Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.2, 2009

July 19, 2017 | Autor: R. Gelne | Categoria: Lingüística, Letras
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Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.2, 2009

LÍNGUA E HISTÓRIA: O PROCESSO DISCURSIVO DE CONFIGURAÇÃO E SUSTENTAÇÃO DE SENTIDOS SOBRE O MST Belmira Rita da Costa Magalhães* Helson Flávio da Silva Sobrinho**

Resumo Este artigo trata da relação entre língua e história como constitutiva da discursividade e do efeito de configuração e sustentação de sentidos sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Para isso, são analisadas, a partir da perspectiva teórica da Análise do Discurso (AD), matérias da imprensa retiradas dos sites da revista Veja e do jornal Folha de São Paulo, em janeiro de 2009, que noticiaram a comemoração dos 25 anos do MST. Como resultado, compreende-se que a materialidade da notícia desse acontecimento evidencia o processo de configuração dos sentidos instaurados e reproduzidos pelo gesto de interpretação da ideologia dominante no decorrer desses anos. As matérias trazem em sua articulação dizeres que “recordam” o “percurso” do Movimento e, ao fazer isso, a imprensa reinscreve e reincorpora o discurso dominante para ratificar e sustentar o gesto de interpretação jurídico e policial sobre a historicidade dos sentidos atribuídos ao MST. Palavras-chave: Língua, História, Análise do Discurso, Sentidos

Abstract This paper deals with the relation between language and history as constitutive of the discursivity and the effect of configuration and sustentation of meanings about the Landless Rural Workmen‟s Movement (MST). In order to do so, press news from Veja magazine online and Folha de São Paulo newspaper online, in january 2009, which covered the celebration of the MST's 25th anniversary are analyzed from the theoretical perspective of the Discourse Analysis (AD). As a result, we come to understand that the materiality of the news about this event evidences the process of configuration of meanings established and reproduced by the interpretation gesture of the dominant ideology throughout these years. Such news brings sayings in its articulations that “recall” the “course” of the Movement and, by doing so, the press reinscribes and reincorporates the dominant discourse so as to ratify and sustain the juridical and police interpretation gesture over the historicity of the meanings attributed to the MST. Keywords: Language, History, Discourse Analysis, Meanings

Considerações iniciais Este artigo trata da relação entre língua e história como constitutiva da discursividade e do efeito de configuração e sustentação de sentidos sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Para isso, são analisadas, a partir da perspectiva teórica da Análise do Discurso (AD), matérias da imprensa publicadas no mês de janeiro de 2009 que noticiaram os 25 anos do MST. Particularmente, as materialidades discursivas analisadas são duas publicações veiculadas nos sites do jornal Folha.com e da revista Veja online, nos dias 20 /1/2009 e 23/1/2009, respectivamente. Compreender o funcionamento do processo discursivo de configuração e sustentação de sentidos sobre o MST exige desvendar o modo como se dá a relação da língua com a história em seus movimentos de repetição e deslocamento, transparência e opacidade, ou seja, exige do analista de discurso trabalhar no entrecruzamento da materialidade da língua com a posição sujeito e as filiações ideológicas em uma conjuntura histórica determinada. Nessa direção, partese de premissas teóricas da Análise do Discurso, fundada por Pêcheux e, ao mesmo tempo, da *

Doutora em Letras e Linguística - Professora da UFAL - [email protected]

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Doutor em Letras e Linguística - Professor da UFAL - [email protected] 27

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perspectiva marxiana sobre a determinação da produção e reprodução das forças produtivas e das relações de produção sobre toda a historicidade humana. Essa articulação teórica permite pensar a relação entre língua e história na constituição de sentidos. Desse ponto de vista, a língua, com sua materialidade significante (fonológica, morfológica, sintática), possui autonomia relativa diante das determinações históricas, pois o sentido produzido pelo sujeito em suas posições ideológicas é determinado pelas relações sóciohistóricas em seu processo complexo e contraditório. Segundo Pêcheux: O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe „em si mesmo‟ (isto é, em relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas) (PÊCHEUX, 1997, p. 160).

Reconhecendo-se esse caráter não-estabilizado e deslizante – intrínseco ao funcionamento linguístico, onde o sentido de uma palavra não existe em si mesmo –, é preciso remetê-lo ao processo histórico, ou seja, às condições de produção do discurso para analisar a sua não transparência. Vale ressaltar que o fato de se enfatizar a historicidade da língua não elimina a especificidade desses dois componentes, sendo nesse sentido que Pêcheux adverte para que não se fique cego à história, nem surdo à língua. Assim, na Análise do Discurso, a língua é compreendida como um real (atravessado pela ideologia e pelo inconsciente), um sistema significante passível de falhas. Não se trata de uma língua passível de cálculos nem constituída de uma estruturação lógica sem contradições, pois, como diz Pêcheux, “qualquer língua natural é também, e antes de mais nada, a condição de existência de universos discursivos não-estabilizados logicamente, próprios ao espaço sóciohistórico dos rituais ideológicos” (1999b, p. 24). Sob essa perspectiva, para que a língua faça sentido é preciso que a história intervenha (ORLANDI, 1996), daí o caráter histórico do sentido, pois o real da história é condição de produção do discurso, e o discurso é lugar de conflitos, disputas de interpretações onde se manifestam as lutas ideológicas em jogo. Portanto, a história para a AD não é tida como diacronia ou sincronia, mas como práxis dos sujeitos na sociabilidade. Por isso, Pêcheux afirma: Pensamos que uma referência à História, a propósito das questões de Lingüística, só se justifica na perspectiva de uma análise materialista do efeito das relações de classes sobre o que se pode chamar as „práticas lingüísticas‟ inscritas no funcionamento dos aparelhos ideológicos de uma formação econômica e social dada: com essa condição, torna-se possível explicar o que se passa hoje no „estudo da linguagem‟ e contribuir para transformá-lo, não repetindo as contradições, mas tomando-as como os efeitos derivados da luta de classes hoje em um „país ocidental‟, sob a dominação da ideologia burguesa (PÊCHEUX, 1997, p. 24).

Tratar da relação entre língua e história sob o ponto de vista da análise materialista do efeito das relações de classes sobre as práticas linguísticas implica destacar que se trabalha com a forma material (linguístico-histórica)1 na produção de sentidos, pois é à ordem do discurso que se está referindo. Nessa direção, é preciso compreender que o discurso é prática reprodutora/transformadora dos sujeitos que significam a si mesmos e significam o mundo, e assim interferem na processualidade histórica. Por isso, parte-se das relações materiais que os 1

Segundo Orlandi (1996, p. 49), o analista de discurso trabalha com a “ordem do discurso (forma material) em que o sujeito se define pela sua relação com um sistema significante investido de sentidos, sua corporeidade, sua espessura material, sua historicidade (...). São, como dissemos, duas ordens que lhe interessam: a da língua e a da história, em sua relação. Que constituem, em seu conjunto e funcionamento, a ordem do discurso.” 28

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homens estabelecem entre si e com a natureza, pois é justamente nas práticas de produção/reprodução social que os sujeitos constroem determinadas relações que possibilitam sua existência histórica2. Portanto, é preciso compreender que na sociabilidade capitalista essas relações de base econômica (produção/reprodução) são construídas gerando exploração e desigualdade entre os próprios sujeitos, pois essa sociedade é estruturada por relações antagônicas. Na forma de ser do capitalismo, uns possuem os bens de produção enquanto outros apenas têm sua força de trabalho para vender e assim sobreviver. Essa desigualdade nas relações sócio-históricas atua na constituição do discurso e na produção de sentidos; vale ressaltar que não se trata de um reflexo direto e imediato da base econômica, mas de mediações constituídas de práticas sociais diversas que afetam a produção de sentidos. Pode-se afirmar, então, que os sujeitos históricos produzem discurso em condições de produção determinadas pela conjuntura das lutas de classes. Essas condições de produção atuam no processo de constituição do discurso, inclusive operam no movimento de retomada da memória discursiva3 que afeta e re-atualiza o discurso através do funcionamento do interdiscurso, como algo já-dito que sustenta o dizer atual na produção de sentidos. Para Pêcheux (2002), o acontecimento discursivo é sempre produzido pelo encontro de uma memória com uma atualidade. Esse encontro permite que o sujeito signifique o mundo no qual atua, retomando e resignificando os já-ditos que circulam nas práticas sociais. Esse funcionamento do discurso em sua rede de trajetos (processo de retomadas e deslocamentos) não é aleatório, mas está articulado à processualidade histórica. Nas práticas dos sujeitos, os sentidos são direcionados e redirecionados para um determinado lugar e produzem certos efeitos sempre sustentados pelas condições ideológicas de reprodução/transformação das relações de produção. Segundo Pêcheux: Diremos que as contradições ideológicas que se desenvolvem através da unidade da língua são constituídas pelas relações contraditórias que mantêm, necessariamente, entre si os „processos discursivos‟, na medida em que se inscrevem em relações ideológicas de classes (PÊCHEUX, 1997, p. 93).

Numa sociedade como a contemporânea, em que há divisão de classes, pode-se afirmar, junto com Pêcheux (1997), que a língua pode ser indiferente aos conflitos de classes, mas as lutas de classes levarão sempre em conta a possibilidade de um discurso ideológico que beneficie uma das partes da contenda. Nesse sentido, esse autor nos mostra a necessidade da apreensão do processo discursivo4, a partir do entendimento das formulações morfológico-sintáticas de cada materialidade discursiva, pois a formulação (materialidade linguístico-histórica), quando submetida à análise, permite chegar à posição sujeito do discurso. Assim, retomando o processo histórico de configuração e sustentação de sentidos, destaca-se que, em janeiro de 2009, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST comemorou 25 anos. Esse acontecimento não passou despercebido por nenhum dos dois lados do 2

“A forma pela qual os homens produzem seus meios de vida depende sobretudo da natureza dos meios de vida já encontrados e que eles precisam reproduzir. Trata-se (...) de uma forma determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. Da maneira como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que os indivíduos são, por conseguinte, depende das condições materiais de sua produção” (MARX & ENGELS, 2004, p. 44-45). 3 Compreendemos a memória discursiva como “estruturação de materialidade discursiva complexa, estendida em uma dialética da repetição e da regularização: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os „implícitos‟ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível (PÊCHEUX, 1999a, p. 52). 4 O processo discursivo é definido por Pêcheux (1997, p. 162) como “sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias, etc., que funcionam entre elementos lingüísticos – „significantes‟ – em uma formação discursiva dada”. 29

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confronto (Trabalhadores Rurais Sem Terra e Proprietários de Terra). O próprio MST e a imprensa jornalística trataram de rememorar a historicidade das práticas e objetivos do Movimento Social textualizando essas questões. É a partir dessas materialidades discursivas que se irá analisar a língua funcionando como condição de possibilidade do discurso, lugar material onde se realizam os efeitos de sentido.

O MST e a historicidade da produção de sentidos Seguindo os pressupostos teóricos e analíticos que afirmam a existência da historicidade dos sentidos e das práticas sociais, analisar-se-á um acontecimento histórico que vem ocorrendo há vinte e cinco anos na sociedade brasileira. Trata-se do surgimento e atuação do MST. Esse acontecimento explicita um confronto entre as classes básicas da zona rural e tem produzido discursos antagônicos que se contrapõem de formas diversas. No recorte abaixo, por exemplo, retirado de uma reportagem do site do jornal Folha.com, observa-se a disputa entre duas posições de classes (posição sujeito), mostrando o entrecruzamento de língua e história no funcionamento do discurso enquanto materialização da ideologia: A bandeira do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) de luta pela reforma agrária coloca em lados opostos do Congresso as bancadas ruralista e de esquerda. Os ruralistas chamam os sem-terra de baderneiros, enquanto os deputados que defendem a bandeira do movimento dizem que seus integrantes buscam um espaço para produzir (Folha.com, 19/1/2009).

Constata-se, nessa materialidade discursiva, o funcionamento da intersecção inalienável entre língua e história, acentuando a não transparência da língua e revelando o caráter histórico da produção de sentidos. Por isso, para que se possa entender o surgimento do Movimento e a circulação de sentidos produzidos sobre o MST, há de se olhar para o processo de ocupação do campo realizado no Brasil desde a colonização portuguesa. O sistema de capitanias hereditárias instituiu a grande propriedade como forma de ocupação do solo brasileiro e aliou a isso o poder absoluto de seus proprietários sobre a terra e o trabalho nela realizado. O latifúndio, como ficou conhecido essa divisão de terras, não se refere apenas às dimensões territoriais, mas ao sistema econômico-político de exploração da mão de obra utilizada pelos proprietários ao longo de toda a história do Brasil. A maneira de garantir a forma de exploração na sociedade capitalista vem diretamente do papel representado pelo Estado nesse sistema, que além de controlar as principais instituições que processam a reprodução ideológica dominante, detém o poderio policial-militar e, através dele, está sempre pronto a intervir mostrando ao trabalhador como precisa se conduzir, ao mesmo tempo, combatendo qualquer forma de resistência. Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere, desvenda a forma através da qual se processava essa prática de formação da subjetividade do dominado: “Surra – santo Deus! – era a degradação irremediável. Lembrava o eito, a senzala, o tronco, o feitor, o capitão do mato. [...] em seguida o aviltamento. É assim na minha terra, especialmente no sertão” (RAMOS, 1994, p. 141). Para o narrador autobiográfico de Memórias do Cárcere a explicação da punição não está relacionada ao delito, mas ao sistema, que precisa aplicar uma tatuagem na alma para que não haja possibilidade de esquecimento das hierarquias dos mandos. Como visto, ao longo de nossa história, essas disparidades sociais se constituíram em temáticas de inúmeras obras literárias e discursos políticos e também foram questões de vários movimentos sociais que antecederam o MST, ressaltando-se, em particular, a atividade das Ligas Camponesas no Nordeste brasileiro, dizimadas durante a ditadura militar de 1964. 30

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Vinte anos depois – 1984 –, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra surge também para combater a desigualdade no campo e proporcionar uma vida mais digna para os trabalhadores, segundo o próprio Movimento, no texto comemorativo dos 25 anos de atuação: Os objetivos foram definidos: a luta pela terra, a luta pela reforma agrária e um novo modelo agrícola e a luta por transformações na estrutura da sociedade brasileira e um projeto de desenvolvimento nacional com justiça social5.

Em duas linhas a palavra luta é repetida por três vezes, e a pergunta que se coloca é: quem são os outros contendores? O próprio texto responde que são aqueles que se beneficiam do modelo de ocupação do solo e seus gestores, isto é, os proprietários rurais, o Estado e a mídia. É contra eles que desde o início de sua formação o MST se insurge. O Movimento propõe a criação de um projeto com justiça social que objetiva vencer as desigualdades sociais. A partir dos anos noventa, ainda segundo o documento divulgado no site do MST, vai se intensificar a luta que, para esse momento, tem como palavras de ordem: ocupar, resistir e produzir. Vale ressaltar que a partir da ação do MST e do uso da palavra “ocupar” será criado pela imprensa um acontecimento discursivo em torno do significado contraditório entre “ocupar” e “invadir”. No início a mídia6, em geral, se utilizará da palavra “ocupar” para, no decorrer dos anos, substituí-la, sempre, pela palavra “invasão”. Conforme Indursky (1995, p. 125), “ocupação tem como referente a terra improdutiva. Invasão constrói como referente a terra privada”. Ao se referir às ações do Movimento como “invasão”, a mídia se inscreve no discurso dos latifundiários, e esse gesto de interpretação tornou-se dominante, produzindo o efeito de evidência de sentido. Usar o léxico “ocupar” para as ações do MST significa que sua ação é um direito. Quando a mídia se apropria do léxico “invadir” está automaticamente condenando a ação, colocando o Movimento fora da legalidade e da legitimidade. Segundo Indursky: Vale dizer que as duas designações coexistem na língua, mas o uso de uma ou de outra mobiliza discursivamente sentidos diferentes que remetem a processos discursivos igualmente diferentes que se encontram em situação de co-ocorrência no espaço discursivo desenhado pela imprensa em seu discurso sobre o discurso do MST. (INDURSKY,1995, p. 126)

Na textualização do discurso do MST, o Movimento continua bastante ativo e comemora os vinte cinco anos de atuação com festa e propostas de novas ações. Denuncia que não houve a reforma agrária e que nenhum dos governos cumpriu as metas propostas nos seus próprios planos de governo. Acentua a necessidade de continuar o enfrentamento, que agora se apresenta sob um novo formato, aliando os antigos latifundiários ao agronegócio, sempre com o beneplácito do Estado. Segundo o MST: Depois de 500 anos de luta do povo brasileiro e 25 de existência do MST, a reforma agrária não foi realizada no Brasil. Os latifundiários, agora em parceria com as empresas transnacionais e com o mercado financeiro – formam a classe dominante no campo –usam o controle do Estado para impedir o cumprimento da lei e manter a concentração de terra7.

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Informações retiradas do site: http://www.mst.org.br/especiais/23 Embora não haja espaço neste artigo para aprofundar essa discussão, defende-se que não há neutralidade discursiva porque o discurso é materialização da ideologia. Cf. Mariani (1998), Gaia (2005). 7 Informações retiradas do site: http://www.mst.org.br/especiais/23 6

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Destacando o que se afirmou no início deste artigo sobre a historicidade e a não transparência da língua, ressalta-se que o discurso do MST se coloca claramente em confronto com o discurso que defende a atual estrutura rural brasileira. Desde o seu início o Movimento acusa a grande mídia de colaborar e se colocar ao lado dos seus opositores (proprietários de terra), quando noticia as ações sob o peso acusatório, não dando voz ao Movimento na mesma proporção dada aos latifundiários, e também ao manipular os fatos através do mecanismo de silenciamento de detalhes, bem como ao reproduzir matérias acusatórias em vários noticiários. Pedro Stédile, coordenador nacional do MST, em entrevista à Folha.com em 18/1/2009, afirmou: “a imprensa brasileira é que nos silenciou, embora não tenhamos parado de falar”. Diante desse fato analisam-se duas matérias da grande mídia (Folha de São Paulo e Veja), veiculadas na internet, cujos assuntos se referem aos 25 anos do MST.

O Processo Discursivo de Configuração e Sustentação dos Sentidos Para compreender a configuração e sustentação da discursividade produzida pela mídia sobre o MST, selecionam-se duas matérias de dois dos principais órgãos da imprensa (Folha.com e revista Veja, as duas na versão online). Analisa-se inicialmente a matéria da Veja; em seguida, a da Folha. O título da matéria da Veja já anuncia a posição de condenação da atuação do MST: Os 25 anos do MST: invasões, baderna e desafio à lei, reafirmando e sustentando, desse modo, o gesto de interpretação que produziu e fez circular durante esses anos 8. Ao longo do texto é construída uma retrospectiva das atividades do Movimento mediante retomadas de matérias da própria revista, veiculadas nesses 25 anos. O primeiro parágrafo da matéria iniciava-se com as seguintes “informações”: Na última terça-feira, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) completou 25 anos. Mantendo a falsa bandeira de sua incansável luta pela reforma agrária, o MST conseguiu permanecer impune das ações criminosas que cometeu ao longo de sua existência. Há tempos que a organização não quer mais apenas um pedaço de terra - e sim toda a terra. Em reportagens realizadas ao longo dos anos, VEJA acompanhou o crescimento, a desmoralização e os crimes cometidos por essa organização que não possui sede fixa e nem estatuto. (Veja online, 23 jan/2009).

