Revista do GELNE, PIAUÍ, n.12, v.1, 2010

July 19, 2017 | Autor: R. Gelne | Categoria: Lingüística, Letras
Share Embed


Descrição do Produto

Revista do GELNE, PIAUÍ, n.12, v.1, 2010

UMA LEITURA DO DISCURSO DO OUTRO NOS ESTUDOS DA LINGUAGEM Fátima Maria Elias Ramos*

Resumo O presente artigo propõe uma breve reflexão sobre o conceito do discurso de „outrem‟, introduzido por Mikhail Bakhtin (1929) em sua obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, fazendo uma aproximação com o conceito de heterogeneidade, preconizado pela Escola Francesa da Análise de Discurso. Neste trabalho, a tentativa é a de pontuar alguns aspectos referentes à maneira como o conceito de dialogismo vai se construindo no pensamento bakhtiniano e, ao mesmo tempo, instaurando uma fértil polêmica com vertentes clássicas da linguística e da estilística. Pretendo, desse modo, demonstrar como o outro se incorpora ao discurso do „um‟ para produzir sentido, o que supõe que nenhum discurso é homogêneo, nem desprovido de sujeito, sendo sempre atravessado por outros discursos, outras vozes. Palavras-chave: Linguagem, Dialogismo, Heterogeneidade. Abstract The present article aims at a consideration on the concept of “someone else‟s” discourse, brought up by Mikhail Bakhtin (1929) in “Marxism and the Philosophy of Language”, compared to the concept of heterogeneity, supported by the French Discourse Analysis. This work aims to point out some aspects related to the way the concept of dialogism comes to progressively take shape in Bakhtin‟s though, at the same time as it inscribes within it a fertile polemical argument with classical trends of linguistics and stylistic. Thus, I intend to demonstrate how the “other one” is embodied in the “ones‟s” discourse to construct meaning, on the grounds that discourse is neither homogeneous, nor unfurnished of a subject, being always crossed by other discourses, other voices. Keywords: Language, Dialogism, Heterogeneity.

Historicamente, nas gramáticas normativas ou tradicionais e na prática pedagógica, o discurso citado – direto, indireto e indireto livre – é estudado ao nível da sintaxe da frase. Esta perspectiva de estudo reduz o exame das modificações linguísticas e estilísticas que decorrem do uso desse fenômeno, por isso, não nos interessa a estrutura gramatical do discurso citado, mas, os diferentes modos de funcionamento dialógico, os efeitos de sentido produzidos por esta diversidade, na inter-relação dinâmica que se estabelece entre contexto narrativo e discurso citado. Nos estudos que Bakhtin e Volochinov (1986, p. 148-151) fazem dos esquemas de citação do discurso, esta dinâmica se traduz ora na delimitação ora na dissolução das fronteiras que separam a palavra citada daquela que cita, construindo a proximidade ou a distância do narrador em relação ao discurso citado. Conforme Cunha (1992b, p. 108), para se investigar o discurso reportado nas falas, uma das teorias possíveis para abordar essa questão é a perspectiva bakhtiniana do discurso, entendido como retomado e modificado devido ao processo de reacentuações diversas, pois, *

Doutora em Linguística pela UFPE. Professora do Centro de Formação de Professores, Campus de Cajazeiras PB - Universidade Federal de Campina Grande ([email protected]) 1

Revista do GELNE, PIAUÍ, n.12, v.1, 2010

para Bakhtin e Volochinov (1986, p. 146), “naturalmente, há diferenças essenciais entre a recepção ativa da enunciação de outrem e sua transmissão no interior de um contexto”. Nesse sentido, por mais “fiel” que seja a transmissão do discurso de outrem, o fato de isolar o recorte de fala do seu contexto de origem para explicitá-la em outro lugar, ocorrerá, nessa dinâmica, modificações. Além disso, na fala, “as sequências de palavras são produzidas com entoação e acentos específicos e são acompanhadas por gestos, atitudes, eventos, situações” (CUNHA, 1998, p. 134). A ideia central do pensamento de Bakhtin é o dialogismo, é a ideia do outro, da interação e do embate entre a palavra de um e de outrem, da enunciação sendo construída discursivamente. Nesse sentido, em “Para uma história das formas da enunciação nas construções sintáticas”, Bakhtin e Volochinov (1986) apresentam uma “tentativa de aplicação do método sociológico aos problemas sintáticos”. O objetivo desses autores se justifica, tendo em vista que as questões acerca da sintaxe eram tratadas da mesma maneira que os fenômenos morfológicos por meio de princípios e métodos tradicionais da lingüística, ou seja, à luz do objetivismo abstrato. Apesar desse tratamento, Bakhtin e Volochinov (1986) afirmam que as construções sintáticas são de enorme relevância para se compreender a língua e seu processo de evolução, por isso, dentre as formas lingüísticas fonéticas e morfológicas, as sintáticas são as que mais se aproximam da enunciação, isto é, das condições reais da fala. Em razão disso, esses autores esclarecem que o estudo da sintaxe só é viável no bojo de uma teoria da enunciação. Assim, a solução para os problemas sintáticos também só é possível sobre a base da comunicação verbal. Nessa perspectiva, esses autores vão dedicar-se ao estudo do discurso citado, considerado por eles um problema específico da sintaxe, ao afirmarem que a dimensão escolhida deve ser analisada de uma perspectiva enunciativo-discursiva, isto é, a questão do discurso citado deve ser trabalhada de maneira diferente das abordagens gramaticais ou estilísticas. Por isto, os autores afirmam que o nó da questão é o discurso citado, isto é: Os esquemas lingüísticos (discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre), as modificações desses esquemas e as variantes dessas modificações que encontramos na língua, e que servem para a transmissão das enunciações de outrem e para a integração dessas enunciações, enquanto enunciações de outrem, num contexto monológico coerente. [...]. Ninguém foi capaz de discernir nessa questão da sintaxe à primeira vista secundária os problemas de enorme significação que ela coloca para a lingüística [...] (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1986, p. 143). Bakhtin e Volochinov (1986) traçaram uma orientação sociológica em linguística, para tratarem o fenômeno de transmissão da palavra de outrem, delimitando como fronteira o fenômeno social da interação verbal em seu todo, realizada por meio da enunciação ou das enunciações. Bakhtin e Volochinov (1986, p. 144) postulam que “o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação”. Nas palavras de Cunha (1992b, p. 115), essa afirmação categórica de Bakhtin e Volochinov (1986) “impossibilita tratarmos „de discurso reportado‟1 sem considerarmos o contexto narrativo no qual vem se inserir e no qual circula a 1

Segundo Cunha (2005a, p. 102, grifo da autora), “discurso reportado (DR) é o termo genérico que engloba as três formas de citação: discursos direto (DD), indireto (DI) e indireto livre (DIL).” Para a autora, “o DR é um conteúdo tradicionalmente apresentado nas gramáticas e livros didáticos, do ensino fundamental à educação superior, seja como estilo, seja como discurso direto, indireto e indireto livre.” Cunha (2005a) considera “um 2

Revista do GELNE, PIAUÍ, n.12, v.1, 2010

enunciação „autônoma‟ de um outro sujeito”. Assim sendo, essa inter-relação dinâmica constitui o objeto de estudo do discurso retomado. Por isso, para Cunha (1997, p. 309), “o discurso relatado não é só o que é marcado como tal pelo relator, mas também o que é percebido como tal pelo interlocutor que reconhece diferentes vozes no discurso”. Para estudarmos o discurso de outrem na perspectiva bakhtiniana, faz-se necessário compreendê-lo como um discurso retomado que está sujeito a diversas acentuações, pois, refletem tendências básicas e constantes da recepção ativa do discurso de outrem. Bakhtin e Volochinov (1986, p. 145) questionam e esclarecem esse problema. “Como, na realidade, apreendemos o discurso de outrem?”. Eles afirmam que encontramos nas formas do discurso citado um documento objetivo que nos dá indicações sobre as tendências sociais estáveis características da apreensão ativa do discurso de outrem que se manifestam nas formas da língua – numa enunciação concreta. Assim, onde no discurso vem se inscrever o discurso dos outros? Para Cunha (2005b, p. 112), “essa operação é de um enxerto entre dois tecidos. A inserção de uma citação supõe o trabalho do sujeito que cita, que o fragmento de discurso selecionado não é neutro para o receptor”. A autora postula que tanto o ato de selecionar como de inserir obrigam o sujeito a pensar, julgar, pesar e avaliar. Para Bakhtin e Volochinov (1986, p. 142), a transmissão deve considerar uma terceira pessoa – “a pessoa a quem estão sendo transmitidas as enunciações citadas”. E é exatamente essa orientação para uma terceira pessoa que intensifica a influência das forças sociais organizadas sobre o modo de apreensão do discurso. Segundo Cunha (2004a, p. 242, grifo da autora), “Bakhtin/Volochinov (1995) e Bakhtin (1981, 1993) tiveram a originalidade de abordar o discurso como circulante e o discurso citado como um fenômeno relacional: uma „relação de falas‟ e uma fala relacionante, que concerne no mínimo dois atos de enunciação e três sujeitos.” Abordando o funcionamento dialógico das vozes no discurso, Cunha (2002, p. 166) afirma que “é por meio das formas marcadas e não marcadas de dialogismo que percebemos a posição e os pontos de vista do enunciador do discurso atual, o grau de distância ou de adesão aos discursos dos enunciadores citados ou mencionados, e os lugares ocupados por eles.” Nesse sentido, para efetuar-se o trabalho de análise do dialogismo, destacam-se duas tendências, segundo Cunha (2002): a primeira, baseada nas pesquisas de Authier-Revuz (1978), Gaulmyn (1983), Martins (1989), trata a presença do discurso de outrem como discurso direto, direto livre, indireto, narrativizado, indireto livre e modelos mistos; a segunda, formulada por Bakhtin e utilizada de modo diferente por Gardin (1976), Maingueneau (1980), Fiala (1986), Cunha (1992), Rosier (1999), Moirand (1999), AuthierRevuz (2001), Fairclough (2001), entre outros, analisa: A dinâmica da interação entre o discurso de outrem e o contexto no qual ele aparece, para compreender as posições dos sujeitos, que podem ser aliados ideologicamente, adversários, portadores de verdade, de erro, etc.. A análise da tensão entre contexto introdutor da citação e formas de representação de outro discurso vai além de uma classificação da citação com base em critérios tipográficos e lingüísticos (CUNHA, 2002, p. 169, grifo da autora). Nas palavras de Cunha (2004a, p. 242), “[...] a retomada é um fenômeno aberto e dinâmico, ligado às múltiplas maneiras como os sujeitos falantes recebem e reorientam a fala alheia.” tema de extrema relevância no uso, no ensino-aprendizagem da língua e da literatura e das Ciências Humanas em geral, uma vez que revela a relação ao discurso do outro e, por conseguinte, ao outro.” 3

Revista do GELNE, PIAUÍ, n.12, v.1, 2010

Baseando-se ainda em Bakhtin e Volochinov, Cunha (1992b, p. 115) mostra que: 1. não existem formas de discurso reportado, mas esquemas, configurações de retomadas da fala do outro, com tendências para o discurso direto, indireto ou indireto livre; 2. há uma posição especial do locutor ao interagir com o discurso de outrem. No processo de retomada-modificação de um discurso, o locutor se auto-introduz como autor da retomada por meio de descrições, tematizações, etc.; 3. os esquemas são estratégias discursivas elaboradas como uma nova enunciação dialógica. Já para Authier-Revuz (2004), o que chama a atenção em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1986) é a tendência nova de análise do discurso indireto livre: nos limites de uma única e mesma construção lingüística, ouve-se ressoar os acentos de duas vozes diferentes. “De acordo com a expressão de Bakhtin, o discurso indireto livre abre às formas híbridas e aos gêneros, que são sua sistematização” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 38). Além do discurso citado, Bakhtin e Volochinov (1986, p. 148) teorizam sobre a mediação entre o discurso interior e a apreensão da enunciação de outrem – “a palavra vai à palavra”. Para a efetivação desse processo, eles expõem duas operações: a réplica interior e o comentário efetivo, estes são organicamente ligados na unidade da apreensão ativa e não são isoláveis. Esses autores afirmam que essas duas operações de apreensão se realizam no discurso citado que engloba o contexto narrativo. Estes se fundem por meio de relações dinâmicas, complexas e tensas. Ora, se o discurso citado e o contexto narrativo estão entrelaçados, impossível analisar as formas de transmissão do discurso de outrem separadamente sem levar em conta essa relação. Daí, segundo Bakhtin e Volochinov (1986, p. 148), o erro fundamental dos pesquisadores é estudar o discurso citado sistematicamente divorciado do contexto narrativo, uma vez que o objeto verdadeiro da pesquisa deve ser exatamente essa interação dinâmica dessas duas dimensões, o discurso a transmitir e aquele que serve para transmiti-lo. Evidentemente, essa dinâmica reflete a dinâmica da inter-relação social dos indivíduos no meio social. Na interação entre discurso narrativo e discurso citado, ou seja, na relação do locutor com o discurso que ele retoma, Bakhtin e Volochinov (1986, p. 150) definem duas orientações. A primeira, denominada estilo linear, o locutor conserva o discurso de outrem, cria fronteiras nítidas à volta do discurso citado, por isso, existe completa homogeneidade estilística de todo o texto. A segunda, designada estilo pictórico, o locutor infiltra suas réplicas e seus comentários individuais no discurso de outrem, desfazendo a estrutura compacta do discurso citado e apagando as fronteiras entre os dois, manifestando-se, assim, numa diversidade de enunciados. A concepção teórica de Bakhtin sobre a transmissão e o exame das palavras de outrem é muito relevante para analisarmos esse discurso, uma vez que: [...] fala-se no cotidiano sobretudo a respeito daquilo que os outros dizem – transmitem-se, evocam-se, ponderam-se, ou julgam-se as palavras dos outros, as opiniões, as declarações, as informações; indigna-se ou concorda-se com elas, discorda-se delas, refere-se a elas, etc. (BAKHTIN, 2002, p. 138-139). Apesar do discurso de outrem ser um dos temas mais divulgados e essenciais da fala humana, antes dos estudos bakhtinianos, os estudos não o abordavam do ponto de vista da enunciação, mas da perspectiva gramatical, estrutural, em que o foco investigativo era somente nas formas do discurso citado: direto, indireto e indireto livre. Ao ressaltar algumas abordagens do discurso reportado, Cunha (2005a) postula que, mesmo antes de ser considerado um conteúdo da gramática, já fora objeto de estudo da 4

Revista do GELNE, PIAUÍ, n.12, v.1, 2010

retórica antiga. “A partir do século XVIII, a ênfase é dada à tipografia e à inserção dos diálogos em discurso direto na narração” (ROSIER, 1999 apud CUNHA, 2005a, p. 103). Somente nos últimos vinte anos, o discurso reportado foi investigado na perspectiva enunciativa. Entre esses estudos, destacamos os de Cunha (1992a, 1992b), para quem o discurso reportado não se restringe aos aspectos formais, como prescreve a gramática, mas há diversos modos de retomada do discurso de outrem, como mostram [...] os locutores, em graus diferentes, assumem uma atitude em relação ao discurso original que se revela através de modificações, retematizações, comentários e julgamentos, marcados diferentemente, visto que todo discurso reportado serve a um propósito numa situação sócio-histórica (CUNHA, 2005a, p. 103). A esse respeito, Cunha (1992a, 1992b) e Brait (2001) asseguram que o discurso citado, trabalhado por Bakhtin e Volochinov (1986), de forma pioneira, dá continuidade à configuração do “outro” e sua participação na constituição do sujeito e das identidades, surpreendendo-o enquanto discurso presente no discurso, uma forma de “heterogeneidade mostrada”, na visão de Authier-Revuz (1990), e que aponta para dois ângulos: o “outro” enquanto discurso e o “outro” enquanto receptor. Esse conceito de “outro” é desenvolvido na obra bakhtiniana, baseando-se em suas reflexões sobre a linguagem enquanto condição humana constitutiva. Expondo as suas ideias sobre a “hermenêutica do cotidiano”, Bakhtin (2002, p. 139) assinala que as nossas conversas diárias são repletas de transmissões e interpretações das palavras dos outros. Por isso, prestando atenção às nossas falas, observamos que a todo momento estamos fazendo citações, referências às palavras de um interlocutor, às nossas palavras, a um filme, a um jornal, a um livro, a uma novela, a um fato recente, etc. “A maioria das informações e opiniões não são transmitidas geralmente, em forma direta, originária do próprio falante, mas referem-se a uma fonte geral indeterminada: „ouvi dizer‟, „consideram‟, „pensam‟, etc.” (BAKHTIN, 2002, p. 140). Em razão disso, observamos também que os procedimentos de transmissão do discurso alheio dependem do contexto, por isso são muito variados. Assim, o discurso de outrem está sujeito e submetido a diversas interpretações, (re)considerações, (re)acentuações, enfim, a transformações de sentido, já que não podemos “separar os procedimentos de elaboração deste discurso dos procedimentos de seu enquadramento contextual (dialógico): um se relaciona indissoluvelmente ao outro” (BAKHTIN, 2002, p. 141). Com base nas investigações sobre apreensão do discurso de outrem, Bakhtin articula formas de citação e gênero, percorre o discurso literário em obras de sua época, entre elas a Dostoievski, criador do romance polifônico, para Bakhtin. A reflexão sobre o discurso de outrem desloca Bakhtin do campo da teoria literária para o do uso ideológico da palavra. Dessa forma, o objetivo da assimilação da palavra de outrem busca definir a nossa atitude ideológica em relação ao mundo e o nosso comportamento, daí, Bakhtin postular duas categorias da palavra de outrem: a palavra autoritária e a palavra interiormente persuasiva. A primeira exige dos interlocutores “o reconhecimento e a assimilação, [...] a encontramos unida à autoridade. A palavra autoritária já foi reconhecida no passado. É uma palavra encontrada de antemão. [...] (a autoridade do dogma religioso, a autoridade reconhecida da ciência, a autoridade do livro da moda), [...]” (BAKHTIN, 2002, p. 143, grifo do autor). A segunda se liga a “nossa palavra” que “se elabora gradual e lentamente a partir das palavras reconhecidas e assimiladas dos outros, e no início suas fronteiras são quase imperceptíveis” (BAKHTIN, 2002, p. 145). Por isso, para o autor, a palavra persuasiva interior é explicitada como metade nossa, metade também de 5

Revista do GELNE, PIAUÍ, n.12, v.1, 2010

outrem. Ela nasce nas relações sociais, dos diferentes pontos de vista verbais e ideológicos, entra num inter-relacionamento tenso e num conflito com as palavras interiormente persuasivas. “A estrutura semântica da palavra interiormente persuasiva não é terminada, permanece aberta, é capaz de revelar sempre todas as novas possibilidades semânticas em cada um dos seus novos contextos dialogizados” (BAKHTIN, 2002, p. 146). Assim, com base nas palavras de Bakhtin, podemos afirmar que existe em quase todo enunciado, de modo aberto ou velado, a presença de palavras significativas de outrem, verbalizadas por diversos processos. Essas abordagens do discurso de outrem, elaboradas pelo Círculo de Bakhtin, deram origem a diversos estudos sobre a heterogeneidade enunciativa da linguagem, bem como a estudos sobre os diferentes modos de retomada dos discursos pelos locutores. Segundo Faraco (2003), nos textos de Bakhtin e Voloshinov, é compreensível que o fenômeno linguístico concreto mais debatido seja o discurso reportado, isto é, a marca explícita da palavra de outrem nos enunciados. Ele justifica o seu pensamento, afirmando que esse interesse decorre da noção dialógica de linguagem defendida pelo Círculo de Bakhtin, que focaliza a realidade linguística social e a de cada falante como heterogênea. Por isso, Faraco (2003, p. 123, grifo do autor) afirma ainda, que “Bakhtin, em O Discurso no Romance (1934), mostra-se fascinado pela onipresença, em forma aberta ou velada, da palavra de outrem „nos enunciados de um indivíduo social‟, desde a réplica do diálogo familiar até as grandes obras verbo-axiológicas.” Está se dando uma interação intensa e um embate entre a palavra de um e de outrem, um processo no qual elas se opõem mutuamente ou se interanimam dialogicamente. O enunciado assim concebido é um elemento consideravelmente mais complexo e dinâmico do que quando entendido como simplesmente uma coisa que articula a intenção da pessoa que o pronuncia, caso em que assume-se o enunciado como um veículo direto, univocal, da expressão (BAKHTIN, 1934 apud FARACO, 2003, p. 123). Na abordagem bakhtiniana, o discurso citado não se exaure na citação, já que reportar não significa apenas repetir, mas também estabelecer uma relação entre o discurso que reporta e o discurso reportado; uma forma de interação dinâmica dessas duas dimensões. Nas palavras de Cunha (1997), o discurso reportado não pode ser abordado fora da situação de interlocução, pois, trata-se de um fenômeno bivocal por excelência. Ainda, conforme Cunha (2004a, p. 242), pesquisas sobre o discurso de outrem, em gêneros primários e secundários, revelam também a existência de diversos modos de relação à fala de outrem, tais como: “de um lado há a citação, do outro há a paráfrase, retomada não marcada do discurso de outrem que se funde com o discurso próprio.” Atualmente, verificamos diversos termos e conceitos que se referem a “discurso de outrem”, o que revela que esse tema continua em vigor nas pesquisas linguísticas. Nessa direção, Cunha (2004a, p. 242, grifo da autora) ressalta que “o discurso de outrem revela uma variedade de objetos, de questionamentos e de abordagens teóricas dentro da literatura lingüística” sob diversos nomes: “discurso citado, heterogeneidade mostrada e constitutiva, interdiscurso, polifonia, intertextualidade manifesta e a intertextualidade constitutiva, dialogismo mostrado e constitutivo”, cada um implicando algum viés específico. Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 172) concordam que o discurso citado compreende os diversos modos de retomar, no discurso, falas atribuídas a outras instâncias diferentes do locutor. Para estes autores, essa problemática vai muito além do estudo tradicional entre discurso direto, indireto e indireto livre, já que abrange também fenômenos 6

Revista do GELNE, PIAUÍ, n.12, v.1, 2010

linguísticos como as formas híbridas, a colocação entre aspas e o itálico, a modalização por remissão a um outro discurso, as diversas formas de alusão a discursos já-ditos. Para muitos linguistas que analisam o discurso, a problemática do discurso citado abre esse estudo para o conjunto dos fenômenos tanto de polifonia quanto de heterogeneidade. Vemos que os estudos sobre o discurso citado insistem, cada vez mais, no continuum entre as formas de discurso reportado, nas formas “mistas”, a ponto de questionarem a distinção entre as três formas sintáticas de discurso citado, analisadas pelas gramáticas normativas. Para Charaudeau (1992 apud CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 176), existem múltiplas formas de discurso citado, diferentes maneiras de citar o discurso de origem. Ele as reagrupa em quatro conjuntos: discurso citado, discurso integrado, discurso narrativizado, discurso evocado. Assim, de acordo com Charaudeau (1992 apud VAZ, 2007, grifo nosso), no discurso citado, o discurso de origem é relatado (mais ou menos integralmente e autônomo) em uma construção que o reproduz tal como foi enunciado. Esse tipo de discurso equivale àquele que a gramática tradicional chama de “estilo direto” ou discurso direto. No integrado, o discurso de origem é relatado quando faz parte de uma construção que o integra parcialmente ao dizer daquele que narra, o que ocasiona uma transformação no enunciado que passa a ser narrado na 3ª pessoa (os pronomes e os tempos verbais). Nesse caso, a gramática tradicional fala de “estilo indireto” e “estilo indireto livre” ou discurso indireto e discurso indireto livre. No discurso narrativizado, o discurso de origem é reportado de tal forma que se integra completamente ao discurso citante e quase desaparece no dizer de quem reporta. O locutor de origem torna-se agente de um ato de dizer. Nesse caso, o discurso de origem passa por uma transformação morfológica aparecendo, em geral, em forma nominalizada. Outra noção de discurso narrativizado, encontramos em Cunha (1992, p. 111 apud CUNHA, 1995, p. 2): “trata-se de uma modalidade de discurso reportado que descreve o ato de fala realizado, cujo valor pragmático resulta de um julgamento metadiscursivo”. Em Cunha (2006, p. 130), a autora reafirma essa noção ao dizer: “[...] pode, contudo, evocar o discurso por meio do discurso narrativizado (DN) em que se relata apenas o ato de fala realizado.” No evocado, esse discurso é utilizado para provar ou tornar mais verdadeiro o enunciado do locutor relator. É um tipo de discurso geralmente configurado por uma palavra ou um grupo de palavras entre aspas, travessões ou parênteses, correspondendo a um “Como se diz”, “Como você diz”, “Como ele diz”, ao “é comum”. As citações de máximas e de provérbios são exemplos de discurso evocado, pois fazem alusão ao saber popular, em que se recorre ao conhecimento de mundo do leitor para o entendimento da citação. Essa classificação proposta por Charaudeau não só amplia o que a tradição gramatical considera como discurso reportado (discurso direto, indireto e indireto livre), mas também revela que o discurso citado é mais do que forma, ou seja, é a linguagem em uso. E, no uso do discurso reportado, observamos que um modo de enunciação de origem pode ser retomado de diferentes formas pelo enunciador e que, na escrita, nem sempre o discurso citado aparecerá com a pontuação canônica. Outro ponto importante a ser destacado é que, se o locutor retoma o discurso de outrem, todo discurso reportado é polifônico. Nas palavras de Cunha (1992b, p. 114, grifo da autora), “toda citação, mesmo a transmissão direta ipsis litteris entra em outras redes dialógicas que não são as do contexto original.” Daí que a compreensão de discursos depende da historicidade de vida do(s) sujeito(s), dos conhecimentos acumulados, das leituras realizadas, entre outros. Observamos que determinados discursos, determinadas obras só se revelam por meio do conhecimento de outro(s) discurso(s) e de outra(s) obra(s). Como afirma Orlandi (1988, p. 18), “[...] todo discurso nasce em outro (sua matéria-prima) e aponta para outro (seu futuro discursivo). Por 7

Revista do GELNE, PIAUÍ, n.12, v.1, 2010

isso, na realidade, não se trata nunca de um discurso, mas de um continuum.” Reconhecendo o dialogismo constitutivo da linguagem, atribuindo-se um papel privilegiado à presença de discursos “outros”, ou seja, atribuíveis a outra fonte enunciativa, destacamos, nas abordagens enunciativas pós-bakhtinianas, o trabalho de Authier-Revuz (1990) que, partindo da concepção dialógica da linguagem formulada por Bakhtin e da abordagem do sujeito e de sua relação com a linguagem formulada por Freud e por Lacan, elaborou uma distinção entre heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva. Fundamentada nessas concepções, Authier-Revuz (1990, p. 26) propõe “uma descrição da heterogeneidade mostrada como formas linguísticas de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva do seu discurso”. Ainda, segundo Authier-Revuz (1990, p. 32), “heterogeneidade constitutiva do discurso e heterogeneidade mostrada no discurso representam duas ordens de realidade diferentes: a dos processos reais de constituição dum discurso e a dos processos não menos reais, de representação num discurso, de sua constituição”. Assim, nas formas linguísticas de heterogeneidade mostrada, essa autora distingue aquelas que mostram o lugar do outro de forma unívoca, tais como discurso direto, aspas, itálicos, incisos de glosas; e outras formas não marcadas onde o outro é dado a reconhecer sem marcação unívoca, como o discurso indireto livre, ironia, pastiche, imitação etc. Quanto à heterogeneidade constitutiva, esta é inerente à linguagem, pois todo discurso se constrói a partir de outros sobre o mesmo tema, sendo, assim, constituído por diversas vozes não mostradas explicitamente no texto. Segundo Authier-Revuz (2004), partindo das formas mostradas que atribuem ao outro um lugar delimitado no discurso e passando pelo continuum das formas recuperáveis da presença do outro no discurso, chega-se, “à presença do outro – às palavras dos outros, às outras palavras – em toda parte sempre presentes no discurso, não dependente de uma abordagem linguística” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 21). Eis a constatação da realidade da heterogeneidade constitutiva, como indica o próprio termo, de que o discurso do outro é sempre onipresente e, por isso, está presente em toda parte. Para Brandão, essa linguista francesa tem analisado as marcas explícitas denominadas de heterogeneidade mostrada como “formas de ruptura, de fraturas que intervêm no fio do discurso, colocando em confronto a identidade/alteridade do sujeito” (BRANDÃO, 2001, p. 68). As marcas dessa heterogeneidade mostrada relacionam-se com a heterogeneidade constitutiva da linguagem; essa heterogeneidade de forma não marcada é, contudo, possível de ser determinada pelo dialogismo. Ainda, conforme Brandão (2001), a impossibilidade de fugir da heterogeneidade constitutiva da linguagem faz o sujeito negociar com ela, explicitando a presença do outro por meio das marcas da heterogeneidade mostrada. Assim sendo, com base nas abordagens de Authier-Revuz (1990) sobre a(s) heterogeneidade(s) enunciativa(s), observa-se que a heterogeneidade constitutiva é não analisável pelo linguista, por sua vez, a heterogeneidade mostrada consiste na inscrição do “outro” na sequência discursiva e apresenta-se sob formas linguísticas ou não de representação de seu discurso. Assim, o dialogismo bakhtiniano refere-se à presença do discurso de outrem em todas as produções verbais. Daí, a concepção dialógica da produção do dizer e do seu sentido, por meio de outros discursos, é ativa e dinâmica. Nas palavras de Bakhtin (2002, p. 88), “em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa”. Nessa direção, Cunha (2008, p. 112) afirma: “a experiência discursiva do ser só se concretiza e se desenvolve no movimento contínuo de interação. Por isso, a aquisição da linguagem não pode ser pensada em termos de formas da língua, mas de assimilação dos discursos do outro”. Tomando por base essa visão de Bakhtin e de Cunha, entendemos que os discursos não são formas sintáticas de transmissão das falas alheias, mas pontos de vista, representações da 8

Revista do GELNE, PIAUÍ, n.12, v.1, 2010

interação entre sujeitos e suas posições axiológicas. Muitas destas considerações se ancoram no pensamento bakhtiniano, segundo o qual: [...] tudo que é dito, tudo que é expresso por um falante, por um enunciador, não pertence só a ele. Em todo discurso são percebidas vozes, às vezes infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais, quase imperceptíveis, assim como as vozes próximas que ecoam simultaneamente no momento da fala (BAKHTIN, 1979 apud BRAIT, 2003, p. 14). Desse modo, alicerçado na concepção dialógica da linguagem, podemos dizer que a nossa fala não pertence só a nós. Nela ecoam muitos discursos, muitas vozes, às vezes explícitas, às vezes silenciadas. Nesse sentido, observamos que o discurso do outro na abordagem bakhtiniana revela a presença do heterogêneo na constitutição do discurso, o que nos mostra a contribuição de Bakhtin para os estudos da hetoregeneidade, a partir de sua reflexão sobre o “discurso de outrem”. Assim, por ser o sujeito constituído historicamente e ocupar diversas posições enunciativas, ele faz emergir seu discurso a partir do outro, mas também se manifesta ativamente, ou seja, produz seu conhecimento por meio de seu ponto de vista, atuando também como construtor do seu discurso.

