facerdote á affirmar, que ... (p. 48)

começarão os Monges de Ingl. a vnirfe em congr. (p. 154)

pois oje vos começo a ver gloriofo (p. 95)

pois começou a profeffala em recebendo a fè. (p. 270)

afsi fe começou a eftender por Italia (p. 136)

Os Reys Cath. começarão a lançalos fora (p. 176)

afsi fe começou a desfazer o Gelo (p. 118)

Tornarãono a fepultar a fegunda vez (p. 82)

começou a talha ... a encherffe de azeite. (p. 73)

Por conseguinte, desfaz-se a aparente contradição da BL à variação que já ocorria no século XVII. A partir daí, se intensifica não só (i) a ocorrência de casos de ênclise com todas as preposições, como é o caso de AZ, em que o número de PVC ultrapassa o de PCV, como um surpreendente equilíbrio no uso das duas construções (em CB) e, mais importante, (ii) o desaparecimento de PCV com a preposição a (AD, AZ, FEI) ou com um único caso residual (um dado em JD e CB), sinalizando a mudança efetiva de posição do pronome nesse contexto (sintagma preposicionado com a) para PVC.

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A distribuição dos casos por pronome (Tabelas 04 e 05) teve a finalidade exclusiva de mostrar que não há restrição nenhuma relacionada a este ou àquele pronome: se temos mais ocorrências (126) de pronomes cuja estrutura silábica seja somente V (o, a, os, as), os demais pronomes, cuja estrutura silábica é CV(C), também vão aparecer em ênclise a partir dos séculos XVI-XVII. As raras ocorrências de te e vos são devidas ao tipo de texto, visto que eles não contêm diálogos, o que favoreceria a sua ocorrência. 3. E para concluir: duas ordens em concorrência? Como vimos acima, a introdução das nominalizações de verbos provocou uma mudança na ordem do pronome em sintagmas preposicionados com a, com a extensão da regra às perífrases com VTI. Mas essa mudança encaixada não dá conta dos demais casos de ênclise, observados em outros estudos. O que está acontecendo, então, na língua? Se pararmos de pensar na colocação dos pronomes como um fato decorrente da prosódia, isto é, de uma palavra átona se apoiar no acento de outra que a antecede ou sucede, e analisarmos a questão do ponto de vista sintático, isto é, da mudança sintática ocorrida em português e outras línguas românicas, a explicação pode parecer mais simples (mas não simplista). Sabemos todos que as funções sintáticas eram marcadas morfologicamente em latim, através dos diferentes “casos” e, por consequência, a posição de um dado elemento na frase podia ser aleatória, já que a marca do caso identificaria a sua função. No entanto, em que pese esse fato, havia certas ordens preferenciais em latim: uma delas se refere à posição do verbo em final de frase. Como as línguas românicas não herdaram o sistema de casos, visto que já no latim vulgar esse sistema teria se deteriorado, com redução e, depois, perda total dos casos, o que restou às línguas românicas em formação, para marcar as funções sintáticas, senão a ordem das palavras na frase? Mas qual era essa ordem? Ora, se em latim o verbo vinha preferencialmente no fim da frase, onde se localizariam os seus complementos – objetos diretos e indiretos, advérbios? Necessariamente teriam de vir antes do verbo. Mas qual a sua posição? O advérbio teria de vir “colado” ao verbo, a justificar a

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etimologia da palavra: isso justificaria a presença do advérbio de negação antecedendo imediatamente o verbo; os demais advérbios antecederiam o de negação, estando ele presente. E os complementos verbais – diretos e indiretos – poderiam alternar a sua posição, como podemos constatar em duas línguas românicas: nas frases em que os complementos são expressos por pronomes, o francês teria “herdado” tanto a sequência objeto direto – objeto indireto, como em Je le lui donne; quanto indireto—direto, como em Il nous l’a donné; o português, somente a ordem indireto – direto: Eu lho dou; Ele no-lo deu. Assim, se argumentarmos que a questão é sintática, podemos refutar a teoria das palavras atrativas para justificar maior ocorrência de próclises (resultados encontrados por Sampaio Dória e por Pagotto). No caso em estudo, a preposição não constitui um “ímã” para o pronome vir para perto de si; ela simplesmente está na sua posição sintática regulamentar na língua: se vem depois da palavra que exige a preposição, por causa da regência, ela só pode ficar antes do termo regido, o verbo. E se o verbo tem complementos, esses vão aparecer na posição canônica da primeira ordem da língua, a mais próxima do latim: antes do verbo! Mas isso explicaria a anteposição do clítico ao advérbio de negação, em estágios anteriores da língua, ou mesmo hoje, como variante estilística do PE? Sim, a resposta é positiva porque a negação seria, em princípio, um advérbio (= junto ao verbo; modificador do verbo, da mesma forma que o adjetivo é modificador do substantivo); além disso, parece que a negação foi primeiro do verbo: fazer x não fazer (37), estendendo-se depois para a negação da frase (38): (37) Pedro fez besteira.

x

(38) Pedro saiu acompanhado. x

Pedro não fez besteira. Pedro não saiu acompanhado.

Em (37) ocorre a negação do verbo: fez x não fez; no entanto, em (38) a informação dada pelo verbo é a mesma: em ambas se afirma que Pedro saiu, só que, na frase com negação, há a informação de que não foi acompanhado por ninguém. Essa diferença da negação estaria interferindo na posição que os pronomes aparecem, na história da língua? É trabalho que está por fazer.

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Entretanto, nas frases em que os complementos verbais são expressos por sintagmas nominais, a ordem vai passando paulatinamente de OV(S) para (S)VO e os complementos vão se fixando na posição pós-verbal na ordem: objeto direto, objeto indireto, adjuntos adverbiais (embora alguns advérbios – já, logo – tenham guardado uma mobilidade maior (talvez pelo fato de não serem foneticamente pesados) e possam aparecer antes do verbo, sem qualquer ênfase). E as frases em que o complemento é pronominal continuariam a guardar a antiga ordem? Parece que não, a se levar em conta os resultados de Dória e Pagotto, acima referenciados: há mais ênclise quanto mais próxima de nós (no tempo) estiver a língua estudada. Esse fato corroboraria a posição de Kato (1993: 19): ela defende uma associação entre aquisição de linguagem e estudo da mudança linguística, ideia cara aos gerativistas, a partir dos postulados de Lightfoot (1979): Na versão de Clark e Roberts (1992), o input é passível de ser associado a diferentes gramáticas. Não são pressões externas que levam a criança a selecionar uma ou outra, mas um mecanismo avaliativo interno de adequação (fitness metric). Através de mudanças que ocorrem efetivamente, pode-se obter informações cruciais sobre os fatores em que a criança se baseia para selecionar a gramática. Nessa visão, a linguística histórica passa a ser um meio para se entender a aquisição. Do ponto de vista da teoria da variação e da mudança (WLH, 1968), teríamos, então, nesse caso, uma mudança encaixada: o processo de gramaticalização da ordem em português, na direção de uma rigidez maior na sequência SVO, estaria condicionando a posição do pronome objeto, que passaria a ir “automaticamente” para o lugar destinado ao objeto – depois do verbo, mesmo quando o contexto apresenta as tais palavras atrativas. Isso explicaria a ocorrência de exemplos como (39-43), de Camilo Castelo Branco e António Feijó, os autores mais recentes desta amostra (séc. XIX): (39) [...] ou porque teve compaixão da criança e não quiz disfructála. (CB, p. 51)

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(40) É celebre, uma mulher que devia rir-se até pelas ventas quando vê um elogio n’um periodego [..] (CB, p. 86) (41) [...] preciso de consolação do espirito que o senhor não póde dar-me. [...] Não tenho a arrepender-me de actos que não são meus. (CB, p. 134) (41) A amabilidade é de tal ordem que chego a não poder explicala ... E se visses a carta que escreveu a convidar-me? (FEI, p. 163) (43) O Conde de Bertiandos com quem jantei ha dias fallou-me de ti, dizendo-me que tinha o maior empenho em te ser agradavel, mas que não encontrava nicho em que pudesse metter-te, nas condições que tu desejas. (FEI, p.164) Veja-se a que distância estamos das ocorrências como (44-49): (44) E assim nenhuma cousa que começasse se arrependia, havendose em todas tão bem ou por seu singular ânimo e fortaleza, ou por o Deus favorecer nelas, que sempre dava cabo ao que começava e acrescentamento a sua fama e honra. (Imperador: 135) (45) — Cavaleiro de Hungria, deixa esta aventura a quem com puro amor a merece, porque está guardada àquele que a em si há de sentir, senão serei forçada defender-te eu a entrada. (Imperador: 172) (46) Mas primeiro q͂ ha hos Castelhanos tomassem, deçeparam has mãos a Duarte dalmeida, alférez pequeno […] (GOIS: 41) (47) [...] posto que me pareçe que quando se isto ja tratou os anos passados se avia por jnconveniente fazer se nisto mudança do que se até ora custumou. (Cartas e alvarás, 06.02.1567, p. 126) (48) [...] porque arrecceando ce do que lhe podião fazer o dono da casa portugues e outro da mesma terra que aly estava (e ambos tinhão tomado a sua conta o emparo dos ditos moços) se vinha gente por via delle a os tomar, os tirou de casa a meia noite dizendo que os padres os chamavão. (JX, p. 87) (49) O cuitado que foi a os consolar e ver se os podia consertar ja não podia sair nem o querião deixar ir. (JX, p. 87)

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Mas os exemplos do séc. XIX são muito semelhantes aos do XX, como em (50-51): (50) ( ) Ainda que concordando com a menor importância dos aspectos fonológicos, facto que me leva aliás a não considerálos neste capítulo, não posso deixar de fazer notar que esta menor importância é obviamente relativa [...] (EMILIANO, 2003: 310) (51) ( ) Passo a examiná-los e discuti-los separadamente. (EMILIANO, 2003: 84) Estabilizada então a chamada ordem direta – SVO – em frases com sintagmas nominais nas posições de sujeito e objeto(s), o falante iria estendendo o modelo às frases em que o objeto fosse pronominal, o que explicaria os resultados “surpreendentes” de ênclise nos períodos mais próximos de nós, assinalados por Pagotto e por Sampaio Dória. Sobre Camilo, diz esse autor: “A única diferença entre a tradição antiga e a moderna em Camillo, é no exagerado uso da posposição no indicativo. No mais, perfeito acordo.” (SAMPAIO DÓRIA, 1959: 318). Sampaio Dória, sem atinar que se trata de duas regras de língua porque são duas ordens dos constituintes da frase em competição, tentou justificar os resultados obtidos no seu estudo apelando, seja à “indiferença” do autor, seja à “tradição”, contrapondo a antiga, clássica (porque de clássicos ele tratou) à moderna, que, segundo ele, contraria a hipótese sobre o chamado poder de atração de determinadas palavras (p. 372-373): Eis as duas ordens de factos contra a teoria de que a próclise é efeito da atracção de certas palavras. Realidade constante, reiterada, inequívoca, é a próclise sem atracção e a ênclise apesar da atracção. Ao lado desta verificação na linguagem de Machado de Assis, outra se impõe: Machado de Assis prodigaliza, como Camillo, Herculano e Castilho, a posposição do pronome átono a verbos no indicativo, presente ou pretérito, sem negativa.

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Nos clássicos antigos, não será exagêro dizer-se19 que só por eufonia ou ênfase se pospunha o pronome átono a verbos no indicativo, presente ou pretérito, sem negativa. Nos modernos, pouco exagêro haverá no contrário: só por eufonia ou ênfase se antepõe o pronome átono a verbos no indicativo, preente ou pretérito, sem negativa. Machado se Assis carregou a mão na ênclise, nesta hipótese. [...] Terá Machado de Assis tido suas razões, ora para antepor, ora para pospor. Indiferença talvez. Apesar de a posposição já ter se consolidado nas construções preposicionadas de infinitivo com a preposição a, resta aguardar pelo tempo, para se constatar se as novas gerações vão se ater ao caso específico dessa preposição, ou se vão estender a regra às demais preposições. Por ora, como a nova ordem sintática está (ainda) nos estágios iniciais da mudança, parece que a antiga ordem dos pronomes, mais cristalizada, resiste ainda à implementação da nova estrutura. O fato é que temos aí um caso de co-habitação de duas regras sintáticas em concorrência, o que, necessariamente, tem consequências na tentativa de explicação das “exceções” à regra “cometidas” pelos autores e pelos falantes: mas de que regra se trata? Da antiga ou da nova? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Benedictina Lvsitana. Tomo I. [por] Frei Leão de S. Tomas. [fac-símile da edição de 1644: Coimbra, Offic. Diogo Gomes de Loureiro, Typographo da Vniuerfidade]. Introd. e notas críticas de José Mattoso. Lisboa: INCM. 1974. Cartas de D. João de Castro. Coligidas e anotadas por Elaine Sanceau. Lisboa: Agência Geral do Ultramar/Divisão de Publicações e Biblioteca. 1955. Cartas e alvarás dos Faros da Casa Vimieiro. Introd. de Maria Alice Beaumont. Cascais: Câmara Municipal/ Museu-bibliot. Conde de Castro Guimarães. 1968. 19

Vemos que o próprio autor faz ênclise quando está presente a negação, que seria uma das “palavra atrativas” ...

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Sempre que foi possível localizar a data da primeira edição da obra, ou a datação do manuscrito, ela veio mencionada entre colchetes, após a data da edição utilizada para este trabalho.

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DOM DUARTE. Leal Conselheiro. Ed. crít., introd. e notas de Maria Helena Lopes de Castro. Prefácio de Afonso Botelho. Lisboa: INCM. 1998 [c. 1433-1438]. DÓRIA, António Álvaro. Introdução. In: DÓRIA, A. A. Damião de Góis. Trechos escolhidos. Introd., selecção e notas por A. Á. Dória. Lisboa: Livraria Clássica Editora. 1944. p. 05-18. ______. Damião de Góis. Trechos escolhidos. Introd., selecção e notas por A. Á. Dória. Lisboa: Livraria Clássica Editora. 1944. EMILIANO, António Henrique de Albuquerque.. Latim e romance na segunda metade do século XI. Análise scripto-linguística de documentos notariais do Liber Fidei de Braga de 1050 a 1110. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian/ Min. Ciência e Ens. Superior. 2003. FARIA, Manuel Severim de. Notícias de Portugal. Introd., actual. e notas de Francisco A. Lourenço Vaz. Lisboa: Colibri / Évora: Escola Sec. Severim de Faria. 2003 [1655]. GALVÃO, Duarte. Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques. [apres. José Mattoso]. reimpr. da ed. de 1986. Lisboa: INCM. 1995 [1726]. Itinerários da Índia a Portugal por terra. Rev. e pref. por António Baião. Coimbra: Imprensa da Universidade. 1923. Itinerário de Antonio Tenrreyro. 6. ed. conf. a segunda, de 1565. In: Itinerários da Índia a Portugal por terra. Coimbra: Imprensa da Universidade. 1923 [c. 1529]. p. 03-127. KATO, Mary A. Apresentação: Como, o que e por que escavar? In: ROBERTS, Ian & KATO, Mary A. (orgs.). Português brasileiro. Uma viagem diacrônica. Campinas: Editora da Unicamp. 1993. p. 13-30. LIGHTFOOT, D. Principles of diachronic syntax. Cambridge: CUP. 1979.

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VARIAÇÃO ESTILÍSTICA NA ESCRITA ESCOLAR MONITORADA: O CASO DA COLOCAÇÃO PRONOMINAL STYLISTIC VARIATION IN MONITORED STUDENT WRITING: THE CASE OF PRONOMINAL ORDER Silvia Rodrigues Vieira Universidade Federal do Rio de Janeiro Adriana Lopes Rodrigues-Coelho Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Letras VernáculasUniversidade Federal do Rio de Janeiro RESUMO O presente artigo discute a relação entre variação estilística e modos de organização discursiva, tomando por base o estudo sociolinguístico da colocação pronominal em dados extraídos de redações escolares dissertativas e narrativas (RODRIGUES-COELHO, 2011). Além de investigar a relação entre monitoração estilística e modos de organização, apresentam-se as motivações linguísticas e extralinguísticas que favorecem as variantes da ordem dos clíticos pronominais em construções verbais complexas, quais sejam: cl V1 V2 (se pode investigar), V1-cl V2 (pode-se investigar), V1 cl V2 (pode se investigar) ou V1 V2-cl (pode investigar-se). Com base no aporte teórico-metodológico da Sociolinguística Laboviana (WEINREICH, LABOV & HERZOG, 1968), o estudo permite depreender que o tipo de instituição escolar, o modo de organização discursiva, o tipo de complexo verbal e de clítico pronominal, e o contexto antecedente ao complexo verbal constituem variáveis relevantes ao fenômeno variável. Os resultados obtidos permitem, ainda, estabelecer estreita relação entre estilos e normas linguísticas. Palavras-chave: colocação pronominal; sociolinguística; variação estilística. ABSTRACT This paper presents a discussion about the relationship between stylistic variation and discursive modes of organization, taking into consideration sociolinguistic research about pronominal order in dissertative and narrative texts produced by students (RODRIGUES-COELHO, 2011). Besides investigating the relationship between stylistic variation and discursive modes

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of organization, this study provides linguistic and extralinguistic restrictions to the order of pronominal clitics in verbal complex according to the variants cl V1 V2 (se pode investigar), V1-cl V2 (pode-se investigar), V1 cl V2 (pode se investigar) ou V1 V2-cl (pode investigar-se). Developed within the framework of Labovian Sociolinguistics (WEINREICH, LABOV & HERZOG, 1968), the research establishes that educational institution, discursive mode of organization, structure of verbal complex and pronominal clitic, and antecedent context of the verbal complex have developed relevant role on conditioning the variable phenomenum. Finally, the relationship between discursive styles and linguistic norms has been established. Keywords: pronominal order; sociolinguistics; stylistic variation.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por propósito geral investigar, com base em resultados relativos à colocação pronominal, a possível relação entre variação no eixo do registro (estilística) e modos de organização discursiva (narrativos e dissertativos). Parte-se do pressuposto geral de que os estudos da variação estilística podem oferecer forte contribuição para a caracterização das normas de uso relacionadas a fenômenos morfossintáticos. Abordamse, em particular, textos escritos produzidos em contexto considerado monitorado, visto que constituem parte integrante das atividades didáticopedagógicas desenvolvidas em sala de aula. Para fundamentar as reflexões acerca do tema proposto, o estudo baseia-se especificamente na expressão variável da ordem dos clíticos pronominais em contextos de complexos verbais – duas ou mais formas verbais com determinado grau de integração sintático-semântica –, consoante as seguintes variantes: cl V1 V2 (se pode investigar), V1-cl V2 (podese investigar), V1 cl V2 (pode se investigar) ou V1 V2-cl (pode investigar-se). Tendo em vista que o uso dessas variantes na escrita brasileira assume forte relação subjetiva com o ideário de norma padrão, pressupõe-se que dados relativos ao tema da colocação pronominal podem, por si só, fornecer evidências relacionadas ao que o usuário da língua supõe ser adequado nos chamados estilos monitorados. Para o cumprimento dos objetivos planejados, o presente artigo cumpre as seguintes tarefas: (i) expor sinteticamente o conceito de variação

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estilística que fundamenta o trabalho; (ii) apresentar, com base no estudo de Rodrigues-Coelho (2011), as variáveis linguísticas e extralinguísticas atuantes no comportamento da regra variável, pondo em destaque a atuação do modo de organização discursiva – dissertativo e narrativo; e (iii) com base nos resultados apresentados, propor reflexões acerca do tratamento da variação estilística e, ainda, da relação que se pode postular entre estilos e normas linguísticas. 1. Variação estilística: breve conceituação O interesse pela variação estilística ocupou parte da agenda dos primeiros trabalhos sociolinguísticos desenvolvidos por William Labov. Como demonstra o próprio autor ao mencionar o estudo de variáveis fonológicas para a caracterização do inglês de Nova York, a investigação “indicou variação regular em estilos e contextos diferentes” (LABOV, 1972, p. 101). Definir esses estilos e os contextos apropriados para sua detecção constituiu foco do referido estudo. Consoante a proposta laboviana, a definição de estilo centra-se fundamentalmente na atenção dispensada à fala/expressão linguística pelo próprio falante. Sabe-se que essa atenção resulta de diversos fatores de natureza discursivo-interacional, tais como o perfil do interlocutor e o contexto conversacional. Em se tratando da modalidade escrita, fatores como o gênero textual, o modo de organização discursiva predominante1 e o veículo de divulgação do texto constituem elementos fundamentais à caracterização desse contexto. Em proposta teórico-descritiva para um tratamento adequado da complexidade sociolinguística que envolve a caracterização do Português do Brasil, Bortoni-Ricardo (2004; 2005) sugere que três continua da variação sejam considerados: urbanização, oralidade-letramento e monitoração estilística. Nessa proposta, a autora concebe que o estilo seja postulado, de forma escalar, em um continuum de maior ou menor monitoração, de modo que os usos linguísticos constituem a expressão variável de graus diversos de atenção à fala. 1

Não faz parte do escopo deste trabalho o produtivo debate de que se tem ocupado a Linguística textual a respeito da tipologia dos domínios, tipos e gêneros textuais. Neste artigo, cabe destacar apenas que se consideram as redações escolares como um gênero textual, e a dissertação e a narração como modos de organização discursiva predominantes nos textos em análise.

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Interessa, no presente trabalho, tratar da variação estilística considerando, por hipótese, que os textos em análise foram formulados pelos alunos consoante certo grau de atenção à escrita, tendo em vista o contexto acadêmico-escolar. Esse contexto pressupõe, como se sabe, o professor como principal interlocutor e o compromisso com a avaliação da produção textual, o que traz por inevitável consequência a busca de um estilo monitorado ou, ao menos, semimonitorado. O grau de monitoração estilística dependerá, sem dúvida, das condições estabelecidas para a atividade, que envolvem as características próprias do modo de organização discursiva, o tema da redação, o fato de haver ou não divulgação do texto, dentre outras motivações. Atenção especial será dada, neste trabalho, ao primeiro desses fatores: as diferenças do comportamento verificado nos textos narrativos e nos dissertativos.

2. A variação da ordem dos clíticos pronominais em complexos verbais: o estudo de Rodrigues-Coelho (2011) Com base na análise variacionista das ocorrências de pronomes átonos coletadas no Corpus Rio acadêmico-escolar2, Rodrigues-Coelho (2011) procede à investigação da ordem dos clíticos pronominais no conjunto de 448 redações, dissertações e narrações, produzidas por alunos (meninos e meninas) do 9º ano do Ensino Fundamental e do 3º ano do Ensino Médio, em escolas públicas e privadas. A organização estratificada do corpus permitiu à pesquisadora o controle de quatro variáveis extralinguísticas: nível de escolaridade dos alunos; tipo de instituição à qual estão vinculados; modo de organização discursiva predominante nos textos3; e sexo dos estudantes. As variáveis independentes linguísticas controladas foram as seguintes: número de formas auxiliares; forma do verbo principal; presença de preposição/conector 2

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O corpus abarca um conjunto de redações escolares coletadas em escolas públicas e particulares do Estado do Rio de Janeiro, no período de 2008 a 2010, organizada por Adriana Lopes Rodrigues Coelho e por Silvia Rodrigues Vieira. O modo de organização predominante nos textos é considerado uma variável extralinguística nesta investigação em virtude de a classificação dos textos como narrativos ou dissertativos não ter sido feita com base em aspectos linguístico-textuais característicos, que assim os pudessem definir. Na realidade, foi acatada a classificação feita pelos docentes que colaboraram com a formação do corpus.

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no interior do complexo verbal; tipo de clítico; elemento antecedente ao complexo verbal; tempo-modo da forma auxiliar e tipo de complexo verbal. Os dados coletados e codificados de acordo com as variáveis postuladas foram submetidos ao tratamento estatístico. Para tanto, lançou-se mão do pacote de programas Goldvarb (2001), responsável por fornecer o índice de aplicabilidade da regra variável (frequência absoluta e percentual, e pesos relativos), as variáveis linguísticas e extralinguísticas estatisticamente relevantes à compreensão do processo de colocação pronominal, as variáveis não relevantes ao processo, e, ainda, o cruzamento entre grupos de fatores. O presente artigo considera exclusivamente os índices percentuais, tendo em conta que, sendo a variável dependente eneária, interessa prioritariamente visualizar a mobilidade dos clíticos em relação às posições que são efetivamente produzidas no material em análise. Os resultados da investigação referem-se ao total de 222 dados de clíticos pronominais em lexias verbais complexas, sendo 124 provenientes dos textos dissertativos e 98 dos textos narrativos. Considerando a forma do verbo principal – variável muito relevante para a análise do fenômeno –, os dados coletados referem-se, em sua maioria, a construções infinitivas (155 dados; 70% das ocorrências). Além dessas, integram a amostra 55 dados (23%) de construções gerundivas e apenas 15 dados (7%) de construções participiais. Apresentam-se, a seguir, exemplos das variantes estudadas em complexos verbais com formas verbais infinitivas, todos retirados da amostra: QUADRO 1: a variável dependente: variantes e exemplos Pré-complexo verbal ou cl V1 V2

A vida é feita de escolhas, mas não se pode esquecer suas raízes

Intra-complexo verbal sem hífen ou VI cl V2

Porém logo pensei: que bobagem a minha, o nome de uma rua não vai me influenciar em nada

Intra-complexo verbal com Partindo de tal princípio, pode-se salvar adolescentes ligados ao espaço criminoso. hífen ou V1-cl V2 Pós-complexo verbal ou V1 V2-cl

Sabia que ele poderia tirá-lo.

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Antes da apresentação dos resultados propriamente dita, faz-se necessário prestar alguns esclarecimentos de natureza metodológica. No presente trabalho, optou-se por identificar cada uma das quatro construções apresentadas no quadro 1 considerando, além da ordem superficial dos clíticos, a presença ou ausência do hífen. Esse critério de recolha de dados mostrou-se suficiente para a coleta e a identificação dos padrões praticados na escrita em contexto de aprendizagem escolar. Não se pretende, nos limites deste artigo, pôr em debate o tratamento do fenômeno na variedade brasileira como um todo, nem a interpretação das estruturas em cada caso particular4. Assumem-se, de partida, alguns pressupostos: (i) a presença ou a ausência do hífen constitui forte índice de depreensão das estruturas propostas em contexto de aprendizagem, visto ser marca gráfica aprendida especificamente em situação de letramento; (ii) nem sempre é possível propor uma interpretação segura da ligação do clítico em termos sintáticos, tendo em vista o fato de que algumas construções são por si só ambíguas5; (iii) com base em resultados de outras pesquisas e no amplo debate existente na literatura sobre o tema, que atesta ser a próclise a V2 a construção inovadora brasileira, é possível propor interpretações prováveis no que tange à ligação sintática em alguns contextos estruturais6; (iv) nem sempre 4

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6

Muito diversas têm sido as formas de abordar e interpretar as estruturas supostamente variáveis da ordem dos clíticos na literatura sobre o assunto. Com o objetivo específico de pôr em debate o tratamento do fenômeno em complexos verbais, Vieira (no prelo) procedeu à análise de onze trabalhos acadêmicos que contemplaram dados de clíticos em complexos verbais, apreciando criticamente as opções metodológicas feitas nessas pesquisas e propondo algumas medidas para a abordagem do fenômeno. A esse respeito, é oportuno destacar o trabalho de Martins (2010), baseado em sua tese de doutorado, em que controla separadamente os dados, extraídos de peças de teatro catarinenses e lisboetas dos séculos XIX e XX, em dois grupos: um de “construções com alçamento” e outro de “construções sem alçamento”. O primeiro compreende duas variantes, sendo ambas estruturas em que o clítico estaria vinculado ao primeiro verbo: clV1(X)V2; e V1cl(X)V2. O segundo grupo, o das construções sem alçamento, compreende três variantes: V1(X)V2cl, casos de ênclise ao verbo não-finito; V1(X)clV2, casos de próclise ao verbo não finito, identificados pela presença de material interveniente entre V1 e V2 ou pela presença de elementos proclisadores (contexto em que não se dá registro de ênclise a V1 na diacronia no Português); e V1clV2 – casos ambíguos, aqueles que, embora se admita que seja mais provável que o clítico esteja proclítico ao verbo nãofinito, não seria possível atestar se há ênclise a V1 ou próclise a V2. Schei (2003), por exemplo, em investigação sobre o fenômeno em textos literários brasileiros e portugueses do decorrer do século XX, interpreta os casos de clíticos sem hífen entre as formas verbais como ocorrências de próclise ao verbo principal, valendo-se dos seguintes fatos: (i) não se verificaram dados portugueses com próclise ao verbo não-finito; (ii) em vários dados, a próclise ao verbo não-finito ou a ênclise ao verbo auxiliar era evidente; (iii) quase todos os casos

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há coincidência entre o hospedeiro sintático e o hospedeiro fonológico, motivo pelo qual se postula que a ligação do clítico em termos fonéticofonológicos merece investigação particular. Considerando a totalidade dos dados, a tabela e o gráfico de número 1, a seguir, demonstram a distribuição das ocorrências pelos fatores da variável dependente em análise, tal como apresentada no quadro 1. TABELA 1: Distribuição geral dos dados pelos fatores da variável dependente Fatores da variável dependente

Valores obtidos

cl V1 V2 V1-cl V2 V1 cl V2 V1 V2-cl Total

22 – 9% 26 – 11% 134 – 62 % 40 – 18% 222 – 100%

GRÁFICO 1: distribuição geral dos dados pelos fatores da variável dependente

18%

9% 11%

62%

cl V1 V2

V1-cl V2

V1 cl V2

V1 V2-cl

É digna de nota, inicialmente, a alta produtividade da variante V1 cl V2 nas redações escolares, em comparação às outras variantes: das 222 ocorrências de pronome átono coletadas, 134 (62%) manifestaram o pronome em posição intra-complexo verbal sem hífen. Em contrapartida, é igualmente notável a baixa produtividade da variante cl V1 V2, correspondendo a 22 dos 222 dados (9% das ocorrências). As demais variantes são registradas na amostra também com pouca produtividade (V1-cl V2, com 11%; V1 V2-cl, com 18%). de clítico ligado ao auxiliar por hífen eram em construções com verbo não-finito no particípio ou no gerúndio, enquanto com infinitivos essa colocação era quase inexistente. O conjunto dessas evidências permite à autora atestar que a sistematicidade das opções gráficas revela que os padrões detectados em sua amostra não são casuais.

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A distribuição geral dos dados possibilita atestar que, mesmo em contexto relativamente monitorado, os estudantes do Rio de Janeiro praticam normas de colocação pronominal que, de um lado, não são recomendadas pelos manuais prescritivos, como a variante entre as duas formas verbais sem o registro do hífen – o que se interpreta como reflexo da estrutura tida como vernacular, típica de contextos de fala espontânea, a próclise a V2 (cf. VIEIRA, 2002) –, e, de outro, apontam a aprendizagem de estruturas compatíveis com estilos monitorados (a anteposição do clítico a V1 e a marcação de hífen sinalizadora de ênclise a V1 ou a V2), nos quais a atenção à escrita acaba por acarretar compromisso com construções de prestígio idealizadas para o contexto de norma padrão. Tendo sido observadas determinadas particularidades que podem caracterizar a cliticização pronominal em complexos verbais a depender da forma do verbo principal, optou-se por dar continuidade à análise quantitativa dos dados separadamente, formando-se, portanto, três subamostras, conforme se demonstra nas subseções que se seguem. 2.1. Complexos verbais com particípio Verificaram-se apenas 15 ocorrências de clíticos pronominais em complexos verbais formados por particípio, distribuídas da maneira como se expõe na tabela 2, a seguir: TABELA 2: Distribuição dos dados da ordem dos clíticos pronominais em complexos verbais com particípio consoante o modo de organização discursiva Modo de organização predominante

Cl V1 V2

V1–cl V2

V1 cl V2

V1 V2-cl

Dissertativo

6 – 67%

0 – 0%

3 – 33%

0 – 0%

Narrativo

1 – 16%

0 – 0%

5 – 84%

0 – 0%

Total

7 – 46 %

0 – 0%

8 – 54%

0 – 0%

Nos contextos de complexos verbais com particípio, não se manifestou a variante V1-cl V2, nem a V1 V2-cl. A respeito da ausência de ênclise ao particípio, conforme já se esperava, esse resultado confirma outros apresentados por diversos estudiosos do tema, ratificando, por exemplo,

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a generalização, proposta em Vieira (2002), de que o particípio constitui a forma que comporta maior caráter nominal em comparação com as outras formas nominais. As variantes verificadas foram cl V1 V2 (46%) e V1 cl V2 (54%), revelando uma distribuição equilibrada. Embora o número de dados seja bastante reduzido, outros estudos também evidenciam que a próclise a V1 (como em lhe é permitido), pouco produtiva no Português do Brasil (doravante PB) como um todo, acontece com certa produtividade em construções participiais. No que se refere ao modo de organização discursiva, pode-se observar que as dissertações apresentam maior número de dados (67%) da variante cl-V1 V2, do que as narrações (apenas 16%). Quanto ao uso da variante V1 cl V2, ao contrário das narrações (com 84% de próclise a V2), as dissertações apresentam poucas ocorrências dessa forma de colocação (apenas 33%). É possível, por hipótese, associar esse resultado a motivações de natureza estilística: parece razoável supor que não seja casual o fato de que nas narrações apareça maior uso da variante considerada natural, vernacular no PB, enquanto nas dissertações figure maior ocorrência da variante compatível com estilos monitorados, em que se atenta para a anteposição do clítico à primeira forma verbal. Essa hipótese será retomada quando da análise das construções gerundivas e infinitivas, adiante. A análise dos pronomes em complexos participiais permitiu visualizar, também, que a distribuição dos dados se relaciona a fatores de natureza estrutural. Primeiramente, verificou-se que a aplicação de cl-V1 V2 em complexos participiais foi a opção dos alunos em contextos de voz passiva formada pelo auxiliar ser, independentemente do elemento que antecede o grupo clítico-complexo verbal, o que demonstra o caráter não variável de algumas construções. Observem-se os exemplos: (1)

O conceito de beleza que existe em nossa sociedade e nos é passado pelos meios de comunicação e pela mídia, faz muitas vezes as pessoas tomarem atitudes, às vezes impensadas (dissertação, masculino, público, 3º ano)

(2)

Conforme avançam as criações dos homens, eles perdem a noção do poder que lhes é permitido e agem como seres onipotentes (dissertação, feminino, particular, 3º ano)

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(3)

É a droga do amor que quando se é correspondido é a melhor coisa do mundo, mas quando não se é correspondido é a pior coisa mundo. (dissertação, masculino, público, 9º ano)

No tocante aos tipos de clíticos, os exemplos demonstram que, mesmo na presença de clíticos argumentais como nos e lhe, a estrutura passiva privilegia a colocação pré-complexo verbal. A variante V1 cl V2 manifestou-se em complexos verbais formados por ter/haver + particípio. As ocorrências dessa variante nos contextos de complexos com particípio evidenciam a inoperância de elementos proclisadores canônicos nesse contexto, conforme demonstram os seguintes exemplos: (4)

Passaram-se uns dias e Marinete já havia até se esquecido do ocorrido. (narração, masculino, público, 3º ano)

(5)

Pedro, então lembrou de tudo o que Luciana havia lhe dito e devolveu tudo o que já tinha pegado dos passageiros (narração, feminino, particular, 9ºano)

(6)

O primeiro diagnóstico saiu; ele estava com asma, não entendi nada, pois haviam me dito que era HIV. (narração, masculino, público, 3º ano)

Os exemplos acima apresentam três diferentes tipos de clítico – se inerente, me e lhe – que concretizaram a aplicação da variante V1 cl V2 em complexos com particípio. O exemplo 4 demonstra a única ocorrência em que há um elemento interveniente nos complexos verbais com particípio. Ocorrências dessa natureza, com o pronome após o elemento interveniente (até), podem evidenciar a preferência dos alunos pela colocação proclítica ao verbo principal, e não enclítica ao verbo auxiliar. De modo geral, percebeu-se, em relação aos complexos verbais com particípio, que o tipo de complexo desempenha papel relevante no condicionamento da ordem dos clíticos pronominais, já que as duas

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variantes que se manifestaram – a próclise a V1 e a próclise a V2 – foram concretizadas por meio de estruturas específicas, quais sejam: construções passivas e estruturas temporais do tipo ter/haver + particípio. Desse modo, este estudo confirma que não se tem efetivamente, no caso das construções participiais em análise, contextos efetivamente variáveis, mas preferências na posição do clítico específicas em cada caso. 2.2. Complexos verbais com gerúndio A tabela 3, a seguir, permite visualizar a distribuição dos 52 dados dos clíticos pronominais em contextos de complexos verbais formados por gerúndio encontrados no corpus utilizado. TABELA 3: Distribuição dos dados da ordem dos clíticos pronominais em complexos verbais com gerúndio consoante o modo de organização discursiva Modo de organização predominante

Cl V1 V2

V1–cl V2 V1 cl V2

V1 V2-cl

Total

Dissertativo

0 – 0%

0 – 0%

25 – 84%

5 – 16%

30 – 58%

Narrativo

0 – 0%

0 – 0%

18 – 82%

4 – 18%

22 – 42%

Total

0–0%

0 – 0%

43 – 83%

9 – 7%

52 – 100%

Verifica-se que os dados de complexos com gerúndio exibem aplicação apenas das variantes V1 cl V2 e V1 V2-cl, apresentando distribuição equilibrada ao se comparar os textos dissertativos e narrativos. Dessa forma, não foi possível confirmar, nesses complexos, a hipótese de que o modo de organização discursiva revelaria diferentes comportamentos relacionáveis a graus diversos de monitoração estilística. Cabe, então, a seguir, verificar os fatores de natureza estrutural que poderiam justificar a distribuição geral de dados nas construções gerundivas. As ocorrências estudadas são constituídas de três diferentes tipos de complexos: ir/vir + gerúndio; estar + gerúndio; e acabar + gerúndio; havendo alta preferência pela ordem V1 cl V2. Observem-se, a seguir, os exemplos que podem demonstrar a escassa aplicação da variante V1 V2-cl nos contextos de complexos verbais com gerúndio:

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(7)

Entendo que as condições de miséria em que vivem muitos brasileiros acabam levando-os ao desespero quando se vêem diante de mais “uma boca” para sustentar. (dissertação, feminino, particular, 3º ano)

(8)

Uma jovem recém casada... mata o seu marido após descobrir que ele estava traindo-a com uma amante. (narração, feminino, particular, 3º ano)

(9)

O que lhe permite agora começar a explorar outra fronteiras. Vinha sentindo-se um pouco dividido, e que faltava alguma coisa em sua vida. (dissertação, feminino, particular, 9ºano)

(10) A música para o jovem de hoje, tem total importância, e cada um escolhe seu ritmo e sua trilha, com isso, acaba descobrindo-se a real identidade que terá para ser um adulto de bem ou não. (dissertação, feminino, particular, 3º ano) Os exemplos podem demonstrar o comportamento observado nos dados, que revela, nos complexos verbais formados por gerúndio, a relação entre a variante V1 V2-cl e o tipo de clítico. A maior parte das ocorrências dessa variante encontra-se representada pelo uso dos pronomes o/a(s) e se reflexivo/inerente, clíticos sintaticamente vinculados ao verbo temático. Encontrou-se apenas uma ocorrência do clítico indeterminador/ apassivador, reproduzida no exemplo 10. A preferência do clítico pela ligação a V2 pode ser confirmada nos contextos em que, mesmo na presença de um elemento tradicionalmente reconhecido como “atrator” do pronome átono (Cf. Bechara, 1999; Cunha, 2001), não ocorre a movimentação do clítico pronominal, conforme demonstram os exemplos 7 e 8 (que contam com a presença da conjunção integrante que). Das 43 ocorrências da variante V1 cl V2, 30 correspondem ao uso do clítico se reflexivo/inerente, conforme se apresenta no exemplo 11: (11) A “lei do belo” parece uma doença das mais contagiosa que vem se alastrando principalmente entre as adolescentes. (dissertação, masculino, público, 3º ano)

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Esse exemplo demonstra, mais uma vez, a inoperância dos elementos operadores de próclise, representados pelo pronome relativo, em posição imediatamente anterior ao grupo clítico-complexo verbal. As outras 13 ocorrências da variante V1 cl V2 caracterizam-se pelo uso do clítico de 1ª pessoa me/nos (9 dados), do clítico o/a (s) (2 dados), e, ainda, do se indeterminador/ apassivador e do te (1 dado cada). Por fim, cabe mencionar que foram encontradas ocorrências nas quais figura um elemento interveniente no interior do grupo clítico-complexo verbal. Essas ocorrências contribuem para reafirmar que a colocação intracomplexo verbal sem hífen sinalizando a próclise a V2 é de fato a opção preferida pelos alunos, como se pode observar no exemplo 12, a seguir, em que o se aparece após o advérbio sempre. (12) O que não pode é ficar agredindo seu corpo e nem ficar sempre se espelhando em outras pessoas. (dissertação, masculino, público, 3º ano) De modo geral, pode-se perceber que, em complexos verbais formados por auxiliar + gerúndio, o clítico pronominal também tende a se ligar a V2, ocupando, sobretudo, a posição proclítica ao verbo principal, característica do PB vernacular. Determinados tipos de clítico – especialmente o acusativo de 3ª pessoa – podem colaborar, ao que parece, para que se efetive, ainda, a variante enclítica ao complexo na escrita escolar. 2.3 Complexos verbais com infinitivo No que se refere à sub-amostra de complexos verbais com infinitivo, procede-se a uma análise mais detalhada das variáveis investigadas, tendo em vista o maior número de dados e, consequentemente, a maior diversificação dos contextos de aplicação da regra variável. Quanto ao comportamento geral da sub-amostra, as 155 ocorrências de pronomes átonos em complexos verbais com infinitivo distribuíram-se da seguinte maneira pelas variantes da variável dependente:

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TABELA 4: Distribuição das construções infinitivas pelos fatores da variável dependente cl V1 V2 V1-cl V2 V1 cl V2 V1 V2-cl Total

15 – 10% 26 – 17% 83 – 53% 31 – 20% 155 – 100%

GRÁFICO 2: distribuição das construções infinitivas pelos fatores da variável dependente

20%

10% 17%

53%

cl V1 V2

V1-cl V2

V1 cl V2

V1 V2-cl

A tabela 4 e o gráfico 2 evidenciam as mesmas tendências da amostra geral, já comentadas no início da seção 2 deste artigo. Comparando os valores obtidos nas construções infinitivas aos obtidos com o total de dados coletados, é importante destacar que é o contexto com infinitivo o único responsável pelo registro da variante V1-cl V2 no corpus. Além disso, verificou-se que a maior parte dos dados de pré-CV e pós-CV é de construções infinitivas. Como já se demonstrou, a próclise ao complexo ocorre também em algumas construções participiais, e a ênclise ao complexo ocorre também em construções gerundivas. 2.3.1

Variáveis extralinguísticas

Apresentam-se, aqui, os resultados das variáveis em que se pôde verificar um comportamento diferenciado entre os fatores considerados, quais sejam: o tipo de instituição e o modo de organização discursiva predominante nos textos. Os grupos de fatores nível de escolaridade e sexo não apresentaram, em termos percentuais, diferenças expressivas de acordo com as hipóteses formuladas.

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a) Tipo de instituição GRÁFICO 3: distribuição dos dados da ordem dos clíticos pronominais em complexos verbais com infinitivo consoante o tipo de instituição escolar 100% 80% 60% 40% 20%

69% 45% 24% 11%

15%

5%

8%

23%

0%

Público cl V1 V2

V1-cl V2

Particular V1 cl V2

V1 V2-cl

O gráfico 3 demonstra que os textos de alunos matriculados em instituições particulares apresentam maior distribuição de dados entre os fatores da variável dependente e, ainda, os maiores índices de aplicação das variantes V1-cl V2 e V1 V2-cl (respectivamente, 24% e 23%) – posições consideradas como regra geral nos manuais normativo-gramaticais. A variante pré-complexo verbal foi a menos expressiva nos textos de ambos os tipos de escolas, tendo sido encontrado um número bastante aproximado de ocorrências (7 – 11% – em escolas públicas e 8 – 8% – em escolas particulares). Os resultados obtidos permitem inferir que, embora nas escolas particulares também se registre – ainda que em número menor, se comparado ao obtido nas escolas públicas – a variante desprivilegiada nos compêndios normativos (a próclise a V2), é no contexto da rede particular de ensino que se verifica maior registro das variantes idealizadas na norma padrão gramatical (a ênclise a V1 e a V2). Desse modo, pode-se aventar, com base na diferença de 24 pontos percentuais, a hipótese de que haveria certa tendência à manutenção do status da norma padrão ideal por parte da escola particular, diferentemente do que ocorre na escola pública, possivelmente mais variada não só quanto ao público-alvo, mas também quanto às propostas pedagógicas. Sem dúvida, trata-se tão-somente da formulação de uma hipótese, que precisa ser averiguada na continuidade da pesquisa, tendo em vista que, no presente trabalho, (i) não se utilizou a análise estatística multivariada, que fornece os pesos relativos, e, ainda, (ii) não se verificou a influência de diversos outros fatores relevantes, como,

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por exemplo, o perfil sociocultural do estudante e de seus familiares, e o material didático específico de cada turma. b) Modo de organização discursiva GRÁFICO 4: distribuição dos dados da ordem dos clíticos pronominais em complexos verbais com infinitivo consoante o modo de organização discursiva 100% 80% 60% 40% 20%

67% 43% 16%

30%

28% 11%

1%

2%

0%

Dissertativo cl V1 V2

V1-cl V2

Narrativo V1 cl V2

V1 V2-cl

Os resultados da variável modo de organização discursiva apresentam, sem dúvida, diferenças relevantes quanto à concretização das variantes nas construções infinitivas. No que se refere aos textos dissertativos, a distribuição dos dados se dá em relação a todos os fatores da variável dependente, o que não se verifica no que se refere aos textos narrativos, em que se concentram as variantes V1 cl V2 e V1 V2-cl. Os resultados obtidos acerca dos textos narrativos apontam o maior uso da estrutura usada cotidianamente, o que se comprova no alto índice de frequência da variante V1 cl V2, posição considerada natural no PB vernacular. Os textos dissertativos demonstraram, portanto, um comportamento menos distante das estruturas típicas da escrita padrão conforme o modelo prescritivo. Verificando os dados extraídos dos textos dissertativo-argumentativos, que se constroem com a finalidade de persuadir o leitor, foi possível atestar a produtividade de complexos verbais formados por verbos modais poder/ dever, combinados frequentemente com o pronome se indeterminador/ apassivador, como nos exemplos a seguir: (13) A conclusão que pode-se tirar é que escolher nossos caminhos é o melhor. (dissertação, feminino, particular, 9º ano)

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(14) Para mudar a precisão em que as escolas se tornam, deve-se pensar no que a escola pode ajudar no futuro. (dissertação, feminino, particular, 9º ano) Verifica-se, portanto, que o comportamento dos clíticos pronominais nos diferentes modos de organização discursiva se relaciona às características prototípicas da dissertação e da narração. Os textos dissertativos favorecem estruturas modalizadas na apresentação de pontos de vista e um caráter bastante impessoal, conforme recomendam professores e diversos materiais didáticos. Essas características acabam por favorecer um estilo em que cabe a presença de construções modais e do pronome se, estruturas que, como apontam outros estudos sobre o fenômeno (Vieira, 2002; 2008), acabam por favorecer variantes da colocação pronominal enclítica. Em outras palavras, ao que parece, como decorrência do estilo dissertativo atuam algumas variáveis linguísticas, como o tipo de complexo verbal e o tipo de clítico pronominal. No que se refere ao texto narrativo, modo de organização mais afeito à expressão de usos linguísticos produtivos costumeiramente na variedade brasileira, seja por lidar com diferentes perfis de personagens, seja por reproduzir cenas do cotidiano, verifica-se a expressiva frequência da variante considerada proclítica a V2. 2.3.2

Variáveis independentes linguísticas

a) Tipo de clítico7 GRÁFICO 5: distribuição dos dados da ordem dos clíticos pronominais em complexos verbais com infinitivo consoante o tipo de clítico

7

Não se apresentam os resultados do clítico lhe, tendo em vista que eles se referem a apenas duas ocorrências, manifestadas pelas variantes cl V1 V2 e V1 cl V2.