Através do efeito de retomada da memória (arquivo da revista), produzido pela própria matéria − “em reportagens realizadas ao longo dos anos, VEJA acompanhou o crescimento, a desmoralização e os crimes cometidos por essa organização que não possui sede fixa e nem estatuto” −, a revista revela os direcionamentos dos sentidos produzidos sobre o MST9. Na retrospectiva das ações do Movimento veiculadas pela revista, há sempre um tom condenatório que referenda o título invasões, baderna e desafio à lei. As acusações são sempre relacionadas a atos ilícitos à propriedade privada, ou seja, “invasões”. A primeira matéria relembrada é de 1985: 8

Segundo Orlandi (1996, p. 18), o gesto de interpretação “sempre se dá de algum lugar da história e da sociedade e tem uma direção, que é o que chamamos de política”. 9 Sobre o efeito ideológico de direcionamento de sentidos sobre o MST, conferir também Magalhães e Silva Sobrinho (2010, p. 47): “Do modo como narra a trajetória do MST, a imprensa revela sua posição nos conflitos sociais produzindo, desse modo, um efeito ideológico de deslocamento no discurso, pois, os „pobres‟ (Trabalhadores Rurais Sem Terra) passam a ser designados como „invasores‟, „criminosos‟ e „baderneiros‟.” 32

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Em 19 de junho de 1985, VEJA registrou a confusão provocada pelo então presidente Jose Sarney ao anunciar seu Plano Nacional de Reforma Agrária. A revista afirmou que Sarney “atingiu um vespeiro que havia vinte anos não estava tão agitado”. Naquela ocasião, 45 famílias invadiram, armadas de foices e facões, uma área de 1.300 hectares no Ceará. Assustados, os proprietários de terras passaram a armar seus funcionários com revólveres e espingardas. „A ordem é clara: atirar primeiro e perguntar depois‟, dizia a revista. (Veja online, 23 jan/2009).

A análise da construção da sequência discursiva naquela ocasião, 45 famílias invadiram, armadas de foices e facões, uma área de 1.300 hectares no Ceará é significativa, pois mostra como a textualização da notícia acentua o caráter de uma luta “armada” existente no campo, patrocinada pelos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o que justificaria a resposta também armada dos proprietários, como relata a revista – “assustados, os proprietários de terras passaram a armar seus funcionários com revólveres e espingardas”. O efeito de sentido produzido é o de que a atitude dos proprietários é uma consequência da dos integrantes do Movimento, silenciando sobre toda a violência que sempre existiu no campo brasileiro, que, como visto anteriormente, remonta à escravidão e continua criando um efeito advindo de uma memória discursiva de que o trabalhador rural é violento e preguiçoso, precisando de “cabresto” para a realização de suas obrigações. Paralelamente, o uso do léxico funcionários substitui as palavras feitor, capanga e jagunços, e a farta literatura sobre o tema mostra como eram/são denominadas as pessoas contratadas pelos fazendeiros para vigiar os trabalhadores. Chamar esses empregados de funcionários é tentar re-significar suas funções, deslocando-os da violência própria das relações de trabalho no campo para participantes de uma empresa moderna. Nessa retrospectiva, Veja “relembra” e, ao mesmo tempo, se “esquece10” de determinados acontecimentos, certamente tidos para a posição sujeito, por ela assumida como perturbadores. Por isso a revista justifica a atitude dos fazendeiros, que “assustados” se defendem dos ataques de invasores armados e podem dar ordens a seus funcionários/capangas/jagunços “para atirar primeiro e perguntar depois”. A construção do sentido segue o seguinte encadeamento aparentemente “lógico”: 1. 45 famílias invadiram, armadas de foices e facões; 2. assustados, os proprietários de terras passaram a armar seus funcionários com revólveres e espingardas; 3. para atirar primeiro e perguntar depois.

Essa construção de sentido é fundada por silenciamentos. Essa política do silêncio – conforme Orlandi (2002, p. 75), que recorta o que se diz e o que não se diz, apaga “necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada” –, é exercida pela revista em relação as suas próprias publicações que ainda traziam um tom ameno em relação ao MST. Pode-se relembrar, de modo imediato, duas matérias “esquecidas” nesse texto da Veja Online sobre o percurso histórico do MST. Uma data de 1994 e a outra de 1996, mas “esquecidas” por essa escrita que simula rememorar os 25 anos do MST.

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Segundo Pêcheux (1997, p. 173), o sujeito esquece as determinações que o colocaram no lugar que ele ocupa. Desse modo, “todo sujeito-falante „seleciona‟ no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase.” 33

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Na matéria “esquecida” pela revista, que leva o título “Olhai as foices dos pobres da terra”, de 1994, a Veja faz uma alusão às condições precárias de vida no campo que levaram ao surgimento do Movimento e ressalta a necessidade de políticas governamentais, não obstante, já nesse momento, alerta para o perigo das “foices” dos pobres, como ressalta Magalhães (1997, p 81): Foices não são apenas instrumentos de trabalho dos agricultores, podem ser armas e, principalmente na modernidade, representam um dos símbolos do socialismo. Desde o título do artigo os leitores estão alertados de que os pobres da terra têm foices − o instrumento, a arma, e a ideologia.

Na matéria de 1996, também “esquecida” pela revista, uma reportagem de capa trazia fotografias dos Trabalhadores Rurais Sem Terra mortos pela PM e tinha como título “Eldorado dos Carajás, BRASIL, 17 de abril de 1996”. Na matéria, “Sangue em Eldorado”, a revista enunciava: “O governador Almir Gabriel, do Pará, mandou a PM desocupar uma estrada no sul de seu Estado. Saldo da operação de trânsito rodoviário: uma carnificina com duas dezenas de sem-terra mortos e 51 feridos”. Nessa reportagem, os Trabalhadores Rurais Sem Terra eram considerados como “vítimas”, mas essa formulação é “esquecida” no decorrer das publicações, produzindo, desse modo, um apagamento da opressão sofrida por esses trabalhadores no campo. No texto que noticia os 25 anos do MST, o encadeamento discursivo invasões, baderna e desafio à lei é retomado como efeito de evidência inscrita na língua, na sua contraditória transparência e opacidade, para sustentar os sentidos negativos atribuídos ao MST, deslocando os lugares dos agentes da violência no campo para a posição de “vítimas”, pois “assustados, os proprietários de terras passaram a armar seus funcionários com revólveres e espingardas”. Esse deslocamento incide sobre o funcionamento do discurso, autorizando e justificando a utilização e articulação das palavras “invasões”, “badernas” e “desafio à lei”, impossibilitando outro gesto de interpretação nesse relato histórico. Tal funcionamento revela o efeito de repetição do discurso, que se materializa na língua, produzindo uma rede parafrástica, e esse mecanismo de sustentação de sentidos funciona a favor dos interesses da classe dominante (proprietária), impossibilitando a ruptura em outros sítios de significação. Segundo Magalhães e Silva Sobrinho (2010, p. 39): As ações do MST não passaram despercebidas pela imprensa (...), divulgam-se, de modo recorrente, determinados dizeres que constroem uma representação negativa do MST que desloca sentidos, de grupo oprimido que sofre a exploração do trabalho e as consequências das desigualdades sociais, para referi-lo como “baderneiros” e “criminosos”. Esse dizer revela a contraditoriedade da sociedade capitalista, que não tendo interesse por essas pessoas excluídas, a não ser quando elas “incomodam”, se vê obrigada a falar sobre elas e a “resolver” a situação gerada pela estrutura excludente do capital. Esses sujeitos históricos com suas ações combinadas geram um “incômodo” exatamente por colocar a sociedade brasileira, e em consequência, o modo de produção capitalista, em questionamento.

Ainda, para tratar desse processo discursivo de configuração e sustentação de sentido produzido nas publicações da imprensa brasileira, passa-se a analisar a matéria publicada no site da Folha.com, de 20/1/2009. A matéria se refere aos vinte e cinco anos de atuação do Movimento: MST completa 25 anos e planeja „invadir‟ cidades com novas reivindicações. O que primeiro chama a atenção é a heterogeneidade mostrada através do uso das aspas no verbo “invadir”. No primeiro momento fica a pergunta se há dúvida ou hesitação por parte do sujeito do discurso sobre a ação do MST, no sentido de colocá-la fora da legitimidade, pois como foi visto, invasão constrói como referente a “terra privada”. Nessa materialidade discursiva, as 34

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aspas produzem um estranhamento no leitor, assim como também parecem produzir estranhamento para a própria imprensa e sua posição ideológica. No entanto, a continuação da leitura da matéria mostra exatamente o processo inverso. Percebe-se, então, que novamente o uso do verbo “invadir” faz mobilizar a memória de como, para os proprietários de terra e para a imprensa, o MST atua: “invadindo”, ou seja, prática tida no discurso jurídico e policial como ilícita, criminosa e violenta. As aspas na utilização da palavra “invadir” deslocam os sentidos da “mesma” ação do campo para a cidade, embora não haja em nenhum momento da entrevista do dirigente do Movimento alusão à “invasão”. A proposta do MST não é “invadir” a cidade, mas participar dos movimentos reivindicatórios dos trabalhadores e despossuídos da cidade, isto é, atuar também no espaço urbano, segundo um de seus dirigentes que tem voz na matéria: não dá para fazer a luta só com 16% da população que vive no campo. O corpo da matéria “informa” ao leitor que a bandeira prioritária do MST ainda é a luta pela Reforma Agrária e que esse Movimento pretende aumentar sua participação em ações gerais como a defesa da nacionalização do petróleo, descoberto na área do pré-sal, e as lutas que forem direcionadas pelos movimentos urbanos. Porém, há uma construção discursiva que acaba por criar um efeito ideológico de expectativa de confronto, que se desloca do campo para o setor urbano, pois o MST é tido pela imprensa como um Movimento que está “fora da lei”, porque “invade” e “planeja invadir cidades”. A partir dessas análises, constata-se que ao noticiar os 25 anos do MST a imprensa retoma e ratifica os sentidos historicamente construídos mediante o processo discursivo materializado na língua através das matérias publicadas no decorrer desses anos. Em termos teóricos, essa análise ratifica o que diz Pecheux: É a ideologia que fornece as evidências (...) que fazem com que uma palavra ou um enunciado „queiram dizer o que realmente dizem‟ e que mascaram, assim, sob a „transparência da linguagem‟, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados. (PÊCHEUX, 1997, p. 160)

É através desses mecanismos linguístico-discursivos que a imprensa sustenta o seu gesto de interpretação inscrito em sítios de significação (formações discursivas) que tratam da defesa da propriedade privada enquanto fundamento “natural” da sociedade capitalista.

Considerações Finais A análise realizada neste artigo permitiu compreender que a relação entre língua e história não é direta, pois seu funcionamento se dá na prática discursiva dos sujeitos afetada pelas determinações sociais em uma dada conjuntura histórica. Como foi visto, nas formulações linguísticas que rememoram os 25 anos do MST, os efeitos ideológicos de configuração e repetição de enunciados reproduziram um dizer que se quer estabilizado e transparente para sustentar determinados sentidos e silenciar outros. As materialidades analisadas, em sua formulação linguístico-histórica – “Os 25 anos do MST: invasões, baderna e desafio à lei” (Veja online, 25/1/2009) e “MST completa 25 anos e planeja „invadir‟ cidades com novas reivindicações” (Folha.com, 20/1/2009) –, ratificam e reorganizam a direção dos sentidos para dar continuidade aos interesses ideológicos em luta na sociedade brasileira. Na polaridade entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Imprensa-Latifundiários-Estado, percebe-se que, enquanto os dominados continuam planejando ações de enfrentamento, como ocupações e incorporação de movimentos sociais que possuem o locus de atuação na cidade; os dominantes continuam condenando e criticando a forma política 35

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de atuação do MST, tentando isolar o Movimento, denegrir seus líderes e suas ações, enfatizando sempre o caráter da ilegalidade e, ao mesmo tempo, justificando a violência por parte dos proprietários rurais “assustados”, como resposta à violência do MST e à ineficiência do Estado em coibir a luta pela terra. O funcionamento desse processo discursivo, de configuração e sustentação de sentidos nos embates ideológicos materializados na escrita do jornalismo online, reproduz “evidências” sobre as práticas do MST através do efeito da “informatividade” (“na última terça-feira...”), da impressão da “literalidade” do sentido (“mantendo a falsa bandeira...”), e também, da “estabilidade” do referente no mundo (“o MST conseguiu permanecer impune...”). É desse modo que essas relações dos sujeitos com as filiações de sentidos, materializam a relação da língua com a história a partir das modalidades do dizer do sujeito do discurso em sua tomada de posição na luta de classes. Dessa forma, a análise da discursividade que narra os 25 anos do MST, um processo de rememoração/esquecimento, transparência/opacidade, revela como a posição confluente da grande mídia e dos latifundiários se sobrepõe, configura e sustenta, na materialidade discursiva, os sentidos condenatórios sobre a atuação histórica do MST.

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MORFOLOGIA FLEXIONAL E MOVIMENTO DO VERBO EM PORTUGUÊS: POR UMA ANÁLISE UNIFICADA A PARTIR DA PROPOSTA VICKNERIANA Cláudia Roberta Tavares Silva* Resumo Adotando para a análise o modelo de Princípios e Parâmetros (cf. CHOMSKY, 1981, 1986, 1991 e seguintes), discutiremos neste artigo a relação entre a morfologia de flexão verbal (AGR) e o movimento do verbo na sintaxe do português brasileiro (PB) e do português europeu (PE). Caracterizaremos a riqueza dessa morfologia, partindo da proposta de Galves (2001), através da qual será possível verificarmos que o AGR do PB é pobre, ao contrário do PE. Ademais, argumentaremos, a partir da proposta de Vikner (1997), que não há assimetria quanto à riqueza de AGR no PB e no PE no que se refere à morfologia que motiva o movimento de Vº-para-Iº. Em suma, concluiremos que morfologia rica que licencia e identifica sujeitos nulos não tem a ver com morfologia rica que motiva o movimento de Vº-para-Iº, tomando por base a proposta de Vikner (1997). Palavras-chave: morfologia flexional; movimento do verbo; português

This paper shows the relation between verbal inflection morphology (AGR) and verb movement in Brazilian Portuguese (BP) and European Portuguese (EP). For this purpose, we adopt the Principles and Parameters framework (cf. CHOMSKY, 1981, 1986, 1991 and on). We characterize the richness of this morphology based on Galves‟ (2001) proposal. Then, it will be possible to verify that in BP we have an impoverished AGR, but not in EP. Furthermore we will argue based on Vikner‟s (1997) proposal that there is no asymmetry regarding richness of AGR in BP and EP that triggers Vº-to-Iº movement in these languages. In sum we conclude that rich morphology that licenses and identifies null subjects is not related to the richness of morphology that triggers Vº-to-Iº movement following Vikner‟s (1997) proposal. Keywords: inflectional morphology, verb movement, portuguese

Introdução Assumindo com Rizzi (1988, 1997) que a fixação positiva do valor do parâmetro do sujeito nulo por uma língua, cuja posição pré-verbal do sujeito pode ser ocupada, sempre que possível, por pronomes referenciais foneticamente nulos (Princípio Evite Pronome (CHOMSKY, 1981)), tem a ver com a morfologia de flexão verbal rica no que concerne às especificações gramaticais fornecidas pelos morfemas a cada pessoa do paradigma flexional nessa língua, ao contrário de uma língua em que esses pronomes têm que ser foneticamente realizados, desenvolveremos neste artigo uma análise sobre a riqueza de AGR no português brasileiro (PB) e no português europeu (PE), a fim de discutirmos as implicações dessa riqueza para esse parâmetro. A partir de algumas evidências empíricas do PB, refutaremos, por um lado, a hipótese da binaridade do parâmetro supracitado assumida por Rizzi (op. cit.), tendo em vista essa língua não possuir algumas das propriedades das línguas de sujeito nulo prototípicas, como o catalão e *

Doutorado em Lingüística – UFRPE - [email protected]; [email protected] 1

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o italiano, o que a caracteriza como uma língua de sujeito nulo residual (OLIVEIRA, 2000), em outras palavras, uma língua semi-pro-drop (SILVA, 2004). Por outro lado, assumiremos que o PE é uma língua de sujeito nulo prototípica por razões relacionadas à riqueza de sua morfologia flexional que licencia e identifica sujeitos nulos referenciais em condições estruturais específicas, diferentemente do PB, e que, por sua vez, permite a inversão sujeito-verbo com todos os tipos de verbos, uma das propriedades que serve de evidência substancial para caracterizar línguas de sujeito nulo como o italiano (BURZIO, 1986; BELLETTI, 1988), o espanhol (KATO, 1999) e o grego (ALEXIADOU; ANAGNOSTOPOULOU, 1998). De mais a mais, partindo dos contextos estruturais no PB e no PE, argumentaremos que a morfologia rica que licencia e identifica sujeitos nulos referenciais nos termos adotados por Rizzi (1988, 1997) não está relacionada à morfologia rica que motiva o movimento visível de Vº-para-Iº na sintaxe, ao contrário do que é proposto por Gonçalves (1994). Para tanto, assumiremos a proposta de Vikner (1997) de que línguas que possuem morfologia de pessoa em todos os tempos verbais têm esse movimento. Esse é o caso do PB e do PE, o que implica desenvolvermos uma análise unificada para a riqueza de AGR que legitima a subida de Vº-paraIº. Para realizarmos a análise, este artigo encontra-se organizado da seguinte forma: primeiramente, serão apresentadas, tomando por base a análise de Galves (2001), evidências de que há assimetria entre o PB e o PE no que concerne à riqueza de AGR, o que tem gerado implicações para o licenciamento e identificação de sujeitos nulos, bem como para a posição dos sujeitos; em um segundo momento, tomando por base a proposta de Vikner (1997), argumentaremos a favor de uma análise unificada para essas línguas no que se refere à riqueza da morfologia de flexão verbal que motiva o movimento do verbo e, por fim, serão apresentadas as considerações finais.