REFERÊNCIAS AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). Trad. Celene M. Cruz e João Wanderley Geraldi. In: Cadernos de Estudos Lingüísticos, Campinas-SP: UNICAMP, IEL, n. 19, p. 25-42, jul./dez. 1990. ______. Entre a Transparência e a Opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Rev. Téc. Trad. Leci Borges Barbisan e Valdir do Nascimento Flores. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. BAKHTIN, Mikhail./VOLOCHINOV, Valenti Nikolaiévitch. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1986 (1ª edição, 1929). ______. ¿Qué es el lenguaje? In: SILVESTRI, A.; BLANCK, G. Bajtín y Vigotski: la organización semiótica de la conciencia. Barcelona: Anthropos, 1993. (1ª edição, 1929). p. 217-243. BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Equipe de tradução do russo: Aurora Fornoni Bernadini et al. 5. ed. São Paulo:Hucitec/Annablume, 2002. BRAIT, Beth. . Alteridade, dialogismo, heterogeneidade: nem sempre o outro é o mesmo. In: BRAIT, Beth. (Org.). Estudos Enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. CampinasSP: Pontes: São Paulo: FAPESP, 2001. p. 7-25. ______. As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de.; FIORIN, José Luiz. (Orgs.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em torno de Bakhtin. 2. ed. 1. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. p. 11-27. BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Da Língua ao Discurso, Do Homogêneo ao Heterogêneo. In: BRAIT, Beth. (Org.). Estudos Enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. Campinas, SP: Pontes: São Paulo: FAPESP, 2001. p. 59-69. CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do 9

Revista do GELNE, PIAUÍ, n.12, v.1, 2010

Discurso. Coordenação de tradução Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2004. CUNHA, Dóris de Arruda Carneiro da. Discours Rapporté et Circulation de la Parole. Leuven/Louvain-la-Neuve: Peeters/Louvain-la-Neuve, 1992a. ______. Uma leitura da abordagem bakhtiniana do discurso reportado. In: Investigações Lingüística e Teoria Literária, Recife: UFPE, v. 2, p. 105-117. 1992b. ______. Discurso reportado e criatividade em narrativas infantis. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGÜÍSTICA (ABRALIN), 1., 1995, Salvador. Anais... Salvador: [s. n.], 1995. p. 1-5. (em disquete). ______. Bakhtin e a lingüística atual: interlocuções. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, Dialogismo e Construção do Sentido. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1997. p. 303310. ______. Vozes e gêneros discursivos na fala e na escrita. In: Investigações – Lingüística e Teoria Literária, Recife: UFPE, v. 8, p. 129-145. 1998. ______. O funcionamento dialógico em notícias e artigos de opinião. In: DIONISIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora. (Orgs.). Gêneros Textuais & Ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. p. 166-179. CUNHA, Dóris de Arruda Carneiro da. O discurso de outrem nos estudos da linguagem pósbakhtinianos. In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE BAKHTIN, 11., 2003, Curitiba. Anais... Curitiba: [s.n.], 2004a. p. 239-243. ______. Atividades sobre os Usos ou Exercícios Gramaticais? Uma Análise do Discurso Reportado. In: DIONÍSIO, Ângela; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Orgs.). O Livro Didático de Língua Portuguesa: múltiplos olhares. 3. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005a. p. 101-112. ______. Dialogismo em Bakhtin e Lakubinskii. In: Investigações – Lingüística e Teoria Literária, Recife: UFPE, v. 18, n. 2, p. 103-114, jul. 2005b. ______. A estilística da enunciação para o estudo da prosa literária no ensino médio. In: BUNZEN, Clécio; MENDONÇA, Márcia. (Orgs.). Português no Ensino Médio e Formação do Professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 117-138. (Série Estratégias de Ensino 2). ______. Visitando a interação na prosa literária. In: DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada, v. 24, n. 1, p. 105-123, 2008. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo: as idéias lingüísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez; Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1988. VAZ, Clara Araujo. Gênero do Discurso como Prática Social: as vozes dos leitores na construção do “box de correção”. 2007. 94f. Dissertação (Mestrado em Língua Portuguesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2008.

10

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

QUEM SABE/TALVEZ: UMA ANÁLISE VARIACIONISTA DA MODALIDADE EPISTÊMICA NO PORTUGUÊS ORAL CULTO DE FORTALEZA Klébia Enislaine do Nascimento e Silva* Izabel Larissa Lucena**

Resumo Este artigo tem como objetivo observar a manifestação da modalidade epistêmica em termos de variação das marcas modalizadoras talvez e quem sabe em três tipos de inquéritos: Elocução Formal (EF), Diálogo entre Informante e Documentador (DID) e Diálogo entre Dois Informantes (D2), no PORCUFORT (Português Oral Culto de Fortaleza). Adotamos, como referencial teórico, a Teoria variacionista Laboviana, que diz ser a língua um fenômeno condicionado por fatores linguísticos e sociais. Verificamos que o modalizador talvez constitui o item não-marcado (forma conservadora) e o quem sabe, o item marcado (forma inovadora). A análise quantitativa indica que o talvez expressa, com mais frequência, as noções de possibilidade/dúvida/incerteza relacionadas a fatos. O quem sabe, por outro lado, é usado para manifestar essas noções no âmbito da irrealidade (não-factualidade). Palavras-chave: Variação, Modalidade Epistêmica, PORCUFORT Abstract This article aims at observing the expression of epistemic modality in terms of variation in marks modalizers of who knows and maybe in three types of surveys: Formal speech (EF), Dialogue between Informant and Documenter (DID) and Dialogue between Two informants (D2) in PORCUFORT (Cult Oral Portuguese of Fortaleza). We adopted the theoretical variatio nist Labovian Theory, which asserts that language is a phenomenon conditioned by social and linguistic factors. We verified that the modal maybe consists of an unmarked item (conservative form) and who knows, of a marked item (innovative form). The quantitative analysis indicates that maybe expresses the notions of possibility/doubt/uncertainty related to facts more frequently. Who knows, on the other hand, is used to express these notions in the context of unreality (non-factuality). Keywords: Variation, Epistemic Modality, PORCUFORT

Considerações Iniciais A Teoria Variacionista postula ser a língua um fenômeno inerentemente variável. Nesse sentido, a língua deixa de ser vista como uma realidade exclusivamente linguística, para ser compreendida como um elemento dependente da estrutura social em que seus usuários se inserem. Com base nesse pressuposto, o presente trabalho visa a descrever e analisar o comportamento linguístico e social dos modalizadores epistêmicos talvez e quem sabe. *

Doutoranda em Linguística (UFC) [email protected] Doutoranda em Linguística (UFC) [email protected]

**

11

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

Para tanto, investigamos esses modalizadores a partir de três critérios linguísticos e um social. Em relação aos critérios linguísticos, analisamos a posição em que ocorre a marca modalizadora no enunciado (início, meio-fim e posição isolada), a presença ou ausência de outras marcas modalizadoras (subjetivas) no enunciado no qual aparecem os itens talvez e quem sabe e, por último, os modos realis e irrealis relacionados aos estados de coisas expressos na predicação. Quanto ao condicionamento social, verificamos em que tipo de registro é mais frequente o uso de tais formas. Utilizamos, para análise da regra variável modalidade epistêmica, inquéritos pertencentes ao PORCUFORT (EF, DID e D2). Fizemos uso, na investigação quantitativa dos dados, do programa GOLDVARB com o objetivo de respaldar nossas interpretações sobre o fenômeno aqui investigado. A hipótese geral que norteia essa pesquisa é a de que, na manifestação da modalidade epistêmica, os itens talvez e quem sabe constituem, respectivamente, a forma não-marcada e marcada, sendo esta última um item em processo de gramaticalização (mudança linguística), podendo funcionar, algumas vezes, como um advérbio de dúvida e, outras, como uma construção formada por pronome + verbo de significação plena, a depender dos propósitos do falante. Pressupostos Teóricos Variacionista Os estudos na perspectiva da Sociolinguística Variacionista estão orientados para análise da língua em uso. Sob essa ótica, usar a linguagem não constitui um fato meramente linguístico, mas cada instância de comunicação é, na verdade, um evento humano e, portanto, social e cultural. Labov (1972a) estabelece como objetivo principal para as pesquisas sociolinguísticas a investigação da língua como um sistema condicionado não apenas por fatores intrínsecos à langue, mas por fatores sociais. Esses fatores ora atuam simultaneamente ora agem isoladamente no uso de uma ou outra variante, entendida como duas ou mais formas alternativas de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto (LABOV, 1978). Nesse sentido é que se pode dizer que a Teoria Variacionista busca descrever e analisar as variações presentes no sistema linguístico e os processos de mudança linguística. Labov (op.cit) alerta para o fato de que as variáveis linguísticas constituem indicadores dos diferentes tipos de comportamento sociais e que alguns destes estão associados à mudança/variação. Vale lembrar que nem toda variabilidade na estrutura linguística envolve mudança, mas toda mudança envolve, necessariamente, variabilidade (WEINREICH, LABOV & HERZOG, 2006). Outro pressuposto importante, em tal teoria, é o reconhecimento da heterogeneidade linguística como uma característica inerente à língua. O pesquisador é levado, portanto, a examinar, de modo sistemático e não arbitrário, a língua como uma realidade heterogênea (inerentemente variável) e ordenada (inerentemente estrutural) (WEINREICH, LABOV & HERZOG, op. cit.). Essa perspectiva também rompe com a clássica dicotomia saussuriana sincronia/diacronia. Os processos de mudança e variação linguísticas passam a ser vistos na correlação entre sincronia/diacronia, dando origem a uma abordagem pancrônica que considera todo fato linguístico no sistema do qual faz parte e na história do próprio sistema linguístico (PAGLIARO, 1930, p.176 apud CAMARA, 1969, p. 45). No estudo da mudança linguística, Weinreich, Labov & Herzog (op.cit) estabeleceram alguns mecanismos que condicionam tal processo, a saber: transição, restrições, encaixamento, atuação e avaliação. A transição está relacionada à mudança de um estado de língua para outro, que é transmitida dentro de uma comunidade como um todo, e não de pai 12

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

para filho. As restrições, por sua vez, indicam as condições linguísticas ou extralinguísticas que determinam as possíveis alterações que podem ocorrer na estrutura linguística. O encaixamento diz respeito à correlação entre fenômenos em mudança. Busca-se, com esse mecanismo, explicar como determinadas mudanças desencadeiam outro tipo de mudança na estrutura sociolinguística. Na atuação, procura-se verificar como uma determinada variante se espalha em uma comunidade. Já na avaliação, o pesquisador procura avaliar qual é o significado social que os falantes atribuem às formas variantes. Com relação ao caráter da mudança linguística, Labov (1994) apresenta duas abordagens: i) mudança em tempo aparente e ii) mudança em tempo real. A primeira é vista como uma projeção que o pesquisador faz ao identificar uma situação de mudança em progresso. A segunda diz respeito ao aspecto diacrônico da língua. Segundo Tarallo (2001, p.70), “uma vez atestada a mudança com base em dados do tempo aparente, deve-se proceder a um encaixamento histórico da variável no tempo real”. À luz desses pressupostos teóricos, acreditamos que, na manifestação da modalidade epistêmica, as marcas modalizadoras talvez e quem sabe constituem variantes de uma mesma variável. Partimos da hipótese de que a marca talvez seja a variável conservadora e a marca quem sabe, a inovadora. Justificamos essa asserção devido ao fato de o item talvez funcionar apenas como um advérbio de dúvida enquanto que a marca quem sabe poder assumir duas funções distintas. A primeira está relacionada a uma construção com pronome interrogativo + verbo saber de significação plena; e a segunda, como advérbio de dúvida. Além disso, pressupomos que a motivação para o uso de uma ou outra variante esteja relacionada ao princípio de marcação, que diz ser o item não-marcado a forma mais frequente (comum) e a forma marcada a menos recorrente. Procedimentos Metodológicos Nos tópicos seguintes, apresentamos os procedimentos metodológicos gerais adotados no presente trabalho. Especificamos a regra variável analisada, o corpus utilizado, os grupos de fatores verificados, bem como a codificação-sistematização realizada para a investigação dos dados. a) Regra variável A modalidade epistêmica diz respeito ao eixo do conhecimento, da linguagem como informação. É uma categoria linguística que reflete a avaliação do falante1 sobre a probabilidade/possibilidade de um estado de coisas ocorrer. Nos termos de Quirk et al (1985), é o “julgamento humano do que é provável acontecer”, podendo ser situada em uma escala de conhecimento medida em graus que parte do absolutamente certo até o impossível (certo > provável > possível > improvável > impossível). Em relação à sua manifestação, a modalidade epistêmica pode expressar-se de diversas maneiras. Segundo Neves (1996a), pode codificar-se por meio de verbos plenos, categorias gramaticais (tempo/aspecto/modo), substantivos, locuções adjetivas e advérbios. Nesta pesquisa, consideramos que as marcas talvez e quem sabe podem assumir o mesmo valor de verdade no que tange à codificação do grau de possibilidade. Analisamos, portanto, a manifestação da modalidade epistêmica na variação de uso entre tais modalizadores. b) Corpus analisado

1

No presente artigo, usamos indistintivamente os termos falante e enunciador. 13

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

Para verificar a variação entre os modalizadores talvez e quem sabe, utilizamos amostras textuais do PORCUFORT (Português Oral Culto de Fortaleza), o qual apresenta três tipos de registros: Elocução formal (EF), constituído de palestras e aulas; Diálogo entre Informante e Documentador (DID), constituído de entrevistas; e Diálogo entre Dois Informantes (D2), constituído de conversas informais entre dois informantes com certa intimidade. Por ser um banco de dados representativo da fala culta fortalezense (todos os informantes têm nível superior completo e são naturais de Fortaleza), esse corpus nos permite analisar a variação de uso da modalidade epistêmica na oralidade. Para a coleta dos dados, utilizamos um total de 42 inquéritos pertencentes aos três tipos de registros (EF – 19; DID – 13; D2 – 10), procurando equilibrar o volume textual em cada tipo de inquérito (aproximadamente 110.000 palavras cada). Do corpus, coletamos um total de 105 ocorrências de manifestação da modalidade epistêmica (95 de talvez e 10 de quem sabe), as quais foram categorizadas e analisadas segundo os critérios linguístico e social. c) Definição dos grupos de fatores Uma análise sociolinguística variacionista efetiva-se por meio da explicitação de grupos de fatores que são controlados para a análise da regra variável. Sendo assim, elegemos quatro grupos de fatores – um social e três linguísticos – para o controle da utilização dos modalizadores talvez e quem sabe: a) Tipo de registro: ao observarmos esse fator, objetivamos verificar a frequência de uso dos modalizadores talvez e quem sabe nos diferentes tipos de registro (EF, DID e D2), de modo que seja possível analisar a influência do grau de (in)formalidade permitido pela interação social na manifestação de tais marcas. b) Posição no enunciado: esse grupo de fatores nos possibilitou constatar em que posição na oração são mais utilizadas as marcas talvez e quem sabe. Consideramos três variáveis2 para esse fator: i) início de oração, ii) meio-fim de oração e iii) posição isolada. c) Outras marcas modalizadoras no enunciado: esse grupo de fatores visa a analisar a presença ou ausência de marcas modalizadoras subjetivas nos enunciados3 em que ocorrem as marcas talvez ou quem sabe, tais como: acho que, sei que, acredito que, é possível que, é provável que etc. d) Possibilidade realis e irrealis: ao consideramos esse grupo de fatores, pretendemos analisar o uso das marcas talvez e quem sabe relacionadas a fatos reais ou irreais, ou seja, ao modo como o enunciador avalia a factualidade ou não-factualidade das possibilidades/dúvidas/incertezas que manifesta. Para tanto, ressaltamos que não concebemos apenas o fato de a predicação4 estar no modo indicativo ou subjuntivo, 2

Inicialmente, consideramos as posições início, meio, fim de oração e manifestação isolada das marcas talvez e quem sabe. No entanto, na rodagem dos dados no programa GOLDVARB, não foi verificada nenhuma ocorrência da expressão quem sabe em posição final (havendo knockout). Por outro lado, a marca talvez ocorreu nesta posição, o que nos levou a decidir pela amalgamação de dois fatores de posição, a saber: meio e fim na oração, já que a posição final para esta última marca parecer constituir regra categórica. 3 Assumimos que o enunciado está para o texto assim como a enunciação está para o discurso (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004). Dessa forma, consideramos, para análise deste grupo de fatores, não apenas as sentenças em que ocorreram as marcas talvez e quem sabe, mas todo o contexto de enunciação necessário para a construção do sentido do enunciado. 4 Segundo Dik (1989), a predicação se relaciona ao nível mais básico de constituição dos enunciados. Forma-se por meio de um predicado e seus termos, entidades referenciadoras. De modo geral, designa um estado de coisas, ou seja, algo que pode ocorrer em um mundo real ou imaginário. 14

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

mas todo o contexto de enunciação, uma vez não há, necessariamente, uma relação icônica entre indicativo e modo realis e subjuntivo e modo irrealis. d) Codificação/sistematização dos dados Na codificação dos grupos de fatores explicados na seção anterior, utilizamos a seguinte nomenclatura: i) variável dependente – (t) para talvez e (q) para quem sabe e ii) variáveis independentes – tipo de registro: (e) para EF, (i) para DID e (d) para D2; posição no enunciado: (n) para início de oração, (m) para meio-fim de oração e (s) para posição isolada; outras marcas modalizadoras no enunciado: (p) para presença e (a) para ausência; possibilidade realis e irrealis: (r) para realis e (l) para irrealis. O quadro 01, a seguir, resume essa codificação:

Quadro 01: Codificação dos dados Nº Modalidade Tipo de Posição no Outras marcas Possibilidade Ocorrência epistêmica registro enunciado modalizadoras 105 (t/q) (e/i/d) (n/m/s) (a/p) (r/l) Com o término da coleta dos dados, procedemos à análise estatística no programa GOLDVARB. Esse instrumental metodológico possibilita averiguar, com acuidade, a frequência de cada um dos grupos de fatores especificados anteriormente, bem como a relevância estatística de tais grupos, pois oferece, além de uma análise em percentual, a verificação dos pesos relativos5 para a interpretação da variação entre as marcas modalizadoras talvez e quem sabe. Análise e Discussão dos Dados Os resultados da tabela 01, a seguir, representam a verificação da utilização dos modalizadores epistêmicos talvez e quem sabe nos dados coletados no corpus: Tabela 01: Frequência das marcas modalizadoras talvez/quem sabe por tipo de registro N Inquérito EF (e) DID (i) D2 (d) Total de a ocorrências tabela Marca N % N % N % N % 01, 11 78.6 53 93.0 31 91.2 95 90.5 podem Talvez(t) 3 21.4 4 7.0 3 8.8 10 9.5 Quem os consta sabe(q) 13.3 57 54.3 34 32.4 105 100 Total de 14 tar ocorrências que, de (t) e (q) nos três tipos de inquéritos (EF, DID e D2), a marca talvez (90.5%) ocorreu com maior frequência em relação a quem sabe (9.5%). Esses dados corroboram com a hipótese postulada no início deste trabalho, que diz ser aquela a forma não-marcada e esta a marcada. Isso pode ter ocorrido devido ao fato de o modalizador quem sabe ser uma forma que está ainda em um estágio inicial de mudança linguística (gramaticalização). Essa forma pode passar, em 5

Os pesos relativos indicam ao pesquisador que grupos de fatores se aplicam ou não à regra variável, ou seja, quais grupos são significativos. Além disso, os pesos relativos variam em uma escala de o a 1,0 enquanto os percentuais variam em uma escala de 0 a 100. 15

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

determinados contextos, a ser reanalisada como um advérbio de dúvida, deixando de funcionar como uma construção composta por uma forma gramatical e outra independente (item gramatical + item lexical pleno: pronome interrogativo + verbo de cognição). Além disso, essa frequência revela que os falantes tendem a optar mais pela forma conservadora (talvez) em vez da inovadora (quem sabe). Dentre os três tipos de registro, o modalizador talvez apresentou maior frequência nos inquéritos DID (54.3%) e D2 (32.4%). Isso demonstra que, na Elocução Formal (EF), predomina a certeza. Os enunciadores desse tipo de registro optam, portanto, por construírem enunciados em que o grau de certeza é maior que à dúvida. De certa forma, tal resultado já era esperado, uma vez que a EF é constituída por palestras e aulas. Vejamos as ocorrências (01) e (02), a seguir: (01) Doc. 1 e:: a medicina... ela não tem assim... nenhuma perspectiva de quando vá surgir realmente uma vacina assim eficaz contra a AIDS?... Inf. - acho que eficaz mesmo ... talvez demore um pouco ainda ... eh:: (DID01:07)6 (02) Doc. - o que é aí? que a gente {pode dizer ? Inf. - ((tosse)) não não não tem nada a ver apenas o:: o sinistro como nós chamamos né? no no no nosso ramo ele::: eu posso dizer que o sinistro é:: uma das características princiPAIS duma pessoa que é considerada superdotada... certo? ((riu)) eu num /tô querendo dizer... que todo sinistro é superdotado ((fala rindo)) certo?... mas isso é uma vanTAgem que vocês têm né? você me disse que é canhota tudo o mais... então quem sabe que você não é uma superdotada? (DID21:02)

Nas ocorrências (01) e (02), podemos verificar que os modalizadores talvez e quem sabe indicam a avaliação que os enunciadores fazem em relação ao grau de possibilidade de ocorrerem os estados de coisas expressos nas predicações. Em (01), o informante, ao mesmo tempo em que manifesta uma opinião subjetiva (acho que), avalia como possível o fato de uma vacina eficaz contra a AIDS demorar ainda a ser elaborada. No exemplo (02), o falante indica a possibilidade de a documentadora ser superdotada. A avaliação expressa em (02) parece demonstrar um estado de coisas mais factual (real) que o manifestado em (01). O informante da ocorrência (02) afirma que todo sinistro é superdotado, assim, como a documentadora é canhota, é bem possível que ela seja superdotada. Por outro lado, a avaliação feita pelo falante em (01) apresenta-se no âmbito da não-factualidade, uma vez que o predicado que faz parte da predicação encaixada está no modo irrealis e indica algo menos possível de acontecer. Em relação à posição no enunciado, os itens talvez e quem sabe ocorrem mais nas posições inicial (57.1%) e meio-fim (37.1%). Lembramos que não foram encontradas ocorrências da marca quem sabe na posição final, o que nos levou a optar pela amalgamação dos fatores de posição meio e fim, como podemos observar na tabela 02, a seguir:

6

A codificação (DID01:07) significa: tipo de registro, número do inquérito em que foi encontrada a ocorrência e número da ocorrência no tipo de registro. 16

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

Tabela 02: Frequência de talvez/quem sabe conforme a posição que aparecem no enunciado Posição Início (n) Meio/fim (m) Isolado (s) Total de ocorrências Marca N % N % N % N % 53 88.3 38 97.4 4 66.7 95 90.5 Talvez(t) 7 11.7 1 2.6 2 33.3 10 9.5 Quem sabe(q) 57.1 39 37.1 6 5.7 105 100 Total de 60 ocorrência s de (t) e (q) É interessante notar que a posição isolada é pouco frequente, revelando que esses itens talvez e quem sabe incidem, mais comumente, sobre a predicação. Outro aspecto que podemos ressaltar é o fato de os modalizadores talvez e quem sabe poderem ocorrer associados ao marcador discursivo né na posição isolada. Isso acontece quando o falante deseja enfatizar sua dúvida ou mesmo “solicitar” uma confirmação desta ao interlocutor. Vejamos as ocorrências, a seguir, que exemplificam esse grupo de fatores: (03) Lado DIREITO numa linguagem psicanalítica falando é um LAdo de razões é um lado que trabalha somente com razões e o lado esquerdo é um lado muito emotivo muito sentimental... CERTO? quem sabe você não /tá trabalhando só seu lado sentimental ((fala rindo)) (DID21:03) (04) Inf. o cinema brasiLEIro quando começou o cinema nacional teve muita dificuldade né?... que que /tava mal começando a produção... aí teve que passar pro cinema sonoro isso foi u::ma um problema uma {dificuldade muito grande Doc. de equipamento mesmo Inf. - então o problema de equipamento o público:: tinha dificuldade de... de ouvir:: num entender às vezes... Doc. - {(sei) Inf. - porque o... não só... o som do dele talvez num fosse BOM como também o som do cinema né? (DID15:48) (05) Talvez você tenha razão... talvez ele tenha chaMAdo de TRANsitividade morfológica por causa da FORma como se manifesta... DE e:: MUda né? de língua pra língua... talvez seja isso... ( )... (EF25:09) (06) Inf. 1 - agora:: o que eu{ VEjo... é o... é o padre A. Inf. 2 quem que vai fazer a a?... padre A. Inf. 1 - é... ele tem muita ad{miração:: pelo padre A. Né? Inf. 2 uhn uhn... é... quem sabe né?... (D239:01)

As ocorrências (03), (04) e (06) ilustram, respectivamente, as posições inicial, meiofim e isolada. É importante ressaltar que consideramos como posição inicial o fato de a marca aparecer antes do sujeito da oração em que ela ocorre. Quanto à posição meio-fim, esta foi 17