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230

Em situações de uso dos pronomes de primeira pessoa – singular e plural – me/nos (92%), de segunda pessoa te (100%) e o clítico se reflexivo/ inerente (94%), a variante V1 cl V2 constituiu a opção preferencial dos alunos, posicionando-se os pronomes às margens do verbo ao qual eles se ligam sintaticamente, conforme se observa nos exemplos 15 e 16, a seguir: (15) Vinícius de Moraes já dizia que beleza é essencial, mas não podemos nos perder na busca por essa beleza (dissertação, masculino, público, 3º ano) (16) “Corto os pulsos pro final, saída de emergência” esse trecho da música é bem forte, vários jovens podem se guiar por essa música e até se matarem. (dissertação, feminino, particular, 9º ano) O clítico se indeterminador/apassivador demonstrou comportamento diferenciado, na medida em que concentra 65% das ocorrências concretizadas pela variante V1-cl V2 e 11% pela variante cl V1 V2. Os resultados obtidos acerca desse tipo de clítico revelam que tal pronome tende a se ligar ao verbo auxiliar, o que ainda se associa ao fato de que ele tende a ocorrer em construções prototípicas para expressar a indeterminação do referente. Todos os dados do clítico se indeterminador/apassivador ocorreram em complexos verbais formados por poder/dever + infinitivo, o que confirma a correlação entre as variáveis tipo de clítico e tipo de complexo, conforme já se apontou. De modo geral, em contexto de verbo inicial, o se indeterminador fica anexado a V1 com hífen; se antecedido de elemento proclisador, esse clítico passa a anteceder V1; em ambos os casos, dá-se a adjacência do pronome ao verbo finito. O clítico acusativo de terceira pessoa também apresentou comportamento particular, tendo demonstrado alta frequência da variante V1 V2-cl (85%), o que demonstra que esse tipo de clítico tem grande relevância para o condicionamento do fenômeno em estudo, conforme atestam gramáticos e diversos estudiosos do tema. Observem-se alguns exemplos: (17) Salomão mesmo não sabendo a fortuna que o diamante valia, sabia que ele poderia tira-lo dessa pobreza. (narração, masculino, particular, 9º ano)

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(18) Portanto, os jovens utilizam a música para diversas finalidades, assim essa exerce sobre eles coisas que irão marcá-los por toda sua vida. (dissertação, masculino, particular, 9º ano) (19) Se isso não acontecer sua consciência irá deixá-la com o sentimento de culpa por ter tirado a vida de seu próprio filho. (dissertação, masculino, particular, 3º ano) Em relação aos resultados referentes à variável tipo de clítico, podese inferir que determinados pronomes e estruturas passam a fazer parte do repertório linguístico dos alunos por meio da instrução formal, fato evidenciado pelo baixo índice de uso do pronome lhe e pela estrutura cristalizada V1 V2(infinitivo)–cl, em que se concentra a maior parte das ocorrências do clítico acusativo o/a(s). Deve-se sublinhar, ainda, que a estrutura indeterminadora com se em ênclise à forma auxiliar também pode resultar do contato com a instrução formal, visto que, na oralidade, os alunos dispõem de diversos outros recursos para a indeterminação (como a gente, você, por exemplo). b) Elemento antecedente ao complexo verbal GRÁFICO 6: distribuição dos dados da ordem dos clíticos pronominais em complexos verbais com infinitivo consoante o elemento antecedente ao complexo verbal

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232

Em linhas gerais, para a maioria dos fatores considerados na variável elemento antecedente ao complexo verbal, observou-se a preponderância da colocação intra-complexo verbal sem hífen, que constitui a opção preferencial inclusive para alguns dos fatores não considerados operadores de próclise pela tradição gramatical, como, por exemplo, o SN sujeito e a conjunção coordenativa. Os resultados expostos evidenciam que a ordem dos pronomes átonos nos contextos de complexos verbais, nas redações escolares, não apresenta especificamente o respeito à proposta tradicional de que deveria haver a próclise ao complexo com elementos “atratores”. Dois contextos, entretanto, parecem atuar no sentido de impedir a próclise ao complexo verbal na escrita escolar monitorada. Nesses casos, verifica-se a interferência da instrução formal no sentido de introduzir, na escrita, a ênclise a V1. Destaque-se que os casos de posição inicial de período ou de oração – que se relacionam, ainda, à variável tipo de clítico, visto que se trata fundamentalmente do se indeterminador – constituem os únicos contextos em que a próclise a V2 não é a opção preferencial; nesses contextos, verificaram-se maiores índices da variante V1-cl V2, respectivamente 57% e 75%. No âmbito da atração dos pronomes pelos elementos que venham a anteceder o grupo clítico-complexo verbal, a partícula de negação e os elementos subordinativos sinalizam um possível efeito reduzido de atração dos pronomes proposto por vezes no contexto escolar, representando, respectivamente, 25% e 11% como índice de aplicação da variante cl V1 V2. Destaque-se que, mesmo nesses contextos, a variante cl V1 V2 não se apresentou como opção preferencial dos alunos. Observem-se os exemplos: (20) Tudo o que se quer às vezes não se pode ter, mas mesmo não podendo você continua a querer. (dissertação, feminino, particular, 9º ano) (21) Sem muito esforço não se importando se lhe vai ocorrer a impotência sexual ou ataque cardíaco. Para eles e para todos isso vale tudo. (dissertação, feminino, público, 3º ano)

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3. Considerações finais: a colocação pronominal nas redações escolares e a variação estilística Acredita-se que os resultados apresentados neste artigo tenham permitido cumprir o objetivo geral de cooperar com o conhecimento das normas de uso que se estabelecem em relação à ordem dos clíticos pronominais em construções verbais complexas no Português do Brasil, especialmente no que concerne à escrita escolar. Com base nesses resultados, é possível, ainda, propor algumas considerações a respeito da relação entre as normas de uso detectadas e a variação estilística referente aos modos de organização discursiva. Em linhas gerais, os resultados permitem verificar que o uso e a ordem dos clíticos pronominais fazem parte do processo de aprendizagem desenvolvido nas escolas. Primeiramente, fica evidente que a educação formal introduz na escrita escolar, quanto ao emprego dos pronomes, certos clíticos pouco produtivos na língua falada (como as formas o,a(s) e lhe), além de motivar o uso do se indeterminador, que concorre com outras estratégias de indeterminação preferidas pelos brasileiros. No que se refere à ordem dos clíticos pronominais em complexos verbais, verifica-se que a variante V1 cl V2, que constitui a variante característica do PB vernacular, figura como padrão de uso preferencial no corpus analisado. Ainda assim, é notável a influência de fatores linguísticos e extralinguísticos – o tipo de complexo verbal e o tipo de clítico pronominal, o contexto antecedente ao complexo verbal, o tipo de instituição à qual os alunos estão vinculados, o modo de organização predominante nos textos – no sentido de colaborar com a realização das demais variantes da ordem dos clíticos. Desse modo, certas posições não usuais no PB – como a ênclise à primeira e à segunda forma verbal – ocorrem na escrita escolar, o que parece se relacionar, sobretudo, a determinados tipos de clíticos e a certos tipos de construções verbais complexas, como se demonstrou na apresentação dos resultados. Considerando a relação entre os modos de organização discursiva e as alterações linguísticas no nível estilístico, o estudo possibilita perceber que os textos narrativos e dissertativos configuram diferentes níveis de atendimento ao que se idealiza como norma própria do estilo monitorado.

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Embora os condicionamentos linguísticos e extralinguísticos atuem nos dados referentes aos dois modos de organização discursiva, a narração, ao que parece, evoca, por si só, menor grau de monitoração estilística, em comparação ao comportamento dos dados oriundos de textos dissertativos. Os resultados referentes aos complexos verbais com particípio e com infinitivo nos dados extraídos de textos narrativos demonstram a manifestação mais expressiva das opções consideradas vernaculares – concebidas, consoante Labov (1972), como as formas privilegiadas na fala espontânea em situação natural de conversação. Quanto aos dados coletados nos textos dissertativos, verifica-se o emprego mais monitorado da colocação pronominal, o que é sinalizado pelo uso mais expressivo das variantes pertencentes à norma idealizada nos materiais normativos e pedagógicos. As diferenças relativas aos modos de organização discursiva permitem, portanto, postular que as estruturas verificadas na narração se localizam, no continuum de monitoração estilística (cf. BORTONI-RICARDO, 2004; 2005), em um ponto mais próximo do eixo [- monitorado], se comparadas às da dissertação, que se localizariam em um ponto mais próximo do eixo [+ monitorado]. Desse modo, além das motivações extralinguísticas e linguísticas apresentadas no estudo variacionista, figura, como fator fundamental no emprego das variantes da ordem dos clíticos na modalidade escrita, o perfil do texto em que a oração é produzida, especialmente no que se refere ao modo de organização discursiva. Uma reflexão adicional quanto à relevância da variável modo de organização discursiva parece, ainda, ser necessária: a relação que se pode estabelecer entre estilos (mais ou menos formais), modalidades expressivas (eventos de maior ou menor letramento) e normas linguísticas (mais ou menos cultas/populares). Como se pode observar, os resultados sinalizam que a maior monitoração estilística empregada no modo de organização discursiva dissertativo acarreta, na escrita escolar, maior emprego das estruturas consideradas cultas nos compêndios gramaticais. Nesse sentido, alto grau de monitoração estilística acaba por se correlacionar ao que os alunos concebem por apropriado ao texto escrito que pressuponha uma norma idealizada para os meios escolares. No modo de organização narrativo, cujos dados revelaram menor emprego das estruturas consideradas cultas

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nos compêndios gramaticais, a menor monitoração estilística acaba por favorecer o uso das construções mais naturais no PB vernacular, nem sempre compatíveis com as sugeridas como “cultas” em abordagens prescritivas. Nesse sentido, os graus de monitoração estilística, nos meios considerados cultos em termos sociolinguísticos, apresentariam estreita relação com o que Bortoni-Ricardo (2004; 2005) postula como continuum de oralidade-letramento: quanto mais monitorado o discurso, mais “letrado” ou mais próximo do eixo de letramento figura o texto; quanto menos monitorado o discurso, menos “letrado” ou mais próximo do eixo de oralidade figura o texto. Sem dúvida, não se trata de considerar monitoração estilística, modalidade expressiva e norma como entidades sinônimas; indivíduos pertencentes a variedades cultas ou populares, de meios urbanos ou rurais, na escrita ou na fala, podem alterar seu estilo em função das diversas circunstâncias sócio-comunicativas. Trata-se tão-somente de propor que, nos dados em questão, a relação entre eventos de letramento e alto grau de monitoração estilística demonstra certa compatibilidade nas opções linguísticas no que se refere ao atendimento à norma padrão idealizada. Por fim, espera-se que o presente artigo tenha demonstrado a importância de aliar o tratamento da variação estilística aos condicionamentos linguísticos e extralinguísticos que inegavelmente modelam o fenômeno variável. Observadas as influências estruturais, resta ao pesquisador verificar as opções preferenciais nas amostras estudadas consoante fatores relacionados à construção dos textos, cujas intenções comunicativas podem ser extremamente diversificadas. Com a observação do conjunto de motivações que influenciam temas variáveis, como o da colocação pronominal em complexos verbais na escrita escolar, acredita-se que a atividade docente terá maior fundamentação para postular as diretrizes teórico- metodológicas e alcançar os objetivos propostos, fazendo com que os alunos manipulem conscientemente as formas alternantes disponíveis em sua variedade para redigir textos em estilos e normas diferentes.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. ______. Um modelo para a análise sociolinguística do português brasileiro. In: ------ Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística e Educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p. 39-52. CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. Tradução Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherre, Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. [1972] MARTINS, Marco Antônio. Clíticos em complexos verbais em Português. Veredas on line 1/2010. Juiz de Fora: Pós-graduação em Linguística/UFJF, 2010. p. 88-104. ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da Língua Portuguesa. 44ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. [1972] RODRIGUES-COELHO, Adriana Lopes. A ordem dos clíticos pronominais: uma análise sociolinguística da escrita escolar do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2011 (Dissertação de mestrado). SCHEI, Ane. A colocação pronominal do português brasileiro: a língua literária contemporânea. São Paulo: Humanitas, 2003. VIEIRA, Silvia Rodrigues. Colocação pronominal nas variedades europeia, brasileira e moçambicana: para a definição da natureza do clítico em Português. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2002 (Tese de Doutorado). ______. A variação na ordem dos clíticos pronominais em complexos verbais: condicionamentos morfossintáticos e prosódicos. In: RONCARATI, Claudia; ABRAÇADO, Jussara. (Org.). Português Brasileiro II: contato linguístico, heterogeneidade e história. 1 ed. Niterói / RJ: Universidade Federal FluminenseInstituto de Letras, 2008. p. 285-300.

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______. A complexidade do tratamento variacionista da ordem dos clíticos em complexos verbais. Série Trilhas Linguísticas. Araraquara/SP: Faculdade de Ciências e Letras - UNESP (no prelo) WEINREICH, Uriel; LABOV, William & HERZOG, Marvin I. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. Tradução Marcos Bagno; revisão técnica Carlos Alberto Faraco; posfácio Maria da Conceição A. de Paiva, Maria Eugênia Lamoglia Duarte. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. [1968]

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O PAPEL DO GÊNERO TEXTUAL NA VARIAÇÃO ESTILÍSTICA: EM BUSCA DE PADRÕES COMUNITÁRIOS THE ROLE OF TEXTUAL GENRE ON STYLE-SHIFTING: LOOKING FOR COMMUNITARIAN PATTERNS Maria Alice Tavares Universidade Federal do Rio Grande do Norte/CNPq

RESUMO Com base no suporte teórico fornecido pela sociolinguística variacionista, analiso os conectores sequenciadores E, AÍ e ENTÃO como variantes da “sequenciação retroativo-propulsora”, uma função gramatical que é responsável pela conexão de um enunciado precedente a um posterior, gerando a expectativa de que algo novo será introduzido no discurso, em continuidade e consonância com o que já foi dito. Os dados são provenientes de 24 entrevistas sociolinguísticas do Banco de Dados VARSUL de Florianópolis (SC) e foram submetidos ao GOLDVARB 2001. Tenho por objetivos: (i) controlar o gênero textual como índice de variação estilística entre os conectores E, AÍ e ENTÃO na comunidade de fala de Florianópolis (SC); e (ii) averiguar se há padrões comunitários de variação estilística que se mantenham constantes, independentemente do sexo e da idade dos falantes. Como principais resultados, aponto que: (i) o conector AÍ, uma variante vernacular, é favorecido na narrativa de experiência pessoal, gênero textual marcado pela informalidade; e (ii) os conectores E e ENTÃO, variantes de prestígio, são favorecidos no relato de opinião, gênero textual marcado pela formalidade. Esses padrões permanecem constantes na comunidade de fala, mesmo quando são consideradas as distribuições relativas ao sexo e à idade. Palavras-chave: conectores sequenciadores; gênero textual; variação estilística. ABSTRACT From the theoretical support provided by variationist sociolinguistics, I analyze sequencing connectors E, AÍ and ENTÃO as variants of “retroactive-propeller sequenciation”, a grammatical function which is responsible for connecting a past statement to a future one, creating the expectancy that something new will be introduced in discourse, in continuity and consonance with what was already said. The data come from 24 sociolinguistic interviews

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from the VARSUL Data Base of Florianópolis (SC) and were submitted to GOLDVARB 2001. I aim (i) to control textual genre as an indicator of a styleshifting phenomenon involving E, AÍ and ENTÃO in the speech community of Florianópolis; and (ii) to investigate if there are communitarian patterns of style-shifting which remain constant across different genders and ages. As main results, I point that: (i) connector AÍ, a vernacular variant, is favored in narratives of personal experience, a textual genre marked by informality; and (ii) connectors E and ENTÃO, prestige variants, are favored in relates of opinion, a textual genre marked by formality. These patterns remain constant along the speech community, even when sex and gender distributions are taken into account. Keywords: sequencing connectors; style-shifting; textual genre.

INTRODUÇÃO Analiso um fenômeno de variação estilística envolvendo uma categoria gramatical, a sequenciação retroativo-propulsora de informações, cujas formas variantes mais frequentes no português brasileiro contemporâneo são os conectores sequenciadores E, AÍ e ENTÃO. Observem-se alguns exemplos: (1)

A população nativa, do interior da Ilha, não foi alertada pra isso, não foi educada pra isso. E hoje assistimos várias famílias nativas de Florianópolis na miséria porque venderam o seu- as suas terras por preços insignificantes, né? (FLP21)

(2)

Tem que deixar alguma coisa registrada, que marque na pessoa o mal que ela fez. A pessoa lá roubou: corta uma mão, aí o dia que ele for roubar, ele vai lembrar que aquela mão está faltando, ele vai pensar no que está fazendo. (FLP14)

(3)

Porque é uma educação rude, e eu não posso hoje. Porqueporque se eu fizer esse tipo de- de educa- permitir esse tipo de educação para os meus filhos, hoje eu vou me tornar uma pessoa ignorante, vão me chamar de ignorante, né? Ou ignorante ou um ca- um cara, assim, antigo, né? esse negócio todo aí. Então não posso permitir esse tipo de educação. (FLP18)

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Fazendo uso de entrevistas sociolinguísticas do Banco de Dados Variação Linguística da Região Sul (VARSUL) como fonte de dados, tenho por objetivos: (i) controlar o gênero textual como índice de variação estilística entre os conectores E, AÍ e ENTÃO na comunidade de fala de Florianópolis; e (ii) averiguar se os padrões comunitários de variação estilística se mantêm constantes, independentemente do sexo e da idade dos falantes.1 Nas próximas seções, descrevo e exemplifico a sequenciação retroativo-propulsora de informações (seção 1); relaciono a proposta de variação estilística da sociolinguística variacionista ao caso dos conectores E, AÍ e ENTÃO (seção 2); levanto a possibilidade de controle de diferentes graus de formalidade através do viés do gênero textual e descrevo os dois gêneros que considero neste estudo, narrativa de experiência pessoal e relato de opinião (seção 3); elenco os procedimentos metodológicos adotados (seção 4); teço as hipóteses e analiso os resultados obtidos (seção 5); e apresento as considerações finais (seção 6). 1. Sequenciação retroativo propulsora de informações A sequenciação retroativo-propulsora de informações é uma função gramatical responsável pelo estabelecimento de uma relação coesiva entre um enunciado precedente e um posterior, gerando a expectativa de que algo novo será introduzido no discurso, em continuidade e consonância com o que já foi dito (cf. TAVARES, 2003, 2012). Quando recorremos à sequenciação retroativo-propulsora, colocamos em jogo duas estratégias simultâneas: (i) a retroação, conduzindo a atenção de nosso interlocutor para trás no discurso, e (ii) a propulsão, conduzindo a atenção do interlocutor para a frente, para um enunciado que está por vir. Ou seja, realizamos um movimento duplo: anafórico e catafórico. Esse movimento é codificado, no português brasileiro contemporâneo, especialmente por três conectores: E, AÍ e ENTÃO, que articulam partes do discurso de proporções variadas, desde informações conectadas localmente em orações, a tópicos/assuntos conectados globalmente, e indicam as seguintes relações semântico-pragmáticas: 1

Este texto dá continuidade à análise do papel do gênero textual no uso variável dos conectores sequenciadores E, AÍ e ENTÃO apresentada no VI Simpósio Internacional de Gêneros Textuais e sintetizada em Tavares (2011).

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1. Sequenciação textual: sinalização da ordem pela qual as unidades conectadas sucedem-se ao longo do tempo discursivo, salientando o encadeamento de uma porção textual anterior com uma posterior.2 (4)

Agora têm muitas que estão nessa vida porque gostam disso aí, gostam de zoeira, essas coisas, e muitas estão ali obrigadas, tá? Então, eu respeito todo ser humano, agora, pra mim, eu acho isso assim, pra mim, a minha índole, eu acho errado. Que eu acho tem tanto serviço que a pessoa, né? podia ter mais- Sãotodo ser humano é capaz a qualquer coisa que quer na vida. (FLP16)

2. Sequenciação temporal: introdução de eventos na ordem de ocorrência no tempo, isto é, indicação de que o evento B aconteceu logo depois do evento A. (5)

O meu avô quando sabia dos possuídos, ora, né? Tiravaacabava com a história na hora, né? Tirava a cinta e despossuía na hora: “Faz o favor de despossuir.” (FLP01)

3. Consequência/conclusão: introdução de informações que representam consequência ou conclusão em relação ao que foi dito previamente. (6)

Eles botaram ela, assim, num monte de aparelhos, sabe? Aí ela deu uma melhorazinha. (FLP03)

4. Retomada: movimento de recuperação do fluxo temático anterior, interrompido por uma digressão. A informação retomada reaparece de forma literal ou com a alteração de alguns vocábulos. (7)

2

3

Ele me apareceu em casa. Aí, tá. Aí, parece que andou brigando. [ Não sei bem como é que foi o negócio, porque ele nem de brigar ele era. ] Aí parece que ele andou brigando, tinham machucado ele. Peguei, fiquei com pena, botei ele dentro de casa. (FLP03)3

Embora tenha apresentado apenas um exemplo de cada relação semântico-pragmática, saliento que E, AÍ e ENTÃO são usados na indicação de todas elas. O símbolo [ marca o início da digressão e o símbolo ] marca o seu final.

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5. Finalização: adição de uma informação que finaliza um tópico ou subtópico. Geralmente estão presentes elementos anafóricos como assim, isso, esse, essa etc. (8)

A cidade ficou limitada ao centro da cidade, ao miolo da cidade, que está por demais congestionado, que deveria até ser proibido definitivamente, talvez, a passagem de veículos, mas por falta de opções, hã? foram as coisas se modificando sem realmente o devido planejamento nessa- nessa área. E as incompreensões: é o particular, é o (hes) próprio poder público, no caso da Marinha, e outros que dificultaram. Então eu acho que esses são problemas- problema viário da- da cidade, tem alguns problemas sérios. (FLP21)

2. Variação estilística: variantes vernaculares versus variantes prestigiadas Na sociolinguística variacionista, a noção de formalidade é central para o estudo da variação estilística. Labov defende a existência de uma escala de estilos de menos a mais formal. Essa escala vai do vernáculo ou fala casual, “o estilo em que o mínimo de atenção é dado ao monitoramento da fala” (LABOV, 1972, p. 208), isto é, o falante concentra mais a atenção no que fala e menos no como fala, a estilos mais formais, em que o falante tende a monitorar com mais atenção o modo como diz. Os indivíduos são, pois, capazes de ajustar sua fala ao grau maior ou menor de formalidade requerido pelas diferentes situações de interação em que se engajam. Assim é que, em situações identificadas, por diferentes razões, como mais formais, os indivíduos tendem – consciente ou inconscientemente – a fazer maior uso de variantes prestigiadas pela comunidade de fala. As variantes dignas de prestígio por parte de uma comunidade de fala tendem a ser consideradas como típicas de contextos mais formais e são, geralmente, vinculadas à língua culta. Por sua vez, as variantes desprestigiadas são comumente tidas como impróprias para contextos mais formais e costumam ser mais frequentes no vernáculo, o estilo que representa a manifestação mais casual e espontânea da língua, aquela que emerge nas situações de interação mais informais e/ou com maior carga de emotividade.

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Há situações de variação em que uma variante é claramente avaliada como não pertencente à variedade culta de uma língua. É o caso do conector AÍ, que costuma ser apontado não apenas como típico de situações de interação mais informais, mas mesmo como um vício de linguagem. Assim sendo, esse conector pode ser considerado uma variante vernacular. Em contraste, os conectores E e ENTÃO não são rejeitados na variedade culta do português brasileiro e muitas vezes são apresentados como alternativas mais adequadas ao emprego do conector AÍ em situações de interação mais formais.4 A cada situação de interação, o falante pode deixar emergir estilos de diferentes graus de formalidade e mesmo mudar de estilo. Membros de uma mesma comunidade de fala costumam mudar de estilo de modo regular nas mesmas circunstâncias, muitas vezes fazendo uso das mesmas formas variantes para sinalizar essa mudança (cf. LABOV, 2003). Por exemplo, se a mudança for na direção de um estilo mais formal, os falantes tendem a aumentar o emprego das mesmas variantes prestigiadas e a diminuir o emprego das mesmas variantes desprestigiadas. O contrário tende a ocorrer se a mudança for na direção de um estilo mais informal.5 Por conseguinte, minha hipótese é que, no que se refere aos conectores sob enfoque, caso os falantes adotem um estilo mais informal, podem aumentar o uso do AÍ, a variante vernacular, e diminuir o uso do E e do ENTÃO, variantes prestigiadas. Se houver alterações na situação de interação que estimulem uma mudança na direção de um estilo de maior formalidade, a taxa de emprego do AÍ pode ser reduzida e a taxa de emprego do E e do ENTÃO pode ser ampliada.

3. Gênero textual como índice de variação estilística: narrativa de experiência pessoal versus relato de opinião 4

5

No ano 2000, realizei, com membros da comunidade de fala de Florianópolis, um teste de avaliação a respeito dos conectores sequenciadores E, AÍ, DAÍ e ENTÃO. Nas respostas dadas a esse teste, os conectores AÍ e DAÍ foram avaliados como inadequados para situações de interação mais formais, em contraste com os conectores E e ENTÃO, tidos como apropriados para tais situações. Mais informações a respeito podem ser obtidas em Tavares (2003) e Tavares (2011). A mudança de estilo pode ser deliberada e envolver o emprego consciente de certas variantes, ou pode ser inconsciente e envolver o emprego de variantes que as pessoas sequer percebem que estão usando (cf. SCHILLING-ESTES, 2002).

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A entrevista sociolinguística, gênero textual6 no qual recolhi os dados, possui sessões de maior e de menor formalidade (cf. LABOV, 2001; ECKERT, 2001). Portanto, é imprescindível que pesquisas sobre fenômenos variáveis que se valem desse tipo de entrevista como fonte de dados controlem o grau de formalidade como um possível condicionador da variação. Neste estudo, realizo o controle de diferentes graus de formalidade através do viés do gênero textual, posto que gêneros textuais de diferentes graus de formalidade são produzidos pelo informante no decorrer de uma entrevista sociolinguística (cf. SCHIFFRIN, 1994; ECKERT, 2001; TAVARES, 2011). Nas entrevistas do Banco de Dados VARSUL de Florianópolis analisadas por mim, são muito frequentes as narrativas de experiência pessoal, os relatos de opinião e as descrições de vida (denominadas por Labov (2001) de pseudonarrativas), mas também aparecem narrativas de experiência vicária, narrativas de romances, filmes e novelas, receitas culinárias e outros gêneros instrutivos, lendas, etc. Optei por levar em conta as ocorrências dos conectores E, AÍ e ENTÃO em dois desses gêneros, que se opõem quanto à formalidade: a narrativa de experiência pessoal e o relato de opinião.7 A narrativa de experiência pessoal é uma narrativa não ficcional em que o narrador conta um ou mais eventos que se passaram em certo tempo e lugar, envolvendo a si mesmo e, talvez, a outros indivíduos. Nesse gênero, predominam sequências narrativas, caracterizadas pela sequenciação cronológica de eventos passados, temporalmente delimitados, pontuais, correlacionando-se ao pretérito perfeito, sequencial e ancorado no evento, e ao aspecto perfectivo, compacto e completo.8 6

7

8

A entrevista sociolinguística é um gênero textual ligado ao domínio científico, mais especificamente, ao domínio da ciência da linguagem (cf. FREITAG et al., 2009), e, mais especificamente, é um gênero textual do domínio de um dos ramos da linguística, a sociolinguística variacionista, no âmbito dos procedimentos metodológicos de coleta de dados, uma vez que se trata de um gênero textual que foi intencionalmente elaborado com a finalidade, entre outras, de facilitar a obtenção de um grande número de dados de diferentes fenômenos variáveis. A ocorrência de gêneros ‘dentro’ de um gênero (como a narrativa de experiência pessoal e o relato de opinião dentro da entrevista sociolinguística) também se dá em outras situações (podemos ter narrativas de experiência pessoal e outros gêneros dentro do gênero aula, ou do gênero romance, por exemplo). Nas narrativas de experiência pessoal, além das predominantes sequências narrativas, podem aparecer também sequências argumentativas, explicativas, descritivas e injuntivas.

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Labov e Waletsky (2003[1967]) apresentam um modelo de estruturação da narrativa de experiência pessoal com os seguintes componentes: i. resumo (sumariza a experiência que será expandida ao longo da narrativa); ii. orientação (refere-se à informação de fundo sobre tempo, espaço e identidade dos participantes da narrativa); iii. ação complicadora (refere-se às orações narrativas que descrevem os eventos centras da narrativa na ordem em que ocorrem no tempo até a sua resolução); iv. avaliação (a parte da narrativa em que são acentuados diferentes aspectos da experiência narrada de modo a revelar o ponto central da história); v. coda (término da narrativa com um comentário final). Para um texto ser definido como narrativa de experiência pessoal, não é necessário que todos esses componentes estejam presentes, mas a ação complicadora é essencial. A narrativa de experiência pessoal tende a ser um dos gêneros mais marcados pela informalidade em uma entrevista sociolinguística, pois o informante costuma estar mais absorto emocionalmente no que diz e mais despreocupado com a opinião do entrevistador do que em outros gêneros que produz na mesma entrevista. Sua fala se torna, pois, um campo fértil para a emergência do vernáculo, o estilo de fala mais informal. Vejam-se dois exemplos de narrativas de experiência pessoal, com destaque para os conectores sequenciadores: (9) E:

I:

Alguma vez, assim, teve alguma tragédia que tivesse alguma coisa, assim, algum perigo grave que tu achaste que ia te acontecer alguma coisa? Ah, aconteceu sim. Nós fomos- eu me lembro que nós fomos pra uma praia uma- é Caieira. Conheces essa praia? Pois é, é aqui, né? E a gente se met- Aliás, como pra variar, né? a gente se meteu- começou, assim, a andar pela- pela- pela estrada, foi, foi, foi. Aí chegou num- num determinado ponto, a gente

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queria voltar pela praia, pelas pedras, né? Porque tinha uma parte que adentrava no mar e voltava pelas pedras, né? E era bem peri- perigoso. E a gente foi. Aí eu disse: “Meu Deus do céu”, foi- foi um desespero, foi um desespero! Não dava pra voltar. Chega uma determinada hora que não dá mais pra voltar. E o mar ta- estava subindo. Foi um- foi uma coisa horrorosa, sabes? Ali, não sei, ali- na hora, eu fiquei com medo porque eu achava que a gente não ia conseguir mais voltar, né? Tu vias a praia, tudo, mas não tinham condições. As pedras, chegando nesse ponto, eram muito- ficavam muito dentro da água, porque estava- a maré estava subindo. Então não dava. Nesses dias- essa época aí, esse- esse dia, né? não seria época, dia, foi uma coisa que me marcou muito. Eu tive bastante medo. Na época, não era mais uma brincadeira, não era como a gente fazia de escuro, de pular dentro do buraco Não era mais uma brincadeira, aí era uma coisa verdadeira mesmo. É que estava todo mundo ali e não tinha ninguém pra ajudar a gente, né? Aí eu lembro que a gente- a gente, assim, deu- se deu as mãos e a gente rezou muito, muito, muito. Aí depois disso, acho que, né? depois da- da prece que a gente fez, a gente, daí, conseguiu passar. Mas foi, assim, uma coisa assustante, pra gente, porque a gente era pequena, uma coisa assusta- assustadora. A gente era pequena. Então foi- foi bem- isso me marcou bastante. O medo, né? Porque antes era tudo brincadeira. A gente sempreAliás a gente sempre se metia nas coisas, mas era todo mundo junto. Sempre tinha alguma coisa, né? Quando a gente ia dentro do mato, encontrava alguém estranho, mas estava todo mundo junto. Saía correndo, chegava na casa do avô. E ali não, era mar, não tinha ninguém, não tinha mãe perto, não tinha avô, não tinha ninguém perto. E a gente estava sozinho, se viu sozinho, né? Aí foi- foi bem assustador. Isso foi uma coisa que marcou bastante. (FLP01) (10) E: E depois como é que o senhor saiu de lá? I: Aí, essa casa aqui estava fechada, (ruído de vozes) né? Aí, eu

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fui lá, tive- (hes) falei com o reitor, né? que eles precisavam daquilo ali, aí ele- ele disse: “Não. Nós vamos indenizar” Aí essa casa aqui estava fechada já um período de tempo, né? E eu ainda saí daqui, porque esse rapaz aqui, o- esse menino aqui da venda, me levou em Itajaí, tinha o dono dessa casa que estava em Itajaí. E essa casa em venda- Aí, ele me levou, ainda fomos à noite, durante a noite. Aí nós saímos daqui, à noite, daí fomos lá, na casa do- do homem, né? e eu conhecia ele, né? e ele também se dava bem comigo. Aí quando chegam- Chegamos lá e começamos a conversar, conversar, conversar à noite, né? diz ele assim: “Não, tudo bem, né?” Pegou os papéis da casa, diz ele, assim: “Está na sua mão.” “A casa é sua.” Eu disse: “Ó, só tem uma coisa, né? que eu vou mudar imediatamente.” Hum, olha, mas eu não tinha pego o dinheiro lá ainda, eu disse: “Ó, o dinheiro eu vou pegar tal dia e tal. Não tenho.” Aí eu disse: “Ó, agora nós vamos- vamos fali- falar com o advogado pra gente entrar tudo em acordo, tudo certinho para não haver desavenças de nada.” “Não, não tem perigo.” Aí eu sei que a cabo de três dias, aí ele apareceu aqui, aí nós fomos lá, lá no reitor, daí- aí ele passou já o cheque, aí (“fui no banco”), já recebi um dinheiro, já- já paguei pra ele e ficou- e ficou tudotudo certo. (FLP05) No relato de opinião, ocorre a defesa do ponto de vista do falante sobre um certo tema visando o convencimento e a adesão do interlocutor a esse ponto de vista. O tema sobre o qual discorre o falante em um relato de opinião geralmente tem natureza polêmica e é de interesse público, podendo envolver os mais variados âmbitos (social, político, econômico, religioso, cultural, científico, etc.). No gênero em questão, predominam sequências argumentativas para a defesa do posicionamento assumido através da apresentação de argumentos, e, não raro, também sequências explicativas para o fornecimento de informações (análises, explicações, comentários) que fundamentam os argumentos apresentados. Ambas as sequências correlacionam-se com o tempo presente, não sequencial e ancorado na fala, e o aspecto imperfectivo,

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durativo e incompleto.9 A estrutura composicional do relato de opinião não é fixa. O ponto de vista defendido pode ser apresentado já de início e depois ser fundamentado através de argumentos, ou os argumentos podem ser listados antes da apresentação do ponto de vista, que, neste caso, conclui o relato. Também é possível que o ponto de vista seja reapresentado várias vezes, entremeando a tessitura dos argumentos. O relato de opinião costuma ser um dos gêneros mais formais em uma entrevista sociolinguística, pois requer que o informante assuma e defenda uma posição frente a um tema polêmico (o qual nem sempre domina), que busque fazer o entrevistador concordar com essa posição, que leve em conta possíveis opiniões divergentes por parte do entrevistador, refutando-as ou negociando-as, e que tenha cuidado como a veracidade dos argumentos que apresenta. Esses requerimentos geralmente levam o informante a ser mais cuidadoso em relação ao que diz, o que pode ter reflexos no como diz, com a adoção de um estilo mais formal, com menor presença de variantes vernaculares. Vejam-se dois exemplos de relatos de opinião, com destaque para os conectores sequenciadores: (11) E: Eu acho, pessoalmente, que é meio arriscado esse negócio de pegar uma criança, né? para criar ou para cuidar porque no fim eles acabam se revoltando, né? I: Ô, ô Jô, eu discordo disso aí. Sabes por quê? Eu, uma vez, eu discordei com um psi- psicólogo da Universidade, que a gente fez um treinamento, lá, ele diz que a- a ocasião faz o ladrão. Eu acho que não tem nada a ver. O que tu nasces, o que tu trazes dentro do teu cérebro é aquilo que tu fazes. Então, a marginalidade, ela vem de quê? Ela vem duma- São crianças, né? Aí se juntam com maus elementos. Se tu tens uma cabeça, uma índole boa, tu te re- tu recuas, tu vais, mas tu não fazes, porque tu sabes que tu estás errado. Aí, aquela pessoa que tem a cabeça mais fraca, aí ela continua fazendo. E ela, sim, ela vai no fundo, 9

Nos relatos de opinião, além das predominantes sequências argumentativas e explicativas, podem aparecer também sequências narrativas, descritivas e injuntivas.

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nisso aí, tá? Mas eu acho que cada um traz a sua personalidade. Eu não sou muito desse negócio, psicólogo, analista, não. Eu sou mais assim, tratar o ser humano com carinho, com amor. Seja ela o nível que for. Seja ela uma prostituta, seja ele um assassino, acho que tudo tem uma recuperação. (FLP16) (12) I: [...] Primeiro ano eu lecionei com o primeiro ano primário, e nos outros três anos eu lecionei pra terceiro ano. Uma classe bem melhor de se trabalhar. É. /10 Então eram crianças que quase não frequentavam a aula, queriam porque queriam ter frequência e queriam que no final do ano passasse. E os pais que- achavam que o filho tinha que passar. Mas de maneira alguma. Eu acho que a criança se não frequenta uma aula, e ele não estuda, não pode passar. Então foi, assim, uma época meio difícil da gente atravessar porque eram partes de pais que ti- pes- de pescaria, né? ponto de pescaria e é uma- é uma situação, assim, professor com os pais, muito difícil, são pais que não entendem, sabe? Por exemplo, se é um dia que estão pegando peixe, a época da tainha, vão aquelas crianças tudo já para o- pra praia. Então eles acham que a gente tem que dar frequência pra criança, porque a criança estava trabalhando. Mas não, a escola é uma coisa e o trabalho da casa é outra, né? (FLP12)

4. Procedimentos metodológicos Coletei 1.021 dados dos conectores E, AÍ e ENTÃO em narrativas de experiência pessoal e em relatos de opinião nos trinta minutos finais de 24 entrevistas sociolinguísticas pertencentes ao Banco de Dados Variação Linguística da Região Sul (VARSUL). Essas entrevistas foram feitas com informantes naturais de Florianópolis (SC), distribuídos homogeneamente de acordo com os seguintes fatores socioculturais: sexo, idade (de 25 a 45 anos 10

A barra marca o começo do relato de opinião, que surge depois de o informante listar os locais em que trabalhou como professor e os anos escolares para os quais lecionou (o informante estava tecendo uma espécie de autobiografia).

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e de 50 anos em diante) e escolaridade (primário - equivalente ao fundamental I -, ginásio - fundamental II - e colegial - ensino médio). Submeti os dados a tratamento estatístico através do programa GOLDVARB 2001 (ROBINSON; LAWRENCE; TAGLIAMONTE, 2001), para cálculo de frequências, percentuais e pesos relativos,11 e para a identificação da ordem de significância dos grupos de fatores. Realizei rodadas binárias do programa, considerando cada variante versus as demais. Controlei como possíveis condicionadores da variação entre os conectores E, AÍ e ENTÃO: (i) o gênero textual; (ii) a relação semânticopragmática; (iii) o nível de articulação; (iv) o grau de conexão, (v) o sexo; (vi) a idade; e (vii) o nível de escolaridade. Neste estudo, apresento os resultados referentes ao gênero textual e a dois cruzamentos, um do gênero textual com o sexo e outro do gênero textual com a idade. O gênero textual foi selecionado, pelo GOLDVARB 2001, na seguinte ordem de significância: em primeiro lugar para o AÍ, e em terceiro lugar para o E e para o ENTÃO.

5. Variação estilística: em busca de padrões comunitários Passemos à tessitura das hipóteses... O conector AÍ, uma variante vernacular, deve ter seu uso condicionado favoravelmente nas narrativas de experiência pessoal, uma vez que essas narrativas representam, na entrevista sociolinguística, um contexto que estimula o aparecimento das variantes vernaculares que o informante costuma empregar nas situações de interação informais do dia a dia. Por sua vez, o relato de opinião está entre os gêneros mais marcados pela formalidade em uma entrevista sociolinguística e, por isso, deve restringir o uso do conector AÍ. Em contraste, deve favorecer o uso dos conectores E e ENTÃO, que não costumam ser barrados no conjunto das formas cultas da língua e que, portanto, representam contrapartes possíveis ao uso do AÍ em contextos mais formais. A tabela 1 traz os resultados obtidos: 11

O peso relativo é uma medida multidimensional ou multivariada, obtida pela interação entre todos os fatores de cada grupo de fatores considerados em relação ao fenômeno variável, e indicando a influência de cada um dos fatores sobre cada uma das variantes.

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TABELA 1: distribuição de E, AÍ e ENTÃO quanto ao gênero textual GÊNERO

E



ENTÃO

Apl./Total

%

PR

Apl./Total

%

PR

Apl./Total

%

PR

NEP

245/663

37

0.466

305/663

46

0.639

113/663

17

0.407

RO

170/358

48

0.563

30/358

8

0.257

158/358

44

0.638

415/1.021

41

335/1.021

33

271/1.021

26

TOTAL

Input: 0.406 Sig: 0.009

Input: 0.328 Sig: 0.000

Input: 0.265 Sig: 0.012

A hipótese de que os conectores E e ENTÃO seriam condicionados favoravelmente pelo relato de opinião foi atestada. Os pesos relativos e as frequências associadas ao E e ao ENTÃO, nesse gênero textual, são altos: temos um peso relativo de 0.563 para o E, com frequência de 48%, e um peso relativo ainda maior para ENTÃO, de 0.638, com frequência de 44%. Assim sendo, parece que o relato de opinião é um gênero em que o E e o ENTÃO podem transitar sem restrições. Em contraste, o conector AÍ tem seu emprego fortemente desfavorecido no gênero em questão, apresentando uma taxa de ocorrência de apenas 8% e um peso relativo de 0.257. A hipótese de que o AÍ seria condicionado positivamente pela narrativa de experiência pessoal também foi atestada. Nesse gênero textual, foi atribuído ao AÍ o peso relativo de 0.639, com frequência de 46%. Por sua vez, o E e o ENTÃO têm seu uso desfavorecido na narrativa de experiência pessoal, com pesos relativos de 0.466 e 0.407 e frequências de 37% e 17%, respectivamente. Esses resultados mostram que há uma forte correlação entre: (i) a narrativa de experiência pessoal, um gênero textual caracterizado por maior informalidade, e a utilização do conector AÍ, uma variante vernacular; e (ii) o relato de opinião, um gênero textual tipicamente de maior formalidade, e a utilização dos conectores E e, especialmente, ENTÃO, variantes bem conceituadas na comunidade de fala de Florianópolis. Para Labov (2001), as entrevistas sociolinguísticas são as melhores fontes para a coleta de dados quando se visa o estudo da variação estilística na totalidade de uma comunidade de fala, uma vez que essas entrevistas são produzidas por uma amostra representativa de membros da comunidade, incluindo indivíduos de diferentes classes sociais, etnias, idades, sexos,

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etc. Recorrendo a elas, o pesquisador pode ter facilitada a descoberta de padrões de variação estilística partilhados pelos membros da comunidade investigada. Uma vez que, neste estudo, utilizo entrevistas sociolinguísticas como fonte de dados, tenho a possibilidade de averiguar se os padrões de variação estilística entre os conectores E, AÍ e ENTÃO referentes à totalidade da comunidade de Florianópolis são partilhados pelos membros dessa comunidade quando se levam em conta diferenças de natureza sociocultural existentes entre eles. Minha hipótese é que os falantes, independentemente de fatores socioculturais, sigam a tendência da comunidade de aumentar o uso do AÍ e de diminuir o uso do E e do ENTÃO nas narrativas de experiência pessoal, bem como sigam a tendência da comunidade de diminuir o uso do AÍ e de aumentar o uso do E e do ENTÃO nos relatos de opinião. Para testar essa hipótese, selecionei dois dos fatores socioculturais considerados pelo Banco de Dados VARSUL na organização de suas entrevistas sociolinguísticas, o sexo e a idade dos falantes, e realizei dois cruzamentos estatísticos através do GOLDVARB 2001: (i) um cruzamento dos resultados referentes ao gênero textual com os resultados referentes ao sexo; e (ii) um cruzamento dos resultados referentes ao gênero textual com os resultados referentes à idade. Os resultados obtidos através desses cruzamentos são apresentados a seguir. TABELA 2: gênero textual e sexo FEMININO CONECTORES

NEP

MASCULINO RO

NEP

RO

Freq.

%

Freq.

%

Freq.

%

Freq.

%

E

189

39

58

42

56

32

112

51



224

46

17

12

81

46

13

6

ENTÃO

74

15

64

46

39

22

94

43

TOTAL

487

100

139

100

176

100

219

100

Tanto as mulheres quanto os homens utilizam bem mais o AÍ na narrativa de experiência pessoal que no relato de opinião. O AÍ representa, sozinho, 46% dos dados de conectores sequenciadores nas narrativas

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de experiência pessoal, tanto entre as florianopolitanas quanto entre os florianopolitanos. No relato de opinião, o emprego do AÍ diminui para 12% na fala feminina e para 6% na fala masculina. Quanto ao E, os homens recorrem mais a esse conector no relato de opinião (51%) em contraste com a narrativa de experiência pessoal (32%). As mulheres também fazem mais uso do E no relato de opinião (42%) que na narrativa de experiência pessoal (39%), porém a diferença em termos percentuais é pequena. Finalmente, no que diz respeito ao ENTÃO, ele aparece bastante no relato de opinião entre as mulheres (46%) e entre os homens (43%), ao passo que sua taxa de ocorrência é mais baixa na narrativa de experiência pessoal tanto na fala feminina (15%), quanto na fala masculina (22%). TABELA 3: gênero textual e idade DE 25 A 50 ANOS CONECTORES

NEP

MAIS DE 50 ANOS

RO

NEP

RO

Freq.

%

Freq.

%

Freq.

%

Freq.

%

E

154

35

46

42

91

40

124

50



214

49

6

5

91

40

24

10

ENTÃO

69

16

59

53

44

20

99

40

TOTAL

437

100

111

100

226

100

247

100

Em relação à faixa etária, o AÍ é mais utilizado na narrativa de experiência pessoal que no relato de opinião, independentemente da idade do informante. Sua taxa de aparecimento é de 49% nas narrativas de indivíduos de 25 a 50 anos e de 40% nas narrativas de indivíduos de mais de 50 anos, sendo que essas taxas recuam para 5% e 10%, respectivamente, considerando-se o relato de opinião. O E e o ENTÃO são mais frequentes no relato de opinião, tanto entre indivíduos de 25 a 50 anos (46% de E e 59% de ENTÃO), quanto entre indivíduos de mais de 50 anos (50% de E e 40% de ENTÃO). Em contraste, esses conectores são menos recorrentes na narrativa de experiência pessoal, tanto entre os mais jovens (35% de E e 16% de ENTÃO), quanto entre os mais velhos (40% de E e 20% de ENTÃO).