Morfologia Flexional e Parâmetro do Sujeito Nulo: Locus de Assimetria entre o Português Brasileiro e o Português Europeu

Caracterizar a riqueza de AGR na gramática das línguas naturais tem sido um dos empreendimentos por parte de gerativistas que se debruçam em investigar a interface sintaxemorfologia, haja vista assumirem que variações morfológicas ocasionam variações sintáticas no que concerne, por exemplo, ao licenciamento e identificação de sujeitos nulos referenciais em posição pré-verbal e ao movimento visível de Vº-para-Iº na sintaxe (cf. GALVES, 2001, VIKNER, 1997, dentre outros). É imprescindível, num estudo que vise caracterizar a riqueza de AGR na gramática de uma dada língua particular, a análise de como se comporta o paradigma de flexão verbal nessa língua. Para tanto, caracterizaremos essa riqueza na gramática do PB e do PE, tomando por base os seguintes paradigmas extraídos de Galves (2001, p. 103): (1)

PB Eu canto -------------Você/ ele canta Nós cantamos -------------Vocês/ eles cantam

PE Eu canto Tu cantas Você/ ele canta Nós cantamos ------------Vocês/ eles cantam 2

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Tabela 1: Verbo cantar conjugado no presente do indicativo no PB e no PE A autora, visando caracterizar a riqueza de AGR, propõe a existência de duas noções de pessoa na Gramática Universal: pessoa semântica e pessoa sintática, valendo pontuarmos que sua explicação baseia-se unicamente na especificação gramatical dos morfemas que distinguem as pessoas do discurso ou no singular ou no plural. Portanto, é assumido que, na gramática de uma língua particular, há pessoa semântica quando, para cada pessoa do discurso, há um morfema que a especifique gramaticalmente ou no singular ou no plural, ao passo que a existência da pessoa sintática decorre do fato de só ser possível estabelecer combinação entre traços binários relativos à pessoa e ao número que serão marcados com valores positivos e negativos, conforme apresentado em (2): (2) [+pessoa] [-número] [-pessoa] [-número] [+pessoa] [+número] [-pessoa] [+número] Em sua pesquisa, ao trabalhar apenas com os paradigmas do PB e do PE, Galves (2001) conclui que no primeiro a pessoa é sintática, sendo o AGR pobre, em virtude de haver combinação de traços binários de número e pessoa, ao passo que, no segundo, a pessoa é semântica, sendo, por conseguinte, o AGR rico: no singular há distinção entre as três pessoas do discurso, conforme apresentado no paradigma em (1). A partir da caracterização supracitada, observamos que há uma assimetria no que concerne à legitimação de sujeitos nulos e plenos nas duas línguas, tomando por base o parâmetro do sujeito nulo, o que vai na direção de Rizzi (1997): línguas com morfologia pobre (exemplo: inglês, francês) não legitimam sujeitos nulos referenciais por não fixarem positivamente o valor desse parâmetro (línguas não-pro-drop), ao contrário de línguas com morfologia rica (ex.: espanhol, italiano) (línguas pro-drop). Em relação ao PB, argumentaremos que se comporta como uma língua semi-pro-drop (SILVA, 2004) em virtude de compartilhar propriedades de línguas pro-drop e não-pro-drop. Em sua pesquisa, Duarte (2000)2 verifica que no PB há uma freqüência substancial do preenchimento da posição pré-verbal do sujeito com pronomes plenos, ao contrário do PE: primeira pessoa (74% (PB), 35% (PE)); segunda pessoa (90% (PB), 24% (PE)), e terceira pessoa (58% (PB) e 21% (PE)). Ademais, realizando um estudo diacrônico3, Duarte observa, ao longo de sete períodos da história, que o PB está sofrendo um processo de mudança paramétrica no que concerne à fixação dos valores do parâmetro de sujeito nulo deixando de ser uma língua pro-drop para ser uma língua não-pro-drop4, conforme evidenciam os resultados percentuais relativos à presença de sujeitos pronominais plenos: 1845 (20%), 1882 (23%), 1918 (25%), 1937 (46%), 1955 (50%), 1975 (67%) e 1992 (74%). Com base nesses resultados, é assumido pela autora que, nos três primeiros períodos, os sujeitos realizados foneticamente eram pouco produzidos na gramática do PB em virtude de a morfologia de flexão verbal ser ainda rica, ao passo que, do quarto período 1

1

Galves (2001, p. 124) ainda verifica que alguns dialetos do PB “mostram contraste apenas entre a primeira pessoa do singular e todas as outras: eu canto/ você, nós, eles canta”. 2 Os resultados obtidos pela autora correspondem ao PB e ao PE contemporâneos. 3 O corpus da pesquisa diacrônica de Duarte (2000) compõe-se de frases extraídas de peças teatrais populares produzidas ao longo dos sete períodos da história investigados. 4 “[…] the results attempting to trace the course of a parametric change in progress in Brazilian Portuguese (PB), which is evolving from a null to a non-null subject language.” (DUARTE, 2000, p. 17) 3

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em diante, começa a haver uma forte tendência ao preenchimento da posição sujeito em decorrência do enfraquecimento de AGR. Gonçalves (1994), ao analisar o parâmetro do sujeito nulo na gramática do PE, argumenta que as estruturas frásicas com sujeitos nulos referenciais tais como: “Fomos à universidade./ Comeste o bolo”. correspondem ao caso não-marcado nessa língua. Em se tratando de sujeitos preenchidos, a autora argumenta que estão submetidos à seguinte restrição: quando licenciados, recebem uma certa ênfase, geralmente, uma leitura contrastiva que os opõe a outros sujeitos pragmaticamente possíveis no domínio do discurso. Disso resulta a formulação da seguinte hipótese: “[…] a omissão do sujeito não é opcional em português” (grifo da autora da citação). Torres Moraes (2003), indo na mesma direção de Gonçalves (1994), constata, em frases extraídas de anúncios e entrevistas retirados de revistas portuguesas, que sujeitos preenchidos no PE recebem interpretação contrastiva em relação a outros sujeitos pragmaticamente possíveis no domínio do discurso, conforme ilustra o trecho da seguinte entrevista no qual “os pronomes referenciais em função de sujeito são contrastivos, pondo em destaque elementos relevantes em uma situação comparativa” (TORRES MORAES, 2003): (3) DNA: A sua mulher apoiou-o no seu trabalho? E.G. Não. A minha mulher no início não gostava nada da minha profissão. Ela fez de pai e mãe quando os meus filhos eram pequenos. Eu viajava muito e não a acompanhava quando eles estavam doentes, etc. Ela era professora e tinha de se desdobrar para atender a tudo. Acho que fui sempre um mau pai. Nunca dei a assistência que eles mereciam, porque isso é uma obsessão doentia. (DNA, 05.02.00) Contrariamente ao PE, no PB os sujeitos preenchidos que ocupam a posição de sujeito não estão submetidos à restrição de receberem interpretação contrastiva: (4)a. Se a casa não for reformada, ela vai cair aos pedaços. (TORRES MORAES, 2003) b. Nova Trentoi é do tamanho da rua São Clemente de Botafogo. Elai é desse tamanho. Elai não tem paralelas. c. Você quando você viaja, você passa a ser turista. Então você passa a fazer coisas que você nunca faria no Brasil. (DUARTE, 2000) Com base nos contrastes acima observados entre o PE e o PB, somos levados a argumentar que, por razões relacionadas ao enfraquecimento da morfologia flexional no PB, a posição pré-verbal do sujeito tende a ser geralmente preenchida pela duplicação do sujeito por um pronome co-referente. Costa e Galves (2002) observam que no PE a frase (5a) é marginal e (5b) é agramatical quando há essa duplicação: (5)a. A Clarinhai elai cozinha que é uma maravilha. (??PE OKPB) b. Eu acho que o povo brasileiroi elei tem uma grave doença. (*PE OKPB) Nas construções com duplicação do sujeito também analisadas por Duarte (2000), fica evidenciado que não há restrições de ordem prosódica, sintática e semântica no PB: a) entre os sujeitos e os pronomes que os duplicam pode haver ou não uma pausa; b) sujeitos duplicados

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podem ocorrer em frases matrizes e em encaixadas, e c) eles podem ser indefinidos, quantificados ou arbitrários. Analisando, agora, as frases em (6), tanto o PB quanto o PE licenciam sujeitos nulos expletivos, o que, por sua vez, corrobora a hipótese de Pratas (2004) de que esse licenciamento não tem a ver com a riqueza morfológica da flexão verbal, haja vista que o PB, embora possua o AGR enfraquecido, licencia sujeitos nulos expletivos: (6) a. Chove. a‟. *Ele chove. O PE e o PB também permitem que o objeto direto de uma construção passiva permaneça em sua posição de base (cf. (7)). Contudo, só no PE é possível que o argumento externo de verbos transitivos e inergativos permaneça em Spec, VP (cf. (8) e (9)), estando a inversão sujeito-verbo no PB restrita aos contextos monoargumentais, em particular, aos contextos inacusativos (cf. (10)): (7) Foi convidado um estudante para a festa. (RAPOSO, 1992, p. 483) (8)a. Comeu a sopa o Paulo b. Comeu o Paulo a sopa. (COSTA, 2000, p. 2) (9) Telefonou o Manuel/ um amigo. (BRITO; DUARTE; MATOS, 2003, p. 447) (10)a. Chegou o trem. b. ?Telefonou o cliente. c. *Assinou uma carta o chefe do departamento. d. **Enviou uma carta a todos o presidente da associação. (KATO, 1999, p. 1) No PE, de forma similar ao PB, argumentos internos de verbos inacusativos também podem permanecer em sua posição de base, conforme ilustra a frase (11): (11) Entrou um aluno na reunião. Não obstante, um fato curioso é verificado em relação ao PB. Enquanto essa língua assemelha-se ao caboverdiano, ao inglês e ao francês pelo fato de a inversão sujeito-verbo estar restrita aos contextos inacusativos, a única diferença entre elas reside no fato de que, nas três últimas línguas, o DP pós-verbal subcategorizado pelo verbo inacusativo tem de ser indefinido (cf (12)), ao passo que no PB, de forma similar ao PE, o DP pós-verbal pode ser definido e indefinido (cf. (13b)), podendo ser modificado por quantificadores universais (cf. (13a)), o que contraria a proposta de Belletti (1988): (12) Caboverdiano: a. (dja) Txiga tres algen. “(Já) Chegaram três pessoas.” a‟. *(dja) Txiga Juau.” “(Já) Chegou o João.” 5

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(PRATAS, 2004, p. 5) Inglês: b. There arrived a man/*the man/*every man. “Chegou um homem/*o homem/*todo homem.”

Francês: c. *Il est arrivé un homme/ *l‟homme. “Chegou um homem/*o homem.” (ALEXIADOU; ANAGNOSTOPOULOU, 1998. p. 512) (13)a. Nesse jantar apareceram todos os meus amigos. (AMBAR, 1992, p. 127) b. Chegou o João/ um garoto. Face ao enfraquecimento de AGR no PB (4 distinções), ao contrário do PE (5 distinções) (cf. paradigmas em (1)), ficou evidenciado que a natureza de AGR em ambas as línguas tem implicações para o licenciamento e identificação de sujeitos nulos, bem como para a posição dos sujeitos: no PE, por exemplo, a posição Spec, VP é uma posição legítima para hospedar argumentos externos de verbos transitivos e inergativos, uma opção não prevista na gramática do PB, o que implica no forte aumento de sujeitos referenciais realizados foneticamente ocupando a posição pré-verbal. No PE, ao contrário, sendo AGR ainda rico, sujeitos nulos referenciais são ainda bastante produtivos em satisfação ao Princípio Evite Pronome5. Em suma, a partir das evidências empíricas apresentadas nesta seção, é plausível verificarmos que a hipótese da binaridade do parâmetro do sujeito nulo pode ser refutada, tendo em vista o caráter semi-pro-drop do PB que se aproxima do PE, uma língua de sujeito nulo prototípica, ao mesmo tempo que se distancia desta por compartilhar algumas propriedades com línguas não-pro-drop, como o inglês, o francês e o caboverdiano.

Morfologia Flexional e Movimento do Verbo no Português Brasileiro e no Português Europeu: Por uma Análise Unificada a partir da Proposta de Vikner (1997)

Pollock (1989), ao observar o comportamento assimétrico entre o inglês e o francês no que se refere à posição de advérbios de VP como “freqüentemente” ((souvent (francês), often (inglês)) e de quantificadores flutuantes como “todos” ((tous (francês), all (inglês)), chega a concluir que a primeira língua não possui movimento de Vº-para-Iº na sintaxe, ao contrário da segunda. Uma das evidências encontradas pelo autor é que, nas sentenças declarativas do inglês, 5

A associação entre morfologia flexional rica e licenciamento e identificação do pronome referencial pode ser encontrada em alguns dialetos do português em que é possível o gerúndio ser flexionado, o que corrobora, mais uma vez, a presença do Princípio Evite Pronome. Vejam-se as seguintes frases extraídas de Lobo (2004) com o sujeito nulo relativo à segunda pessoa do singular especificada gramaticalmente pelo morfema -s (grifo nosso): (i)a. Em comendos a sopa, dou-te o bolo. (MATIAS, 1974) b. Deixa que o teu pai logo te diz! Molhandes aí a cabeça toda, moço dum raio! (GUERREIRO, 1968) c. Em querendos ir, vamos. (VILHENA, 1965) d. Cantas a música estendendos o chapéu (RIBEIRO, 2002) 6

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esses advérbios e quantificadores não podem romper a adjacência entre o verbo e o seu complemento (cf. (1a) e (2a)), ao passo que no francês é obrigatória a não-adjacência entre esses constituintes (cf. (1b) e (2b)), o que implica considerarmos que o verbo se move para fora do VP nessa última língua. Vejam-se as seguintes frases extraídas de Pollock (1989, p. 367):

(1)a. *John kisses often Mary. “O João beija frequentemente a Maria.” b. Jean embrasse souvent Marie. “O João beija freqüentemente a Maria.” c. John often kisses Mary. “O João freqüentemente beija a Maria.” d. *Jean souvent embrasse Marie. “O João freqüentemente beija a Maria.” (2)a. *My friends love all Mary. “Meus amigos amam todos a Maria.” b. Mes amis aiment tous Marie. “Meus amigos amam todos a Maria.” c. My friends all love Mary. “Meus amigos todos amam a Maria.” d. *Mes amis tous aiment Marie. “Meus amigos todos amam a Maria.”

Além de evidenciar que o verbo se move na sintaxe numa língua como o francês, o autor propõe a cisão da categoria máxima flexional IP em TP e AgrP, havendo a possibilidade de intervir entre elas a categoria máxima NegP. Segundo ele, quando entre a negação e o advérbio aparece o verbo (Neg-V-Adv), há movimento curto deste para o núcleo flexional mais baixo, ao passo que, quando o verbo ocorre antes da negação e do advérbio (V-Neg-Adv), há movimento longo do mesmo para o núcleo flexional mais alto. No que se refere à negação, em particular, há evidência de que, nas línguas germânicas, quando o verbo sofre movimento para além do VP, ele é seguido pela negação, conforme verifica Vikner (1995, p, 154 apud FIÉIS, 2003, p. 76) numa língua como o alemão: (3) Gesagt daβ Peter reich ist hat sie nicht. Dito que o-Pedro rico é tinha ela não “Dito que o Pedro é rico ela não tinha.” Argumentos adicionais para a existência de movimento do verbo são apresentados em Fiéis (2003). Citando Vikner (op. cit.), também observa que em línguas V2, como o alemão, é obrigatório o movimento de Vº-para-Cº nas orações raízes ficando o verbo na segunda posição. Veja-se a seguinte representação extraída de Vikner (Ibid., p. 42 apud FIÉIS, op. cit., p. 74) da frase Die Kinder sahen den Film. (“As crianças viram o filme”):

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(4)

CP C‟

Die Kinderj C

IP I‟

saheni Spec tj VP den Film

I V ti

Com base na pesquisa de Holmberg (1986) e de Schwartz e Vikner (1996), Fiéis (2003) observa que o verbo no alemão não se move para Cº nas orações subordinadas quando o núcleo C está lexicalizado pelo complementador (cf. (5a)). Contudo, não sendo esse núcleo lexicalizado, o verbo aparece em segunda posição, o que implica dizer que ele se move até o núcleo funcional C (cf. (5b))6: (5)a. Er sagt, daβ die Kinder diesen Film gesehen haben. Ele diz que as crianças este filme visto têm “Ele diz que as crianças viram o filme.” (HOLMBERG, 1986, p. 43 apud FIÉIS, 2003, p. 74) b. Sie glaubte Ø dieses Brot hatte das Kind gegessen. Ele julgava Ø este pão tinha a criança comido “Ele julgava que a criança tinha comido o pão.” (SCHWARTZ; VIKNER, 1996, p. 22 apud FIÉIS, op.cit., p. 75) Outra evidência para o movimento do verbo é encontrada em línguas como o inglês e o PE, consideradas V2 residuais pelo fato de nas interrogativas o verbo permanecer em segunda posição. Na primeira língua, verbos auxiliares podem mover-se para Iº, como é o caso do verbo to be (“ser, estar”) (cf. (6a)), ou para Cº, quando há extração de um elemento WH-. Nesse último caso, há movimento do auxiliar do (cf. (6b)). Vejam-se, também, as frases em (7a) e (7b) do PE7: (6)a. Are you affraid? “Você está com medo?” b. Who did you see? “Quem você viu?” (FIÉIS, 2003, p. 75) (7)a. Quem encontrou o João no cinema? b. A quem escreveu o Pedro? (AMBAR, 1992, p. 58) Face às evidências acima apresentadas sobre a existência de movimento do verbo na sintaxe, ergue-se a questão: o que motiva, portanto, esse movimento em algumas línguas e não 6 7

Os grifos são da autora da citação. Para uma descrição pormenorizada dos contextos de inversão sujeito-verbo no PE em que há movimento obrigatório de Vº-para-Cº nas interrogativas, confira Ambar (1992). 8

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em outras? Explicações têm surgido sob duas perspectivas de análise: a) movimento do verbo é a causa de a morfologia ser rica (POLLOCK, 1989) e b) morfologia rica é a causa do movimento do verbo (VIKNER, 1997). Neste artigo, tem sido assumida a segunda proposta. Pollock (op. cit) argumenta que a causa do movimento do verbo em línguas como o francês tem a ver com a propriedade ligada à “transparência” do núcleo flexional Agrº, que se caracteriza como morfologicamente rico por não bloquear a transmissão das funções-θ do predicador verbal aos seus argumentos, ao contrário do inglês. Em outras palavras, o autor assume que, sendo o Agr opaco no inglês, verbos que atribuem funções-θ (nesse caso, os verbos lexicais) não podem ser movidos a esse núcleo em virtude de ele bloquear a transmissão dessas funções. Somente verbos auxiliares podem ser movidos nessa língua, tendo em vista não serem capazes de atribuir funções-θ. Centrando sua atenção também no movimento do verbo e defensor da idéia de que “[...] syntactic properties like word order depend on morphological properties”, Vikner (1997) propõe uma explicação alternativa para caracterizar a riqueza da flexão verbal, correlacionando-a com esse movimento em sentenças declarativas finitas produzidas em algumas línguas particulares. Visando formular sua explicação para o que motiva esse movimento, o autor rediscute as seguintes hipóteses no que diz respeito à correlação entre flexão verbal e movimento do verbo: (8) 1ª) Movimento de Vº-para-Iº se há qualquer flexão; 2ª) Movimento de Vº-para-Iº se Iº é forte (ROBERTS, 1985; KOSMEIJER, 1986; HOLMBERT; PLATZACK, 1988, 1990 e PLATZACK, 1988); 3ª) Movimento de Vº-para-Iº se há distinções de pessoa (PLATZACK, 1988 e PLATZACK; HOLMBERG, 1989); 4ª) Movimento de Vº-para-Iº se há morfologia de número visível distinta (ROBERTS, 1993); 5ª) Movimento de Vº-para-Iº se e somente se a 1ª e a 2ª pessoa são distintamente marcadas (ROHRBACHER, 1994). (VIKNER, op.cit., p. 192-196) Segundo Vikner, a primeira hipótese é bastante simplista em sua formulação, tendo em vista que há línguas, como o inglês, que têm um paradigma flexional em que, no tempo presente, é possível distinguir a 3ª pessoa do singular de todas as demais, e, no entanto, o movimento visível de Vº-para-Iº não é permitido. Quanto à segunda hipótese, a riqueza da flexão é determinada pelo número “substancial” de distinções no paradigma verbal, o que ergue uma problemática para caracterizar essa riqueza, conforme verifica o autor. Numa língua como o francês em que há somente três formas distintas8 para os verbos regulares na primeira conjugação, o movimento de Vº-para-Iº é obrigatório. Veja-se na primeira coluna da tabela em (9) o paradigma verbal dessa língua construído com o verbo écouter “escutar”. Contudo, uma língua como o faroês, embora tenha três distinções, não possui movimento de Vº-para-Iº (cf. na segunda coluna da tabela em (9), o paradigma verbal construído com o verbo hoyra “ouvir”). Logo, uma hipótese que se baseie na determinação de um número substancial de distinções no paradigma verbal não é satisfatória para determinar esse movimento: (9) FRANCÊS FAROÊS j‟ écoute eg hoyri 8

É pertinente esclarecermos que o paradigma do francês apresentado corresponde à realização fonológica das pessoas gramaticais, o que implica considerar que a forma parl compreende um sincretismo entre as formas da 1ª p. sing., 2ª p. sing., 3ª p. sing., e 3ª p. pl., ao passo que parl-õ e parl-é correspondem à 1ª e 2ª p. pl., respectivamente. 9

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tu écoutes tú hoyrir il écoute hann hoyrir nous écoutons vit hoyra vous écoutez tit hoyra ils écoutent tey hoyra Tabela 1: Paradigmas de flexão verbal do francês e do faroês no presente do indicativo extraídos de Vikner (1997)

Quanto à terceira hipótese, o número substancial de distinções é dado com base na distinção entre as pessoas do paradigma flexional. No entanto, uma observação se coloca: o faroês e o francês possuem três formas distintas no paradigma, no entanto, apenas a segunda língua tem movimento obrigatório de Vº-para-Iº. Já a quarta hipótese proposta por Roberts necessita, segundo Vikner, ser rediscutida, haja vista que há línguas que têm morfologia de número distinta, como ocorre com o faroês, e não têm movimento de Vº-para-Iº. Dentre as hipóteses supracitadas, Vikner (1997) decide optar pela quinta formulada por Rohrbacher (1994), que vem apresentada em (10). O autor propõe uma nova versão dessa hipótese, defendendo a inclusão de mais tempos verbais9 em que a morfologia de pessoa precisa ser distinta em todos eles: “[...] all tenses, not only the present tense, are relevant, as the crucial sign of a strong inflection is that person inflection occurs in every tense.” (VIKNER, op.cit., p. 190). (10) The paradigm-verb raising correlate A language has Vº-to-Iº movement if and only if in at least one number of one tense of the regular verbs, the person features [1st] and [2nd] are both distinctively marked. Ademais, analisando a flexão de tempo e concordância, o autor também reanalisa as seguintes hipóteses: (11) 1ª) Movimento de Vº-para-Iº se e somente se a flexão para tempo e concordância co-ocorre; 2ª) Movimento de Vº-para-Iº se e somente se a flexão para pessoa e tempo coocorre; 3ª) Movimento de Vº-para-Iº se e somente se o tempo nunca ocorre sem pessoa; 4ª) Movimento de Vº-para-Iº se e somente se todos os tempos são flexionados para pessoa. Em sua discussão sobre cada hipótese em particular, o autor observa que a primeira hipótese não é adequada. Em faroês, por exemplo, apesar de co-ocorrer morfologia de tempo e concordância no passado, não há movimento de Vº-para-Iº. Quanto à segunda hipótese, não pode ser estendida a todas as línguas. Por exemplo, no ídiche em que não há morfologia de tempo e, conseqüentemente, não há co-ocorrência com a morfologia de pessoa, é permitido o movimento de Vº-para-Iº. Similar a essa hipótese, a terceira também não é satisfatória, tendo em vista que o ídiche tem movimento de Vº-para-Iº apesar de não possuir morfologia de tempo.