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

classificada quando o modalizador se apresentou entre o sujeito e o verbo ou no final de toda a oração. A posição isolada, por sua vez, foi considerada quando o item apareceu sozinho ou acompanhado de um marcador discursivo, o qual exerce uma função discursiva e não gramatical (elemento extra-oracional). Em (05), temos um caso de repetição da marca modalizadora talvez no início de cada oração. O falante reforça, em seu enunciado, a dúvida em relação ao fato de a transitividade ser um critério morfológico. Isso ocorre devido à hesitação própria da oralidade. No que diz respeito à presença ou ausência de outras marcas modalizadoras no enunciado em que aparecem os itens “talvez” e “quem sabe”, constatamos que existe uma maior tendência de esses advérbios constituírem a única marca de possibilidade/dúvida/(in)certeza presente no enunciado (79.0% de ausência), como podemos observar na tabela 3, a seguir:

Tabela 03: Frequência de talvez/quem sabe segundo a outras marcas modalizadoras no enunciado Presença (p) Ausência (a) Marca N % N % 21 95.5 74 89.2 Talvez(t) 1 4.5 9 10.8 Quem sabe(q) 21.0 83 79.0 Total de 22 ocorrências de (t) e (q)

presença ou ausência de Total de ocorrências N % 95 90.5 10 9.5 105 100

Assim, quando há a presença no enunciado de outras marcas modalizadoras em que ocorrem os itens talvez e quem sabe, elas aparecem associadas, em geral, às construções complexas com verbos de cognição, indicando crença ou opinião, mais especificamente àquelas em que se dá o encaixamento de orações completivas objetivas diretas. Nesse caso, o advérbio aparece na oração encaixada que exerce a função de objeto direto da primeira oração, como podemos verificar na ocorrência (07) apresentado adiante: (07) Inf. é o nome é... eu sei que era já ((ruído)) feito com algodão costurado e tudo num era esse sutiã que... são leves hoje em dia né? SÓ o o MAlho né?... não ali eles já eram FEIto... como se fosse como um colchão... num tem o colchão por isso que eu chamo alcochoa/ alcochoado eu num sei o nome bem... então eles... e/ eram feita de ( ) {só usar Doc. espartilho não? Inf. - ...não espar{tilho era era Doc. não é::...é dife{rente Inf. - é é aqueles ferrinho/ que botaram tam{bém pra deixar bem Doc. é mais antigo Inf. - ...de/ mas e tinha os espartilhos também né? era {colocado Doc. uhn Inf. - ...pra deixar bem pontiagudo mesmo sabe?... Doc. - uhn Inf. - então QUANto mais pontiagudo seu peito quanto mais assim né?... bem... mais solicitada você você mais era bem vista aí fulana é LINda sabe?... eh eu acho que talvez na época era a parte do corpo emBOra... já tivesse aquela coisa do ideal da mulher bem feita... Doc. - uhn (DID12:37) 18

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

No exemplo (07), o falante, além de expressar uma opinião subjetiva, avalia, em termos de seu conhecimento, o grau de possibilidade de sua afirmação (a mulher de seios pontiagudos era a mais bem quista na época em que a informante era jovem). Podemos dizer que, nesse caso, o informante avalia duplamente seu enunciado tanto em relação ao nível de comprometimento como ao grau de certeza. Como observamos, na tabela 03 apresentada anteriormente, o número de ocorrências desse tipo é menos frequente. Isso revela que, na oralidade, predomina a economia linguística. O falante prefere optar por avaliar seu enunciado ou em termos de seu nível de (des)comprometimento ou de seu grau de (in)certeza. Quanto ao modo realis e irrealis, verificamos que ambos os itens analisados, neste trabalho, podem aparecer em enunciados no modo realis (55.2%) e irrealis (44.8%), tal como mostra a tabela 04, a seguir: Tabela 04: Frequência de talvez/quem sabe conforme o modo realis e irrealis Possibilidade/d Realis (r) úvida/incerteza Marca N % 56 96.6 Talvez(t) 2 3.4 Quem sabe(q) 55.2 Total de 58 ocorrências de (t) e (q)

Irrealis (l)

Total de ocorrências

N 39 8 47

N 95 10 105

% 83.0 17.0 44.8

% 90.5 9.5 100

No modo realis, as afirmações são apresentadas como pertencentes ao universo factual (são pressuposições do falante). Por outro lado, no modo irrealis, estas assumem um caráter de menor certeza, uma vez que constituem hipóteses do falante, tal como exemplificam, respectivamente, as ocorrências (08) e (09) adiante: (08) Inf. 1 e/... então eu fico pensando... o o engenheiro ah então eu fui até::a::a::a quitanda lá pra comprar umas laranjas e umas... verdura fruta aqui em casa... E:: o rapaz /tava me dizendo... a senhora veja...”quem mais trabalha AÍ são esses operários... porque passam o dia TOdim neste sol... desde sete horas da manhã aTÉ à noite... até cinco seis horas... são Eles ali... eh:: tirando aquela areia é verdade que tem aquele:: aquela pá mecânica... mas eles estão LÁ empuRRANdo soCANdo... E... olha aí comé que eles come? o engenheiro vem aqui talvez sendo uma vez por semana... no carrão dele ba/ “eh o rapaz falando pra mim né?... chega na:: e::... bota o Carro AÍ... num vai lá olha e tal......vem aquele... apontador ”que ele chamou apontador... “e MOStra a Ele o serviço:: conversa com ele ali ele num passa nem meia Hora... aqui na obra... (D2239:26) (09) ... eu prefiro acreditar que o universo seja uma serpente engolindo a própria cauda ( )... porque aí não terá sentido... é o sistema estelar... AÍ QUEM sabe se um DIA o tão combatido Aristóteles que resolvia tudo dizendo “isso É porque É”... volte a... ao IBOPE... né? (EF53:02)

A ocorrência (08) constitui um caso de avaliação de uma pressuposição do falante. O informante compara o fato de os operários de uma obra terem uma rotina de trabalho dura e 19

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

pesada enquanto o engenheiro responsável, que aparece uma vez por semana no local da construção, trabalha bem menos. É importante perceber que o talvez assume, na fala do enunciador, uma valor axiológico cujo objetivo é orientar a construção de uma imagem negativa do engenheiro da obra pelo interlocutor. No exemplo (09), percebemos que a avaliação do falante não recai sobre um fato, já que o enunciador avalia, no âmbito das ideias e não dos fatos, a possibilidade de o pensamento de Aristóteles um dia voltar a ter a mesma influência de outrora. O fato de o falante avaliar seu enunciado, seja a partir de uma pressuposição ou de uma hipótese, constitui um traço distintivo com relação ao uso das marcas talvez e quem sabe no corpus analisado. Isso pode ser reforçado ao verificarmos a alta frequência do item quem sabe no modo irrealis (8 ocorrências de 10). Por outro lado, o talvez ocorreu mais no modo realis (56 ocorrências de 95). Isso pode demonstrar que o talvez é mais utilizado para indicar fatos enquanto que o quem sabe para asserções pertencentes ao universo da irrealidade (nãofactualidade). Considerações finais Neste trabalho, consideramos a hipótese de que, na manifestação da modalidade epistêmica, os itens talvez e quem sabe constituem, respectivamente, a forma não-marcada e marcada. Pudemos constatar que, nos três tipos de inquéritos do PORCUFORT (EF, DID e D2) investigados, a marca talvez ocorreu com maior frequência em relação a quem sabe, o que corrobora positivamente para a confirmação de nossa hipótese. Isso pode ser explicado pelo fato de o modalizador quem sabe ser uma forma que está ainda em processo de mudança linguística, podendo funcionar, a depender do contexto e dos propósitos enunciativos do falante, ora como uma construção composta por uma forma gramatical e outra independente ora como um advérbio de dúvida. Além disso, verificamos que essa alta frequência de talvez revela que os falantes tendem a optar mais pela forma conservadora que pela inovadora. Em relação aos três tipos de registro, constatamos que o modalizador talvez apresentou maior frequência nos inquéritos DID e D2, mostrando que, na EF, predomina a certeza. Quanto ao grupo de fatores posição, os itens talvez e quem sabe ocorreram mais nas posições inicial e meio-fim. Lembramos também que não aconteceram casos, em nosso corpus, de quem sabe na posição final, o que nos levou a optar pela amalgamação dos fatores de posição meio e fim. Na análise do grupo de fatores presença ou ausência de outras marcas modalizadoras no enunciado, constatamos que há uma tendência de os advérbios talvez e quem sabe constituírem a única marca de possibilidade/dúvida/(in)certeza presente no enunciado. No que diz respeito aos fatores realis e irrealis, pudemos observar que esse grupo de fatores constitui um importante traço distintivo entre os modalizadores talvez e quem sabe. Aquele é mais utilizado para afirmações factuais enquanto este para asserções pertencentes ao universo da não-factualidade.

20

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

REFERÊNCIAS DIK, C.S. The theory of functional grammar. Parte 1: The structure of the clause. Dordrecht: Foris Publication, 1989. CÂMARA, J. M. Princípios de Linguística Geral, 4 ed. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1969. CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, P. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. LABOV, W. Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972A ______. Principles of linguistic change. Internal factors. Oxford: Blackwell, 1994. NEVES, M. H. de. O ensino da gramática. São Paulo: Linha D’Água, 1996A. QUIRK, R., GREENBAUM, S., LEECH, G. and SVARTVIK, J. A comprehensive grammar of the English language. London: Longman, 1985. TARALLO, F. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 2001. WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. I. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. Tradução: Marcos Bagno. São Paulo, Editora Parábola, 2006.

21

Revista do Gelne, Piauí, V.12, n.1, 2010

BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS EM NARRATIVAS PESSOAIS: INVENTÁRIO E ANÁLISE LEXICAL Maria Helena de Paulo*

Resumo Este estudo toma o léxico em sua interrelação com a cultura de um povo, em especial do povo rural do sudeste goiano. A teoria lexical (BIDERMAN, 2001) fundamenta o inventário e a análise dos signos lexicais para brincadeiras e brinquedos infantis, no corpus das narrativas pessoais de idosos do município de Catalão-GO. É, pois, este estudo de natureza lexicológica e tem o intento de contribuir para os estudos lingüísticos, notadamente para os estudos do léxico do português. Palavras-chave: Brinquedos, Brincadeiras, Inventário, Léxico.

Abstract This study takes the lexicon in its interrelation with the culture of a people, especially the rural people of southeastern Goiás. The lexical theory (BIDERMAN, 2001) is the conceptual basis for build an inventory and an analysis of lexical signs for games and child toys, considering as corpus personal narratives of elderly from Catalão-GO. It is, therefore, a study of lexicological nature and aims at contributing for linguistic studies, especially for studies of Portuguese lexicon. Keywords: Toys, Games, Inventory, Lexicon.

Palavras iniciais O presente estudo tem sua origem em uma investigação sobre as memórias de idosos sobre o mundo dos brinquedos e brincadeiras de infância, integrantes do corpus publicado em Paula (2007). O corpus apresenta o levantamento de mais de mil signos léxicos, que recobrem conceitos distintos do mundo rural, aventado nas narrativas de memórias pessoais; este denso conjunto de signos não permitira os aprofundamentos em todos os campos conceituais inventariados sob o risco de uma abrangência pouco funcional para o estudo léxico das narrativas. Desta feita, muitos conceitos de nomeação e significação do mundo dos narradores não puderam constar nos micro-campos apresentados na tese em que consta o corpus. Dentre estes campos apenas inventariados e não recobertos por análise, está o campo conceitual “O Homem, ser social”, subespecificado em “Diversão”. É a este campo conceitual, inventariado a partir do Sistema Racional de Conceitos, proposto por Hallig e Wartburg (1963) e adotado na investigação a que recorremos para fundamentar o estudo que ora apresentamos. A opção por narrativas orais para o trabalho de investigação do léxico em sua estreita relação com a cultura nele expressa, especialmente de uma comunidade rural, se justifica por entender que as histórias de vida transportam memórias e saberes *

Professora Doutora do Departamento de Letras da UFG [email protected] 22

Revista do Gelne, Piauí, V.12, n.1, 2010

espontaneamente e, por isso, podem ser um expediente metodologicamente fiável para o inventário de realizações léxicas que estabeleçam interdependências com as práticas culturais dos narradores. Os textos das narrativas estão eivados de memórias que buscam resistir ao tempo e às pressões dos não-ajustamentos dos homens e mulheres de vida rural, em relembrança de suas lidas de roça em que sobreviver era a preocupação mais urgente. A proposição do estudo Pretendemos apresentar alguns signos lexicais das narrativas pessoais de senhores e senhoras, de experiências rurais em Catalão, inventariados para a conceituação do seu mundo infantil até os anos 1950. É, ainda, nossa intenção tecer rápida análise destes signos com o contexto sóciocultural das crianças da época, os senhores narradores de nossa pesquisa, considerando como o trabalho é referencial para estes senhores e senhoras não apenas para tecerem sua identidade de agora, mas, também, para os simbolismos de sua vida de criança, quando tratam de suas brincadeiras e brinquedos. Objetivamos, também, estabelecer relação entre a memória de senhores e senhoras em suas narrativas com o lugar dado à infância e suas configurações mais salutares, como o ato de brincar e o contato com os brinquedos – a sua criação, por reinvenção ou aproveitamento de objetos culturais relevantes na vida dos narradores. A apresentação de excertos narrativos intenta, ainda, demonstrar o contexto da realização léxica dos signos que recobrem o ato de brincar, em idos do século passado. De cultura, léxico e memória É o léxico o conjunto organizado de signos para a categorização e nomeação da realidade que, em seus limites imprecisos, que faz significar, associar sentidos, resgatar e recriar valores, ampliar e reordenar significações. Por isso, o compósito léxico não passa imune a tantas peripécias dos sistemas sociais e lingüísticos em que residem os fatos de cultura servidos pelos usos lexicais e os fatos da língua constantemente sendo definidos pelos acontecimentos culturais. Assevera Biderman (2001) que

O Léxico de qualquer língua constitui um vasto universo de limites imprecisos e indefinidos. Abrange todo o universo conceptual dessa língua. Qualquer sistema léxico é a somatória de toda a experiência acumulada de uma sociedade e do acervo da sua cultura através das idades. Os membros dessa sociedade funcionam como sujeitosagentes, no processo de perpetuação e reelaboração contínua do Léxico da sua língua (BIDERMAN, 2001, p. 179).

Embora signifique a realidade, o léxico é, ainda, mais estável e imune às peripécias sociais, não conseguindo (e não podendo!) acompanhar as dinâmicas sociais que ele nomeia, sob o risco de a cada nova cultura ou novo momento das culturas de um povo ou nação ter uma nova ou uma língua bastante alterada. Segundo Sapir (1969),

Os elementos culturais, que servem de maneira mais definida às necessidades imediatas da sociedade e entram mais claramente no campo da consciência, não só hão de mudar mais rapidamente do que 23

Revista do Gelne, Piauí, V.12, n.1, 2010

os elementos lingüísticos, mas a própria forma da cultura, que dá a cada elemento a sua significação relativa, há de ficar num processo contínuo de remodelação. Os elementos lingüísticos, por outro lado, embora em si mesmos possam ter, e tenham, rápidas mudanças, não se prestam facilmente a reformulações, devido ao caráter subconsciente da classificação gramatical.(...) Em outras palavras, a tendência conservadora se faz sentir muito mais profundamente nos lineamentos essenciais da língua do que na cultura (SAPIR, 1969, p. 60-1). É assim que no léxico se inscrevem as memórias de uma cultura expressa em uma dada língua, mais notadamente do que se mostra, indubitavelmente, em outros níveis do sistema semiológico. Deste modo, descrever o léxico de um povo ou de uma comunidade lingüística específica, ou parte dele, como pretende este estudo com o vocabulário dos brinquedos e brincadeiras, é, então, uma maneira de emergir as memórias que ele registra. É, pois, uma tentativa de trazer os saberes sobre a infância e suas estratégias de diversão, em eras de tamanha luta por sobreviver, quando o trabalho permeava todas as instâncias da vida, de adultos e crianças, mesmo em circunstâncias das brincadeiras infantis, em sonhos de diversão tolhidos pela sobrevida gritante e urgente. Assim, assume-se, aqui, que descrever e propor uma análise das memórias via estudo do léxico é uma tentativa

de alguma forma, ao controle do passado (e, portanto, do presente). Reformar o passado em função do presente via gestão das memórias significa, antes de mais nada, controlar a materialidade em que a memória se expressa (das relíquias aos monumentos, aos arquivos, símbolos, rituais, datas, comemorações ...) (SEIXAS, 2001, p. 42).

Estas memórias tornam-se uma tentativa de controle do passado e uma reformulação do (e no) presente, nas narrativas, porque são traduzidas em linguagem, em signos léxicos nas construções lingüísticas. São estas memórias, reveladas nos signos cadenciados nas seqüências narrativas, que revelam os rastros da cultura que as sustem e as tornam possíveis e, também, que elas possibilitam. As narrativas ativam, de certo modo, memórias de um passado que se pretende controlar e reformar, colocando na ordem do que se desejava ou deveria ter sido para a pragmática da vida. Para Gagnebin (2001), a memória

também significa uma atenção precisa ao presente, particularmente a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente (GAGNEBIN, 2001, p. 91).

24

Revista do Gelne, Piauí, V.12, n.1, 2010

Procedimentos do estudo As narrativas que servem ao estudo aqui apresentado foram coletadas observando o que Labov (1983) chamou de situação de uso vernacular da língua. Foi no estilo com a mínima atenção no discurso que foram buscadas as histórias dos narradores sobre suas infâncias. Ao contarem sobre o modo como brincavam e com que brincavam, muitos deles se ressentiam da vida de trabalho que levaram desde a infância. Outros, por sua vez, reviveram e reelaboraram suas memórias no presente da narrativa, reinventando esta fase de suas vidas. O procedimento para o inventário obedeceu ao proposto por Hallig e Wartburg (1963), no seu Sistema Racional de Conceitos, associando os signos que conceituam sistematicamente o mundo, na tentativa de significar ordenadamente o que se conhece, ou o mundo cognoscível, nas palavras de Biderman (2001). A análise rápida empreendida aqui se fez assentada na perspectiva da relação inquestionável entre língua e cultura, e toma especialmente o nível léxico, como ensinam Benveniste (1989) e Sapir (1969), por entender, como considera este autor,

Que o léxico assim reflita em alto grau a complexidade da cultura é praticamente um fato de evidência imediata, pois o léxico, ou seja, o assunto de uma língua, destina-se em qualquer época a funcionar como um conjunto de símbolos, referentes ao quadro cultural do grupo. Se por complexidade de uma língua se entende a série de interesses implícitos em seu léxico, não é preciso dizer que há uma correlação constante entre a complexidade lingüística e a cultural (SAPIR, 1969, p. 51).

O inventário aqui apresentado não comporta todos os signos aventados no corpus organizado por Paula (2007). Na seção que segue, apresentaremos alguns destes resultados e suas discussões. Resultados e discussões Para o inventário que apresentamos consideramos que o ato de brincar cria a brincadeira e os brinquedos, numa esperada relação sistematicamente conceitual, não sendo possível aos narradores enunciarem o item brincar sem que enunciassem os itens relativos às brincadeiras da época. Acerca das brincadeiras, selecionamos alguns itens que seguem e que representam o imaginário infantil dos narradores: Cavalo de pau, Negócio de jogar bola, Bola, Campozinho, Campo, Campinho, Brinquedinho bobo, Brinquedinho de roça, Brincar com uns boizinhos, Roçar, Boizinho de sabugo, Turma de brincar, Cambuiar com os bois, Boi de carro, Fazer curral, Apartar vaca, Fechar com umas linhas, Curral de linha, Sair para o cerrado, Boizinho de pau terra, Ir para o ribeirãozinho, Tomar banho, Pescar, Carrinho de brinquedo, Cozinhadinho, Bater de mentirinha, dentre outros. Os narradores que evocaram suas memórias sobre suas vidas de outrora, no que concerne à vida de criança e ao modo como e com que brincavam, eram meninos e meninas que, nas raras horas vagas, se davam às brincadeiras que se assemelham ao seu mundo precoce de trabalho. É assim que o menino candeeiro, quando lhe sobrava tempo, gostava de Brincar com uns boizinhos, de Cambuiar com os bois, em um tênue limite entre o que era seu trabalho 25

Revista do Gelne, Piauí, V.12, n.1, 2010

infantil e o que era sua imaginação quando brincava de Boi de carro. Este senhor conta que, por vezes, candiava brincando, embora a tarefa de candiar fosse da mais alta responsabilidade porque era o menino-guia que dava a direção dos bois cambuiados ou cangados e se responsabilizava pelo sucesso da viagem do carro-de-boi. Veja-se o excerto: Brincava [as]sim1, uns brinquedim bobo, né? Da roça, né? É, brinquedim de roça. Ah, é brincá c’uns boizim … roçano, esses trem, né? Boizim de sabuco … fazi … nói[s] tinha a tuima de brincá lá [as]sim, fazê essas coisa. Cambuiava co el[e]s, qu’era boi de carro, né? Ota hora fazia um curral, apaitava, diz qu’era vaca, né? Era essas coisas, né? Não, fechava c’umas linha. Robava, pegava as linha lá da véia e fazia os curral de linha, né? É, no quintal, ota hora nóis saía po cerrado lá [as]sim po[r] disbaixo dos pau, né? A véia era mui bastante braba. A gen[te] pegava aque[le]s boizim de pau terra, de pau santo, né? Tem uns miúdo, né? E, fazia aquilo e, quando era boi nói[s] punha chifre ne[le]s e incambuiava, diz qu’era boi de carro, né? Cangava, né? Ota hora vaca … punha [a]que[le]s miudim era bizerro, né? E os grande era vaca, né? (PAULA, 2007, p. 212).

O narrador do fragmento acima relata ainda como se divertiam quando os meninos estavam folgados dos serviços da roça, em uma memória alusiva ao seu trabalho e suas relações sociais como dar nomes, batizar e estabelecer os laços de compadrio, próprios da cultura rural da época narrada, aproximadamente os anos quarenta do século passado no sudeste goiano. Nota-se a inexistência de brinquedos como hoje se conhecem e a inventividade das crianças para dar a um banho de reberãozim o matiz de um brinquedim de que gostavam os infantes de outrora. O fragmento seguinte esclarece nossas considerações:

Ah é! Quando nóis tava foigado [as]sim tinha dia que juntava o ternim assim e brincava o dia interim lá, fazeno o brinquedo, né? Pois é, não é … (risos) Fazi … achava qu’era o fazendero, né? Juntava [a]quele monte de boizim, diz qu’era vaca tav’aí, né? É … batizava os minino dos oto assim (risos), fazia os brinquedo [as]sim batizava, né? Diz qu’era minino. É tudo [faz de conta], é. Ah, nessa ép[oc]a tinha uns…deiz ano mais o meno, né? Nessa ép[oc]a qu’eu brincava, né? (...) Não, num tinha, quais[e] qu’era esses brinquedim assim, esses negócio de jogá bola essas coisas nunca gostei disso, né? Não, essas coisa assim, né? Num tinha muito brinquedo não. (...) Isso nóis gostava, i[r] pos reberãozim tomá banho, né? Não, pescá pescava mais era poco n’era muito não. Nosso brinquedo quais[e] qu’era isso memo, né? É, num tinha mais brinquedo não, era só essas coisas, né? Carriá [as]sim, fazê os carrim de brinquedo, era os boizim, ota hora, oto dia era [a]partá as vaca, né? (risos). Ficava vurvido2 o dia intero c’aquilo. Pois é! (...) e o dia que nóis tava de foiga involvia o dia intero c’aquilo (PAULA, 2007, p. 212). 1

Os critérios utilizados para a transcrição das narrativas orais cujos fragmentos apresentamos neste estudo encontram-se em Paula (2007, p. 40-44). 2 Vurvido é uma forma variante de envolvido. 26

Revista do Gelne, Piauí, V.12, n.1, 2010

Em outro momento da narrativa, o senhor afirma que não gostava de brincar, forçado, certamente, pela necessidade de ajudar a mãe na fazeção de farinha para sustentar a família. Confira-se:

É que eu toda vida em desde piqueno sempe trabaiava, né? [...] Trabaiava. Eu em desde a idade de deiz ano eu dava um jeito de trabaiá, né? Ah, saía mais minha mãe. Tinha uma fazeção de farinha. Eu ia ajudá ela, né? Ela ia pos oto assim, relava de mais assim … agora eu ia pa lavá mandioca, né? Ficava o dia intero dento d’água lavano mandioca. [...] E trabaiava o d’interim dento do rego lá, lavano mandioca pa ganhá um lito de farinha. Cê pensa que que era as coisa, né? É. E era um di[a] interim e era trabaiado, poque eu num … toda vida eu num gostei de brincá, né? Inzoná. Trabaiava o di[a] interim pa ganhá um lito de farinha pa levá pra casa pa cuidá dos mais novo, né? Qu[e] os oto era piqueno. Não … um lito de farinha (...) numa casa assim de quato cinco pessoa, é poca coisa, né? (PAULA, 2007, p. 212-213).

Outros narradores, homens e mulheres, aludem às brincadeiras que se conhecem hoje como Cavalo de pau, Negócio de jogar bola, Bola, Campozinho, Campo, Campinho, gangorra. No entanto, no contexto de suas narrativas, vê-se que não são as mesmas brincadeiras, pois os objetos de brincar e a sua configuração cultural eram outros. É assim que o cavalo de pau era, literalmente, feito de pau, sobre o qual se colocavam na representação do que faziam seus pais ou outras pessoas maiores ao montarem em um cavalo e saírem para a lida da roça. Vale lembrar que possuir um cavalo para muitos destes narradores era um luxo, uma vez que contam que não possuíam outro meio de locomoção para suas roças além da força de seu corpo, nas léguas de lonjura. As bolas com que jogavam no campozinho à porta de casa, com a turma de brincar, eram feitas de bexigas suínas cheias de vento e cobertas com o leite de gameleira ou, preferencialmente, de mangabeira. Assim, as bolas quicavam e duravam mais, além de suprirem a total ausência de condições para aquisição das bolas feitas para o futebol, já populares à época. As gangorras da época em nada lembram as dos parques infantis de hoje: constituíam-se de um pedaço de madeira, ou tábua, inteiriça, sobre cujas pontas sentavam-se as crianças que se contrabalançavam com seus pesos. Ao movimento de subir com o peso do outro e de abaixar-se para levantar o outro na ponta da tábua dá-se o nome de gangorrar ou gangorrear. Vejamos o fragmento da narrativa de uma senhora: Quan[do] ... temp’ que nóis er’ piqueno nóis gostava de b[r]incá muito assim, b[r]incá de gangorra, aí aquel[a] gangorra lá [as]sim, muntava saía b[r]incan’, tocava de roda c’aquela gan[gorra] fazen[do] caí, né. Os mais piquen’ caía (risos). B[r]inquei de cangorra, de balango. Balango. No cipó. Ele era bera do corgo, assim parecen’ um (incompreensível) bastava um tongo3 pa mim pará. É, é. Os minin' 3

Tongo por tombo. 27

Revista do Gelne, Piauí, V.12, n.1, 2010

impurrava nóis assim, nóis ia atravessava os corgo (risos). Uai, fia. Finca um tongo4, um tongo, um pau, um pau assim, ó, no chão, e ruma, e ruma um pauzão cumpido cum’ daqui ali e ... tamãe que qué e fura, fura o pau no mei assim e põe arame im cim’ da daquel’ pau, aquel’ pau e vai tocá a gangorra de roda, ũa hora era de roda, ôta hora assim (risos).5 Ah! senta doisi, um, dois de cada, de cada lado, logo ca ... logo a gangorra subia assim, ó. Ah! os minino [faziam a gangorra] Er’ os minino mais véi, mĩ fia. [Brincava] Até ficá tonto, né? Balangá. De cavalo de pau (risos) (PAULA, 2007, p. 266).