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Portanto, a variação estilística envolvendo o uso dos conectores E, AÍ e ENTÃO nos gêneros textuais narrativa de experiência pessoal e relato de opinião ocorre sempre na mesma direção na comunidade de fala de Florianópolis, mesmo quando se correlacionam esses padrões à idade e ao sexo: (i) o uso do AÍ aumenta na narrativa de experiência pessoal e diminui no relato de opinião; (ii) o uso do E e do ENTÃO aumentam no relato de opinião e diminuem na narrativa de experiência pessoal. Falantes de ambos os sexos e com idades de 25 a 50 e mais de 50 anos tendem a manifestar, destarte, os mesmos padrões de variação – aqueles observados para a totalidade da comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste estudo, mostrei a possibilidade de controle do gênero textual como índice de variação estilística. Os gêneros em que predominam estilos mais informais podem representar contextos favorecedores para o uso de variantes vernaculares, em contraposição aos gêneros em que predominam estilos mais formais, que podem favorecer o uso de variantes prestigiadas. No caso dos conectores sequenciadores E, AÍ e ENTÃO, observei que o AÍ, uma variante vernacular, tem seu uso condicionado positivamente na narrativa de experiência pessoal, gênero em que predomina um estilo mais informal. Em contraste, esse conector tem seu uso restringido no relato de opinião, gênero em que predomina um estilo mais formal. Nesse gênero, passam a ser favorecidos os conectores E e ENTÃO, opções mais prestigiadas que o AÍ para contextos formais. Esses padrões de variação estilística podem ser assim esquematizados: ! NARRATIVA DE EXPERIÊNCIA PESSOAL: +AÍ / -E /-ENTÃO ! RELATO DE OPINIÃO: -AÍ / +E /+ENTÃO

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Observei, ainda, que esses padrões se mantêm constantes entre os membros da comunidade de fala de Florianópolis: o uso do AÍ diminui no relato de opinião, ao passo que aumenta o uso do E e do ENTÃO, independentemente do sexo e da idade dos falantes. Embora a entrevista sociolinguística seja um gênero que não aparece na vida cotidiana de uma comunidade de fala, possivelmente a variação estilística nela encontrada seja um reflexo dos padrões de variação dessa comunidade. No caso dos conectores analisados, AÍ deve ser favorecido em narrativas de experiência pessoal, e E e ENTÃO em relatos de opinião também quando esses gêneros são produzidos em diferentes situações de interação cotidiana na comunidade de fala de Florianópolis. Essa hipótese pode ser testada em estudos futuros. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ECKERT, P. Style and social meaning. In: RICKFORD, J. R.; ECKERT, P. (Eds.). Style and sociolinguistic variation. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. p. 119-126. FREITAG, R. M. K. et al. O controle do gênero textual/sequências discursivas na motivação da variação sociolinguística: apontamentos metodológicos. Odisseia n. 3, 2009. p. 1-23. LABOV, W. Ordinary events. In: THORNBORROW, J.; COATES, J. (Eds.). The sociolinguistics of narrative. Amsterdam: John Benjamins, 2004. p. 31-43. ______. Some sociolinguistic principles. In: PAULSTON, C. B.; TUCKER, G. R. (Eds.). Sociolinguistics: the essential readings. Cambridge: Blackwell, 2003. p. 234-250. ______.The anatomy of style-shifting. In: RICKFORD, J. R.; ECKERT, P. (Eds.). Style and sociolinguistic variation. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. p. 85-108. ______.Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972. LABOV, W. & WALETSKY, J. Narrative analysis: oral versions of personal experience. In: PAULSTON, C. B.; TUCKER, G. R. (Eds.). Sociolinguistics: the essential readings. Cambridge: Blackwell, 2003. p. 74-104.

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ROBINSON, J.; LAWRENCE, L.; TAGLIAMONTE, S. GOLDVARB 2001: a multivariate analysis application for Windows. Department of Language and Linguistic Science. University of York. 2001. Disponível em http://www.york.ac.uk/depts/lang/webstuff/ goldvarb/. SCHIFFRIN, D. Approaches to discourse. Cambridge: Blackwell, 1994. SCHILLING-ESTES, N. Investigating stylistic variation. In: CHAMBERS, J. K.; TRUDGILL, P.; SCHILLING-ESTES, N. (Eds.). The handbook of language variation and change. Cambridge: Blackwell, 2002. p. 375-401. TAVARES, M. A. A gramaticalização de E, AÍ, DAÍ e ENTÃO: estratificação/ variação e mudança no domínio funcional da sequenciação retroativopropulsora de informações – um estudo sociofuncionalista. Florianópolis, 2003. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de Santa Catarina. ______. Variação estilística no gênero “entrevista sociolinguística”: os conectores E, AÍ e ENTÃO em narrativas de experiência pessoal e relatos de opinião. In: OLIVEIRA, M. S. et al. (Orgs.). Anais do VI Simpósio Internacional de Gêneros Textuais. Natal. 2011. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/ visiget/pgs/pt/anais/Artigos/Maria%20Alice%20Tavares%20(U FRN). pdf. ______. Gramática emergente: recorte de uma construção gramatical. In: SOUZA, E. R. F. (Org.). Gramática, texto e discurso: diálogos possíveis, novas perspectivas. Contexto: 2012. (no prelo)

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PARA ALÉM DOS PACOTES ESTATÍSTICOS VARBRUL/ GOLDVARB E RBRUL: QUAL A CONCEPÇÃO DE GRAMÁTICA?1 BEYOND THE STATISTICAL PROGRAMS VARBRUL/ GOLDVARB AND RBRUL: WHAT IS THE CONCEPT OF GRAMMAR? Christina Abreu Gomes Universidade Federal do Rio de Janeiro/CNPq/Faperj

RESUMO Esse artigo discute a questão da modelagem teórica da variação e a metodologia estatística utilizada na quantificação dos dados variáveis, centrada na comparação entre os Programas Varbrul/Goldvarb e Rbrul. Discute, ainda, o papel do indivíduo e do item lexical em relação à variação e à mudança e suas consequências para um modelo teórico que defende um status representacional para a variação sociolinguística. Palavras-chave: indivíduo; item lexical; softwares Varbrul/Goldvarb e Rbrul; variação sociolinguística. ABSTRACT This paper discusses the issue of theoretical modeling of variation and the statistical methods used in quantifying variable data, centered in a comparison between Varbrul/Goldvarb and Rbrul softwares. It also discusses the role of the individual and that of the lexical item in relation to variation and change and their consequences for the theoretical approach that defends a representational status for sociolinguistic variation. Keywords: individual; lexical item; Varbrul/Goldvarb and Rbrul softwares; sociolinguistic variation.

1

Dedico esse artigo à minha querida companheira de projetos, reuniões, congressos e confraternizações, Cláudia Roncarati, a quem sempre admirei pela dedicação ao trabalho e pela coragem de enfrentar a vida e suas surpresas.

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INTRODUÇÃO Um estudo sociolinguístico, que utiliza dados de produção espontânea, tem o objetivo de capturar o caráter sistemático da variabilidade observada no uso e definir que aspectos da gramática – isto é, internos – e do uso – isto é, sociais – são responsáveis por essa sistematicidade. A variação é concebida como indexada, ou seja, veicula características sociais dos falantes como idade, sexo, classe social, escolaridade, e condições de uso, observadas através da variável estilo de fala. Sendo assim, uma análise desta natureza congrega fatores estruturais e sociais para identificar processos de mudança em curso ou variação estável em uma comunidade de fala. Uma questão central, então, é poder identificar o efeito dos diversos efeitos/ condicionamentos em competição e determinar qual a contribuição de cada categoria (estrutural e não-estrutural) associada à ocorrência de determinada forma em oposição a outra ou outras. Em última instância, a sistematicidade da variação revelada no efeito observado das variáveis estruturais e sociais traz evidências a respeito do conhecimento linguístico internalizado pelo falante. Portanto, subjacente ao estudo de uma variável sociolinguística está uma determinada concepção de gramática. Desde o início dos estudos variacionistas, foi proposto um modelo de análise multivariada associado à criação de um programa computacional especificamente desenhado para lidar com dados de variação linguística (Labov, 1969, Cedergreen e Sankoff, 1974, Rousseau e Sankoff, 1978). A questão relativa aos métodos estatísticos para a análise de dados de variação linguística tem se centrado principalmente na evolução dos modelos matemáticos subjacentes ao tratamento quantitativo dos dados variáveis. Naro (2003:15-225) apresenta uma breve cronologia desses modelos (aditivo, multiplicativo e logístico) subjacentes ao pacote computacional Varbrul e, mais recentemente, Goldvarb, em suas diversas versões. Scherre (1996) e Guy e Zilles (2007) trataram de aspectos teóricos e metodológicos relacionados à aplicação e uso do programa Varbrul/Goldvarb. Oliveira (2009) compara resultados de regressão logística para dados de variação sociolinguística obtidos com a utilização do Varbrul/Goldvarb e do Programa SPSS com o objetivo de identificar limitações e contribuições das duas ferramentas. Mais recentemente, foi elaborado por Daniel Ezra Johnson (Johnson, 2009) outro programa estatístico de regressão logística

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para análise de dados de variação linguística, batizado de Rbrul, com o intuito de avançar e refinar alguns aspectos da análise estatística que não são possíveis de serem realizados pelo Programa Goldvarb. No entanto, esta nova ferramenta também abre a possibilidade de análises que remetem a questões fundamentais relativas ao status da variação linguística na gramática. Neste artigo vamos apresentar as diferenças fundamentais entre os Programas Varbrul/Goldvarb e o Rbrul e analisar as consequências para a compreensão da variação linguística no que diz respeito à concepção de gramática que está em jogo quando são adotados determinados procedimentos metodológicos. Esperamos contribuir, com o presente artigo, para divulgar o tratamento estatístico dos dados através da ferramenta Rbrul e abrir a discussão sobre a relação entre procedimentos metodológicos e pressupostos teóricos2. O Programa Rbrul, em função da maneira como foi concebido, aumenta o alcance explanatório de algumas questões importantes como, por exemplo, o papel do indivíduo na variação, a compreensão de processos de mudança que envolvem o efeito do item lexical e a incorporação de variáveis contínuas como frequência.

1. A ferramenta Rbrul O Programa Rbrul é um software gratuito, idealizado por Daniel Ezra Johnson. O programa e o manual de uso estão disponíveis na página http://www.danielezrajohnson.com/rbrul.html. A atual versão do Rbrul é a 2.013, de 7 de setembro de 2011. O programa roda na plataforma R, que também é um software gratuito disponível para download em www.rproject.org. O autor realiza atualizações periódicas no programa e mantém atualizadas as informações sobre o programa no site acima referido, assim como as modificações realizadas em cada versão e suas consequências, em um arquivo com o objetivo de facilitar o uso do Rbrul (ver http://www. danielezrajohnson.com).

2

3

Essa pesquisa é financiada pelo CNPq (Processo no. 304400/2010-6) e pela FAPERJ (Processo no. 26/102.405/2009). Consultar a página mencionada para verificar novas atualizações e versões do programa.

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O Programa foi idealizado para cumprir 3 grandes objetivos, a saber: - realizar todas as funções que as versões Goldvarb e Varbrul realizam (regressão múltipla, tabulação cruzada, step up/step down); - realizar funções que as versões Goldvarb e Varbrul não realizam (por exemplo: rodar variáveis contínuas como variáveis independentes; variáveis contínuas como variável dependente; dar conta de modelos mistos – by-speaker, by-item; estimar efeitos between-groups – gênero/sexo – e within groups – indivíduos); - estabelecer interface com as capacidades gráficas do R. Ainda, o programa apresenta resultados em log-odds, além de apresentar o peso relativo, dá conta dos knockouts sem precisar excluí-los, e não tem limites para número de fatores por grupo. O programa reconhece arquivos de dados de natureza diferente. Tanto arquivos do tipo .tkn, usados no Goldvarb, quanto arquivos .txt, usados no Varbrul e convertidos para Excel, servem de arquivos de entrada para a rodada. Há uma formatação específica para cada um dos dois tipos para que o arquivo seja compatível com os requisitos do Rbrul. A conversão de um arquivo .tkn é feita no decorrer dos procedimentos da rodada e a conversão de um arquivo .txt deve ser realizada previamente para preparação deste arquivo até chegar à formatação como .csv, através do Programa Excel4. Um exemplo de arquivo de dados que serve de entrada para uma rodada no Rbrul pode ser visto na Figura 1 abaixo. A codificação através de caracteres do teclado pode ser usada e/ou transformada em texto. O mecanismo de conversão de um arquivo do tipo .txt, que contém uma cadeia de codificação conforme a usada para rodar dados no Varbrul/Goldvarb, em um arquivo de Excel é muito simples e, nesse processo, caracteres podem ser transformados em texto, ou os contextos, que normalmente acompanham os dados codificados após a cadeia de codificação, podem ser transformados em uma variável independente. A figura 1 apresenta o resultado da transformação de um arquivo .txt em um arquivo .xls, inicialmente com uma cadeia de codificação do tipo exemplificado a seguir, seguida de contexto, de um estudo sobre a coda fricativa:

4

Não é objetivo deste artigo abordar o passo a passo da conversão do arquivo .txt ou mesmo das rodadas.

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(1)

(0&fmacnMi mas de vez em quando

Após eliminar o contexto mais amplo que a palavra, restando somente o item com a variável em questão como em (2)

(0&fmacnMi mas

o arquivo é transformado em arquivo de Excel. Neste novo arquivo as colunas do .txt são interpretadas como colunas do arquivo Excel e uma última coluna é criada com todos os itens lexicais, que passarão a constar como mais um grupo de fatores ou variável independente. FIGURA 1: resultado de conversão de arquivo .txt para excel

O arquivo do Excel precisa ser convertido para .csv (comma separate values) para servir de entrada de dados para o Rbrul. Com relação às funções não realizadas pelo Varbrul/Goldvarb destacamos três. A primeira diz respeito à possibilidade de se utilizar variável contínua como variável dependente ou independente sem ser necessário discretizá-la, como por exemplo, formantes de vogais ou faixa etária. Outro aspecto bastante importante é a capacidade de o programa reconhecer vários tipos de arquivos. Essa ferramenta, associada ao fato de que o programa reconhece texto como fator de um grupo e de que não

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há limite de fatores por grupo, cria a possibilidade de se observar o papel do item lexical na variação sonora. Além disso, o programa faz diferença entre variáveis independentes de efeito fixo (fixed effect) e de efeito aleatório (random effect). Iremos nos ater a essas duas últimas e suas consequências para a discussão sobre o status da variação linguística na gramática na próxima seção. No entanto, cabe ressaltar o ganho metodológico e teórico de ser possível fazer a diferença entre variáveis fixas e aleatórias numa rodada. Se dois efeitos são aninhados, isto é, as características de um são mapeadas em outra variável, então o efeito aninhado será o efeito aleatório e o outro será o efeito fixo. Se, por exemplo, as seguintes variáveis estiverem sob consideração, falante e sexo/gênero, falante está aninhado em sexo/gênero e será o efeito aleatório. Com relação a variáveis de efeito fixo e aleatório, é importante lembrar que no Varbrul/Goldvarb, as variáveis independentes (ou grupos de fatores) são concebidas como independentes entre si, mesmo que não sejam. Por isso, numa rodada em que haja interesse de verificar o indivíduo, e outras características estão sendo mapeadas, como, por exemplo, sexo/gênero, faixa etária e escolaridade, é sempre necessário realizar rodadas diferentes, a que levará em conta as características sociais de estratificação da amostra e a que observará somente o indivíduo. No Rbrul basta identificar qual a(s) variável(is) aleatória(s) e qual(is) a(s) fixa(s) para que, naquela rodada, o programa identifique a relação entre os diferentes tipos. Por exemplo, é possível realizar uma rodada com a variável independente indivíduo (random effect), e as variáveis faixa etária, escolaridade e sexo/gênero (fixed effect).

2. O papel do indivíduo e o papel do item lexical Por trás da questão metodológica envolvendo o modelo estatístico utilizado no Varbrul/Goldvarb, existe o pressuposto de que indivíduo e item lexical não têm efeito sobre a variação. Esse tratamento se baseia em posições teóricas assumidas tanto em relação ao indivíduo quanto ao item lexical, respectivamente, em função da relação entre indivíduo e comunidade de fala, e da concepção de gramática fonológica subjacente à análise da variação fonológica (ou sociofonética).

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Na abordagem dos Modelos baseados no Uso, a relação entre gramática e uso é capturada através da postulação de que gramática é a organização cognitiva da experiência do indivíduo com a língua (Bybee, 2006). A gramática é abstraída a partir de mecanismos cognitivos de domínio geral, que permitem, categorizar e estabelecer relações de semelhança e diferença e de certos aspectos da experiência do indivíduo que participam da modelagem das representações. A abordagem da sociolinguística situa a experiência do indivíduo na sua dimensão social. Assim, com relação ao indivíduo, o esperado é que a variação observada para cada falante reflita os valores observados para a comunidade de fala. Guy (1980) mostra, em estudo sobre o -t,-d deletion no inglês da Filadélfia, que os efeitos das variáveis independentes analisadas na comunidade de fala atuam da mesma maneira nos indivíduos, apesar de haver diferença nas médias individuais. Por outro lado, alguns estudos têm mostrado que indivíduos podem não apresentar a regularidade esperada em virtude dos resultados obtidos para a comunidade de fala. Oliveira (1992), em estudo sobre alçamento de vogais, defende que o indivíduo é mais regular que a comunidade, se se levar em consideração o item e não o segmento, uma vez que alguns falantes demonstraram um comportamento categórico para alguns itens. Na introdução de Paiva e Duarte (2003:28), acerca de trabalhos desenvolvidos pelo grupo de pesquisas PEUL/UFRJ como estudo de painel (dados do mesmo falante em momentos diferentes), há referência ao comportamento irregular de alguns indivíduos, uma vez que alguns consistem evidência para reforçar a hipótese clássica de estabilidade da gramática, enquanto outros apresentam “flutuações quantitativas e qualitativas (...) demonstrando, assim, algumas descontinuidades de comportamento”. Martins (2007), observando diferentes variáveis fonológicas, aponta que a variação intra-individual também é parte fundamental para a compreensão da variação linguística. O fato é que diversos estudos têm demonstrado que nem sempre os indivíduos apresentam um comportamento que reflita o da comunidade de fala. Daí a importância de ser possível capturar o papel do indivíduo numa metodologia estatística que permita avaliar a relação entre o comportamento do falante e as demais variáveis sociais em questão. É importante que se diga que Labov não descarta a variabilidade do indivíduo. Qualquer trabalho de

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variação que utiliza o construto do tempo aparente precisa identificar, em relação à distribuição das variantes por faixa etária, se há uma mudança em progresso (mudança na comunidade de fala) ou se a distribuição constitui um caso de gradação etária (mudança no indivíduo – age grading) (cf. Bailey, 2002). Labov localiza a gramática do indivíduo de maneira diferente, no sentido de que os idioletos (a gramática de cada indivíduo) não têm importância per se, uma vez que a abordagem baseada exclusivamente nos idioletos não é suficiente para capturar a estrutura sociolinguística de uma comunidade de fala. Assim, o indivíduo precisa ser situado em relação à estrutura social em que se insere, identificado através das variáveis idade, sexo/gênero, classe social, etc. O ponto que quero defender aqui é que aspectos específicos do comportamento do indivíduo associados aos comportamentos mais gerais observados nos grupamentos sociais devem ser levados em conta no entendimento da variação e, mais especificamente, em relação à mudança linguística. Em última análise, ainda é importante definir e avaliar a relação existente entre o indivíduo e a comunidade de fala. De fato, todos os valores presentes numa comunidade de fala são compartilhados igualmente por todos os indivíduos? Se não, qual a consequência para o entendimento da gramática da comunidade de fala? Sobre essa questão, Clark (no prelo), a partir de uma abordagem da variação do ponto de vista da Linguística Cognitiva e dos Modelos Baseados no Uso, que estabelece o pressuposto de que a gramática do indivíduo é abstraída principalmente da sua experiência linguística, propõe que nenhum indivíduo vai abstrair a mesma gramática, ou em suas palavras “no two speakers will share the same grammar”. No entanto, embora haja questões importantes levantadas nos Modelos baseados no Uso quanto à arquitetura da gramática e a acomodação dos fatos variáveis, considero que a anulação ou exclusão da estrutura da sociedade no modelo é problemática. De fato, as experiências individuais podem ser diferentes numa sociedade, mas elas não são apenas experiências individuais. São, sobretudo, experiências dos indivíduos que se dão em um determinado contexto histórico e social, que levará à convergências, mas não necessariamente a homogeneidades. Assim, é possível esperar mais de uma gramática numa mesma comunidade de fala, se há, nessa comunidade de fala, discrepâncias profundas entre os diversos grupamentos sociais

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que a compõem. Experiências individuais podem ser distintas, mas são experiências sociais e não estritamente individuais. Assim, sempre haverá alguma convergência, uma vez que o indivíduo não é autônomo em relação à estrutura social em qualquer aspecto, não só o linguístico. E é exatamente a proposta inaugurada por Labov, nos estudos de variação sociolinguística, que procura capturar essa dimensão da gramática do indivíduo através da relação entre sociedade e conhecimento linguístico. Com relação ao item lexical, assume-se, na maioria dos trabalhos de variação sociolinguística, uma abordagem neogramática em relação à variação fonológica, a de que o segmento é a unidade da mudança e que a motivação fonética exclui a motivação lexical, muito embora haja evidências de efeito lexical em diversos processos de mudança (Bybee, 2002). Labov (1981) procura equacionar a tensão segmento/palavra levantando como hipótese que determinados tipos de processos tendem a ser do tipo neogramático e outros do tipo difusão lexical. Já Oliveira (1991) defende que todas as mudanças se propagam através das palavras. Do ponto de vista metodológico essa discussão esbarra no fato de que não é possível avaliar o efeito da palavra usando o Varbrul/Goldvarb por duas razões. Uma razão diz respeito à configuração do arquivo de entrada para a análise estatística. Embora, no Goldvarb não haja limite de fator por grupo, há uma limitação estabelecida em função da configuração do arquivo de entrada, que utiliza somente um caracter por coluna (código) e a quantidade de caracteres disponíveis no teclado para dar conta de uma variável independente como item lexical. A outra razão é que, no Varbrul/ Goldvarb, os grupos de fatores são concebidos como independentes (fixed effect) sempre. Portanto, um estudo de uma variável fonológica (ou sociofonética) que leve em conta o efeito do item lexical, mesmo que pudesse contornar o problema do número de caracteres para codificações de itens, esbarraria no fato de que a rodada trataria da mesma maneira grupos de fatores que se relacionam com características do segmento no item, como por exemplo – posição do segmento no item, se medial e final, no caso de uma coda, se em sílaba tônica ou átona, ou até mesmo o tamanho do item, e o item propriamente dito. Além disso, a observação do efeito da palavra também fica prejudicada com um procedimento metodológico bastante utilizado nos trabalhos, o da exclusão, nos dados a serem submetidos à

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análise estatística, dos itens que tendem a apresentar um percentual alto de uma das variantes. Enfim, uma conjunção de fatores de diversas naturezas – como a adoção implícita ou explícita de que a variação fonológica apresenta características neogramáticas e um instrumental estatístico que corrobora essa posição – não tem permitido um olhar mais aprofundado a uma questão central para a compreensão da mudança sonora, com consequências para o entendimento da implementação da mudança sonora, para a teoria fonológica, e, em última instância, para a arquitetura da gramática. Essa questão é o entendimento das motivações fonéticas e o papel do item lexical na variação e mudança sonora. Gomes e Melo (2009), utilizando o Rbrul como ferramenta estatística, analisaram o efeito do item no uso variável da coda fricativa na comunidade de fala do Rio de Janeiro, tendo como aplicação a ocorrência da variante velar/glotal, e encontraram, para um determinado grupo social, uma direcionalidade diferente da observada na comunidade de fala. Segundo os trabalhos já realizados para essa comunidade de fala (Guy, 1981, Scherre e Macedo, 2000, Callou e Brandão, 2009), a variante glotal é de baixa ocorrência (abaixo de 7% em todas as amostras estudadas) e, segundo projeta Guy, tenderia a desaparecer devido ao seu caráter estigmatizado e o fato de que as camadas populares passaram a ter mais acesso à educação, e, portanto, aos valores relacionados a essa variante e difundidos pelas diversas instituições sociais. No entanto, no grupo social do estudo de Gomes e Melo (2009), menores infratores cumprindo medida socioeducativa, o percentual médio de ocorrência da glotal foi de 30%, um valor bastante superior ao observado nas amostras dos estudos mencionados. Além do percentual global significativamente superior, os resultados obtidos replicam os condicionamentos encontrados nos trabalhos anteriores. A contribuição do trabalho foi a de poder controlar o papel do item lexical na propagação do que parece ser o desenvolvimento de um padrão sociolinguístico numa direção diferente da que se observa para o restante da comunidade de fala, isto é, na direção da glotal. Ao lado de uma motivação fonética forte (efeito do contexto seguinte) e de outros condicionamentos relacionados à posição da coda na palavra, e ao tamanho do item, os autores puderam identificar que o item propriamente dito aliado à sua alta frequência de ocorrência no corpus também atuam na propagação da velar/glotal.

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Esses resultados constituem evidência para a coexistência tanto de motivação fonética quanto propagação da mudança através do léxico e dialogam com modelos de gramática que propõem que a variação tem status representacional. Conforme defende Bybee (2002), efeitos de frequência e de contexto são indicativos de que o uso linguístico tem impacto na representação mental. De acordo com Bybee, mudanças que afetam primeiramente as palavras de alta frequência são o resultado da automação da produção, isto é, resultam da sobreposição entre redução e gestos articulatórios que vêm com a fluência. A autora propõe um modelo de variação e mudança, baseado em Pierrehumbert (1994), segundo o qual variação e mudança não são externas ao léxico e à gramática, mas inerente a eles. A mudança sonora é capturada na representação do item desde o começo de sua implementação, uma vez que as diversas instâncias de produção da palavra são armazenadas, resultando numa representação detalhada da experiência do falante em produzir e percebê-las, e que vai sendo atualizada em função dessa experiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Além de sedimentar um conceito de gramática, o que incorpora a heterogeneidade estruturada, conforme postulada por Weinreich, Labov e Herzog (1968) com o objetivo de explicar a mudança linguística (Labov, 2006), os estudos variacionistas devem contribuir para a discussão sobre a organização do conhecimento linguístico, principalmente no que diz respeito ao status da variação socialmente indexada na gramática, e de que maneira a modelagem teórica captura a variação na arquitetura da gramática proposta (Gomes e Silva, 2004). Na verdade, já há inúmeras evidências do papel da variação na produção e na percepção. Assim, fora da literatura exclusivamente sociolinguística, Munson et al. (2005) defendem a necessidade de a modelagem fonológica capturar quatro tipos de conhecimento fonológico: o conhecimento relativo às características perceptuais e acústicas dos sons da fala (conhecimento perceptual), o relativo às características articulatórias dos sons da fala (conhecimento articulatório), o conhecimento das restrições fonotáticas e de como os sons podem ser combinados em palavras (conhecimento de nível mais alto

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fonológico) e o conhecimento de como a variação na fala pode ser utilizada para veicular identidade social (conhecimento socialmente-indexado). Em outras palavras, defende-se, para além da proposta inaugural de Weinreich, Labov e Herzog, centrada na explicação da mudança linguística, uma modelagem teórica que incorpora a variação como central à gramática em termos representacionais, com consequências não só para o entendimento do comportamento do falante típico como também para o de falantes de população atípica.

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VARIAÇÃO NOS PROCESSOS DE REFERENCIAÇÃO CORRELACIONADA A GÊNEROS DISCURSIVOS1 VARIATION IN THE PROCESSES OF REFERENCE CORRELATED TO DISCOURSE GENRES Vera Lúcia Paredes Silva Universidade Federal do Rio de Janeiro/CNPq

RESUMO Neste artigo discute-se a correlação entre processos de referenciação, expressos na retomada de elementos já introduzidos no texto, e os gêneros e tipos textuais em que se inserem. Defende-se a possibilidade de um tratamento quantitativo aplicado a essa correlação, na perspectiva da sociolinguística variacionista, e apontam-se as vantagens de tal abordagem. O corpus é constituído de gêneros da imprensa escrita carioca, publicados nos últimos 8 anos. Exemplifica-se a proposta com a análise de dois fenômenos: a variação nome/pronome/ zero na referencia à terceira pessoa;e a variação no uso do artigo definido ou do pronome demonstrativo como determinante do SN/rótulo. Os resultados evidenciam as vantagens de um tratamento quantitativo, ao se considerar a inserção dos fenômenos sintático-discursivos no contexto maior dos gêneros e tipos textuais. Palavras-chave: gêneros e tipos textuais; referenciação; rótulos; sintagma nominal; variação. ABSTRACT In this article some aspects of the correlation between reference processes and genre analysis / text typology analysis are discussed in a quantitative approach, following variationist sociolinguistics. The contribution of quantitative analysis to the best comprehension of variable discursive-syntactic phenomena is argued. The data is constituted by different newspaper genres published in Rio de Janeiro, in the last 8 years.The proposal is exemplified through the analysis of two phenomena: the variable representation of third person (noun, pronoun, zero anaphora) and its implications in reference mantainance and 1

Este trabalho tangencia um tema em que Claudia era “expert”: referenciação. Sua paixão pelo que fazia, sua coragem, sua bravura não podem ser esquecidas. “E quem cantava chorou ao ver seu amigo partir”. Mas sua lembrança ficará sempre em nossos corações. Um beijo, amiga!

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theme progression; the determinant variation ( definite article vs. demonstrative pronoun) in NPs used as discurse labels. The results have shown that the choice between the prefered variant in each case can be successfully correlated to genre and text types. Nevertheless, one question remains open: that of the best criteria for segmentation of a genre in its constituent text sequences. Keywords: discourse genre; labels; Noun Phrase; processes of reference; text typology.

INTRODUÇÃO2 Neste trabalho procura-se estabelecer uma correlação entre dois tópicos que tem despertado bastante interesse na linguística recente – os estudos sobre referencia(ção) e a análise de gêneros – e a possibilidade de um tratamento quantitativo aplicado a essa correlação. Será também proposta uma comparação entre alguns gêneros jornalísticos, a partir de aspectos da referenciação. Para tanto, recorre-se a análises de dados de uso real, aos quais se aplica eventualmente um tratamento de frequência, com base na sociolinguística variacionista: defendemos que análises baseadas no uso real dos falantes, que possam ser comprovadas numericamente/empiricamente, oferecem maior precisão e objetividade. É dentro desse espírito que se apresentam a seguir algumas reflexões sobre esses tópicos. 1. Sobre referência e referenciação Os estudos sobre referência, no quadro da linguística moderna, se inserem, em última instância, na temática da coesão textual, isto é, trata-se de estratégias para manter a “tessitura do texto”, como assinalam Halliday e Hasan (1976). Mas, se para os autores a referencia atua como um dos tipos de elo coesivo, ao lado da conjunção, da elipse e da coesão lexical, há discussões que precedem essa, e que dizem respeito ao próprio ato de referir: “a questão de saber como a língua refere o mundo tem sido colocada há muito tempo 2

Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada como conferencia no Seminário de PósGraduação em Letras e Linguística, UFES, em 25/09/2009.

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em diversos quadros conceituais” (MODADA; DUBOIS, 2003. p. 18). Em outras palavras, a questão em causa é a seguinte: como se estabelece a relação entre as palavras e as coisas? Para a semântica tradicional, era praxe afirmar que usamos um nome para designar uma entidade (do mundo real ou de nosso mundo subjetivo). O clássico triângulo semântico de Odgen e Richards ([1923]1976) representa o mecanismo de produção do significado em três vértices, sendo o da extrema direita reservado ao referente, apresentado como “a coisa extrainguística”; no vértice oposto, o símbolo, o signo; e mediando esta relação, o pensamento ou referência. Neste ponto, é de se perguntar se os autores já não estariam, de alguma forma, incorporando aspectos cognitivos nesta relação. Como a relação Referente (coisa, entidade) – Símbolo (palavra, signo) não é direta (linha pontilhada), mas mediada pelo pensamento ou referência (palavras do autor), essa intermediação abriga a percepção do falante, do ponto de vista pessoal ou cultural. De qualquer forma, na concepção tradicional o que se tem é um mundo exterior previamente definido, organizado em categorias discretas, as quais caberia à língua nomear. Essa concepção traz em seu bojo uma visão estática de língua, entendida como uma “nomenclatura”. E o “nome” ganha lugar de destaque, como a expressão linguística da designação. A perspectiva linguística no que diz respeito à referência, vem mudando nas duas últimas décadas, através de autores como Mondada e Dubois (2003), Apothéloz e Chanet (2003) e outros. No Brasil, Marcuschi (1998, 2005), Koch (1999, 2005), Roncarati (2010) por exemplo, têm olhado de modo diferente para essa questão. A língua passa a ser examinada na sua dinâmica, os objetos referidos deixam de ser objetos do mundo (mundanos) e passam a ser construídos pelo sujeito no discurso (objetos de discurso, portanto). Isso implica dizer que não há entidades no mundo nem categorias previamente estabelecidas, que se refletiriam nos nomes correspondentes. Há, sim, processos de elaboração de referentes no discurso. Substitui-se a expressão “referência” pela expressão “referenciação”. Não se trata, decerto, apenas de uma questão terminológica, e sim de concepção do processo: a referenciação constitui uma atividade discursiva (KOCH, 1999; KOCH & MARCUSCHI, 1998). Desse modo, as entidades designadas não são mais vistas como entidades externas, objetos do mundo, mas objetos

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que são elaborados no discurso: objetos de discurso, que revelam de alguma forma o “projeto de dizer” do falante/escritor. Nesse processo, o Sintagma Nominal (SN) assume papel importante, como a expressão linguística através da qual o autor faz sua escolha de representação/elaboração do objeto de discurso. A título de ilustração inicial, examinemos um exemplo extraído de uma notícia de jornal: 1)

O juiz João Marcos C.B. F., da 8a. Vara de Fazenda Pública, indeferiu ontem o pedido de antecipação de tutela proposto pelo general do Exército brasileiro Luiz C. S. pleiteando a demolição do prédio do 19o. BPM (Copacabana), construído junto à Estação Siqueira Campos do metrô. O militar alegava que a construção afetava a privacidade no edifício xx da Rua Figueiredo de Magalhães, onde Ø tem um apartamento no segundo andar. (...) Ontem, o juiz visitou o novo batalhão e em sua decisão considerou que a única reclamação pertinente feita pelo general havia sido resolvida - as caixas d’água que obstruíam a vista da varanda do militar foram trocadas por uma mais baixa. Sobre as demais queixas, o juiz escreveu: “A quadra de esportes se situa fora do alcance da vista da varanda do autor, não havendo como afetar a sua privacidade. (...) (Notícia/reportagem - O Dia, 04-06-2003)

Na notícia do jornal O Dia, acima transcrita, podemos identificar dois personagens principais: um protagonista - o juiz e um antagonista - um general, que é introduzido no texto com nome e patente; depois, referido através de um hiperônimo o militar; em seguida, retomado como general, novamente como militar e através da anáfora zero. Finalmente é recategorizado como autor, na fala citada de um juiz, portanto, apresentado agora como parte de um processo judicial, numa outra instância discursiva. Desse modo, o texto ajuda o leitor a ir paulatinamente construindo esse objeto de discurso, na sua manutenção/continuidade e ao mesmo tempo na sua evolução. Já o protagonista é sempre apresentado como o juiz - seu papel não muda ao longo do texto.

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Exemplos como esse, em que nomes se alternam na indicação da continuidade referencial/tópica e da evolução de referentes no discurso, são muito frequentes na mídia impressa. Note-se que, com isso, cai por terra a ideia expressa nas gramáticas de que cabe ao nome introduzir a entidade, que, depois, se espera, seja retomada pelo pronome ou pela anáfora zero (Cf. PAREDES SILVA, 2008). Há uma série de fatores que podem influenciar essa escolha. No gênero notícia, por exemplo, um deles seria a participação de personagens do mesmo sexo/gênero e a possível ambiguidade daí resultante. Como se disse inicialmente, este é um estudo da língua em uso. Cabe, então, definir que uso está em jogo.

2. O Corpus Num sentido mais amplo, pode-se dizer que o corpus aqui analisado é constituído de textos extraídos do discurso jornalístico. Assim como o exemplo dado, os demais exemplos são,na sua maioria, integrantes de um acervo de língua escrita do projeto PEUL/UFRJ. Este material foi coletado visando, em princípio, a um estudo comparativo de fenômenos já analisados na fala carioca pelos pesquisadores do Projeto PEUL/UFRJ (tais como concordância nominal e verbal, uso explícito ou não de pronome sujeito, uso variável do dativo, queísmo e dequeismo) (Cf. OLIVEIRA; SILVA; SCHERRE, 1996). Tal amostra, constituída entre 2000 e 2004, compreende jornais de grande circulação no Rio de Janeiro, dirigidos a um público-leitor diferenciado - jornais mais populares ou mais destinados à classe média parâmetro estabelecido com base no preço do jornal na banca. Os jornais que nos serviram de fonte foram: O Globo, Jornal do Brasil3, Extra, O Povo4. Através dessas análises se pretendia verificar um padrão real de uso escrito semi-formal.

3 4

No seu antigo formato, pois desde setembro de 2009 o JB passou a ter apenas a edição eletrônica. Para maiores detalhes e acesso a este material, consultar página do PEUL .

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Considerando-se que o jornal impresso é um veículo que abriga vários gêneros, foi feita uma seleção. Reuniram-se: artigos de opinião, notícias5 (da cidade), crônicas, notas sociais, horóscopo, cartas de leitores, nem todos explorados neste artigo. Por outro lado, a esse material um grupo de orientandos acrescentou outros gêneros, como por exemplo, entrevistas transcritas, além de um novo acervo de crônicas.6

3. Sobre gêneros, tipos de texto e domínios discursivos Sabemos que o chamado discurso jornalístico compreende vários gêneros, e falar de gêneros de discurso significa necessariamente falar de Bakhtin, unanimidade de referência em todas as abordagens ao tema. Aqui se toma como fonte, especialmente, seu ensaio traduzido como “Os gêneros de discurso”7. Sua concepção de gênero revela preocupação com o momento da produção e recepção do discurso, seu caráter interacional, dialógico. Podese dizer que Bakhtin coloca o gênero no centro das questões linguísticas, ao afirmar que todos nós assimilamos formas da língua somente em formas de enunciados. Ou seja, aprender a falar é aprender a construir enunciados. Dessa forma, Bakthin é o responsável por trazer os estudos de gêneros do âmbito da literatura, onde, até então, se situavam predominantemente para a linguagem cotidiana. Destaca o fato de não falarmos por enunciados soltos, mas através de formas relativamente estáveis de enunciados, que estão associadas às diversas situações comunicativas. É nessa concepção que nos pautamos. E é essa também a razão pela qual preferimos falar em gêneros de discurso/discursivos, ao invés de gêneros textuais8. Desse modo, deve-se a Bakhtin a ampliação do interesse pelos gêneros, do âmbito das esferas literária e retórica, até então centralizadoras de tais estudos, para todas as práticas de linguagem da vida cotidiana. Para 5 6 7

8

Não se está fazendo aqui distinção entre notícia e reportagem. Entre eles, Ana Paula Pereira Martins, Pedro Ivo V. Costa Pinto. Tal ensaio aparece no livro Estética da Criação Verbal, Ed. Melhoramentos, cuja primeira edição em português data de 1992. Para uma discussão aprofundada dessas diferenças terminológicas, consultar o artigo de Rojo em Meurer, Bonini; Motta-Roth (Orgs.), 2005.

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o autor, o que constitui um gênero é sua ligação com uma situação social de interação, não os seus traços formais. No ensaio mencionado, os gêneros aparecem definidos como “formas típicas de enunciados” ou “tipos relativamente estáveis de enunciados”, e aí surge um ponto problemático da tradução desses textos, escritos originalmente em russo, e que nos chegaram às mãos inicialmente em inglês. Pode-se entender enunciado tanto como a produção do discurso, como o discurso produzido historicamente situado. Na tradução inglesa (cf. BAKHTIN 1986), a palavra utilizada é utterance, que costumamos traduzir como enunciado. Na tradução portuguesa, feita diretamente do russo, o tradutor em nota justifica sua opção pelo termo “enunciado”, afirmando que Bakhtin emprega igualmente o mesmo termo viskázivat para o ato de produção do discurso e o discurso produzido. Importante é ressaltar que o enunciado é uma unidade da comunicação discursiva e se distingue da oração, unidade da língua enquanto sistema. A expressão usada pelo autor é sempre gêneros de discurso. No referido artigo, Bakhtin distingue gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexos). Os primeiros, segundo o autor, se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata, como a conversa, que ele chama de diálogo cotidiano, o relato do dia a dia, a carta. Já os gêneros secundários (complexos) “surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado”, o que seria o caso dos romances, dos gêneros acadêmicos de um modo geral, dos chamados gêneros “publicísticos”, isto é, que se publicam. Observe-se que essa divisão não contempla uma oposição fala/escrita, ou seja, não relaciona os primários à fala e os secundários à escrita, uma vez que a carta aparece como um gênero primário, e gêneros acadêmicos orais, como a palestra, são tidos como secundários. Quanto à questão do hibridismo ou da superposição de gêneros, Bakhtin afirma que muitos gêneros secundários, em seu processo de formação, absorvem e reelaboram diversos gêneros primários. Nesse ponto, a questão é mais conduzida pelo autor para o âmbito da literatura, e o exemplo dado é o do gênero carta, inserido no gênero complexo romance.

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Nesse caso, diz ele, a carta não perde suas características, mas perde sua relação direta com a realidade, deixa de ser um acontecimento do cotidiano, para ter relevância apenas no romance. Essas combinações, no entanto, nos permitem justamente confirmar a estabilidade dos gêneros, tal como o autor ressalta. Reconhece três elementos determinantes num gênero: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Apesar disso, e do uso da expressão tipos de enunciados, Bakthin, no ensaio citado, em nenhum momento encaminha sua discussão para uma tipologia, como o fazem, por exemplo, Jean-Michel Adam (1992) ou Bronckart (1999), ou ainda, Marcuschi (2002, 2008), no Brasil. Nesse ponto, cabe então distinguirmos o que entendemos como tipos de texto ou sequências textuais. 4. Em busca de uma tipologia de textos A discussão de Bakhtin no ensaio mencionado se situa num plano mais teórico, conceitual. O autor menciona a construção composicional como uma das bases do tripé (associada ao tema e ao estilo) em que se assenta o gênero, mas não se detém particularmente nesses aspectos. Na chamada Linguística de corpus, um autor que lida com a questão dos gêneros e tipos de texto é Biber (1988). Empreende uma análise empírica de vários gêneros, e a partir do levantamento de um amplo conjunto de traços linguísticos e do agrupamento desses traços, define dimensões através das quais os gêneros podem variar. Por exemplo, envolvimento vs. informatividade, referência explícita vs. situacional, etc. Desse modo, as dimensões serviriam de subsídio à caracterização dos gêneros, enquanto os traços linguísticos, dos tipos. Concordamos com Biber (op.cit.), no sentido de atribuir a questão dos tipos de texto a outro nível de análise, que consideramos o das possibilidades de organização linguística. Quanto à distinção gênero/tipo, afirma Biber (1988): Categorias de gênero são determinadas na base de critérios externos, relacionados ao propósito do falante e ao tópico. São atribuídas na base do uso, e não da forma (BIBER, 1988, p. 170).

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Mas o autor reconhece que é também possível agrupar textos com base na forma linguística: Em nosso trabalho, distinguimos gêneros de tipos de texto: gêneros caracterizam textos na base de critérios externos, enquanto tipos de texto representam agrupamentos de textos que são semelhantes na forma, independente do gênero. Por exemplo, um artigo acadêmico sobre a história da Ásia representa uma exposição acadêmica formal, em termos do propósito do autor, mas sua forma linguística pode ser narrativa e mais semelhante a alguns tipos de ficção do que artigos acadêmicos de engenharia (BIBER, 1988, p. 170). Entre nós, Marcuschi (2008, 2002) é um autor que se tem dedicado à questão dos gêneros textuais, a partir de seus estudos sobre as relações fala-escrita. Estabelece, por um lado, tipos textuais, definidos a partir da natureza linguística de sua composição, resultando em “ cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção” (2002, p. 22); por outro lado, caracteriza os gêneros como uma noção propositalmente vaga e relacionada a características sócio-comunicativas. Assim, vemos que há uma forte tendência a se adotar o termo gênero (de discurso ou textual) para a caracterização do discurso associado a uma situação comunicativa, enquanto os tipos de texto seriam analisáveis pelos seus aspectos formais. Em Paredes Silva (1997) estabeleceram-se critérios distintivos para os dois níveis de análise (função e forma, respectivamente), mas não se aplicou com rigor a distinção terminológica gênero/tipo. Isso foi revisto em trabalhos posteriores (Cf. PAREDES SILVA, 2010). Entendem-se os tipos textuais como sequências, estruturas disponíveis na língua e identificáveis a partir de marcas linguística específicas, referentes principalmente ao sistema de tempo/aspecto/modo do verbo, mas também à centração numa pessoa do discurso (1a, 2a, e 3a), às preferências semânticas, à natureza do verbo predominante, à maior ou menor incidência de sintagmas nominais ou verbais, ao predomínio de uma ordenação lógica ou cronológica,etc. Tais traços permitem identificar um conjunto limitado de tipos textuais, sendo

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que a lista desse conjunto pode variar consoante o autor. Alguns tipos parecem consensuais (narração, descrição, argumentação) outros nem tanto (explicação, exposição, injunção) (Cf. MARCUSCHI, 2002; BRONCKART, 1999; ADAM, 1992; entre outros). Propõe-se também o tipo expressivo (cf. Paredes Silva, 1997). Por outro lado, os gêneros correspondem a uma atualização (no sentido aristotélico do termo) desses tipos em circunstâncias concretas de comunicação. Dado esse caráter sócio-interacional do gênero, e dada a diversidade de situações comunicativas com que nos defrontamos, daí decorre uma multiplicidade de gêneros de discurso. Estes, no entanto, são até mais facilmente identificáveis pelos usuários da língua do que os tipos que os constituem. Assim, estruturas narrativas podem se realizar em histórias, piadas, notícias. Por exemplo, ao girarmos o botão de um rádio e passarmos rapidamente por várias estações não teremos dificuldade de, em poucos segundos, identificarmos se se trata de uma transmissão esportiva, uma pregação religiosa, um noticiário ou uma propaganda. Ou seja, os gêneros fazem parte de nossas atividades sóciointeracionais. Já os tipos de texto com os quais nós os elaboramos, os construímos, requerem uma análise linguística mais detalhada. Para citar um caso concreto, voltemos ao nosso exemplo inicial. O segmento apresentado relata fatos, numa sequência cronológica: um juiz indeferiu um pedido, feito anteriormente. Visitou o local e tomou uma decisão. Situa-se a ação no tempo e no espaço, estabelecendo uma distinção entre a linha principal dos eventos e os motivos. Personagens de 3a.pessoa são os principais. Os sintagmas verbais (as ações, no caso) são centrais nesse relato. Os verbos assumem uma importancia maior que os nomes, embora não possamos ignorar a existência de nominalizações. Temos continuidade de referente/tópico de 3a.pessoa, marcas de passado (perfectivo e imperfectivo- figura/fundo), localizadores espaço-temporais, verbos de ação, etc. Assim, do ponto de vista da sequência ou do tipo de texto que a compõe, essa notícia é predominantemente narrativa, com alguns ingredientes de descrição, como, aliás, é comum às narrações.

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Constata-se, assim, que gêneros se compõem de diferentes tipos de texto, e um dos problemas do analista é exatamente essa segmentação: até onde vai uma sequência de tal ou qual tipo, e qual a sequência predominante.