9

Os tempos verbais a que se refere Vikner incluem apenas as formas flexionadas de verbos regulares principais. 10

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Quanto à quarta hipótese relativa ao movimento de Vº-para-Iº se e somente se todos os tempos são flexionados para pessoa, Vikner (1997)10 formula uma explicação alternativa ao defender que línguas SVO que possuem esse movimento têm morfologia de pessoa presente em todos os tempos verbais. Essa hipótese é confirmada a partir de alguns dados diacrônicos do inglês discutidos pelo autor em que o movimento de Vº-para-Iº era possível no inglês medieval dos séculos XIV e XV (cf. (12)). Por outro lado, deixando de existir a morfologia de pessoa em todos os tempos verbais no inglês do século XVI, esse movimento é bloqueado (cf (13)). Vejamse, portanto, em (14) os paradigmas flexionais do verbo to hear “ouvir” conjugado no presente e no pretérito (12) The Turkes […] made anone [grifo meu] redy a grete ordonnaunce The Turks made at once ready a great number of weapons (= The Turks at once set up a great number of weapons) “Os turcos imediatamente levantaram um grande número de armas.” (1482, Kaye: The Delectable Newesse of the Glorious Victorye of the Rhodyans agaynest the Turks, de Gray (1985 apud VIKNER, 1997, p. 202)) (13) We immediately by our senses [grifo meu] perceive in Fire its Heat and Colour “Nós imediatamente por nossas sensações percebemos em Fogo seu Calor e Cor” (1690, John Locke: Na essay concerning humane understanding, from the entry immediately, Simpson e Weiner (1989 apud VIKNER, loc. cit.)) (14)

LATE MIDDLE ENGLISH EARLY MODERN ENGLISH PRESENT PAST PRESENT PAST I here herd I hear heard thou herest herdest thou hearst heardst he hereth herde he heareth heard we here(n) herde(n) we hear(en) heard(en) ye here(n) herde(n) ye hear(en) heard(en) thei here(n) herde(n) thei hear(en) heard(en) Tabela 2: Paradigmas verbais do inglês medieval e moderno no presente e no pretérito extraídos de Vikner (1997)

Vikner observou que, no inglês medieval, os tempos verbais presente e pretérito são flexionados para pessoa, ocorrendo, como é esperado, o movimento visível de Vº-para-Iº, conforme apresentado em (12). Rohrbacher (1994), ao analisar também os paradigmas acima, chega a concluir que os traços de 1ª e 2ª pessoa são distintos no inglês medieval no tempo presente, ao passo que no inglês moderno não ocorre tal distinção em virtude de a forma da primeira pessoa do singular ser semelhante à forma infinitiva, o que implica considerar a ausência de movimento de Vº-para-Iº (cf. (13)). Assumindo a proposta de Vikner (1997) discorrida nesta seção, somos levados a concluir que a morfologia de flexão verbal se enfraquece à medida que a distinção morfológica entre as pessoas do paradigma vai sendo perdida em todos os tempos verbais. Portanto, numa língua como o inglês, o dinamarquês e o faroês, em que não é possível estabelecer distinção entre as pessoas do paradigma verbal em todos os tempos, não ocorre movimento de Vº-para-Iº

10

“[…] where the Rohrbacher analysis asks „Is there a tense where 1st and 2nd person are distinctively marked in singular or plural?‟ the analysis advocated here asks “Are all tenses inflected for person‟ In both cases a positive answer entails the presence of Vº-to-Iº movement” (VIKNER, 1997, p. 201) 11

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como esperado. Vejam-se os paradigmas em (15) extraídos de Vikner (1997, p. 191), em que é conjugado o verbo ouvir no presente e no pretérito nessas três línguas, respectivamente:

(15)a.

PRESENTE INGLÊS DINAMARQUÊS 1ª p. sing. I hear jeg hører 2ª p. sing. You hear du hører 3ª p. sing. He hears han hører 1ª p. pl. We hear vi hører 2ª p. pl. You hear I hører 3ª p.pl They hear de hører Tabela 3: Conjugação no tempo presente do verbo dinamarquês e faroês

FAROÊS eg hoyri tú hoyrir Hann hoyrir Vit hoyra tit hoyra tey hoyra “ouvir” no inglês,

(15)b.

PRETÉRITO INGLÊS DINAMARQUÊS 1ª p. sing. I hear-d jeg hør-te 2ª p. sing. You hear-d du hør-te 3ª p. sing. He hear-d han hør-te 1ª p. pl. We hear-d vi hør-te 2ª p. pl. You hear-d I hør-te 3ª p.pl They hear-d de hør-te Tabela 4: Conjugação no tempo pretérito do verbo dinamarquês e faroês.

FAROÊS eg hoyr-d-i tú hoyr-d-i Hann hoyr-d-i Vit hoyr-d-u tit hoyr-d-u tey hoyr-d-u “ouvir” no inglês,

Analisando, agora, os paradigmas do PB e do PE, seguindo a hipótese de Vikner (1997), argumentamos que em todos eles a morfologia flexional é rica pelo fato de a morfologia de pessoa estar presente em todos os tempos, o que implica dizer que há movimento de Vº-paraIº. Observem-se os paradigmas abaixo em que é conjugado o verbo cantar no presente do indicativo (cf. (16)) e no pretérito perfeito11 simples do indicativo (cf. (17)): (16)

PB PE Eu canto Eu canto -------------Tu cantas Você/ ele(a)/ a gente canta Você/ ele(a)/ a gente canta Nós cantamos Nós cantamos -------------------------Vocês/ eles(as) Vocês/ eles(as) cantam cantam Tabela 5: Paradigmas de flexão verbal no presente do indicativo em PB e PE PB Eu cantei -------------Você/ ele(a)/ a gente cantou

11

PE Eu cantei Tu cantaste Você/ ele(a)/ a gente cantou

Vale dizermos que não conjugamos o verbo no pretérito imperfeito no PB e no PE por razões relacionadas ao fato de que “nem sempre o Imperfeito apresenta características de tempo relativo a um ponto de perspectiva temporal do passado […] mas […] pode expressar modalidade.” (OLIVEIRA, 2003, p. 157)). Contrariamente ao pretérito perfeito, o imperfeito pode ocorrer com um advérbio com leitura temporal de futuro como Amanhã, indicando que “o ponto de perspectiva temporal é um tempo posterior ao da enunciação[…]” (OLIVEIRA, loc. cit.). 12

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(17)

Nós cantamos -------------Vocês/ eles(as) cantaram

Nós cantamos ------------Vocês/ eles(as) cantaram

Tabela 6: Paradigmas de flexão verbal no pretérito em PB e PE

Nos paradigmas acima, por exemplo, é possível distinguirmos a primeira pessoa do singular das demais a partir da especificação gramatical fornecida pelos morfemas, ao contrário do que ocorre no inglês moderno, em que a primeira pessoa do singular no presente do indicativo é idêntica à forma infinitiva. Nesse sentido, argumentamos a favor de uma análise unificada para o PB e o PE: ambas têm morfologia de pessoa em todos os tempos, logo, há movimento de Vºpara-Iº. Partindo dos testes tradicionais de posicionamento de advérbios de VP e de quantificadores flutuantes nas estruturas frasais, assumimos com Costa e Galves (2002) que há movimento de subida do verbo no PB e no PE (cf. as frases em (18) e (19) extraídas de Costa e Galves (op. cit.). Esses advérbios e quantificadores podem ocorrer entre o verbo e o seu complemento, servindo de evidência empírica, à semelhança do francês, de que o verbo se move para fora do VP: (18)a. O João beija freqüentemente a Maria. b. As crianças beijam todas a Maria. (19)a. Jean embrasse souvent Marie. “O João beija freqüentemente a Maria.” b. Mes amis aiment tous Marie. “Meus amigos amam todos a Maria.” De mais a mais, línguas como o islandês e o ídiche comportam-se de forma similar ao PB e ao PE no que concerne ao movimento obrigatório de Vº-para-Iº em frases declarativas finitas, tal como pode ser observado nas frases em (20a) analisadas por Vikner (1997, p. 189). Em virtude de haver flexão de pessoa em todos os tempos nessas três línguas, elas se diferenciam de línguas como o inglês, o dinamarquês e o faroês que não têm movimento visível de Vº-para-Iº . (cf. (21a‟)): (20)a. Islandês: Að Jón borðar oft tómata. Ídiche: Az Jonas est oft pomidorn. “Aquele João come freqüentemente tomates.” a‟. Islandês: *Að Jón oft borðar tómata. Ídiche:* Az Jonas oft est pomidorn. “Aquele João freqüentemente come tomates.” (21)a. Inglês: That John often eats tomatoes. (surprises most people) 13

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Dinamarquês: At Johan ofte spiser tomater. (overrasker de fleste) Faroês: At Jón oft boroar tómata. (kemur flestum á óvart) “Aquele João freqüentemente come tomates.” a‟. Inglês: *That John eats often tomatoes. (surprises most people) Dinamarquês: *At Johan spiser ofte tomater. (overrasker de fleste) Faroês: *At Jón etur ofta tómatir. (kemur óvart á tey flestu) “Aquele João come freqüentemente tomates.” Em suma, com base nas assimetrias acima apresentadas entre línguas com movimento de Vº-para-Iº e aquelas que não o possuem, chegamos à conclusão de que o PB e o PE estão incluídos no primeiro grupo de línguas em virtude de terem morfologia flexional rica, uma conseqüência de a morfologia de pessoa estar presente em todos os tempos verbais. A seguir, vejamos os exemplos (22) e (23): (22)a. O Pedro provavelmente viu a Maria. b. Os meninos todos viram a Maria. (23)a. O Pedro viu provavelmente a Maria. b. Os meninos viram todos a Maria. Poderíamos pensar, à primeira vista, que a possibilidade de o advérbio e o quantificador flutuante ora ocuparem a posição pré-verbal (cf. (22)), ora a posição pós-verbal (cf. (23)) seria evidência de que o movimento de Vº-para-Iº na gramática do PB e do PE é opcional. No entanto, Costa e Galves (2002) apresentam argumentos convincentes à não-opcionalidade: a) posição de advérbios como bem e atentamente só são legitimados em posição pósverbal: (24)a. *O Pedro bem/ atentamente leu o livro. a‟. O Pedro leu bem/ atentamente o livro. b) posição do verbo entre dois advérbios (cf. (15c)), ou entre um quantificador flutuante e um advérbio (cf. (15a) e (15b)): (25)a. Os meninos todos beijam frequentemente a Maria. (OKPE ??PB) b. Os meninos frequentemente beijam todos a Maria. (OKPE *PB) c. Os meninos ontem leram bem o livro (OKPE OKPB) c) posição distinta para advérbios que são ambíguos entre uma leitura de modo e uma leitura orientada para o sujeito: (26)a. O Pedro atentamente leu o livro. (Orientado para o sujeito/ *Modo) b. O Pedro leu atentamente o livro. (*Orientado para o sujeito/ Modo) Portanto, face às evidências apresentadas de (24) a (26), somos levados a assumir com Costa e Galves (2002) que o movimento do verbo é obrigatório na gramática do PB e do PE. Assumindo a cisão da categoria funcional IP em AgrP e TP, a questão que se ergue é saber para que núcleo flexional o verbo se move nessas línguas: se para Agrº, à semelhança do francês, ou para Tº. Conforme será discutido na próxima seção, apresentaremos evidências, a partir da 14

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pesquisa de Galves (2001), Costa e Galves (2002) e Brito (2001), de que o verbo não se move para o núcleo funcional mais alto, mas para em Tº, o que culmina no movimento curto do mesmo, ao contrário do que é defendido por Figueiredo Silva (1996) para o PB.

Evidências para Movimento Curto de Vº-para-Tº no Português Brasileiro e no Português Europeu

Conforme já evidenciado na seção anterior, há movimento do verbo na sintaxe do PB e do PE em frases declarativas, sendo a causa motriz desse movimento o fato de a morfologia de pessoa estar presente em todos os tempos verbais. A questão não explorada até o momento diz respeito ao lugar de pouso do verbo nessas línguas. Costa e Galves (2002), ao argumentarem que o verbo não se move opcionalmente na sintaxe do PB e do PE, observam que advérbios como inteligentemente, quando possuem leitura orientada para o sujeito, necessariamente rompem a adjacência entre o sujeito e o verbo nessas línguas, ao passo que, possuindo esse mesmo advérbio leitura de modo, ele deve seguir o verbo, ao contrário do francês. Nessa última língua, esse tipo de advérbio, ao romper a adjacência entre o verbo e o objeto, possui os dois tipos de leitura indistintamente (cf. (2)): (1)a. O Pedro inteligentemente leu o livro. (leitura orientada para o sujeito/ *leitura de modo) b. O Pedro leu inteligentemente o livro. (*leitura orientada para o sujeito/ leitura de modo) (2) Pierre lit intelligemment le livre. (leitura orientada para o sujeito/ leitura de modo)12 (COSTA; GALVES, op. cit., p. 112-113) Assumindo com Costa (1998) que advérbios com leitura orientada para o sujeito estão adjungidos à projeção TP e que advérbios de modo estão adjungidos ao VP, fica evidenciado que em (1) o verbo se move até o núcleo Tº. Já no francês, tendo em vista a ambigüidade entre a leitura de orientação para o sujeito e a leitura de modo do advérbio que segue obrigatoriamente o verbo, este se encontra no núcleo mais alto da frase, nomeadamente, Agrº. Com base nisso, vejam-se as seguintes configurações sintáticas em (3a) e (3b) propostas por Costa e Galves (op. cit., p. 113) para o português e o francês, respectivamente: (3)a. Portuguese: [AgrSP S [TP AdvSO [TP V [VP AdvManner b. French13: [AgrSP S V [TP AdvSO [TP tv [VP AdvManner Evidência adicional para o movimento curto do verbo no PB e no PE tem a ver com a assimetria constatada entre essas línguas e o italiano. Nessa última, Costa e Galves (2002), 12 13

Grifo dos autores da citação. Citando Williams (1994), Costa e Galves (2002) verificam que as duas posições disponíveis para o advérbio intelligemment ora em adjunção a TP, ora em adjunção ao VP, ganham suporte empírico quando a negação está presente nas frases declarativas nessa língua. A presença desse constituinte na frase cessa a ambigüidade entre a leitura com orientação para o sujeito e a leitura de modo, como mostrado a seguir: (i)a. Pierre ne lit intelligemment pas le livre. (Subject-oriented/ *Manner) b. Pierre ne lit pas intelligemment le livre. (*Subject-oriented/ Manner) “O Pedro não lê inteligentemente o livro.” 15

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citando Belletti (1990), observam que quantificadores indefinidos como Nessuno (“ninguém”) só podem ser legitimados na posição pré-verbal se recebem uma entoação especial, ou seja, se são marcados como focos. Não obstante, no PB e no PE, esses quantificadores não estão submetidos a esse tipo de restrição. A falta de adjacência atestada em (4) em ambas as línguas difere da que é encontrada no italiano. Nessas línguas, advérbios como provavelmente e possivelmente rompem a adjacência entre o sujeito e o verbo (cf. (4)), ao contrário do italiano (cf. (5)): (4)a. Ninguém provavelmente falhou. (COSTA; GALVES, 2002, p. 111) b. Ninguém provavelmente fica em casa o dia todo. c. Alguém possivelmente terá achado a solução. (GALVES, 2001, p. 109) (5) *Nessuno probabilmente ha sbagliato. “Ninguém provavelmente falhou.” (COSTA; GALVES, loc. cit.) Portanto, se o verbo para em Tº, fica explicada a falta de adjacência entre o sujeito e o verbo nas frases em (4), bem como fica evidenciado, por um lado, que o traço-V de T é forte em ambas as línguas, o que motiva o movimento curto do verbo. No francês, por outro lado, o traçoV de Agr é forte e, portanto, o verbo sobe até esse núcleo funcional para a verificação desse traço.

Considerações finais Partindo do que foi exposto neste artigo, defendemos que a assimetria atestada entre a gramática do PB e a do PE tem como locus de variação a natureza distinta de AGR, tomando por base a proposta de Galves (2001). A partir da análise comparativa entre essas línguas, ficou evidenciado que a primeira língua, embora apresente algumas propriedades de línguas não-prodrop (por exemplo: o inglês e o francês), ainda compartilha algumas propriedades com o PE: a) possível legitimação de sujeitos nulos referenciais ainda que com pouca freqüência; b) possibilidade de o argumento interno nas construções passivas e inacusativas permanecer em sua posição de base e c) possibilidade de ocorrência de DPs pós-verbais definidos e indefinidos em construções inacusativas. Essas evidências, portanto, levam-nos a assumir que o PB é uma língua semi-pro-drop, o que põe em questão a binaridade do parâmetro do sujeito nulo (RIZZI, 1988, 1997). Seguindo a análise desenvolvida por Vikner (1997), foi possível argumentarmos a favor da ideia de que morfologia rica que licencia e identifica sujeitos nulos, conforme assumido por Rizzi (1982, 1988, 1997), não tem a ver com morfologia rica que motiva o movimento de Vºpara-Iº na sintaxe. Embora o AGR do PB seja pobre em relação ao do PE, se adotada a análise de Galves (op. cit.), ambas as línguas possuem esse movimento, uma análise que pode ser estendida ao francês que, embora tenha uma morfologia flexional pobre, possui obrigatoriamente esse movimento (Cf. POLLOCK, 1989), um fato que decorre de a morfologia de pessoa estar presente em todos os tempos verbais, seguindo a proposta de Vikner (op.cit.). Referências

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O DIALOGISMO NA CONSTRUÇÃO DE REFERENTES EM EDITORIAIS DE JORNAL Digenário Pessoa de Sousa*

Resumo: A imprensa, por ser um importante lugar de produção, manutenção e circulação de sentidos, se torna um considerável objeto de estudo para compreensão das práticas linguageiras e, consequentemente, também dos processos de referenciação. Aqui, interessará o gênero editorial, pois este se constitui em um instrumento de posicionamento político-axiológico da empresa jornalística e “revela” as vozes sociais constituintes das representações construídas pelo jornal. Pretende-se analisar como se dá a construção do objeto de discurso Lula no jornal O Estadão, utilizando um enfoque dialógico da referenciação (ALVES FILHO, 2010). Fundamentam o trabalho, especialmente, Mondada e Dubois (2003) com a noção de objeto de discurso e Bakhtin (1997) e (2003) que enseja a discussão sobre a dialogicidade da referenciação. Compõem o corpus deste trabalho cinco editoriais do jornal O Estadão, os quais abordam de alguma forma o referente Lula. Palavras-chave: dialogismo, objetos de discurso, editorial de jornal. Abstract: The press, being a place of production, maintenance and circulation of meaning becomes an important object of study to understand the language practices and thus also the processes of construction of objects of discourse. Here, it will the interest the editorial genre, because it constitutes an instrument of political and axiological position of journalistic enterprise and "reveals" the social voices of the constituent representations built by the newspaper. It is intended to analyze how is the construction of the discourse object Lula on Estadão newspaper, using a dialogical approach of referencing (ALVES FILHO, 2010). This work is especially based on Mondada and Dubois (2003), with the notion of objects of discourse, and Bakhtin (1997) and (2003) who base the discussion of the dialogical referencing. The corpus of this work is composed by five editorials on Estadão newspaper, which address somehow the referent Lula. Key-words: dialogism, objects of discourse, newspaper editorial.