É certo que as crianças também representavam nas horas de folguedos ações que executavam nos seus mundos de pequenos adultos como quando os senhores narram o Fazer curral, Apartar vaca, Fechar com umas linhas, Curral de linha como formas de brincar com as quais se envolviam nas escassas horas em que lhes era permitido, pelos pais e pelo corpo cansado, brincar de criança. Nota-se que brincar de fazer curral, de apartar vacas no curral, de fechar o curral com umas linhas é transferir para a representação da criança o trabalho como se ele fosse brincadeira. Provavelmente, as crianças não brincavam porque trabalhavam, porque não sabiam como brincar de outra forma e com outros brinquedos porque não os conheciam e não havia as turmas de brincar. Faltando-lhes convivência com outras crianças, brinquedos, tempo e permissão para brincar o que restava a estas crianças seria transformar estas experiências de simbolização em memórias de brincar de trabalho. A brincadeira infantil como representação de seu mundo e a configuração cultural que o caracteriza se fazem notar também quando narram que sair para o cerrado à caça de boizinho de pau terra para a composição de seus currais de brinquedo ou quando narram que ir para o ribeirãozinho para tomar banho ou pescar eram outras formas de diversão. O homem no seu contexto social, tecendo suas relações e a elas se submetendo e reelaborando-as, se faz caracterizar mais nitidamente nas relações infantis, pela simbolização que marca a infância. É assim que, a partir do que Coseriu (1977) chama de campos lexicais e do que Hallig e Wartburg (1963) chamaram de Sistema Racional de Conceitos, os itens lexicais acima apresentados foram inventariados e receberam ligeira análise, a partir do que o corpus nos ofereceu como suporte para discutir sobre a cultura de senhores e senhoras roceiras do sudeste de Goiás. Há, no corpus, muitas outras formas mistas para brincar entre os infantes e outras que só foram enunciadas pelas mulheres como específicas a elas em nítida referência à distinção de gênero no âmbito das brincadeiras e brinquedos de crianças do mundo rural do sudeste goiano, nos idos dos anos 1920 a 1950. Confiram-se as memórias de uma das quatro narradoras: Fazia, fazia buneca, punha (risos), punha e[la]s, punha as buneca nos b[r]aço e (incompreensível) nos pau (risos) e pará, pará, pará. Ia lá, ia longe memo. É. Ia passiá c’as buneca de pau, mĩ fia. Is[so] assim er’ muito minino, er’ munto memo, er’ ũa turma. Fazia de pano. As minha, as minha p[r]ima fazia buneca prá nóis de pano. É. Ah! Gostava, gostava mais [as]sim de gangorra, buneca, cunzinhadim. 4

Tongo por toco. Gestos explicam a referência para assim, com movimentos verticais (para cima e para baixo). Quer dizer, na gangorra balançavam em movimentos circulares e verticais. 5

28

Revista do Gelne, Piauí, V.12, n.1, 2010

Nóis ia lá... nóis num amolava minha mãe assim assim igual esses minin’ de hoje im dia não (PAULA, 2007, p. 266).

Há outras memórias do brincar infante em que a representação do mundo dos adultos se mostra mista, entre meninos e meninas, sobremaneira quando se referem a práticas e hábitos comuns a homens e mulheres adultos, em evidente associação ao mundo dos pais e das mães. Fazer a comida, por exemplo, é uma prática não específica a mulheres, posto que os homens, nos seus ranchos de roça onde pousavam por semanas nos plantios e colheitas, também preparavam suas comidas. Na representação lexical da narradora, a memória é do cozinhadinho, na panela de barro, feita pelos meninos mais velhos, em casinha de ramo. A representação da realidade é tão perfeita a ponto de a narradora citar os ingredientes que a mãe, quando os tinha, lhes fornecia para a brincadeira de fazer comida de verdade e, também de verdade, eles comiam o cozinhadinho que, brincando, faziam do jeito que eles gostavam, como se pode verificar no fragmento abaixo:

Sabe de vêi[z] quan[do] mãe dava t[r]em pa nóis fazê cunzinhadim, nói’ fazia panela de barro, os mini’ mai[s] véi fazia panela de barro, punha os t[r]em e levan’ no fogo, punha punha sabuco lá no fogo, c’o fogo, as b[r]asa saía marelinha, socava panela de barro, de barro marelo lá dento, fazia panelinh’ de barro, fazia potim, a gent’ quemava [a]quilo, né? Fazia que nem nas panela de barro, lá nas bera do coigo pa lá. A gent’ fica ... ficava [as]sim, ó, fazia casinha [as]sim de de ramo, [fi]cava pa lá brincan’. A minh’ mãe g[r]aças a Deus, tadinh’, quan[do] ela tinha as coisa el[a] dava pra nóis. Dava mantega, dava mantega, dava arroiz pra nóis fazê. Er’, minin’ cumia em casa mesm’. Ficava gostoso. Ah! Tinha que ficá do jeito que e[le]s [os meninos] quisesse, ficav’ chei de cardo, nóis cumia [as]sim me[s]m[o] (PAULA, 2007, p. 266).

Brincadeiras comuns aos meninos e às meninas dizem respeito às que envolvem, ainda, o campo da comida, como pescar lambari para acrescentar ao cozinhadinho. Os meninos, afeitos, certamente, à prática da pesca com os adultos, faziam jiquizinhos para a captura dos peixes que comiam no momento da brincadeira. Os atos de brincar são, sem dúvida, a representação do mundo adulto que circundava as crianças de outrora, narradoras adultas que possibilitaram a composição do corpus. Quando a mãe solicitava que saíssem de perto da conversa de adultos, os infantes brincavam de pai, mãe, compadres, de bater de mentirinha, como se pode notar na memória seguinte da narradora: Um dia e[le]s um falav’ um, uns minin’ falav’ que er’ pai, otos já era a mãe, uns er’ er’ cumpade, otos er’ er’ é fii. [...] Batia de mintirinha. De mintirinha, mĩ fia. E eu num ia sabê, era piquena. Fazia, num sei fazê mais ninhum. Num pensava nada, sabia de nada, né? Pensav’ não, ’tava bão. [Brincava] Só ũa parte do dia, depois ia brincá d’otos brinquedo pra lá. To’dia, nói[s] num amolava minh’ mãe não, 29

Revista do Gelne, Piauí, V.12, n.1, 2010

quan[do] nóis er’ piquen’. Minh’ mãe dexava nóis i[r] pa lá, quan[do] el[a] quiria cunvesá as coisa, cunvesá cunvesa [as]sim dos mais véi, né? El[a] num gostava que nóis ficava perto, mandava nóis i[r] passiá, bincá pra lá (PAULA, 2007, p. 267).

Em outras palavras, o recontar sobre a vida passada, as brincadeiras de crianças demandou dos narradores que revivessem, ressentissem, pelas frestas das memórias, como se organizava o cosmos infantil de que foram personagens. Este mundo, com seus brinquedos e brincadeiras, revivido aqui nos itens lexicais que inventariamos e sumariamente analisamos, são a demonstração de que no léxico se inscrevem as experiências e vicissitudes humanas. Nas suas unidades, ficaram registradas as memórias da diversão, do faz-de-conta, da mentirinha de criança, as obrigações de gente grande, travestidas em brincadeira. Considerações finais Biderman (2001) diz que o mundo se faz conhecer pelo homem a partir do momento em que o nomeia, porque assim cumpre a etapa da significação. Só significa o que se conhece e nomeia-se o que é significativo. O arranjo da nomeação, o léxico, não é apenas mental: tem um matiz social e cultural que diz o modo como categorizamos as coisas que nos rodeiam e que nos são (ou se nos fazem) significativas. É nesta perspectiva que apresentamos aqui o modo como os meninos e as meninas, há quase um século, significavam o ser criança e como, entre tantos reveses, reinventaram a infância, transformando os seus instrumentos de trabalho na roça em algo mais suportável aos corpos ainda frágeis – mas que se fortaleceriam, um dia para a séria lida da sobrevivência – ou brincando de trabalhar em cangas de bois cambuiados ou entre currais feitos de linha, cheios de boizinhos de pau terra, em referência à flora abundante que os circundava. É na esteira do que diz Sapir (1969) acerca da relação entre a língua e a cultura, que se faz notar mais detidamente no plano léxico, que propusemos e realizamos, ligeiramente, este inventário e análise lexical sobre brinquedos e brincadeiras no vernáculo do sudeste goiano, com o propósito de entender como as memórias conduzem a formas de apreender o mundo que a cultura reporta.

REFERÊNCIAS BENVENISTE, È. Léxico e Cultura. In: ______. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas: Pontes, 1989. p. 245-287. BIDERMAN, M. T. C. As Ciências do Léxico. In: OLIVEIRA, A. M. P. P; ISQUERDO. A. N. (Orgs.). As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande: Ed. UFMS, v. 1, 2001. p. 153-166. GAGNEBIN, J. M. Memória, história, testemunho. In: BRESCIANI, S. e NAXARA, M. (Orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 2001. p. 85-94. HALLIG, R. e WARTBURG, W. von. Begriffssystem als grundlage für die Lexikographie; Versuch eines Ordnungsschemas. 2. Neu bearbeitete und erweiterte Auflage. / Système Rainsonné des Concepts pour Servir de Base à la Lexicographie. Essai d’um schèma de classement. 2éme. Édition recomposée et augmentée. Berlin, Akademie-Verlag, 1963. Berlin: Akademie Verlag, 1963. LABOV, W. Modelos sociolingüísticos. Madrid: Ediciones Cátedra, 1983. 30

Revista do Gelne, Piauí, V.12, n.1, 2010

PAULA, M. H. de. Rastros de velhos falares: léxico e cultura no vernáculo catalano. 2007. 522f. Tese (Doutorado em Lingüística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual paulista, 2007. SAPIR, E. Lingüística como ciência. [1921]. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1969. SEIXAS, J. A. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, S. e NAXARA, M. (Orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 2001. p. 37-58.

31

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1

MUNDO DO BRASIL: NATUREZA E VIRTUDE Maria do Socorro Fernandes de Carvalho*

Resumo Este texto apresenta a idéia de que os discursos exordiais seiscentistas compõem o início do livro, fazendo portanto parte do seu universo retórico. Para isto, aciono o conceito retórico de proêmio como a parte do discurso que, ao iniciá-lo, satisfaz já o artifício de captação de sua atenção, docilidade e interesse, como prevê a retórica, desde modelos antigos. O texto traz resumos de princípios teóricos de aplicação de pressupostos retóricos aos discursos preambulares do livro seiscentista circulante no Brasil e em Portugal: princípios da permeabilidade, adequação ou decoro, brevidade e civilizatório, (pelo elogio do leitor). Como ilustração, faço uma análise dos discursos preambulares do livro de sermões alegóricos do frei António do Rosário, no século XVII: Frutas do Brasil numa nova e ascética monarquia consagrada à santíssima senhora do Rosário, publicado no ano de 1702. Palavras-chave: Exórdio, Decoro, Retórica, Livro, Barroco. Abstract This text advances the idea that the exordial discourses of the 17th century make up the beginning of a book; therefore, they are part of its rhetorical universe. To do so, I make use of the rhetorical concept of proemium as the part of the discourse which introduces the book; and which from the start fulfills the role of an artifice for rendering the readers attentive, docile and favorable, as prescribed by rhetoric from ancient models. The text presents summaries of theoretical principles for applying rhetorical assumptions to preambulary discourses of 17th century books in Brazil and in Portugal: the principles of permeability, adequacy or decorum, brevity and civility, (by the reader’s praise). As an illustration, I analyze the preambulary discourses of the book of allegorical sermons by Friar António do Rosário from the 17th century: Frutas do Brasil numa nova e ascética monarquia consagrada à santíssima senhora do Rosário [Fruits from Brazil in a new and ascetical monarchy consecrated to the Lady of the Most Holy Rosary], published in 1702. Keywords: Exordium, Decorum, Rhetoric, Book, Baroque Registros da prática e do estudo dos discursos preambulares remontam a autores antigos como Longino, que fala de ―discursos de solenidades e aparato‖ ou tópica encomia epideitica no longínquo Tratado sobre o sublime, livro VIII. No mundo ainda grego, Luciano de Samósata vai mais longe e escreve uma narrativa intitulada Sobre as dipsas, história que penso figurar metaforicamente todo o poder de sedução e conquista que um discurso de entrada no mundo do livro deve apresentar. Veja-se do que se trata. Luciano apresenta as dipsas, serpentes terrivelmente sedentas, encontradas no deserto da Líbia, cujo efeito da mordida é causar *

Doutora em Letras pela UNICAMP – Professora de Literatura Portuguesa (UFRJ) [email protected] 32

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1

igualmente insaciável sede. Uma vez picada pela serpente, sua vítima tanto mais bebe quanto mais deseja beber, e a sede aumenta cada vez mais. Uma explicação médica afirma que a razão disso é que, sendo o veneno muito espesso, dilui-se com mais rapidez no contato com líquidos. Uma analogia entre veneno e ação exordial é possível pela reafirmação do artifício da captatio benevolentia, pois após o contato com a ―água limpa‖ de um leitor proveitoso espraia-se como efeito neste a vontade incontida de seguir adiante na leitura do livro, inquieto pela sede abrasante de beber a obra. Finaliza assim o narrador de Luciano a apresentação de sua peça introdutória: ―Perdoa-me se mordido eu também em minha alma por esta mordida dulcíssima e saníssima, lanço-me com a boca aberta metendo a cabeça no jorro. Somente peço que não me falte sua vontade; nem que, dissipado o desejo de audição, permaneça eu todavia sedento, posto que, no que toca minha sede de sua benevolência, nada poderia me impedir de seguir bebendo, pois de acordo com o sábio Platão, não há saciedade do belo‖.1 Os historiadores são unânimes em afirmar que discursos preambulares são o canal mais direto e intenso entre autor e leitor. A ideia que ora apresento é que os discursos exordiais seiscentistas compõem o início do livro. O livro é o discurso, com isso desejo afirmar que a compreensão, deleite e persuasão que a obra alcança começa antes da matéria do livro, a partir de seus discursos proemiais, precisamente a partir do título. Nas retóricas antigas ocidentais, a noção primeira do proêmio é a de que essa parte do discurso deve iniciá-lo, como é óbvio pensar, mas a finalidade estratégica de sedução do leitor, ouvinte ou espectador é igualmente seu pressuposto. Ora, é o universo retórico que define a arte da persuasão como aquela capaz de aproveitar qualquer matéria, tornando-a sedutora ou convincente. É pois do ponto de vista discursivo que notadamente prólogos, cartas ao leitor, discursos laudatórios, prefácios e dedicatórias têm a mesma finalidade do exórdio, qual seja, conquistar o interesse e a benevolência do leitor, exibindo por antecipação a causa final do discurso que o segue, comumente por meio de fórmulas de modéstia e sempre pela ênfase da importância ou utilidade da matéria, em consideração ainda de sua novidade, unidade ou verdade. Para isso, articulam comumente o antigo preceito da captatio benevolentiae, entendido convencionalmente como conquista da simpatia, atenção e docilidade do público. Essa convenção costuma agregar figuras retóricas de afetação de modéstia ou lugar de humildade, como a conhecida ―modéstia afetada‖ e a rusticitas, artifícios aproveitados, por sua vez, na esfera do discurso cristianizado por meio das figuras de devoção e humildade. Essas figuras por meio das quais o orador finge acreditar na própria incompetência ou desmerecimento encontram-se presentes nos discursos do Seiscentos — nos sermões, por exemplo —, sendo figuras ―com as quais o pregador, aparentemente diminuindo a si mesmo, como que demonstra ao auditório a verdade de suas virtudes e autoridade inegável com que fala‖2. Tais figuras são marca dos discursos preambulares. De toda forma, esses discursos são lugar de debate sobre a adequação do livro que abrem, sobre o valor das figuras do autor, senhor ou mecenas e do leitor. Dizem também sobre as finalidades de seus gêneros discursivos. Quase sempre estes textos empreendem uma relação explicativa entre o gênero dos discursos que inauguram, em busca da unidade editorial do livro. Nos antologias poéticas, esses discursos empreendem construir parte do sentido dos poemas. 1

LUCIANO. Obras. Madrid: Ed. Gredos, 1997.

2

Estes três aspectos contidos no preceito são parte da convenção deste lugar-comum e estão conformes à interpretação de Alcir Pécora em sua apresentação do funcionamento da figura retórica da rusticitas no prefácio da obra de Giovanni della Casa, Galateo ou Dos costumes, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. XVIII. Dessa mesma edição foram tiradas também a citação e a paráfrase. 33

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1

Na pesquisa que desenvolvi, faço uma analogia entre livro e discurso, por isto afirmo que o exórdio, ao apresentar o livro, exerce a finalidade de abrir o discurso, isto é, é já parte do universo poético das antologias de poesia circulantes no Seiscentos ibérico e colonial, e o faço por meio da apreciação das finalidades discursivas dos textos preambulares. Daí a necessidade do estudo da retórica do exórdio, pois a ideia central é que esses discursos variadíssimos na forma e que ocupam um lugar preciso na disposição livresca, desempenham uma ação discursiva no complexo que é toda a obra. A analogia é, em última instância, entre exórdio e preâmbulos. Com isso, intentei transpor para o livro o modelo de composição do discurso retoricamente instruído. A tal propósito, afirma Heinrich Lausberg que a norma suprema que atende às formas de introdução dos discursos retóricos é a mesma para todos: adequação. Sintetizo rapidamente o que posso chamar de regras básicas para a adequação do livro trazidas nos discursos preambulares: Regra 1: a adequação de todas as espécies de discursos preambulares: decoro entre estes e o tipo de texto que constitui o livro que iniciam. Regra 2: princípio da permeabilidade, segundo Alberto Porqueras Mayo, é a noção segundo a qual os discursos prefaciais tomam o estilo da matéria do livro que abrem, pois sofrem uma espécie de contágio do gênero da obra. Contudo, tal permeabilidade não implica que os discursos preambulares devam ser do mesmo gênero que a matéria que iniciam; há sim uma relação retórica, moral, letrada, em suma, uma relação decorosa entre livro e prólogo, mas essa relação é antes de tudo de independência quanto à forma dos textos que iniciam: interesses específicos do gênero do preâmbulo e não necessariamente seguir condicionamentos do gênero da obra. Regra 3: a brevidade. Um dos legados mais reconhecíveis da retórica latina à normatização das peças introdutórias diz respeito à virtude da brevidade. Quintiliano circunstancializa a extensão do exórdio nos discursos judiciários ao afirmar que os casos simples requerem apenas uma brevíssima introdução, sendo os mais longos aplicáveis aos casos complicados (IV, 1, 35 e 44). O anônimo da Retórica a Herênio já havia definido esse pré-requisito aos bons autores. A brevidade atende à simplicidade do estilo do exórdio. Quintiliano é reticente quanto à composição de metáforas sobretudo, mas também de neologismos, arcaísmos ou licenças poéticas, e exige sempre qualificada prudência nos seus usos. Esta opinião se estende com mais razão ao estilo que um exórdio deve apresentar. A compreensão do retor latino afirma que o estilo do exórdio não deve parecer com os das partes argumentativa e narrativa do discurso, nem deve ser prolixo ou demasiado ornado: deve parecer simples e espontâneo, de modo que nem nossas palavras nem nossos trejeitos devam prometer demais do que se pode dar3. Repare-se que Quintiliano não admite sem adequação ao exórdio nem o ornato das figuras, nem a gravidade argumentativa, e não aceita igualmente prolixidade, mas exige o efeito de simplicidade e de espontaneidade (simplici atque illaboratae similis), na medida em que nem palavras ou esgares prometam o que o discurso não poderá oferecer. Note-se ainda que Quintiliano não exige a simplicidade propriamente dita, mas sim que o estilo apresente certo ―efeito de simplicidade‖, podendo ser bastante elaborado na busca desse efeito. Podemos ter como exemplo o ―prólogo do autor‖ escrito por François Rabelais para seu livro Gargantua (1542), em que o compara a uma garrafa modesta cujo conteúdo de elevada

3

Quintiliano, Institutio Oratoria, Harvard, Loeb classical library, 1996, Livro IV, 1, 60: “The style of the exordium should not resemble that of our purple patches nor that of the argumentative and narrative portions of the speech, nor yet should it be prolix or continuously ornate: it should rather seem simple and unpremeditated, [sed saepe simplici atque illaboratae similis] while neither our words nor our looks should promise too much”. 34

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1

significação poderia superar as baixas expectativas da simplória embalagem, imagens de forte agudeza para significar o próprio prólogo. Regra 4: o leitor: a prática exordial não busca como efeito elevar apenas a matéria poética, mas igualmente o leitor. A noção civilizatória derivada da escola das virtudes que são as letras realizase também como elogio do leitor. O poeta coloca-se assim num lugar fingido de humildade e devoção que mais revela, por efeito, a autoridade de sua rubrica e o decoro da obra que sabe representar. Estudo dos discursos preambulares do livro Frutas do Brasil numa nova e ascética monarquia consagrada à santíssima senhora do Rosário, publicado no ano de 1702, escrito pelo frei António do Rosário. Esta obra é constituída por um conjunto de três sermões, que o autor chama de parábolas, e cada um deles possui vários capítulos. Trata-se de uma apresentação alegórica de coisas naturais do Brasil. No primeiro e segundo sermões, por meio de representação analógica de lugares-comuns do discurso seiscentista, como o da utilidade dos frutos em relação apenas ao deleite das flores, o autor localiza as coisas das terras brasílicas ocupando o lugar da utilidade na analogia. Ao passo que na velha Europa, representações já conhecidas das flores aparecem como suficientemente glosadas em prosa e poesia, as generosas frutas do Brasil usurpam a majestade do novo par real pelo proveito que ensejam, e assim o autor coroa o ananás como rei e a cana de açúcar como rainha na real grandeza da devoção à Nossa Senhora do Rosário. A dedicatória do livro é dirigida diretamente À Soberana Rainha dos Anjos, Mãy de Deos, Advogada dos pecadores e com o supremo e admirável título de Senhora do Rosário. Tem início com o trocadilho entre folhas naturais e folhas da escrita, esta última a moeda de troca de que dispõe o orador para pagamento da ingente dívida de que os benefícios da santa são os credores. A analogia, doravante, se instaura pelo fato de tais folhas serem de umas frutas tomadas pela graça do Rosário, as quais tornar-se-ão frutos da honra e graça deste. É por serem frutas e poderem derivar frutos de boas obras que são essas folhas uma forma de paga. É essa analogia que se estenderá por todo o livro. Após este passo, o autor cita o impressor e o agradece. A carta ao leitor é plena de afetos retoricamente provocados e merece algumas considerações. Primeiramente, ela tem início por certa marca de subjetividade, em estilo demasiado coloquial que o autor não conduz com a mesma fluência que mostra no texto dos sermões propriamente ditos. Ainda que pertinente o lugar de exposição da autoria e justificativa da escrita dos sermões aos ―amigos e benévolos leitores‖: fazer ―parábolas das frutas do Brasil, ainda que agrestes e desconhecidas‖, e por isto, acrescentaríamos, ainda que adequado, dizíamos, traz uma reversão de afeto de humildade a solicitação de imparcialidade ao leitor, peça incomum nas cartas dos livros portugueses. Sabe-se que as cartas devem ter como efeito, entre outros, o elogio subjacente à figura do mesmo leitor. Veja-se o trecho: ―se caso gostares do rústico e limitado mimo, que humilde te ofereço, não te cances em mo agradecer, porque do que prego e do que escrevo, bem poderás entender, que não faço caso de lisonjas, nem de displicencias.‖ 4 E continua ainda o severo padre: ―porque aos lisongeiros remeto a Deos, e aos mordazes mando-os cardar; a Deos e vejamonos no Ceo.‖5 Apesar de não comum, prólogos galeatos, ou seja, aqueles

4

ROSÁRIO, António do, (1647-1704). Frutas do Brasil numa nova e ascética monarquia consagrada à santíssima senhora do Rosário. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008, folha um da carta ao leitor, frente. 5 Idem, folha um da carta ao leitor, verso. 35

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1

em que se defende a obra de reparos ou objeções vindouras ou já feitas, existem na tradição dos discursos preambulares. Sobre as licenças, repare-se que são largas, a primeira, a da Ordem, assinada pelo frei Jeronimo da Ressurreição, explica o procedimento de moralização assim: ―Das frutas do Brasil se aproveitou o Author, para delas colher e intimar ao mundo outros frutos de melhor laya, e de mais proveito, que são virtudes e bons costumes; isto tudo com tanto espírito, subtileza e engenho (...)‖.6 A estudiosa Ana Hatherly vincula a descrição da tópica da exuberância da natureza às representações do Paraíso Terreal, muito propício que era o pensamento corrente do século XVII em ver prodígio e maravilha em todos os signos, mesmo os naturais. Segundo ela, Frei Antonio do Rosário ―descreve, glosa e moraliza nos seus sermões alegóricos um intrincado desdobrar de propriedades e perfeições que a Natureza oferece visível e invisivelmente, para deleitar e ensinar, conforme a norma da época exige,‖7 destacando as associações das maravilhas naturais do Brasil às maravilhas naturais da Terra Prometida. Afora a explicação do engenho de moralização pelas frutas, a primeira licença arrola mais de uma vez séries de autoridades da filosofia e da patrística para forrar o autor de autoridade. Esta espécie de licença comentada é comum em preambulares de sermonários e apresentação rica fonte de implicações para nossos atuais estudos literários. A segunda licença é chamada de Censura e foi elaborada pelo frei Luis da Purificação. Parte, como é de praxe nesse gênero de discurso, de uma analogia para elogiar o livro de António do Rosário: há quem deseje ter muitos ouvidos para ouvir a pregação do orador e seu censor deseja ter multiplicados olhos para ler as letras dos mesmos sermões. Com isso, Luis da Purificação toca na questão intrínseca da passagem entre a oralidade do sermão e a escrita do texto, passagem que por vezes demora décadas, como o caso dos sermões do padre Antonio Vieira. Esse tema é de grande interesse dos estudos do livro e da história do livro. Ou seja, a reflexão sobre as particularidades da materialidade do livro impresso em relação à ocasião de pronunciação do sermão no interior da missa. Conclusões tiradas recentemente, nomeadamente as da dissertação de mestrado de Rodrigo Pinto8, na USP, indicam a impossibilidade da leitura dos sermões sem a consideração da ocasião da escrita: das diferenças entre o texto oralizado e o texto reescrito; entre a audiência e a leitura individual é mister que o estilo acompanhe essa diversidade. No que diz respeito ainda à censura, afirma-se que o censor faz duas referências ao próprio gênero do discurso censório, o que não é tão comum, e afirma o caráter de panegírico àquele aspecto que possa parecer hiperbólico a algum leitor. Ao final, resume; ―Mas porque não pareça panegyrista, quando a obediência me faz censor, concluo finalmente que o meu parecer he não ter que censurar (...)‖.9 A terceira licença, também chamada da Ordem, é simples e aciona a fórmula aprovativa que se espera nesse lugar: acusa obediência, elogia os leitores indicados como pareceristas, afirma o canônico das coisas escritas e sua utilidade espiritual e concede a licença de publicação. 6

ROSÁRIO, António do, (1647-1704). Frutas do Brasil numa nova e ascética monarquia consagrada à santíssima senhora do Rosário. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008, folha dois da primeira licença, frente. 7 ROSÁRIO, António do, (1647-1704). Frutas do Brasil numa nova e ascética monarquia consagrada à santíssima senhora do Rosário. Apres. Ana Hatherly – Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002, p. 14. 8 PINTO, Rodrigo Gomes de Oliveira. Entre borrões e cadáveres: os sermões de Dominga da Quaresma de Antônio Vieira. Dissertação de mestrado. USP (Faculdade de Ciências Humanas e Letras), 2009. 9 ROSÁRIO, António do, (1647-1704). Frutas do Brasil numa nova e ascética monarquia consagrada à santíssima senhora do Rosário. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008, folha três da segunda licença, verso. 36

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1

O livro possui ainda uma curiosa Aprovação do Paço que acusa o engenho metafórico da obra, explicando que, por o autor descobrir os sentidos místico, alegórico e metafórico, produz ―inventivas proveitosas nas virtudes e invectivas curiosas contra os vícios‖. Além disso, este discurso faz ilações políticas bastante diretas. Após tais textos, seguem-se as licenças formulárias, um índice numerado das frutas do Brasil que se contém no livro e finalmente um prefácio, denominado ―prefaçam‖, o qual explica o funcionamento da argumentação de todo o livro ―no mundo do Brasil‖. Diferentemente do velho mundo, o novo mundo americano tem toda a natureza para glorificar o criador, sendo obrigação do pregador formular moralidades místicas das frutas. A propósito, no livro seiscentista escrito em língua portuguesa, o prefácio é raro, o que predomina como texto com a função de apresentação da obra, proposição da matéria e captatio benevolentiae do leitor é o prólogo. Após os três capítulos ou parábolas, a obra traz um índice dos lugares da sagrada escritura e um índice das coisas mais notáveis, os quais, por ordem alfabética, mostram argumentos centrais usados no livro. Destaco três aspectos, para finalizar, que considero importante enfatizar sobre o argumento de moralização alegórica dessa obra: o desejo de apresentar o Brasil ao mundo europeu por meio da descrição da riqueza de seu mundo natural: animal, vegetal, mineral; vestígios de uma jornada intelectual rumo ao mundo objetivamente conhecido pela botânica, anatomia, náutica etc, o que o método científico consolidaria com o passar dos tempos e prática discursiva a lo divino das espécies terreais mais variadas.