5. Os tipos nos gêneros A Notícia - um gênero informativo As notícias com que trabalhamos são de caráter mais informativo. Para não haver grande diversidade temática, fizemos um recorte de modo a incluir no corpus apenas as notícias da cidade. Com isso evitamos o noticiário econômico, o político e o esportivo, por exemplo, cada um com características próprias. Ao fazer esse recorte, seguimos também um dos parâmetros de Bakhtin no artigo supracitado, quanto a uma das propriedades do gênero (o conteúdo temático). Ao nos concentrarmos em notícias da cidade, passamos a ter um conjunto temático relativamente estável (crimes, assaltos, sequestros, tráfico de drogas, má prestação de serviços públicos e acontecimentos inesperados, tais como enchentes e incêndios. Verificamos, assim, nesse conjunto de notícias a predominância de textos narrativos, com alguma descrição embutida, como convém, aliás, às narrativas (Cf. HOPPER, 1979). Como o objetivo principal da notícia é informar, e não entreter ou opinar (como a crônica, por exemplo), não pode haver qualquer pressuposto sobre conhecimento prévio do leitor, certa “cumplicidade” que há, por exemplo, numa crônica entre autor e seus leitores. Além disso, as notícias costumam envolver mais de um participante, muitas vezes protagonista e antagonista, como no exemplo dado em (1), o que de certo interfere na forma de expressão do referente. São, naturalmente, apresentadas em terceira pessoa, de modo aparentemente objetivo. Gêneros opinativos Outros gêneros podem ser chamados de mais opinativos (Cf. BELTRÃO, 1980), como o artigo assinado ou artigo de opinião, as cartas de leitores, as crônicas9 e as entrevistas. 9

Assim se pode dizer das crônicas atuais, bem diferentes daquelas que fizeram a fama de autores

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A crônica moderna está bem longe da sua origem e etimologia. É um texto leve, em que se pode tratar dos mais variados assuntos. É geralmente escrita em 1a pessoa e procura representar um momento de descontração do leitor, em meio à densidade do noticiário.10 Cinco autores que escrevem semanalmente n’O Globo foram selecionados, compondo um total de 30 crônicas.11 Por tradição, há nessas crônicas sempre sequências narrativas, embora não exclusivamente. É pelo fato de tratarem de uma temática do cotidiano, envolvendo personagens do domínio público − artistas, cantores, políticos, celebridades − que as crônicas nos interessaram do ponto de vista da referência. Nelas aparecem personagens conhecidos ou famosos. Há certo pressuposto de conhecimento partilhado com os leitores, diferentemente de uma notícia, que geralmente precisa identificar os personagens que apresenta.Veja-se, a propósito, o processo de referenciação através do qual se elabora a imagem da prefeita de S.Paulo na ocasião: 2)

Nisso a prefeita de São Paulo é legítima representante dos seus eleitores. Quando [Ø] surgiu na vida pública, era difícil não gostar dela. Mulher, sexóloga, do PT, mãe do simpático roqueiro Supla, casada com um político muito sério e elegante, Eduardo Suplicy, Marta Suplicy era pura modernidade. Não sei se mudou a sua voz ou se mudou o meu ouvido, ela logo passou a me transmitir uma arrogância quatrocentona, plutocrata de esquerda. Muita gente riu quando Marta mandou um concorrente calar a boca durante um debate eleitoral na TV. Certo, era o Paulo Maluf, mas o gesto foi autoritário. (Artur Dapieve, O GLOBO, 11/07/03)

Hoje em dia, a crônica é tratada como um gênero opinativo, isto é, em que há ingredientes de texto argumentativo. Examinemos o exemplo (2), acima. Nele temos uma posição expressa na primeira frase (como convém a um texto argumentativo), mas também sequências de fatos relatados, que contribuem como argumentos.

10 11

como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e mesmo o poeta Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, na década de 1960. Para maiores detalhes, consultar Paredes Silva e Costa Pinto (2010). Não está aqui incluída a crônica esportiva, a crônica policial ou qualquer outra modalidade. São eles: Artur Xexeo, Artur Dapieve, Cora Ronai, Joaquim Ferreira dos Santos e Zuenir Ventura. Esse material foi levantado pela pesquisadora, e não faz parte do acervo PEUL.

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Ao mesmo tempo, o parágrafo é centrado numa só personagem. Apesar do recurso à menção através de diferentes sintagmas nominais como estratégia para acrescentar propriedades ao referente e assim orientar o leitor na tarefa de construí-lo, há menor risco de quebra de continuidade referencial. Daí a maior incidência de anáfora zero em crônicas. Quanto aos artigos de opinião, oferecem maior dificuldade à tentativa de sistematizá-los. Trabalhamos com 30 artigos assinados, na maioria extraídos da página de Opinião dos jornais O GLOBO e JB. Apenas esses dois jornais dentre os pesquisados apresentam artigos de opinião no mesmo padrão (estilo formal a semiformal, temática semelhante).12 Nesse conjunto há completa diversidade de autoria: tanto jornalistas com contribuição sistemática para o jornal13 como especialistas de diferentes áreas (antropólogos, filósofos, empresários, juristas, médicos etc.) A questão da autoria não é irrelevante, pois, embora não tenhamos controlado esse aspecto, pudemos observar que os jornalistas com colunas regulares parecem contar com a maior familiaridade de seus leitores (nesse ponto, sua postura os aproximaria da dos cronistas) e apresentam um texto mais informal, menos denso. Os demais articulistas acabam por trazer para o artigo de jornal traços da escrita de sua profissão, seja no vocabulário mais especializado, seja na construção sintática, o que muitas vezes torna o texto mais formal e a leitura mais pesada. O predomínio é de textos expositivos ou argumentativos, em que um ponto de vista é apresentado e sustentado. Ao longo da sustentação, podem ser inseridas sequências narrativas, a título de exemplificação ou evidência empírica para o ponto de vista defendido. Quanto à temática, a maioria dos artigos de opinião analisados versa sobre política, no âmbito nacional ou internacional, de uma maneira mais direta (política partidária) ou indireta. Como pretendem ser a expressão de um ponto de vista, tendem a centrar-se em ideias, e não em pessoas ou acontecimentos - estes quando muito aparecem como pretexto para a emissão de opiniões. Por esse motivo, apresentam textos predominantemente argumentativos ou expositivos, raramente narrativos, como veremos a seguir. 12 13

Em alguns jornais mais populares, rotula-se como “Opinião” artigos sobre futebol. Elio Gaspari, Villas Boas Correa, Dora Kramer, Merval Pereira, por exemplo.

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Neles, os sintagmas nominais, e particularmente os SNs encapsuladores de porções do texto (Cf. Francis, 2003), assumem papel de relevância, como se vê no exemplo abaixo, em que o SN retoma o conteúdo do parágrafo anterior:

(3)

Em qualquer caso, é o consumidor ou cliente que paga em dia que acaba pagando pelo “gato” ou pela “pirataria”. E este não é o consumidor pobre ou incapaz de pagar (para estes, no caso da eletricidade, existe um subsídio explícito), mas com grande frequência, as pessoas e até empresas que roubam de má fé, e sabendo que estão cometendo um crime. É necessário que políticos e magistrados olhem com atenção para essa enorme distorção em nossos sistemas de rede a fim de tornar mais eficaz a feitura de leis e sua aplicação no país.(O Globo, A22 l.39-45)

Entrevistas Acrescentamos ao corpus original do PEUL entrevistas transcritas no jornal O Globo. Sobre esse gênero, há quem afirme que é a “alma do jornalismo moderno”. A entrevista é considerada um recurso de “verdade”, passa a fazer parte de um jornalismo que busca a objetividade. Ao mesmo tempo, atiça a curiosidade do leitor, em torno de personagens do momento. Segundo Mülhaus 2007, “bisbilhotice e indiscrição” podem ser considerados “a mola propulsora de grande parte das entrevistas”, em tempos mais recentes. Sua semelhança a uma conversa, com a alternância de perguntas e respostas, permite que o leitor se sinta em contato mais próximo com a “celebridade”. As entrevistas em questão partem de uma interação imediata (estilo “pingue-pongue”, segundo o Manual de Redação d’O Globo), sendo a maioria realizada por interação face a face e outras dadas por telefone, o que é explicitado nos respectivos parágrafos introdutórios. Talvez, por isso, possamos perceber que as transcrições dessas entrevistas não perdem certos vínculos com a modalidade oral.

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Nas entrevistas assumem papel importante os SNs encapsuladores, resumitivos de porções do texto, como o do exemplo (3) acima. Note-se que, nas orientações do Manual de Redação d’O Globo é recomendado ao jornalista que “as perguntas devem ter um tom absolutamente isento: nada desmoraliza mais uma entrevista do que a impressão de que se está tentando levar o entrevistado a dizer isso ou aquilo” (p. 45). Os temas abordados são predominantemente de natureza política14. Tais entrevistas pretendem mostrar ao leitor o posicionamento dos entrevistados (cf. Manual d’O Globo), incluindo-se, assim, em gêneros com predomínio de sequências argumentativas. Se seguirmos a orientação de Adam (2002) sobre as sequências ( tipos de texto), diremos que se trata de sequências dialogais, pelo fato de haver troca, intercâmbio de papéis, o que fala e o que responde). Mas essa inclusão do tipo dialogal numa tipologia de textos, que aparece apenas na proposta de Adam (op. cit.), pode ter uma objeção: reservar a uma sequência o caráter dialogal faria supor “monologais”, por inferência, todos os outros tipos, o que seria incompatível com a visão bakhtiniana. Cartas de leitores Quanto ao nosso universo de cartas de leitores, tornou-se muito amplo. A rigor, parte do corpus poderia ser inserida nos gêneros opinativos. Optamos, porém, por dividi-lo em dois sub-conjuntos: cartas de natureza mais reivindicativa, como as do jornal Extra, abaixo exemplificado: 4)

14

Tiaia está às escura á mais de uma semana, os moradores da Rua Tiaia, localizada em Rocha Miranda, estão enfrentando problemas na iluminação pública. A maioria das lâmpadas dos postes está danificadas. Durante esses dias, os moradores fizeram vários pedidos de reparo à Rioluz mas nada é feito. Não aguentamos mais essa situação.

Por exemplo, do corpus fazem parte entrevistas de políticos candidatos ao governo do Estado Rio de Janeiro em 2006.

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Ou mais opinativas, como a que se segue, do Jornal do Brasil: 5)

Rocinha Ora, seu Alberto Dines, os que servem a bandidos, são bandidos. Não há outra palavra: são bandidos. Se quisermos acabar com essa situação, temos que deixar de hipocrisias ao nos referimos ao assunto, e encarar o inimigo de frente. Se fôssemos um país com o mínimo de decência, esses 500 bandidos seriam, no ato, presos e, em seguida, processados. Somos uma nação de fracotes, onde todos querem uma solução milagrosa que não afete os interesses de ninguém, até dos traficantes. Se quiserem acabar com o cancro que é a Rocinha e similares, temos de pensar em criar leis de exceção, próprias a um estado de guerra15.

Em ambas, destaque-se o SN essa situação, atuando como um encapsulador ( rótulo) de natureza anafórica.De qualquer forma, o tipo de texto predominante é o argumentativo. O emissor da carta quer defender seu ponto, seja em proveito próprio (problemas da rua, do bairro, etc. nos jornais mais populares); seja numa perspectiva mais social (comentários e opiniões sobre notícias, colunas ou artigos recentemente veiculados). O domínio discursivo Outro conceito a ser explicitado diz respeito ao uso da expressão discurso jornalístico. Essa expressão não remete a um gênero ou a um tipo de texto, mas a um campo de atividades − um domínio discursivo. Segundo Marcuschi (2008:105), trata-se de uma “esfera da atividade humana”, que indica uma instância discursiva. Assim podemos falar em domínio jurídico, domínio político, domínio jornalístico e assim por diante. Cada um desses domínios provavelmente abrangerá um conjunto de gêneros institucionalizados, que lhes são próprios. O domínio não corresponde a um gênero, mas pode dar origem a vários deles. E o jornal impresso, em si mesmo, é um suporte para os gêneros em questão, uma vez que é o elemento físico, concreto, que permite a fixação desses gêneros. 15

Em destaque, nos dois exemplos, SNs que funcionam como rótulos.

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No nosso caso, utilizamos como exemplos de gêneros, portanto, a crônica, o artigo de opinião, a carta de leitores, a entrevista, as notícias etc. Cada gênero desses, por sua vez, abriga uma diversidade de tipos de texto. Para concluir essa panorâmica sobre gêneros, tipos de texto e domínios discursivos, cabe dizer que a questão dos gêneros e tipos de texto é extremamente atual. Hoje em dia, especialmente depois da orientação dos PCNs, ficou “moderno” falar desse assunto, como também observa Marcuschi (2008). O campo de pesquisa identificado como Análise de Gêneros (Genre Analysis), além da decisiva influência de Bakhtin, também deve sua expansão a John Swales (1990), cuja concepção de gênero é fortemente influenciada pela visão etnográfica de Dell Hymes. Swales (op. cit.) tem-se dedicado à análise principalmente dos gêneros desenvolvidos no contexto acadêmico _ artigos, resenhas, resumos, teses, etc. Entre seus seguidores atuais, pode-se citar Carolyn Miller e Charles Bazerman. No Brasil, podemos mencionar Bernadete Biasi Rodrigues como divulgadora das ideias do autor.

6. O tratamento de gêneros e tipos de texto numa abordagem “variacionista” Quando se pretende fazer uma análise variacionista, isso significa trabalhar com uma quantidade significativa de dados de uso real, buscando correlações entre a escolha de formas alternativas (ou seja, as variantes em fenômenos variáveis), e traços do contexto, no seu sentido mais amplo - no caso, os gêneros e tipos de texto, que podem atuar como variáveis, correlacionadas a fenômenos diversos. Para dar um exemplo da influência dos gêneros, ao estudar a variação na referência à segunda pessoa no português carioca (você/tu), com o pronome tu combinado com a forma verbal não padrão (de 3a. pessoa) constatou-se que era necessária uma situação comunicativa de interação face a face, uma vez que o gênero entrevista sociolinguística não se mostrava satisfatório para a obtenção daquele tipo de dado (Cf. Paredes Silva 2003, 2011).

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O problema maior, quando se trata de aplicar uma análise variacionista, é a necessidade de estabelecer categorias bem distintas, delimitadas para efeito de codificação. Daí a dificuldade de segmentação do gênero nos tipos textuais que o constituem. Muitos questionamentos se impõem nessa etapa de uma análise: (i)

Até que ponto se pode dizer que um segmento é de determinada natureza, por exemplo, narrativo ou descritivo; expositivo ou argumentativo?

(ii)

Qual a extensão desejável para a segmentação? A oração ou o período são unidades sintáticas. Outra alternativa seria trabalhar, na escrita, com o parágrafo como unidade temática, que, no entanto, não é uma unidade confiável, porque não há consistência no seu uso. Será o tópico discursivo o que ajuda a definir (delimitar) uma sequência? Ou serão antes os componentes daquele tipo de texto: (orientação, complicação, resolução, no caso de narrativas, por exemplo).

(iii) (iv)

Além disso, há gêneros que se prestam muito mais ao hibridismo de tipos do que outros. A carta pessoal ilustra essa mescla na escrita, a entrevista, na fala. Outros gêneros são mais fechados, no sentido de representarem prototipicamente um tipo de texto - veja-se o caso de uma receita culinária, por exemplo, como realização característica do tipo injuntivo. Apesar de todos os obstáculos mencionados, seguem-se, a título de ilustração, resultados de duas pesquisas distintas que envolveram os conceitos aqui discutidos - gêneros e tipos de texto - como grupos de fatores em análises quantitativas variacionistas. Inicialmente, fizemos uma pesquisa que investigou a expressão variável do sujeito de terceira pessoa em três gêneros jornalísticos - a crônica, o artigo de opinião e as notícias. Voltemos à questão da referência/referenciação, para agora situá-la no contexto dos gêneros discursivos. Retomemos a discussão inicial deste

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artigo, de que a alternância entre SNs expressos por nomes, pronomes ou anáfora zero não corresponde simplesmente à introdução e manutenção de tópicos no discurso, respectivamente, o que ilustramos com o exemplo (1), da notícia jornalística. Nosso estudo comparativo do uso de nomes, pronomes e anáforas zero como recursos para expressar a continuidade de referência em quatro gêneros jornalísticos, além de fatores já investigados anteriormente16 investiu na comparação entre os gêneros jornalísticos. Vejamos os resultados gerais na tabela que se segue: TABELA 1: visão geral da expressão variável de 3a pessoa na mídia impressa. Crônicas

Notícias

Cartas leitores

Art.Opinião

SN’s

406

55%

520

73%

466

69%

526

69%

Pronomes

165

22%

97

14%

94

14%

148

19%

Zeros

172

23%

97

14%

108

16%

88

12%

Total

743

714

668

762

Observe-se que, nos gêneros analisados, o predomínio é da variante SN, embora sua frequência seja mais baixa nas crônicas. Estas, por sua vez, são ainda as que mais admitem anáforas zero. Quanto ao uso de pronomes, sobe também um pouco na crônica. Controlou-se, em todos os textos, o número de retomadas de um referente e pôde-se constatar que as cadeias referenciais com índice mais alto de retomadas no texto servem como um indicativo do tópico discursivo ou do tema principal do texto. A depender da natureza desse tópico, seu caráter animado ou inanimado, concreto ou abstrato, a repetição (isto é, a retomada pelo mesmo SN) se torna mais ou menos natural. Veja-se a seguir, por exemplo, o primeiro parágrafo de um artigo de opinião que defende a existência das “agências reguladoras”:

16

Ambiguidade, distância referencial, traço animado do referente etc.

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6)

O conjunto de projetos em curso no governo federal, modificando radicalmente atribuições e autoridade das agências reguladoras, na prática, significa sua extinção. Por falta de informação ou por uma visão equivocada do papel das agências é cada vez mais frequente que um ou outro membro do governo apareça atirando no que viu e acerte no que não viu. Se essa cruzada quixotesca conseguir acabar com as agências, perdem todos: o cidadão, o governo e, principalmente, o Rio de Janeiro. (O GLOBO - Moinhos de vento)

E o texto segue, organizando os parágrafos através da retomada do mesmo nome, com ou sem adjetivo, ou seja, alternando agências reguladoras com agências. Em síntese, a mesma expressão nominal – agência - repete-se, assim, doze vezes num total de dezoito retomadas da entidade nesse texto. Contudo, tal nível de repetição não nos causa estranheza, dada a especificidade do “objeto designado” Observe-se ainda que dessas dezoito “retomadas” apenas uma se faz por uma descrição definida - o melhor instrumento criado pela sociedade moderna, o que representa uma recategorização desse referente. O traço animacidade também desempenha papel significativo nessa escolha. É uma variável tradicionalmente associada à escolha de pronomes. Ora,como vimos no exemplo (2), crônicas tendem a se centrar em personagens humanos, conhecidos do público leitor, o que favoreceria o uso do pronome e mesmo da anáfora zero. Buscamos também uma correlação entre gêneros e tipos de texto ou sequências textuais. Apesar das dificuldades inerentes a essa segmentação, foi aplicada aos textos uma divisão nas sequências que os compõem: narrativas, argumentativas, expositivas/descritivas, injuntivas. A tabela a seguir apresenta a distribuição geral dos dados (referentes contínuos) nas sequências textuais, comparando notícias e artigos de opinião, ennglobando todas as variantes (SN, pronome, zero):

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TABELA 2: distribuição dos tipos de textos (sequências textuais) por gêneros (todas as variantes) Gênero

Artigo de opinião

Notícias

Tipos de texto

N.

%

N.

%

Argumentativo

19

2,5%

584

77%

Narrativo

434

61%

114

15%

Descr/ expositivo

255

36%

58

7,5%

Injuntivo

6

0,8%

4

0,5%

Total

714

762

O que esses resultados confirmam é a alta incidência de sequências argumentativas nos artigos de opinião, comparativamente às notícias17. Considerando-se que os artigos de opinião tendem a não se centrar em pessoas, mas em ideias e que as notícias, apesar de centradas em pessoas, necessitam de retomadas explícitas para garantir a informatividade, isso explicaria por que, apesar apresentarem uma composição textual (sequências textuais) mais diversificada, apresentam comportamento semelhante no que diz respeito à escolha entre nomes, pronomes e anáfora zero (Cf. Tabela 1) Outro estudo que vai permitir entender melhor essas diferenças é o que diz respeito ao uso de SN’s como rótulos (labels), conforme a terminologia de Francis (2003)18 Trata-se de um nome que não designa diretamente um ser, como o faz comumente um substantivo, mas cujo sentido tem que ser depreendido do co-texto precedente ou subsequente. Assim, de acordo com Francis, no artigo supra-citado, os rótulos se dividem em prospectivos e retrospectivos, ou em outras palavras, catafóricos e anafóricos, como, respectivamente nos exemplos a seguir:

17 18

O mesmo se dá nas crônicas, cujos resultados aqui não se apresentaram. Também conhecidos como encapsuladores (Koch 2002, 2008), ou nomeações (Cf. APOTHÉLOZ; CHANET 1997; CAVALCANTE 2001).

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7)

Todos parecem querer a reforma política.No entanto, basta tentar dar-lhe forma para que a proposta sofra pesada artilharia inimiga e também amiga, vinda de quem lhe proclamava a necessidade e a urgência há não muito tempo. A conclusão, parece, é a de estarem nossas instituições funcionando bem, sem necessidade de consertos. Esse juízo é parcialmente correto.(...) (Opinião,JB, 09-03-04)

8)

Depois de muito sacrifício e pouco sucesso nos embates pelo poder, a esquerda quando o alcança não raro coloca em posição subalterna os sonhos que acalentou_ até ao extremo de tornar realista a velha piada: “ O poder é como o violino, pega-se com a esquerda mas se toca com a direita.(Opinião, O GLOBO 01-06-04).

No exemplo (7), a expressão em negrito retoma tudo o que foi dito no parágrafo anterior, resumindo-o (encapsulando-o) e atribuindo-lhe o caráter de um juízo, atribuindo-lhe uma categorização, portanto. Já no exemplo (8) também temos um encapsulamento, só que antecipatório, isto é, o rótulo é prospectivo19. De acordo com Koch (2005), esses SNs contribuem para a orientação argumentativa do texto. Usos como os assinalados desempenham um importante papel na progressão temática, fazem evoluir o tema do texto e contribuem para a compreensão do leitor. Há dois pontos a salientar desses usos: a eventual variação no uso do determinante definido vs. demonstrativo e a incidência preferencial de tais SNs em certos gêneros e tipos de texto. Autores da Linguística Textual têm afirmado que em alguns SN’s a alternância entre demonstrativo e definido seria possível, configurando-se um caso de variação. A propósito, afirmam Apothéloz e Chanet (1997): “Parece, por outro lado, que se pode praticamente sempre substituir uma nomeação definida por uma demonstrativa, mas que o inverso não é verdadeiro” (APOTHÉLOZ; CHANET, p. 142). 19

Em seu trabalho seminal, sobre coesão textual, Halliday e Hasan (op. cit.) fazem menção a algo semelhante, ao caracterizarem a chamada referência estendida. Porém os autores discutem-na especialmente em sua expressão pronominal.

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Esses autores listam e exemplificam uma série de contextos em que cada um desses determinantes ocorre, e afirmam basear sua análise num corpus de “aproximadamente 250 itens”, “praticamente constituído de exemplos escritos” (trata-se de exemplos literários) e dizem apresentar “dados quantitativos”. Mas sua análise carece de verdadeira comprovação empírica. Por sua vez, Zamponi (2001) chega a afirmar que, nos casos de uso de definido e demonstrativo em SN’s podemos estar diante de uma variação livre. Ora, por princípio a teoria da variação laboviana defende a sistematicidade da variação, sendo esta inerente ao sistema linguístico, isto é, a variação é estruturada, e não livre, aleatória. A título de ilustração, vejam-se os exemplos abaixo: 9) 10)

Inicialmente, para entendermos esta questão é importante saber como funciona a Lei de Ação e Reação (...) Op. E 2 [...] quem sabe possamos encontrar algum ex-seminarista que resolva a questão. Op. JB 8.

Em ambos os exemplos, extraídos de artigos de opinião da imprensa carioca, o nome-núcleo do SN é o termo questão, um item bastante geral, do ponto de vista semântico, como, aliás, prevalece nos rótulos. Nos dois exemplos, também, o nome tem a função sintática de complemento do verbo e emprego anafórico, retomando porções anteriores do texto. O exemplo (1) é o começo de um parágrafo, o exemplo (2) está no primeiro período de um parágrafo. Há, assim, alguma semelhança de contexto entre os exemplos apresentados. E neles parece perfeitamente viável o intercâmbio entre artigo e demonstrativo. Constituem, portanto, o que se poderia chamar uma variação em contexto semelhante. Além disso, é preciso distinguir os contextos em que a alternância não é permitida. Veja-se, a propósito, a sequência abaixo, extraída de uma entrevista: 11)

Repórter: O brizolismo ganhou um pouco a fama de a polícia ter sido frouxa nas favelas. Entrevistado: Eu não mudaria nada nessa política. (Entrevista O Globo, 2006).

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Nesse caso, a substituição do demonstrativo por um artigo definido iria atribuir um grau de generalização indesejado ao SN - na política, de modo geral, e não apenas aquela que Brizola adotava. Uma análise de dados reais de uso, como a que propomos aqui, permite lidar com esses aspectos, e ainda outros de forma bastante objetiva, buscando estabelecer correlações entre aspectos estruturais desses SN’s e sua função no texto. Tais características, tratadas em grupos de fatores e controladas numa análise variacionista tornam possível o trabalho de quantificação através do pacote estatístico GOLDVARB20, que nos dá um instrumental apropriado para não só confirmar ou contestar as hipóteses dos autores citados, como para avançar na discussão da relação dos SN’s com a construção do texto de tipo argumentativo, e ainda correlacioná-lo ao gênero textual em que se insere. As tabelas abaixo fornecem uma ideia geral da distribuição de rótulos, definidos e demonstrativos, através de diferentes gêneros jornalísticos pesquisados: TABELA 3: distribuição dos SN’s definidos e demonstrativos na amostra de escrita GÊNEROS JORNALÍSTICOS Opinião Definido

Cartas do leitor

Notícias

45 /84= 54% 119/176 = 67% 63/ 73= 86%

Demonstrativo 9/84 = 45%

57/176 = 33%

10/ 73 = 14%

Entrevistas 70/174 = 40% 104/174 = 60%

Apresentam-se, a seguir, duas tabelas comparativas dos resultados da análise da variação definido/demonstrativo em rótulos, em três gêneros jornalísticos. TABELA 4: influência do Caráter Anafórico ou Catafórico do Rótulo no uso do Artigo Definido. (Gêneros da escrita jornalística) Opinião

Cartas de leitores

Entrevistas

Anafórico

0.43

0.36

0.41

Catafórico

0.97

0.86

0.84

20

Ainda que, muitas vezes, aplicando apenas parte desse pacote- a referente às frequências.

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297

TABELA 5: influência da Função Sintática do Rótulo no uso do Artigo Definido. Opinião

Cartas de leitores

Entrevistas

Sujeito

0.64

0.57

0.71

Compl. Verbal

0.68

0.50

0.42

Outras Funções

0.10

0.42

0.33

Observe-se que o caráter catafórico do SN é o que mais promove o emprego do artigo definido como determinante em rótulos, nos três gêneros cujos resultados se apresentam. É fato reconhecido pelos estudiosos de pronomes que o demonstrativo está mais comprometido com a função de apontar para trás, no texto. No que diz respeito à função sintática, vê-se que, no artigo de Opinião, o artigo definido se distribui igualmente entre sujeito e complemento direto. Quase o mesmo se pode dizer do que se passa nas cartas de leitores. Nas entrevistas, talvez pelo seu caráter interativo mais explícito, o artigo aparece mais frequentemente naquele SN que traz o tema da pergunta ou da resposta. Além desses fatores, consideraram-se ainda a presença ou não de modificador no SN, a natureza semântica mais ou menos geral do nome núcleo, a sequência (tipo textual) em que o rótulo se inseria e a localização do rótulo no texto. Desses, houve seleção pelo programa em alguns gêneros, outros em gêneros distintos, mas o caráter anafórico/catafórico e a função sintática sempre estiveram presentes nas seleções. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se vê, o exame de dados reais traz muitas dificuldades e desafios ao analista que deseja trabalhar com categorias de gênero e tipos de texto, alguns dos quais foram aqui apenas apontados. Procuramos dar uma ideia de como a classificação de gêneros e tipos de texto, apesar de muitas vezes criar situações duvidosas para o pesquisador, pode representar um subsídio enriquecedor na nossa análise de fenômenos variáveis, levando a uma compreensão mais abrangente das questões.

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No caso da expressão variável de elementos de terceira pessoa, ela contribuiu para entendermos melhor a escolha de estratégias de referenciação (manutenção do referente/tópico) e a própria progressão temática do texto. Nos SNs que funcionam como rótulos, a escolha de determinantes definidos e demonstrativos também pode ser correlacionada ao gênero e ao tipo textual. Resta-nos a principal indagação, a mais difícil de resolver: qual seria, finalmente, o melhor critério para a segmentação de um gênero nas sequências que o constituem? A nosso ver, o caminho vem pelo tema ou tópico discursivo, se não quisermos cair numa segmentação meramente sintática e fragmentária. Mas esse é uma trilha apenas sugerida, o caminho ainda está por desbravar. As análises aqui apenas esboçadas mostram que é possível trabalhar com correlações entre a constituição do SN, do ponto de vista estrutural, formal, e suas funções nos diferentes gêneros e tipos de texto, de tal forma que a análise com dados reais e sua frequência de uso deem mais precisão às afirmativas que fazemos. Evidencia-se, assim, que é possível associar análises do texto em seus aspectos mais globais e tratamento quantitativo.

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“OI?”1 WHAT? Maria Cecilia Mollica Universidade Federal do Rio de Janeiro/IBICT/CNPq Rodrigo Alípio Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé/FAFIMA Thaís Lofeudo Universidade Federal do Rio de Janeiro/IC-PR-5 Samara Moura IC/CNPq

RESUMO Neste artigo, atestamos que a micro análise, voltada para a investigação dos enquadres conversacionais diferentes, sob uma perspectiva qualitativa, com base em postulados da Sociolinguística Interacional, mostra-se suporte teórico metodológico adequado e instrumento poderoso para analisar os operadores discursivos e suas funções. Focalizamos o vocativo ´oi´ que, hodiernamente, sofreu processo de gramaticalização e é usado discursivamente como estratégia de processamento e/ou de conotação negativa no jogo da coversa. Nós nos baseamos nos estudos de Brown e Levinson (1987), que retomam e ampliam a conceituação de face proposta por Goffman (1970), com o objetivo de analisar o emprego da forma “Oi” como operador discursivo, recente e usual no Português do Brasil. Para tanto buscamos ocorrências desse operador nas mais diversas amostras de dados disponíveis virtualmente, como NURC-RJ, Banco de Dados Interacionais do PEUL. Foi necessário ampliar nossa busca também a dados dispersos, encontrados na new media. Os dados revelam que a forma introduz quebra de face tão marcada, que já se pode até evidenciar o operador registrado em charges de jornal de grande circulação. Palavras-Chave: operador conversacional; quebra de face; sociolinguística interacional.

1

Tradução livre mediante a ausência de termo com a mesma funcionalidade interacional.

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ABSTRACT In this article, we postulate that the micro analysis, focused on the investigation of conversational different framings, from a qualitative perspective, based on postulates of Interactional Sociolinguistics, seems to be an appropriate methodological and theoretical support and a powerful tool to analyze the discursive operators and their functions. We focus on the vocative 'OI' that has undergone the process of grammaticalization so that it is used as a strategy for processing with negative connotation in interactions between people. We draw on studies of Brown and Levinson (1987), which reproduce and extend the concept of face proposed by Goffman (1970), with the aim of analyzing the use of the form "OI" as a new discourse operator in Brazilian Portuguese. On that purpose, we seek instances of this operator in several data samples virtually available at NURC-RJ, Database Interactional of Peul. It was also necessary to expand our search to dispersed data found in the new media. The data reveal that the pattern is such a strong break of face that they are already registered in charges from general circulation newspapers of general circulation Keywords: break of face; conversational strategies; interactional sociolinguistics.

1. Expressão de saudação e operador interacional A língua portuguesa oferece muitas opções de saudação nas modalidades falada e escrita. As mais populares são “olá!”, “como vai?”, “tudo bem?” Expressões de saudação, culturalmente, diferem bastante entre as línguas e entre grupos distintos numa mesma língua, como resume o trecho de texto intitulado O extraordinariamente complexo comportamento de dizer “Oi”, de Robson Faggiani2 “Dizer “oi”, como vimos, é uma confluência da nossa história como espécie e da nossa história pessoal. Mas a palavra “oi” é utilizada apenas pelos falantes de português. Um americano ou inglês falaria “hi”. Nossos hermanos, por sua vez, diriam “hola”. Cada grupo tem um conjunto específico de palavras e a origem desse conjunto é produto da história da cultura. Praticamente tudo o que aprendemos em nossa história pessoal é relacionado com a história da nossa comunidade. (FAGGIANY, 2008). 2

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Por meio das interjeições e expressões de tratamento, é estabelecido o primeiro contato com o interlocutor. A saudação é, então, a ação ou o efeito de saudar, o cumprimento, a felicitação que manifestamos em relação ao interlocutor, presente ou ausente, através da fala e da escrita. Inscritas culturalmente e contextualmente, as saudações linguísticas podem também traduzir-se em gestos, expressões faciais, trejeitos. Grosso modo, na modalidade escrita, as saudações costumam ser mais formais, embora, nas mídias digitais, sejam frequentes as ocorrências de saudações usadas comumente na fala. Em empresas, nas correspondências internas ou na relação cliente/atendente, verifica-se a presença de expressões como “Exmo. Sr. X”, “Prezado Senhor X”, “Querida X”, “Prezado cliente”. Em algumas, aparece somente o nome do destinatário, ou, ainda, “pessoal!”, “gente!”, especialmente quando se quer veicular a noção de envolvimento. Políticos de maior liderança costumam utilizar “meu povo”, “brasileiros e brasileiras”, “queridos eleitores”, “meus caros ouvintes”, formas que expressam respeito e certa proximidade. Barbosa (2010) oferece importante contribuição ao tema no âmbito das mensagens trocadas entre alunos e professores em EAD. Com função fática e em contextos interacionais, tais expressões marcam o início, a continuidade e a finalização de um contato. Na área da Linguística Conversacional, tais empregos situam-se no rol dos operadores discursivos, de acordo com Shiffrin (1987). Ao telefone, costumamos dizer “alô?”. “Oi, como vai?” ou simplesmente “oi?” difundiu-se na língua em situações informais e até em contextos formais, dependendo do grau de intimidade entre as pessoas. Por processo icônico, “oi?” se tornou nome de importante empresa de telefonia celular. A cunhagem de OI surge provavelmente do operador conversacional, após mecanismo de recategorização, mais hodiernamente denominado de gramaticalização (HINE, 1991). Houaiss (1980) registra o “oi?” como interjeição de saudação, que também pode ser empregada para indicar que não se ouviu bem o que foi dito ou perguntado e, ainda, como chamamento ou resposta a um chamamento. Bechara (2009), por sua vez, define a expressão como uma interjeição, usada no português do Brasil (doravante PB) para indicar chamamento, resposta

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a chamados, ou pedido de repetição do que já foi dito. O gramático indica também que “oi?” é uma forma jovial de saudação, um vocativo expressivo. Indica que há outras partículas de dúvida, de suspeita, admiração: hum!, hem!, hein?. Para os falantes que tentam explicar o que vem a ser a palavra “oi?”, no site Yahoo Respostas3 encontramos análises de caráter bem estrutural, como as explicações de (1) a (5), nas quais algumas observações revelam desconhecimento a respeito. É interessante a observação do falante, em (9), acerca da mudança de “oi” para “ó”, em sua região, ou, em (8), “oi” como saudação mais comum no Brasil.

3

(1)

oi! interj., Brasil, emprega-se para cumprimentar, chamar, mostrar espanto ou indicar que não se ouviu bem aquilo que foi dito pelo interlocutor.

(2)

Tatih,: “Oi” é um cumprimento Tupi, e é uma das muitas palavras indígenas que utilizamos no português brasileiro.

(3)

“Oi” é uma interjeição que expressam um cumprimento positivo de boas-vindas. É utilizado como saudação entre duas pessoas.

(4)

É uma meta linguagem. Uma forma de testar o canal de comunicação, do mesmo jeito que Alô, Coé, fala, etc..

(5)

Chamamento, resposta ao apelo do nome, saudação jovial.

(6)

“Oi” é o mesmo que dizer olá.

(7)

A palavra é um comprimento para uma pessoa.. o significado dela é “Oi” mesmo, não há significados mais específicos do que é “o” ou “i” por que ela não é uma palavra não sei como explicar em termos assim de que os professores de portugues falam... mais creio que ela nao seja um substantivo ou algo assim... um professor falaria de modo mais facil... no entanto

Acessível em:http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20060821092543AA54QXn

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há o Oi do célula este já deve ter algum significado mais eu nao sei. (8)

No Brasil, o termo “oi” é o mais comum. A saudação mais clássica é: “Oi, tudo bem?”. Com a resposta: “Tudo, e você?”.

(9)

Na cidade onde estou trabalhando agora não se fala oi, fala ó, só para ilustrar !!!! bjã

(10) Oi!!! Não sei, mas faria uma falta danada se nao existisse (11) Sabe que nunca pensei nisso??? (12) Oi tava na peneira, oi tava peneirando. Das tentativas de explicação presentes no site, podemos supor que a forma “oi?” tenha sido incorporada ao português através de um empréstimo linguístico que sofreu processo de gramaticalização, a partir de uma forma mais antiga de saudação, usada regionalmente em cantigas, como lembrada em (10), até chegar a “oi” como observa o internauta em (9) e, finalmente, tornar-se um marcador conversacional (Cf. exemplos 14, 15 e 16). Numa busca na web sobre a etimologia da interjeição, a origem de “oi” como saudação é motivo de especulação em várias fontes. Veja-se no site Orkut:4 Qual a origem da interjeição Oi? Você sabe... Donde vem a interjeição Oi? Gente, tenho um blog chamado www.brasileiroseportugueses.blogspot.com em que falo de muitos assuntos concernentes aos dois povos. E entre os muitos assuntos que posso levantar, está também caraterísticas linguísticas. Já pesquisei sobre a origem da interjeição Oi mas nada sobre a origem desta expressão “puramente” brasileira. A única opção que me ocorre, pois parece ser a mais lógica - pesquisem para confirmar 4

Acessível em: http://www.orkut.com/Main#CommMsgs?tid=5603588327381741052&cmm=23 97792&hl=pt-BR

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se quiserem - é que o nosso Oi vem do holandês. E por quê? É notório que Pernambuco foi por alguns anos uma colônia da Holanda, pois Portugal tinha uma batata quente chamada Napoleão nas mãos - acho que foi este o motivo e desleixou por algum tempo as suas colônias, e como bom curioso que sou, queria aprender alguma coisa em holandês. E queria aprender a dizer o peste do Oi em holandês e o que descobri? HOI - A diferença é que o H é pronunciado como no inglês, ou seja, pronuncia-se rôi. Quiçá não seria o peste do HOI holandês o pai do nosso Oi? Se alguém souber de alguma informação mais precisa, diga-me, se faz favor. (7 mai, Anônimo) Oi” é um cumprimento Tupi, e é uma das muitas palavras indígenas que utilizamos no português brasileiro (10 mai, Anônimo) Olá, tudo bem? Fico grato por ter respondido, mas eu sou um leitor exigente e gostaria que vc me dissesse a fonte donde vc obteve esta informação, pois não posso postar isto assim no meu blog sem ter uma fonte(livro, almanaque, enciclopédia,etc...) confiável, pois eu e o meu blog poderiíamos perder o crédito se alguém postasse lá que ainformação estava errada, entende? Então se puder, disponibilize o link da página donde vc tirou esta informação se foi na net ou diga-me o título do livro donde a tirou, por favor. Os meus melhores cumprimentos. Nos dicionários consultados, encontramos apenas a origem da palavra “o” (ou “oh”). Segundo Geraldo da Cunha (1982), trata-se da interjeição “illu” proveniente do Latim. O dicionário registra também que uma das funções de “olá” vincula-se à interjeição para indicar espanto, que serve para fazer uma saudação. Introduzida no português no século XVI, tem origem na forma “oula” que, por dedução, deve ter sofrido processo de monotongação, formando “ola”>“olá” até chegar a “oh”. Não há, porém, qualquer registro de “oi” e sua origem.

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Uma hipótese plausível a ser ainda investigada postula que teria havido dois continua de formas, um ainda presente no PB, projetando a cadeia “olha só” > “olha” > “oia” > “o”, e outro formado por “oula” > “ola” > “olá” > “oh” > “ó”. Essas são meras especulações, porque as funções de saudação e de marcador conversacional no início de turno, tal como postulado em Macedo&Silva (1996) e atestado em Castilho (2010), registram somente as formas “olha” e “oh” como marcadores de início de turno. Os autores também não fazem qualquer menção quanto ao “oi” e sua relação com as formas elencadas. Entendemos, então, que o tema deveria ser melhor investigado numa abordagem funcionalista. No trecho extraído de amostra de fala do PEUL (2000)5, registram-se empregos de “olha” e “o” com função de solicitar a atenção do ouvinte. (13) E: Mas, por exemplo, tem algumas atividades no seu colégio como...é:... sê chefe de torcida, né? F: Olha, é assim, no colégio tem um grupo meio assim de vinte ou trinta crianças, não, vinte, é, que é assim, tipo sou eu, a minha outra amiga e a outra (inint)e o outro que é menos que o nosso assim é o é o popular do ano, o mais popular, aí o outro é baixinha, não tem nada, (inint) entendeu? aí assim, a gente brinca de muitas coisas, [uma]...uma pessoa do outro time vai, um outro não é time, é tipo amizade, outra pessoa do de outro grupinho que fica junto vai no nosso time, no nosso grupo assim e brinca assim, entendeu? F: E a gente sai às vezes, né? Só que a gente tenta melhorar em algumas coisas só que não consegue não. E: Olha! (Riso E) E os seus outros irmãos, o que você acha deles? F: São legais, melhor do que [o]... o meu outro irmão. E: Foi Brasil contra não sei que... (riso). Ah, interessante. Oh, sobre essa Copa, essa última, a gente não sabe se foi trato ou não, né? Mas se foi trato, o que que você acha disso? Deles terem feito esse trato?

5

Acessível em: http://www.peul.letras.com

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No trecho, o entrevistador faz uso das expressões para enfatizar o que está dizendo e manter a atenção do entrevistado. Há quem já tenha se debruçado sobre a intrigante origem de “oi” e a possível “jogada” de marketing da operadora de celular “Oi”. Leia-se a opinião do professor João Valente Miranda Leão Neto sobre o assunto.6 Numa sacada genial de sua equipe de marketing, uma Operadora de Celular descobriu uma palavra-chave cuja massificação vem provar a extrema influência da mídia sobre as consciências. Contrariando todos aqueles que acham que a Televisão não influencia comportamentos e não pode ser responsabilizada pela decadência Moral da pós-modernidade, uma marca de Operadora de Celular e a propaganda de seu nome ficaram tão incrustados na consciência do povo que já é possível perceber dúvida e até confusão na hora de determinar quem originou quem: se teria sido o hábito popular de saudar dizendo apenas “Oi” que levou a Operadora a usar a palavrinha mágica como seu “nome de fantasia”, ou se foi o nome da Operadora que fez o povo usar “Oi” como saudação... Claro que isto ainda não passou para o inconsciente coletivo que pereniza todas as coisas, mas como já é possível notar certa confusão sobre as origens, podemos afirmar que não demorará muito até que a próxima geração ensine nas escolas que “todo mundo passou a saudar pessoas apenas com o ‘Oi’ que uma Operadora de Celular inventou para encurtar tempo e custo de suas propagandas”. E daqui a 3 ou 4 gerações, o povão “entenderá” que a Operadora foi a autora desta milagrosa palavrinha, que ao mesmo tempo saúda e cumprimenta com sinal de atenção intimista (pois “Oi” também conota o “óia” dos matutos, que também significa “olha comigo”, ou “presta atenção aqui”, e muito mais) (NETO, 2011, grifos nossos). 6

Acessível em: dia/62947/

http://www.webartigos.com/artigos/de-onde-vem-o-oi-que-substitui-o-bom-

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O autor parece ter se dado conta da relação entre o operador discursivo “oi” e a Operadora de Celular OI. Nossa hipótese a respeito de a origem de “oi” ter sido via processo de gramaticalização procede, nesse sentido. O “oi” interjeição teria tido proveniência do “oia”. Por erosão fonética (Givón, 1995), teria sido recategorizado como operador discursivo-interacional e, novamente por recategorização, tornou-se nome próprio, denominando a operadora celular “Oi”, através de processo conceptual metafórico, nos termos de Lakoff (1980[2002]). Neste artigo, porém, não pretendemos desvendar a origem de “oi” como marcador conversacional. Buscamos tão somente fornecer algumas evidências de seu uso e de seus efeitos de sentido em eventos interacionais de fala. O site Wikcionário7 de consulta livre, por seu turno, registra a entrada da interjeição “oi” em 1980, indicando no Brasil as funções de: (1) cumprimento que se faz ao encontrar uma pessoa, seja como mecanismo de saudação, seja como estratégia de chamar a atenção; (2) resposta quando se é chamado. Os exemplos aparecem em (14). (14) A - Oi Maria, tudo bem? B - João! - Oi! A partir dos exemplos em 14(A) e 14(B), identificamos outra função para “oi” além da de simplesmente “saudar”, “cumprimentar” ou marcar “falta de entendimento”. Equivalente a “como?”, a partícula tem clara função de operador discursivo, em evento linguístico-interativo, quando se quer marcar presença: em (B), “oi?” marca a presença do par adjacente, na conversação, ao atender o interlocutor. Neste estudo de caráter exploratório, buscamos provar que há o uso do marcador conversacional “oi?” (SHIFFRIN, 1987; GUMPERZ, 1982; MARCUSCHI, 1985) como estratégia discursivo-interacional através da qual o interlocutor solicita a repetição de uma pergunta, como no trecho (15), extraído do Banco Interacional do acervo do PEUL8. No entanto, nos interessa salientar que existe outro emprego não cooperativo 7 8

Acessível em: http://pt.wiktionary.org/wiki/oi Acessível em: www.letras.ufrj.br/peul

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do “oi?” cujo objetivo é a quebra de face do interlocutor (grifos nossos), registrado em (14). (15) BDI: BURQUESÃO DO CT Data: 21.11.89 Participantes: Neide, Jurema, Ana Maria, Romilson e Marcelo 419 Quem? 420 (Nei) Seu Hugo! 421 (Jur) Tadi=nho! 422 Respeita seu Hugo! 423 Respeita ele. 424 (Ana) O Brizola tem que amaciar o sapato 425 pro Lula entrar. 426 (Nei) Oi? 427 (Ana) O Brizola tem que amaciar o sapato 428 pro Lula calçar. 429 (Jur) Tadinho 430 o Lula é tão= 431 o Lula vai calçar direito Em (15), Nei de fato não escutou o que Ana havia dito, “O Brizola tem que amaciar o sapato pro Lula calçar”, e solicita a repetição através do marcador conversacional “oi”. Ana entende o pedido (em 426) e, de forma cooperativa, repete o que disse, lançando mão de efeito metafórico, o que é imediatamente interpretado por Jur, que responde: “o Lula vai calçar direito”. O emprego de “oi?” se verifica novamente em (16), em que a função discursivo-interacional é intencional. (16) BDI 1: BURGUESÃO DO CT Data: 21.11.89 Participantes: Neide, Jurema, Ana Maria, Romilson e Marcelo 073 074

(Ana) Quem pegou a salada nesse prato? Nada. ((Ruídos))

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075 076 077 078 079 080 081 082 083 084 085 086

(Rom) Deve tá caindo todo. Fui pegar mais porque o prato tá= pequenininho. (12.87) (Mar) Tá vendo como o= ambiente faz as pessoas. (3.41) (Jur) O PRATO faz as pessoas. ((Rindo)) ( ? ) Hum= Oi? (Jur) Ele falou pra mim que o ambiente faz as pessoas eu falei que o prato FAZ as pessoas. (5.40) (Nei) Olha não tão deixando eu falar Jurema dá cada= coice inoportuno.