Introdução Tomar como fundo epistêmico as inter-relações dialéticas entre o domínio verbal, o domínio social e a discursividade dos processos referenciais é algo que tem sido feito cada vez mais constantemente nos estudos de referenciação nos últimos anos, especialmente, partindo das contribuições de Blikstein (2001) e Mondada & Dubois (2003). Realmente, muitos foram os ganhos com essa perspectiva, mas uma grande parte desses trabalhos ainda necessita dar um tratamento teórico-metodológico mais apurado aos seus objetos de pesquisa que contemple, de fato, a discursividade e a intersubjetividade constituintes dos processos de referência. Alguns trabalhos já começam a enveredar por este viés, por exemplo, Alves-Filho (2010), Vieira (2009), Santos-Silva e Sousa (2009). Mas, cremos que é preciso um maior número de trabalhos nesta linha para que ela se solidifique ainda mais e, nesse sentido, empreendemos esta breve pesquisa. Dessa forma, pretendemos, aqui, desenvolver um estudo sobre como se dá a construção do objeto de discurso Lula em editoriais do jornal O Estadão, utilizando um enfoque dialógico da *

Mestrando em Letras (UFPI) - Bolsista da CAPES - [email protected] 84

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referenciação. Com este propósito, orientamos nossa discussão no caminho de algumas questões: a) em que sentido, olhando para um editorial de jornal, podemos dizer que a construção dos objetos de discursos é um processo colaborativo? b) como a interdiscursividade se manifesta e como contribui para construir e legitimar referentes? c) que implicações resultam da postura de se tomar o gênero como critério para análise dos processos referenciais? Dificilmente conseguiremos dar conta desses questionamentos de modo satisfatório, mas esperamos pelo menos conseguir reforçar a tese de que, no gênero editorial, objeto de reflexão deste trabalho, apenas a cadeia anafórica é insuficiente para a compreensão do funcionamento discursivo dos processos referenciais e que, consequentemente, há o imperativo de se buscar outras marcas para a clarificação dos processos de construção referencial. Além disso, partindo da noção de dialogismo/interdiscursividade, para tal empreitada, esperamos mostrar que a colaboratividade na construção de referentes, em um editorial, é mais perceptível do ponto de vista do dialogismo/interdiscursividade do que da relação estabelecida entre o enunciador (jornal/editor) e seus co-enunciadores (leitores presumidos). Para tanto, nossa fundamentação teórica contempla, especialmente, Bakhtin (1997) e (2003) no que diz respeito às noções de dialogismo e gênero de discurso e Mondada & Dubois (2003) para tratar de objeto de discurso e referenciação. O corpus é composto por editoriais do jornal O Estadão que têm como um dos tópicos discursivos o presidente Lula. A análise é feita a partir da identificação da cadeia anafórica responsável pela atualização do objeto de discurso Lula, para, depois, empreender uma análise contrastiva desta cadeia referencial com as vozes sociais manifestas ou não nos editoriais em estudo. Organizamos o trabalho, basicamente, em duas partes. Primeiro é feita uma incursão sobre as dimensões teóricas que serão alicerces para as reflexões arroladas neste estudo e, depois, é desenvolvida a análise propriamente dita nos moldes descritos acima. Coordenadas teóricas A linha teórica em que se situa esta proposta de pesquisa é a interface dos estudos de referenciação e a proposta teórica do Círculo de Bakhtin, em que se destacam conceitos como dialogismo, heteroglossia/polifonia, gêneros do discurso, cronotopo, etc., e que dão base a muitos estudos de Linguística, especialmente os da Análise do Discurso. Acreditamos, pois, na possibilidade de uma aproximação das duas perspectivas teóricas a partir do princípio bakhtiniano do dialogismo, porque, se todo ato de linguagem está submetido a tal princípio, os processos referenciais, por consequência não poderiam evadir-se de tal postulado1. Logo, cremos que a referenciação, entendida como processo de construção de objetos de discurso que refratam a realidade, é organizada e determinada pelas vozes sociais que constituem o discurso e os sujeitos da interação verbal, pela estrutura do gênero e pela realidade trans-linguística que envolve o ato de enunciação. Como assevera Faraco (2009), para o Círculo de Bakhtin, nos processos referenciais há a ação de duas operações simultaneamente no signo, quais sejam a reflexão e a refração. Ainda segundo o mesmo autor (2009, p. 50-51) “refratar significa (...) que com nossos signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos – na dinâmica da história e por decorrência do caráter sempre múltiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos – diversas

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Mesmo que se trate de linhas de pesquisa com fundo epistemológico distinto, nos últimos anos, especialmente, a partir dos trabalhos de Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995), Mondada e Dubois (2003) e Mondada (2001), as noções de objeto de discurso e categorização tem se encaminhado na direção de uma análise sócio-cognitiva e discursiva dos processos referenciais, o que nos credencia, acreditamos, a tentar esta aproximação. 85

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interpretações (refrações) desse mundo”. Nessa mesma linha do Círculo2, e em oposição à concepção clássica de referência, a partir da qual se acreditava que esse processo era um expediente pelo qual se refletia o mundo de modo estável e acabado, Koch (2006) menciona que, longe de um procedimento mecânico e determinista, a ação de reportar-se ao real por meio da linguagem se dá de modo dissimétrico, pois não há entre o mundo real e o linguístico uma relação de biunivocidade. Isso porque, ao referir, o sujeito enunciador opera uma ação de (re)criação da realidade consoante seus valores sociais e sua intenção comunicativa. Isso é apontado em Mondada (2001, p. 9), quando defende a substituição dos termos referente e referência, advindos da Filosofia da Linguagem, da Lógica e da Linguística, por objeto de discurso e referenciação, respectivamente. (...) A referenciação opera uma mudança em relação ao primeiro quadro (linguagem como representação do mundo): ela não privilegia a relação entre as palavras e as coisas, mas a relação intersubjetiva e social no seio da qual as versões do mundo são publicamente elaboradas. (...) No seio dessas operações de referenciação, os interlocutores elaboram objetos de discurso.3 Contrastando com a abordagem clássica, haja vista “a noção de verdade como correspondência [ser] irrelevante para o processo referencial” (MARCUSCHI, 2001, p. 37), a referenciação é, pois, um processo linguístico-discursivo de (re)construção de objetos de discurso em função de um objetivo comunicativo que resulta na elaboração de versões de mundo publicamente elaboradas. Esse posicionamento teórico aponta para uma dessacralização das atividades designatórias e para a sua consequente relativização, o que leva a afirmar a inexistência4 da identificação perfeita entre os sistemas semióticos e as coisas do mundo. Na esteira desses comentários, é possível asseverar-se ainda que muito além de uma mera forma de nomear o mundo, a linguagem é a forma de se interagir com ele, construindo-o, mantendo-o e modificando-o (KOCH, 2006). Essa é a linha de pensamento que conduz o trabalho de Blikstein (2001), outro contestador dos estudos clássicos de referenciação, os quais buscavam elucidar as relações entre a linguagem e o real. Para ele, o referente é resultado de processos sóciocognitivos orientados pelo horizonte social dos enunciadores, ou seja, por “óculos sociais”. Não se deve confundir, portanto, nessa linha de raciocínio, objeto de discurso com objeto de mundo. Um mesmo objeto de mundo pode ser referido de várias maneiras por meio de diferentes objetos de discurso. Se se toma como exemplo o objeto de mundo mulher, ele pode ser referido como mulher, donzela, senhorita, gatinha, a melhor coisa do mundo, etc. É mister ter em mente que essa variedade referencial só se atualiza no universo intersubjetivo da interação verbal, o que nos remete a Bakhtin (1997) quando trata da dialogicidade da linguagem. Tanto no sentido da interação imediata quanto da interdiscursividade, a escolha referencial, mesmo transcorrendo no calor da interação ordinária, atualiza discursos circulantes no meio social. Ora, o sujeito que 2

Não queremos dizer com isso que os trabalhos defensores da referenciação como um procedimento de construção de objetos de discurso seja tributária das discussões desenvolvidas no Círculo de Bakhtin, mas que as duas perspectivas seguem por caminhos semelhantes. 3 Tradução nossa. “(...) La référenciation opere un glissement par rapport à ce premier cadre: elle ne preivilégie pás la relation entre les mots et les choses, mais la relation intersubjective et sociale ao sein de laquelle des versions du monde sont publicament élaborées (...) Au sei de ces opérations de référenciation, les interlocuteurs élaborent dês objects de discours” 4 Ou pelo menos quase inexistência da identificação biunívoca dos objetos de mundo com os objetos de discurso/referentes. Isso porque, em oposição à proposta defendida por Mondada e Dubois (2003), puramente refratária, há casos em que a reflexão vai existir e apoiamo-nos para tal afirmação em Bakhtin (1997), quando este afirma ser a linguagem um instrumento de refração e reflexão da realidade. 86

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refere uma mulher com a descrição nominal a melhor coisa do mundo, certamente, não partilha os mesmos valores e discursos de um outro que opte por referi-la como senhorita ou donzela. Nesse ponto, chegamos ao que Alves Filho (2010) defende como plurilinguismo referencial. Segundo Mondada e Dubois (2003), a referenciação não é guiada por valores de verdade como defendiam os clássicos, mas construída ad hoc, derivando daí sua instabilidade e variabilidade. No entanto, Alves Filho (2010, p. 212) defende que “Quando alguém refere algo de algum mundo, seu intento é que tal ato de referenciação seja aceito como verdadeiro ou como válido ou como bom pelos seus interlocutores: o empreendimento enunciativo é orientado com base na busca de uma verdade referencial.” Vista dessa forma, a instabilidade na referenciação ganha outros contornos, pois, da ótica do enunciador, os referentes se apresentam estáveis justamente porque compartilham essas referências com determinados grupos sociais, os quais são orientados por determinadas vozes sociais, ou “óculos sociais”. A instabilidade ou plurilinguismo se dá na interação, quando dois sujeitos em interlocução tentam impor sua visão de mundo, criando, dessa forma, um ponto de tensão entre essas visões de mundo e, portanto, entre as referências a um dado objeto de sentido. Por trás de toda essa discussão, está o dialogismo. Conforme Bakhtin (2003, p. 299-300) “O objeto do discurso do falante (...) não se torna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado, e um dado falante não é o primeiro a falar sobre ele. O objeto, por assim dizer, já está ressalvado, contestado, elucidado e avaliado de diferentes modos.” É basicamente nesta linha que Alves Filho (2010) se posiciona, argumentando que as referenciações não são totalmente ad hoc, embora sempre sejam únicas por conta de uma série de fatores, mas que são orientadas por essas outras enunciações, esses outros dizeres, enfim, essas outras vozes sociais. Fiorin (2006, p.167), em leitura da obra de Bakhtin, propõe que o dialogismo “é o modo de funcionamento real da linguagem e, portanto, é seu princípio constitutivo”. Nesse sentido, a linguagem funciona como um instrumento que serve para mediar a interação do homem com sua realidade circundante, de forma que, para viver em sociedade e constituir-se como sujeito, impreterivelmente, deve-se passar pela linguagem, uma vez que “o real se apresenta para nós semioticamente” (FIORIN, 2006). Ora, como toda realidade está imersa em discursos que a significam e a resignificam de diversos ângulos, as relações sociais só podem ocorrer dentro da relação entre os discursos, isto é, do dialogismo. Como acentua Brait (2005, p.93), “a linguagem não é falada no vazio, mas numa situação histórica e social concreta no momento e no lugar da atualização do enunciado”. Assim, todo enunciado toma por princípio o diálogo. Todo discurso é uma resposta a outro discurso, uma vez que, por trás de uma enunciação, existe a figura do enunciador dotada de interesses e emoções e que, por sua vez, está inserida no contexto mais amplo do meio axiológico do seu grupo social, ou seja, no interdiscurso. Desse modo, a construção de objetos de discurso (referenciação) emerge da situação de interação e de todos os itens nela imbricados (ideologias, valores individuais, estruturas cognitivas dos co-enunciadores, etc.). A referenciação é dialógica também, porque, conforme dito anteriormente, reflete e refrata a ordem social e genérica, uma vez que, o gênero do discurso é a estrutura organizadora e que permite a realização das práticas linguageiras. Pensar no homem é pensar em suas práticas sociais e como elas se estruturam por meio da linguagem. Conforme Bakhtin (2003, p. 261), os enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada (...) campo [atividade antrópica]5 não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo por sua construção composicional. 5

Nota do redator deste projeto. 87

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A forma como o gênero se organiza está estritamente relacionada com a atividade que ele possibilita. Os gêneros do discurso são, portanto, tipos de enunciados relativamente estáveis e intrinsecamente ligados a uma esfera de atividade humana, caracterizando-a e sendo caracterizado por ela mediante processos discursivos de assimilação-reprodução da realidade (BAKHTIN, 2003). Visto desse modo, o gênero é fundamental para o estudo da linguagem, inclusive, para o estudo da referenciação, haja vista ele funcionar como organizador da atividade linguageira e, consequentemente, dos processos referenciais, uma vez que estes são adequados ao gênero de discurso onde são empregados. Por exemplo, não se referencia do mesmo modo em uma notícia, em um editorial ou em uma conversa informal de boteco. Logo, ainda segundo Bakhtin (2003, p. 264-265), o desconhecimento da natureza do enunciado e a relação diferente com as peculiaridades das diversidades de gênero de discurso em qualquer campo da investigação linguística6 redundam em formalismo e em uma abstração exagerada, deformam a historicidade da investigação, debilitam as relações da língua com a vida. Um trabalho sobre linguagem, então, que desconsidere os gêneros do discurso, inevitavelmente, incorrerá em formalismo e em uma desconexão com a realidade construída através da linguagem (a vida). Nesse sentido, o estudo da referenciação deve, pois, também passar pela noção de gênero do discurso, uma vez que eles funcionam como princípio de análise e como critério de organização do corpus, além de apontar para uma visão do enunciado como um produto sócio-historicamente situado e dialeticamente relacionado com seu lócus de circulação. Procedimentos teórico-metodológicos De acordo com o dito anteriormente, o gênero de discurso é uma categoria muito importante para se compreender melhor o funcionamento da linguagem e é a partir dela que organizamos e desenvolvemos as análises neste trabalho. Conforme depreendido de Bakhtin (2003), a análise dos enunciados deve ser um processo contextualizado e, acreditamos, ser o gênero o caminho para essa contextualização, uma vez que ele contém, tipificada em sua estrutura, uma série de orientações de produção/intelecção dos enunciados. Enfim, o gênero de discurso é a porta para a contextualização e compreensão holística de um enunciado. Em nosso caso de estudo, os editoriais, muitas discussões já foram arroladas sobre o comportamento discursivo deste gênero, como por exemplo, Alves Filho e Sousa (2010). Interessar-nos-á, de perto, a discussão proposta por Alves Filho (2009) segundo a qual em um gênero de discurso serão encontradas estabilidades caso se direcione o olhar para seu funcionamento no âmbito de uma determinada empresa jornalística, ao posso que, se se tomam empresas jornalísticas distintas, o comportamento do gênero será visivelmente instável. Ora, se a referenciação é situada, conforme vimos defendendo, e uma dessas âncoras é o gênero, então a proposição de Alves Filho (2009) pode ser estendida também aos processos referenciais. Desse modo, para se encontrar recorrências no funcionamento discursivo dos processos de construção referencial, em gêneros da esfera jornalística, é necessário que se olhe para o gênero, primeiramente, situando-o em sua empresa jornalística, caso contrário, as estratégias de construção referencial serão bastante distintas e irregulares. Em Santos-Silva e Sousa (2009), por exemplo, procedemos a uma análise da construção do objeto de discurso Lula em dois jornais, O 6

Grifo nosso. 88

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Estadão e Meio Norte, a partir da qual concluímos que o comportamento referencial dos dois jornais, em relação a esse objeto de discurso, era diferenciado. Assim, não só o gênero, mas também a empresa jornalística é critério para a análise que pretendemos empreender neste trabalho. Para seleção e organização do corpus foram tomados, pois, como parâmetros o pertencimento ao gênero editorial de jornal, o recorte por empresa jornalística e a presença nos editoriais do tópico discursivo Lula. Abaixo, listamos os procedimentos utilizados para a discussão: 1) identificação das cadeias anafóricas referentes ao objeto de discurso Lula; 2) mapeamento das vozes sociais resultantes do interdiscurso, as quais se manifestam no editorial a partir da heteroglossia/polifonia e as vozes depreendíveis, embora nãomostradas, mas constitutivas do enunciado; 3) empreendimento de uma análise contrastiva entre 1 e 2 para compreender como se dá a construção do objeto de discurso Lula no gênero editorial do jornal O Estadão. O gênero editorial de Jornal No jornal, o editorial funciona, especialmente, para marcar o posicionamento da empresa jornalística frente aos temas públicos de maior notoriedade no momento. Nesse gênero, o jornal rompe com o paradigma da imparcialidade (ou parcialidade velada da imprensa) característico de sua esfera de atividade social para marcar sua posição político-ideológica. Conforme Bakhtin (1997) e (2003), os enunciados são respostas a outros enunciados. Assim, os editoriais respondem a outros enunciados que estão em discussão no momento no meio social em que circulam. Mas, além dessa função que parece ser a principal, poderíamos elencar muitas outras, tais como interagir com segmentos da elite da sociedade, perpetuar e legitimar determinadas opiniões e discursos, servir como porta-voz das decisões das altas esferas do poder, dentre outras. Em Alves Filho e Sousa (2010) discutimos que a abordagem dos temas no editorial é feita, mormente, pelo viés da verdade definitiva em que a empresa jornalística, mesmo sendo o editorial um gênero marcado pela parcialidade de julgamento e, portanto, por uma verdade relativa, impõe sua posição como sendo a única verdade. Tal funcionamento é perceptível nas seguintes características: a) ausência de diálogo com o leitor; b) conclusibilidade definitiva do ponto de vista; c) modalidade deôntica para definir como o poder público deve agir; d) predominância absoluta de referenciação realizada linguisticamente com o uso de descrições definidas. Processos de construção referencial no editorial dO Estadão Conforme pudemos perceber acima, para atender aos seus propósitos comunicativos, o editorial apresenta uma organização estilística e composicional específica para satisfazer eficientemente seus projetos de dizer. Logo, a referenciação organiza-se de modo a contribuir para que as representações elaboradas nos enunciados sejam tidas como “a versão”, a verdade, sobre o tema abordado. Abaixo temos um quadro elaborado para mostrar como se apresentam as cadeias anafóricas em três dos cinco editoriais analisados. O primeiro deles é Por que Lula não lê jornais que desenvolve uma crítica pertinaz à postura do presidente com relação, especialmente, à imprensa, defendendo que tal instituição é fundamental para manutenção de uma democracia sólida e que um chefe de estado não pode abster-se de interagir com ela. O segundo editorial, mais uma vez com uma crítica direta ao presidente, apresenta Lula como uma figura controversa, dissimulada e obsessiva em suas queixas com relação à imprensa. O último critica o comportamento do presidente no tratamento da candidatura da presidenciável Dilma Rousseff. 89

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Quadro I – Cadeia anafórica do referente Lula nos editoriais A) Editorial: Por que Lula não lê jornais, Estadão, 8 de Janeiro de 2009. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva > Ele > Lula > lhe > sua > sua > Lula > o presidente > lhe > Lula > lhe > o anfitrião > Lula > o > Lula > o presidente da república > lhe > ele > Lula > Lula > o > ele. B) Editorial: A síndrome do presidente, Estadão, 12 de Fevereiro de 2009. o presidente Lula > ele > seu >ele > (n)o > seus > Lula > o > Lula > o Lula > (n)ele > seu > sua > Lula > ele > suas > lhe > sua > Lula > sua > Lula > sua > sua > lhe > o verdadeiro Lula > Ele > Lula > ele > Lula > o presidente > Lula > Lula > seu. C) Editorial: O “sequenciamento” de Lula, Estadão, 04 de Maio de 2010. um dos maiores artistas de palanque do mundo > ele > (d)o presidente > sua > ele> sua > se > Ele > se > seu > Lula > Lula > ele > Lula > sua > o padrinho-presidente > (d)ele > Lula > seus > seu > o presidente.