REFERÊNCIAS DELLA CASA, Giovanni. Galateo ou Dos costumes, São Paulo, Martins Fontes, 1999. LUCIANO. Obras. Madrid: Ed. Gredos, 1997. 4 vol. QUINTILIANO. Institutio Oratoria. 1ª. ed.:1921. Harvard, Loeb classical library, 1996, (126). 4t. _________. Instituições oratórias. Trad. Jerônimo Soares Barbosa. São Paulo: Ed. Cultura, 1944.2 vol. (Série Clássica Universal, 42). ROSÁRIO, António do, (1647-1704). Frutas do Brasil numa nova e ascética monarquia consagrada à santíssima senhora do Rosário. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008 – Fac-símile da ed. de Lisboa: Antonio Pedroso Galrão, 1702. ________. Frutas do Brasil numa nova e ascética monarquia consagrada à santíssima senhora do Rosário. Apres. Ana Hatherly – Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002 – Fac-símile da ed. de Lisboa: Antonio Pedroso Galrão, 1702.

37

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

OS VÁRIOS NOMES DO INGLÊS NA ERA GLOBAL Elisabete Andrade Longaray* Marília dos Santos Lima**

Resumo A história recente dos estudos sobre Aquisição de Segunda Língua (ASL) revela a ocorrência de uma série de denominações distintas utilizadas para se fazer referência ao inglês. Apenas para citar alguns exemplos, no mundo contemporâneo, o inglês pode receber os títulos de world English, international English, global English e English as a lingua franca, entre outros tantos. A preocupação com a nomenclatura, que à primeira vista pode não parecer mais do que puro preciosismo, se justifica a partir da necessidade de definição do objeto de estudo das pesquisas conduzidas no campo da ASL. A seleção de uma determinada expressão na alusão ao inglês pode evidenciar os propósitos e as inclinações teóricas do pesquisador fazendo da terminologia algo imprescindível. Neste artigo, os estudos de McArthur (2004), Rajagopalan (2004), Crystal (2003a, 2003b), Holliday (2005), Seidlhofer (2003, 2005), McKay (2002), Pennycook (2007), Erling (2005) e Jenkins (2006) evidenciam alguns dos nomes utilizados por estudiosos e pesquisadores da ASL para referir à língua inglesa nos últimos tempos. Palavras-chave: Aquisição de Segunda Língua, nomenclatura, língua inglesa. Abstract Recent Second Language Acquisition (SLA) studies show the occurrence of a series of distinct denominations used to refer to the English language. Amongst these, to name a few, are World English, International English, Global English and English as a Lingua Franca. This preoccupation with terminology, which at first glance seems to be pure preciosity, is justified by the need to define the object of study of SLA research. The choice of a determined expression can demonstrate the purposes and theoretical concepts of the researcher, who makes the terminology paramount. In this paper the studies of McArthur (2004), Rajagopalan (2004), Crystal (2003a, 2003b), Holliday (2005), Seidlhofer (2003, 2005), McKay (2002), Pennycook (2007), Erling (2005) and Jenkins (2006) are used to highlight some of the names applied by scholars and researchers of SLA to refer to the English language in recent times. Keywords: Second Language Acquisition, nomenclature, English Language.

World, International e Global English: a investigação histórica de Tom McArthur Num breve histórico da evolução da nomenclatura utilizada para fazer referência à língua inglesa desde meados da década de 1920 até o final dos anos 1990, McArthur (2004) explora significados, semelhanças e contrastes existentes entre as expressões world English (inglês mundial), international English (inglês internacional) e global English (inglês global). A discussão proposta por McArthur (2004) examina uma série de ocorrências desses últimos *

Doutora em Letras - Professora do Instituto de Letras da FURG [email protected]

**

Doutora em Linguística Aplicada pela University of Reading (Inglaterra) - Professora do Programa de PósGraduação da UNISINOS [email protected] 38

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

três termos. No entanto, como veremos a seguir, o acompanhamento da linha de tempo mais ou menos ordenada apresentada pelo autor evidencia a necessidade do mesmo em “dedicar ao world English quatro vezes mais espaço do que aquele dedicado aos seus termos rivais” (McARTHUR, 2004, p. 4). De acordo com McArthur (2004), muito embora todas as três expressões citadas acima façam alusão a uma mesma língua ou família de línguas cada uma delas apresenta desenvolvimento histórico distinto tendo sido originadas a partir de perspectivas também bastante diversas. A expressão world English, por exemplo, surge no final dos anos 1920 seguida de perto pela expressão international English nos anos 1930 e, somente muito mais tarde, pela expressão global English na década de 1990. Conforme o autor, a primeira vem sendo utilizada ao longo dos anos para dar nome tanto ao que conhecemos por standard English (inglês padrão) quanto a qualquer outra variedade do inglês; a segunda se refere ao uso multinacional do inglês, principalmente no que diz respeito ao ensino de línguas; e, a terceira inclui os múltiplos usos do inglês e a relação, quase sempre negativa, que se estabelece entre ele e o fenômeno da globalização socioeconômica mundial. World English A primeira ocorrência da expressão world-English (hifenizada) data de 1927. McArthur (2004) encontra indícios dessa ocorrência na segunda edição do Oxford English Dictionary (OED2) no ano de 1989. O dicionário exibe dois exemplos de uso da expressão. Neles, os termos standard English e world-English se confundem. Segundo o autor, do momento de seu primeiro registro até o início da década de 1980, a expressão world English volta a ser citada novamente apenas em 1967, como título de artigo publicado pelo próprio Tom McArthur na revista Opinion em Bombaim, Índia. Naquela época, a produção acadêmica do autor revela sua experiência junto ao Departamento de Inglês da Cathedral and John Connon School em Bombaim. De acordo com ele, a maioria dos alunos daquela instituição falava inglês como segunda ou terceira língua e muitos deles faziam parte de pequenas minorias: “falantes nativos do inglês local (principalmente Anglo-Indian), estrangeiros falantes nativos de inglês e estrangeiros falantes não-nativos de inglês” (McArthur, 2004, p. 5). Esses aprendizes eram preparados para prestar as provas do certificado escolar indiano (Indian School Certificate) que é descrito por Tom McArthur como sendo uma espécie de qualificação nacional elaborada de acordo com modelos britânicos de avaliação. McArthur (2004) reconhece na variedade do inglês utilizado pelos alunos da Cathedral and John Connon School uma forma de world English. Numa rápida interrupção de seu relato acerca do desenvolvimento dessa expressão nos nossos dias, McArthur (2004) faz questão de deixar claro que, para ele, world English denomina, desde 1967, todo e qualquer tipo de inglês. Para o autor, world English compreende a língua inglesa como língua padrão e não-padrão, língua materna e outra língua, dialeto, pidgin, creole, lingua franca, e também os chamados Anglo-híbridos tais como o Hindlish e o Spanglish. Sendo assim, para McArthur (2004) world English pode servir tanto como abreviatura da expressão English as a world language quanto como termo superordenado (hiperônimo) do inglês australiano, britânico, irlandês, nigeriano e assim por diante. O termo world English compreende, dessa forma, todos os aspectos da língua, desde o aspecto dialetal, passando pelo pidgin e pelo creole, pela variedade, pelo padrão, pela fala e pela escrita, seja ela eletrônica ou não. De volta ao desdobramento histórico da noção, o autor afirma que a introdução da mesma em publicações como English as a World Language (BAILEY e GÖRLACH, 1982), A comprehensive Grammar of the English Language (QUIRK et alii, 1985) e nos artigos que fizeram parte do primeiro número do periódico English Today (ET), ainda no ano de 1985, 39

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

indica o estabelecimento do termo world English já na primeira metade da década de 1980. Anterior a essas publicações, o lançamento pela editora Pergamon em 1981 da revista World Language English (atual World Englishes) também é lembrado por McArthur (2004) como mais um exemplo da alta produtividade alcançada pelos estudos acerca da língua inglesa e seu uso ao redor do mundo na década de 1980. Alguns anos mais tarde, em 1992, Tom McArthur define o termo World English (w maiúsculo) às páginas do Oxford Companion to the English Language (OCELang): World English consiste num termo cada vez mais utilizado para fazer referência ao inglês como língua mundial – resume a definição elaborada pelo autor. McArthur (2004) afirma ter prevenido os leitores daquela publicação da existência de uma forte oposição no que dizia respeito ao uso da expressão World English em ambiente acadêmico. Segundo ele, a recusa do termo tomava por base a crença de que o conceito de World English apontava para a dominância da língua inglesa enquanto língua global em detrimento de todas as outras muitas línguas faladas ao redor do mundo. Já em 1993, o dicionário New Shorter Oxford English Dictionary (NSOED) define World English (w maiúsculo) como uma variedade do inglês ou como os traços fundamentais do inglês considerado como padrão onde quer que ele seja falado. Para McArthur (2004) o conceito de world English como apresentado pelo NSOED difere muito pouco daquele encontrado na segunda edição do Oxford English Dictionary em 1989. World English e standard English operam como expressões sinônimas tanto numa quanto noutra publicação. De fato, como vimos anteriormente, no início, não há distinção rígida entre as noções de world English e standard English. Entretanto, a eventual alternância entre os dois termos se torna menos comum ao término da década de noventa. Em 1998, McArthur (2004) assiste a uma mudança revolucionária no que diz respeito àquele primeiro conceito. Segundo o autor, naquele ano, o novo dicionário de inglês da Oxford (New Oxford Dictionary of English – NODE) surpreende ao descrever world English enquanto a língua inglesa incluindo-se aí todas as suas variedades regionais tais como a norte-americana, a australiana, a neozelandesa e a sul-africana. Apesar do aparente entusiasmo do autor com a possibilidade de uma nova descrição para o termo, para McArthur (2004), o dicionário falha, porém, ao oferecer uma segunda definição da expressão. Nela, world English representa uma forma básica do inglês que consiste de traços comuns a todas as variedades. Em outras palavras, a expressão torna a fazer referência, mais uma vez, a uma forma padrão da língua. Ainda de acordo com o autor, até o final da década de 1990, dos três nomes mais utilizados para rotular a língua inglesa na era da globalização, world English, international English e global English, apenas o primeiro atrai a atenção de grandes redes responsáveis pela distribuição de dicionários destinados aos usuários de língua inglesa. Em 1999, por exemplo, a editora Bloomsbury, radicada em Londres, associa-se à Microsoft e introduz o dicionário Encarta (Encarta World English Dictionary) no mercado. Para Tom McArthur, esse lançamento “muda as regras do jogo” (McArthur, 2004, p. 7). De acordo com ele, no Encarta, conceitos como os de World English e de regional English (inglês regional) são examinados, de forma inovadora, à luz de noções como as de cultura e uso da língua. Além disso, no prefácio da primeira edição do Encarta, Nigel Newton, então presidente daquela editora, clama por uma maior elaboração do conceito de world English que já havia alcançado notabilidade na década de 1990. Não por acaso, o dicionário Encarta exibe, entre outros textos, o ensaio intitulado World English de autoria de Tom McArthur. Conforme McArthur (2004), o ensaio inclui expressões tais como World Englishes, Englishes, lingua franca, New Englishes, International English e Global English. McArthur (2004) admite, porém, que o lançamento do dicionário produzido pela Microsoft é obscurecido pela publicação do NODE 1998 (New Oxford Dictionary of English) mencionado anteriormente. Introduzido no mercado apenas alguns meses antes da publicação 40

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

do Encarta, o NODE promove a imagem da Oxford como “líder mundial na autenticação de novas palavras e na autenticação da língua” (McARTHUR, 2004, p. 7). Segundo Tom McArthur, o prefácio do NODE divulga a colaboração de 29 consultores especializados em World English. Nesse mesmo prefácio, o inglês é descrito como world language (língua mundial) e o mundo falante de inglês (English-speaking world) é invocado junto à promessa de uma cobertura abrangente do chamado World English (w maiúsculo) às páginas do dicionário. Além disso, em seção intitulada World English, a língua inglesa recebe o título de language of international communication (língua para comunicação internacional) nos campos do comércio, da diplomacia, dos esportes, da ciência e da tecnologia, entre outros. Segundo McArthur (2004), com o surgimento do NODE 1998 e do Encarta 1999 o termo world English atinge posição de destaque nos processos de descrição e promoção da língua inglesa contemporânea. No que diz respeito ao status alcançado pela expressão world English, a afirmação de McArthur (2004) parece acertada. Basta uma rápida consulta à versão online do dicionário Encarta 2007, por exemplo, para que se encontre registro de apenas uma das três expressões examinadas pelo autor. De acordo com a última edição do dicionário disponível na web, o termo World English é definido como “o inglês como ele é utilizado ao redor do mundo” ou como “a língua inglesa em todas as suas variedades como ela é falada e escrita ao redor do mundo”. Definições tão abrangentes como estas oferecidas pelo Encarta 2007 parecem justificar as palavras do professor da Universidade de Campinas, Kanavillil Rajagopalan, de acordo com o qual a expressão World English (WE) consiste num termo “mais ou menos clichê utilizado atualmente para fazer referência ao inglês como língua mundial” (RAJAGOPALAN, 2004, p. 111). Sob uma perspectiva não menos abrangente do que aquela defendida por McArthur (2004), o pesquisador define World English (WE) como uma variedade democrática do inglês – uma variedade pertencente a todos os seus usuários, mas que não constitui língua materna para nenhum deles. World English, para Rajagopalan (2004), consiste numa língua falada em “balcões de check in, corredores e salas de embarque dos aeroportos mais movimentados do mundo durante encontros de negócios multinacionais, jogos olímpicos ou copas do mundo, feiras internacionais de comércio e conferências acadêmicas” (RAJAGOPALAN, 2004, p. 112). Segundo esse autor, o World English conta atualmente com uma legião crescente de usuários. O exame mais detalhado dessa variedade em nossos dias dá mostras da existência de um sem número de dialetos e sotaques distintos que passam por diferentes estágios de um processo que Rajagopalan (2004) chama de nativização da língua. Para Rajagopalan (2004), o World English se assemelha a um jogo sem regras bem definidas que são reinventadas e revisadas à medida que ele progride. Rajagopalan (2004) reitera a noção de world English proposta por McArthur (2004). Contudo, sob o ponto de vista do último autor, nem mesmo a popularidade encontrada pelo termo world English, nem mesmo a escassez de ocorrências das expressões international English e global English conseguem desmerecer a importância do papel desempenhado por ambas na história recente dos estudos da língua inglesa. Por essa razão, no próximo segmento, Crystal (2003a, 2003b), Holliday (2005), Seidlhofer (2003, 2005) e McKay (2002) reforçam o exame realizado por McArthur (2004) de algumas dessas parcas ocorrências dos termos International e global English.

41

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

International English O uso da expressão international English (inglês internacional) remonta aos tempos de origem da expressão world English. Para McArthur (2004), embora pouco comum, a ocorrência do termo pode ser verificada já a partir da década de 1930. De acordo com os registros do autor, J. B. Priestley utiliza a expressão em 1930 e, C. Logue, no suplemento literário da revista Times, em 1958. Contudo, à semelhança da expressão world English, a ocorrência da expressão international English “parece rara até os anos 1980” (McARTHUR, 2004, p. 7). O autor afirma que a expressão não é encontrada “como termo técnico ou de forma impressa antes dos anos 1980 quando ela começa a aparecer em muitos lugares” (McARTHUR, 2004, p. 7). McArthur (2004) chama atenção para a ocorrência do termo em dois lançamentos do mercado editorial no ano de 1982. Segundo ele, International English: a guide to varieties of standard English (Trudgill e Hannah, 1982) e English as a World Language (Bailey e Görlach, 1982), inauguram um revezamento de termos que tem de um lado as noções de English as a world language∕world English e, de outro, English as an international language∕international English. Segundo McArthur (2004), em se tratando de um guia para as variedades de inglês padrão, Trudgill e Hannah (1982) encontra guarida junto ao desenvolvimento, na década de 1980, do (Teaching) English as an International Language, abordagem que tinha como principal objetivo ir de encontro a duas abordagens pedagógicas previamente estabelecidas: (Teaching) English as a Foreign Language (TEFL, EFL) e (Teaching) English as a Second Language (TESL, ESL). Nos Estados Unidos, a abordagem conhecida como TEIL (Teaching) English as an International Language) encontra em Larry E. Smith (East-West Center, Havaí) seu principal proponente. Segundo McArthur (2004), Larry E. Smith defende a adoção de uma abordagem sociocultural do ensino de inglês como língua internacional (Teaching English as an International Language). Tom McArthur acredita que, para aquele autor, Teaching English as an International Language, Teaching English as a Foreign Language e Teaching English as a Second Language se distinguem à medida que apenas na primeira abordagem fica subentendida a necessidade de que também os falantes nativos realizem esforços para compreensão e produção da língua em situações de comunicação internacional. Para McArthur (2004), sob a perspectiva do ensino de inglês como língua internacional sustentada por Larry E. Smith, o inglês pertence a todos os seus usuários e os padrões de fala, variáveis de acordo com cada comunidade, podem influenciar tanto falantes não-nativos quanto falantes nativos. Por isso, “todos nós [falantes nativos e não-nativos] precisamos cooperar e acomodar” (McARTHUR, 2004, p. 8) a fim de evitar que tais influências acabem por inibir ou atrapalhar a comunicação entre os falantes. Nas palavras de McArthur (2004), a abordagem amparada por Larry E. Smith passa a gozar de algum prestígio junto aos profissionais de ensino da língua inglesa (English language teaching, ELT) mais ou menos na mesma época em que noções como as de EFL (English as a Foreign Language), ESL (English as a Second Language) e ENL (English as a native language) começam a perder força como consequência de movimentos de emigração. Segundo o autor, graças a esses movimentos, moradores de grandes centros urbanos como Londres e Nova York são obrigados a conviver com a efervescência de um grande número de línguas e culturas. Mergulhadas na diversidade, cidades como Londres procuram administrar a existência de cerca de 350 diferentes línguas maternas nas escolas do sistema regular de ensino. No caso londrino, a atuação efetiva dos professores depende de uma prática conciliadora do inglês nas suas versões enquanto língua nativa, língua estrangeira, segunda língua e língua internacional, de acordo com McArthur (2004).

42

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

Não obstante os esforços realizados por pesquisadores como Larry E. Smith, para McArthur (2004), os lexicógrafos falham na captura da noção de international English. OED2 1989, NSOED 1993, NODE 1998 e Encarta 1999 tratam da expressão world English, mas nenhum deles menciona ou define international English. Isso não quer dizer, no entanto, que o termo deva ser deixado de lado como se fosse uma versão limitada da expressão world English, assevera McArthur (2004). Para ele, o termo international English apresenta essência tripartida uma vez que antecipa: (1) a disseminação mundial do inglês, (2) a padronização da língua e, (3) a noção de uso da mesma enquanto lingua franca. O termo reflete, dessa forma, os desejos de milhares de pais não-nativos que vislumbram através da aquisição de uma língua internacional um futuro melhor para seus filhos. Ambição que parece justificar a atuação de escolas internacionais em países como Hong Kong bem como a disposição de países como Cingapura em desenvolver uma variedade “internacionalmente aceitável do inglês” (McARTHUR, 2004, p. 9). Para Holliday (2005), uma versão internacionalizada do inglês (English as an international language) vem conquistando cada vez mais adeptos para desespero dos defensores da aprendizagem do inglês vinculada ao ensino das culturas norte-americana e britânica. Nessa versão, o falante nativo perde o status de modelo ideal de falante da língua. Sob este ponto de vista, o falante nativo apresenta uma série de limitações que incluem tanto o uso restrito de formas da língua quanto o de formas irrelevantes e inadequadas à comunicação internacional. Daí a dificuldade encontrada por muitos falantes nativos de inglês na interação casual com falantes de inglês como segunda língua ou língua estrangeira. A respeito desses encontros, Holliday (2005) reconhece no trabalho de Barbara Seidlhofer a importância da descrição do inglês enquanto lingua franca. A expressão International English não passa de uma abreviatura do termo English as an international language (EIL) para Seidlhofer (2003). A autora que tem seu nome quase sempre associado às pesquisas relacionadas ao inglês como lingua franca afirma sua preferência pelo segundo termo, mais completo, quando comparado ao primeiro. O termo English as an international language (EIL) parece mais preciso, para a autora, à medida que enfatiza o uso internacional do inglês sem com isso sugerir, de forma equivocada, a existência de uma variedade única e de fácil reconhecimento denominada International English. Conforme Seidlhofer (2003), o uso do inglês como língua internacional compreende falantes nativos (English as a Native Language, ENL), falantes de inglês como língua materna (English as a Mother Tongue, EMT) em todos os seus dialetos e falantes de New Englishes ou World Englishes. Em outras palavras, de uma forma mais geral, para Seidlhofer (2003), o inglês pode ser denominado English as an International language sempre que consistir na forma escolhida pelos falantes para a comunicação entre indivíduos provenientes de diferentes culturas. Seidlhofer (2003) encontra em McKay (2002) uma definição que considera adequada para o inglês como língua internacional ainda que a última autora faça uso da expressão em sua forma reduzida. Para Sandra Lee Mckay, o International English propicia a interação entre indivíduos provenientes de culturas distintas promovendo encontros entre falantes nativos e usuários bilíngues da língua. Conforme McKay (2002), a versão internacional do inglês pode ser utilizada tanto nas situações de interação local quanto em situações de interação global. No primeiro caso, o International English auxilia na comunicação de indivíduos provenientes de culturas e línguas diferentes, mas que se encontram radicados num mesmo país. Já na interação global, o inglês em sua versão internacional permite a comunicação entre indivíduos de nacionalidades distintas ao redor de todo o mundo. O senso comum muitas vezes equaciona número de falantes e status da língua no âmbito internacional. No entanto, para McKay (2002), a obtenção desse status internacional requer mais do que uma multidão de falantes. Não fosse assim, mandarim, espanhol, hindi e 43

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

árabe poderiam compartilhar com o inglês o título de língua internacional do mundo contemporâneo. Mas a menos que também sejam adquiridas por um grande número de falantes nativos de outras línguas, mandarim, espanhol, hindi e árabe não podem servir como língua para comunicação internacional, como adverte McKay (2002). E é “nesse sentido, como uma língua de maior amplitude de comunicação, [que] o inglês constitui uma língua internacional por excelência” (McKAY, 2002, p. 5). Global English À semelhança do termo international English, para McArthur (2004), também a expressão global English (inglês global) tem sido negligenciada em publicações recentes. Apenas English as a global language (Crystal, 2003a) e The future of English? (Graddol, 1997) são citados pelo autor como exemplos de publicações para as quais o termo parece relevante. A rápida incursão ao livro de David Crystal deixa transparecer, porém, a inconsistência com a qual se faz uso do termo global English que, na maior parte das vezes, acaba por ser substituído por expressões como world English e international English. A língua atinge status genuinamente global quando desempenha papel de importância aceito internacionalmente. Ao reconhecer a obviedade de tal afirmação, Crystal (2003a) propõe o exame detalhado das muitas atribuições desempenhadas pela versão global de uma língua. Para o autor, tais atribuições podem ser mais facilmente identificadas a partir de países onde língua global e língua materna constituem uma única língua como no caso do inglês nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Irlanda, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul e alguns países do Caribe. Para Crystal (2003a), a obtenção de status global de uma língua depende do prestígio alcançado pela mesma junto a falantes de diferentes línguas maternas nos quatro cantos do mundo. A língua global depende da conquista de um “espaço especial dentro das comunidades” (CRYSTAL, 2003a, p. 4) até mesmo nas áreas mais remotas do planeta onde o contato com falantes considerados nativos dessa língua seja pouco frequente. Conforme Crystal (2003a), o exercício da posição de prestígio da língua global pressupõe (1) a oficialização da mesma enquanto segunda língua do país e∕ou (2) a priorização do ensino da língua dita global como língua estrangeira. Na primeira alternativa, a língua global passa a servir como instrumento de comunicação junto aos órgãos governamentais, instituições legais, veículos de mídia e sistema educacional do país. Nesses casos, a língua global atua de forma complementar em associação com a primeira língua dos indivíduos. Já na segunda possibilidade de atuação, a língua global passa a fazer parte do currículo escolar desde muito cedo, nas séries iniciais. No que respeita às funções da língua global enquanto segunda língua, o inglês, por exemplo, conta agora com “algum tipo especial de status em mais de setenta países tais como Gana, Nigéria, Índia, Cingapura e Vanuatu” (CRYSTAL, 2003a, p. 4). Muito recentemente, no ano de 1996, Ruanda também confere status de língua oficial ao inglês. Nesse ínterim, novas decisões políticas acatadas diariamente ao redor de todo o mundo legitimam a hegemonia da língua global seja nas repartições públicas seja nas salas de aula. No que concerne o prestígio de uma determinada língua dominante no ensino de língua estrangeira, Crystal (2003a) recupera a influência dos idiomas russo e mandarim junto aos países vizinhos de Rússia e China. Segundo Crystal (2003a), durante muito tempo, no período anterior à queda da extinta União Soviética, o russo goza de grande prestígio em meio aos países do bloco socialista enquanto o mandarim intervém, já há algum tempo, na rotina de milhares de indivíduos em todo o sudeste da Ásia. Até o presente momento, porém, nenhuma outra língua foi capaz de sobrepujar o poder de disseminação da língua inglesa que consiste, de acordo com Crystal (2003a), na língua estrangeira de maior abrangência mundial na história da humanidade. Em países como 44

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

China, Rússia, Alemanha, Espanha, Egito e Brasil, a língua inglesa lidera a corrida no ensino das línguas estrangeiras, “frequentemente, desbancando outra língua ao longo do processo” (CRYSTAL, 2003a, p. 5). Antiga colônia francesa, a Argélia, por exemplo, substitui o ensino de francês pelo ensino de inglês nas escolas a partir de 1996. A despeito dos esforços de Crystal (2003a), a expressão global English não encontra grande acolhida em McArthur (2004). O último autor, que já havia declarado amealhar todo e qualquer tipo de inglês sob o rótulo de world English, insiste ainda uma vez que “world English e global English são dois nomes para o mesmo fenômeno” (McARTHUR, 2004, p. 11). Além disso, para McArthur (2004), destinado ao público em geral, English as a global language não contém a rigidez e a precisão metodológicas necessárias para a defesa do termo. A inconsistência do tratamento dispensado por David Crystal ao termo global English não escapa do crivo de McArthur (2004). Acompanhado de perto pelo último, Crystal (2003a) “deixa o global de lado, faz uso da expressão international em sua acepção mais geral e, então, retorna ao uso da palavra world” (McARTHUR, 2004, p. 11) quando define seu conceito de World Standard Spoken English (padrão mundial do inglês falado) ou WSSE. Em outra publicação bem mais recente, Pennycook (2007) lança mão do termo global Englishes (no plural) “a fim de situar a expansão e o uso do inglês dentro de teorias críticas da globalização” (PENNYCOOK, 2007, p. 5) segundo as quais o inglês está intimamente ligado aos sentimentos ambivalentes de intimidação, desejo, destruição e oportunidade. Na negação tanto de modelos teóricos de ataque ao imperialismo linguístico quanto de modelos tradicionais de defesa da expansão da língua, Pennycook (2007) propõe o que ele diz ser uma perspectiva mais complexa da globalização. Nela, novas formas de poder, de controle, de destruição, de resistência, mudança, apropriação e identidade são consideradas na compreensão do papel do inglês em meio à sociedade atual. A abordagem recomendada por Pennycook (2007) sugere o debate acerca de fluxos translocais (translocal flows) e transculturais (transcultural flows)1 através dos quais a mobilidade do inglês em meio a espaços e relações sociais distintas pode ser examinada. Segundo o autor, a conexão do inglês a esses fluxos resulta “(n)uma língua de comunidades imaginadas e de identidades remodeladas” (PENNYCOOK, 2007, p. 6). General English, literate English e outros nomes do inglês segundo Elizabeth Erling Em The many names of English, Erling (2005) discute, de maneira breve e objetiva, algumas das alternativas de denominação do inglês que parecem ter passado despercebidas por McArthur (2004). A análise de Erling (2005) inclui as propostas de Widdowson (1997, 1998) e Modiano (1999, 2001) acerca da expressão English as an international language, a interpretação do termo global de acordo com Toolan (1997), e o general English e o literate English propostos por Ahulu (1997) e Wallace (2002), respectivamente. A expressão English as a lingua franca é representada pelas pesquisas de Jenkins (2000) e Seidlhofer (2001). O texto de Erling (2005) não se resume, porém, à mera listagem de uma série de expressões e termos referentes à língua inglesa. Além de proceder ao exame de alguns desses termos, a autora discorre sobre o porquê da “forte compulsão em renomear a língua” (ERLING, 2005, p. 40). 1