A indicação de riso, na transcrição, deixa claro que Neide está sendo colocada de fora da interação. A utilização de “oi” em (16) constitui uma estratégia conversacional de cooperação e envolvimento como analisa Tannen (1982). Ao contrário, o marcador “oi?”, em 082, é indicador de discriminação, de afastamento de um dos participantes no jogo da conversa. De maneira semelhante, porém mais polida e explícita, a intenção do entrevistado em passar por desentendido é sutilmente registrada pelo “Como? Não entendi a pergunta”, no trecho (17), extraído da amostra NURC/Rio-DID. (17) É, porque tornou-se de uma hora pra outra assim um bairro sofisticado, badalado, como se diz aí na gíria, né, muito badalado, né, e depois que apareceu aquela música aí “Garota de Ipanema” não sei o quê lá, aí todo mundo achou que era chique morar em Ipanema, não sei o quê lá. Mas esquece que muita gente mora aqui não porque é chique, porque é um bairro ... D (sup.) Mas as contas do senhor não justificam isso, não? L Como? Não entendi a pergunta.

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D

A maneira como são feitos os apartamentos de certo modo não haveria uma justificativa pro preço?

Ao notar que o entrevistado não entende propositalmente a pergunta, “Mas as contas do senhor não justificam isso, não?”, já que tal pergunta provocaria uma resposta relacionada à renda do entrevistado, a documentadora/entrevistadora atenua a pergunta/assertiva desviando a atenção quanto à relação dos custos. Lançando mão de estratégia de polidez, passa a ressaltar o aspecto arquitetônico dos prédios em Ipanema no turno: “A maneira como são feitos os apartamentos de certo modo não haveria uma justificativa pro preço?”.

2. Sociolinguística interacional e o jogo da conversa A Linguística Socio-Interacional tem se concentrado no estudo dos eventos de fala em diferentes perspectivas discursivas, com o objetivo de verificar como a linguagem opera intencionalmente para a co-construção de sentidos. Tal abordagem tem identificado inúmeros marcadores discursivos, partículas que não apresentam função sintática muito clara que, no entanto, estão a serviço do planejamento, da sequenciação, da continuidade no processamento da linguagem, seja de um único falante, seja entre os falantes, que assumem papéis ao estabelecer relações assimétricas no jogo de poder, nem sempre explicitado nos enquadres conversacionais. Os estudiosos da linguagem humana sustentam que, além da competência gramatical postulada em Chomsky (1965), os falantes possuem uma competência comunicativa, como entendida por Hymes (1961), sem a qual não é possível a existência de uma gramática despojada do módulo pragmático nas línguas. Para Chomsky, competência linguística significa o conhecimento de uma língua internalizada, e desempenho corresponde ao uso real da língua em situações concretas. Hymes demonstra especial preocupação com o uso da língua, incorporando a dimensão social, comunicativa, ao conceito de competência linguística. Para Hymes, não basta que o indivíduo saiba e use a fonologia, a sintaxe e o léxico da língua. Para ser totalmente competente, é preciso saber também as regras do discurso específico da comunidade em que se está

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inserido, além de saber quando falar, quando não falar, a quem falar, com quem falar, onde e de que maneira. Enfim, ter a capacidade de usar a língua em diversos contextos e para diversos fins. A sociolinguística interacional, grosso modo, enfatiza e focaliza cientificamente o conhecimento sócio-cultural-cognitivo que se constrói e se expressa nas interações face a face, objeto central de pesquisa. Esse conhecimento está na base das interpretações sobre diferentes situações comunicativas e dos distintos papéis desempenhados pelos interactantes em uma conversa. As pesquisas na área buscam analisar o desempenho dos atores que, em geral, querem obter “sucesso” no jogo da conversa. Assim, a forma como os membros de uma comunidade identificam os eventos de fala, a maneira como o input social varia no curso da interação e o modo como o conhecimento social produz a interpretação das mensagens reúnem o interesse precípuo da sociolinguística interacional. O significado linguístico é, portanto, construído por um processo complexo de sinais linguísticos e não linguísticos por parte dos sujeitos em interação, ancorados no contexto (SCHIFFRIN, 1994). O estudo da relação entre língua e sociedade passa a ser visto a partir do uso da fala em eventos sócio-culturais específicos. De acordo com Tannen (1992, p. 2), são considerados para investigação tanto gêneros espontâneos, como a conversa entre amigos, além das interações mais gerais, produzidas em contextos institucionais, como uma consulta médica, uma entrevista, um debate acadêmico, uma aula, um sermão religioso e uma negociação empresarial. Sob tal perspectiva, a análise dos marcadores discursivos se faz necessária. Grosso modo, marcadores discursivos são mecanismos que atuam no plano do discurso, da organização textual-interativa, estabelecendo algum tipo de relação entre as unidades textuais e/ou entre os interlocutores. Risso (1996) atesta a importância em descrever “a presença de um conjunto de palavras ou locuções envolvidas no “amarramento” textual das porções de informação progressivamente liberadas ao longo da fala, e no encaminhamento de perspectivas assumidas em relação ao assunto, no ato interacional” (RISSO, 1996, p. 31).

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Marcuschi (1986) denomina os operadores discursivos da conversa como Marcadores Conversacionais. Verifica que esses elementos apresentam funções sintáticas tão responsáveis pela sintaxe da interação quanto pela segmentação, pelo encadeamento das estruturas linguísticas e pelas funções conversacionais. Segundo Marcuschi, é possível reconhecer dois grandes tipos funcionais: (a) os marcadores textuais (direcionados para a orientação do texto – marcadores ideacionais) e (b) os marcadores pragmáticos (orientados para a interação verbal – marcadores interpessoais).

3. Princípio da cooperação No âmbito da Pragmática, Grice (1989) estabelece como princípio básico, regente da comunicação, o Princípio da Cooperação. De acordo com Grice, para um evento de comunicação ter sucesso, os interlocutores cooperam mutuamente. Koch (2008:27) vale-se da seguinte metáfora para explicar esse princípio: “quem se propõe jogar um jogo, aceita jogar de acordo com suas regras e fazer o possível para que ele chegue a bom termo”. Para tanto, Grice postula quatro máximas: QUADRO 1: máximas de Grice MÁXIMA DA QUANTIDADE

“não diga nem mais nem menos do que o necessário”.

MÁXIMA DA QUALIDADE

“só diga as coisas para as quais tem evidência adequada; não diga o que sabe não ser verdadeiro”.

MÁXIMA DA RELEVÂNCIA

“diga somente o que é relevante.”

MÁXIMA DO MODO

“seja claro e conciso; evite a obscuridade, a prolixidade etc.”.

Fonte: GRICE, H. Studies in the way of words. USA: Harvard University Press, 1989

Paralelamente, Grice postula o conceito de “implicatura conversacional”. Se tais máximas entrarem em conflito, ou se o locutor infringir intencionalmente tais máximas (e o interlocutor necessita calcular o motivo da “infração”) tem-se uma implicatura. Ou seja, Grice utilizase do conceito para caracterizar o que é sugerido, indicado, insinuado.

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As implicaturas são contrastadas com aquilo que é dito (“what is said”). Ironias, subentendidos, metáforas seriam explicáveis pelas implicaturas conversacionais, pois violam intencionalmente algumas das máximas que regem o princípio da cooperação. O respeito ao princípio de cooperação possibilita o desenvolvimento da interação discursiva de que os falantes participam. Os interlocutores de uma conversa devem estar atentos aos objetivos do evento de fala e direcionar os turnos adequadamente, desempenhar-se bem nos diversos enquadres interacionais: seguir o “rumo da prosa”, como preconiza a expressão em português popular brasileiro. Grice (1989) desenvolveu um modelo de significado baseado na noção de “cooperação” e nos mecanismos racionais de dedução de significados. Já Searle, a partir dos estudos de Austin, aprofundou a teoria dos atos de fala, partindo do princípio de que uma das funções importantes da língua é a de executar ações. Assim, o trabalho de Searle focaliza as formas pelas quais o significado e a ação são desenvolvidos através da língua em um determinado contexto. Segundo Schiffrin (1994, p. 378), a teoria dos atos de fala de Searle e a pragmática griceana veem o contexto como “conhecimento” dos falantes. Já a abordagem sócio-interacional considera contexto como “conhecimento” e “situação” em que os falantes estão inseridos. Ainda segundo Schiffrin (1994, p.386), tanto os estudos de Grice e de Searle quanto a sóciointeracional são modelos que relacionam discurso e comunicação. As teorias de Grice e de Searle indicam uma crença na harmonia como noção central à comunicação, tanto na dimensão do código quanto na dos mecanismos inferenciais. Tal fato se verifica especificamente em Grice (1982) no “princípio da cooperação”, base da implicatura conversacional. O objetivo da comunicação é alcançar o reconhecimento das intenções do falante e do ouvinte, que funciona metaforicamente como um espelho, tentando alcançar o objetivo da comunicação do falante. Dessa forma, a tradição dos estudos pragmáticos de Grice e Searle acaba por imprimir um caráter ideal e harmônico à análise de contexto e interação.

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A linguística sociointeracional vem nos proporcionar uma visão de interação mais conflituosa. Brown e Levinson (1978, 1987) propõem o paradigma da polidez como parâmetro universal, implementado nos eventos de fala, que se vincula ao princípio de salvamento de face. Durante os alinhamentos, numa conversa, há interesse, em princípio, de manter a fala do outro, de modo a salvar a sua. Mesmo em episódios de ofensas e xingamentos, há estratégias de salvamento de face, já que todos estão interessados em preservar a face. Na análise de alguns empregos de “oi?”, focalizados neste artigo, observamos que o operador pode estar a serviço tanto do salvamento quanto da quebra da face de si mesmo e do outro.

4. “Oi” e “similares”: interpretação de alguns empregos Além de “oi?”, os usuários da língua se utilizam de vários operadores, no contato linguístico com outros pares, em diferentes eventos de fala. Existem muitas estratégias interacionais para marcar quando o interlocutor não entende e pede uma explicação. A amostra NURC do Rio de Janeiro fornece alguns exemplos de tipos de marcadores com tal finalidade, no entanto o interlocutor não tem qualquer outra intenção senão a de entender melhor o que foi dito antes e/ou o que não conhece. (18) 0144 Locutor 163 Sexo masculino, 58 anos de idade, pais não cariocas Profissão: militar (Exército) Zona residencial: Sul e Norte Data do registro: 03 de abril de 1973 Duração: 45 minutos L

Nessa sala tem um piano, tem um espelho grande, desses que se usa em toda casa, né, tem um globo antigo, eh, tem um dunquerque. D Tem o quê? L Dunquerque. D O que que é?

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O, o dunquerque é um móvel, eh, todo trabalhado, vermelho, com tampo de mármore e, e o meu é de vinhático.

A pergunta “o que que é”, no contexto, revela o desconhecimento por parte do interlocutor do que venha a ser um dunquerque, uma peça de mobiliário bem usada até os anos 80. (19) Diálogos entre informante e documentador (DID). Tema: "Casa" Inquérito 0042 Locutor 0051 - Sexo feminino, 60 anos de idade, pais cariocas, bibliotecária. Zona residencial: Sul Data do registro: 12 de julho de 1972 Duração: 75 minutos DOC. LOC. DOC. LOC. -

(sup.) A senhora chegou a morar em outra casa? Como? Chegou a morar em outra casa? Ah, morei. Quando eu saí daí eu fui pra, que era a rua da Passagem que hoje se chama General Góis Monteiro. Aí morei em casa.

O uso de “como”, no trecho (19), é uma forma polida que o entrevistado encontrou para ouvir novamente o que não registrou. (20) Tema: "Casa" Inquérito 0114 Locutor 130 Sexo masculino, 50 anos de idade, pais não-cariocas Profissão: advogado Zona residencial: Suburbana Data do registro: 12 de outubro de 1972 Duração: 44 minutos L

(sup.) Depende, exato. Depende do tamanho. Mas de qualquer maneira, se as crianças não têm liberdade os pais têm, em matéria econômica. D (riso)

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Não é? Ele é senhor daquilo, ele diz: eu que não quero pintar hoje, vou pintar depois de amanhã, e no aparta... (sup.) Mas uma casa em matéria de cômodos? Como? De cômodos ... A casa? A casa e o apartamento. Bom, o apartamento o senhor tem dois quartos e banheiro, etc. e a área comum, não é, pra todas as pessoas e (inint.) Não. E nós queríamos que você des... descrevesse a sua casa, o seu apartamento (inint.) as dependências, a decoração, as particularidades que (inint.) construção também (inint.) Sei. O apartamento, o apartamento em que eu moro não é o ideal. Mas foi onde eu consegui arranjar para residir, embora tenha, tenha uma das coisas mais fabulosas que eu entendo, que é a recreação, de modo que depois do dia de labor, do dia de aflições, de muita luta é bom que a gente se recolha num lar onde pelo menos tenha alguma coisa que a, a gente goste e eu moro num lugar assim. Então eu acho que numa casa de campo deve ter todas aquelas facilidades para que o indivíduo se sinta bem: banho quente, não é, banheiro com banho quente, que lá fazia frio na ocasião, quer dizer, por isso que eu lembrei. Pra que haja banho quente é preciso o quê? Heim? Que que é preciso como? Num lugar onde não tem, precisa do gás, né? Isso. Se não tiver gás, tem que ter um aquecedor, uma eletricidade que tenha aquele ... Ligação própria para um aquecedor. E, eu estive num outro local onde eles instalaram uma, um, um dínamo e fizeram ...

Os operadores do tipo “sei”, “como?” e “heim?” são opções possíveis para os falantes cooperativos, interessados em manter a continuidade tópica, nem sempre muito explícitas quanto ao entendimento do que está sendo falado. Na conversação, a busca para evitar a quebra de face e manter

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a polidez é o exercício esperado quando se deseja bom andamento do discurso em contexto interacional. (21) Tema: "A cidade e o comércio" Inquérito 0140 Locutor 159 Sexo feminino, 55 anos de idade, pais não-cariocas Profissão: técnica em educação Zona residencial: Norte Data do registro: 27 de março de 1973 Duração: 40 minutos L D

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Quais são os serviços de, de utilidade pública que uma cidade precisa? Inúmeros, né? Vamos ver: telefone, luz e gás, transporte, esgoto, condução. Que mais? Telefone já disse, né? Que mais? Ah, bombeiro, polícia. Hoje em dia são de utilidade pública. Até táxi eu considero de utilidade pública. É? (sup.) (sup.) Porque eu uso muito o táxi (sup.) (sup.) Hum, hum (sup.) (sup.) E eu acho que é um serviço de utilidade pública. Você quer que eu fale sobre a cidade, né? Hum. A cidade que eu acharia gostosa (sup.) Eu tenho pena porque é casa, é melhor do que apartamento, tem ... Apartamento dá muita confusão. Porque todos os meus parentes vieram pra cá inclusive meu filho que casou, que teve filhos (inint.) tinha netinhos, eu fiquei com pena de morar longe porque eu acho que devia de aproveitar essa época mesmo de lidar com a criança. Vim por causa deles, agora lamento muito porque acho que casa é mil vezes melhor do que apartamento. Hum, hum. Eu tentei comprar uma casa aqui, mas as casas aqui estão absurdamente caras, né?

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(tosse) É uma rua pequena. A rua te... ah, se não me engano terminava no número sessenta e cinco, então você vê que era uma rua pequena. Se você for ver era uma rua que não tinha saída e terminava numa volta que formava como se fosse uma praça. Havia poucos apartamentos, deixa eu dizer a você quantos precisamente: um, dois ... Havia três pr... três prédios de apartamentos pequenos porque o gabarito era baixo e todas as outras casas eram casas residenciais. D Hum, hum. L As do final exatamente eram as mais novas, onde estava a minha, que as do começo eram casas mais antigas, depois é que eles abriram a rua com esse pedaço fazendo a voltinha lá perto da nossa e então nós com... compramos o terreno pra fazer essa casa lá. Uma casa boa, nova (sup.) Formas curtas e econômicas como “é” e “hum, hum” podem indicar intenção cooperativa, obedecendo, ao mesmo tempo, à máxima da quantidade, que preconiza economia linguística como estratégia de expressividade e comunicabilidade nas interações verbais. Nos exemplos apresentados, verifica-se que não há paralelo com o efeito de sentido que “oi?”, motivo do presente estudo, imprime nos contextos em que é usado. Com a intenção de omitir uma informação, de externar surpresa diante de reação que não se espera do interlocutor, quebrando-lhe a face, a expressão “oi?”, em tela, surge no cotidiano a partir das interações informais, de maneira inesperada, porém intencional por parte de quem o produz. Vejam-se o trecho da personagem de Cláudia Raia em que a artista contracena com futuros enteados, de forma infantilizada, mas se surpreende com a reação dos meninos, tão contrariados e espertos que, na primeira oportunidade, deixam claro que não gostaram da opção do pai em namorá-la. (22) Cláudia – Crianças (tomando um copo de licor), o álcool é o pior inimigo do homem. Mas o homem que foge dos seus inimigos é um covarde.

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Criança 1 - Pelo visto você é bem corajosa! Criança 2- Corajoso é meu pai! Cláudia - Oi? Na interação, a personagem emprega o operador “oi?” para se mostrar desentendida, enquanto dá tempo de alguém intervir na cena. A personagem (futura madrasta) entendeu perfeitamente a rejeição do enteado (filho 2) e emprega o “oi?” como estratégia de manutenção da face. Empregos semelhantes foram identificados no conjunto do que denominamos aqui dados dispersos, amostra constituída a partir do procedimento de coleta de dados também utilizado em Mollica (1989). São trechos vivenciados pelos pesquisadores e anotados no momento em que as interações se deram. (23) Aula de Latim, conversa entre a professora e uma aluna em meio ao barulho dos alunos conversando. Professora: Na próxima prova não serei misericordiosa! Aluna: Oi? Numa tentativa de cessar a conversa dos alunos e dar prosseguimento à matéria, a professora diz que não será misericordiosa na próxima prova, dando a entender que nas provas anteriores ela fora mais maleável com os alunos. Logo após a sua afirmativa, em meio ao barulho da turma, uma aluna utiliza o “oi?”, o que nos leva a inferir que a aluna se faz de desentendida perante a professora que, por sua vez, capta a intenção de deboche da aluna e continua a aula. (24) Corredor central da Faculdade de Letras, conversa entre três pessoas que pretendem comprar agendas. Carolina - (Abre a carteira e deixa aparecer algumas notas) Mariana - Ih, tá cheia de dinheiro! Vai pagar a agenda da Samara? Carolina - Oi? Em (24), após insinuação explícita de que Carolina pagaria para todos, “oi?” corresponde a “não”, uma negativa sutil por parte de Carolina

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que, com a surpresa pelo fato de ser provocada pela colega, finge que não escutou e responde à insinuação com outra pergunta. (25) Em casa, conversa entre mãe e filha. Mãe (pega um livro em cima da mesa) - Pegou esse livro na biblioteca da Faculdade? Filha - Peguei. Mas tenho que ler pra segunda (é sexta), tenho quase certeza que não vou conseguir! Mãe - Ué, então por que só pegou ele hoje? Em cima da hora? Filha - Oi? O emprego do “oi?” revela claramente que a filha entendeu a advertência da mãe quanto a ela retirar o livro da biblioteca sabendo que não haveria tempo de estudar. Para evitar confronto, emprega o “oi?” como operador de salvamento de face. (26)

(O GLOBO, 22/01/2012)9

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É importante salientar que esse “oi” já foi para a escrita de charges de tão marcado e inusitado seu uso.

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Em (26), assim como em (25), o emprego de oi? revela que a filha entendeu a cobrança do pai quanto à realização de seus afazeres, da mesma maneira que em (25) a filha, com o intuito de salvar sua face, de não entrar em confronto com o pai, utiliza-se do marcador “oi?”. (27) VAMO PRUM LUGAR MAIS TRANQUILO?

OI?

(O GLOBO, 02/03/2012)

Já em (27), a utilização do “oi?” é ambígua. Ela (a dançarina no meio do bloco dançando com o rapaz) pode ter feito uso do operador para: (a) se fazer de desentendida quanto ao convite do rapaz, salvando assim sua face ao não optar por responder imediatamente com uma estrutura de negação; (b) indicar que realmente não ouviu devido ao barulho da música muito alta, comum em pistas de dança, sendo esse uso similar ao hein?, como? já examinados anteriormente.

5. Algumas considerações: “oi?”, a máxima da quantidade e o princípio da polidez Dizer o suficiente e de forma econômica, no contexto situacional certo, não é privilégio dos mais letrados. Este estudo, ainda que preliminar e de

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caráter exploratório, evidencia que todos os falantes possuem competência comunicativa bem desenvolvida, a tal ponto de, com poucas palavras, precisamente, apenas com o emprego de “oi?” são capazes de mostrar surpresa, deixar informações subentendidas, ser irônicos na conversação. Aparentemente polido, o emprego de “oi?”, nos contextos analisados neste texto, imprime esperteza por parte do interlocutor que quer deixar oculta alguma informação. Os falantes mais sensíveis conseguem perceber a malícia, embora a intenção seja de salvamento de face. O emprego de “oi?”, que parece ser recente no PB em eventos interacionais, é de uso popular. Supomos que “oi?” vem se alastrando nas camadas menos letradas e se infiltrando pouco a pouco. É possível que outros operadores estejam percorrendo o mesmo caminho, tal como registramos certo uso de “hein?”,em (28), na amostra NURC/Rio. (28) DOC. - eu só queria agora... eu só queria ouvir de você o seguinte... você acha que... o que nos espera? LOC. - Hein? DOC. - ( o que nos espera?) Pouco disposto a responder à pergunta do documentador, o entrevistado “se faz de desentendido”. Reparem que, no trecho (29) a seguir, o entrevistador propositalmente não responde, digamos, “não engole a isca” do interlocutor e finalmente consegue a informação desejada. (29) Senhora dirigindo-se ao motorista dentro do táxi. Senhora: Este carro não está mais em condições de rodar. Motorista: Oi? Senhora: (silêncio proposital) Motorista: Este carro só tá com problema nas poltronas que tão soltas. Não é suspensão não. Em (29), a senhora (linguista atenta) se silencia diante do “oi?” de propósito, à espera da informação que não tinha sido dada de modo a checar suas intuições com relação ao emprego do “oi?” em contexto interacional. Surpreende-se com o fato de que não só suas hipóteses se confirmavam

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quanto ao “oi?”, de conotação negativa, como também se dá conta de que, ainda que o falante tenha consciência de seu emprego como um operador de salvamento de face, acaba por se trair na “mentira” e sua reação pode provocar a quebra de face que desejava preservar. Assim, neste artigo, ao analisar fenômeno emergente no português coloquial, atestamos que a micro-análise, voltando-se para a investigação de distintos enquadres conversacionais, sob perspectiva qualitativa, com base em postulados da Sociolinguística Interacional, mostra-se suporte teórico-metodológico adequado. No nosso entendimento, constitui instrumento poderoso para analisar operadores discursivos e suas funções, dado que interpreta o efeito de fatores normalmente não analisados em estudos sociolinguísticos de tradição variacionista clássica sobre as escolhas linguísticas dos falantes. Controlar variáveis com relação ao perfil do falante interagente e de outros micro-fatores é imprescindível para o analista da conversa. Neste texto, no entanto, nós nos restringimos a lançar algumas luzes sobre o marcador “oi?”, que se acha no aguardo de estudos aprofundados com base em corpora estatisticamente controlados e/ou em outros frames.

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POR ONDE CAMINHA O PROJETO ALIB WHERE ALIB PROJECT HAS BEEN LATELY Jacyra Andrade Mota Universidade Federal da Bahia/CNPq Suzana Alice Marcelino Cardoso Universidade Federal da Bahia/CNPq

À Cláudia, que sempre entendeu o sentido do Projeto ALiB e lhe deu caloroso apoio em todos os momentos. RESUMO Neste artigo, apresenta-se uma breve informação sobre o estágio atual do Projeto Atlas Linguístico do Brasil, com destaque para a constituição do corpus, a organização do Banco de Dados e para alguns resultados, procurando-se mostrar os caminhos percorridos. Nesse sentido, mostra-se o processo de constituição do corpus, a natureza dos dados a recolher e dificuldades a vencer; a importância de um arquivamento dos dados de maneira a permitir ampla consulta; e apresentam-se alguns resultados que apontam para a relevante contribuição advinda dos estudos geolinguísticos para o aprofundamento do conhecimento da língua portuguesa no Brasil. Palavras-chave: Atlas linguístico; Geolinguística; Português do Brasil. ABSTRACT In this article we present some information about the current status of the Linguistic Atlas Project of Brazil focusing on the way its corpus is formed, the organization of the database and some results, trying to show what has been done so far. We show the process of corpus formation, the nature of the data to be collected and the difficulties to overcome, as well as the importance of filling data in order to allow ample consultation. We also present some results that reveal the relevant contribution of the geolinguistic studies for a deeper knowledge of Brazilian Portuguese. Keywords: Brazilian Portuguese; Geolinguistics; Linguistic Atlas.

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INTRODUÇÃO O Atlas Linguístico do Brasil, um desejo aflorado, entre os dialetólogos brasileiros, nos começos do século XX, e endossado pelo Governo Brasileiro, em 1952, com a promulgação do Decreto n° 30.643, de 20 de março, ganha corpo a partir de 1996 e hoje tem, praticamente, constituído o amplo corpus que retratará de forma intercomparada, pela primeira vez, a realidade do português como se apresenta do Oiapoque ao Chuí. São 8.511.000 km² explorados em viagens de carro, de ônibus, de avião, de barco, de mototaxi, de táxi, na carona dos amigos para documentar um total de 1.100 informantes, entre homens e mulheres, entre jovens e idosos, entre universitários e portadores do curso fundamental. São três questionários linguísticos, a que se acrescentam questões de pragmática, temas para discursos semidirigidos, perguntas metalinguísticas e um texto para leitura. São, aproximadamente, 3.300 horas de gravação de fala direta, colhida in loco e a 550 homens e a 550 mulheres nascidos nas localidades em causa, distribuídos por duas faixas etárias — 18 a 30 anos e 50 a 65 anos — e, nas capitais, por dois graus de escolaridade — fundamental e universitário. Nas demais localidades registram-se apenas 4 informantes, com o grau fundamental preferentemente incompleto. O Projeto ALiB é coordenado por um Comitê Nacional, que se constitui, atualmente, pelos pesquisadores: Suzana Alice Cardoso (Diretora-Presidente, Universidade Federal da Bahia), Jacyra Andrade Mota (Diretora Executiva, Universidade Federal da Bahia) e dos Diretores Científicos: Abdelhak Razky (Universidade Federal do Pará), Ana Paula Antunes Rocha (Universidade Federal de Ouro Preto), Aparecida Negri Isquerdo (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), Cléo Altenhofen (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Maria do Socorro Aragão (Universidade Federal da Paraíba/Federal do Ceará), e Vanderci de Andrade Aguilera (Universidade Estadual de Londrina). Integraram, também, este Comitê, como Diretores Científicos, os saudosos colegas Mário Roberto Lobuglio Zágari (Universidade Federal de Juiz de Fora) e Walter Koch (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Do estágio em que se encontra o Projeto ALiB nos ocuparemos nesta homenagem à querida colega Cláudia Roncarati, que sempre acompanhou com entusiasmo e com palavras de estímulo este nosso projeto nacional.

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1. A constituição do corpus Para a constituição do corpus do Projeto ALiB foi estabelecida uma rede de 250 localidades, selecionadas em função da distribuição geográfica e da densidade populacional dos estados e das regiões brasileiras. A extensão do país e, em certas áreas, a pouca disponibilidade de vias de acesso ou a dificuldade que elas oferecem — como em algumas localidades do Amazonas e de Mato Grosso — representaram obstáculos vencidos pelos pesquisadores responsáveis pelos inquéritos nesses Estados1. Outras dificuldades inerentes à pesquisa geolinguística relacionam-se à busca de informantes dentro do perfil pré-fixado pela metodologia do projeto, como, por exemplo, o curso fundamental incompleto, devido aos atuais programas de educação para adultos, largamente difundidos; a presença dos dentes essenciais para a produção de determinados sons; a mobilidade atual do homem moderno. Graças ao esforço coletivo, conta-se, hoje, com a pesquisa inteiramente completa em 19 estados — Amapá, Roraima, Amazonas, Pará, Acre, Rondônia, Tocantins, Maranhão, Ceará, Alagoas, Sergipe, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo, Espírito Santo, Paraná e Santa Catarina — e iniciada em todos os outros, com percentuais já atingidos que variam de 40% a 81%, como se observa no Mapa Pesquisa de campo - Aplicação dos questionários. Em percentuais, a documentação levantada atinge, ao final de 2011, os índices de 91.6 % do total das localidades e de 92.4% dos inquéritos previstos.

1

Áreas documentadas pelas Diretoras Científicas Aparecida Negri Isquerdo e Vanderci de Andrade Aguilera.

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FIGURA 1: projeto ALiB: andamento da pesquisa de campo PESQUISA DE CAMPO APLICAÇÃO DOS QUESTIONÁRIOS Percentuais atingidos Posição em setembro de 2011

Capitais ALiB 40% - 60% 61% - 80% > 81% Estado concluído Fonte: Projeto ALIB - Rede de Pontos 18/02/2011

510

255

0

Escala - 1:23.000.000 510

1.02

1.53 km

Carta Base - Fonte: Base Cartográfica Integrada Digital do Brasil ao Milionésimo v. 2.0. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2006. Planejamento Cartográfico e Edição: Weldon Ribeiro Santos (Bolsista - UFBA). Salvador - Bahia - 2011

Fonte: Ata da XXXIV Reunião do Comitê Nacional do Projeto ALiB

2. O armazenamento dos dados Uma dentre as muitas questões que se põem para a pesquisa linguística diz respeito ao modo de arquivamento dos dados, da sua facilitação no uso e de como socializar os resultados, facultando o acesso às informações pela comunidade interessada. Uma forma de responder a esse tipo de preocupação está relacionada à constituição de bancos de dados, concebidos nas suas mais diferenciadas formas de organização e de possibilidades de acesso. Entendendo a pertinência desse tipo de interesse científico-acadêmico, o Comitê Nacional que dirige o Projeto Atlas Linguístico do Brasil tem envidado esforços no sentido de construir o Banco de Dados do Projeto ALiB. Para isso, vem contando, presentemente, com o apoio do CNPq que entendeu a relevância da questão e atendeu a pedido de financiamento com esse objetivo específico. Assim, a Comissão de Informatização e Cartografia (CIC) do Projeto ALiB, que tem na sua estrutura a presença de professores do Departamento de

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Letras Vernáculas (Instituto de Letras), do Departamento de Transportes (Escola Politécnica) e do Departamento de Teoria da Computação (Instituto de Matemática), vem implementando o banco sobre cuja constituição se passa a informar. No que tange, especificamente, à parte relativa à computação de dados, o trabalho se desenvolve sob a coordenação da Profa. Dra. Daniela Claro, do Departamento de Teoria da Computação, membro da nossa equipe ALiB/BA e integrante da CIC. O Projeto ALiB deu os seus primeiros passos em novembro de 1996, por ocasião do Seminário Caminhos e perspectivas para a Geolinguística no Brasil (Salvador, UFBA), momento a partir do qual se toma a iniciativa de constituição de um projeto nacional cujo desenvolvimento vem acontecendo segundo a trilha delineada. No que diz respeito à constituição do corpus, com a realização dos primeiros inquéritos linguísticos feitos em Quirinópólis (Goiás), em 2001, pela Diretora Científica Vanderci de Andrade Aguilera, se inicia a coleta de dados que, hoje, está perto de ser concluída. Com o corpus quase integralmente constituído e com os estudos de análise dos dados já em andamento, sobretudo os referentes às capitais de estado que constituirão os primeiros volumes do atlas linguístico do Brasil, o Comitê Nacional de há muito vem se empenhando para a organização de um Banco de Dados, necessário e urgente para se armazenar o grande volume de informação que se tem recolhido, um Banco de Dados que reúna, de forma orgânica, clara, com uma capacidade de consulta rápida e eficaz, o amplo corpus. Este corpus, já em vias de fechamento da sua constituição, é o resultado da aplicação dos Questionários ALiB que compreendem: • Questionário Fonético-Fonológico, que inclui questões de prosódia (170 questões); • Questionário Semântico-Lexical (202 questões); • Questionário Morfossintático (49 questões); • Questões de pragmática (4 questões); • Temas para discurso semidirigido (4 itens); • Perguntas metalinguísticas (6 questões); • Texto para leitura (um texto).

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Como se pode observar, o conjunto de itens, que se investigam, atinge, de forma global, um total de 436 diferentes questões. Se considerarmos que temos um total de 1.100 informantes, que representam 250 localidades distribuídas por todo o território nacional, teremos, então, um total geral de 479.600 itens a serem catalogados. Todavia, mister se faz destacar que as respostas para cada item são, em muitos casos, múltiplas porque refletem a variedade de usos e a diversidade lexical. E isso amplia, consideravelmente, o número total de dados a considerar. Se complementarmos a nossa conta com a previsão de horas de gravação, estabelecendo uma média de três horas de gravação por informante, teremos aproximadamente 3.300 horas de registro oral da fala de brasileiros que se distribuem do Oiapoque ao Chuí, respectivamente, ponto 001 e ponto 250 da rede de localidades do ALiB. Por que toda esta matemática, há de se indagar. Por uma razão simples, mas com várias motivações. Primeiramente, com um corpus tão amplo é preciso um mecanismo de consulta que permita, de forma ágil e eficaz, encontrar-se o dado procurado. Em segundo lugar, os dados sonoros não podem ser desprezados e devem ser, igualmente, atingíveis. Em terceiro lugar, o Projeto tem o compromisso social de facultar a consulta aos dados por pesquisadores e interessados na área. Com a amplitude que o caracteriza, o corpus do ALiB exige mecanismos de catalogação que assegurem o controle absoluto dos registros feitos. Assim, no momento da aplicação do questionário a cada informante, registram-se os seus dados em ficha específica. A FICHA DE INFORMANTE contempla um conjunto amplo de informações que vão subsidiar a análise linguística, fornecendo um aporte sociolinguístico que pode elucidar usos e responder a indagações referentes a características e peculiaridades que se venham a encontrar em determinadas áreas. Tais informações são também alvo de controle e oferecem a possibilidade de cruzamento de dados. O Projeto requer um processo de informatização que abrigue um sistema capaz de gerenciar os dados coletados em campo e de disponibilizar e disseminar as informações adquiridas com os inquéritos realizados com os informantes. A socialização destas informações deverá ocorrer em nível nacional e internacional, a fim de compartilhar, com as outras

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regionais do próprio Projeto e com outros projetos, os dados coletados e, consequentemente, iniciar novas frentes de pesquisa. Desse modo, está o Banco de Dados impulsionado por diferentes razões que conduzem aos objetivos a serem atingidos: • Necessidade de armazenamento dos dados coletados; • Facilidade e agilidade na recuperação das informações desejadas; • Utilização da Web para o gerenciamento dos dados coletados; • Disponibilização de consultas através da Internet, ou seja, sem limite geográfico; • Consultas em mapas geográficos; • Acesso à fala (áudio) dos informantes. Do ponto da política interna do Projeto, o Banco de Dados permitirá efetiva integração entre as Equipes Regionais para que se possa estabelecer um processo que permita que as equipes se intercomuniquem não só no sentido da consulta ao Bando de Dados, mas também com vistas a alimentálo com novas informações e resultados das análises em desenvolvimento. No que concerne a uma utilização mais ampla, de abrangência internacional, a intenção é de que este banco possa, facilmente, ser consultado pela internet e se venha a estabelecer a possibilidade de que os interessados possam interagir com os dados e com eles “dialogar” no sentido de construir a resposta às suas indagações.

3. O que o corpus nos tem revelado A análise do corpus do Projeto ALiB vem permitindo a visualização de alguns aspectos da realidade linguística do português do Brasil, especialmente com relação aos dados registrados nas capitais de Estado, recorte selecionado pelo Comitê Nacional responsável pela coordenação do Projeto para a composição dos primeiros volumes a serem publicados. Seguindo, metodologicamente, os parâmetros da Geolinguística Pluridimensional Contemporânea, os dados coletados para o ALiB permitem a oposição entre indivíduos estratificados por idade, sexo e, no caso das capitais, por escolaridade e, consequentemente, a depreensão da

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variação diageracional, diagenérica e diastrática, ao lado da diatópica — aspecto primordial na elaboração de atlas linguísticos. Possibilitam, assim, a análise dos dois aspectos aqui destacados: o registro de possíveis mudanças fônicas em curso no PB e a delimitação de áreas dialetais. 3.1 Mudanças em curso Para exemplificar possíveis mudanças em curso citam-se dois fenômenos documentados nas capitais do Nordeste: (a) a redução de frequência das variantes oclusivas africadas palatais [t, d], depois de semivogal palatal, em vocábulos como muito, prefeito, doido (QFF 077, 083 e 138, respectivamente), substituídas pela oclusivas dentoalveolares [t, d] e (b) a palatalização das oclusivas dentoalveolares diante de vogal anterior alta, como em tio, noite, dia, tarde (QFF 131, 055, 056 e 062, respectivamente), propiciando realizações africadas palatais e oclusivas palatalizadas ([t, d])2. Nos questionários utilizados para a recolha de dados para o ALiB (Cf. AGUILERA et al.), encontram-se os vocábulos acima citados, e outros com o mesmo contexto favorecedor dessas variantes, não só como temas de questões específicas do questionário fonético-fonológico (QFF), mas também como respostas a questões de outros questionários ou em conversas livres, resultantes de iniciativas do próprio informante ou de sugestões feitas pelo inquiridor, na parte final do inquérito, no registro dos “Temas para discurso semidirigido”, previsto na metodologia do Projeto ALiB. Com relação ao primeiro caso, encontra-se, no questionário semântico-lexical, o vocábulo confeito (QSL 185), para bala, bombom. As variantes palatais diante de /i/, são documentadas em um grande número de vocábulos obtidos como respostas às questões do QSL, como, por exemplo, ponte, prostituta, tiara, tempestade, redemoinho, diabo (QSL 002, 142, 193, 011, 004 e 147, respectivamente). Em conversas livres, podem ser registrados trechos como os transcritos a seguir, os dois primeiros em Aracaju, a uma informante feminina de faixa etária 1, de nível fundamental, o terceiro, em Natal, a uma informante feminina de faixa etária 1, de nível universitário. 2

Os dados do Projeto ALiB referentes a esses casos foram analisados, sob orientação de Jacyra Mota, pelas bolsistas Andréa Mafra dos Santos (IC/UFBA-CNPq); Laiza Pinto, Milena Pereira de Souza e Mara Raaby Cândido Cruz (CNPq-balcão).

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(a) Muito menino! Me deixou tudo Doida! — a propósito da questão: O que você fez ontem? (QMS 037), relatando a festa de aniversário que fizera para as filhas. (b) Coitado desses povo que não tem moradia! — a propósito do QMS 034: Como é a vida das pessoas que não têm casa?). (c) Uma coisa marcante é... a perda inesperada de meu irmão que ele tinha vinte e um anos de idade — no relato pessoal solicitado pelo inquiridor, ao final do inquérito As realizações [t∫, d], depois de semivogal palatal, embora identificadas como “africadas baianas” por Silva Neto (1979), não são características apenas do falar baiano, atingindo algumas áreas do falar nordestino3. A variante desvozeada ocorre também em Santa Catarina, como observa Furlan (1989, p. 135 ): “No açoriano-catarinense, o fenômeno limita-se à oclusiva surda /t/, quando vem precedida de vogal tônica + /j/ e seguida de vogal recuada, não havendo sido registrados casos para a sonora /d/”. Nos dados do ALiB referentes às capitais do Nordeste, analisados por Mota e Mafra (2008), as realizações africadas nesse contexto se documentam com maior frequência e peso relativo mais elevado em Maceió, vindo a seguir, em ordem decrescente quanto a esses índices, Aracaju, Natal, João Pessoa, Recife e Salvador, cf. tabela 1, a seguir. TABELA 1: africadas palatais depois de /j/ em capitais do Nordeste Capitais

Nº ocor./ Total

%

Peso relativo

Maceió

276/456

60

0,88

Aracaju

84/316

26

0,56

Natal

28/149

18

0,49

João Pessoa

24/179

13

0,31

Recife

48/445

10

0,27

Salvador

32/322

9

0,22

Significância: 0,016 3

Considera-se aqui a subdivisão de áreas dialetais proposta por Nascentes (1953).

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Em Teresina, registraram-se apenas duas ocorrências, em elocuções espontâneas, e, em Fortaleza e São Luís, não se registrou nenhuma ocorrência das africadas palatais, nesse contexto. Considerando que a maior frequência e os índices mais elevados de peso relativo de variantes palatais se encontram nas amostras de fala dos informantes de faixa etária II, em todas as capitais consideradas, admite-se estar havendo uma mudança em direção às variantes dentoalveolares, mais prestigiadas. Cf. tabela 2, a seguir. TABELA 2: Africadas palatais depois de /j/ no Nordeste: variação diatópica e diageracional Capitais Aracaju Maceió João Pessoa Recife Salvador Natal

Faixa etária

Ocorrências No. /Total

%

p. r.

Faixa I Faixa II Faixa I Faixa II Faixa I Faixa II Faixa I Faixa II Faixa I Faixa II Faixa I

17/121 67/195 36/154 240/302 4/68 20/111 15/158 33/287 1/108 31/214 1/79

14 34 23 79 5 18 9 11 0 14 1

0,43 0,67 0,57 0,95 0,19 0,43 0,23 0,35 0,04 0,36 0,05

Faixa II

27/70

38

0,72

Significância: 0,000

Com relação a Salvador, essa mudança já havia sido observada por Mota e Rollemberg (1997), a partir da análise de dados do Projeto de Estudo da Norma Linguística Culta (NURC). A mudança de africada palatal para oclusiva dentoalveolar depois de semivogal palatal se caracteriza como uma mudança de cima para baixo (Cf. LABOV 1994), tendo em vista o caráter estigmatizante da variante palatal, nesse contexto, e, consequentemente, a sua maior ocorrência em falantes com menor grau de escolaridade, mesmo nas capitais, como Maceió, em que a variante predomina nos dois grupos de falantes. Cf. tabela 3.

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TABELA 3: africadas palatais depois de /j/ no Nordeste: variação diatópica e diastrática Capitais

Aracaju

Maceió

João Pessoa

Recife

Salvador Natal

Ocorrências

Escolaridade No. /Total

%

p. r.

Fundamental

80/168

47

0,82

Universitário

04/148

2

0,12

Fundamental

148/225

65

0,90

Universitário

128/231

55

0,86

Fundamental

16/106

15

0,46

Universitário

08/78

10

0,35

Fundamental

43/258

16

0,47

Universitário

51/187

2

0,12

Fundamental

30/172

17

0,50

Universitário

02/150

1

0,06

Fundamental

19/66

28

0,63

Universitário

09/83

10

0,38

Significância: 0,000

Por outro lado, observa-se, nos dados do ALiB referentes ao Nordeste, que, em Aracaju, ao lado da rejeição às variantes africadas depois de semivogal palatal (como em muntcho, dodjo), os mesmos falantes — de faixa etária I e de nível universitário — preferem as variantes palatais (oclusivas ou africadas) diante da vogal alta /i/ (como em tio, dia, noite, tarde), como consta da tabela 4, que reúne resultados referentes a dados diageracionais e de escolaridade. Também nesse caso, admite-se estar havendo uma mudança de cima para baixo, motivada pelo prestígio das áreas em que a norma é a realização palatal.

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TABELA 4: variantes palatais diante de /i/ em Aracaju Variantes palatais diante de /i/ em Aracaju Faixa etária 1 % 31

Escolaridade 2

p.r. 0,47

% 11

p.r. 0,17

Fundamental % p.r. 3 0,04

Universitária % p.r. 36 0,53

Significância: Faixa etária = 0,001; Escolaridade = 0,000.

De referência à palatalização do /t,d/ diante de /i/, os dados do ALiB que vem sendo analisados mostram indícios de mudança também em Cuiabá e Florianópolis, com predominância da variante palatal entre os falantes mais jovens e com maior grau de escolaridade, tal como observado por outros pesquisadores como Palma (2005) e Pagotto (2004). Quanto a Florianópolis, os resultados se afastam dos anteriormente levantados por Furlan, que, em texto de 1989, observava: “Não sofre, pois, nem africação nem palatalização o /t/ de palavras como leite, pente, pátio, tipitim, tio, ótimo, dia, diário, bate, pede, que seriam africadas no falar carioca, nem poitar, deitar” (p. 136). 3.2

Delimitação de áreas dialetais

No que diz respeito às áreas dialetais, os dados das capitais já permitem algumas configurações e para esta exemplificação servimo-nos de dois tipos de informação, uma de cunho semântico-lexical e outra de ordem morfossintática. Para o primeiro caso, baseamo-nos em resultados apresentados, em cartas experimentais, por Vanderci de Andrade Aguilera, por ocasião do IX Workshop do Projeto Atlas Linguístico do Brasil (Salvador, julho, 2011). Tomam-se dois itens semântico-lexicais, “bala”, tipo de doce do gosto sobretudo das crianças, mas que frequenta, também, o dia-a-dia dos adultos, e “raiz de casca marrom e massa branca, que se come cozida”, muito comum em algumas regiões brasileiras no acompanhamento ao café da manhã, na feitura de bolos ou de purê servido com pratos salgados.

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Para “bala”, como se observa na Carta Bala (tipo de doce), registraram-se as denominações bala, bombom, confeito, caramelo, queimado. Bala apresenta-se como a forma de uso geral, documentada em, praticamente, todas as capitais. A presença de bombom delineia, muito claramente, uma isoglossa que põe, de um lado, a parte Norte do país, com registro em todas as capitais — Boa Vista, Macapá, Belém, Manaus, Rio Branco, Porto Velho —, estendendo-se, por algumas capitais do Nordeste, como já observado por Yida (2011). Confeito é tipicamente uma forma de uso no Nordeste, especificamente registrada em Natal, João Pessoa, Recife e Maceió. Caramelo, por sua vez, aparece em três capitais do Centro-Oeste — Cuiabá, Campo Grande e Goiânia. Queimado figura em uma única capital, Salvador. Esses dados mostram: (i) a existência de uma denominação de uso geral em todo o país, bala, registrada, também, como denominação única nas Regiões Sudeste e Sul; (ii) delineiam áreas dialetais muito especificamente marcadas – as áreas de bombom, confeito e caramelo; (iii) mostram, singularmente, em uma única capital — Salvador — a presença de queimado. FIGURA 2: denominações para bala (tipo de doce) BRASIL Bala (tipo de doce) Distribuição Diatópica nas capitais do projeto ALiB

Legenda Capitais ALiB Bala Bombom Confeito Caramelo Queimado

Dados Linguísticos - Fonte: Questionários Projeto ALiB Análise Linguística: Vanderci de Andrade Aguilera Nota: Mapa elaborado com base na carta experimental Bala, apresentada por Vanderci de Andrade Aguilera, no IX WORKALIB.