A primeira e mais evidente constatação e que já fora observada em Sousa e Silva (2009) e Vieira (2009) é a de que praticamente não há apreciação do referente nas expressões referenciais componentes da cadeia anafórica. Hodiernamente, quando se estuda os objetos de discurso, concentra-se, via de regra, a análise nas cadeias referenciais, o que não contempla a perspectiva da teoria dos objetos de discurso conforme defendida por Mondada e Dubois (2003). Vislumbrando isso, Vieira (2009) defende que as expressões referenciais não gozam de exclusividade no que diz respeito à função referencial e que as predicações são fundamentais para a afirmação da noção de objeto de discurso. Isso porque, se se olha unicamente as cadeias referenciais, observa-se uma não evolução do objeto de discurso e não se contempla seu aspecto de instabilidade e discursividade, que se revelará com mais clareza apenas nas predicações. Em textos opinativos, o esperado seria que houvesse uma grande recorrência de anáforas recategorizadoras7, haja vista estas conservarem intrinsecamente um tom avaliativo do referente em construção. No entanto, isso não acontece e o que se observa é o predomínio de anáforas diretas atualizadas por nome próprio, pela repetição de uma mesma descrição nominal ou pela presença de pronomes. A recategorização, o que seria esperado para um gênero como o editorial, pouco aparece. No editorial Por que Lula não lê jornais, há apenas um caso de recategorização pela expressão referencial que ocorre em o anfitrião que modifica a sequência da categorização o presidente Lula. No segundo editorial, a recategorização aparece, mas sem estar marcada na própria expressão referencial conforme vemos no trecho abaixo: (1)

Lula, a figura pública, com a sua excepcional inteligência e senso de realidade, aprendeu a se conciliar com (e a desfrutar de) um sistema que o Lula, retirante, engraxate e operário, jamais perdoará.

Temos, neste caso, duas categorizações do referente Lula, a primeira abordando a faceta pública do presidente da república e a outra, a face que marcou (e ainda marca conforme argumentação do jornal) Lula durante grande parte de sua trajetória de vida política. Percebe-se que, mesmo sendo as expressões nominais semelhantes (só não são idênticas por causa do determinante “o” da segundo expressão, que, no entanto, neste caso, não interfere muito na 7

Pautamos a definição de anáfora em Cavalcante (2003). 90

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categorização proposta), o enfoque dado ao referente é distinto, ou seja, há uma mudança na categorização ou, especificamente, uma recategorização na segunda expressão nominal. O terceiro editorial, O “sequenciamento” de Lula, apresenta um comportamento mais avaliativo nas expressões referenciais que os dois primeiros, pois categoriza Lula como um dos maiores artistas de palanque do mundo, recategorizando-o adiante como o presidente e, mais a frente, como padrinho-presidente. No entanto, ainda assim, somente as expressões referenciais são insuficientes para vislumbrarmos mais amplamente a dinâmica da negociação do objeto de discurso Lula nos editoriais do jornal O Estadão. Fitando-se apenas a cadeia anafórica, poder-se-ia até mesmo dizer que o referente é categorizado inicialmente e mantém-se “estável” durante todo o texto. Porém não é isso que acontece, pois, durante a sequência narrativa, o objeto de discurso Lula vai sendo negociado explicitamente com as vozes marcadas no fio do discurso e implicitamente com as vozes que não se apresentam na superfície textual. Essas expressões referenciais formam grupos que estão associadas a pontos de vista distintos de modo que cada grupo de expressões aciona objetos de discurso distintos e deixa transparecer a natureza interdiscursiva, ou dialógica, da construção dos referentes. Na construção das representações no/pelo discurso, a dialogização das vozes sociais no interior das enunciações é fundamental para compreender a dinâmica que fundamenta a elaboração dos objetos de discurso. No caso específico do editorial8, as vozes que interferem na referenciação são, principalmente, as pertencentes ao universo do já dito e frente às quais o editorial funciona como réplica. É nesse domínio que se pode falar de colaboratividade na construção de referentes no gênero editorial, porque esta se torna mais perceptível do ponto de vista da interdiscursividade/dialogismo do que da relação estabelecida entre o enunciador e seus co-enunciadores. Isso porque, historicamente, o Brasil nunca apresentou uma opinião pública sólida e ativamente responsiva (MELO, 1994). Desse modo, os co-enunciadores têm um papel mais de contempladores de uma encenação dialógica entre a empresa jornalística e outras instituições, tais como o Estado, a burguesia industrial, entre outras. Nesse sentido é que defendemos que, em um editorial, tem-se uma interlocução institucional9. A seguir, objetivando facilitar a discussão, organizamos algumas marcas da heteroglossia no quadro abaixo. Nele temos as vozes marcadas no enunciado, classificadas de acordo com o processo de transmissão do discurso de outrem conforme proposta de Maingueneau (2001) e a posição/sujeito enunciativo. Os trechos retirados do editorial para análise possuem uma numeração que mostra a ordem que essas citações apareceram no texto. Quadro II – Editorial: A síndrome do presidente, Estadão, 12 de Fevereiro de 2009. Formas do discurso Enunciados com discurso relatado Voz relatado/Marcas Social/posições linguisticas de sujeito. _________________ _____ Modalização em discurso segundo Discurso direto

[3] "É preciso parar com essa mania de [3]: Presidente dizer que, porque a imprensa deu, é Lula. porque é contra o governo, porque não gosta do governo", admoestou sabe-se lá quem. "Se a imprensa deu e o fato

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Porque o objeto de pesquisa, aqui, são editoriais e não porque este funcionamento seja exclusivo do gênero editorial de jornal. 9 Esta tese é apenas uma proposição e que necessita de um trabalho mais pormenorizado para que seja fundamentada. 91

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Discurso direto livre Discurso indireto

Formas híbridas

Ilhas enunciativas

Discurso direto com “que” Discurso indireto livre

aconteceu, em vez de a gente reclamar, tem de consertar." _________________

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[2] não se encontrará um líder nacional que diga que a leitura dos jornais lhe dá azia. [4] Ele disse que acordou "virado" com o noticiário sobre o pacote de bondades com que o governo os presenteou, a começar do escandaloso parcelamento, em até 20 anos, das dívidas das prefeituras com o INSS, beneficiando até aquelas que fizeram acordo com a Previdência em 2004 e não pagaram as prestações devidas. [7] Lula negar que teria chegado aonde chegou sem a liberdade de imprensa [1] acentuar a construída polaridade entre ele e “os de cima”, como gosta de dizer. [6] Lula se disse triste “porque estão abusando da minha inteligência”. [5] Foram “insinuações grotescas”, atacou. [8] Agora, da nova “metamorfose” sai a versão de que “nunca fui eleito porque a imprensa brasileira ajudou”, mas “porque o povo quis”. _________________

[2]: Líder nacional (enunciador genérico); [4] e [7]: Presidente Lula.

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[1], [5], [6] e [8]: Presidente Lula.

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Do ponto de vista da enunciação, o sujeito, ao tomar a palavra para si, assumindo, teoricamente, a responsabilidade do conteúdo proposicional enunciado, torna-se fonte das referências enunciativas, ou seja, a partir dele ocorrem as operações de ancoragem enunciativa. No entanto, Maingueneau (2008) questiona essa correspondência direta exemplificado com o caso do discurso citado. No caso de uma citação, a fonte de referências enunciativas e a responsabilidade pelo ato de fala do enunciado transposto não são diretamente associadas ao enunciador. Nos trechos do quadro acima temos dois enunciados com sujeitos enunciadores distintos e um englobando o outro, cuja distinção é marcada claramente no enunciado citante. Por exemplo, em [3], a sequência entre aspas é um enunciado proferido pelo presidente Lula, o que leva a deslocar os parâmetros de referência enunciativa e a responsabilidade pelo conteúdo proposicional veiculado para outro enunciador que não o jornal Estadão. O enunciado citado entra para o corpo do enunciado citante para compor a enunciação do jornal, mas, ainda assim, conserva certa autonomia com relação ao citante. Como se observa no quadro, as vozes sociais que são incorporadas e mostradas no enunciado são, predominantemente, do presidente Lula, fato que se repete nos demais editoriais analisados. Isso revela uma tendência para a organização estilística dos editoriais desse jornal,

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qual seja a de mostrar a voz (poder-se-ia dizer também a representação) a ser desqualificada ou questionada. As citações das enunciações do presidente ajudam a compor o objeto de discurso Lula como sendo controverso, incoerente e manipulador. Como a transmissão do discurso de outrem é um procedimento interessado e que lega ao enunciado transmitido um distanciamento do seu sentido original, porque, embora se mantenha o mesmo “conteúdo proposicional”, há a questão da entoação que o citante imprime ao enunciado citado, podemos dizer que as citações são fruto de recortes feitos nos enunciados do presidente e que corroboram o objeto de discurso defendido pelo jornal. Neste ponto, temos o plurilinguismo referencial (ALVES-FILHO, 2010), ou seja, um ponto de tensão e discordância sobre a construção dos referentes, porque as representações partilhadas pelo presidente em suas enunciações, evidentemente, distanciam-se das partilhadas pelo jornal, enfim, cada enunciador enuncia a partir de óculos sociais distintos (BLIKSTEIN, 2001). Isso fica mais claro ainda quando são tomadas a visões desses dois enunciadores frente ao referente imprensa. Todavia, não somente a vozes mostradas no enunciado ajudam a compor o objeto de discurso Lula, como também aquelas vozes que não se mostram, mas que, mesmo assim, estão presentes no enunciado. Abaixo, transcrevemos o editorial A síndrome do presidente, para demonstrar esse fato. (2)

A síndrome do presidente

Mais o presidente Lula parece ficar fora de si, mais autêntico ele se revela. Nos seus furiosos destampatórios, quando perde a "postura" - como reconheceu, alterado, a certa altura do seu discurso de 50 minutos para alguns milhares de prefeitos e acompanhantes reunidos em um centro de convenções de Brasília na terça-feira - é que ele expõe as suas "metamorfoses". Os 84% de aprovação popular deixaram-no totalmente despreocupado com a possibilidade de ser prejudicado por alguma bobagem que fale ou mesmo por alguma das patranhas a que costuma recorrer em seus discursos cotidianos. Aos 63 anos, duas vezes titular da República, Lula ainda conserva, entalada, uma profunda compulsão de desforra da ordem social que o fez comer o pão que o diabo amassou, antes que conseguisse dar a volta por cima como nenhum outro brasileiro que tivesse passado pelas mesmas adversidades. Lula, a figura pública, com a sua excepcional inteligência e senso de realidade, aprendeu a se conciliar com (e a desfrutar de) um sistema que o Lula, retirante, engraxate e operário, jamais perdoará. A dupla personalidade tem menos que ver com esquerda e direita - se algo não mudou nele é o seu entranhado desdém pelas ideologias - do que com o apaziguamento íntimo dos desencontros entre o "antes" e o "depois" de sua singular biografia. E é por isso que Lula não é cínico quando toma a calculada decisão de se deixar transtornar para jogar as suas plateias contra as "elites" e a instituição que mais ama odiar - a imprensa. Nem por serem de caso pensado, para acentuar a construída polaridade entre ele e "os de cima", como gosta de dizer, as suas investidas deixam de externar o que de inextricável lhe vai pelo espírito. Simplificadamente, é a lógica de sua (aparente) incoerência. Está para nascer o governante que não se queixe dos meios de comunicação. Mas, no caso de Lula, trata-se de uma obsessão - parte da sua síndrome. Olhe-se ao redor e não se encontrará um líder nacional que diga que a leitura dos jornais lhe dá azia. Mesmo o expresidente Bush, que tem em comum com Lula o desprazer de ler, temperou com elogios à imprensa a confissão de que não se informava pelos diários, mas pelos assessores que os digeriam para ele. Foi, portanto, um ponto absolutamente fora da curva - quem sabe por ter achado que passou dos limites com a sua teoria gástrica do jornalismo - a sua surpreendente barretada à mídia, há dias. "É preciso parar com essa mania de dizer que, porque a imprensa 93

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deu, é porque é contra o governo, porque não gosta do governo", admoestou sabe-se lá quem. "Se a imprensa deu e o fato aconteceu, em vez de a gente reclamar, tem de consertar." Deve ter-lhe custado a retratação. Não surpreende, pois, que o verdadeiro Lula tenha voltado com tudo contra a mídia no grande comício político que foi o Encontro Nacional de Novos Prefeitos e Prefeitas. Ele disse que acordou "virado" com o noticiário sobre o pacote de bondades com que o governo os presenteou, a começar do escandaloso parcelamento, em até 20 anos, das dívidas das prefeituras com o INSS, beneficiando até aquelas que fizeram acordo com a Previdência em 2004 e não pagaram as prestações devidas. Foram "insinuações grotescas", atacou. Não foram nem uma coisa nem outra. A imprensa não insinuou nada, mas, sim, associou as bondades à promoção da candidata de Lula à sua sucessão, Dilma Rousseff. E não há nada de artificial no nexo, como ele próprio fez questão de explicar às mulheres dos prefeitos em reunião depois do comício com seus maridos, ao justificar a candidatura Dilma com os exemplos de Michele Bachelet, no Chile, e Cristina Kirchner, na Argentina. Lula se disse triste "porque estão abusando da minha inteligência". Abusa da inteligência alheia o presidente que tenta tapar o sol com a peneira, negando o que não cessa de fazer, como fez no encontro com os prefeitos, quando, previsivelmente, elogiou a "mãe do PAC" (que subiu ao palco ao seu lado) e, sem mais aquela, soltou uma patranha direta contra o governador-presidenciável José Serra. Triste, no episódio, foi Lula negar que teria chegado aonde chegou sem a liberdade de imprensa, como não se cansava de lembrar. Agora, da nova "metamorfose" sai a versão de que "nunca fui eleito porque a imprensa brasileira ajudou", mas "porque o povo quis". Só que, antes disso, a imprensa apresentou Lula ao País e cobriu exaustivamente o seu percurso - no estrito cumprimento do seu dever de informar. Estadão, 12 de Fevereiro de 2009. O editorial inicia construindo o referente Lula como sendo controverso, resultado de “metamorfoses” e, portanto, portador de uma dupla personalidade. O que se observa é uma aproximação do dizer do jornal com o discurso médico, o que se apresenta no texto como uma estratégia retórica para conduzir a argumentação. Essa aproximação é perceptível já no título quando o editorial opta pela expressão síndrome para determinar a expressão presidente. Segundo Houaiss (2001, p. 2578) síndrome é um vocábulo do domínio da medicina e significa, dentre outras acepções, um “conjunto de sinais e sintomas observáveis em vários processos patológicos diferentes e sem causa específica”. Como se vê, síndrome está associada à patologia e é assim que o jornal pretende construir o objeto de discurso Lula. Então, esta aproximação com o discurso da medicina se dá pela incorporação do léxico próprio da área e também pela semelhança, em determinado ponto, com o desempenho da atividade, quando o jornal, praticamente simula uma análise psicológica do presidente. O jornal argumenta a partir de um ponto de vista contrário ao do presidente, coadunando com os discursos de direita. Isso porque o papel que O Estadão assume é o da oposição, a qual, no cenário político brasileiro contemporâneo, coincide com o papel das agremiações políticas de direita. Isso é comprovado na passagem abaixo: (3)

Lula ainda conserva, entalada, uma profunda compulsão de desforra da ordem social que o fez comer o pão que o diabo amassou, antes que conseguisse dar a volta por cima como nenhum outro brasileiro que tivesse passado pelas mesmas adversidades.

Os termos destacados apontam duas vozes: uma defendida e outra repudiada pela empresa jornalística. A primeira é justamente a discurso da direita política que por sua vez atualiza outros discursos maiores, tais como o neoliberalista e o positivista. O outro é o discurso de esquerda, marcado pela presença do discurso sindical e que é desqualificado pelo editorial como se vê na 94

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passagem “... fez comer o pão que o diabo amassou...”. O jornal acessa ainda outras representações construídas por ele mesmo, como é o caso da teoria gástrica do jornalismo, lançada no editorial Por que Lula não lê jornais. Esta voz contribui para reforçar a categorização de Lula como sendo intransigente e averso à imprensa nacional. Enfim, o que se vê é que o jornal se põe em uma posição de orquestrador dos discursos presentes em sua enunciação e como árbitro da validade e do valor de verdade das representações veiculadas por essas vozes sociais e que o referente discursivo Lula se contrói na dinâmica de interna dessas vozes, enfim, no plurinliguismo referencial. Considerações Finais O que buscamos defender foi que o estudo da referenciação necessita de alguns avanços no sentido do empreendimento de um olhar discursivo para os processos de construção de objetos de discurso e que, ainda que timidamente, alguns esforços vêm sendo desenvolvidos a esse respeito como é o caso da proposta de Alves Filho (2010), Santos-Silva e Sousa (2009) e Vieira (2009). A perspectiva que adotamos foi a de uma análise dialógica da referenciação que tem no plurilinguismo referencial um de suas bases e que entende que os objetos de discurso se constituem na dinâmica das vozes sociais componentes das enunciações. As análises nos levaram a confirmar que a observação específica das cadeias anafóricas é insuficiente, pelo menos no gênero editorial, para dar conta da observação da colaboratividade da referenciação e da avaliação característica desse gênero de discurso. No jornal O Estadão, nos editoriais em que o referente Lula constitui o tema central da discussão, a organização heteroglóssica do enunciado apresenta a seguinte tendência: o editorial marca, no geral, somente as vozes que pretende desqualificar e que, predominantemente, são do presidente Lula, ao passo que sua posição política é alicerçada em vozes não-mostradas. Assim, o jornal dissimula, reproduz e propaga vozes sociais que constroem representações desqualificadoras de Lula com as quais a empresa jornalística coaduna, de modo que o objeto de discurso Lula é construído na dinâmica dessas vozes sociais marcadas e não-marcadas na enunciação. Reafirmamos, também, aqui as discussões e as respectivas “conclusões” resultantes dessas discussões. No entanto, é importante ter em vista que, em virtude dos propósitos deste trabalho e de algumas limitações deste gênero acadêmico (artigo científico) não foi possível o desenvolvimento de uma análise mais meticulosa e exaustiva de muitas questões que ainda permanecem em aberto e que requerem uma atenção posterior.