Pennycook (2007) faz uso do termo fluxos transculturais (transcultural flows) para fazer referência às maneiras de acordo com as quais formas culturais se movimentam, mudam e são reutilizadas na intenção de remodelar novas identidades em contextos diversos. O autor deixa claro que a expressão não faz referência apenas à expansão de formas particulares de cultura através de limites determinados, ou à existência de formas culturais que transcendem localidade, mas aos processos de empréstimo, combinação, reprodução e retorno aos processos de produção cultural alternativa. 45

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

De acordo com Erling (2005), essa compulsão decorre do profundo sentimento de ambivalência do mundo pós-colonial no que respeita a expansão do inglês como língua global. Além disso, a busca por novas ideologias de ensino capazes de dar conta da diversidade de usos e usuários de inglês também contribui para o surgimento dos tantos nomes e expressões utilizados para fazer referência ao inglês nos estudos da ASL. Para Erling (2005), (1) o crescimento da adoção do inglês no âmbito global, (2) o exame crítico da expansão da língua e (3) as tentativas de contenção da hegemonia do inglês em todo o mundo corroboram para o desenvolvimento de um grande número de propostas de renomeação da língua nos nossos dias. English as an International Language (EIL) O termo English as an international language (EIL) inaugura a discussão proposta por Erling (2005). Através dele, Widdowson (1997) descreve o uso específico do inglês com propósitos internacionais, profissionais e acadêmicos principalmente na versão escrita da língua. Nas palavras de Erling (2005), para aquele autor, a variedade denominada English as an international language se resume a uma forma de registro do inglês que, para a maioria dos aprendizes, consiste num meio de acesso a certos domínios e não numa língua de identificação para a comunidade à qual pertencem. Ainda de acordo com Erling (2005), Widdowson (1997) parece tolerar o intercâmbio entre as expressões English as an international language e lingua franca, pois tanto uma quanto a outra subentendem um inglês independente, livre de associações a uma variedade principal. Modiano (1999), por sua vez, concebe o termo English as an international language como alternativa para a expressão standard English (inglês padrão). Para Modiano (1999), o termo pressupõe a neutralidade cultural, política e social do inglês. Nesse modelo, a neutralidade da língua aparece acompanhada de traços característicos que a tornam compreensível para falantes de inglês como primeira e segunda língua. Segundo Erling (2005), Modiano (1999) representa o conceito de English as an international language por intermédio de um conjunto de seis círculos concêntricos. Os círculos representam as variedades britânica, norte-americana, canadense, australiana, neozelandesa, sul-africana, o inglês como língua estrangeira e o que Modiano (1999) chama de outras variedades. O English as an international language resulta, de acordo com o modelo do autor, da convergência de todas essas variedades. Melhor dizendo, no modelo de Modiano (1999), as características partilhadas por todas as variedades de inglês utilizadas por falantes competentes em situações de comunicação internacional dão origem ao inglês como língua internacional (English as an international language, EIL). Conforme Erling (2005), Modiano (1999) impõe uma condição a fim de que falantes de dialetos regionais, de pidgin e creoles sejam inseridos na categoria dos falantes competentes do inglês internacional. Segundo o autor, falantes competentes da língua fazem uso de uma variedade internacionalmente inteligível. Para Modiano (1999), a utilização de dialetos regionais, de vocabulário estranho ao adotado pela comunidade internacional, o uso de RPs (Received Pronunciation) e de falsos cognatos não condizem com a definição de English as an international language. Modiano (1999) admite, porém, as muitas dificuldades envolvidas na tarefa de descrição de tal variedade, dita internacional, considerando-se a escassez do que ele opta por classificar como modelos adequados da língua. Os trabalhos de Widdowson (1997) e de Modiano (1999) recebem pouca acolhida, segundo Elizabeth Erling, em meio aos profissionais da área da ASL. O primeiro recebe críticas por desrespeitar a necessidade de descrição detalhada dos vários usos do inglês (o autor preocupa-se mais com a escrita da língua, como já vimos). Já o segundo, falha ao não deixar claro o tipo de inglês que considera como o mais inteligível internacionalmente. Além 46

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

disso, Modiano (1999) censura o uso de variedades que ele classifica como sendo excessivamente regionais ao mesmo tempo em que julga a competência dos falantes. Para Erling (2005), o uso das noções de competência e de variedades regionais pelo último autor parece completamente equivocado. English as a lingua franca A utilização crescente do inglês para comunicação entre falantes de inglês como segunda língua ou língua estrangeira em situações que não envolvem a presença de um falante nativo da língua justifica, para Erling (2005), a preferência de muitos pesquisadores pelo termo English as a lingua franca (ELF). Citadas por Elizabeth Erling, Jenkins (2000) e Seidlhofer (2001) afirmam não ser possível garantir o sucesso da comunicação entre os falantes da língua inglesa tomando-se por base apenas as normas do inglês como L1. Para ambas, a comunicação entre indivíduos provenientes de culturas distintas exige o desvencilhamento das normas da língua de um único padrão lingüístico em particular. A partir de um banco de dados que exibe trocas linguísticas entre falantes de inglês como L2, Jenkins (2000) advoga a favor de uma abordagem do ensino da pronúncia em inglês cuja meta consista na inteligibilidade mais do que na imitação de normas fornecidas pelos falantes de inglês como L1. À semelhança daquela primeira autora, Seidlhofer (2001) organiza um conjunto de dados provenientes de trocas linguísticas conduzidas através do inglês como lingua franca. O corpus de dados gerado por ela inclui tanto construções gramaticais quanto escolhas lexicais. Seidlhofer (2001) também descreve fatores associados aos falantes de inglês como L1 de acordo com sua maior ou menor relevância para a comunicação em inglês como L2. As duas pesquisadoras insistem nos muitos benefícios que poderiam ser obtidos por meio de uma abordagem pedagógica orientada por normas do inglês como lingua franca. Entre outras coisas, essa abordagem permitiria a expressão das identidades individuais dos aprendizes por meio do inglês como segunda língua, por exemplo. Nas palavras de Erling (2005), as propostas de Jenkins (2000) e Seidlhofer (2001) reconhecem as funções do inglês enquanto língua global sem ignorar o papel que vem sendo desempenhado por ele enquanto lingua franca em meio aos usuários do inglês como L2. Variações da expressão English as an International Language, os termos English as a lingua franca, English as a global language, English as a world language e English as a medium for intercultural communication possuem ao menos um aspecto em comum segundo Seidlhofer (2003). Em todas elas, novas expectativas e novas atitudes em relação ao inglês surgem juntamente com os novos usuários falantes não-nativos da língua. Desse momento em diante, a concepção de unidade da língua com um sistema de regras, códigos e convenções bem definidas dá lugar à aplicação de novos sistemas de regras e normas no uso da língua. Em texto publicado por Barbara Seidlhofer em 2005, porém, English as a global language, English as an international language, English as a world language e world English descrevem, de forma genérica, o uso da língua inglesa nos contextos de inner, outer e expanding circle, nos termos de Kachru2. Nessa publicação, a autora não esconde sua predileção pelo termo English as a lingua franca. Segundo ela, muitos pesquisadores 2

Conforme Kachru (1992), o atual perfil sociolingüístico do inglês deve ser examinado em termos de três círculos concêntricos. Estes círculos representam os tipos de expansão, os padrões de aquisição e a locação do inglês em contextos culturais diversos. O inner circle se refere às tradições lingüísticas e culturais básicas do inglês. O outer circle representa as variedades não-nativas institucionalizadas (L2) nas regiões que tenham passado por extensos períodos de colonização. O expanding circle inclui as regiões nas quais as variedades de desempenho da língua são utilizadas essencialmente em contextos de inglês como língua estrangeira (LE). 47

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

preferem a expressão English as a lingua franca, apesar de que ocorrência das expressões English as a medium of intercultural communication e English as an international language também se verifique na descrição de situações nas quais a língua inglesa consiste no meio de comunicação em meio a falantes de diferentes línguas maternas. Barbara Seidlhofer afirma ser “impossível negar que o inglês funciona como uma lingua franca global” (SEIDLHOFER, 2005, p. 339). No entanto, de acordo com a autora, nem todos os pesquisadores concordam que, como consequência do uso internacional da língua, o inglês sofra influências, em mesma medida, tanto dos falantes nativos quanto dos falantes não-nativos da língua. Daí o paradoxo vislumbrado por Seidlhofer (2005): o inglês constitui-se numa língua estrangeira para a maioria de seus usuários e a maior parte das trocas verbais em inglês não envolve nenhum falante nativo da língua. Apesar disso, porém, a crença no poder decisório do falante nativo acerca do que é aceitável ou não na língua permanece muito forte. Segundo a autora, uma série de estudos empíricos vem tentando, ao longo dos anos, elaborar uma descrição linguística do inglês como lingua franca (English as a lingua franca, ELF). Essas pesquisas pretendem dar conta de questões fonológicas, pragmáticas e lexicais da língua. Dados do inglês como lingua franca são compilados e analisados em projetos como English as a lingua franca in Academic settings (ELFA) e Vienna-Oxford International Corpus of English (VOICE). Seidlhofer (2005) espera que o trabalho realizado por essas pesquisas resulte numa maior compreensão da natureza do inglês como lingua franca. Segundo a autora, a criação de um banco de dados contendo traços e características fundamentais do inglês como lingua franca pode facilitar o diagnóstico do que deve e do que não precisa ser ensinado aos aprendizes promovendo, a longo prazo, uma maior inteligibilidade internacional. Apesar da crença da autora na descrição linguística enquanto grande aliada da tomada de decisão pedagógica, Seidlhofer (2005) admite que a descrição linguística não pode por si só determinar a agenda dos professores de inglês. Na próxima seção, Toolan (1997), Ahulu (19997) e Wallace (2002) também reconhecem o peso das identidades dos aprendizes e a importância do respeito às necessidades dos mesmos ao fomentar “uma prática mais democrática do ensino de língua inglesa” (ERLING, 2005, p. 42). Global, general e literate English Toolan (1997) lança mão do termo Global para fazer referência ao inglês utilizado mundialmente por pessoas pertencentes a diferentes grupos étnicos, em qualquer tipo de cenário internacional. Segundo Erling (2005), o autor argumenta a favor da necessidade de redenominação do inglês para que se possa refletir sobre o seu uso de maneira apropriada enquanto testemunhamos o declínio da autoridade anglófona sobre a língua inglesa. Para Toolan (1997), os falantes nativos de língua inglesa também precisam adquirir a variedade global da língua a fim de que falantes nativos e não-nativos se encontrem em campo linguístico neutro para comunicação internacional. Insatisfeito com o termo standard English sempre associado aos padrões britânicos ou norte-americanos, Ahulu (1997) propõe o uso da expressão general English (inglês geral) como alternativa para a denominação da língua num sentido mais amplo. Já Wallace (2002) defende a adoção do termo literate English a fim de referir uma variedade escrita da língua que também pode ser utilizada para comunicação face a face. O literate English, também chamado transnational English por Wallace (2002), prioriza a resistência às formas e usos convencionais do inglês hegemônico. Para Erling (2005), a proposta de Wallace (2002) não se resume a uma tentativa de transformação do inglês numa língua mais democrática e neutra, 48

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

ela consiste em fazer do inglês uma ferramenta mais adequada à reflexão crítica e à imposição de resistência aos modelos dominantes. Segundo Erling (2005), questões demográficas influenciam sobremaneira a mudança no discurso a respeito do inglês. Como demonstra Graddol (1997), a difusão do inglês global se dá na ordem de três para um. Para cada falante de inglês como primeira língua (L1) existem hoje no mundo três falantes de inglês como segunda língua (L2). Cada vez mais utilizado para comunicação internacional, o inglês deixou, já há algum tempo, de pertencer a uma só cultura ou povo. Se no passado o próprio nome do idioma, English (adjetivo e substantivo), evocava língua e culturas de origem britânica, agora a palavra carrega consigo vestígios de um passado colonial que muitos preferem esquecer. Para Erling (2005), Widdowson (1997), Modiano (1999), Jenkins (2000), Seidlhofer (2001), Toolan (1997), Ahulu (1997) e Wallace (2002) promovem plataformas teóricas do ensino da língua inglesa que deixam para trás a concepção de um padrão do inglês dominado por formas da L1. Os proponentes dessas teorias, afirma Erling (2005), reconhecem nos estudos pós-coloniais a importância da observação das muitas variedades do inglês em sua fase de primazia global. Segundo Erling (2005), esses estudos pretendem imprimir equilíbrio às relações existentes entre a instrução na língua inglesa e o emprego prático da mesma na vida real. Ainda de acordo com Erling (2005), porém, o exagero na elaboração de uma interminável lista de nomes para identificação do inglês pode agravar uma situação já bastante complexa. Corre-se o risco de que o principal resultado das propostas citadas acima consista numa mera mudança de terminologia sem nenhuma mudança prática correspondente. Mais importante do que encontrar um nome apropriado para o inglês é assegurar que a prática dos profissionais do ELT ao redor do mundo se distancie de ideologias que concedem privilégios às variedades de L1. A língua deve ser ensinada como meio de comunicação intercultural sob uma perspectiva crítica e de resistência, quando esta última se fizer necessária. World Englishes no plural (WEs) e English as a lingua franca segundo Jenkins (2006) Em artigo de 2006, Jennifer Jenkins examina pesquisas recentes que versam sobre World Englishes (WEs) e English as a Lingua Franca (ELF). Jenkins (2006) revela até que ponto as duas expressões têm sido cogitadas por professores de inglês, linguistas e por pesquisadores da área da aquisição de segunda língua (ASL). De acordo com Jenkins (2006), no mesmo ano da publicação de seu artigo na revista TESOL Quarterly, o organizador de uma conferência da qual a autora participava numa universidade britânica chama atenção para o uso da expressão World Englishes nas referências biográficas fornecidas pela autora. Por não reconhecer a forma plural da expressão, o organizador da conferência interrompe a introdução que fazia da pesquisadora para o público e pede que ela confirme o uso do termo World Englishes. Jenkins (2006) considera esse episódio inusitado uma vez que, para ela, o questionamento da terminação (-es) na expressão World Englishes parece pouco comum em meio aos profissionais de TESOL e entre linguistas aplicados contemporâneos. No entanto, Jennifer Jenkins admite que foi preciso algum tempo para que a expressão World Englishes obtivesse notoriedade. De acordo com ela, em número comemorativo do vigésimo quinto aniversário do periódico TESOL Quarterly no ano de 1991 apenas o artigo escrito por Douglas Brown prioriza os WEs enquanto explora questões sociopolíticas relacionadas à expansão da língua inglesa. Mesmo aí, “WEs não era mencionado com esse nome, mas discutido sob a rubrica, de certa forma ambígua, de English as an International Language” (JENKINS, 2006, p. 158). Também no ano de 1991, um debate instalado às páginas da revista English Today pelos pesquisadores Braj B. Kachru e Randolph Quirk atrai a atenção de muitos profissionais 49

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

de TESOL que, nas palavras de Jenkins (2006), não constituíam uma audiência tradicionalmente interessada nos chamados World Englishes. Conforme Jenkins (2006), durante o debate, Quirk e Kachru rotulam um ao outro sendo o primeiro considerado defensor da linguística do déficit (deficit linguistics) e, o último, como proponente da linguística de liberação (liberation linguistics). Conforme Jenkins (2006), o reflexo desse debate pode ser visto até hoje em periódicos tais como o TESOL Quarterly que, desde então, tem publicado um número crescente de artigos atinentes ao ensino∕aprendizagem do inglês a partir do novo contexto mundial de uso e de expansão da língua. Igualmente importante para Jenkins (2006), o fato de que muito embora no ano de 1991 as expressões WEs e ELF fossem negligenciadas na edição de aniversário do periódico TESOL Quarterly, elas recebem papel de destaque na revista em seu quadragésimo aniversário. A autora lembra, ainda, a importância de número recente do periódico TESOL Quarterly em 2005. Editado por John Levis, a revista aborda a pronúncia sob as perspectivas do WEs e da lingua franca. Não há muito que festejar, porém, de acordo com Jennifer Jenkins. Para a autora, a presença de artigos que versam sobre WEs na TESOL Quarterly são antes uma exceção e não uma regra. Jenkins (2006) afirma a ausência de publicações a respeito da lingua franca naquele periódico até o ano de 2003. O mesmo acontece com uma série de outros periódicos publicados nos Estados Unidos, no Reino Unido e ao redor do mundo. Jennifer Jenkins considera essa ausência um tanto “bizarra considerando-se o fato de que – como um incontável número de estudiosos já apontaram – falantes de WEs e ELF ultrapassam o número de falantes nativos de inglês, falantes de inglês como segunda língua e falantes de inglês como língua estrangeira” (JENKINS, 2006, p. 158) Jenkins (2006) cita Bolton (2004) de acordo com o qual existem três possibilidades de interpretação da expressão World Englishes. Na primeira possibilidade, o termo pode rotular, descrever e analisar todas as variedades de inglês espalhadas ao redor do mundo. Na segunda, o termo pode ser utilizado para fazer referência ao inglês falado na África, Ásia e Caribe. Numa terceira e última possibilidade, WEs pode representar uma abordagem pluricêntrica do estudo da língua inglesa associada com Kachru e seus colegas, frequentemente citada como abordagem Kachruviana, muito embora haja uma considerável sobreposição entre a segunda e a terceira interpretação do termo. A primeira possibilidade de interpretação da expressão, de acordo com Jenkins (2006), também pode ser representada por outros termos incluindo-se aí a expressão World English (no singular), international English(es) e global English(es) enquanto a segunda costuma ser representada pelos termos nativised, indigenised, institutionalised, new Englishes ou English as a second language. Conforme Jenkins (2006), apesar do grande número de interpretações do termo World Englishes e suas alternativas, a relação entre eles é tão forte, e o campo de estudos tão bem estabelecido nos dias de hoje, que parece não haver confusão a respeito do uso. O mesmo não pode ser dito, porém, a respeito da expressão English as a lingua franca (ELF), afirma Jenkins (2006). Apesar do trabalho que ela chama de visionário desenvolvido por Larry Smith nas décadas de 1970 e 1980, o problema aqui reside no fato de que a expressão international English pode ser utilizada como atalho para a expressão English as an international language (EIL) que também faz as vezes como alternativa para o termo English as a lingua franca (ELF). Assim, se por um lado international English é utilizado para fazer referência ao inglês local em países onde o inglês não funciona como língua materna, por outro lado international English também faz referência ao uso da língua inglesa como meio para comunicação internacional perpassando limites nacionais e linguísticos. Como observa Seidlhofer (2004), esses dois sentidos estão em distribuição complementar. Conforme Jenkins (2006), em razão desse potencial para confusão da palavra international pesquisadores de ELF preferem o termo English as a lingua franca ao termo English as an international

50

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

language, muito embora “para aumentar a confusão, os dois termos estejam em uso atualmente” (JENKINS, 2006, p. 160). Outro problema encontrado por Jenkins (2006) diz respeito ao World Standard (Spoken) English (W(S)SE). De acordo com Crystal (2003a), frequentadores de conferências internacionais, autores cujos trabalhos se destinam a audiências internacionais e usuários da internet conseguem sentir a força do que ele chama de nova variedade. Ela toma forma, por exemplo, quando evitamos conscientemente o uso de uma palavra ou frase que sabemos não será entendida fora de nosso próprio contexto e, então, buscamos por uma forma alternativa para tal expressão. Conforme Jenkins (2006), alguns pesquisadores assumem que ELF (EIL) e WSSE se referem a um mesmo fenômeno e, por isso, criticam ELF (EIL) pela promoção de uma visão monocêntrica do inglês – uma visão que toma por base normas britânicas ou norte-americanas ao invés de respeitar uma perspectiva pluricêntrica baseada em normas locais. Nas palavras de Jennifer Jenkins, porém, essas alegações não poderiam estar mais afastadas da realidade. Em defesa da ELF, Jenkins (2006) assegura que longe de dar prioridade às formas da língua utilizada pelo inner circle, muitos pesquisadores da ELF excluem falantes de inglês como língua materna de sua geração de dados. Na sua forma mais pura, a ELF costuma ser definida como língua de contato usada somente entre falantes não-nativos da língua, afirma Jenkins (2006). Como exemplo, a autora cita House (1999) de acordo com o qual, as interações em ELF são definidas como interações entre membros de duas ou mais culturas de língua em inglês nas quais o inglês não representa a língua materna de nenhum deles. Apesar de reconhecer a versão mais pura da EFL, Jenkins (2006) deixa claro que a grande maioria de pesquisadores de inglês como lingua franca admite a participação de falantes provenientes de inner e outer circles em episódios de comunicação intercultural. Além disso, para a autora, esses pesquisadores também não definem EFL de forma tão rígida a exemplo de House (1999). Na investigação das particularidades apresentadas por interações que envolvem o inglês como lingua franca, a geração de dados não fica restrita às interações entre falantes não-nativos da língua. De acordo com Jenkins, caso a ELF venha a ser codificada, pesquisadores e falantes nativos de inglês terão que se acomodar à agenda instituída pelos falantes de inglês como lingua franca. Ainda em defesa da ELF, Jenkins (2006) discorda dos críticos segundo os quais a pesquisa do inglês como lingua franca pretende promover um conceito monolítico de inglês para todo o mundo. Muito embora os pesquisadores da ELF procurem identificar formas utilizadas de maneira constante e sistemática sem que delas resultem problemas de comunicação, a proposta desses pesquisadores não é a de codificar uma única variedade de ELF. A existência da ELF não implica na utilização de um inglês idêntico em todos os aspectos. “Os pesquisadores de ELF não acreditam que tal variedade monolítica exista ou que ela um dia existirá” (JENKINS, 2006, p. 161). Contudo, eles acreditam, segundo a autora, que qualquer pessoa que tome parte num episódio de comunicação internacional precisa estar familiarizada com certas formas (fonológicas, lexicais ou gramaticais) amplamente utilizadas por falantes de inglês provenientes de diferentes grupos de primeira língua. Segundo Jenkins (2006), é por isso que a noção de acomodação é tão cara à pesquisa do inglês como lingua franca. Ao mesmo tempo em que propõe a acomodação a um conjunto de formas comuns, a ELF encoraja aprendizado e uso de formas locais dentro de contextos comunicativos locais, não importando que se trate de inner, outer ou expanding circle.

51

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

Considerações finais World English, international English, global English, general English, literate English, English as a lingua franca, World Englishes e todas as outras possíveis tentativas de renomeação da língua inglesa apontam para a necessidade de definição do status, da posição e do papel desempenhado pelo inglês na era global. A adesão a uma determinada nomenclatura deixa transparecer o modo com o qual a relação que se estabelece entre o inglês e o mundo globalizado é vista por alguns pesquisadores da área da ASL. Como foi possível perceber, a grande maioria dos profissionais dedicados aos estudos da aquisição de segunda língua parece preocupada com fluxos culturais globais e locais bem como com a construção de identidades dos aprendizes de inglês como L2 ou LE. Mas, afinal, qual dos nomes aventados neste artigo parece mais adequado ao inglês do qual se faz uso no Brasil, especialmente nas escolas públicas? Em nossa opinião, o termo inglês como LE, que nem mesmo recebe a atenção dos estudos anteriormente aqui relatados, parece mais acertado para a discussão do ensino do inglês em sala de aula no país. Como revelam os dados gerados por Longaray (2005), porém, o inglês global enquanto língua das possibilidades futuras parece muito distante das realidades vividas pelos alunos das escolas públicas brasileiras. A língua símbolo da cidadania mundial não faz parte da rotina dos jovens participantes deste último estudo. Para os participantes envolvidos nas pesquisas conduzidas por Elisabete Longaray, assim como para grande maioria dos aprendizes brasileiros, o inglês não ultrapassa as paredes da sala de aula fato que não impede que os alunos sonhem, no entanto, em fazer parte de uma comunidade que extrapola os limites da língua e cultura locais – a comunidade global que parece ter no inglês um instrumento a serviço da manutenção das forças hegemônicas.

REFERÊNCIAS AHULU, S. General English: a consideration of the nature of English as an international medium. English Today, v. 13, n. 1, p. 17-23, 1997. BOLTON, K. World Englishes. In: DAVIES, A., ELDER, C. (Eds.). The handbook of applied linguistics. Oxford: Blackwell, 2004. p. 367-396. CRYSTAL, D. English as a global language. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2003a. ______. The Cambridge Encyclopedia of the English language. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2003b. ERLING, E. J. The many names of English: a discussion of the variety of labels given to the language in its worldwide role. English Today, v. 21, n. 1, p. 40-44, jan. 2005. GRADDOL, D. The future of English? Londres: British Council, 1997. HOLLIDAY, A. The struggle to teach English as an international language. Oxford: Oxford University Press, 2005. HOUSE, J. Misunderstanding in intercultural communication: interaction in English as a lingua franca and the myth of mutual intelligibility. In: GNUTZMANN, C. (Ed.). Teaching and learning English as a global language. Tübingen, Alemanha: Stauffenburg, 1999. p. 7389. JENKINS, J. The phonology of English as an international language: new models, new norms, new goals. Oxford: Oxford University Press, 2000. ______. Current perspectives on teaching world Englishes and English as a lingua franca. TESOL Quarterly, v. 40, n. 1, p. 157-181, mar. 2006.

52

Revista do Gelne, Piauí, v.12, n.1, 2010

KACHRU, Y. Teaching and learning of world Englishes. In: HINKEL, E. (Ed.). Handbook of research in second language learning and teaching. Mahwah, Nova Jersey: Lawrence Erlbaum, 2005. p. 155-73. LONGARAY, E. A. Identidades em construção na sala de aula de língua estrangeira. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005. McARTHUR, T. Is it world or international or global English, and does it matter? English Today, v. 20, n. 3, p. 3-15, jul. 2004. McKAY, S. L. Teaching English as an international language. Oxford: Oxford University Press, 2002. MODIANO, M. International English in the global village. English Today, v. 15, n. 2, p. 2228, 1999. ______. Ideology and the ELT practitioner. International Journal of Applied Linguistics, v. 11, n. 2, p. 159-173, 2001. PENNYCOOK, A. Global Englishes and transcultural flows. Oxon: Routledge, 2007. RAJAGOPALAN, K. The concept of World English and its implications for ELT. ELT Journal, v. 58, n. 2, p. 111-117, abr. 2004. SEIDLHOFER, B. Closing a conceptual gap: the case for a description of English as a lingua franca. International Journal of Applied Linguistics, v. 11, n. 2, p. 133-158, 2003. ______. English as a lingua franca. ELT Journal, v. 59, n. 4, p. 339-341, out. 2005. TOOLAN, M. Recentering English: new English and global. English Today, v. 13, n. 4, p. 310, 1997. TRUDGILL, P., HANNAH, J. International English. London: Arnold, 1982. WALLACE, C. Local literacies and global literacy. In: BLOCK, D., CAMERON, D. (Eds.). Globalization and language teaching. Londres: Routledge, 2002. p. 101-114. WIDDOWSON, H. G. The forum: EIL, ESL, EFL: global issues and local interests. World Englishes, v. 16, n. 1, p. 135-146, 1997. ______. EIL: squaring the circles: a reply. World Englishes, v. 17, n. 3, p. 397-404, 1998.