Escala - 1:24.000.000 150

0

150 300

450 600 750 km

Salvador - Bahia 2011 Carta Base: Fonte:bCIMd v. 2.0 - IBGE, 2006 Planejamento Cartográfico e Edição Ana Regina Torres Ferreira Teles Composição Cartográfica Temática Weldon Ribeiro Santos (Bolsista - UFBA)

Fonte: Carta experimental apresentada por Vanderci Aguilera no IX Workshop do Projeto ALiB (2011)

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No que diz respeito à raiz de casca marrom e massa branca, que só se come cozida e não se confunde com outra, que lhe é similar4 e usada para a produção de farinha, a conhecida farinha de mandioca, encontra-se documentada sob tríplice denominação, macaxeira, mandioca e aipim, como se mostra na Carta Raiz de casca marrom e branca, que se come cozida. A distribuição cartográfica exibe, com muita nitidez, três áreas: a área de macaxeira, que abrange todo o Norte e Nordeste, com destaque para Teresina, onde se fizeram presentes as três denominações; a área de mandioca, que recobre as Regiões Centro-Oeste e Sudeste; e, por fim, a área de aipim, que caracteriza o uso na costa brasileira, de Salvador a Porto Alegre, com exceção de São Paulo. FIGURA 3: denominações para raiz de casca marrom e massa branca, que se come cozida BRASIL Bala (tipo de doce) Distribuição Diatópica nas capitais do projeto ALiB

Legenda Capitais ALiB Macaxeira Mandioca Aipim

Escala - 1:24.000.000 210

0

210 420

500 640 1.05 km

Salvador - Bahia 2011

Dados Linguísticos - Fonte: Questionários Projeto ALiB Análise Linguística: Vanderci de Andrade Aguilera Nota: Mapa elaborado com base na carta experimental Bala, apresentada por Vanderci de Andrade Aguilera, no IX WORKALIB.

Carta Base: Fonte:bCIMd v. 2.0 - IBGE, 2006 Planejamento Cartográfico e Edição Ana Regina Torres Ferreira Teles Composição Cartográfica Temática Weldon Ribeiro Santos (Bolsista - UFBA)

Fonte: Carta experimental apresentada por Vanderci Aguilera no IX Workshop do Projeto ALiB (2011) 4

Essa, conhecida como mandioca brava, é provida de alto teor “de um glicosídeo cianogenético, chamado manihotoxina”, que “libera o ácido cianídrico, responsável pela intoxicação”. Informação obtida em , em: 27 de novembro de 2011.

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Os resultados da aplicação das perguntas 51 e 185 do Questionário semântico-lexical a que se reportam as duas cartas linguísticas apresentadas permitem uma primeira reflexão, ainda que parcial porque estamos tratando com dados exclusivamente das capitais dos estados: (i) o léxico é instrumento válido para delimitação dialetal; (ii) os dados específicos dessas duas cartas mostram a configuração de áreas dialetais que, submetidas ao que ditarem outros itens a serem ainda explorados, poderão permitir a configuração de isoglossas que marcarão grandes áreas dialetais brasileiras. O exemplo que se traz de fato morfossintático diz respeito ao pronome de tratamento com que o falante se dirige ao seu interlocutor. É sabido que, no português brasileiro, se alternam os usos de tu e você, sem marca de hierarquia e, em certas situações, sem condicionamentos de natureza etária, estrática ou de gênero. Pelo menos assim é o saber geral. As informações fornecidas pelo Projeto ALiB — e convém relembrar, referentes ao que se documentou nas capitais — já estão permitindo uma visão fundamentada em dados empíricos que mostram a realidade diatópica, mas que também exibem as nuances dos usos segundo as variáveis sociais. Dessa realidade, mostra-se, neste artigo, a distribuição espacial na Carta TU/VOCÊ- sujeito – Distribuição diatópica. FIGURA 4: TU/VOCÊ nas capitais do Brasil BRASIL Bala (tipo de doce) Distribuição Diatópica nas capitais do projeto ALiB

Sujeito Tu Você Realizações em %

< 15

15 - 34

35 - 55 56 - 76

77 - 97

Dados linguísticos Fonte: Questionários Projeto ALiB Pontos: Capitais ALiB. Análise Linguística: Suzana Alice Marcelino Cardoso

>97

510

255

0

Escala - 1:24.000.000 510 1.02

1.53 km

Carta Base - Fonte: Base Cartográfica Integrada Digital do Brasil ao Milionésimo v. 2.0. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2006. Planejamento Cartográfico e Edição: Weldon Ribeiro Santos (Bolsista - UFBA).

Fonte: Carta experimental apresentada por Suzana Cardoso no IX Workshop do Projeto ALiB (2011)

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Como se observa nos dados cartografados, a escolha do português brasileiro é de forma generalizada pelo pronome você. Os percentuais exibem a significativa preferência de uso em oito capitais — Fortaleza, Natal, Maceió, Salvador, Vitória, Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba —, nas quais os índices de ocorrência são superiores a 97%. Em dez outras capitais — Boa Vista, Rio Branco, Porto Velho, Teresina, João Pessoa, Recife, Aracaju, Cuiabá, Goiânia e Campo Grande — revela-se igual preferência e os índices flutuam entre 77% e 97%. O uso de tu comparece com baixos índices em dezoito capitais, nas quais não atinge 15%, e em quatro capitais onde oscila entre 15% e 34%, registrando-se, em Florianópolis, o percentual entre 35% e 55%. Em duas capitais, porém, ganha vulto a sua preferência: São Luís, onde atinge o patamar de entre 56% e 76%, e Porto Alegre que figura com o percentual entre 77% e 97%. Do ponto de vista areal, é relevante assinalar que as áreas onde aflora preferência pelo uso de tu são as regiões mais aos extremos do país. De um lado, o Sul, com os dados de Porto Alegre, ponto mais representativo da preferência por tu; de outro, a Região Norte — Rio Branco, Manaus, Macapá e Belém — e mais significativamente São Luís do Maranhão, nos limites das Regiões Nordeste/Norte, que alcança o significativo percentual entre 55% e 76%. Por que esse perfil “dos extremos”? A resposta poderá vir quando somarmos os resultados gerais oferecidos pelo atlas linguístico do Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS As considerações apresentadas tiveram por objetivo informar sobre o estágio atual do Projeto ALiB, e mostrar o tratamento que vêm recebendo os dados coletados e apresentar exemplos de resultados já espelhados. A essas informações soma-se a notícia de publicação dos primeiros volumes com uma introdução sobre o Projeto (histórico, metodologia, rede de pontos, questionários) com dados das capitais de estado apresentados em cartas fonéticas, semântico-lexicais, morfossintáticas e com estudos específicos sobre os fenômenos destacados, aspectos que, somados à possibilidade de audição da própria voz do informante, configuram o Atlas Linguístico do Brasil como um atlas de 3ª geração.

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O ALiB pretende, assim, fornecer, ao lado da diversidade linguística e sua distribuição espacial, novos dados para a ampliação do conhecimento do português do Brasil também quanto a possíveis mudanças linguísticas em curso ou à relação entre a variação diatópica e a formação do português do Brasil.

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AS VARIANTES LEXICAIS PARA A MONTARIA FEMININA: UM ESTUDO SEMÂNTICO-LEXICAL EM CORPORA GEOLINGUÍSTICOS LEXICAL VARIANTS FOR FEMALE MOUNTING EQUIPMENT: A LEXICAL-SEMANTIC STUDY Celciane Alves Vasconcelos Doutoranda pela Universidade de São Paulo/bolsista FAPESP Vanderci de Andrade Aguilera Universidade Estadual de Londrina/CNPq RESUMO Este trabalho tem como base um estudo semântico-lexical e geossociolinguístico de variantes pertencentes ao campo da montaria. Propõe-se uma análise das lexias documentadas nas cartas nº 144 do Atlas Prévio dos Falares Baianos (ROSSI, 1963), nº 148 do Atlas Linguístico de Sergipe (FERREIRA et alii, 1987), nº 15 do Esboço de um Atlas Linguístico de Londrina (AGUILERA, 1987) e a de nº 62 do Atlas Linguístico do Paraná (AGUILERA, 1994). A partir da etimologia e da data de lexicalização de cada uma das lexias, buscase, na sequência, relacioná-las ao momento e ao contexto históricos. Por meio da análise de determinadas variantes relativas à vida do campo, ameaçadas de extinção, pretende-se contribuir para o conhecimento da história da Língua Portuguesa falada no Brasil. Palavra-chave: Estudo Diacrônico e Sincrônico; História Social; Variação Lexical. ABSTRACT This paper is based on a lexical-semantic and geosociolinguistic study of variants belonging to the lexical field of female mounting equipment. It proposes an analysis of the lexical units documented in the letters number 62 of the Paraná Linguistic Atlas (AGUILERA, 1994), number 144 of the Previous Atlas of the Spoken Language from Bahia (ROSSI, 1963) and number 148 of the Sergipe Linguistic Atlas (FERREIRA et alii, 1987). Departing from the etymology and date of lexicalization of each of the lexical units, this study aims at relating them to their historical context and moment. By means of the

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analysis of particular endangered variants related to country life, this paper intends to contribute for the knowledge about the history of the Portuguese language spoken in Brazil. Keywords: Diachronic and Synchronic Study; Lexical Variation; Social History.

INTRODUÇÃO

Os estudos dialetológicos e geolinguísticos no Brasil, que haviam permanecido em ritmo lento desde a segunda metade do século passado, vêm crescendo numa velocidade até então não vivenciada nos cursos de Letras, desde a implantação da disciplina de Linguística, a partir da década de 1960, e da publicação do Atlas Prévio dos Falares Baianos (ROSSI, 1963). Ciente da importância de coletar e registrar a linguagem oral de falantes rurais, idosos, sedentários e com pouco ou nenhum grau de instrução, Silva Neto (1958) já alertava sobre a necessidade e urgência de estudar os falares brasileiros, fossem eles na área da fonética, da morfologia, da sintaxe e/ou semântico-lexical. Neste particular, este trabalho tem por objetivos: (i) apresentar e discutir o acervo lexical sobre o campo semântico da sela feminina, registrado em três atlas estaduais: Atlas Prévio dos Falares Baianos – APFB (ROSSI, 1963), carta 144, Atlas Linguístico de Sergipe – ALSE (FERREIRA et alii, 1987), carta 148, e o Atlas Linguístico do Paraná – ALPR (AGUILERA, 1994), carta 62 e em um atlas de pequeno domínio, o Esboço de um Atlas linguístico de Londrina – EALLO – (1987); (ii) bem como focalizar as semelhanças e diferenças a partir de fatores diatópicos – isto é, nos falares baiano, sergipano, paranaense e londrinense – e diastrático, considerando a variável sexo; (iii) verificar, nas principais obras lexicográficas, a existência das variantes cartografadas, as acepções referentes à sela feminina, a etimologia e a data de lexicalização de cada uma delas. Trata-se de uma relação de itens lexicais específicos da linguagem rural que remontam a uma realidade histórica em que o cavalo era a principal, talvez a única, forma de locomoção.

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1. A importância do cavalo na vida do homem: um breve percurso histórico Especula-se, por meio da reconstituição de inúmeros registros de fósseis, que a primeira raça do cavalo, no Continente Americano, tenha ocorrido há 60 milhões de anos. Durante o final da Era do Gelo, com o desmembramento dos continentes Ásia e América, os cavalos deste continente ficaram afastados dos demais equinos do mundo. Não se sabe exatamente o porquê do desaparecimento do cavalo no Continente Americano, mas Narloch (2011, p. 53) presume que talvez eles tenham “sido extintos durante mudanças climáticas ou pela caça excessiva”. Milênios se passaram até a chegada dos espanhóis às terras sulamericanas, que se surpreenderam por não encontrar aqui nenhum animal doméstico. Por isso, em 1494, Cristóvão Colombo, ao retornar à Ilha de São Domingos, trouxe em seus navios os primeiros exemplares do cavalo para a América. Quanto à ordem cronológica da entrada de cavalos nas Américas Central e do Sul, Goulart (1964) traça o seguinte panorama: [...] em 1494, Cristóvão Colombo levou alguns exemplares para a Ilha de São Domingos. Os que acompanharam Cortez, só aportaram ao México em 1519. Pizarro os introduziu no Peru, em 1532. Na Colômbia (Bogotá), [...] os cavalos chegaram, também, em 1532. Pedro de Mendoza, Governador da primeira Buenos Aires, foi quem os introduziu na Argentina em 1534. [...] Se nos voltamos para o Chile, vemos que cavalos só tiveram ingresso naquele país, em 1535, pelas mãos de Diogo de Almagro. Os da Venezuela, possivelmente lá chegaram, também, em 1535, levados por Ojeda. Em 1541, foi que Cabeça de Vaca conseguiu introduzir cavalos no Paraguai [...]. Os do Uruguai são originários dos do Paraguai e dos da Argentina. (GOULART, 1964, p. 40). Na história do Brasil, não se sabe exatamente quando se deu a primeira entrada desses animais. Oficialmente, sua chegada só foi registrada em 1549, ano em que Tomé de Souza, primeiro governador-geral, mandou virem alguns animais da Ilha de Cabo Verde para a Bahia. Ainda segundo Goulart

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(1964), outras fontes atestam datas anteriores a esta: “Em 1520, por ordem de Ordas, Governador do Maranhão, vieram os primeiros cavalos” (p. 43), “em 1534, por determinação de D. Ana Pimentel, esposa e procuradora de Martim Afonso de Souza, chegam a São Vicente diversos animais domésticos importados das Ilhas das Canárias e da Madeira” (p. 44). O que se pode assegurar é que, no início do século XVI, cavalos e éguas, trazidos pelos portugueses, entram no Brasil, exceto nas regiões Sul e Centro-Oeste, nas quais haviam sido introduzidos pelos espanhóis, no século anterior, reproduzindo-se na Argentina, no Uruguai e se espalhando pelo sul do continente. Neste mesmo período quinhentista, após o breve ciclo do pau-brasil, a principal atividade econômica no Brasil colonial era a indústria açucareira, e tal atividade se estendeu até o século XVII. Os primeiros engenhos eram movidos, inicialmente, pela lenha e pela força motriz animal (bovinos e equinos). Com a expansão dessa atividade, foi necessário empregar esses animais também no transporte do produto açucareiro. Dessa forma, a pecuária, mesmo que timidamente, inicia sua penetração e ocupação no interior do país. No início do século XVIII, com o ciclo da mineração no interior do Brasil, começa uma nova fase de povoamento: surgem, assim, inúmeras vilas que hoje constituem importantes cidades brasileiras. Mas esse desbravamento só foi possível com o auxílio das tropas cavalares e de muares que conseguiram chegar a regiões serranas rodeadas de abismos, montanhas, solos áridos, entre outras dificuldades (GOULART, 1961). Diante desse cenário, um novo modelo econômico se configura no Brasil Colônia, cuja passagem é corroborada por Simonsen (1969, p. 187), ao destacar a importância da pecuária para o desenvolvimento econômico do país: Se a indústria mineradora originou o rápido crescimento da população e a construção de cidades no interior do país, foi por intermédio da pecuária e dos laços criados pelo comércio do gado bovino e cavalar, pelos transportes organizados pelas grandes tropas muares, que se estabeleceram elos indestrutíveis na unidade econômica brasileira (SIMONSEN, 1969, p. 187).

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Dessa forma, o cavalo, devido a sua importância para o transporte no Brasil colonial, se destaca como elemento fundamental para a nova fase econômica: o Tropeirismo. Segundo as historiadoras Steca e Flores (2002, p. 179), essa atividade, baseada no transporte, criação e comércio de animais, foi muito importante para o Paraná e para toda a nação. Deve-se a ele o povoamento do território paranaense nos locais escolhidos pelos tropeiros como pontos de parada para o descanso dos animais. Pelo Caminho de Viamão (RS), passando por solo paranaense, até Sorocaba (SP), surgiram ranchos que acabaram dando origem a vilas e a povoados, e seus moradores se beneficiavam, oferecendo serviços de atendimento aos tropeiros e aos animais. Dentre as influências do tropeirismo para o desenvolvimento de nossa terra, Goulart (1961, p. 177) destaca a sua importância social, assegurando que: a sociedade rural brasileira era representada pelos grandes latifundiários, senhores de engenho, fazendeiros e criadores de gado, no tempo do Brasil colônia, em que pese o segregarismo em que viviam os seus componentes, foi de uma exuberância e de uma magnitude excepcionais (GOULART, 1961, p. 177). Nesse contexto, surgem os barões de café, dando um novo rumo ao perfil da sociedade brasileira. Possuidores de muitos bens, esses senhores abastados fazem grandes investimentos, principalmente em transporte ferroviário e, como consequência, o transporte de carga, em longa distância, feito por cavalos e muares, entra em decadência, ficando restrito seu uso ao trabalho dentro de fazendas, sítios e roças, como também para o transporte de cargas até as ferrovias (GOULART, 1961). Atualmente, a expansão do cavalo, no Brasil, está diretamente ligada à disseminação e criação do gado vacum, uma vez que “nas fazendas de gado ele [cavalo] é indispensável: na sua falta não seria possível manter, nestas extensões enormes que cobrem, a necessária vigilância sobre o gado sôlto” (GOULART, 1964, p. 53).

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Ainda ao longo da história, o cavalo sempre esteve associado a festas e comemorações tanto religiosas como profanas. É o caso das Cavalhadas1, celebração portuguesa tradicional que teve origem nos torneios medievais, em que os aristocratas exibiam em espetáculos públicos a sua destreza e valentia, e frequentemente envolviam temas do período da Reconquista. Era um torneio que servia como exercício militar nos intervalos das guerras e onde nobres e guerreiros cultivavam a praxe da galantaria. No Brasil, ainda são tradicionais as cavalhadas em Pirenópolis (GO), Poconé (MT) e Guarapuava, no Paraná, além de outras localidades do RS como, Vacaria, Mostardas, Santo Antônio da Patrulha e Caçapava. É o caso também das Cavalgadas2, espalhadas por todas as regiões brasileiras, principalmente em cidades do Pará, Maranhão, Bahia, Pernambuco, Ceará, Tocantins, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, que hoje é um passeio realizado por um grupo de cavaleiros e que pode ter motivação religiosa, cívica ou simples um lazer. Assim, o cavalo está presente tanto em esportes populares como nos mais elitizados, como os rodeios, as corridas, as festas do peão e o hipismo, competições que, além de formas de lazer, são fontes de um intenso comércio no Brasil. Para essas ocasiões os adereços do cavalo são muito importantes, como o arreio cutiano e socado, a baldana, o baixeiro, a manta, o pelego, o coxinilho, a cabeçada, o cabresto, o peitoral, a gamarra, a espora, o estribo, o freio, o bridão, a barbela, a barrigueira, a rédea, entre tantos outros. Até há pouco tempo, a presença do cavalo seja nos trabalhos do campo, seja como meio de transporte para vencer longas distâncias e desbravar as terras brasileiras de sul a norte, sempre esteve associada à figura masculina, ficando para as mulheres seu envolvimento no campo do mito e da lenda. Mas esta não era a regra, pois, desde a Idade Média, sobretudo na Inglaterra, entre os séculos IX e XII, as mulheres andavam a cavalo, participando das caças e torneios, esportes considerados da nobreza. Para tal, elas seguiam montadas de lado, sentadas sobre uma almofada, com os pés apoiados num suporte. Essa postura era considerada mais modesta e a mais adequada para uma mulher. 1 2

Disponível em: Acesso em: 10 dez. 2011. Disponível em: Acesso em: 10 dez. 2011.

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A presença da mulher nessas ocasiões levou ao aperfeiçoamento da sela feminina - chamada de “sela das rainhas” - e da forma de montar: o corpo ficava paralelo aos ombros do cavalo, o que tornou a atividade de cavalgar mais segura e deu à mulher um controle maior sobre o cavalo. Entre as amazonas coroadas, são citadas a rainha francesa Catarina de Medici e a imperatriz russa Catarina II, que frequentemente montava à moda masculina. Depois do advento da calça comprida para as mulheres3, a figura feminina se fez mais presente nas formas de lazer e de competição, adotando indumentária e arreios comuns aos dos homens. Mas não foi sempre assim. No mundo ocidental, as mulheres historicamente têm usado vestidos e saias, enquanto os homens têm usado calças. No final do século XIX, as mulheres começaram a usar calças e blusas para o trabalho industrial. Para andar a cavalo, seja no trabalho ou nos passeios, as mulheres, quando ainda não lhes era permitido o uso de roupas tidas como masculinas, portavam longas e amplas saias e, para isso, tinham um tipo especial de sela, que recebe nomes diversos, conforme a região: “selim”, ‘selim de banda”4, “sela de banda”, “arreio de banda”, “serigote”, “silhão” e “lombilho”, entre outros. A propósito, recentemente, Moura (2002, p. 156) relaciona os objetos de “selaria e malaria” da Fazenda do Visconde de Guaratinguetá e, dentre eles, constam “selim para montaria de senhora arreado” e “selim de banda de veludo”. Na p. 160, o autor menciona o “serigote”. A sela feminina é, pois, um acessório em desuso, certamente extinto, cujas variantes lexicais foram registradas cuidadosamente, em apenas quatro atlas linguísticos do Brasil, dos quais três são estaduais: Atlas prévio dos falares baianos – APFB - (ROSSI, 1963), Atlas linguístico de Sergipe – ALSE 3

4

“Na Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial, por causa do racionamento de roupa, muitas mulheres tomaram as roupas de seus maridos civis, incluídas as calças, para trabalhar, enquanto seus maridos estavam ausentes nas forças armadas. Isso foi em parte porque se as considerou como roupas práticas para o trabalho e, em parte para permitir que as mulheres mantenham suas roupas para outros usos. Como essa prática do uso de calças tornou-se mais difundida e o vestuário dos homens estava ausente, as substituições eram necessárias, de modo que no verão de 1944 as vendas de calças de mulher foram cinco vezes mais que no ano anterior. Na década de 1960, André Courrèges introduziu calças compridas para as mulheres como um item de moda, levando à era de pantsuit e corte jeans e à erosão gradual das proibições contra que as meninas e mulheres usem calças nas escolas, no trabalho, e bons restaurantes”. Disponível em: .Acesso em: 10 dez. 2011. “Banda” aqui significa “lado”, portanto, a mulher sentava-se de lado para cavalgar.

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(FERREIRA et alii, 1987), Atlas linguístico do Paraná – ALPR - (AGUILERA, 1994) e um de pequeno domínio, o Esboço de um Atlas linguístico de Londrina – EALLO - (AGUILERA, 1987).

2. A sela feminina nos falares baiano, sergipano, paranaense e londrinense: descrição e análise do corpus FIGURA 1: modelo de silhão

Extraído do site .

Embora, no Brasil, já tenham sido publicados ou concluídos 26 atlas linguísticos, dos quais um regional – da Região Sul; 10 estaduais – Bahia, Minas Gerais, Paraíba, Sergipe, Paraná, Amazonas, Pará, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Ceará e 15 de pequenos domínios5, apenas quatro deles trazem a questão sobre a sela feminina6. Dessa forma, o corpus desta pesquisa, como já mencionado, constituise dos dados de quatro fontes: a carta 144 do Atlas Prévio dos Falares Baianos – APFB - (ROSSI, 1963), a de nº 148 do Atlas Linguístico de Sergipe – ALSE (FERREIRA et alii, 1987), a carta 62 do Atlas Linguístico do Paraná – ALPR (AGUILERA, 1994) e a carta 15 do Esboço de um Atlas Linguístico de Londrina - ALLO (AGUILERA, 1987). 5

6

São dissertações ou teses defendidas em várias IES do Brasil, que mapearam aspectos lexicais e/ou fonéticos de um ou mais municípios: baía de Guanabara, litoral norte paulista, litoral sul paulista, litoral catarinense, litoral potiguar, oeste paranaense, Ilha de Marajó, São Francisco do Sul (SC), Centenário do Sul (PR), Tamarana (PR) Adrianópolis (PR), Cândido de Abreu (PR), Ortigueira (PR) e Ponta Porã (MS). Imaguire (1999), em sua dissertação, Estudo com vistas a um Atlas linguístico da Ilha de Santa Catarina: abordagem dos aspectos lexicais, incluiu em seu questionário uma pergunta sobre a sela feminina, mas não a cartografou.

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A carta 144 do APFB, com o título sela para mulher, é de natureza analítica7 e reúne o total de 106 registros distribuídos por sete formas: “selim” e variantes fônicas “silim”, “silindu” e “silinho”, com 42 registros; “silhão” e variantes fônicas “sião”, “silião”, “silhão”, com 25 registros; “serigote”, sob as variantes “seligote” e “selegote”, com 15 ocorrências; “sela de banda”, com 11 ocorrências; “selim de banda”, com nove, “arreio de banda”, com dois registros, e “cabecim/cabecinha”, também com duas ocorrências. Sabendo-se que a pesquisa do APFB estendeu-se por 50 localidades, inquirindo um total de 100 informantes, dois por ponto, na maioria deles, a produtividade está dentro da média, isto é, uma resposta por informante. A carta registrou apenas duas abstenções. A carta 148 do ALSE, também analítica e sob o título sela para mulher, num total de 25 registros, traz apenas uma forma predominante, “sela de banda”, com 17 ocorrências e outras três menos produtivas: “selim” (com as variantes “silim” e “silindo”) e “silhão” (com a variante “sião”), com três registros cada e “selim de banda”, com duas ocorrências. Considerando que a rede se constitui de 15 localidades em cada uma das quais foram entrevistados um homem e uma mulher, considera-se baixa a produtividade da questão. Registra-se igualmente o fato de as respostas terem sido dadas em sua maioria pelos homens (16 registros) em relação às mulheres (11 registros). O maior número de abstenções ocorreu na fala das mulheres. No ALPR, a carta 62, sob o título sela feminina, é uma carta mista8 e contém 120 registros, dentre os quais predomina a variante “selim” com 57 registros, seguida de “sela”, com 27 ocorrências; “silhão” e variantes, com 26 ocorrências, além de sete outras variantes: “lombilho”, “arreio”, “arreio sem cabeça”, “arreio banana”, “mocho”, “cutiano” e “casquinha”, a maioria como hapax. O número de abstenções é bastante alto, pois, dos 130 informantes 30 deles, ou 23%, declararam não conhecer tal objeto e este número seria ainda maior se a ele fossem acrescentados os registros de “sela e arreio”, que, na realidade, não especificam se o acessório é destinado unicamente às mulheres. Ainda assim, a maior ausência de respostas deu-se na fala feminina: 19 mulheres não souberam dar nome à referida sela. Em 7

8

Carta analítica ou carta fonética é a que traz, em cada ponto, por informante, a transcrição fonética da variante coletada. Carta mista ou carta analítico-sintética é a que traz, em cada ponto, o registro da variante padrão sob a forma de convenção.

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estudo sobre os falares paranaenses, em particular a respeito das variantes para sela feminina, Aguilera (1995, p. 7) esclarece que: A designação mais genérica – sela – foi registrada entre os falantes mais jovens e, sobretudo, nas informantes femininas, uma vez que a montaria está-se restringindo a espaços cada vez menores, em muitos casos deixando de ser um meio de locomoção, portanto de trabalho, para se tornar em esporte das classes mais abastadas. Com o desaparecimento da moda da saia ampla, rodada, optouse por trajes semelhantes aos dos cavaleiros e esta sela específica foi descartada. (AGUILERA, 1995, p. 7) Portanto, a mudança de costumes e de valores de determinada época atinge não somente os hábitos, como também a fala, sobretudo quando o objeto ou coisa deixa de fazer parte do cotidiano e começa a ser substituído pelas novas gerações. No EALLO, para a carta 15, sob o título arreio de mulher, foram obtidas cinco formas: “silhão” e variantes, com 11 ocorrências, “lombilho” e a variante “lumbio”, com 3 ocorrências e como hapax: “montaria”, “sela”, “selim”. Em quatro localidades, todas situadas no norte do município, não se obteve nenhuma resposta. O Gráfico 1 traz a distribuição das variantes mapeadas nas quatro fontes geolinguísticas. GRÁFICO 1: produtividade de cada variante nos Atlas consultados. Bahia

60

Sergipe

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Paraná Londrina

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Fontes: APFB, ALSE, ALPR e EALLO.

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O gráfico 1 mostra que “selim” e “silhão” fazem parte dos falares baiano, sergipano, paranaense e londrinense, embora com distribuição quantitativa desigual entre eles. Mostra, igualmente, que “sela de banda” é produtiva apenas na Bahia e Sergipe e “serigote/seligote” persiste somente no falar baiano. O alto índice de não respostas ou respostas genéricas (arreio, sela) no Paraná pode ter duas causas: (i) o Paraná é um estado relativamente novo (154 anos de emancipação) em que a maioria das cidades tem menos de 80 anos de fundação, portanto surgiram após a fase do tropeirismo e já na era dos automotivos; (ii) comparando esta ausência de respostas no Paraná com a da Bahia e Sergipe, pode-se atribuir a diferença ao espaço de tempo que medeia as coletas de dados, pois, entre a 1ª e a 2ª decorreram quase 30 anos. Acrescente-se que alguns informantes do APFB, no final da década de 50, já explicavam que a sela feminina não existia mais, como se observa nos depoimentos registrados como notas na carta 144: (1) (2) (3) (4) (5) (6) (7)

Inf. 19 B: “já não usam mais isso”. Inf. 21 B: “é antigo”. Inf. 22B: “antigamente”. Inf. 27 B: “sela antiga, montada de um vaqueiro”. Inf. 48 “antigamente, hoje não tem mais: uma selinha arredondada”. Inf. 49: “chamava, agora já estão montando em sela”. Inf. 50 A: “não se usa mais”.

Uma observação interessante é a do informante 8 A, do APFB, num comentário jocoso, mas que deixa transparecer sua perplexidade diante das atitudes femininas mais avançadas para a época: “hoje as mulheres montam em tudo, até em cangalha”. Uma vez feito o levantamento das variantes por fonte e descritos esses dados, buscou-se verificar nos principais dicionários: Bluteau (1712), Morais Silva (1813), Caldas Aulete (1964), Cunha (1982), Ferreira (1987) e Houaiss (2007) a presença ou ausência das variantes e as formas de dicionarização.

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3. Sela feminina: dicionarização e variantes cartografadas A busca, nos seis dicionários, das diferentes formas registradas nos quatro atlas trouxe os seguintes resultados: (i) “Silhão”. Dentre as variantes coletadas e mapeadas, “silhão” é a única dicionarizada na acepção de sela especial feminina. O dicionarista Caldas Aulete (1964), mais sucinto que os demais, registra na primeira acepção: “silha grande ou sela em que montam mulheres”. Morais Silva (1813) e Houaiss (2007) ampliam um pouco mais a definição: “sela grande, com estribo só de um lado e um arção semicircular, em que montam mulheres quando cavalgam com saia”. Já Bluteau (1712) é bastante detalhista em sua acepção: “Hum modo de sella grande para mulheres, com hum encosto por detraz, que as tem mão, & hum estribo por diante, onde mettem os pés. Em silhões andaõ senhoras à caça, & as mulheres em jornadas, & romarias”. Tanto Caldas Aulete (1964) como Houaiss (2007) registram “silhal” como variante lexical, muito próxima das variantes fônicas “silhão” e “silial”. Houaiss (2007) data como 1706 o primeiro registro de “silhão”. Cunha (1982) não traz a entrada “silhão” e registra somente o significado de “silhas” como derivado de “sela”, sem referências à designação buscada, atribuindo sua origem do castelhano, derivado do latim “sělla”. Assim como nos dicionários, na elocução de diversos informantes há a consciência de se tratar de um termo específico, como se pode observar em notas registradas no ALPR (AGUILERA, 1994, p. 146) e selecionadas para ratificar essa afirmação: (8)

Inf. A, de Ribeirão do Pinhal: “é, antigamente diz que tinha o tar do sião. Eu nunca cheguei [a ver], num é do meu tempo, quano a gente cresceu já num viu mais, né, mais minha mãe falava que tinha”.

(9)

Inf. B, de São Jerônimo da Serra: “pa mulher... bom, antigamente tinha os arriame das mulheres, né. Nós tratava sião”.

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As demais variantes registradas pelos informantes dos atlas como sela feminina são consideradas pelos lexicógrafos consultados como acessórios apenas masculinos ou, então, neutros, servindo tanto ao homem como à mulher, como se pode observar na sequência: (ii) “Selim” - Dos seis dicionários consultados, quatro abonam este verbete como “espécie de sela pequena, rasa”, sem fazer menção ao gênero dos usuários, se homem ou mulher(CALDAS AULETE, 1964; CUNHA, 1982; FERREIRA, 1987; HOUAISS, 2007). Quanto à datação deste verbete, Cunha (1982) é um tanto genérico, indicando apenas como entrada no século XVIII, enquanto Houaiss (2007) é mais específico, em 1858. Talvez esta datação explique a razão de não constar dos dicionários Bluteau (1712) e Morais Silva (1813). Somente Ferreira (1987) registra a variante lexical “selote” e, curiosamente, nenhum dos Atlas aqui estudado faz menção dessa ocorrência. No corpus quando o informante quer deixar claro que se trata de sela feminina junta ao nome um especificador, quase sempre formado pela expressão “de banda”, indicando que a mulher montava sentada de lado no cavalo e não enganchada como o homem. A forma “selim de banda”, porém, não se encontra dicionarizada por nenhum destes lexicógrafos. As notas do ALPR (AGUILERA, 1994, p. 146) indicam que os informantes se referem a este tipo de sela, como de uso exclusivo para mulheres. É o que esclarece a informante feminina, de 37 anos de Goioerê, ao ser indagada sobre outro nome para arreio: (10) “bom, tem um(a) qui no sítio, né, quan(do) (an)dava muito, só de mulher, né, silinho”. Ao repetir, registra a forma: silim. A informante de Pitanga, de 41 anos, é um pouco mais específica ao descrever esta sela: (11) “é silim de banda, né”. ‘Perguntou-se se ela o conhecera: “conheci. Eu andei muito no silim de banda. Caí argum

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tombo do cavalo co silim de banda, que Deus o livre. Nói sempre andava. (...) é pirigoso purque vai só dum lado assim, inda inroscava uma cesta assim de paia, uma fita amarrada pa infeitá, era tão bunito, né? A gente ia nos casamento, nos noivado, tudo de silim, ali tinha oito ô nove cavalera, essas molher, moça, tudo ali. As moça que nem ela assim (...) tão bonita, tudo de silim de banda assim. Só os home e rapaiz que iam nos cavalo de, assim de arreio, o mais era só silim de banda (...)”. Conforme a observação feita por Aguilera (1995, p. 7), tanto as variantes “selim” e “selim de banda”, como seu referente são apenas lembrados por falantes idosos, que carregam consigo um conhecimento de mundo próprio de sua época, diferente da vivência dos jovens. (iii) “Sela” - Os dicionaristas registram este verbete na primeira acepção “assento ou arreio que coloca no dorso do cavalo, para o cavaleiro se sentar”. São unânimes em registrar este objeto para uso masculino, ao contrário da acepção trazida pelo informante masculino de Jacarezinho “a sela era mais de mulher, né, e o arreio era de homem”. Talvez este informante tenha associado a lexia sela ao uso exclusivo para mulheres, por pertencer ao gênero feminino e arreio ao uso exclusivo para homens, por ser do gênero masculino. Pode-se inferir, também, que o desconhecimento de um termo específico é devido ao desaparecimento do arreio feminino, que foi substituído pela sela, devido às mudanças de trajes das mulheres. Houaiss (2007) abona este termo com registro do século XIII, e Cunha (1982) no século posterior - XIV, como de procedência latina sĕlla, portanto uma variante que já estava no léxico do português europeu. Quanto à variação lexical, Houaiss (2007) registra “selim” e “selote” como termos diminutivos irregulares. (iv) “Arreio” - As acepções trazidas pelos dicionaristas referem-se não ao objeto em si, mas a acessórios que servem para adornar, enfeitar e aparelhar a cavalgadura para montaria. A acepção buscada, e que mais se aproxima, é registrada por Houaiss (2007) como regionalismo

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do Sudeste do Brasil: m.q. “sela”. Percebe-se que tanto “arreio” como “sela” são respostas genéricas para o campo semântico “sela para montaria”. Sua datação é documentada por Cunha (1982) em 1572. Quanto às variantes lexicais, os atlas registram “arreio de banda” (APFB) e “arreio sem cabeça”, “arreio banana” (ALPR). Bluteau (1712) apresenta outros acessórios desconhecidos pelos informantes e não citados pelos demais dicionaristas: “Arriata”, “Cabeçadas”, “Sustinentes”, “Frontal”, “Cirgola”, “Redeas”, “Panno de Silha”,” Rabicho”. (v) “Lombilho”/“Serigote” - Os lexicógrafos Caldas Aulete (1964), Ferreira (1987) e Houaiss (2007) trazem acepções semelhantes. Para “lombilho”: “o apeiro que substitui, nos arreios, a sela comum, o selim e o serigote”. Para “serigote”: “espécie, tipo de lombilho, peça de arreamento”. Percebe-se que estas abonações são próximas, mas não traduzem a acepção aqui buscada. Dos demais dicionários não constam esses lemas, haja vista que “lombilho” foi registrado em 1889 e “serigote” em 1899 (HOUAISS, 2007). Ferreira (1987) e Houaiss (2007) registram “selagote” como variante lexical para “serigote”. Caldas Aulete (1964) e Ferreira (1987), por sua vez, documentam esta lexia como brasileirismo do sul. Analisando a ocorrência dessas variantes nos atlas linguísticos pesquisados, verifica-se que são pouco produtivos: “lombilho” foi registrado no EALLO na fala de três informantes, e no ALPR divide espaço com outras sete variantes hapax, e “serigote”/“seligote” ocorre somente no atlas baiano. (vi) “Mocho”, “Cabecim”/“cabecinha”, “Casquinha” e “Cutiano” não estão dicionarizadas com a acepção de sela feminina. Mocho foi documentado por Caldas Aulete (1964), Ferreira (1987) e Houaiss (2007) como uma “espécie de banco, assento sem encosto, desprovido de braços, de algo que sustente”. O traço semântico do objeto “banco”/“assento” remete ao sema “sentar”, o que levar a crer que o informante tenha associado esse sema com a designação para montaria.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo das variantes lexicais para a sela feminina em quatro atlas linguísticos permitiu verificar que: (i) A única forma específica para denominar a sela feminina, de acordo com os dicionários, é “silhão”. As demais variantes registradas têm o aval dos informantes que consagraram seu uso; (ii) As variantes lexicais ora convergem, ora divergem entre os falantes dos atlas aqui examinados. Em outras palavras, não há um continuum entre elas, pois, enquanto esses quatro atlas compartilham, por exemplo, a variante lexical “silhão”, bem como a variante fônica, sião, o “selim de banda” e a “sela de banda” são próprios dos falares baiano e sergipano com diferentes níveis de produtividade. A propósito, quando a equipe da UFBA elaborou o APFB, os pesquisadores sentiram que seria importante dar continuidade aos estudos dialetológicos rumo a Sergipe para onde o falar baiano se estendia. É por este motivo que os pontos do ALSE são numerados de 51 a 65 como uma extensão dos do APFB. No entanto, nem todas as variantes são comuns a ambos, como se pode verificar em “serigote”, registrada apenas na Bahia; (iii) No caso do ALPR e do EALLO, este último um atlas municipal cujo território integra o Estado do Paraná, nem todas as variantes são comuns a ambos. Por sua vez, as que são compartilhadas nem sempre têm o mesmo índice de produtividade, devido a fatores históricos específicos da região norte-paranaense, onde se localiza Londrina, tais como data recente de fundação e composição étnica dos seus fundadores; (iii) Quanto à dicionarização, nem todas as variantes constam das obras lexicográficas consultadas, mas algumas delas trazem a definição e a descrição bastante semelhantes; (iv) Finalmente, o fato de o objeto “sela feminina” ter caído em desuso há mais de 50 anos, devido a mudanças na sociedade, como a conquista de direitos femininos dos quais a mulher ainda se privava, até mesmo pela imposição ou proibição de uso de determinadas peças de seu vestuário, ou do direito de participar de atividades até então consideradas masculinas, tudo isso repercute na língua e na linguagem, provocando mudanças no léxico de uma comunidade de fala.

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ATITUDE: UM CONCEITO TEÓRICO, UM CONCEITO DE VIDA

ATTITUDE: A THEORETICAL CONCEPT, A CONCEPT OF LIFE Dermeval da Hora Universidade Federal da Paraíba/CNPq

RESUMO Os estudos sobre “Atitude”, no Brasil, não têm recebido a ênfase merecida. Nos idos de 1980, em algumas reuniões do GT de Sociolinguística da Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL), algumas sessões foram organizadas focando este tema, com a participação de colegas como Stella Maris Bortoni-Ricardo, Maria Cecília de Magalhães Mollica, Manoel Santos, e uma parceira muita querida, Cláudia Roncarati, que já não está entre nós, fisicamente, mas que sempre fará parte de nossas boas lembranças. É a ela que dedicamos este artigo, que tem como objetivo uma revisão de alguns pressupostos teóricos atrelados ao tema. À Cláudia, grande amiga, que lutou bravamente, mantendo sempre acesa a chama da vida até seus últimos momentos, demonstrando ser, além de uma grande mulher, uma mulher de ATITUDE. Palavras-chave: atitude direta; atitude indireta; reações subjetivas. ABSTRACT Studies on “attitude” in Brazil have not received the emphasis it deserves. Back in 1980, in some meetings of the Working Group on Sociolinguistics of the Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL), some sessions were organized focusing on this theme, with the participation of colleagues as Stella Maris Bortoni-Ricardo, Maria Cecília de Magalhães Mollica, Manuel Santos, and a very dear partner, Cláudia Roncarati, who is no longer with us physically, but will always be part of our fond memories. This article, dedicated to her, aims to review some theoretical assumptions linked to the theme. Cláudia, a great friend, fought bravely, keeping the flame of life until her last moments, showing that she was, in addition to being a great woman, a woman of ATTITUDE. Keywords: direct attitude; indirect attitude; subjective reactions.

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INTRODUÇÃO Acreditamos ser difícil, em qualquer situação de contato que envolva duas ou mais pessoas que, ou se encontrem pela primeira vez, ou mesmo entre pessoas conhecidas, não serem feitos julgamentos. Tais julgamentos, positivos ou negativos, podem associar-se ao compartamento do interlocutor, a sua maneira de vestir, de andar e, principalmente, a sua maneira de falar. Com isso, queremos afirmar que estamos sempre fazendo avaliações, mesmo que elas não sejam explicitamente verbalizadas. Essas avaliações dizem respeito às reações subjetivas inerentes ao ser humano, seja ele falante ou ouvinte. Não é raro, ouvirmos alguém dizer que não gosta da maneira como o outro fala, porque não lhe soa bem, porque a voz é estridente, é lenta, é alta, etc., como também podemos ouvir comentários positivos, referindo-se, por exemplo, a quão agradável lhe é a fala do outro. No Brasil, ao consideramos as diferentes regiões, sempre vamos encontrar posições diferenciadas, tanto no que concerne aos falantes do sul e sudeste, avaliando os falantes do nordeste e do norte, quanto no que diz respeito aos falantes do nordeste e do norte, avaliando os do sul e do sudeste. Falar ‘descansado’ ou ‘arrastado’, por exemplo, caracteriza o falar do nordeste. Isto é comum ser encontrado no julgamento feito tanto por falantes do sul e do sudeste quanto naquele dos falantes do nordeste. Mas também podemos ouvir dos nordestinos que pessoas do sul e do sudeste “cantam” ao falar. Essas atitudes em relação à língua, muitas vezes, mascaram um preconceito, em nível nacional, que discrimina regiões e pessoas, o que é danoso nas relações pessoais e profissionais, visto que afeta a vida da pessoa, tirando-lhe, não raramente, boas oportunidades. Não são novos os estudos que tratam da atitude linguística e nem são um privilégio apenas de linguistas. Eles fazem parte de uma tradição de pesquisa que se estende a várias disciplinas. Facilmente, vamos encontrar referências a esse respeito na psicologia social da linguagem, na sociologia da linguagem, na linguística antropológica, na comunicação, na análise do discurso e na sociolinguística.

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Ao concebermos o Projeto Variação Linguística no Estado da Paraíba – VALPB (HORA, 1993), inserimos algumas questões com o objetivo de testar a atitude do falante em relação a sua própria fala e a de outrem. Essas questões podem ser avaliadas como fazendo parte dos estudos sobre atitude que utilizam a técnica direta para avaliar o que se passa na mente do falante. Ao fazermos isso, prentendíamos verificar (a) até que ponto o falante tem consciência do quão é diferente a sua fala, se comparada à de falantes de outras regiões; (b) como ele avalia sua maneira de falar, se positivamente ou negativamente; (c) quais os aspectos que mais lhe chamam a atenção, tanto em sua fala como na de falantes de outras regiões: aspectos fonéticofonológicos, prosódicos, lexicais etc. No desenvolvimento deste artigo, adotamos a seguinte estrutura: na seção 1, definiremos atitude; na seção 2, apresentaremos, em linhas gerais, uma visão histórica sobre atitude linguística; na seção 3, focalizaremos a ideologia da língua padrão; e apresentaremos os fundamentos que norteiam os etudos relacionados à atitude linguística; na seção 4, apresentaremos as principais abordagens sobre atitude; e na seção 5, discutiremos, associado à atitude, o papel da consciência do falante e a sua relação com os processos variáveis.

1. Definindo atitude No primeiro trabalho sobre atitude, Allport (1935, p. 801) afirmou que atitude era um dos conceitos fundamentais na psicologia social, e, na sociolinguística, tem sido um conceito central desde o trabalho seminal de Labov (1966) sobre a estratificação social das comunidades de fala, e como a mudança linguística é influenciada pelo prestígio e pelo estigma em relação a traços linguísticos específicos existentes nas comunidades. O conceito de atitude, contudo, nem sempre é facilmente delineado. Suas definições variam com o grau de elaboração e com o peso dado a diferentes traços de atitudes. Para tomar um ou dois exemplos, vejamos algumas posições. Segundo Thurstone (1931) atitude é definida como “afeto por ou contra um objeto psicológico”, enfatizando as respostas emocionais positivas e negativas que as atitudes incorporam. Uma definição bastante citada é a de Allport

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(1954): “uma disposição aprendida pra pensar, sentir e agir em relação a uma pessoa (ou objeto) em uma forma particular”. Esta definição mostra que as atitudes dizem respeito mais do que ao afeto e se estende também ao pensamento e ao comportamento. Oppenheim (1982, p. 39) também incorpora aspectos cognitivos e comportamentais, mas inclui em sua definição a elaboração das formas em que as atitudes são manifestadas: um construto, uma abstração que não pode ser diretamente apreendida. É um componente interno da vida mental que expressa a si mesmo, diretamente ou indiretamente, através de processo óbvios como estereótipos, crenças, afirmações verbais ou reações, ideias e opiniões, recordações seletivas, fúria ou satisfação ou alguma outra emoção e em vários outros aspectos de comportamento. Esta definição de Oppenheim inicia com a afirmação explícita de que atitude é um construto psicológico. Os construtos não podem ser observados diretamente, e, assim, temos de confiar em nossas habilidades para inferi-las dos tipos de coisas que Oppenheim lista: reações emocionais, demonstrações etc. O fato de não podermos observar diretamente as atitudes não significa que elas sejam fictícias, que só estamos imaginando coisas. Allport (1935, p. 839) afirma que as atitudes nunca são diretamente observadas, mas, a menos que sejam admitidas através de inferência como ingredientes reais e substanciais na natureza humana, ela se torna impossível de ser considerada satisfatoriamente ou pela consistência de algum comportamento do indivíduo ou pela estabilidade em alguma sociedade. O status das atitudes como construto psicológico traz dificuldades para acessá-lo. Esta é a razão por que há sempre muitos debates sobre como podemos estudá-lo.