Referências ALVES-FILHO, Francisco Integridade genérica versus versatilidade no editorial de jornal. In: V SIGET: Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais, 2009, Caxias do Sul - RS. V SIGET: Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais – O Ensino em Foco ANAIS. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul/UCS, 2009. _______. “Sua casinha é meu palácio”: por uma concepção dialógica de referenciação. Linguagem em (Dis)curso, Palhoça, SC, v. 10, n. 1, p. 207-226, jan./abr. 2010 ALVES-FILHO, Francisco; SOUSA, Digenário Pessoa. O funcionamento sócio-axiológico dos editoriais de jornal. (no prelo), 2009. AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Heterogeneidades enunciativas. Tradução Celene M. Cruz; João W. Geraldi. In.: Cadernos de Estudos Lingüísticos. Campinas, n. 19, p. 25-42, jul/dez. 1990. BAKHTIN, M. Gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1979]. 95

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HIPERGÊNERO E IDENTIDADE DISCURSIVA: A PRIMEIRA PÁGINA DO JORNAL Eduardo Lopes Piris*

Resumo: Este artigo analisa a primeira página dos diários Correio da Manhã e O Globo, observando a inter-relação dos gêneros que compõem e constituem esse hipergênero de discurso, no qual a composição é um fator de construção da identidade do jornal e de adesão do leitor aos posicionamentos do jornal. Assume os pressupostos teóricos da abordagem discursivoargumentativa, tal como proposta por Maingueneau (1994), Plantin (1996, 2008) e Amossy (2006, 2007), recorrendo a Bakhtin (2003), Bonini (2008), Grillo (2004, 2009) e Maingueneau (2004) para discutir a noção de hipergênero de discurso. A análise mostra que os dois jornais constroem primeiras páginas bem distintas, projetando, assim, diferentes identidades discursivas: Correio da Manhã, o jornal participativo; O Globo, o jornal espectador. Abstract: This paper analyses the front page of the dailies Correio da Manhã and O Globo, observing the interrelationship of the genres which compose and constitute this discursive hypergenre, in which the composition is a factor of construction of the identity of the newspaper and of the adhesion of the reader to the positions of the newspaper. It assumes the theoretical principles of the discursive-argumentative approach, as proposed by Maingueneau (1994), Plantin (1996, 2008) and Amossy (2006, 2007), resorting to Bakhtin (2003), Bonini (2008), Grillo (2004, 2009) and Maingueneau (2004) to discuss the notion of discursive hypergenre. The results show that the newspapers construct two distinct front pages, projecting, thus, two distinct discursive identities: Correio da Manhã, the participatory newspaper and O Globo, the spectator newspaper. Palavras-chave: discurso jornalístico, identidade discursiva, hipergênero, primeira página. Key-words: journalistic discourse, discursive identity, hypergenre, front page. Introdução Este artigo é um recorte de nossa pesquisa de doutorado cujo objetivo central é analisar os discursos do Correio da Manhã e d‟O Globo sobre os fatos políticos ocorridos em abril de 1964, procedendo ao exame das primeiras páginas das edições de abril de 1964 desses jornais. Neste momento, pretendemos mostrar como o layout da primeira página revela a identidade discursiva de cada empresa jornalística e constrói os efeitos de identificação entre jornal e leitor, o que, no âmbito de nossa pesquisa, constituem-se como estratégias privilegiadas do discurso jornalístico para conquistar a adesão do leitor aos seus posicionamentos. Para tanto, examinaremos um corpus constituído com base nas primeiras páginas das edições de 2 e 3 de abril de 1964 dos diários Correio da Manhã e O Globo, cuja pauta foi maciçamente ocupada pelos acontecimentos políticos em torno da deposição do presidente João Goulart. Este trabalho assume os pressupostos teóricos da abordagem discursivo-argumentativa, tal como proposta por Maingueneau (1994), Plantin (1996, 2008) e Amossy (2006, 2007), e recorre à noção de gênero de discurso postulada por Bakhtin (2003), buscando em Maingueneau (2004),

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Doutorando em Filologia e Língua Portuguesa (USP) - Docente da área de Língua Portuguesa (UESC) 69

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Bonini (2008) e Grillo (2004, 2009) subsídios para discutir a noção de hipergênero e, no bojo, responder a estas duas perguntas: Como a inter-relação dos gêneros jornalísticos no hipergênero “primeira página” contribui para a construção do efeito de real1? Como as cenas de enunciação criadas pelos gêneros jornalísticos e pelo hipergênero “primeira página” captam o imaginário do leitor e, daí, constroem os efeitos de identificação entre jornal e leitor? Vale dizer que, a fim de levantar referências que tratassem da primeira página como gênero ou hipergênero discursivo, procedemos a uma pesquisa bibliográfica que nos revelou que a investigação sobre a condição genérica da primeira página jornalística é ainda bem recente e incipiente. Apesar de não termos encontrado publicações de referência que se dediquem a essa questão de maneira específica, observamos que é a partir de 2005 que começam a surgir, nas grandes áreas de Letras e de Comunicação, os primeiros trabalhos que tomam a primeira página como um gênero de discurso, e não mais apenas como suporte ou espelho do jornal (cf. Paes de Barros, 2005; Carvalho & Magalhães, 2009). Dessa maneira, nosso trabalho pretende dar sua contribuição ao propor este olhar, ainda que superficial, sobre a primeira página do jornal. Assim, num primeiro momento, apresentaremos os pressupostos teóricos que fundamentam a abordagem discursivo-argumentativa, que é uma perspectiva de estudo que integra a Análise do Discurso e a Teoria da Argumentação. Posteriormente, situaremos a noção de gênero do discurso com a qual trabalhamos em nossa pesquisa, para, então, discutir sobre a noção de hipergênero discursivo, destacando também suas relações com as cenas de enunciação. Já, num terceiro momento, procederemos à análise das primeiras páginas dos jornais Correio da Manhã e O Globo, dirigindo-nos às considerações finais, em que tentaremos recuperar e amarrar o que julgamos pontos importantes do trabalho. A Abordagem Discursivo-Argumentativa Aristóteles (1998) mostra que o tipo de raciocínio desenvolvido pela Retórica não é o demonstrativo, tal como o é na Dialética, mas sim o argumentativo, pois a arte retórica versa sobre aquilo que é provável, que é do âmbito da opinião, apresentando, como ponto de partida, premissas verossímeis ao invés de verdadeiras. Até a contemporaneidade, a arte retórica viveu um longo período de desprestígio e somente foi recuperada em 1958 com a publicação de duas obras que recolocaram em cena os estudos retóricos: Tratado da argumentação - A nova retórica, de Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996[1958]); The uses of argument, de Toulmin (2006[1958]). Segundo Plantin (1996, p.10), essas são duas obras com horizontes teóricos distintos, mas dotadas de um mesmo objetivo, pois seus autores “pesquisam, no pensamento argumentativo, um meio de fundar uma racionalidade específica, em favor das relações humanas”2. Assim, temos aí o início da revitalização da abordagem de uma argumentação fundada sobre o verossímil, ou seja, uma argumentação que 1

Sheila Grillo (2004, p.48) afirma que toma emprestada de Roland Barthes a expressão “efeito de real”. A autora aplica essa expressão ao discurso jornalístico, explicando que “como parte da informação, a descrição desempenha o papel de „dar a ver‟, o que contribui para o efeito de real que funda o jornalismo, isto é, a adequação do representante à coisa representada”. Grillo (2004, p.49) complementa, ainda, que “o caráter informativo da imprensa se materializa na presença cada vez mais forte de formas de discurso citado em suas diferentes modalidades [...]. O „efeito de real‟ se dá com a colocação em cena das falas dos atores sociais envolvidos nos acontecimentos noticiados”. 2 No original: “Ils recherchent dans la pensée argumentative un moyen de fonder une racionalité spécifique, à l‟oeuvre dans les affaires humaines.” (PLANTIN, 1996, p.10). 70

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busca convencer seu auditório no âmbito da negociação e que destaca a dimensão intersubjetiva do discurso. A partir desses estudos, a argumentação despertou o interesse de estudiosos filiados a correntes teóricas diversas nem sempre convergentes. A multiplicidade dos enfoques acerca desse objeto de estudo levou, dentre tantas outras consequências, à polissemia do termo “argumentação”. A esse respeito, Plantin (1996, p.18) alerta que há duas acepções bem distintas para o termo argumentação: Argumentação enquanto orientação dirigida a uma conclusão, em que se analisa a propriedade semântica da frase, considerada fora de contexto; Argumentação enquanto fato de discurso, associada à prática da linguagem em contexto. Para ilustrar essa segunda acepção do termo “argumentação”, retomemos o artigo de Maingueneau (1994) intitulado “Argumentation et Analyse du Discours (Réflexions à partir de la seconde Provinciale)”, em que ele critica um estudo de Oswald Ducrot (1971) consagrado à análise da argumentação da Segunda Provincial, escrita por Pascal em 1656. Em linhas gerais, o autor da Provincial discute a posição dos dominicanos sobre a “graça suficiente”, apresentando aí três teses: a dos jesuítas, a dos jansenistas e a dos próprios dominicanos. Segundo Maingueneau (1994, p.269), o método de Ducrot (1971) “consiste em mostrar que o raciocínio de Pascal se traduz com exatidão no formalismo do cálculo dos predicados, e que essa surpreendente tradução tornou-se possível por meio de uma interpretação lógico-matemática do adjetivo suficiente”3. Maingueneau (1994) entende que, embora Ducrot aplique corretamente os cálculos de predicados e daí conclua que Pascal cometera um erro, do ponto de vista da análise do discurso, o autor da Segunda Provincial utiliza-se de uma linguagem de não especialista, para criar a imagem de um homem de bom senso que dirige sua fala a outros homens de bom senso, o que caracteriza não um erro, mas o uso de um recurso argumentativo voltado à construção da identificação do autor com seu leitor. É por essa razão que Maingueneau (1994, p.265) afirma que “quando o analista do discurso se volta para a argumentação, não é com a intenção de estabelecer o modelo dos processos de validação, mas de relacioná-los a um gênero do discurso histórica e socialmente situado”4. Igualmente preocupada com essa questão da argumentação situada na dimensão sóciohistórica do discurso, Amossy (2007, p.123) defende uma perspectiva de estudo da argumentação e do discurso “que relaciona a fala a um lugar social e a instâncias institucionais”. Assim, para a autora, a argumentação “depende das possibilidades da língua e das condições sociais e institucionais que determinam parcialmente o sujeito, fora dos quais a orientação ou a dimensão argumentativa do discurso não pode ser apreendida com discernimento” (AMOSSY, 2007, p.128). Afora isso, a análise da argumentação como fato de discurso volta-se também para a questão da enunciação. Nesse ponto, Maingueneau (1994) e Plantin (1996) destacam o papel da 3

No original: “[...] consiste à montrer que le raisonnement de Pascal se laisse traduire avec exactitude dans le formalisme du calcul desprédicats, et que cette surprenente traduction est rendue possible par une interprétation logico-mathématique de l‟adjectif suffisant” (MAINGUENEAU, 1994, p.269). 4 No original: “quand l‟analyste du discours se tourne vers l‟argumentation, ce n‟est pas dans l‟intention de modéliser des processus de validation mais pour les rapporter à un genre de discours hitoriquement et socialement situé” (MAINGUENEAU, 1994, p.265). 71

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enunciação, reafirmando seu caráter concreto de realização num dado contexto sócio-histórico. Maingueneau (1994, p.278) argumenta que “não poderíamos, portanto, estabelecer o texto como um conteúdo independente das condições de sua enunciação, nem reduzir a argumentação ao estatuto de meio a serviço de uma persuasão”5. Complementarmente a esse pensamento, Plantin (1996, p.18) afirma que “toda fala é necessariamente argumentativa. É um resultado concreto da enunciação em situação”6. Para concluir este tópico, vale dizer que há, ainda nessa perspectiva de argumentação no discurso, dois aspectos da argumentação: um, que seria constitutivo da linguagem e inerente a qualquer tipo de produção discursiva; outro, que caracterizaria apenas os discursos explicitamente argumentativos. Segundo Amossy (2006), o primeiro aspecto da argumentação seria recoberto pela ideia de “dimensão argumentativa”, enquanto o segundo, pela ideia de “intenção argumentativa”. Dessa maneira: Um discurso de defesa tem uma clara intenção argumentativa: ele apresenta como objetivo principal fazer admitir a inocência do indiciado que o advogado tem por tarefa de defender, ou apresentar circunstâncias atenuantes que diminuirão sua pena. Uma descrição jornalística ou romanesca, ao contrário, pode ter mais uma dimensão do que uma vontade argumentativa (AMOSSY, 2006, p.33)7.

Essa distinção deve ser considerada, sobretudo, para orientar os procedimentos de análise da argumentação no discurso, pois as características da materialidade a ser examinada acabam exigindo do analista a eleição de determinadas categorias de análise e não de outras. Neste trabalho, por exemplo, a proposta é apontar os efeitos de sentido de identificação entre jornal e leitor construídos pelo layout da primeira página jornalística, analisando aí elementos de composição desse hipergênero discursivo. Trata-se aqui de explorar, preferencialmente, a dimensão argumentativa de um discurso caracteristicamente informacional, e não as estratégias de argumentação de um tipo de discurso cuja finalidade primeira é o convencimento e a persuasão. Gênero, Hipergênero e Cenas Enunciativas As características constitutivas dos textos e as tentativas de classificá-los em famílias são preocupações que já se fazem presentes desde Platão e Aristóteles, os quais inauguraram o que viria a se tornar uma longa tradição nos estudos literários e retóricos: o primeiro distinguira os gêneros literários em lírico, épico e dramático, enquanto o segundo concebera os gêneros retóricos em deliberativo, judicial e epidítico. As revoluções provocadas durante a Idade Média e a Idade Moderna expandiram as possibilidades de comunicação, propiciando a ramificação e a diversificação de seus dispositivos de enunciação, ou seja, dos gêneros discursivos. Helena Nagamine Brandão (2000, p.22-23) localiza, numa breve revisão de literatura, quatro tipos de classificações dos gêneros, a saber: (1) as tipologias funcionais, fundadas sobre o estudo das funções dos discursos (cf. Jakobson); (2) as tipologias enunciativas que tratam principalmente da influência das condições de enunciação sobre a organização discursiva (cf. Bronckart); (3) as tipologias cognitivas, que tratam principalmente da organização cognitiva,

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No original: “On ne saurait donc poser le texte comme un contenu indépendant des conditions de son énonciation ni réduire l‟argumentation au statut de moyen au service d‟une persuasion” (MAINGUENEAU, 1994, p.278). 6 No original: “Toute parole est nécessairement argumentative. C‟est un résultat concret de l‟énonciation en situation” (PLANTIN, 1996, p.18). 7 No original: “Une plaidoirie a une nette visée argumentative: elle se donne comme objectif premier de faire admettre l‟innocence de l‟inculpé que l‟avocat a pour tâche de défendre, ou de présenter des circonstances atténuantes qui diminueront sa peine. Une description journalistique ou romanesque, par contre, peut avoir une dimension plutôt qu‟une volonté argumentative” (AMOSSY, 2006, p.33). 72

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pré-linguística, subjacente à organização de certas sequências (cf. Adam); (4) a tipologia sóciointeracionista (cf. Bakhtin). Dentre as tipologias apresentadas por Brandão (2000), nossas reflexões sobre esse tema enveredam-se pela concepção de gênero postulada por Bakhtin (2003), pois esta subjaz uma concepção sociointeracionista de língua e de linguagem, que vai ao encontro dos pressupostos teóricos que fundamentam a abordagem discursivo-argumentativa. Os postulados do Círculo representam, como mostra Brandão (2004, p.8), a passagem de uma “concepção de signo linguístico como um „sinal‟ inerte que advém da análise da língua como sistema sincrônico abstrato” a uma concepção de signo dialético, vivo e dinâmico. Nessa perspectiva, Bakhtin (2003, p.261) associa o emprego da língua às formas de enunciados, os gêneros do discurso, ao postular que “o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana”. É interessante notar que a teoria bakhtiniana foi elaborada em meados do século XX, antes mesmo de toda a revolução tecnológica experimentada dos anos 1960 em diante. Assim, poderíamos nos indagar sobre a atualidade dos postulados do Círculo quanto à abordagem de gêneros da contemporaneidade, caracteristicamente constituídos por meio de semióticas diversas, tais como a primeira página do jornal. Todavia, Grillo (2009) ressalta a aplicabilidade dessa teoria a enunciados do tipo verbo-visual, esclarecendo que: Embora este não tenha sido o objeto de estudo privilegiado do Círculo de Bakhtin, entrevemos, em alguns momentos de sua obra, a noção de enunciado ou texto como unidade constituída de signos diversos: O texto “subentendido”. Se entendido o texto no sentido amplo como qualquer conjunto coerente de signos, a ciência das artes (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) opera com textos (obras de arte). São pensamentos sobre pensamentos, vivências das vivências, palavras sobre palavras, textos sobre textos (BAKHTIN, 2003a apud GRILLO, 2009, p.216).

Em segundo lugar, é preciso ter em conta que a transformação sofrida pelos gêneros de discurso nessas últimas décadas já fora presumida por Bakhtin em sua notória formulação sobre gêneros primários e gêneros secundários. Retomemos: Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) [...]. No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata. Esses gêneros primários, que integram os complexos, aí se transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais alheios [...] (BAKHTIN, 2003, p.263).

Assim, Bakhtin (2003) considera os gêneros de discurso sempre no bojo da interação, sendo que os primários caracterizam-se pelo surgimento nas condições da comunicação discursiva imediata, ao passo que os secundários caracterizam-se pela mediatização do discurso. Com o avanço tecnológico, essa complexidade dos gêneros secundários potencializou-se de tal maneira que podemos encontrar, nos atuais meios de comunicação, formas de enunciados que chegam a ser confundidos com o seu próprio suporte. Tributário às concepções bakhtinianas de enunciado e de gênero do discurso, Adair Bonini (2001, 2004, 2008) formula a noção de hipergênero, o que nos auxilia na compreensão dessas formas complexas de enunciado presentes, sobretudo, nos meios de comunicação. Resultado de uma construção teórica maturada, Bonini (2008, p. 35) sintetiza assim a noção de hipergênero:

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Como já havia feito em Bonini (2004), opto aqui também pelo conceito de enunciado como base da noção de gênero. Embora eu tenha trabalhado em muitos textos com a literatura proveniente da sócio-retórica, o conceito de ação de linguagem de Miller (1984) não me parece tão pertinente como unidade básica da linguagem quanto o conceito de enunciado de Bakhtin (1953), uma vez que esse último alcança uma caracterização mais plausível como unidade no fluxo da linguagem e como aspecto do comportamento comunicativo e interacional humano (BONINI, 2008, p.35). Afirmei, no primeiro texto em que tratei do assunto, que: “Embora na literatura sobre gêneros textuais, o jornal seja caracterizado basicamente como um veículo, [há] motivos para considerá-lo um gênero que abriga outros (ou seja, um hipergênero), porque preenche quesitos como propósitos comunicativos próprios, organização textual característica [...] e produtores e receptores definidos” (BONINI, 2001). [...]. Em 2005, afirmei que o hipergênero (por exemplo, o jornal) poderia equivaler ao suporte de textos, mas que nem todo suporte seria um hipergênero (por exemplo, um álbum de fotografias). Neste texto mais recente (BONINI, mimeo), opto pelo termo mídia, por já ser corrente, na literatura acadêmica e na sociedade, desconsiderando o termo suporte. Mantenho, contudo, a mesma hipótese para a relação entre o gênero e seu meio de circulação.

Bonini (2008, p.35-36) considera, portanto, o jornal como um hipergênero (um gênero que abriga outros gêneros) e também como um suporte ou mídia, ressalvando que nem todo suporte/mídia pode se comportar como um hipergênero, a exemplo da televisão, que é uma mídia composta por hipergêneros (telejornal, talkshow etc.) e gêneros (anúncio, vinheta etc.). Não obstante, Maingueneau (2004) também trata da noção de hipergênero, compreendendo-a como um protótipo genérico, que corresponderia a uma categoria de classificação de gêneros de discurso, um hiperônimo, não possuindo, assim, o mesmo estatuto de um gênero discursivo. Segundo o autor: São caracterizações como “diálogo”, “carta”, “ensaio”, “jornal”, etc. que permitem formatar o texto. Não se trata, como o gênero de discurso, de um dispositivo de comunicação historicamente definido, mas um modo de organização textual com restrições fracas, que encontramos em épocas e em lugares diversos e no interior do qual encenações de fala diversificadas podem se desenvolver (MAINGUENEAU, 2004, p.54).