53

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

O PIAUÍ É AQUI: A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS E OS EFEITOS PATÊMICOS EM EDITORIAIS DO JORNAL MEIO NORTE João Benvindo de Moura*

Resumo O objetivo deste artigo é analisar as estratégias argumentativas utilizadas na construção de discursos veiculados pelo Jornal Meio Norte, noticiário de circulação diária em todo o estado do Piauí, através de dois editoriais publicados nos anos de 2008 e 2009. Partindo do princípio da Retórica de Aristóteles (1998), passando pela Nova Retórica de Perelman & OlbrechtsTyteca (2005) até chegar a teóricos contemporâneos como Amossy (2005), Plantin (2005), Maingueneau (2005, 2008) e Charaudeau (2007, 2010), são analisadas as principais construções discursivas que visam a persuadir ou convencer os leitores acerca da verdade que os jornalistas desejam passar, isto é, a ideia sobre a qual o orador deseja que seu auditório reflita e acolha. A análise revela a existência de diversas estratégias argumentativas tais como: os lugares de quantidade, o argumento de comparação, a inclusão da parte no todo, o exemplo, a refutação por antecipação, etc. Palavras-chave: Discurso, Retórica, Argumentação, Mídia. Abstract The objective of this article is to analyze the argumentative strategies used in the construction of speeches published by Meio Norte Newspaper, a daily paper which is read by the whole state of Piauí, through two editorials which were published during the years of 2008 and 2009. Starting from the assumption of the Rhetoric of Aristotle (1998), perpassing by The New Rhetoric of Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005) and ending with the contemporary theorists such as Amossy (2005), Plantin (2005), Maingueneau (2005, 2008) and Charaudeau (2007, 2010), the main discursive constructions are analyzed, which aim to persuade or to convince the readers about the truth the journalists wish to transmit, that is, the idea the orator wishes that his audience reflects and receives. The analysis reveals the existence of various argumentative strategies such as: the places of quantity, the argument of comparison, the inclusion of the part in the whole speech, the example, the refutation by anticipation, etc. Keywords: Speech, Rhetoric, Argument, Media.

Introdução Tradicionalmente, os estudos em Análise do Discurso focalizaram a relação que se estabelece entre a linguagem e o meio no qual ela é produzida. Levando em conta essa perspectiva, pesquisadores têm buscado explicitar os diferentes usos da linguagem para *

Professor do Departamento de Letras da UFPI – Doutorando em Estudos Linguísticos (UFMG) [email protected]

54

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

veicular “discursos”, ou seja, formas de ver e expressar o mundo, bem como as experiências a partir de uma perspectiva específica. Nesse sentido, percebemos a dualidade entre linguagem e sociedade, na medida em que uma tem influência sobre a outra, pois recorremos aos diversos sistemas de comunicação para expressarmos nossas relações sociais. Essas relações, por sua vez, são constituídas através das variadas formas em que a linguagem pode se manifestar. Partindo dessa constatação, procuramos um contexto que oportunizasse analisar como a linguagem é utilizada para estabelecer relações bidirecionais entre as pessoas. Com esse intuito chegamos à mídia, uma vez que a linguagem da mídia é utilizada numa situação social de comunicação, com papel relevante na difusão das relações e mudanças sociais e culturais. Por outro lado, atualmente o domínio da mídia é muito amplo, pois inclui televisão, jornal, revistas, rádio, internet etc. Dentre esses, tomamos o jornal impresso como objeto de estudo por este englobar um variado conjunto de textos associados a tipos específicos de informação, conteúdo, forma e objetivos comunicativos: publicidade, notícias policiais, notas sociais, editoriais. Cada um desses gêneros possui uma forma específica de estabelecer a comunicação com o leitor. Percebendo que cada gênero em particular poderia ser um rico material de análise, optamos por analisar aquele que demonstrasse, de forma mais explícita, marcas de persuasão, o editorial. Esse gênero congrega elementos, ou melhor, especificidades que são importantes, quando se deseja conhecer um pouco mais sobre linguagem e como argumentos são construídos com o intuito de persuadir o leitor de uma maneira específica dentro do universo midiático. Esse gênero tem por função apresentar a posição de cada jornal sobre assuntos que estão em voga no noticiário do momento, tendo por objetivo cooptar leitores para que creiam naquelas posições adotadas. A abordagem do gênero editorial torna-se relevante, na medida em que a análise dos recursos empregados por editorialistas para persuadir o leitor, suscita uma discussão mais crítica sobre os discursos veiculados pela mídia, servindo de ponto de referência para a produção e leitura mais eficientes de textos. Por uma Análise Argumentativa do Discurso A argumentação tem sido objeto de estudo de analistas do discurso de várias correntes. Não poderia ser diferente. A própria existência da sociedade pressupõe a presença imprescindível do ato de argumentar. Em nosso dia-a-dia, estamos constantemente em processo de interação com o outro, interferindo em sua maneira de pensar, agir e sentir. Na verdade, a argumentação começou a ser praticada no instante em que o homem lançou mão da comunicação e da linguagem no mundo. Em pesquisas anteriores (MOURA, 2007) afirmamos que o estudo da argumentação, em todo e qualquer evento discursivo, deve considerar os elementos que compõem a cena enunciativa. Considerando-se a cena enunciativa de produção de um editorial, é importante salientar que os interactantes do evento – empresa, veículo, editor e leitor – não são apenas sujeitos empíricos, mas representam papéis sociais determinados na estrutura social na qual estão inseridos. Papéis esses perpassados pelo discurso da mídia e pelo discurso político. Neste trabalho, utilizaremos as bases conceituais e metodológicas para uma Análise Argumentativa do Discurso formuladas, dentre outros, por Aristóteles (1998) Plantin (2005) e Amossy (2006) e pautadas nos fundamentos retóricos da arte de persuadir. Partindo da antiga Retórica (de Aristóteles) até a Nova Retórica (de Perelman e Olbrechts-Tyteca) esses autores convergem para os atuais postulados da Análise do Discurso desenvolvidos, principalmente, por Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau. Ancorando-nos na Nova Retórica podemos afirmar que toda argumentação tem o objetivo de “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu 55

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

assentimento” (PERELMAN & OLBRECHT-TYTECA, 2005, p. 50). Resta-nos indagar se toda enunciação carregaria dentro de si um caráter argumentativo. A princípio, o ato de utilizar a palavra nem sempre se destina a convencer alguém de alguma coisa. No nosso cotidiano podemos encontrar diversos textos que não possuem orientação estritamente argumentativa. Entretanto, mesmo não tendo a intenção de convencer, toda situação comunicativa acaba por exercer alguma influência, orientando maneiras de ver e de pensar. De acordo com Charaudeau (2007), todo ato de linguagem origina-se de um sujeito instaurando uma relação com o outro (princípio da alteridade) de maneira a influenciá-lo (princípio de influência) e, ao mesmo tempo, a produzir uma relação na qual o interlocutor tem seu próprio projeto de influência (princípio de regulação). Partindo do exposto percebemos que, dada a sua natureza dialógica, o discurso comporta como qualidade intrínseca a capacidade de influenciar o outro, agindo sobre o mesmo. É preciso considerar, no entanto, a distinção feita por Amossy (2006) entre estratégia de persuasão programada e a tendência de todo discurso de orientar as maneiras de ver do(s) interlocutor(es). No primeiro caso, o discurso manifesta uma orientação argumentativa: o discurso político e a publicidade constituem exemplos flagrantes disso. No segundo caso, ele comporta simplesmente uma dimensão argumentativa sem, necessariamente, uma intenção consciente de persuasão. Assim acontece com o artigo informativo que preza pela neutralidade, a conversa coloquial ou o texto ficcional. Mas ainda que a argumentação não apresente uma vontade manifesta de conduzir à aprovação continua sendo parte integrante do discurso em situação. Compete também ao analista descrever suas modalidades da mesma maneira que outros processos linguageiros. No caso do editorial de um veículo informativo, há controvérsias. Halliday (1999) argumenta que os editoriais não possuem o poder persuasivo para convencer tendo em vista que são consumidos por leitores que já pensam como o editorialista. Geralmente os editoriais de jornais, ao emitirem opiniões sobre problemas da cidade ou fatos da vida pública nacional, têm a função retórica de reafirmar a posição daquela empresa jornalística e de reforçar as crenças dos leitores que já pensam como o editorialista. Dificilmente terão o poder persuasivo de convencer um oponente daquele ponto de vista a aceitar a “verdade” daquele editorial. (HALLIDAY, 1999 p. 37) Discordamos parcialmente dessa autora, por considerarmos que a pretensão de um auditório ideal nunca é completamente consolidada nas trocas linguageiras. Assim sendo, a imagem de um leitor real é deveras fragmentada. O jornal pode atingir um público constituído por uma pluralidade de filiações políticas, matizes religiosas ou identidades culturais. O editorialista de um jornal como o Meio Norte, se dirige, portanto, ao conjunto da sociedade piauiense, construindo uma argumentação que seja capaz de agradar aos que já compartilham com suas ideias e convencer aqueles que, porventura, lhes sejam contrários. Para Galinari (2007b), o termo argumento pode ser associado aos mais variados tipos de enunciados sociais que, numa dada conjuntura, podem incitar o outro a crer, a fazer, a sentir, etc. Para o mesmo autor, a carga argumentativa dos enunciados está diretamente ligada à dinamicidade da situação comunicativa e dos projetos de fala envolvidos na interação, responsáveis, também, por controlar o “volume” da intensidade de adesão, selecionando ou combinando, a bel prazer, teses, ações e emoções. Acreditamos, portanto, que a argumentação não é um tipo de discurso dentre outros, nem mesmo uma modalidade específica da organização 56

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

linguageira, como quer Charaudeau (1992), mas um componente (maior ou menor) presente em qualquer enunciado social, capaz de produzir intensidades de adesão variadas, a curto ou a longo prazo. (GALINARI, 2007b, p. 54) A partir dos pressupostos teóricos já explicitados, o ponto de partida deste estudo, no que concerne ao quadro teórico sobre argumentação, são as provas retóricas (de persuasão) ou argumentos. Tais categorias se dividem em três: o ethos (persuasão pela imagem de quem fala/orador), o pathos (persuasão pelas paixões suscitadas no ouvinte/auditório) e o logos (persuasão por meio do raciocínio demonstrado pelo discurso). Essas provas são combinadas no discurso, no sentido de obter a persuasão, que é o fim pretendido pela prática argumentativa. Tomemos cada uma delas individualmente, para melhor compreendê-las. Ethos Ao tratarmos da noção de ethos não podemos deixar de explicitar, inicialmente, sua vinculação umbilical à tradição retórica. Tal noção é retomada na França, nos anos de 1980, através dos trabalhos de Oswald Ducrot e Dominique Maingueneau. O próprio Maingueneau (2008) admite que quando começou a refletir sobre isso, não imaginava que tal noção viesse a ter tanta repercussão. O autor atribui essa efervescência à proliferação dos meios de comunicação nos últimos 30 anos: “Parece claro que esse interesse crescente pelo ethos está ligado a uma evolução das condições do exercício da palavra publicamente proferida, particularmente com a pressão das mídias audiovisuais e da publicidade”. (MAINGUENEAU, 2008, p. 11) O ethos corresponde à construção de uma imagem de si destinada a influenciar um determinado público. Essa imagem, sendo o produto de uma construção discursiva, não equivale, necessariamente, à pessoa real do orador. Trata-se de uma representação que pode, por um lado, estar ligada às virtudes morais que culminam na credibilidade do locutor perante o alocutário; por outro “lado”, estar relacionada à adequação da fala do orador ao papel social que desempenha no momento da enunciação, o que potencializa sua capacidade de persuasão. Como explica Eggs (In. AMOSSY, 2005, p.30), Encontramo-nos, portanto, na Retórica de Aristóteles, diante de dois campos semânticos opostos ligados ao termo ethos: um, de sentido moral e fundado na epieíkeia, engloba atitudes e virtudes como honestidade, benevolência ou equidade ; outro, de sentido neutro ou “objetivo” de héxis, reúne termos como hábitos, modos e costumes ou caráter. (...) essas duas concepções não se excluem, mas constituem, ao contrário, as duas faces necessárias a qualquer atividade argumentativa. Parece impossível ignorar que o conteúdo e a forma de se expressar podem render ao sujeito uma adesão ou rejeição à sua empreitada enunciativa. A imagem de si está sendo construída, portanto, no instante da enunciação. Mas não se pode negar, no entanto, a existência de outra imagem: aquela que o auditório já possui acerca do enunciador antes mesmo que ele comece a falar. É visível, nesse caso, a existência de dois tipos de ethos:

57

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

1) O ethos discursivo ou ethos presente1, que é instaurado no momento da enunciação, atualizado no discurso pelo enunciador em tempo real, enquanto ele se dirige ao destinatário, seja face a face ou virtualmente. 2) O ethos pré-discursivo ou ethos prévio, composto pelas informações acerca do orador que o auditório já possui antes da enunciação em questão, procedente do nível situacional e do acesso da plateia a um interdiscurso que fornece dados para a elaboração dessas impressões. Maingueneau (2006) afirma que apenas o primeiro corresponde à definição de Aristóteles. Além do mais, considerar as informações preexistentes ao momento da enunciação como “pré-discursivas” é o mesmo que caracterizá-las como “não discursivas” o que, a nosso ver, descaracteriza a própria noção de discurso entendida como “efeito de sentido entre locutores” (ORLANDI, 2007, p. 21). Parece-nos mais apropriado adotar os termos ethos prévio e ethos presente deixando implícito, portanto, que os dois são igualmente discursivos. O fato é que a junção das informações preexistentes com a enunciação proferida em dado momento nos revela dois elementos fundamentais: a capacidade do enunciador de lançar mão estrategicamente de sua reputação, seja para endossá-la, refutá-la ou modificá-la; e a aptidão do co-enunciador para usar o conhecimento prévio acerca do enunciador na interpretação do discurso que lhe é transmitido. Essa rede de interações é o que determina o caráter persuasivo da argumentação exposta. No caso do editorial, como poderíamos, a partir daí, perceber as imagens de si resultantes de sua enunciação? Como essas imagens orientariam o público leitor retoricamente, como efeito possível? Elas poderiam, em uma conjuntura dada, influenciar pensamentos, alterar estados de ânimo, ou mesmo favorecer condutas coletivas? Falaríamos em ethos de quem, enquanto jogo de imagens disseminadas pela enunciação do jornal? Do ethos do editor? Do(s) proprietário(s) do veículo de comunicação? Do governo do estado? São questões como essas que pretendemos explorar neste artigo. Passemos agora à prova retórica que tem como instrumento de persuasão o estímulo das emoções da plateia: o pathos. Pathos Ao discorrermos sobre o termo pathos estaremos nos referindo diretamente à utilização discursiva do elemento emocional com fins estratégicos de persuasão. Ao elaborar o projeto de fala, se a intenção é buscar a adesão da plateia, o orador pode recorrer àquilo que tocar o público. Para isso, ele deve estar a par das características do auditório (idade, sexo, condições sociais, convicções, etc.) e da natureza de suas emoções. É interessante para o locutor que ele saiba a que tipo de sentimentos o alocutário é suscetível para se adaptar no momento da enunciação. De acordo com Alves (2007, p. 66) “a organização do universo patêmico depende do contexto sócio-cultural dentro do qual a troca comunicativa se inscreve”. No tocante ao constante duelo teórico entre razão e emoção, Parret (1986) e Amossy (2005) adotam o ponto de vista de que o pensamento é passional e a racionalidade é necessariamente afetiva, ou seja, poder-se-ia falar, assim, na existência de razões das emoções. As emoções seriam julgamentos avaliativos racionais: um determinado sentimento pressupõe uma avaliação de seu objeto, cujos critérios são associados, no nível da razão, às crenças e valores (base dóxica) que envolvem esse objeto. Trata-se de um sistema circular, de reciprocidade, uma vez que, se a manifestação emotiva está submetida a um exame de crenças 1

Em sua tese de doutorado, Galinari (2007b) propõe a expressão “ethos presente” em substituição a “ethos discursivo”. Na sua concepção, o termo presente “... viria simbolizar uma certa fidelidade às formulações de Aristóteles, na medida em que vincula o ethos a um resultado da enunciação, no presente de sua ocorrência”. (GALINARI, 2007b, p. 76) 58

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

e valores racionais, esses mesmos princípios são construídos no centro da paixão; afinal, as emoções interferem diretamente na produção da doxa. Percebe-se ainda uma confluência entre os dois autores mencionados quando Parret (1986) afirma que a lógica das paixões é uma lógica de consequências, regida pelo princípio de finalidade, já que se ergue sobre a proposta de realização de um objetivo. Portanto, essa lógica não está calcada na demonstração da verdade, mas sim na busca de um resultado prático cujo alcance desejado condiciona os meios a serem utilizados. Amossy (2005) afirma que o sentimento tem fundamento na razão e que todo julgamento é, por definição, não somente qualitativo, mas também passional. O pathos exerce sua função no discurso argumentativo quando se manifesta pelo logos para deflagrar a adesão (tanto afetiva como racional) do auditório. Dessa maneira, torna-se essencial a análise da paixão, do sentimento, dentro do quadro da interação argumentativa. Adotando essa mesma linha de raciocínio, Charaudeau (2010) esclarece que o ponto central da abordagem linguística das emoções reside no fato de que elas estão inseridas numa relação de troca linguageira que envolve [...] desejos e intenções dos sujeitos, suas relações de pertencimento aos grupos, o jogo das interações que se estabelecem entre eles, indivíduos ou grupos, conhecimentos e visões do mundo que eles compartilham, e em circunstâncias de troca ao mesmo tempo particulares e tipificadas. (CHARAUDEAU, 2010, p.26) Num primeiro momento, o linguista afirma que as emoções são de ordem intencional, pois se manifestam em um indivíduo a partir de algo que ele imagina. E esse algo imaginado está ligado às intenções do sujeito, uma vez que tem relação com representações acerca das quais ele se posiciona, seja de modo favorável, combativo ou incerto. Posteriormente, o autor aborda a relação entre as emoções e os saberes de crença, uma vez que elas advêm de uma espécie de julgamento subjetivo que cada indivíduo faz dos dados que lhes são apresentados. Tal avaliação é estruturada em torno de valores relativos para cada sujeito, de acordo com os princípios e normas (saberes de crença) sociais e/ou particulares, psicológicas e/ou morais, que regem sua vida. Finalmente, Charaudeau acredita que as emoções se inscrevem dentro de uma problemática das representações psicossociais, pois a consciência psíquica do sujeito é construída a partir de sua experiência intelectual e afetiva, por meio das trocas sociais das quais ele participa. De acordo com Mello (2003, p. 37) “a atividade do sujeito não se dá apenas em relação aos e sobre os próprios mecanismos sintático e semântico”. Portanto, é nesta atividade que o sujeito se constitui enquanto tal, e exatamente por esta atividade. Resumindo, para Charaudeau, as emoções são “... ao mesmo tempo, origem de um „comportamento‟, enquanto se manifestam através das disposições de um sujeito, e controladas (ou mesmo, sancionadas) pelas normas sociais advindas dessas crenças” (CHARAUDEAU, 2010, p.33). Contudo, ele ressalta que a emoção é relativa, à medida que a intenção de emocionar não garante que isso realmente aconteça. Ao mesmo tempo, é possível que haja emoções numa troca linguageira, sem que isso tenha sido um objetivo prévio dos participantes. A AD tenta estudar, portanto, o processo discursivo pelo qual a emoção pode ser empregada como efeito visado, mas consciente de que isso não assegura ainda o efeito produzido, concretizado. Nesse sentido, Charaudeau fala nos efeitos patêmicos (possíveis) do discurso a serem apreendidos pelo analista. Há um conjunto de fatores que precisam ser considerados para que algum elemento da linguagem possa ser considerado como um índice de patemização, dentre eles: o elemento situacional, as intenções e expectativas, o contrato comunicativo, os saberes de crença (ou elementos dóxicos) vigentes e, ainda, as inclinações afetivas do interlocutor. Dessa maneira, o 59

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

estudo do efeito patêmico está submetido aos recursos linguísticos passíveis de gerar a emotividade, somados à predisposição do dispositivo comunicacional e do campo temático em questão para a patemização. Além disso, a pesquisa das emoções no discurso está sujeita às possibilidades patemizantes abertas pelo espaço de estratégias, pelo jogo estabelecido entre as restrições e as liberdades enunciativas colocadas para os sujeitos envolvidos. Ao nos dispormos a abordar a questão do pathos neste trabalho, é importante lembrar que, ao utilizar a função referencial da linguagem, o gênero editorial apresenta-se, aparentemente, despido de qualquer marca de afetividade. Ao tecer uma argumentação seca e factual sobre um determinado acontecimento, o editorial pretende construir uma imagem de isenção. Trata-se de um pathos em estado bruto, na medida em que o discurso que provoca a indignação pretende apresentar-se desprovido de marcas de afetividade. Portanto, quanto menos a emoção se inscrever verbalmente, tanto mais forte ela se tornará aos olhos do leitor. Assim, no gênero editorial, a explicitação das marcas de afetividade tende a aparecer da forma mais discreta possível. Nesse sentido, é que falar de emoções no editorial, assim como nos outros discursos sociais, de modo geral, não é tão óbvio quanto parece. Vejamos, a seguir, a última prova retórica, ou seja, o logos, que utiliza as estratégias discursivas em si como meio para atingir a persuasão. Logos O logos está diretamente ligado à persuasão através da qual o orador demonstra ou tenta demonstrar a verdade pelo discurso, ou seja, usa a razão para fundar sua proposição. Dessa maneira, impõe suas conclusões racionalmente, lançando mão de premissas que poderão ser admitidas como verdadeiras pelo auditório; constrói raciocínios lógicos ou inferências, e os expressa no discurso: “Persuadimos, enfim, pelo discurso, quando mostramos a verdade ou o que parece verdade, a partir do que parece persuasivo em cada caso particular.” (ARISTÓTELES, 1998, p.50) Ratificando a posição de Aristóteles, Menezes (2004) caracteriza o conceito de logos como razão demonstrativa retórica, uma vez que, nele, os raciocínios usados pelo orador são colocados em ação para convencer o outro: Esta prova realiza-se pelo que chamamos anteriormente de razão demonstrativa retórica, ou seja, o entimema e o exemplo2, num quadro próprio de racionalidade coordenado pelo que é verossímil. (...) A virtude, neste caso, relaciona-se à capacidade para a deliberação adequada sobre os assuntos relativos à felicidade. (MENEZES, 2004, p.110) Dentro dos estudos sobre argumentação o logos é visto como uma categoria imbuída de dupla carga semântica. Por um lado, é palavra, discurso, e sua dimensão argumentativa está ligada à significação inerente à linguagem, com todos seus atributos: léxico, sintaxe, fonética, marcadores como ritmo, entonação, pontuação etc. A orientação argumentativa do discurso tem base, então, nas seleções linguísticas realizadas para a elaboração do mesmo. Por outro lado, é raciocínio, entendimento (razão), e direciona a plateia para as ferramentas de demonstração da verdade aparente por meio de uma sucessão – lógica – de raciocínio. De tal forma que essa dupla vertente da categoria logos faz com que a palavra nos reenvie ao conteúdo interno, morfossintático do discurso propriamente dito; enquanto o termo raciocínio

2

No sentido Aristotélico, entimema corresponde à dedução silogística; enquanto exemplo equivale à indução. 60

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

remete às relações de causa e consequência, antítese, oposição, deduções, induções, relações de contiguidade e tudo que possa ser associado a operações mentais. No percurso da tradição retórica, o logos já foi bastante privilegiado por análises estritamente lógicas, de conteúdo proposicional, voltadas para a estrutura linguística, sem dar conta da conjuntura psicossociocultural. Neste artigo, será dada maior atenção ao ethos, centrado na instância de produção/elemento situacional, e ao pathos, que se refere ao auditório. O que não impede o despertar da curiosidade acerca da relação entre o logos e o editorial.

Análise do corpus

Editorial JMN, 03.05.07 O presente editorial foi publicado pelo Jornal Meio Norte em 03.05.07, ou seja, no início do primeiro ano do segundo mandato do atual governador do Piauí Wellington Dias e apresenta o resultado de avaliação feita pelo Ministério da Educação sobre o Ensino Fundamental no Brasil. É imprescindível lembrar, portanto, que os indicadores sociais citados no texto já refletem, em parte, ações do atual governo, embora seja impossível desconsiderar a situação social histórica do estado. Por estar sendo escrito para um jornal do Piauí, o sujeito enunciador precisa apontar logo nas primeiras linhas, a posição desse estado no ranking a fim de satisfazer aos leitores que, supostamente, estão ansiosos por esta informação. Como as estatísticas são bastante desfavoráveis ao estado, o que refletirá inevitavelmente sobre o atual governo do qual o jornal é aliado, faz-se necessário o uso de determinadas estratégias argumentativas que relativizem o 61

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

efeito devastador dos números. Assim sendo, após a apresentação do fato de que o Piauí possui 90 municípios entre aqueles com piores índices de avaliação no Ensino Fundamental brasileiro, o editor estabelece uma comparação com três outros estados que estão em situação pior: a Bahia, 205 cidades, a Paraíba com 108 e o Rio Grande do Norte com 100. O efeito de sentido pretendido é: “não somos o pior. Existem outros estados em situação menos favorável que a nossa.” Percebemos aqui a utilização de duas estratégias de argumentação, de acordo com Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005): os lugares de quantidade e o argumento de comparação. A primeira das estratégias, diz respeito aos lugares-comuns que afirmam que alguma coisa é melhor (ou menos ruim) que outra por razões quantitativas. “O mais das vezes, aliás, o lugar da quantidade constitui uma premissa maior subentendida, mas sem a qual a conclusão não ficaria fundamentada” (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 97). Aristóteles (1998) assinala alguns desses lugares: um maior número de bens é preferível a um menor número, etc. Há que se observar, a esse respeito, que a superioridade em questão aplica-se tanto aos valores positivos como aos negativos, como é o caso do editorial em análise. No argumento de comparação, são confrontadas realidades entre si, e isto de uma forma que parece muito mais suscetível de prova do que um mero juízo de valor ou de analogia. Tal impressão deve-se ao fato de a ideia de medição estar subjacente nesses enunciados, principalmente pelo fato de utilizarem dados provenientes de uma fonte oficial credenciada e detentora de autoridade para tal, como é o caso do Ministério da Educação. “Por isso os argumentos de comparação são quase-lógicos” (PERELMAN & OLBRECHTSTYTECA, 2005, p. 274). Mas é preciso cautela na análise, pois um leitor que não utilize adequadamente o seu senso crítico poderá considerar tão somente o aspecto numérico-quantitativo, convencendo-se de que a existência de outros estados com quantidades mais altas de municípios entre aqueles com pior desempenho no Ensino Fundamental, atenua o problema educacional piauiense. Em seguida, o sujeito enunciador desqualifica antecipadamente aqueles que porventura considerem que o fracasso educacional é próprio do Piauí “e dos demais estados do Nordeste”. Percebe-se uma tentativa constante de não isolar o Piauí dos demais estados. A inserção de um objeto num conjunto maior de elementos fragmenta o foco de atenção, dissimulando o destaque negativo que teria, estando sozinho. Trata-se da estratégia da inclusão da parte no todo. Aos que interpretam os dados como um fracasso educacional do Piauí são atribuídas expressões como: “mais apressados”, “gostam mais de criticar que de propor soluções” e “veem nos problemas uma oportunidade de ganhar poder”. Trata-se, portanto, de um caso de refutação por antecipação. O enunciador constrói, portanto, um ethos prévio do seu auditório, estabelecendo uma pressuposição em relação ao que imagina ser a reação de alguns de seus leitores. A fim de neutralizá-la ou de utilizá-la como parâmetro para construir uma argumentação convincente à sua tese, antecipa alguns rótulos para aqueles que pensam de forma contrária. No segundo parágrafo, o editor se rende novamente aos dados numéricos, afirmando que o Nordeste realmente concentra 80% dos municípios com pior desempenho no Ensino Fundamental, mas, em seguida, um novo argumento atenuante é externado: “existe pouca distância entre o que é considerado pior ou melhor”, ou seja, existe uma “calamidade pública” ou, em outras palavras, o baixo rendimento do Ensino Fundamental constitui um problema generalizado no país, não sendo tão somente fruto da suposta pobreza existente no Piauí, ou na região Nordeste. Para comprovar tacitamente tal afirmação, é apresentado outro dado do Ministério da Educação apontando o município de Ramilândia no estado do Paraná, “um dos mais ricos do país”, como o campeão do baixo desempenho no EF. Lá, a média dos alunos foi de apenas 0,3.