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Além dessa característica básica de ser um construto, é útil tomar uma definição simples e então elaborá-la para que os vários aspectos sobre atitude sejam consensuais. Sarnoff (1970, p. 279) fornece tal definição: uma disposição para reagir favoravelmente ou desfavoravelmente a uma classe de objetos. Usando isto como ponto estratégico, é tomado como um dado que uma atitude é uma orientação avaliativa para um objeto social de algum tipo, quer seja uma língua, ou uma nova política governamental etc. E assim, como uma ‘disposição’, uma atitude pode ser vista como tendo um grau de estabilidade que permite-lhe ser identificada. Isto é reforçado pela concepção assumida por Garret, Coupland e Williams (2003, p. 3), segundo os quais uma atitude é, pelo menos, uma postura avaliativa suficientemente estável, o que lhe permite ser identifcada e mensurada. Para Edward (1982), as atitudes têm uma estrutura tripartida, constituída de componentes cognitivo, afetivo e comportamental. Cognitivo pelo fato de conter crenças sobre o mundo (por exemplo, acreditar que aprender a língua inglesa vai ajudar na obtenção de um melhor trabalho); afetivo, porque envolve sentimentos sobre determinados objetos (por exemplo, entusiasmo diante de uma poesia escrita em Inglês); e comportamental, porque leva a agir de uma certa forma (por exemplo, aprender Inglês). Na conceituação do termo atitude, percebemos a dificuldade em busca de um conceito que unifique as ideias apresentadas. Isto fica ainda mais complexo, quando, em alguns contextos, outros termos, a exemplo de ‘hábitos, valores, crenças, opiniões e ideologias’, são usados quase de forma a substituí-lo. Cada um deles, entretanto, tem suas peculiaridades, que os tornam diferentes do que seja atitude (cf. GARRET, COUPLAND e WILLIAMS, 2003, p. 9-11).

2. Visão histórica sobre atitude Como acontece com outros tópicos de pesquisa, podemos encontrar precursores voltados para os estudos sobre atitude no passado bastante distante. Aristóteles, no seu clássico texto “A retórica”, acreditou que o tipo de língua que os falantes usavam tinha efeito sobre sua credibilidade ou “ethos”, e ideia similar é encontrada na preocupação dos retóricos no

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Renascimento em relação aos detalhes da expressão verbal. Depois disso, embora principalmente de cunho descritivo, a pesquisa dos geógrafos dialetais, no início do século XX, chamou atenção para as variedades linguísticas que eram estigmatizadas ou, de outra forma, eram prestigiadas. Nos anos 1930 e 1940, vários estudos desenvolvidos na Inglaterra e nos Estados Unidos tentaram demonstrar que as pessoas podem fazer julgamentos confiáveis e precisos sobre as características fisicas dos falantes e dos atributos da personalidade com base na fala (CANTRIL E ALLPORT, 1935; TAYLOR, 1934). No ano de 1931, Pear realizou um estudo clássico, em que ele convida ouvintes da BBC na Inglaterra para falar sobre o perfil de personalidade de certas vozes ouvidas no rádio. Ele concluiu que havia apenas uma modesta coincidência entre o julgamento e a personalidade das vozes ouvidas. Seu estudo mostrou haver pouca vantagem em utilizar a voz como uma pista da personalidade real. Por outro lado, em estudo após estudo, tem sido mostrado que há bastante consenso social entre o julgamento dos ouvintes sobre os traços estereotipados associados com as vozes. Esses julgamentos de voz baseados em estereótipos são vitais do ponto de vista social. Em diferentes partes do mundo, tem acontecido uma grande quantidade de pesquisas nas últimas décadas, mostrando que as pessoas podem expressar atitudes definidas e consistentes em relação aos falantes que usam estilos particulares de fala. Sejam as atitudes negativas ou positivas elas são, via de regra, influenciadas pelo processo de padronização nas línguas, tópico que desenvolveremos a seguir.

3. A ideologia da língua padrão Existem línguas como o Espanhol, o Inglês, o Francês, o Português etc. que são vistas cada uma delas como tendo uma variedade padrão, ou culta, que é veiculada pela escola, pelas gramáticas, enfim, pelo órgãos ou instituições oficiais, e variedades não padrão, aquelas que fogem às normas pré-estabelecidas de uso, seja em nível falado, seja em nível escrito. O fato de pensarmos na existência de uma língua padrão afeta o modo como os falantes pensam sua própria língua e a língua em geral. Podemos dizer que os falantes dessas línguas, diferentes dos falantes de algumas

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menos conhecidas, vivem em culturas de língua padrão. Em tais culturas, as atitudes linguísticas são dominadas por posições ideológicas de poder que são amplamente baseadas na existência suposta dessa forma padrão, e essas, tomadas juntas, constituem a “ideologia da língua padrão”. Os falantes, normalmente, não têm consciência de que eles estejam condicionados por essas posições ideológicas: eles, normalmente, acreditam que suas atitudes em relação à língua sejam de senso comum e assumem que, virtualmente, todos concordam com eles. Uma questão que podemos levantar: o que envolve a padronização de uma língua? Para Milroy (2007), a padronização se aplica a muitas coisas além da língua: ela se aplica a pesos e medidas, por exemplo, e a muitos tipos de objetos, tais como plugs elétricos e adaptadores. Nesses casos, é desejável que, por razões funcionais, o valor exato de cada medida seja de comum acordo ente os usuários e que cada objeto seja exatamente o mesmo como todos os outros de sua espécie. Assim, como um processo, a padronização consiste da imposição da uniformidade sobre uma classe de objetos, e assim a mais importante propriedade estrutural de uma variedade padrão de uma língua é a uniformidade ou invariância. Isto significa que todo som deva ser pronunciado da mesma forma por todos os falantes, que todos os falantes devam usar as mesmas formas gramaticais e os mesmos itens lexicais. Isto também implica que a língua não possa sofrer mudança. Em princípio, portanto, quando há duas ou mais variantes de alguma forma linguística, apenas uma delas é admitida ser a variedade padrão. Na prática, a escolha de uma variante sobre a outra é afetada por fatores fora do próprio processo de padronização, e esses fatores, tomados juntos, constituem a ideologia padrão. Na verdade, o ideal da uniformidade absoluta nunca é alcançado. Embora a padronização não ratifique a variabilidade, nenhuma língua é completamente invariante. Na língua escrita, a prática uniforme está muito próxima de ser alcançada – particularmente no uso impresso – mas com a língua falada é diferente. Embora a uniformidade linguística seja particularmente desejável no caso dos documentos escritos legais, comerciais e oficiais (uma vez que eles exigem clareza e falta de ambiguidade), o progresso da padronização, ao longo dos séculos, tem caminhado paralelamente com o progresso econômico e tecnológico. Isto tem como consequência a difusão da ideologia padrão entre os falantes, que tem, de

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acordo com Milroy (2007), como características: a noção de correção, a importância da autoridade, a relevância do prestígio e a ideia de legitimidade. Uma importante consequência da padronização da língua tem sido o desenvolvimento, entre os falantes, de uma forma “correta” ou canônica da língua. Nas culturas de língua padrão, virtualmente, todos subscrevem a ideia da correção. Algumas formas são acreditadas serem corretas e outras erradas, e isto é, geralmente, tomado como um senso comum. Embora as regras de correção sejam, externamente, impostas sobre a língua, elas são consideradas pelos falantes como regras inerentes à própria língua. Tal arbitrariedade é mais visível em regras de pronúncia. Nem sempre, a variação na pronúncia é tolerada. Embora seja inaceitável, atualmente, discriminar abertamente alguém por razões étnicas, religiosas ou de gênero, deve ser também inaceitável discriminar alguém com base em motivação linguística. Infelizmente, as pessoas não percebem que a língua se aproxima dessas outras categorias sociais. Como as pessoas que usam as formas linguísticas não-padrão, em geral, pertencem a grupos sociais menos favorecidos, o efeito da discriminação linguística é discriminar esses grupos. O sistema educacional tem papel fundamental na difusão do conhecimento da língua padrão. Na verdade, as pessoas acham razoável dizer que as crianças vão para a escola aprender a sua língua, quando, de fato, nos anos anteriores à escola, elas já adquiriram a base da gramática e da fonologia da língua falada, naturalmente e sem instrução explícita. Na escola, a criança aprende ler e escrever, e o letramento se dá na língua padrão. Assim, acredita-se estar ensinando à criança sua língua nativa através das autoridades que têm acesso privilegiado a seus mistérios. É característica da ideologia padrão acreditar que esta variedade padrão uniforme com todas as suas regras de correção impostas seja realmente a própria língua. A manutenção de uma língua padrão, claramente, depende da obediência à autoridade. Para este propósito é desejável que a língua padrão seja codificada e para isto existem os dicionários, as gramáticas, os guias de pronúncia, os manuais de uso etc., que nem sempre são confiáveis, principalmente aqueles de autores não qualificados. Há inúmeros casos de manuais que tratam a língua de forma irreal, esquecendo totalmente as situações de uso. A preocupação não é mais com a manutenção da uniformidade da língua, mas com a língua “pura”.

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Além da autoridade, um outro fator considerado no processo de seleção da variante padrão é o prestígio. O prestígio não é, principalmente, uma propriedade de uma forma linguística ou variedade – é uma propriedade dos falantes, ou grupos de falantes, e está claramente relacionado à variável classe social ou status social. Portanto, o prestígio é conferido à variável linguística por falantes, e os falantes tendem a conferir prestígio a usos que são considerados serem aqueles das classes sociais mais altas. Alguns grupos sociais têm mais autoridades do que outros. O que fica claro é que o processo de seleção é altamente sensível a fatores sociais e sócio-políticos. O converso do prestígio é o estigma. As formas linguísticas que são favorecidas por classes sociais menos favorecidas tendem a ser estigmatizadas na comunidade como um todo, e essas são tipicamente as formas que são rejeitadas no sistema educacional. No estudo da mudança linguística, a noção de prestígio é sempre usada para explicar a adoção e a difusão de uma inovação. Explicações sobre prestígio, como já afirmado anteriormente, são, contudo, problemáticas, dependendo das diferenças entre os grupos na comunidade e das ideias que se tem ao leva-lo em conta. Labov (1972) introduziu uma distinção entre prestígio explícito e prestígio implícito. O prestígio explícito está tipicamente ligado às formas de fala das classes sócio-economicamente dominantes. As normas linguísticas que comandam o prestígio explícito são ouvidas, por exemplo, nos contextos educacionais (escolas, universidades) como também na mídia (jornais, televisão, rádio). O prestígio implícito, por outro lado, tem conotações mais locais e se refere a formas de falar que são altamente valorizadas em pequenos grupos e comunidades. As variantes de prestígio explícito são, portanto, marcadores de status, enquanto que as variantes de prestígio implícito são marcadores de solidariedade dentro do grupo. O prestígio implícito de variedades não-padrão também está ligado, por exemplo, a percepções de masculinidade. O estabelecimento da ideia de uma variedade padrão, da difusão do conhecimento dessa variedade, sua codificação em livros, gramáticas, dicionários etc., e sua promoção em uma cadeia ampla de funções – tudo conduz à desvalorização de outras variedades. A forma padrão torna-se a forma legitimada, e as outras formas tornam-se, na mente popular, ilegítima.

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A elas se referem como a forma não-padrão ou subpadrão. Aqueles que fazem Linguística Histórica têm sido proeminentes em estabelecer esta legitimidade, porque é importante que uma língua padrão, sendo a língua de um estado ou nação, e, às vezes, um grande império, possa compartilhar da história daquela nação. Na verdade, a língua é vista como parte da nação. Para Milroy (2007), a todas as línguas padrão têm de ser dada alguma forma de legitimidade, e todas têm de ser mantidas e protegidas através da autoridade e das doutrinas de correção. Há, também, uma tradição popular de queixa sobre a língua, salientando a baixa qualidade do uso geral e alegando que a língua está degenerando. Isto também contribui para manter a ideologia padrão proeminente na mente pública. Nas culturas de língua padrão, a alternativa para tudo isso é terrível de contemplar: acredita-se que se esses esforços para manutenção são negligenciados, a língua estará sujeita à corrupção e decadência, e desintegrará. O futuro da língua, alegase, não pode ser deixado para os milhões de falantes nativos fluentes que a usam diariamente: caso as autoridades privilegiadas não tomem cuidado, ela, inevitavelmente, declinará. O processo de padronização é o principal responsável pelas atitudes negativas ou positivas que as pessoam têm em relação a uma língua. Em geral, as atitudes são dominadas por posições ideológicas que se baseiam na suposta existência de uma língua padrão. Isto consitui o que Milroy (2007) chama de ideologia da língua padrão. Normalmente, no cotidiano, as pessoas não têm, aparentemente, consciência da influência dessas posições ideológicas, mas tudo funciona com o pressuposto de que tais normas sejam simplesmetne uma questão de senso comum. Para esse autor, padronização de qualquer natureza se preocupa com uniformidade e invariância, e, como na ideologia da língua padrão, grande ênfase é dada à correção. Na ideologia da língua padrão, há forte visão de senso comum sobre que formas da língua estão certas e quais estão erradas. A noção de correção é reforçada pela autoridade. As línguas padrão são codificadas nos dicionários e nas gramáticas, por exemplo, e se espraiam através dos sistemas educacionais. Elas são reforçadas também pela concessão de prestígio ou estigma às formas da língua. A desvalorização de algumas formas conduz a uma visão delas como substandard.

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3.1 A manutenção da forma não-padrão Quando se pensa na existência de uma forma padrão, uma questão surge: apesar de sotaques sociais causarem desconforto, por que eles continuam existindo? Embora seja impossível para a maioria das pessoas mudar completamente seus sotaques, não é difícil usar as variantes padrão concomitantemente com variantes não-padrão, principalmente em estilos mais cuidados. Segundo Chambers (1995), no curso de duas ou três gerações, se as pressões contra falantes com sotaques não-padrão forem suficientemente acentuadas, poderá haver uma grande mudança na direção do padrão. Certamente, há uma tendência observável nessa direção, embora ela não possa ser chamada de uma mudança massiva. Na verdade, como se tem visto, ela é tipicamente restrita, socialmente, à fala da classe mais alta e à classe média e é mais observável na fala de mulheres do que na dos homens. Ao mesmo tempo, há sempre mudança em outras direções, e novas variantes que se desenvolvem em sotaques não-padrão. Se há pressões sociais que promovem o dialeto padrão, deve haver aquelas que favorecem o local, o informal e o vernacular na fala. Mas, se é assim, essas forças contrárias devem ser mais tácitas do que conscientes, porque não é fácil a identificação. As forças que favorecem o padrão são claras como cristal: pais de classe média falam sobre a “boa” língua, a escola ensina o uso correto, cartas aos editores criticam o uso não-padrão etc. As pressões sociais que mantêm a forma não-padrão, ao contrário, não têm lobistas identificáveis. O padrão, muitas vezes, não está associado a padrões de correções. Em algumas comunidades, ele está associado ao uso de marcas locais que soam como estigmatizadas pelos próprios falantes, apesar de gramaticalmente serem consideradas corretas. Atitudes negativas em relação a formas de dizer podem condenar falantes que usam o padrão considerado de prestígio. Enfim, podemos dizer que atitudes em relação à língua, sejam elas negativas ou positivas, são influenciadas pelo processo de padronização nas línguas. Isso ratifica a discussão que testemunhamos acontecer no Brasil. Momento em que pessoas defensoras da forma padrão não admitem que os livros didáticos mencionem a existência de fenômenos variáveis, presentes, principalmente na língua falada, justificando que o registro dessas

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ocorrências pode levar o aluno a crer que eles são ratificados como válidos socialmente.

4. Atitude linguística: abordagens Quando pensamos em atitudes linguísticas, não podemos deixar de considerar quais são os seus campos de interesse. Com certeza, eles são muitos e variam de acordo com o interesse específico da pesquisa a ser implementada. Baker (1992, p. 29) levanta alguns tópicos que foram de interesse para as pesquisas focadas nas atitudes linguísticas: (a) atitude em relação à variação linguística, ao dialeto e ao estilo de fala; (b) atitude em relação à aprendizagem de uma nova língua; (c) atitude em relação a uma língua minoritária específica; (d) atitude em relação a grupos de línguas, comunidades e minorias; (e) atitude em relação às lições de língua; (f) atitude dos pais em relação à aprendizagem da língua; (g) atitude em relação aos usos de uma língua específica; (h) atitude em relação à preferência linguística. Obviamente, alguns dos tópicos elencados são mais estudados do que outros, a exemplo da letra (a). É a ele que dedicaremos nosso estudo, procurando analisar como o falante-ouvinte se posiciona em relação a sua maneira de falar e em relação à fala de outrem. Labov (1984, p. 33) estabelece que um objetivo importante da pesquisa sociolinguística é construir um registro de atitudes abertas em relação à língua, aos traços linguísticos e aos estereótipos. Para o autor, a pesquisa de atitudes linguísticas oferece um pano de fundo para explicar a variação e a mudança linguística. O estudo das atitudes linguísticas busca mais do que descobrir simplesmente quais são as atitudes das pessoas e quais seus efeitos em termos de resultados comportamentais. Uma preocupação a mais é entender o que determina e define essas atitudes. No Brasil, em geral, sabemos que determinados processos fonológicos têm recebido muita atenção, particularmente, dos sociolinguistas. Exemplos como a variação das vogais médias pretônicas, a palatalização das oclusivas dentais, o apagamento das consoantes em coda, a palatalização das fricativas, o uso variável dos róticos etc. são ilustrativos do que já foi feito,

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mas nenhum deles foi ainda analisado na perspectiva da atitude linguística. Ao pensarmos em pesquisa com uma abordagem voltada para a atitude linguística, podemos abordar três possibilidades: análise de conteúdo, medidas diretas e medidas indiretas. 4.1 Análise de conteúdo Essa abordagem envolve uma análise de conteúdo do tratamento dado às línguas e às variedades linguísticas, e a seus falantes dentro da sociedade. Os estudos a ela relacionados envolvem métodos etnográficos, observacionais, e também a observação participante e estudos de muitas fontes do domínio público. A literatura sobre atitudes linguísticas pouco menciona estudos que empregam essa abordagem. Isso, porém, não se deve ao fato de que haja escassez de trabalho. É mais provável que haja uma grande quantidade de dados atitudinais em um bom número de estudos etnográficos que simplesmente não sejam examinados sob tal perspectiva. Segundo Garret, Coupland e Williams (2003, p. 15-16), a visão predominante das pesquisas que levam em conta a análise de conteúdo entre os pesquisadores de atitudes linguísticas, especialmente aqueles que atuam na tradição da pesquisa social, é que ela é muito informal, e, por isso, é vista como preliminar para estudos mais rigorosos da sociolinguística e da psicologia social, talvez como uma fonte de validade convergente dos dados coletados através dos métodos direto e indireto. Essa abordagem pode ser apropriada em situações onde as restrições de tempo e espaço não permitem acesso direto aos informantes, ou onde os informantes podem ser acessados apenas sob condições altamente não naturais. Exemplos de estudos nessa perspectiva, citados em Garret, Coupland e Williams (1988, p. 15), dizem respeito a documentos governamentais voltados para política educacional com vistas à língua e sua visão sobre o uso de várias línguas nas escolas (Cots e Nussbaum, 1999); anúncios de emprego e as demandas ocupacionais por anglofones e francofones bilíngues em Montreal (Lieberson, 1981); o uso do dialeto por vários personagens nas novelas (Rickford e Traugott, 1985); cartoons, provérbios e lívros de etiqueta, e o que eles têm a dizer para e sobre as mulheres (Kramer, 1974; Kramarae, 1982).

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Para os autores, embora muitos desses estudos sejam de base qualitativa, alguns deles também usam procedimentos formais de amostragem e fornecem algumas estatísticas descritivas, como é o caso de Lieberson (1981). 4.2 Abordagem direta A análise de conteúdo tem como uma de suas características o fato de ser o pesquisador quem infere as atitudes a partir dos comportamentos observados e da análise dos documentos. Na abordagem direta, ao contrário, são os próprios informantes que são solicitados a relatarem suas atitudes. Um questão metodológica central que ela envolve é se as afirmações verbais dos informantes acerca de suas atitudes e de suas reações comportamentais em situações concretas podem ser interpretadas como manifestações das mesmas disposições subjacentes. Admitindo que isto possa ser resolvido, as atitudes linguísticas podem ser medidas diretamente com entrevistas e/ou questionários voltados para aspectos específicos da língua. Em 1966, Labov, em seu trabalho sobre New York City, pediu que os informantes escolhessem entre duas pronúncias alternativas a que eles usavam e qual a que eles achavam que poderiam usar. A abordagem direta tem sido utilizada em vários contextos e com vários objetivos. Ela tem facilitado mais pesquisas em línguas, variedades linguísticas e traços linguísticos do que a análise de conteúdo. Uma questão central para a abordagem direta é a maneira como os dados devem ser coletados. Quanto a isso, podemos ter, em princípio, duas técnicas: uma que prevê a obtenção dos dados a partir do contato pessoal e com respostas diretas do informante, e outra que usa a resposta escrita. Em geral, essa é a metodologia que tem sido utilizada nos estudos sobre atitude linguística que foram realizados no Brasil. 4.3 Abordagem indireta Uma terceira abordagem metodológica usada nos estudos de atitude tenta confiar mais em medidas indiretas. Esta abordagem, referida como ‘paradigma de avaliação do falante’ exige que os participantes avaliem falantes gravados sem que quaisquer rótulos sociais sejam identificados. A

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avaliação pode cobrir uma variedade de itens, com o objetivo de avaliar inteligência, cordialidade etc. Como outros fatores são supostamente controlados, as avaliações do falante devem refletir as atitudes subjacentes do ouvinte em relação à variedade linguística alvo ou comportamento. A técnica utilizada na obtenção dos dados foi desenvolvida e utilizada por Lambert et al. (1960, 1965) e ficou conhecida como “técnica matched-guise”. Ela faz uso da língua e das variações dialetais para elicitar as impressões estereotipadas que os membros de um grupo social têm em relação a outro grupo. O procedimento envolve as reações dos ouvintes (referidos como juízes) às gravações de falantes em diferentes línguas ou dialetos. Aos juízes é solicitado que eles ouçam as gravações e avaliem as características da personalidade de cada falante, usando como pista apenas a voz. Os estudos que utilizam essa abordagem têm mostrado que as variações na fala desempenham um importante papel na percepção social e que a técnica utilizada pode ser um meio útil para examinar os pensamentos estereotipados de membros de um grupo social, étnico ou cultural, quando avaliam outros grupos. Ao longo dos anos, desde a sua concepção, essa técnica tem sofrido modificações, principalmente em função das críticas que lhe foram feitas, mas ela ainda continua sendo usada como uma forma de termos acesso a julgamentos de valores em relação a diferentes usos da língua.

5. A consciência do falante e a sua relação com os processos variáveis As abordagens metológicas mencionadas acima, principalmente as duas últimas, estão estreitamente relacionadas com o problema da avaliação mencionado em Weinreich, Labov, Herzog (1968). A abordagem direta envolve a obtenção de dados que esclarecem atitudes gerais e aspirações, e a abordagem indireta garante como resultado as reações subjetivas. Essas reações subjetivas, por sua vez, podem ser conscientes ou inconscientes. A noção de consciência é de suma importância não apenas quando a pesquisa é sobre reações subjetivas. Ela é crucial para o fenômeno da mudança linguística, que pode ser classificada como acima e abaixo do nível de consciência; para a classificação das variáveis linguísticas em indicadores,

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marcadores e estereótipos; para as análises de estilo, relacionando-o à fala cuidada em oposição à fala casual; para a discussão da ideologia linguística em termos de normas e valores explícitos e implícitos. Falar de mudança acima e abaixo do nível de consciência é muito comum entre os estudiosos da sociolinguística. No primeiro caso, podemos dizer que as formas linguísticas envolvidas na mudança estão acima do nível da consciência social; no segundo caso, estão abaixo do nível da consciência social. Em algum momento, Labov (1994) atrelou esses dois níveis às posições na hierarquia socioeconômica, porém em 2007, ele assume uma nova posição. Para Kristiansen (2011, p. 266), em parte, o paralelismo entre a consciência social e a hierarquia socioeconômica é fácil de apreender e aceitar, na medida em que “mudanças de cima” são introduzidas pela classe social dominante, sempre com plena consciência pública. Em geral, elas representam empréstimos de outras comunidades linguísticas que têm prestígio mais alto na visão da classe dominante. O outro paralelismo, entretanto, é difícil de aceitar, principalmente porque as mudanças de baixo podem ser introduzidas por quaisquer classes sociais. Ao tratar das variáveis linguísticas, Labov (1972) apresenta três tipos que podemos relacionar à consciência social: indicadores, marcadores e estereótipos. Os indicadores são aquelas variáveis que possuem uma distribuição regular entre um grupo de falantes, com uso uniforme em todos os contextos, mas que permite a distinção entre esse e outros grupos de falantes. Este tipo de variável nem sempre é avaliada de forma negativa em estudos de atitude. Uma variável que poderíamos citar como indicador seria a “vogal média pretônica” no português brasileiro. Os marcadores variam de grupo social para grupo social e possuem uma distribuição estilisticamente motivada. Nem sempre os falantes que utilizam essas variáveis têm plena consciência, embora possam avaliá-las, caso sejam solicitados. Bons exemplos de indicadores no português brasileiro são “o apagamento do ‘d’ no grupo –ndo” e a “redução dos ditongos decrescentes”. Nos estilos monitorados, o uso dessas variáveis tem sido atestado ser amenizado.

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Os estereótipos são mais facilmente referidos pelos falantes como típicos de uma variedade linguística que não é muito prestigiada. Essas variáveis são, em geral, estigmatizadas. Os estereótipos, em geral, levam à implementação da mudança linguística, com a adoção da forma de prestígio da variedade padrão. No português brasileiro, podemos avaliar como estereótipos algumas variáveis que são características de determinados grupos dialetais: “a palatalização das fricativas coronais /s, z/ “ e o “rótico retroflexo” são visto como característicos dos falares do Rio de Janeiro e de São Paulo, respectivamente, muito embora saibamos que em outras partes do Brasil elas são encontradas. Em geral, a consciência social é acompanhada pela mudança de estilo. Isto, por sua vez, tem a ver com a proposta de Labov (1966, 1972) para estilo, segundo a qual a análise da variação estilística se fundamenta na noção de atenção, que, por sua vez, está estreitamente relacionada à consciência. A situação de fala é manipulada na entrevista sociolinguística, sendo caracterizada como mais ou menos formal. Contextos mais formais exigem mais atenção à fala, resultando em um estilo mais cuidado, e contextos menos formais levam a um estilo mais casual, uma vez que exigem menos atenção. Segundo Kristiansen (2011, p. 269), qualquer estudo de ‘atitude’ e ‘ideologia’ precisa começar deixando claras essas entidades em termos de significado social, normas e valores. Para ela, desde o estudo de Labov sobre o falar de New York, a distinção básica no domínio da ideologia linguística foi entre valores sociais explícitos e implícitos. Essa distinção, entretanto, nunca se baseou claramente em consciência e atenção, como aconteceu com os indicadores, marcadores e estereótipos e com a fala cuidada e a fala casual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Pesquisar atitude implica definir uma metodologia que possibilite identificar como, em uma interação face a face, é possível termos clareza sobre o comportamento linguístico dos interlocutores. Assim, pois, tanto de forma direta quanto de forma indireta, é possível buscarmos compreender essas reações a que se atrelam questões de prestígio, de estigma, consciente ou inconscientemente.

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É importante que os estudos realizados no Brasil, voltados para a perspectiva laboviana, comecem a interessar-se pela possibilidade de aliar aos resultados obtidos uma análise da atitude do falante em relação à fala do outro e a sua própria fala. Isso nos levará a avaliar as diferentes variantes que se estendem pelo país como um todo, possibilitando análises mais acuradas, principalmente, no que concerne aos fatores sociais.

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LÍNGUA, CULTURA E CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE TEUTO-BRASILEIRA/BRASILEIRA-ALEMÃ NO SUL DO BRASIL LANGUAGE, CULTURE AND CONSTRUCTION OF TEUTO-BRAZILIAN/BRAZILIAN-GERMAN IDENTITY IN SOUTH BRAZIL Mônica Maria Guimarães Savedra Universidade Federal Fluminense Ciro Damke Universidade do Oeste do Paraná RESUMO No presente trabalho, abordamos alguns aspectos referentes ao conflito de identidade dos imigrantes alemães do Sul do Brasil, desde a vinda dos primeiros imigrantes em 1824, passando pelo período das primeiras colonizações até os dias atuais. A partir de estudos que tratam da relação entre história, memória e identidade, discutimos o desenvolvimento de uma identidade bicultural e o processo de aculturação e deculturação dos emigrantes/imigrantes alemães que deixam sua pátria (Heimat/Vaterland), e migram para o Brasil – uma terra com características linguísticas, socioculturais, políticas e geográficas diferentes de sua terra de origem. Selecionamos para discussão do tema os conceitos de perda de identidade; perda de memória; conflito identitário; identidades feridas; identidades fragmentadas; deslocamento da identidade; identidades em movimento; e identidade migrantes (MC LAREN, 2000; MOITA LOPES, 2002; BAUMAN, 2005; HALL, 2006; MELIÁ, 2006; STEVENS, 2007; CANDAU, 2011).

Palavras-chave: construção de identidade; imigração alemã; língua e cultura.

ABSTRACT In this paper we discuss some aspects of the identity conflict of German immigrants in southern Brazil, since the coming of the first immigrants in 1824, through the period of the early colonization to the present day. From studies dealing with the relationship between history, memory and identity, we discuss the developmental process of accerting a bicultural identity, the possibilities of acculturation and deculturation of German immigrants who leave their homeland (Heimat/Vaterland) and migrate to Brazil – a land with

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linguistics, socio-cultural, political and geographical features that differ from its land of origin. We selected for discussion the concepts of loss of identity; loss of memory, identity conflict; wounds identities; fragmented identities; shifting identities; identities in motion; migrant identity. (MC LAREN, 2000; MOITA LOPES, 2002; BAUMAN, 2005; HALL, 2006; MELIÁ, 2006; STEVENS, 2007; CANDAU, 2011). Keywords: culture; german immigration; identity.

INTRODUÇÃO Em estudos anteriores, desenvolvidos com base na temática de línguas em/de contato, já tivemos a oportunidade de comprovar que o processo de aquisição de línguas é um processo relativo, que envolve muitos fatores determinados não somente pelo contexto de aquisição das línguas, como também pelo seu uso tópico e dinâmico em diferentes ambientes: família, sociedade, escola, trabalho. (SAVEDRA, 2008, 2009). Neste sentido, introduzimos a distinção entre bilinguismo e bilingualidade para estudar a fluidez do domínio funcional de uso de cada língua na trajetória de vida dos sujeitos, em diferentes contextos comunicativos. Demonstramos também que o processo de aquisição de línguas envolve a aquisição de atitudes, valores, crenças e descrenças de determinados grupos. Estudamos a estreita relação entre língua, cultura e identidade, a partir do conceito de representação linguística1, considerada não somente como um fator linguístico, mas também como um fator sociocultural, fundamental na determinação de políticas de uso oficial de línguas e na determinação de políticas de manutenção de línguas minoritárias, como descrito por Höhmann (2010) na situação do ensino do Pomerano no Espírito Santo. Reconhecemos que o Brasil é um país plurilíngue e enfatizamos o perigo que representa a hegemonia de uma determinada língua, como 1

Entendemos representação como sendo tudo aquilo que os locutores dizem ou pensam das línguas que falam (ou da maneira como falam) ou das que os outros falam (ou do modo como as falam). As representações são então constituídas pelo conjunto das imagens, das posições ideológicas, ou seja, das crenças que os locutores têm a respeito das línguas em presença e das suas práticas linguísticas, bem como das práticas linguísticas dos outros.

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promotora da perda de identidade cultural.2 A pluralidade linguística do Brasil é reflexo de sua formação étnica, manifesta em diferentes situações de/ em contato entre línguas autóctonas, exóctonas (línguas dos colonizadores, da escravidão, da imigração ou alóctonas), na diversidade linguística de fronteira (fronteiras hispânicas, fronteira francófona e anglófona), no contato com falares étnicos específicos, como por exemplo, falares ciganos e, ainda na aquisição formal de línguas estrangeiras. Neste trabalho, discutimos uma determinada situação de contato: a imigração alemã no sul do Brasil e delimitamos o foco na discussão da construção da identidade teuto-brasileira, a partir da relação língua/cultura minoritária/majoritária. Savedra (2011) apresenta um panorama do contexto da imigração alemã no Brasil, pontuando algumas ações, que servem de pano de fundo para o tema aqui discutido: a) a crescente emigração alemã para a América Latina no final do século XIX e o pioneirismo de nosso país com o movimento Brasil-Emigração; b) o aumento do movimento emigratório alemão na era de Bismark (1866-70 e 1881-90) e na República de Weimar (1919-1933) e o seu declínio durante a campanha da nacionalização do regime autoritário do Estado Novo (1937-1945), que proíbe o uso da língua alemã e torna a comunidade alemã no Brasil cada vez mais sob pressão; fato agravado pela visão imposta com a II Guerra Mundial, que faz com que a língua alemã seja considerada como o idioma do inimigo, colaborando fortemente para uma mudança no perfil dos imigrantes alemães no Brasil. Ao usarem cada vez menos sua língua e cultura de origem, muitos imigrantes abandonam aos poucos o processo de construção de uma identidade bicultural e/ou acultural, resultante do contato com a língua e cultura majoritária, no caso com a língua e cultura brasileira, o que resulta em alguns casos no início de um processo de desconstrução de identidade, que podemos nomear de 2

Reforçamos o disposto na Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO (20/10/2005), que ressalta a relevância em considerar a diversidade linguística como um elemento fundamental da diversidade cultural e reafirmar o papel fundamental da educação na proteção e na promoção das expressões culturais. Em nossos estudos, também nos pautamos no Relatório do Desenvolvimento Humano, lançado em Bruxelas em 2004, que, num exame pioneiro das políticas de identidade em todo o mundo, assume que as liberdades culturais devem ser compreendidas como direitos humanos básicos e como necessidades para o desenvolvimento das sociedades, cada vez mais diversificadas, do século XXI.

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identidade decultural; uma identidade sem identidade. A diminuição do uso da língua alemã é comprovada nos estudos desenvolvidos sobre Literaturas de Imigração, em especial nos estudos sobre Literatura Brasileira de expressão alemã, que apontam as diferenças na construção da identidade teutobrasileira através da literatura expressa pelos autores da primeira geração de imigrantes, todos nascidos na Alemanha e dos escritores da segunda e terceira geração -filhos e descendentes de imigrantes colonizadores (HUBER, 1993). No âmbito dos estudos de linguística de contato, von Borstel (2011) defende a existência do Brasildeutsch, como proposto por Heye (1978), ou seja, uma variante suprarregional que surge da mescla de dialetos alemães numa situação diglóssica com o alemão padrão (Hochdeutsch), no contato com o português brasileiro. A autora von Borstel acrescenta que o Brasildeutsch “evidencia-se na composição de uma hibridização de traços formais da língua alemã, de traços de dialetos regionais e locais com o português bidialetal” (p. 59). Nesta perspectiva, a construção da identidade teuto-brasileira é não somente representada pela língua e cultura alemã e brasileira, mas também pelos dialetos regionais e locais identificados nas situações de contato em referência. Utilizando a terminologia de Ammon (2004) aplicada no dicionário das variantes do alemão (2004), podemos dizer que a língua alemã no Brasil é o resultado das variedades nacionais e regionais do alemão padrão e de variedades dialetais, em especial, do Hunsrückisch e do Plattdeutsch, com suas respectivas variantes locais, (Francônio, Alemão Suíço, Suábio ou Donauschäbisch, Pomerano Vestfaliano e Deutschruss), como descritos em alguns estudos realizados em comunidades de imigrantes no Brasil.3 A construção da identidade teuto-brasileira é aqui discutida a partir do contato das variedades nacionais e regionais e dialetais do alemão padrão com a língua e cultura brasileira do sul do Brasil.

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Conferir os estudos de Baranow (1973); Melo (1983); Steiner (1988); Bärnert-Fürst (1989); Von Borstel (1992, 2003, 2011); Altenhofen (1996); Damke (1997, 2008); Dück (2005); Heye, Vandresen (2006); Vandresen (2008); Höhmann, Savedra (2008), citados em Savedra, 2011.

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1. Línguas e culturas em contato O contato entre línguas não é um fenômeno de língua propriamente, ou das línguas envolvidas no contato, mas sim do uso tópico que os indivíduos fazem das línguas em diferentes situações de comunicação, o que certamente envolve escolhas políticas, culturais e identitárias. Neste trabalho não abordamos as escolhas e usos linguísticos provenientes de intervenções in vivo e in vitro, como proposto por Calvet em contextos de política e planificação linguística. (CALVET, 1996, p. 49). Delimitamos a discussão aos traços identitários da cultura teuto-brasileira identificados na língua usada por imigrantes e descendentes de imigrantes alemães no sul do Brasil. A ideia de cultura surge no século XVIII e passa por algumas transformações até os dias atuais. Ela se aplica, unicamente, ao que é humano, concebendo “a unidade do homem na diversidade de seus modos de vida e de crença [...], enfatizando a unidade ou a diversidade” (CUCHE, 2002, p. 13). Quando pensamos em identidade, a cultura enfatiza também a igualdade ou a diferença. No século XIX, com Franz Boas, a cultura recebe novas definições. (CUCHE, 2002, p. 39). Boas, inventor da etnografia, postula que o que difere os povos não é a raça, mas a cultura. Desvincula, assim, os traços físicos dos mentais, em um tempo em que se acreditava que a cor de uma pessoa determinava sua capacidade intelectual. Para ele, “cada cultura representava uma totalidade singular e todo seu esforço consistia em pesquisar o que fazia a sua unidade” (CUCHE, 2002, p. 45). Ela se exprime pela língua, pelos valores, pelas crenças, pela arte, influenciando o comportamento dos indivíduos e, assim, se relaciona com o jogo de construção identitária. Desta forma, a cultura, fenômeno inconsciente, ou seja, que não leva em conta a consciência da identidade, se relaciona com a identidade cultural, fenômeno consciente, baseado em oposições simbólicas, que, por sua vez, manipula e modifica a cultura. Essa relação tem como uma de suas metas a construção de fronteiras sociais, separando grupos etno-culturais a partir do desejo de ser “diferente” dos que são considerados “outros” e de usar artifícios culturais como marcadores da identidade do grupo a que se deseje filiar.

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Muito se tem discutido ultimamente sobre o tema identidade e o conceito de identidade tem sofrido profundas transformações decorrentes de sua inevitável articulação com o processo de globalização do mundo contemporâneo, que realça a importância das variáveis de raça, etnia, gênero, classe, opção sexual na formação da identidade (STEVENS, 2007, p. 44). Na breve revisão bibliográfica que propomos seguir, destacamos conceitos que merecem destaque na construção da identidade teuto-brasileira no sul do Brasil. Castells (2000, p. 22), afirma ser a identidade “o processo de construção de significado com base em um atributo cultural ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(quais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado.” Neste contexto, o autor sugere os conceitos de apropriação (incorporação ou “legitimação” da identidade da ideologia dominante); ab-rogação, (resistência em relação à identidade da ideologia dominante e múltiplas-agendas, que pode ser uma combinação dos anteriores, mas que podem resultar na conformidade, que o autor denomina: “identidade de projeto”. Castells acredita que seja esse o processo de construção de identidade mais importante porquanto mais significativo: “Ele dá origem às formas de resistência coletiva diante de uma opressão que do contrário não seria suportável, em geral com base em identidades que, aparentemente, foram definidas com clareza pela história, geografia ou biologia, facilitando assim a ‘essencialização’ dos limites da resistência” (CASTELLS, 2000, p. 25). Segundo Hall (2006), o conceito de identidade com o qual lidamos é demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova. Considera que a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma “fantasia”. Em seus estudos sobre a identidade no mundo moderno, o autor fala em deslocamento e descentralização, o que ele denomina de “crise de identidade”: Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no

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passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentralização do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentralização dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo (HALL, 2006, p. 9). Com relação à formação do sujeito pós-moderno, Hall (2006, p. 12), afirma que o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Bauman (2005) fala da dificuldade e até da impossibilidade da construção de uma identidade definitiva: “As pessoas em busca de identidade se veem invariavelmente diante da tarefa intimidadora de “alcançar o impossível”. Realça o desconforto deste deslocamento do indivíduo com relação à sua própria identidade: “Estar total ou parcialmente ‘deslocado’ em toda parte, não estar totalmente em lugar algum [...], pode ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora [...] A fragilidade e a condição eternamente provisória da identidade não podem mais ser ocultadas. O segredo foi revelado. Mas esse é um fato novo, muito recente”. (BAUMAN, 2005, p. 16-22). Mattelart e Neveu (2004) apresentam sua definição de identidade com características bastante idênticas. Afirmam que não podemos mais conceber o indivíduo em termos de um ego completo e monolítico ou de um si autônomo. A experiência do si é mais fragmentada, marcada pela incompletude, composta de múltiplos si, de múltiplas identidades ligadas aos diferentes mundos sociais em que no situamos. As vicissitudes do sujeito têm sua própria história, que remete aos episódios-chave da passagem aos novos tempos (HALL, 1988, p. 41 apud MATTELART e NEVEU, 2004, p. 104).

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Também Cunha participa da discussão sobre a construção conflituosa da identidade quando diz que a identidade do migrante – assim como de qualquer indivíduo, lembra Frederico Menezes – é formada “em momentos de crise, quando se é forçado a escolher ou quando se tem a oportunidade de escolher... quando se começa a escolher o que não se é e o que não se quer ser” (CUNHA, 2007, p.178). De acordo com KOBENA MERCER (1990, p. 43 apud HALL, 2006, p. 9), a identidade só se torna objeto de análises e discussões quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza. Na tentativa de definir o que é identidade, o escritor gaúcho Charles KIEFER (2002: 38), diz: “[...] um indivíduo é o próprio, é a essência mesma do que podemos chamar de identidade”. Willems (1980, p. 4) define a identidade do indivíduo baseando-se nas palavras de William James (1931): “No sentido mais amplo possível [...] o eu de um homem é a soma total de tudo quanto ele pode considerar seu [...]”. De forma idêntica, analisando a identidade étnica judaica, Brumer (1994), conceitua identidade individual e coletiva da seguinte forma: A identidade de um indivíduo compreende, antes de mais nada, suas características próprias e exclusivas, tais como sua fisionomia, seu nome e sobrenome, suas características pessoais e sua história individual. Sua identidade compreende, ainda, o que este indivíduo é socialmente, quer dizer, a que grupo ou grupos ele pertence e com que pessoas ou grupos ele tem características comuns (BRUMER, 1994, p. 29). Concordamos com a teoria de que a identidade do indivíduo é incompleta, está em constante construção, que está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”; é construída histórica e socialmente, mas também acreditamos que a identidade tem também origem do próprio berço. Moita Lopes sob o enfoque das identidades fragmentadas afirma que as identidades sociais têm sido descritas como fragmentadas, portanto, complexas, no sentido de que não são homogêneas. [...] Elas estão sempre sendo construídas ou reconstruídas através dos esforços de construção de significado nos quais nos engajamos (MOITA LOPES, 2002, p. 138-139).

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Os autores citados concordam que não se pode falar em identidade pura, pronta, acabada, mas de uma identidade em permanente construção. O que identificamos acontecer com os imigrantes teuto-brasileiros, que tem sua identidade construída a partir de duas pátrias - a sua Heimat/Vaterland e o Brasil; de duas culturas –a teuto e a brasileira; identidades em constante transformação, pelo uso linguístico e cultual das variedades nacionais, regionais e dialetais do alemão padrão, em contato com as variedades linguísticas e culturais do português brasileiro.

2. O conflito identitário dos imigrantes alemães Baseando-se em Azevedo, Seyferth comenta a luta dos imigrantes alemães e de seus descendentes ao longo da história pela construção de uma identidade própria: A longo prazo e como expressão de uma consciência coletiva inclinada a consolidar um modo global de vida, a luta pela identidade étnica própria em face da sociedade nacional vem a ter uma função determinante na preservação de todo o complexo “colonial” numa continuidade estrutural que perdura por um século [...] (AZEVEDO, 1982, p. 244-245 apud SEYFERTH, 1994, p. 11). Segundo a autora (Ibidem), a afirmação se aplica aos imigrantes italianos, mas que ela considera válida para a questão da identidade étnica teuto-brasileira: Como outras identidades de mesmo tipo, esta surgiu no âmbito do contato com a sociedade brasileira e, como expressão de consciência coletiva, só pode ser compreendida por referência a um processo histórico de colonização a partir do qual foi elaborada e que ajudou a preservar (SEYFERTH, 1994, p. 11).

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Bauman (2005, p. 25) fala de uma “outra identidade”: “Afinal de contas, perguntar “quem é você” só faz sentido se você acredita que possa ser outra coisa além de você mesmo”. Essa afirmação coincide com o termo alter-ego (outro eu) já utilizado pelos antigos romanos para referir-se justamente ao que Albó (2005, p. 48) define de outridade, ou seja, aquilo que ainda não somos, mas que ainda podemos ser, ou a outra parte da identidade que ainda poderá fazer parte constitutiva da nossa identidade. Segundo Bauman (2005), a definição desta característica da formação da identidade teve a seguinte origem: A ideia de “identidade” nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o “deve” e o “é” e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela ideia – recriar a realidade à semelhança da ideia. [...] A identidade só poderia ingressar na Lebenswelt como uma tarefa – uma tarefa ainda não realizada, incompleta, um estímulo, um dever e um ímpeto à ação (BAUMAN, 2005, p. 27). As palavras de Limberti (2009) vão na mesma direção quando diz que a construção da identidade é resultado de um processo de remessa de valores e pontos de vista e desencadeia-se em mão dupla: A partir do contato intercultural, a identidade passa a possuir vários tipos de assimetrias: étnicas, sociais, políticas, que se hierarquizam segundo seu grau de legitimidade. Um processo de remessa de valores e pontos de vista desencadeia-se em mão dupla [...](LIMBERTI, 2009, p. 43). A mão dupla de que fala a autora, no caso dos imigrantes, seria a identidade trazida de sua terra de origem que, por sua vez, seria mesclada com a nova identidade do país que os acolheu. Seyferth (1994) afirma que a construção de uma identidade étnica teuto-brasileira não foi feita, ao longo da história, com base do isolamento do grupo étnico, mas basicamente através de um processo histórico:

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A emergência da identidade étnica nada tem a ver com uma situação de isolamento/enquistamento; ao contrário, ela é decorrência do contato e do próprio processo histórico de colonização, que produziram tanto uma cultura camponesa compartilhada com outros grupos imigrados, como uma cultura especificamente teuto-brasileira. A etnicidade teutobrasileira tem sido reafirmada de diferentes formas ao longo deste século, sempre destacando um modo peculiar, diferente, de ser brasileiro (SEYFERTH, 1994, p. 13-14). De certa forma há um paradoxo na manutenção da identidade étnica alemã e na construção da identidade teuto-brasileira, quando se verifica que a grande maioria dos descendentes dos imigrantes não conhece mais suas origens na Alemanha ou de outros países de onde vieram seus antepassados, o que recorrentemente nossos informantes repetiam quando questionados sobre a Heimat da Alemanha. So fil wi ich wes, sen s´ fun de Alt Kholonie khom, fun Taitschland, do wes ich niks me (O que eu sei, eles vieram da Colônia Velha, da Alemanha, aí eu não sei mais nada), era geralmente a resposta que se ouvia. A autora (Ibidem), ao definir o termo Heimat, confirma este ponto de vista, dizendo: Ao definir as “colônias alemãs” no Brasil como Heimat (um dos termos da língua alemã traduzíveis como pátria), os teuto-brasileiros estavam, ao mesmo tempo, resguardando seu significado étnico restrito e seu pertencimento ao Brasil. O termo Heimat deriva de Heim (lar) e, nesse sentido, traduz na comunidade étnica construída pelos imigrantes. [...] O conceito Heimat inclui os dois princípios que marcam a identidade teuto-brasileira: a origem étnica alemã, vinculada ao direito de sangue, e a nacionalidade/cidadania brasileira, com seu princípio territorial (SEYFERTH, 1994, p. 19). É claro, com as modernas tecnologias à disposição da pesquisa, hoje em dia já é possível fazer um resgate da árvore genealógica das famílias.

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Para isso contribuíram também, os numerosos encontros de família que nos últimos anos acontecem principalmente no sul do Brasil4. A autora continua sua análise ao que ela denomina de duplo pertencimento e a este tipo étnico ela denomina de Deutschbrasilianer: A expressão “criar raízes”, no contexto pioneiro, remete à questão da cidadania brasileira, reivindicada através do ato de naturalização. Mas a cidadania, por si mesma, não anula o ideal do pertencimento ao povo alemão – lembrando sempre que o termo Volk é traduzível como “etnia”. A categoria Deutschbrasilianer aparece na segunda metade do século passado para definir o duplo pertencimento – à etnia alemã e ao Estado brasileiro na qualidade de cidadão (SEYFERTH, 1994, p. 15). O termo Deutschbrasilianer seria traduzível por “brasileiro alemão”, e não por “teuto-brasileiro”, uma vez que as palavras compostas em alemão são traduzidas de trás para frente. O termo Deutschbrasilianer significa “um brasileiro com características de alemão”, enquanto teuto-brasileiro é o contrário, “um alemão com características de brasileiro”. A criação do termo teuto-brasileiro se deu por existir o adjetivo gentílico mais tradicional teuto (alemão) e que com o adjetivo brasileiro formou o composto, que linguisticamente parece mais harmonioso do que o correto brasileiro alemão. Em outra passagem, a autora (Ibidem, p. 20) usa o termo, bastante comum ainda hoje, Auslanddeutsche, traduzível como alemães no estrangeiro. A construção da identidade teuto-brasileira está baseada, segundo a autora (Ibidem), justamente, na manutenção dos costumes e tradições trazidas pelos imigrantes e no caso em análise, também na conservação da música popular alemã: A formulação ideológica de uma comunidade étnica teuto-brasileira partiu, pois, da própria visibilidade das diferenças sociais e culturais em relação à sociedade 4

Notas/avisos destes encontros de família são encontrados em número expressivo no Jornal da Terceira Idade (Cândido Godoi – RS), Sankt Paulusblatt (Nova Petrópolis) e outros meios de imprensa, geralmente, ao menos em parte, em língua alemã.

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brasileira mais ampla; diferenças associadas à colonização e à conservação de costumes e tradições trazidas da Alemanha (SEYFERTH, 1994, p. 15). As afirmações de Bauman provam o quanto a identidade de cada pessoa está, segundo Meliá (2006, p. 7), em constante movimento ou em constante construção e reconstrução: Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade” (BAUMAN, 2005, p. 17). A autora Seyferth vê na formulação do termo Deutschbrasilianertum o pluralismo étnico-cultural, aspecto que, justamente, sempre defendemos em nossos trabalhos: De qualquer modo, Deutschbrasilianertum, como ideologia étnica, traz consigo uma inequívoca proposta de pluralismo étnico-cultural – cada grupo de imigrantes com direito de manter seus costumes, suas cultura e língua, e todos igualmente cidadãos brasileiros (SEYFERTH, 1994, p. 18). As autoras Mauch e Vasconcelos, com relação à identidade étnica, lançam questionamentos de como os imigrantes teutos e seus descendentes se viam a si mesmos e como eram vistos pelos componentes de outros grupos: [...] Afinal, como os imigrantes teutos e seus descendentes viam a si mesmos e como eram vistos por outros grupos étnicos? As reivindicações de cidadania brasileira para os

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teutos excluíam ou não o ideal de pertencimento ao povo alemão? Por outro lado, até que ponto a identidade étnica pode explicar comportamentos e posicionamentos políticoideológicos? (MAUCH;VASCONCELLOS, 1994, p. 5). Concordamos plenamente com as autoras no que se refere à construção cultural da identidade e sua estreita relação com a língua e com o contexto sociocultural. O pertencimento a uma etnia não é condição sine qua non de identidade étnica, como afirmam as autoras, também não se pode ignorar que este pertencimento traz profundas implicações em toda formação sociocultural e linguística da pessoa desde o berço e que tem profundas influências na construção da própria identidade. Em outras palavras, não é somente a origem étnica que é responsável pelo perfil da identidade, mas, por outro lado, também, é necessário reconhecer que este pertencimento étnico muitas vezes é fundamental, quando não decisivo, na construção da identidade geral de uma pessoa. No caso dos imigrantes, a luta pela conservação da sua identidade e de seus valores culturais é válida, ponto de vista que sempre defendemos, no entanto, não ao ponto de permanecer autêntica, sem qualquer forma de interferência, pois, não se pode esquecer que estes são justamente imigrantes e fazem parte, a partir da chegada à nova pátria, de um novo contexto social, cultural e político. No caso dos descendentes de imigrantes alemães em foco, também não existem fronteira físicas com a antiga pátria (Uhrheimat), mesmo assim a língua e cultura de origem têm influências profundas na construção da identidade étnica destas pessoas. Apesar de concordarmos com a ideia de todas as culturas serem de fronteira, não se pode esquecer nunca, que o indivíduo que faz parte de uma minoria está dentro de um contexto maior ao qual pertence. Isto fica claro para o nosso contexto nas palavras de Schneider apud DAMKE (1997, p. 277), quando ele diz: “somos brasileiros”, este é o contexto maior, “descendentes de imigrantes alemães”, esta é a minoria. O reconhecimento da diversidade linguística e cultural é um dos pressupostos da sociolinguística e é, justamente, nele que fundamentamos as nossas análises.

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Seyferth traz o desabafo de um colono de Brusque com relação à questão étnica de ser teuto-brasileiros: Eu não entendo muito de política. Só sei que um bom cidadão contribui para a grandeza de sua pátria, e minha pátria é o Brasil. Só que na nacionalização não tinha mais direitos, só deveres. Não entendi bem essa história de nacionalização. Nacionalizar o quê? Os teuto-brasileiros nunca negaram sua cidadania, nunca negaram que também são brasileiros. Não sei em que alguém pode prejudicar o Brasil só porque fala alemão e tem orgulho de sua origem. Afinal, tenho muito orgulho de ser de origem alemã (SEYFERTH, 1981, p. 190191, apud RAMBO, A. B., 1994, p. 52). Seyferth ressalta que a identidade teuto-brasileira está sendo constantemente construída, mesmo com a concorrência de outras etnicidades: As outras identidades possíveis não anulam o postulado de pertencimento étnico – a etnicidade teuto-brasileira tem sido permanentemente realimentada num processo cultural de manutenção de limites, em que há lugar para descendentes de alemães católicos e luteranos, citadinos e camponeses, empresários e operários -, unidos por um passado pioneiro comum que, simbolicamente, representa a unidade étnica (SEYFERTH, 1994, p. 25). Weber (1994, p. 106) falando dos Deutschbrasilianer, diz: “Essa categoria de identificação étnica destacava, por um lado, o pertencimento étnico/ nacional (Deutsch) e, por outro, o pertencimento ao Estado brasileiro através incorporação da cidadania (Brasilianer)”. Rambo continua, dizendo que essa visão aparece inequívoca nos versos de autoria de Ernst Moritz Arndt:

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Qual é a pátria dos alemães? É a Prússia? É a Baviera? É o local onde se agita a areia das dunas? É lá onde o Danúbio corre bramindo? Oh não, não, não! Sua pátria tem que ser mais vasta! Qual é então a pátria dos alemães? Mostra-me finalmente esta terra! Por onde quer que se escute a língua alemã E nela se cantam os hinos a Deus no céu, É lá que se encontra. A ela, alemão migrante, chama-a como a tua! (ERNST MORITZ ARNDT apud RAMBO, A. B., 1994, p. 44-45). Segundo Sanseverino, os personagens do romance Videiras de cristal do autor Luiz Antônio de Assis Brasil sobre a revolta dos Mucker no Rio Grande do Sul, cuja líder era Jacobina Maurer, mantinham uma imagem mítica da Alemanha e acreditavam poder revive-lo no Brasil. Isso se comprova nas palavras do personagem Mathias Münsch que são o final do romance: Da figura do imigrante alemão: Qual sua identidade? Quando descendo (Mathias Münsch) do vapor que o trouxe de Porto Alegre, viu São Leopoldo e sua igreja supostamente gótica, quando enxergou a gente loira e ouviu a confusão de dialetos alemães falados no cais, e quando os seus oito colegas o receberam com saudações do Bayern, do Rheinland-Pfalz e do Hunsrück, entendeu que a longa viagem pelo oceano fora apenas um intervalo de sonho, pois acordava em plena Germânia (SANSEVERINO, 1994, p. 34). Segundo Arthur Blasio Rambo, citando Balduino Rambo, para os teuto-brasileiros, mais do que qualquer outro elemento identificador, cabe à língua desempenhar esta função:

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A expressão por excelência do sangue e do espírito comuns é a língua. O Volkstum expressa-se obviamente através de outras formas concretas: sua música, sua pintura, sua escultura, suas festas, seus trajes, seus costumes e usos. Mas o sinal identificador essencial vem a ser a língua. Ela torna possível todas as demais manifestações e até certo ponto as engloba. E para nós teuto-brasileiros a língua materna ocupa o lugar mais importante. Por essa razão justifica-se que ela seja tratada aqui como fator à parte (Balduino RAMBO, 1936:119 apud Arthur Blasio RAMBO, 1994, p. 45). Como já dissemos, consideramos a língua, assim como a cultura, parte integrante do processo da construção da identidade teuto-brasileira. Reforçando esta ideia, ainda citamos Aguilera (2008) sobre a relação entre prática(s) linguística(s), em termos de uso de língua(s), e construção/ (des)construção de identidade(s). A atitude linguística assumida pelo falante implica a noção de identidade, que se pode definir como a característica ou o conjunto de características que permitem diferenciar um grupo de outro, uma etnia de outra, um povo de outro. A identidade pode ser definida sob duas formas: (i) objetiva, ou seja, caracterizando-a pelas instituições (educacionais, artísticas, políticas, culturais, sociais, religiosas) que a compõem e pelas pautas culturais (usos, costumes, tradições) que lhe dão personalidade; ou (ii) subjetiva, antepondo o sentimento de comunidade partilhado por todos os seus membros e a ideia de diferenciação com respeito aos demais (Moreno Fernández: 1998, p. 180). Na maioria das vezes, ao caracterizar um grupo ao qual não pertence, a tendência é o usuário fazê-lo de forma subjetiva, procurando preservar o sentimento de comunidade partilhado e classificando o outro como diferente. (AGUILERA, 2008, p. 105)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Para ilustrar os tópicos aqui abordados, selecionamos o texto de uma música popular do conjunto 3 Xirus que tem como título Alemão Batata Alemão Batata Quando o imigrante alemão surgiu no pampa, Derrubou mato, fez lavoura, abriu picada, Com seus costumes e a vontade de vencer, Buscou espaço no meio da gauchada [...]. Isso só pode ser um alemão batata, Vem de trator botar dinheiro no banco, Chapéu tateado, de bombachas e alpargatas, Sua estância é a própria imagem do Rio Grande, Nem parece ser um alemão batata! Hoje o imigrante alemão é gente nossa, Enraizado se fez pátria nesse chão, Semeou riquezas que agigantam nossos pagos, Como justiça tem a nossa gratidão, Se hoje alguém falar alemão batata, É só um gesto carinhoso e gentil [...] Com certeza é um alemão batata, É deputado, é patrão de CTG, Nem parece ser um alemão batata, Gosta de Kerpe, de churrasco e chimarrão, Com certeza é um alemão batata, É fazendeiro, dorme em cima das pataca, Nem parece ser um alemão batata, É cobiçado pelas mais lindas mulata, Com certeza é um alemão batata! (NEHER, 3 Xirus. Alemão batata. Caxias do Sul: ACIT, 1992)

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O texto da música mostra bem o conflito identitário, permeado por um dualismo cultural e temporal nestes quase 200 anos de imigração alemã no Brasil. Sugere que o processo de construção de identidade é um processo dinâmico que se modifica ao longo da vida dos sujeitos envolvidos em determinadas situações de contato linguístico-cultural, através da imposição/assimilação de influências históricas, políticas e sociais. O contexto inicial de contato, estabelecido pela imigração alemã para o Brasil no final do século XIX modifica-se através do tempo pelos diferentes usos que os sujeitos fazem das línguas/culturas em diferentes situações de comunicação; pelo uso de variedades linguísticas nacionais, regionais e dialetais das línguas e culturas alemã e portuguesa, em diferentes ambientes comunicativos (família, sociedade, escola e ambiente profissional). Assim é construída e reconstruída a identidade teuto-brasileira no sul do Brasil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUILERA, Vanderci de Andrade. Crenças e atitudes linguísticas: o que dizem os falantes das capitais brasileiras. Estudos linguísticos. São Paulo, v. 2, n. 37, p. 105-112, maio-ago. 2008. Disponível em http://www.gel.org.br/ estudoslinguisticos/volumes/37/EL_V37N2_11.pdf. ALBÓ, Xavier. Cultura, interculturalidade, inculturação: formação sociopolítica e cultural. Trad. Yvonne Mantoanelli. São Paulo: Loyola, 2005. ASSOCIAÇÃO THEODOR AMSTAD. Sankt Paulusblatt. Nova Petrópolis – RS: Editora Amstad, nº 208, maio 2009. AZEVEDO, Thales de. Italianos e gaúchos. Os anos pioneiros da colonização italiana no Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro/Brasília: Cátedra,/INL, 1982. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vechi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. BRUMER, Anita. Identidade em mudança: pesquisa sociológica sobre os judeus do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Federação Israelita do Rio Grande do Sul, 1994.

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O APAGAMENTO DO TRAÇO LÍNGUA-CULTURAIDENTIDADE GERMÂNICA NA CIDADE DE JUIZ DE FORA/MG THE DELETION OF THE GERMANIC LANGUAGECULTURE-IDENTITY TRACE IN JUIZ DE FORA/MG Mariana Schuchter Soares Mestranda em Linguística na Universidade Federal de Juiz de Fora Ana Cláudia Peters Salgado Universidade Federal de Juiz de Fora RESUMO O objetivo deste estudo é tratar de questões pertinentes ao apagamento de traços da(s) língua(s) germânica(s) em Juiz de Fora/MG, considerando que, como aponta a literatura (OLIVEIRA, 1953; STEHLING, 1979; BORGES, 2000; ESTEVES, 2008), a quantidade de imigrantes germânicos que chegou à cidade teria sido tão grande quanto aquela destinada a outras partes do país, onde a língua se manteve e/ou onde ainda há visíveis marcas no dialeto/cultura da região (BORSTEL, 2011; PEREIRA, 2005). Nesse contexto, é relevante considerar que várias pesquisas já foram realizadas com o intuito de abordar a imigração “alemã” em Juiz de Fora, mas essas focavam apenas aspectos sócio-econômicos e fatos históricos. Verifica-se, dessa forma, que não há pesquisas centradas em questões relacionadas ao contato entre línguas. Assim, partindo do pressuposto de que toda língua atua como índice da identidade de seus falantes (LABOV, 1972, 1982, 1994, 2001), pode-se dizer que muitos dos elementos identitários dos povos germânicos acabaram se perdendo ao longo do caminho, uma vez que a(s) língua(s) não sobreviveu (sobreviveram) a todo um processo de urbanização da cidade, bem como ao contato linguístico intenso com os falantes do português e de outras línguas de imigração. É neste contexto que se inserem as teorias de Castells (2006) acerca da noção de identidade, concebida como a fonte de significado de um povo. A partir dessa perspectiva, pressupomos que um dos fatores que provavelmente contribuiu para com o apagamento dos traços língua-cultura-identidade foi justamente a não identificação coletiva, i.e., a negação da identidade do outro, evitando o reconhecimento de si mesmo como um igual, como possuidor de uma mesma identidade.

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Palavras-chave: identidade; imigração germânica; línguas em contato; manutenção e morte linguística. ABSTRACT The objective of this paper is to deal with aspects related to the attrition of the German language in Juiz de Fora (MG), considering that, as proposed in the literature (OLIVEIRA, 1953; STEHLING, 1979; BORGES, 2000; ESTEVES, 2008), the amount of Germanic migrants that arrived in this city was as large as those ones that went to other parts of Brazil, where we can still find traces of Germanic languages in some dialects and in the culture (BORSTEL, 2011; PEREIRA, 2005). It is relevant to consider that other studies were developed to discuss the “German” immigration in Juiz de Fora. However, these studies focused on historical and socioeconomical aspects. Thus, there is a lack of linguistic studies towards Germanic immigration in this area. In this way, based on the idea that a language acts as a signal of the identity of its speakers (LABOV, 1972, 1982, 1994, 2001), we can say that many of identity marks of the Germanic people that arrived here were lost for the language(s) perished due to the urbanizing process and the intense linguistic contact with Portuguese speakers and other languages of immigration. Here, we can recall Castells (2006) with the notion of identity conceived as a resource of signification of a people. This point of view allows us to suggest that one of the aspects that influenced the loss of the language-culture-identity traces was the non-collective identification, that is, the negation of the other’s identity avoiding their own recognition as an equal being, or having the same identity. Keywords: german immigration; identity; language maintenance and death; languages in contact.

INTRODUÇÃO Já é lugar-comum a ideia de que o mundo é plurilíngue e de que as comunidades linguísticas se intersectam em vários níveis. É justamente a existência de tantas línguas que promove contatos linguísticos tão intensos, os quais podem ocorrer a partir de um único indivíduo bilíngue ou de toda uma comunidade (CALVET, 2002, p. 35). Assim, pode-se dizer que a Sociolinguística, hoje, configura-se como a ciência que estuda a intrínseca relação entre língua e sociedade e como se dá a mútua influência entre elas. Por isso, mostra-se tão relevante a interface entre a Linguística e outras ciências que estudam a coletividade, tais como a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia, a História, a Geografia humana, entre outras.

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Baseando-nos nessa perspectiva, visamos à realização de uma pesquisa linguística com uma abordagem sócio-histórico-cultural relacionada à cultura germânica na cidade de Juiz de Fora/MG. Isso, porque segundo registros históricos, Juiz de Fora recebeu mil cento e sessenta e dois imigrantes germânicos no ano de 1857, um contingente que somava mais de vinte por cento da população total da cidade – a qual, na época, ainda nem tinha status de cidade e era chamada de Vila de Santo Antonio do Paraibuna. E após cento e cinquenta e quatro anos da chegada desses imigrantes, percebese um total apagamento de seus traços culturais e, principalmente, da(s) língua(s) estrangeira(s) incluída(s) nesse processo. Estudos anteriores foram realizados no que se refere à imigração germânica em Juiz de Fora, porém, todos possuem um caráter histórico (limitando-se aos fatos), ou até mesmo econômico, o que indica uma lacuna no que se refere aos traços língua-cultura-identidade. Dessa forma, nosso principal objetivo é buscar evidências do que poderia ter ocasionado o apagamento dessas características, uma vez que é constatado que não existem mais quaisquer influências, em quaisquer níveis – fonológico, sintático, morfológico ou lexical – no dialeto da região. Assim, pode-se dizer que o quadro que descreveremos se mostra bastante distinto do que ocorreu em outras regiões do país, as quais também receberam imigrantes germânicos e que conservam, ainda hoje, seus traços linguístico-culturais. É verdade que várias pesquisas já foram realizadas nessas regiões (SPINASSÉ, 2008; FRITZEN, 2008; MEYER, 2009; BORSTEL, 2011; HÖHMANN, 2009) com o intuito de se verificar as influências que a língua germânica exerceu sobre alguns dialetos, principalmente os da região Sul e do estado do Espírito Santo. No entanto, não há descobertas efetivas que contemplem as regiões em que houve o apagamento dessa variedade linguística, principalmente em meio a sociedades em que tais povos tiveram efetiva participação no desenvolvimento econômico da região.

1. A Sociolinguística e as línguas em/de contato A linguagem desempenha um papel basilar na vida dos seres humanos, uma vez que permeia as interações e atividades diárias e atua como meio de expressão de pensamentos dos sujeitos. A capacidade de interagir com seus

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coespecíficos através de um aparato segmentável e passível de simbolismo – esse que, até o momento, evidencia-se exclusivamente humano –, continuamente despertou a curiosidade dos homens de diferentes culturas e momentos históricos. No entanto, somente no século XX, foi atribuído à Linguística o status de ciência. Desde então, os estudos acerca da linguagem humana têm se desenvolvido e, atualmente, dividem-se em distintas subáreas. Uma delas é a sociolinguística, a qual foca, dentre outros, aspetos resultantes da relação entre língua e sociedade, enquadrando estudos relacionados ao contato entre línguas, ao nascimento e morte de línguas, ao multilinguismo e às variações e mudanças. Nesse sentido, para a compreensão do fenômeno linguístico analisado, é relevante, muitas vezes, considerar a utilização de aspectos de outras áreas do conhecimento que também se ocupam das relações humanas que emergem na sociedade, a fim de romper as fronteiras que limitam a visão do objeto de estudo. Considerando que nosso objetivo, neste trabalho, é estudar aspetos sócio-histórico-culturais que perpassam o contato entre a(s) língua(s) alóctone(s) germânica(s) e a língua portuguesa em Juiz de Fora, bem como o porquê do apagamento dessas(s) língua(s) minoritária(s), pretendemos ponderar sobre evidências que apontam para alguns fatores internos e externos à(s) comunidade(s) linguística(s), os papéis e as funções sociais dos falantes, o status relativo dos falantes e das línguas e questões de domínio linguístico e social. Neste contexto, é possível sugerir que, antes do apagamento da(s) língua(s) germânica(s), os imigrantes germânicos tenham tido que encontrar formas alternativas para a interação com os outros imigrantes (dada a diversidade dos dialetos), bem como com os falantes do português. Assim, perguntamo-nos se não teria sido possível a existência de “uma língua” – talvez uma “língua franca” (MUFWENE, 2004) ou uma “língua veicular” (CALVET, 2002) – especialmente configurada para atender às necessidades daquela população específica. No entanto, não traremos de tal questão neste trabalho, uma vez que a pesquisa ainda se encontra em andamento.

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2. A situação socio-histórico-cultural dos Estados do Reich no século XIX Para compreendermos o discurso de afirmação da identidade étnica e sua implicação quanto aos significados atribuídos à língua germânica, fazse necessário, primeiramente, elucidar algumas questões relativas à situação dos povos germânicos na época da emigração. Assim, com o intuito de dar início às nossas discussões, mostra-se relevante ponderar sobre alguns fatores sócio-históricos relacionados aos países germânicos no século XIX. No período que compreende de 1815 a 1870, diversos fatos históricos ocorreram em territórios germânicos e regiões circunvizinhas. Ribeiro (2009, p. 21) cita, por exemplo, o Congresso de Viena, a Confederação Germânica, as Revoluções de 1848, a União Aduaneira de 1834, a liderança da Prússia, a ascensão de Bismark em 1862 e suas guerras de 1864 e 1866 contra Dinamarca e Áustria, fatos que não devem ser encerrados na escala alemã, uma vez que afetam a Europa (e o mundo) como um todo. No entanto, não aprofundaremos a análise histórica de tais fatores, considerando que esse não é nosso foco de estudo. O que nos interessa, na verdade, são as consequências da soma de todos sses conflitos sócio-político-culturais para o povo germânico do século XIX, uma vez que ocorreram, ao longo do tempo, uniões e/ou divisões entre os diferentes territórios, que trouxeram não apenas impactos econômicos, mas também choques entre diferentes culturas e identidades. Considerando que a unificação do Estado Nacional Alemão só aconteceu em 1871, e que, a título de comparação, no século XVI, eram mais de trezentos Estados-membros, divididos em principados, feudos eclesiásticos, reinos e cidades livres, fica difícil imaginar uma sociedade homogênea em termos de cultura, língua, costumes etc. É claro que a heterogeneidade social não se configura como exclusividade da Alemanha, uma vez que é impossível conceber uma homogeneidade linguística e cultural naquele momento histórico; visto que, quando os imigrantes começaram a chegar ao Brasil, no ano de 1824 (e, mais especificamente na cidade de Juiz de Fora, em 1857), o território germânico constituía um fervente caldeirão de diversidades, tanto econômicas quanto culturais e linguísticas.

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Segundo Willems (1980, p. 28-29), nas aldeias prussianas da primeira metade do século XIX, as famílias eram unidades produtoras e consumidoras ao mesmo tempo. O camponês comungava com fatores mesológicos, uma vez que baseava sua vida em seu meio regional, senão local. Assim, nenhuma manifestação cultural típica dos grupos rurais seria concebível fora de um determinado meio, a começar pelo próprio dialeto, o qual, até mesmo de povoado para povoado, já acusava diferenças sutis. Fora de seu meio nativo – mesmo que seja em meio rural, entre camponeses como ele –, o campônio estaria sujeito, até mesmo, a problemas para entender e ser entendido como resultado das diferenças linguísticas. Além disso, “o rigor das tradições, a inflexibilidade dos costumes, consequências do isolamento, determinaram a relativa estreiteza do horizonte cultural” (WILLEMS, 1980, p. 30). Além da falta de experiências do camponês, geralmente restrito ao meio nativo, a escola configurava-se como algo muito recente nas aldeias germânicas e, por isso, grande parte dos imigrantes que chegaram ao Brasil era de analfabetos. Também é verdade que boa parte dos imigrantes germânicos proveio do meio urbano. Esses homens deixavam para trás uma sociedade em plena transformação, e justamente “por causa” dessa transformação: era época de franca industrialização e proletarização de grande parte da população (WILLEMS, 1980, p. 32). Porém, apesar de citadinos, esses emigrantes faziam parte de classes sociais diversas, o que contribuía ainda mais para com a heterogeneidade cultural daqueles que vinham para o Brasil.

3. Juiz de Fora e seus imigrantes germânicos Segundo Oliveira (1994), a política de imigração teve início, em Juiz de Fora, através das iniciativas de Mariano Procópio Ferreira Lage, cuja intenção inicial era conseguir mão-de-obra especializada para a construção da Estrada União e Indústria. Por isso, em 1853, foram contratados técnicos, engenheiros, arquitetos e, três anos mais tarde, mais 20 profissionais, como ferreiros, pintores etc.

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Entretanto, sabemos que a maior parte dos imigrantes vieram para a região para formar uma colônia agrícola, segundo a política de D. Pedro II na tentativa de desenvolver a economia agrícola da região. Assim, de acordo com Stehling (1979), em 1857, Mariano Procópio conseguiu trazer 1.162 imigrantes germânicos (em sua maioria com baixa ou nenhuma escolaridade, com profissões que variavam entre agricultores, operários, pedreiros, seleiros etc.), com a promessa de que, em Juiz de Fora, todos receberiam terras e boas condições para a agricultura. No entanto, tais promessas não foram cumpridas e, os colonos foram instalados em áreas consideradas improdutivas – as quais, hoje, correspondem ao bairro São Pedro –, passando por dificuldades econômicas e falta de assistência. Apresentaremos, ainda, nesta seção, algumas evidências encontradas em pesquisas preliminares (de base documental e etnográfica), e discutiremos alguns aspectos que podem ter influenciado o apagamento da(s) variedade(s) linguística(s) germânica(s) que foram levadas para a cidade pelos imigrantes. Antes, porém, mostra-se relevante tecer algumas considerações sobre aspectos sócio-histórico-culturais envolvidos nesta pesquisa. Primeiramente, é significante dizer que a influência dos imigrantes germânicos na economia da cidade foi bastante acentuada e que, até hoje, conservam-se vários estabelecimentos comerciais fundados e/ou ainda mantidos por eles e seus descendentes. No entanto, a mesma atuação não se repetiu no que diz respeito à cultura. Mesmo com algumas tentativas, que se mostram um tanto tardias, de se recuperar alguns aspectos culturais / identitários desses povos (como a chamada “Festa Alemã” do bairro Borboleta, iniciada somente no ano de 1969, mais de 110 anos após o movimento migratório), nota-se que as danças e/ou comidas, entre outros elementos culturais, já não são caracteristicamente germânicos, considerando que os organizadores desse tipo de evento, muitas vezes, precisam buscar informações fora da cidade para a montagem das apresentações. Outro aspecto interessante foi revelado em entrevista com o austríaco Franz Joseph Hochleitner, natural da cidade de Salzburg (Entrevista 001/2011). Ele lutou na Segunda Guerra Mundial pelo III Reich e fugiu para Juiz de Fora no ano de 1948. Hoje, com 96 anos, garantiu que ao chegar à cidade, já não teria encontrado pessoas que falassem qualquer variedade linguística germânica. Isso demonstra que, provavelmente, o processo de apagamento da língua acontecera há mais de 60 anos.

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Dessa forma, discutiremos alguns dados de pesquisa relacionados a fatores que podem ter contribuído para com o apagamento da(s) língua(s) germânica(s) em Juiz de Fora, tais como: (a) a multiculturalidade/ plurilinguismo dos imigrantes germânicos e a não identificação coletiva; (b) a falta de uma política de acolhimento e assentamento desses imigrantes; (c) o prestígio da língua portuguesa; (d) a ausência de educação formal para os filhos de imigrantes; (e) a falta de assistência religiosa. a.

A multiculturalidade/plurilinguismo dos imigrantes germânicos e a não identificação coletiva

A partir da sistematização de um levantamento realizado por Clemente (2008, p. 230-268) no que se refere à cidade de Juiz de Fora, pode-se dizer que entre os 1.162 imigrantes germânicos que chegaram a Juiz de Fora havia grande heterogeneidade linguístico-cultural, uma vez que esses eram originários de regiões diversas, o que inclui Baden (Sudoeste da Alemanha), Grão Ducado de Hessen (Região Central da Alemanha), Holstein (Norte da Alemanha), Hessen Darmstadt (Região Central da Alemanha), Prússia (atuais territórios da Polônia, Lituânia e Rússia) e Tyrol (atual território da Áustria). Abaixo, encontra-se um quadro formulado a partir dos dados disponíveis na obra de Clemente (2008): QUADRO 1: dados relacionados à imigração germânica em Juiz de Fora Cidade / região de origem dos imigrantes

Número de imigrantes em Juiz de Fora

Localização

Variedade linguística

Baden

108

Sudoeste

Alto Alemão

Grão Ducado de Hessen

85

Região Central

Alemão Central

Holstein

200

Norte

Baixo Alemão

Hessen Darmstadt

324

Região Central

Alto Alemão

Pommerania

18

Baixo Alemão

Prússia

114

Nordeste Polônia, Lituânia e Rússia

Sachsen

28

Leste

Alto Alemão

Tyrol

267

Áustria

Alto Alemão

Fonte: Clemente (2008)

Baixo Alemão

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A partir da visualização do Quadro 1, é possível perceber as variedades linguísticas mais gerais da língua alemã trazidas pelos imigrantes para a cidade. No entanto, em fins do século XIX, o alto alemão incluía dialetos como o bávaro, o alemânico, o baixo alemânico, o alsaciano, o suábio, o francônio oriental e o francônio meridional. Quanto ao alemão central, esse englobava o alemão centro ocidental, o ripuário, o francônio central, o francônio do mosela, o francônio do Reno, o saxônio superior, o médio alemão oriental e o silesiano. Já o baixo alemão era formado pelas variedades frísio ocidental, baixo-saxônio, baixo alemão oriental, prussiano oriental, frísio setentrional, frísio ocidental, holandês, baixo francônio e flamengo (THEODOR, 1963). Além das variações que se processavam no nível dos dialetos, é possível afirmar que as distinções linguísticas eram muito maiores, considerando-se a inserção dos indivíduos em diferentes comunidades de fala dentro de uma mesma cidade/região, as diferenças linguístico-culturais entre as famílias, bem como aspectos como classe social, diferentes graus de escolaridade etc., sem falar das variações no nível dos idioletos. Desse modo, apesar da existência de uma mobilização dos povos germânicos para a defesa de seus interesses econômicos diante da sociedade juizforana, um dos fatores que provavelmente contribuíram para com o apagamento dos traços língua-cultura-identidade desses povos foi justamente a não identificação coletiva, tanto no que se refere às diferenças culturais quanto às variações linguísticas e, consequentemente, a negação da identidade do outro, o não reconhecimento de si mesmo como um igual, como possuidor de uma mesma identidade. Nesse sentido, é possível sugerir que os imigrantes germânicos tenham tido que encontrar formas alternativas para a interação com os outros imigrantes (dada a tamanha diversidade linguístico-cultural e a possível recusa em utilizar uma variedade linguística que não a sua própria), bem como com os falantes do português, o que pode ter implicado a formação de uma “língua franca” (MUFWENE, 2004) ou de uma “língua veicular” (CALVET, 2002) para, posteriormente, resultar na morte da(s) língua(s) germânica(s) que entraram em contato com o português e com outras línguas (como a(s) variedade(s) italiana(s), por exemplo, também levada(s) para a cidade por imigrantes, no decorrer do século XIX).

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Quanto às evidências encontradas, até o momento, através de pesquisa documental na cidade de Juiz de Fora, foram localizados apenas registros escritos em língua holandesa, realizados por padres redentoristas que foram, tardiamente, para a cidade – falaremos mais detalhadamente sobre esse assunto no item (e). O que se percebe, então, é uma escassez de registros escritos em outras variedades germânicas, principalmente produzidos por colonos. No entanto, essa busca por evidências documentais ainda se encontra em andamento, o que não nos permite tecer generalizações. Ao se conceber a possível existência de uma língua franca entre os colonos, pode-se imaginar que, para esses imigrantes germânicos, desenvolver uma variedade linguística comum a todos era uma tarefa difícil. Utilizar-se de vocábulos ou traços linguísticos holandeses, por exemplo, seria admitir que todos os imigrantes eram iguais, exatamente o que não queriam ser perante os olhos dos nativos da cidade, a fim de preservarem sua identidade. Isso porque, como dito anteriormente, por mais que se saiba que uma identidade étnica não está estritamente associada à língua, como defende Maher (1998), é impossível negar o valor que a posse e o reconhecimento dela encerram para os diferentes povos. É nesse contexto que se inserem as teorias do sociólogo espanhol Castells (2006). Para ele, a noção de identidade pode ser concebida como a fonte de significado e de experiência de um povo. Por assim dizer, a identidade seria concebida como um “processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados” (CASTELLS, 2006, p. 23). Desse modo, o processo de estabelecimento de identidades ocorreria por meio da matéria prima fornecida pela história, pela geografia, pela biologia, pelas instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva, pelas revelações de cunho religioso etc. A partir de tais considerações, pode-se dizer que a língua, nosso real objeto de estudo, constitui-se enquanto matéria-prima estabelecida por fatores sócio-histórico-culturais, bem como geográficos e biológicos próprios de cada comunidade linguística de imigrantes germânicos. Por isso, mostra-se importante para esses imigrantes a preservação de sua identidade étnica e a afirmação das diferenças que se processam através da língua. Isso, porque a variação linguística é um fenômeno que pode ser considerado como índice da identidade de seus falantes (LABOV, 1972, 1982, 1994,

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2001), uma vez que a língua é contextualizada e socialmente determinada. Ainda, de acordo com Calhoun (1994, p. 9), “não se tem conhecimento de um povo que não tenha nomes, idiomas ou culturas em que alguma forma de distinção entre o eu e o outro, nós e eles, não seja instituída”. Retomando Castells (2006, p. 23), todos os materiais fornecidos pela história, geografia etc., “são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo e espaço”. É o caso dos povos germânicos em Juiz de Fora que, ao longo do tempo, reorganizaram sua identidade a partir de todo tipo de influências, fossem naturais ou impostas pela sociedade. Assim, estabeleceu-se um processo de ressignificação a partir do contato com o outro que, por muito tempo, sofreu resistência por parte dos próprios colonos. Considerando o aspecto dinâmico da identidade, por estar sempre em movimento, Castells (2006, p. 24-25) propõe três tipos de construção de identidades: (i) identidade legitimadora, (ii) identidade de resistência e (iii) identidade de projeto. “A identidade legitimadora dá origem a uma sociedade civil”, i.e., àquela que é constituída por uma série de organizações e instituições, tais como a(s) Igrejas(s), os sindicatos, os partidos, as cooperativas, as entidades cívicas etc. Assim, a identidade legitimadora é introduzida pelas instituições/organizações dominantes na sociedade, a fim de expandir sua dominação e racionalização em relação aos atores sociais. Quando falamos da cidade de Juiz de Fora, pode-se dizer que a identidade legitimadora não foi relevante na formação dos povos germânicos, uma vez que, por muitos anos, não houve escolas para filhos de imigrantes, igrejas que oferecessem assistência ou qualquer tipo de instituição que oferecesse subsídio aos estrangeiros. Já a identidade de resistências leva à formação de comunidades. Isso porque dela fazem parte as diversas formas de resistência coletiva diante de um tipo de opressão. Assim, essa identidade é criada por atores sociais que se encontram em condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, o que faz com que seja criada uma resistência com base em princípios diferentes ou opostos daqueles que permeiam as instituições sociais. No entanto, em Juiz de Fora, também não se formou

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uma “comunidade alemã”, uma vez que não houve a construção de uma identidade defensiva, considerando que não havia resistência em relação à exclusão ou à falta de assistência da sociedade. Entendemos, dessa forma, que o caso dos povos germânicos em Juiz de Fora foi o da “identidade de projeto”, i.e., “quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social”. Assim, a construção de identidade consiste em um projeto de uma vida diferente, talvez com base em uma identidade oprimida. Esse processo de construção de identidades produz “sujeitos”, aqueles que anseiam criar uma história pessoal, atribuindo significado a todo um conjunto de experiências da vida individual. b. A falta de uma política de acolhimento e assentamento dos imigrantes Aos imigrantes germânicos que chegaram a Juiz de Fora foi feita a promessa de que receberiam terras férteis e boas condições para iniciarem seus empreendimentos. No entanto, como não havia um perfeito entendimento entre a Câmara Municipal e Mariano Procópio (OLIVEIRA, 1953, p. 51), os imigrantes acabavam sendo prejudicados pela falta de políticas que lhes proporcionassem melhores condições de vida. A verdade é que a maior parte das promessas não foi cumprida. Instalados em uma vasta região, que hoje compreende os bairros São Pedro, Borboleta e Fábrica, os colonos foram distribuídos em lotes de terras e encarregados de produzir gêneros alimentícios pela agricultura. No entanto, as terras recebidas eram inférteis e os imigrantes não receberam todo o apoio financeiro de que precisavam. Além disso, não houve qualquer tipo de auxílio para a superação das dificuldades que acabaram emergindo das diferenças linguísticas e culturais, principalmente na hora de negociarem seus produtos. Dessa forma, segundo Oliveira (1994, p. 32), as colônias não conseguiram se manter por muito tempo, o que resultou na fuga para a cidade, onde ficariam longe de seu povo (o que implicava a diminuição do uso de sua variedade germânica e a obrigatoriedade da aquisição do português e de sua utilização para fins profissionais), a fim de se somarem

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aos operários e trabalhadores braçais. Isso porque não havia um mercado consumidor para os produtos provenientes de suas terras, o que se associava à escassez de incentivos. c.

O prestígio da língua portuguesa

Independentemente das muitas variedades linguísticas faladas por todo o país – como, por exemplo, as línguas indígenas e os dialetos que receberam influência direta das línguas germânicas (os chamados Brasildeutsch e Hunsrückisch, por exemplo), o português é considerado a língua histórica do país. Desse modo, de acordo com César e Cavalcanti (2007), o que se constata, desde tempos remotos, é uma constante tensão entre os interesses da nação hegemônica e das sociedades minoritárias que convivem no mesmo território. Assim, o mito de “nação monolíngue” deve ser politicamente mantido, interna e externamente, o que tornam invisíveis as minorias linguísticas e socioculturais do país. Nesse contexto é que se instalam o prestígio de determinada norma da língua portuguesa e o processo de apagamento das línguas alóctones, uma vez que eleger o português como a “língua brasileira” tende a sufocar a autonomia dos falantes de outras línguas. Dessa forma, falar o português significaria o reconhecimento como interlocutor diante do poder hegemônico, além do atendimento às expectativas do outro sobre o seu próprio desempenho linguístico. É nesse sentido que a língua portuguesa, nas suas formas prestigiadas, aparece como um ideal de língua a se dominar, a partir da crença de que seja possível estabelecer o contato mais simétrico com o outro que se coloca nesses espaços de poder da cultura hegemônica. Portanto, apesar de o Brasil sempre ter sido um país plurilíngue, o reconhecimento oficial desse fato apenas se deu em 09 de dezembro de 2010, através do Decreto no 7387: Art. 1º Fica instituído o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, sob gestão do Ministério da Cultura, como instrumento de identificação, documentação, reconhecimento e valorização das línguas portadoras de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

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Desse modo, em vista da coexistência de outras variedades linguísticas no território brasileiro e, consequentemente, deixando de lado a noção de fronteiras linguísticas1, reconhecemos a importância dos estudos sociolinguísticos sobre línguas em/de contato. d. A ausência de educação formal para os filhos de imigrantes A primeira instituição de ensino voltada para receber os filhos dos imigrantes foi a Escola Agrícola, em 1869, fundada pelo próprio Mariano Procópio, doze anos após a chegada dos trabalhadores. Durante o tempo em que funcionou, a escola ensinava apenas técnicas agrícolas (YAZBECK, 2003, p. 100) em um curso intensivo de três anos, sem qualquer preocupação com o ensino curricular e/ou de língua alemã. Segundo Oliveira (1953, p. 59), para ser admitido como aluno, o candidato deveria provar que era órfão de pai e mãe ou desprovido de recursos financeiros e, nestas condições, tinham preferência os filhos da colônia de imigrantes. Ainda assim, os alunos deveriam contribuir com 200$000 por semestre, para as despesas de manutenção. Mas a verdade é que a escola não passou de uma experiência de curta duração, uma vez que suas atividades teriam sido encerradas devido à pouca procura. Outras escolas foram fundadas na cidade, como o Colégio do Cônego Roussin que, datada de 1860, é considerada a primeira instituição de ensino da cidade. Há também registros da instituição “Professor Sampaio”, criada antes do estabelecimento do Município. No entanto, não se sabe ao certo qual a data de sua fundação (YAZBECK, 2003, p. 100). O que se sabe é que essas escolas não tinham interesse em receber os filhos dos imigrantes. Nos anos seguintes, várias instituições de ensino básico e médio foram estabelecidas em Juiz de Fora, porém, em sua maioria, ofereciam ensino particular; apenas alguns poucos grupos escolares eram pertencentes ao poder público. Na verdade, ainda segundo Yazbeck (2003, p. 101), “até 1890, Juiz de Fora reproduzia na educação o perfil corrente no Império, durante o qual predominava, em todo o país, o ensino particular”. 1

De acordo com Guisan (2009), a representação que se tem hoje em dia da distribuição das línguas, com áreas delimitadas dentro de fronteiras nítidas, se fundamenta em mudanças recentes e pode ser apenas um epifenômeno transitório na história das línguas e das relações que se mantêm entre elas. Tal imagem não deixa de ser o produto de uma ilusão, a do imobilismo fotográfico. Para ele, as variantes linguísticas são muito menos geográficas e se superpõem cada vez mais no mesmo espaço.

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As condições do ensino em Juiz de Fora evidenciam que os filhos de imigrantes só tiveram acesso ao ensino formal no início do século XX. Abaixo, vemos uma foto do Grupo de alunos da Escola Municipal da Borboleta, tirada por volta de 1914: FIGURA 1: grupo de alunos da Escola Municipal da Borboleta

Fonte: Esteves (2008, p. 274)

A partir da visualização da figura 1, percebe-se que todas as crianças têm os pés descalços, o que sugere que os imigrantes, mesmo no século XX, ainda passavam por dificuldades econômicas. e.

A falta de assistência religiosa

Conforme sugerem as pesquisas documentais já realizadas, a assistência religiosa aos imigrantes germânicos foi bastante precária. Isso porque, apenas em março de 1894 – cerca de 27 anos após a chegada dos colonos à cidade – iniciaram-se as pregações em uma das variedades de língua germânica, declaradas nos registros como “alemão”, na Capela do Morro da Glória. Acreditamos, contudo, que tal variedade seja o holandês, uma vez que os padres redentoristas que vieram para Juiz de Fora, cujos nomes eram Pd. Matias Tulkens e Pd. Francisco Lohmeyer, eram genuinamente holandeses. Neste contexto, não se pode dizer que a utilização de apenas

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uma variedade de língua germânica nas pregações fosse realmente eficaz, dado o plurilinguismo existente em meio à colônia. Além disso, uma pequena parte, ao final da pregação, ainda ficava reservada para a utilização do português. Entretanto, a celebração em “alemão” acabou fazendo com que os brasileiros e os italianos parassem de frequentar a igreja. Um trecho de uma carta escrita pelo Pd. Lohmeyer ao provincial da Holanda, datada de 01.07.1885, evidencia isso: “Nossa igreja não está sendo procurada. É uma igreja alemã: sermão em alemão, terço e catecismo em alemão. Tudo isso faz com que os brasileiros e os italianos fujam da nossa igreja (...)”. Além disso, na mesma carta, Pd. Lohmeyer afirma que poucas pessoas ainda entendem o “alemão” e aproveitam efetivamente a missa. Aqui no Morro [da Glória] apenas 600 pessoas aproveitam a nossa presença (...) devemos acabar com a pregação em alemão [porque] de 50 anos para baixo e todos os homens (até de 50 para cima) falam português. Portanto, quase todos entendem o sermão feito em português. Considerando tais registros, pode-se inferir que poucas pessoas ainda entendiam e falavam unicamente sua variedade de língua germânica, e que o português já ocupava seu espaço, de forma considerável, em meio às colônias. Com o tempo, a frequência das pregações em “alemão” diminuiu. E com a Primeira Guerra Mundial, nos anos de 1914 a 1918, tanto as pregações quanto o catecismo em alemão acabaram definitivamente. Quanto à assistência religiosa por parte dos protestantes, essa ainda se encontra em estágio de pesquisa. No entanto, segundo evidências preliminares sobre as quais não discorreremos neste trabalho, a presença da igreja Luterana teria sido tão escassa quanto a da igreja Católica em meio aos colonos de origem germânica, na cidade de Juiz de Fora.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, buscamos ponderar sobre possíveis fatores sóciohistórico-culturais que teriam contribuído para com o desaparecimento dos traços da(s) língua(s) germânica(s) e da cultura dos imigrantes que chegaram a Juiz de Fora/MG, os quais somavam mais de 20% da população da cidade na época, mais especificamente no ano de 1957. Isso porque não há outros estudos que contemplem o contato entre as línguas germânicas e o português nesta região. Conforme buscamos evidenciar, acabou sendo preciso, por parte dos imigrantes germânicos de Juiz de Fora, apagarem as marcas de sua língua e de sua cultura para a própria sobrevivência em meio à coletividade de falantes de língua portuguesa – o que justifica o título de nosso trabalho. Nesse contexto, pode-se dizer que alguns aspectos que estão, possivelmente, envolvidos na morte da língua e da cultura germânicas são a multiculturalidade e a não identificação coletiva, a ausência de políticas públicas para o assentamento dos imigrantes, a falta de assistência no que se refere ao ensino formal e a religião, bem como o prestígio da língua portuguesa em detrimento das línguas alóctones. Assim, a partir deste estudo, esperamos contribuir para com o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, que visa à “memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.” (Decreto nº 7.387, de 09 de dezembro de 2010).

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