62

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

O editor afirma ser evidente que o problema é brasileiro e necessita ser resolvido por todos. A partir daí entra o discurso da participação popular, do envolvimento da família com a escola e do empenho dos gestores municipais. O editor afirma que não basta apenas derramar dinheiro no sistema educacional, nem tampouco construir escolas ou aumentar o custeio salarial. “Melhorar a escola é tarefa coletiva, demorada e que dá trabalho. Não é coisa para indolentes, apressados e populistas”. Por fim, o enunciador assume um tom professoral atuando como conselheiro e comandante do processo de transformação: “É um dever de todos nós – governo e sociedade – fazer com que a escola se transforme em unidade produtora de excelência e não de más notícias, como essa tragédia dos pífios desempenhos medidos pelo próprio Ministério da Educação”. Observa-se aqui um visível efeito patêmico de adesão, engajamento, pertencimento, estímulo à ação. Por fim, considerar as condições de produção e sua relação com esse editorial é enfatizar metodologicamente que um discurso não pode jamais ser isolado sem riscos: tomado em uma cadeia discursiva, qualquer discurso é dinamicamente ligado, como resposta, a outros, e ele invoca outros, por sua vez, como resposta. Essa tese é defendida por toda a obra de Mikhail Bakhtin quanto por Michel Foucault em Arqueologia do Saber (1969).

Editorial JMN, 03.04.09 O segundo editorial, publicado em 03.04.09, estabelece um debate acerca do corte orçamentário de R$ 100 milhões nas despesas do estado do Piauí, feito pelo governador Wellington Dias, para o exercício do ano de 2009. Em primeira instância, o editor utiliza a estratégia da argumentação pelo exemplo de acordo com Perelman & Olbrechts-Tyteca (2005), ou seja, ao promover um corte de gastos, o governador estaria seguindo uma das mais antigas e eficazes receitas do mundo: gastar menos do que aquilo que possui. Tal atitude constitui um exemplo a ser seguido por todos; uma 63

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

generalização, portanto. Ato expressivo, totalmente apreendido pelo pathos, revelando uma clara intenção de produção de um ethos de equilíbrio e credibilidade em relação ao governo do estado, de maneira a se tornar credível aos olhos da instância cidadã. Antecipando-se ao fato de que os cortes no orçamento geralmente provocam reações sociais, uma vez que impossibilitam a realização de determinadas obras, investimentos, aumentos de salário, etc. o enunciador utiliza uma estratégia de reversibilidade de sentidos, ou seja, a transformação de um fato negativo, a priori, em informação positiva. Tal operação argumentativa revela a existência de um auditório presumido, bem como de suas origens e reações psicológicas ou sociológicas. Novamente percebemos o artifício da refutação por antecipação. Em nenhum instante, o enunciador informa onde exatamente incidirão os cortes, afirmando apenas que “devem ser os gastos de custeio os mais afetados”. Mais à frente apresenta declaração do secretário de Fazenda do estado assegurando que não haverá atraso nos salários por ser este “um compromisso que não pode ser quebrado”. A presença do discurso relatado em sua forma indireta revela uma marca argumentativa comum no gênero editorial e objetiva deslocar o foco de responsabilidade sobre o jornal para outra instância: “Não é o jornal que está assegurando, é o secretário de Fazenda”. Em seguida é arrolada uma sequência de argumentos para corroborar com o discurso estatal: “além do prejuízo político de um atraso, os efeitos sobre a economia local seriam desastrosos”. O efeito patêmico produzido é o da confiança (Charaudeau, 2007), ou seja, o leitor é levado a crer que nenhum governante gostaria de sofrer os efeitos mencionados, portanto, o atraso de salário estaria descartado. Aqui há também o tom professoral que alerta para as lições que devem ser tomadas: “O estado pode e precisa tirar lições da crise, adotando desde logo medidas que resultem em ganhos fiscais futuros.” O veículo de comunicação tenta construir uma imagem de si associada à competência, ao conhecimento de causa, à capacidade de sugerir posturas e ações do governo. O editor afirma que a “bonança fiscal” hoje existente no estado do Piauí, se deu graças a uma “austeridade invejável”, com limitação dos gastos de pessoal em 47% das receitas correntes líquidas, quando poderia chegar até o limite de 49%. Informa ainda que a Lei de Responsabilidade Fiscal estabeleceu um limite prudencial de 46%. Novamente o argumento de quantidade é acionado, e, desta vez, acompanhado de uma série de expressões positivas que sugerem leveza, equilíbrio, ordem estabelecida. No penúltimo parágrafo o editor faz um alerta acerca da queda de arrecadação de estados e municípios. Em seguida assegura que o estado somente pode manter o pagamento de salários em dia, porque não foi açodado pelos gastos. Percebemos aqui uma relação de causa e efeito, ou seja, o equilíbrio fiscal do estado possibilitou a honra dos compromissos salariais. Tal fenômeno pode ser denominado de argumento pragmático. “Denominamos de argumento pragmático aquele que permite apreciar um ato ou um acontecimento consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis.” (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 303) Por fim, o enunciador faz nova advertência, cujas palavras são reproduzidas em destaque no centro do texto: “Para o futuro, o essencial é que o custeio de pessoal (leia-se: aumento de salário) seja mantido sob controle, seja pela lei, seja pelo bom senso.” O enunciado traduz-se num recado às diversas categorias profissionais que estão em greve (ou pensando em fazê-la) neste momento e pretende construir um ethos de bom conselheiro através de uma seleção lexical criteriosa apelando para a legalidade e o bom senso.

64

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

Considerações finais Nos dois editoriais analisados percebe-se um claro desejo de construção de um “ethos de outrem”, ou seja, do governo do estado. Através das estratégias observadas acima o jornal pretende inspirar confiança em si mesmo e no “outro” no que diz respeito à virtude, de acordo com Aristóteles (1998). Pretende-se projetar um ethos da competência, aquele que exige de seu possuidor, concomitantemente, saber e habilidade, tentando provar que tem os meios, o poder e a experiência necessários para realizar completamente seus objetivos, obtendo resultados positivos. Ao mesmo tempo o enunciador tenta revelar constantemente conhecimento profundo do domínio particular sobre o qual constrói o seu discurso. Pretendese qualificar o veículo de comunicação como detentor de um saber social e político capaz de formar a opinião dos leitores e garantir a adesão dos mesmos. Apesar de serem discursos argumentativos caracterizados pela função referencial da linguagem e supostamente despidos de afetividade, vale recordar Amossy (2005) quando afirma que o pensamento é passional e a racionalidade é puramente afetiva, ou seja, poderiase falar, assim, na existência das “razões das emoções”. As imagens de si associadas à razão e ao sentimento (ethos, logos e pathos) são mobilizados nos editoriais em análise com o intuito de provocar a adesão do auditório. As três provas retóricas coexistem, portanto, na elaboração de um argumento e contribuem decisivamente para o seu sucesso.

REFERÊNCIAS ALVES, Carolina Assunção e. Efeitos de Patemização no discurso fílmico. In: Machado, Ida Lúcia et alli (Orgs.). As emoções no discurso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. p. 63-74. AMOSSY, Ruth. O Ethos na Intersecção das Disciplinas: Retórica, Pragmática, Sociologia dos Campos. In: Amossy, Ruth (Org.). Imagens de si no Discurso: a Construção do Ethos. São Paulo: Contexto, 2005. ARISTÓTELES. Definição da retórica e de sua estrutura lógica. In: Retórica. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998. p.48-58. CHARAUDEAU, Patrick. A patemização na televisão como estratégia de autenticidade. In: MENDES, Emília; MACHADO, Ida Lúcia. (Orgs.) As emoções no discurso. Volume II. Campinas – SP: Mercado de Letras, 2010. p. 23-56 ______ . Pathos e discurso político. In: Machado, Ida Lúcia et alli (Orgs.). As emoções no discurso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. p. 240-251. ______ . Grammaire du Sens et de l’Expression. Paris: Hachette, 1992. GALINARI, Melliandro Mendes. As emoções no processo argumentativo. In: Machado, Ida Lúcia et alli (Orgs.). As emoções no discurso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007a. p. 221-239. ______ . A era Vargas no pentagrama: dimensões político-discursivas do canto orfeônico de Villa-Lobos. 2007b. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte. HALLIDAY, Teresa Lúcia. O que é retórica. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1999. JORNAL MEIO NORTE. Disponível em: http://www.jornalmn.com.br MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel & SALGADO, Luciana. Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008, p. 11-29 65

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

______ . Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (org.) Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. MELLO, Renato de. Os Múltiplos sujeitos do discurso no texto literário. In: MARI, H.; MACHADO, I. L.; MELLO, R. (orgs.) Análise do Discurso em Perspectivas. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2003. p. 33-50. MENEZES, Willian. Discurso e virtude. In: Evento, jogo e virtude nas eleições para a presidência do Brasil – 1994 e 1998. 2004. Tese (Doutorado em Lingüística) – Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte. MOURA, João Benvindo de. Identidade, produção e disputas de sentido nos discursos do PT. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Federal do Piauí, UFPI, Teresina – PI. PARRET, Hermann. Les Passions: essai sur la mise en discours de la subjectivité. Bruxelles: Pierre Mardaga, 1986. PERELMAN, Chaïm. & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005. PLANTIN, Christian. L’argumentation: histoire, théories e perspectives. Paris: PUF, 2005.

66

Revista do GELNE, Piauí, v. 12, n.1, 2010.

A VARIAÇÃO NÓS E A GENTE NO PORTUGUÊS CULTO CARIOCA Caio Cesar Castro da Silva*

Resumo Pretende-se observar a distribuição entre as variantes de primeira pessoa do plural em textos orais e escritos do português culto da cidade do Rio de Janeiro. Os dados serão analisados a partir de variáveis linguísticas e sociais. Além disso, objetiva-se relacionar o fenômeno com a questão do ensino. Palavras-chave: sociolinguística, 1ª pessoa do plural, indeterminação do sujeito. Abstract We intend to analyse the distribution of portuguese personal pronouns “nós” and “a gente”. The database for this study is composed of oral and written texts produced by native speakers from Rio de Janeiro. Besides, we will stablish a relationship between this issue and the challenge of education. Keywords: sociolinguistics, personal pronouns, subject indeterminacy

Introdução

Alguns autores (LOPES, 2002; CALLOU et alii, 2006; OMENA, 2003) afirmam que a implementação de a gente no quadro pronominal do português se iniciou entre os séculos XVII e XVIII, ainda que seu uso categórico só seja percebido a partir do século XX. O processo de gramaticalização pelo qual passou a gente vem sendo estudado nos últimos anos em várias pesquisas de cunho sociolinguístico, assim como a alternância gerada entre a nova forma pronominal e a forma antiga de primeira pessoa do plural, nós. Como é normal nos itens gramaticalizados, o pronome a gente ainda conserva resquícios do período em que ainda era um sintagma coletivo, como a impossibilidade de aparecer acompanhado de um determinante (* a gente três) e o traço de indefinitude, capaz de fazer referência a uma quantidade indeterminada de pessoas. Contribui também o fato de ser uma forma mais neutra do que nós, posto que mantém vínculo com o núcleo do SN coletivo, do qual se originou. Isso geraria a maior ocorrência de a gente em ambientes menos marcados, seja quanto ao tempo do verbo, seja quanto à saliência fônica. Objetiva-se, neste trabalho, tecer considerações sobre o uso dos pronomes nós e a gente no português carioca culto, tomando por base textos do NURC/ RJ e do VARPORT. O trabalho encontra-se organizado desta maneira: primeiramente, serão apresentados a metodologia e o arcabouço teórico que foram utilizados, bem como os corpora de textos do português da década de 90. Em seguida, observam-se os contextos, linguísticos e sociais, favorecedores da ocorrência 67

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

de cada variante. Pretende-se, também, refletir sobre a questão do ensino e como abordar o fenômeno em sala de aula. Por fim, seguem as palavras finais e as referências bibliográficas.

Pressupostos teórico-metodológicos e amostras utilizadas

O trabalho ancora-se no instrumental teórico da sociolinguística variacionista (WEINREICH, LABOV & HERZOG, 2006; MOLLICA et alli, 2008) e tem por objetivo verificar a distribuição dos pronomes que fazem referência à primeira pessoa do plural, assim como observar os contextos favorecedores à ocorrência das formas. Para o trabalho, foram coletados dados da década de 90 em amostras de fala culta carioca (projeto NURC/ RJ) e em amostras de textos veiculados em jornais cariocas, disponíveis para consulta no sítio do projeto VARPORT. Da amostra de textos orais, selecionaram-se seis inquéritos, sendo que duas entrevistas por faixa etária (uma de homem e uma de mulher). Da amostra de textos escritos, foram observados 21 anúncios, 10 notícias e 2 editoriais. Os dados obtidos passaram por tratamento estatístico no programa computacional GOLDVARB-X, tendo sido gerados as frequências e os pesos relativos referentes a cada uma das variantes analisadas. O valor de aplicação para os gráficos e tabelas deste trabalho é nós. Vale ressaltar que se levantaram apenas estruturas em que as formas nós e a gente aparecem na posição de sujeito, sem que tenham sido considerados casos de sujeito nulo. Da mesma maneira, não se observaram casos em que a variante nós aparece com um determinante (exemplo (a)), já que esse uso é categórico, conforme foi citado anteriormente. (a) “pesa muito... eu vejo lá em casa... nós somos cinco... a despesa é grande... toda semana a gente vai no... todo sábado vai no super mercado...” (Complementar, inq. 14, homem, faixa 2) Também não foi examinado o aspecto inclusivo da variável “eu-ampliado”, que diz respeito à inclusão dos participantes envolvidos na produção do discurso (eu + você). A dificuldade de interpretar um dado, como (b) abaixo, decorre do traço [+ determinado] não estar explícito, o que acarreta mais de uma interpretação: a utilização de a gente poderia fazer referência somente à informante, à informante e ao seu interlocutor, ou a qualquer grupo X de informantes que viesse a participar da pesquisa. (b) “foi incrível assim como é que:: éh:::: terminou né com esse desejo do açúcar... que mais que a gente podia falar pra sua entrevista?” (Complementar, inq. 19, mulher, faixa 2) Parte-se dos resultados encontrados na pesquisa empreendida por Lopes (1993) para formular algumas hipóteses gerais: (i) como a forma inovadora ainda guarda resquícios do período em que era um sintagma coletivo (LOPES, 2002), espera-se que a sua ocorrência seja maior em contextos de indeterminação do sujeito; (ii) por ser uma forma mais marcada, nós apareceria, provavelmente, junto a verbos que apresentam maior saliência fônica e a tempos verbais mais marcados; (iii) a escrita, por sofrer mais pressões conservadoras, apresentaria menor ocorrência da forma inovadora. 68

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

Resultados do corpus de fala

Conforme já foi dito, o corpus de fala tem por base inquéritos do NURC/ RJ. Foram escolhidos seis inquéritos da década de 90, o que totalizou 175 dados distribuídos da seguinte forma:

37% Nós A gente 63%

Gráfico 1: Distribuição entre nós X a gente no corpus oral Analisou-se, primeiramente, a categoria de tempo nos verbos que acompanham as variantes investigadas. Postula-se a hipótese de que, por ser uma forma menos marcada, a gente deva aparecer junto a tempos verbais menos marcados. Os tempos verbais mais marcados, segundo Lopes (1993), apresentam suas próprias desinências de modo, tempo e aspecto (MTA) ou número e pessoa (NP). É o caso do pretérito perfeito, por exemplo, que apresenta marca de NP específica, ao contrário do presente que, por não apresentar desinência de MTA, e sim um zero mórfico, e por ser mais neutro, é menos marcado. Tempo verbal Frequência PR Presente 11/ 75 = 14,7% 0.42 Pretérito perfeito 32/ 37 = 86,5% 0.86 Pretérito imperfeito 18/ 51 = 35,3% 0.29 Total 65/ 169 = 38,5% Quadro 1: resultados do fator tempo verbal em relação à variante nós A maior taxa para o emprego de nós foi encontrada com o pretérito perfeito (0.86), ao passo que o presente e o pretérito imperfeito favoreceram a gente (0.42 e 0.29, respectivamente). O resultado parece seguir o que foi observado em Omena (1986), porém contraria o resultado de Lopes (1993) para o tempo do pretérito imperfeito. Na pesquisa, Lopes afirma que houve uma leve preferência para nós com pretérito imperfeito e atribui a diferença entre seus resultados e os de Omena ao nível de escolaridade dos informantes, já que esta autora utiliza textos de informantes com baixa escolaridade e aquela, textos de informantes com nível superior completo. No presente trabalho, o favorecimento de a gente com o pretérito imperfeito pode ser resultado da amostra limitada. Apesar de ter sido verificada a distribuição das variantes em relação à saliência fônica, esse fator linguístico não foi selecionado como um dos mais relevantes pelo programa estatístico. Nos moldes de Naro & Lemle (1976), a saliência fônica diz respeito ao fato de que as formas 69

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

mais salientes tendem a ser mais marcadas. A escala de saliência foi adaptada de Lopes (1993) e compreende seis níveis, do menos saliente (nível 1) ao mais saliente (nível 6). A seguir, apresentam-se, a título de ilustração, apenas os níveis de saliência fônica favorecedores da aplicação de nós e a gente. Em relação a nós, o nível 6, característico das maiores diferenças fonológicas entre as formas de singular e de plural, mostrou-se mais favorecedor com a porcentagem de 80% (exemplo (c)). Já o nível 4, característico de monossílabos tônicos ou oxítonos que passam a paroxítonos com o acréscimo da desinência “-mos”, favoreceu o pronome a gente, com 92,9% (exemplo (d)). Esse resultado mantém relação direta com o resultado da variável tempo verbal, já que o nível 6 é composto por verbos, em sua maioria, na forma de pretérito perfeito e o nível 4 apresenta verbos na forma de presente. (c) “Quando nós chegamos o Mauro era pequeno, ele vinha acostumado com aquele regime assim de comer bastante legumes, frutas, tudo isso, simplesmente que lá não havia nada disso né” (Recontato, inq. 140, mulher, faixa etária 3) (d) “não:: eu não acho que seja diferente... acho que... Tijuca no/éh/nós temos altos índices também de::... de violência né?” (Complementar, inq. 25, mulher, faixa 1) Outra variante analisada foi a que se refere à questão de indeterminação do referente, “euampliado”. De acordo com o que Lopes (1993) argumenta, haveria um continuum de [+ determinação] em relação à inclusão do interlocutor e da não-pessoa no discurso. Interessam a este trabalho dois níveis, ou aspectos, de determinação: o aspecto exclusivo que se traduz por “eu + pessoa que não faz parte da enunciação” e o aspecto genérico que apresenta o nível máximo de abrangência de pessoas, sendo [- determinado]. Eu-ampliado Frequência PR Exclusivo 48/ 103 = 46,6% 0.59 Genérico 17/ 70 = 24,3% 0.36 Total 65/ 173 = 37,6% Quadro 2: resultados do fator eu-ampliado em relação à variante nós O resultado revela que o pronome a gente é predominante na ampliação da referência, confirmando uma das hipóteses iniciais, visto que o item gramaticalizado ainda guarda o traço de coletividade de quando era um sintagma nominal. Analisou-se, também, a idade dos informantes. Tendo por base os resultados encontrados em pesquisas anteriores (LOPES, 1993; OMENA, 1986, 2003), espera-se observar maior frequência da variante nós no texto oral de informantes da faixa etária 3, enquanto os jovens seriam responsáveis pelo maior uso da variante inovadora a gente. De acordo com Mollica et alii (2008), os falantes adultos, em geral, tendem a oscilar sua frequência de uso – ora se aproximando dos jovens, ora dos idosos – motivados, costumeiramente, por razões extralingüísticas, como a inserção no mercado de trabalho. Os resultados do uso de nós e a gente em relação à variável idade são apresentados no quadro abaixo: Faixa etária Faixa etária 1 Faixa etária 2 Faixa etária 3

Frequência 1/ 58 = 1,7% 15/ 49 = 30,6% 49/ 68 = 72,1%

PR 0.05 0.72 0.85 70

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

Total 65/ 175 = 37,1% Quadro 3: resultados do fator faixa etária em relação à variante nós Embora as frequências de uso de nós dos informantes adultos e idosos sejam bem diferentes, os pesos relativos são bem próximos (0.72 para os adultos e 0.85 para os idosos). No quadro 4, a diferença residiria entre os jovens e os falantes das outras faixas etárias. O alto emprego de a gente pelos jovens (98,3% e 0.95) pode ser explicado pela preferência dessa faixa etária por variantes mais inovadoras, enquanto que os idosos preferem a variante mais conservadora. Os gráficos abaixo ilustram a distribuição das variantes pelas faixas etárias.

100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0

1 0,9 0,8 0,7 0,6 0,5 0,4 0,3 0,2 0,1 0

72,1 Nós 30,6

1,7 Faixa etária 1

Faixa etária 2

Faixa etária 3

0,85 0,72 Nós

0,05 Faixa etária 1

Faixa etária 2

Faixa etária 3

Gráfico 2: frequência da variante nós em Gráfico 3: peso relativo da variante nós em relação ao fator faixa etária relação ao fator faixa etária O gráfico 2 apresenta uma linha em curva ascendente, enquanto o gráfico 3, que apresenta os valores do peso relativo de nós, revela uma elevação abrupta da faixa etária 1 para a faixa etária 2 e mantém, praticamente, os mesmos índices para as faixas etárias mais velhas.

Resultados do corpus de escrita

Com base nos textos do VARPORT, foram encontrados 8 dados que serão observados a partir das variáveis tempo verbal e gênero do texto. A distribuição total dos dados encontra-se no gráfico 4: 13%

Nós A gente

87%

Gráfico 4: Distribuição entre nós X a gente no corpus escrito 71

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

Cotejando os gráficos 1 e 4, verifica-se que há uma maior frequência do pronome a gente nos dados de fala, enquanto, na escrita, a predominância é de nós. O texto escrito, por ser mais passível de pressões conservadoras, dá maior preferência à forma mais antiga na língua, ao contrário do texto oral, que tende a apresentar mais ocorrências da forma inovadora. Nas tabelas abaixo, observam-se os resultados em relação aos fatores tempo do verbo e gênero textual. Tempo verbal Frequência Presente 6/ 7 = 85,7% Pretérito Perfeito 1 /1 = 100% Total 7/8 = 87,5% Quadro 4: resultados do fator tempo verbal em relação à variante nós

Gênero Textual Frequência Anúncio 5/ 6 = 85,3% Editorial 2 /2 = 100% Total 7/8 = 87,5% Quadro 5: resultados do fator gênero textual em relação à variante nós

O único dado de a gente no corpus escrito foi encontrado em um anúncio da PageNet (exemplo (e)), que é uma empresa fabricante de pagers, aparelhos para comunicação de rede wireless que fizeram sucesso nos anos 90. As empresas de inovações tecnológicas sempre têm o jovem como público alvo, porque representam os maiores consumidores desse tipo de produto. Retomando os dados do quadro 3, percebe-se que, entre os falantes da faixa etária 1, há o predomínio do pronome a gente. Como o foco da PageNet é voltado para o segmento jovem da sociedade, fica, assim, justificado o uso do pronome, uma vez que tem ampla aceitação e é empregado em larga escala por esse público. (e) Você compra um PageNet, usa e, se depois de 4 | meses você não estiver satisfeito, a gente compra o seu PageNet de volta. (E-B-94-Ja-017, 1998) O cruzamento de dados revela que o gênero anúncio é marcado pelo tempo presente do indicativo em 100%, enquanto o editorial apresenta uma ocorrência de verbo no pretérito perfeito e uma no presente. Devido às características intrínsecas do anúncio, como a tentativa de estabelecer uma conexão com o interlocutor no momento da leitura e as estratégias de persuasão, já se esperava um predomínio do presente nesse tipo de gênero. Embora haja apenas um dado de pretérito perfeito, o que inviabiliza qualquer afirmação mais categórica, pode-se estabelecer um paralelo com o resultado encontrado nos dados de fala para o tempo verbal. Neste, também houve uma alta frequência de pretérito perfeito em relação a nós (86,5% no oral e 100% na escrita), sugerindo um contexto favorecedor para a variante.

Ensinar o quê? Por quê?

Lucchesi (2002: 67), abordando o problema da avaliação, afirma que o julgamento que os falantes fazem das variantes linguísticas “pode servir como indicador das mudanças em curso na comunidade”. A variação nós e a gente parece não sofrer julgamentos explícitos entre os falantes do português brasileiro. Pesquisas como a de Omena (1986), que investigou o fenômeno na fala popular, e a de Lopes (1993), que observou a fala culta de cinco capitais brasileiras, também apontam para o fato de que não se trata de uma variação relacionada à escolaridade ou à região dos entrevistados. Em outras palavras, na pluralidade de normas que compõem a realidade 72

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

linguística brasileira, não há estigmatização de uma das variantes, mas o convívio harmônico entre elas. Da mesma forma que a realidade linguística do Brasil não é homogênea, Travaglia (2003) chama a atenção para o fato de o ensino ser plural, o que possibilita novos caminhos de empreitada pedagógica, aliando velhas concepções com novas práticas. Muitos professores, por acharem que o aluno já conhece o pronome a gente, relegariam-no a segundo plano, enquanto outros, imbuídos de um discurso liberal, esqueceriam do pronome nós em favor de se ensinar o que é mais corrente na fala dos estudantes. Essas perspectivas pedagógicas centradas ou no código ou no uso do código são, frequentemente, prejudiciais ao ensino, uma vez que acabam por não habilitar o aluno a dominar o código linguístico nas mais diversas situações de comunicação. Como Gagné (2002) aborda, compete ao professor de língua portuguesa apresentar aos alunos as duas variantes, pautando o ensino na não-estigmatização. Seria interessante também que o professor mostrasse as estratégias de que dispõe a língua para indeterminar o sujeito gramatical. Como se pode verificar em pesquisas de cunho sociolinguístico (OMENA, 1986; LOPES, 1999) e funcionalista (ALMEIDA, 1991), a questão da vaguidade referencial não se restringe aos casos clássicos relatados na tradição gramatical. No gráfico 2, os resultados encontrados indicam essa possibilidade de tornar o sujeito indefinido, principalmente, através do pronome a gente. Para que essas propostas se tornem realidade, seria necessário que os projetos pedagógicos das escolas buscassem amparo em pesquisas de base linguística, assim como estas deveriam procurar aliar o tratamento descritivo e teórico à prática de ensino.

Considerações finais Apresentaram-se, neste trabalho, dados de variação entre nós e a gente no português culto carioca. A forma nós é mais recorrente com o pretérito perfeito, na fala de idosos e em textos escritos. Já a forma a gente é predominante nos dados de jovens e com o verbo no presente do indicativo e pretérito imperfeito. Observou-se, também, que a forma inovadora se acomoda melhor na indeterminação do sujeito, uma vez que carrega traços menos marcados.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, M. L. L. de. A indeterminação do sujeito no português falado. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1991. CALLOU, D.; BARBOSA, A.; LOPES, C. “O português do Brasil: polarização sociolinguística”. In: CARDOSO, S. et alii (org.). Quinhentos anos de história linguística do Brasil. Salvador: Funcultura, 2006. GAGNÉ, G. “A norma e o ensino da língua materna”. In: BAGNO, M. et alii. Língua Materna. Letramento, variação & ensino. São Paulo: Parábola editorial, 2002. 73

Revista do GELNE, Piauí, v.12, n.1, 2010

LOPES, C. R. dos S. Nós e a gente no português falado culto do Brasil. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993. ______. “De gente para a gente: o século XIX como fase de transição” In: ALKMIN, T. M. Para a história do português brasileiro. Vol. III. São Paulo: FLP/ USP, 2002. LUCCHESI, D. “Norma linguística e realidade social”. In: BAGNO, M. (org.) Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. MOLLICA, M. C. et alii. Introdução à Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2008. OMENA, N. P. “A referência variável da 1º pessoa do discurso no plural”. In: Relatório apresentado à FINEP, 1986 (sem referência completa). ______. “A referência à primeira pessoa do plural: variação ou mudança?” In: PAIVA, M. da C. & DUARTE, M. E. L. Mudança linguística em tempo real. Rio de Janeiro Contra capa livraria, 2003. TRAVAGLIA, L. C. Gramática: ensino plural. São Paulo: Cortez editora, 2003. WEINREICH, U.; LABOV, W. & HERZOG, M. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. Tradução: Marcos Bagno. São Paulo: Parábola editorial, 2006. REFERÊNCIAS DA INTERNET CALLOU, D. M. I. et alii. NURC/ RJ. Disponível em http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj/. Acessado em 10 de Junho de 2010. BRANDÃO, S. F. et alii. VARPORT. Disponível em http://www.letras.ufrj.br/varport/. Acessado em 12 de Junho de 2010.

74

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.