É possível notar que os dois autores convergem para uma mesma noção de hipergênero, pois partem da mesma concepção bakhtiana de gênero do discurso, identificam problemas semelhantes e oferecem o exemplo coincidente do jornal. A contribuição de Maingueneau (2004) ao nosso trabalho deve-se ao fato de o autor suscitar a questão das cenas enunciativas, ao tocar na questão das encenações de fala desenvolvidas no interior do hipergênero. Desse modo, vale acrescentar a essa discussão conduzida por Bonini (2008) o problema da cena de enunciação, que pode ser encarada, mais apropriadamente, como um fenômeno de passagens entre cenas enunciativas, conforme o foco da leitura é dirigido ao gênero ou ao hipergênero. Analisando o Correio da Manhã e O Globo, podemos notar gêneros interrelacionados e dispostos em uma mesma cena de enunciação: a da primeira página do jornal. O caráter interativo da atividade linguageira estabelece durante a enunciação um conjunto de elementos que compõem sua própria situação de comunicação como uma cena, mais especificamente uma cena de enunciação composta pelo lugar social assumido pelo destinador do discurso, pelo lugar social atribuído ao destinatário do discurso, pelo espaço e pelo momento que são próprios a esses lugares reconhecidos socialmente. A cena é o quadro da enunciação, mas não um quadro que é dado a priori, independentemente da enunciação de seu discurso, mas constitutivo dele. Maingueneau (2002, p.85) formula uma noção de cena de enunciação composta por outras três cenas, a saber: a cena englobante, que corresponde ao tipo de discurso (político, jurídico, 74

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literário, familiar, científico, religioso etc.); a cena genérica, que se instala por meio do gênero discursivo; a cenografia, que é a cena com que o co-enunciador toma contato mais explicitamente, deslocando as duas primeiras cenas (o quadro cênico) para um segundo plano. No caso da primeira página, estamos diante de um hipergênero que, a depender do regime de leitura, pode projetar duas cenas de enunciação, sendo uma hipergenérica e outra genérica. A esse respeito, Grillo (2004, p.67) mostra que: Decorrente da exploração dos aspectos visuais, a página do jornal propicia uma leitura a duas velocidades. A primeira, mais veloz e imediata, corresponde à leitura dos títulos, fotografias e legendas, na maneira como eles estão organizados na superfície da página. [...]. A segunda, mais lenta, corresponde à leitura dos “textos”.

Assim, determinado pela disposição da manchete, dos títulos, das fotos-manchetes, das fotos-legendas na composição da página, o regime de leitura superficial da primeira página do jornal coloca em primeiro plano a cena hipergenérica. E essa cena enunciativa só é deslocada para um segundo plano por meio da leitura profunda, que é determinada pela leitura específica do editorial, das notícias, das notas, projetando aí as respectivas cenas genéricas. Há, portanto, um deslocamento entre cenas enunciativas, em que a cena instalada pela primeira página dá lugar, por exemplo, à cena instalada pelo editorial e vice-versa. Em síntese, podemos entender que a primeira página jornalística é um hipergênero discursivo, que, basicamente, pode ser entendido como um gênero de discurso constitutivamente complexo, em que sua estrutura composicional comporta outros gêneros que se inter-relacionam e aí colaboram para a construção, tanto da identidade discursiva do enunciador institucional (no caso, o jornal), quanto dos sentidos projetados e homogeneizados pela cena de enunciação hipergenérica. Estabelece-se aí uma relação entre hipergênero e seus gêneros, em que os sujeitos do discurso são interpelados de acordo com a cena enunciativa projetada pelos diferentes regimes de leitura presentes nesse dispositivo de enunciação, ora hipergenérico, ora genérico. Análise das primeiras páginas do Correio da Manhã e d’O Globo Embora, no cenário político brasileiro de 1964, diversas tendências partidárias representassem interesses dos vários setores socioeconômicos estabelecidos no País, a produção discursiva em torno dos acontecimentos políticos baseou-se em dois eixos axiológicos antagônicos: de um lado, “comunismo versus patriotismo” e, de outro lado, “reformismo versus reacionarismo”. Por limitadores, esses dois eixos apresentavam, ilusoriamente, os diversos grupos de interesses como se fossem apenas dois grupos que disputavam o poder, escamoteando outros valores constituintes de seus discursos. Em abril de 1964, o advento do Golpe elevou a tensão entre esses dois lados e, então, a controvérsia em torno da deposição do presidente João Goulart e da instalação dos militares no poder ganhou espaço notório nas páginas dos jornais. Por mais que o discurso jornalístico caracterize-se pelo apagamento das marcas linguísticas da subjetividade, o próprio contrato de informação midiático (CHARAUDEAU, 2007) reivindica a presença do homem na linguagem (cf. Benveniste) ao instaurar os parceiros da comunicação jornalística. Assim, por meio da enunciação do discurso, são simultaneamente instaladas as instâncias subjetivas do enunciador (um jornalista ou o próprio jornal, o enunciador institucional) e do co-enunciador, recoberto pela figura do leitor. Essa subjetividade pode ser apreendida por meio da análise da composição da primeira página do jornal, que desvela estratégias discursivo-argumentativas e, daí, posicionamentos discursivos.

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Na primeira página do Correio da Manhã8, há o predomínio espacial dos gêneros verbais (editorial, notícia e nota comentário relatado (cf. Figueiredo, 2003)) sobre os gêneros verbovisuais (foto-legenda). Já, nas primeiras páginas d‟O Globo9, ocorre o inverso, pois os gêneros verbo-visuais (foto-manchete e foto-legenda) ocupam mais espaço na página do que os gêneros verbais (editorial e chamadas para aprofundamento da notícia). Como essa diferença entre os dois layouts pode ser encarada também pelo viés financeiro da empresa jornalística e pelo contexto sócio-histórico de repressão aos meios de comunicação mesmo antes do Golpe10, é preciso reiterar aqui que o foco de nossa análise incide sobre os efeitos de sentido construídos pela composição das primeiras páginas. Assim, quanto à função dos gêneros na página, notamos que, no Correio da Manhã, o gênero nota comentário relatado11 cria, sob a forma do discurso direto12, o simulacro da opinião das principais lideranças políticas do País a respeito da deposição do presidente (alhures manifestada por meio de nota oficial, manifesto, mensagem telegrafada, transcrição de pronunciamento emitido por rádio e televisão etc.), lançando, no contorno do discurso citado, as apreciações valorativas do jornal sobre a opinião ali relatada. Já, n‟O Globo, o gênero que cumpre semelhante função de construção do real é a foto-legenda13, pois a imagem fotográfica exerce o papel de mostrar os fatos, enquanto a legenda, o de expressar sua avaliação. Em outro trabalho de divulgação dos resultados parciais de nossa pesquisa, pormenorizamos, no corpo do texto, esse processo de (re)construção do discurso alheio em ambos os jornais. Neste artigo, todavia, remetemos o leitor aos nossos anexos. Os gêneros que compõem a primeira página de cada jornal e a maneira como ocupam o espaço da página, o layout, expõem os leitores a dois regimes diferentes de construção do real: de um lado, o Correio da Manhã constrói o simulacro de documentos e pronunciamentos oficiais; de outro lado, O Globo engendra os fatos por meio de imagens obtidas pela lente “neutra” da câmera fotográfica. Nessa inter-relação dos gêneros de discurso no hipergênero, entendemos que a opinião do jornal, emitida reconhecidamente por meio de um gênero específico – o editorial, permeia os sentidos produzidos pelos demais gêneros de discurso que compõem a primeira página, consistindo aí em um forte elemento de homogeneização de sentidos dessa página, de modo a caracterizá-la não apenas como o rosto ou o espelho do jornal, mas também como uma página opinativa.

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Vide anexos 1 e 2. Destacamos, em vermelho, os gêneros verbo-visuais. Vide anexos 3 e 4. 10 É notório o trabalho de René Armand Dreifuss (1981) consagrado à análise do processo de desestabilização do governo de João Goulart, que culminou no golpe de estado de 1964. Dreifuss (1981) destaca a ação do complexo político-militar IPES/IBAD: Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática. Enquanto o IPES delineava as estratégias e se constituía como a inteligência da elite orgânica, o IBAD se responsabilizava pela ação propriamente dita, ou seja, os seus membros é que realizavam os ataques a figuras públicas por meio da mídia; que faziam pressão econômica sobre os empresários que não se encaixavam no perfil antigovernista; que repreendiam jornais que adotavam postura moderada contra o governo de João Goulart etc. Nesse processo, o jornal O Globo e demais empresas pertencentes à mesma organização (alinhados ao regime) assistiram a um crescimento enorme durante o regime militar, ao passo que o Correio da Manhã (defensor inconteste de seus posicionamentos ideológicos, no caso, contrários ao regime ditatorial instaurado no País após a queda de João Goulart) foi sucumbindo até decretar sua falência dez anos após o Golpe de 64. 11 Vide anexos 1 e 2, com destaques em azul. Segundo Lisette Figueiredo (2003, p.57), “A nota comentário relatado pode ser considerada, funcionalmente, como um texto em que o repórter apresenta a posição de alguém diante de determinado fato, através da identificação do opinante, do relato do posicionamento ou suposição expressos por este opinante e do relato dos dados/argumentos que justificam o posicionamento ou suposição”. 12 Entendemos o discurso direto como uma das formas do discurso citado, tal como é concebido por Bakhtin/Volochinov (2002, p.144): “o discurso citado é o discurso no discurso, um discurso sobre o discurso”. 13 Vide anexos 3 e 4, com destaques em vermelho. 9

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No entanto, há diferenças na construção dessas páginas de opinião, pois a primeira página do Correio da Manhã constrói uma cena enunciativa que convida subitamente seu leitor a refletir sobre os fatos midiatizados, enquanto a primeira página d‟O Globo instala uma cena de enunciação própria do que Marcondes Filho (2002) chama de ideologia do flash: No final, restam na memória do leitor apenas sinais, traços da informação que cada segmento porventura deixou. Ele não será capaz de recordar a matéria que acabou de ler e nem terá o conhecimento para aplicar essa informação adquirida em outros casos semelhantes (MARCONDES FILHO, 2002, p.46).

Essas cenas enunciativas construídas a partir da composição da primeira página integram as estratégias discursivo-argumentativas de construção dos efeitos de realidade e de identificação entre jornal e leitor, constituindo aí dois modos distintos de enunciar, a saber: A enunciação da primeira página do Correio da Manhã constrói um leitor participativo, que deve ler e acompanhar os argumentos do jornal e das vozes relatadas; A enunciação da primeira página d‟O Globo projeta um leitor espectador, que deve assistir às fotografias e ler a apreciação do jornal lançada nas legendas. Assim, se, ao leitor do Correio da Manhã, compete acompanhar os argumentos e a linha de raciocínio do jornal, para o leitor d‟O Globo o que fica é um grande material residual condensado numa forma de pensar orientada mais pela emoção do que pela razão, já que a página não convida o leitor a refletir sobre a informação, mas a se sensibilizar com ela. As diferenças observadas nos dois jornais são responsáveis também pela construção da identidade discursiva de cada jornal. A esse respeito, Grillo (2004, p. 50) afirma que “a configuração da primeira página é uma das grandes responsáveis pela identidade de cada órgão de imprensa”. É interessante notar como o contrato midiático entre enunciador (jornal) e coenunciador (leitor do jornal) é estabelecido, uma vez que a reiteração de traços específicos da primeira página constrói a identidade visual do jornal, ao mesmo tempo em que constrói seu próprio leitor. Basta ter em conta que a paginação (fortemente marcada pela relação entre o verbal e o visual) propõe certas opções (e não outras) de direção do olhar do leitor pela página, o que caracteriza já a orientação argumentativa do jornal, hierarquizando o valor de cada texto na página e apresentando, por meio do discurso gráfico-visual, seus próprios valores. É nesse sentido que Grillo (2004, p.66) afirma que “a distribuição produz diferenças cujo efeito é o valor. A importância da superfície vem de que ela determina a valorização e contribui para a construção do sentido dos textos que a compõem”. Com base no contexto sócio-histórico desses discursos jornalísticos – os fatos políticos ocorridos em torno da deposição do presidente João Goulart em abril de 1964 –, podemos dizer que o discurso do Correio da Manhã projeta uma cena de enunciação em que jornal e leitor participam do processo político, de modo que valoriza positivamente sujeitos participativos e negativamente sujeitos não participativos, submissos ou alheios aos acontecimentos políticos, se considerarmos a grade axiológica dos discursos contrários à imposição das Forças Armadas. De outro lado, podemos depreender do discurso d‟O Globo a projeção de uma cena enunciativa em que jornal e leitor assistem ao processo político, valorizando positivamente sujeitos espectadores e negativamente sujeitos não espectadores ou agitadores, do ponto de vista da grade axiológica dos discursos favoráveis àquela intervenção dos militares.

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Considerações finais O percurso teórico-analítico exposto até aqui pôde nos oferecer condições de mostrar como a composição do hipergênero “primeira página jornalística” mobiliza elementos enunciativos que servem a estratégias discursivo-argumentativas de captação do leitor, as quais passam, principalmente, pela construção da identidade discursiva do jornal e da identificação entre jornal e leitor. Trata-se aí de uma das preocupações da abordagem teórico-metodológica de nossa pesquisa, que compreende a argumentação como fato de discurso, aproximando, assim, os pressupostos da Análise do Discurso e da Teoria da Argumentação. Quando nos propusemos a responder como a inter-relação dos gêneros jornalísticos no hipergênero “primeira página” contribui para a construção do efeito de real, estávamos pensando em ultrapassar uma visada, relativamente, óbvia acerca dos estudos discursivos sobre a relação entre o político e o jornalístico, pois procuramos mostrar como o layout da primeira página do jornal pode apresentar-se como um discurso gráfico-visual que contribui para a construção dos sentidos manifestados por meio da materialidade verbal, embora o foco de nossa análise não tenha recaído sobre o conteúdo dos textos. Outro aspecto suscitado durante a análise diz respeito à projeção das cenas enunciativas no hipergênero “primeira página”. Ao tratar dos regimes de leitura, da captação do imaginário do leitor e de sua identificação com o jornal, tocamos, de fato, no problema da construção do leitor. Em outras palavras, dissemos que o leitor é um feixe de estratégias enunciativas e uma construção do próprio discurso jornalístico. Abordamos, pois, o leitor enquanto princípio discursivo, e não o leitor empírico. Desse modo, ao conceber a primeira página não como um mero suporte, mas como um hipergênero discursivo, a análise pôde revelar como as cenas enunciativas projetadas pela primeira página captam o imaginário do leitor, conferindo papéis sociais aos parceiros da comunicação, jornal e leitor, orientando-lhes a posicionamentos discursivos perante a situação política do País num determinado momento histórico. Se a primeira página do Correio da Manhã requer um leitor que deve acompanhar o raciocínio argumentativo do jornal e das vozes relatadas no jornal, atribuindo-lhe a imagem de um leitor participativo, e, se a primeira página d‟O Globo destina-se a um leitor mais afeito a acompanhar os fatos políticos por meio de fotografias, conferindo-lhe a imagem de um leitor espectador, vimos emergir, nesse contexto sócio-histórico de abril de 1964, duas identidades discursivas distintas e com posicionamentos discursivos bem definidos em relação ao episódio político que marcou o Brasil naquele ano. Referências AMOSSY, Ruth. L'argumentation dans le discours. Discours politique, literature d‟idées, fiction. 2e ed. Paris: Armand Colin, 2006. ______. O lugar da argumentação na análise do discurso: abordagens e desafios contemporâneos. Trad. Adriana Zavaglia. Filologia e linguística portuguesa, SP, n.9, p.121146, 2007. ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998. BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV, V.N.). Marxismo e filosofia da linguagem. 9.ed. São Paulo: Hucitec; Annablume, 2002. ______. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. O problema do texto em linguística, em filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a.

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Anexo 1: primeira página do Correio da Manhã, edição de 2 de abril de 1964

Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - Brasil 80

Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.2, 2009

Anexo 2: primeira página do Correio da Manhã, edição de 3 de abril de 1964

Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - Brasil 81

Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.2, 2009

Anexo 3: Primeira página d`O Globo, edição de 2 de abril de 1964

Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - Brasil 82

Revista do Gelne, Piauí, v.11, n.2, 2009

Anexo 4: Primeira página d`O Globo, edição de 3 de abril de 1964

Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil 83

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GÊNEROS DIGITAIS EM EMERGÊNCIA: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DO SCRAP DO ORKUT Júlio César Araújo* Vicente de Lima Neto** RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de descrever o scrap como gênero digital, com base nos conceitos de gênero de Bakhtin ([1953]1997) e de Marcuschi (2000). Trabalhar com esses dois pontos de vista é relevante porque nos dá sustento para estudar a maleabilidade dos gêneros, principalmente os digitais, que parecem mudar com muito mais rapidez que os da mídia impressa. Com base em um mapeamento que fizemos dos padrões genéricos que aparecem no scrapbook, verificamos que, além do recado propriamente dito, outros gêneros foram suscitados, como o anúncio, a carta-corrente, a notícia etc. Isso nos instigou a trabalhar com a hipótese de que o scrap do Orkut é um gênero em emergência, cuja constituição se dá pelo fenômeno das mesclas de gêneros, já que propicia a materialização de enunciados diversos, em virtude de características hipertextuais intrínsecas ao ambiente multimodal da web. Palavras-chave: Scrap. Gênero digital. Orkut. ABSTRACT: This paper aims to describe the scrap as digital genre, based on the concepts of genre of Bakhtin ([1953] 1997) and Marcuschi (2000). Working with these two points of view is important because it gives us the flexibility to study maintenance of genres, especially the digital, which seem to change much more quickly that the genres of print media. Based on a survey we did of the general patterns that appear in space for the writing of scraps in Orkut, the scrapbook, we noticed that, besides the message itself, other genres were raised, as the announcement, the current letter, the news etc. This urged us to work with the hypothesis that the scrap from Orkut is an emerging genre, whose creation is through the phenomenom of mix of genres, since it provides the materialization of various stated because of hypertextual characteristics inherent to web multimodal environment. Keywords: Scrap. Digital genre. Orkut. Considerações iniciais A internet chegou ao Brasil em 1995, mas somente nos anos 2000 é que ela se popularizou. Desde então, a escrita e os textos passaram a ter novos contornos, já que tiveram de acompanhar as novas tecnologias e se adaptar a elas. Em nosso entender, a partir daquele ano, uma nova perspectiva da história da análise dos gêneros começou a ser construída, pois, como mais uma tecnologia a favor da comunicação, a web trouxe consigo gêneros diversos, surgidos a partir das necessidades dos internautas de se comunicar pela rede mundial de computadores. Crystal (2001) atribuiu à chegada da web uma grande revolução na linguagem, pois, ao que parece, ainda não se sabe até onde essas novidades trazidas pela tecnologia poderão mudar a forma de enxergar as práticas linguajeiras. Enquanto 1995 foi um marco pela chegada de novas formas de comunicação no Brasil, 2004 foi outro marco na história da internet, pois foi quando surgiu o site de relacionamentos Orkut. Desde então, sites dessa natureza se popularizaram rapidamente, convocando e provocando internautas de todas as partes do mundo a se inserir nas chamadas redes sociais com uma rapidez inimaginável. Veja-se o caso do Facebook, que hoje tem mais de 400 milhões de *

Doutor em Linguística. Professor da UFC - [email protected] / [email protected] Doutorando em Linguística pela Universidade Federal do Ceará. [email protected]

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usuários com apenas seis anos de existência1. Naturalmente, a comunicação interna nesses sites também se dá por gêneros novos. E diversos. No caso do Orkut, sobressai-se o scrap, objeto deste estudo. Com um percurso também de seis anos, estima-se que seja o meio de comunicação mais utilizado pelos orkuteiros diariamente, para atender aos mais variados propósitos, desde um simples cumprimento até as complexas práticas de noticiar um fato ou divulgar um produto por meio de semioses diversas. Com base nessas considerações, neste trabalho, temos o objetivo de analisar o scrap como um gênero digital em emergência que, embora seja uma prática de linguagem associada à novidade das redes sociais, resguarda as características epistolares do gênero bilhete. Não obstante isso, para realizar seus propósitos comunicativos, o scrap se materializa na forma de diversos outros gêneros, o que fortalece ainda mais o advérbio “relativamente” que atravessa o conceito bakhtiniano de gênero do discurso. Dos gêneros Analisar um gênero digital com base somente nos estudos clássicos pode constituir certo risco na medida em que a web e seus gêneros são fatos sociais novos e, em função do ambiente digital em que se realizam, são passíveis de mudanças repentinas. Nesse sentido, se alguns gêneros mais tradicionais não apresentam formas e estruturas fixas, o que dizermos acerca dos gêneros que se formam da e na hipertextualidade, já que eles ainda estão em construção? Eis mais um risco de considerar o scrap, por exemplo, como gênero, já que ele tem apenas seis anos, pois surgiu com o Orkut em 2004. Se pensarmos na definição bakhtiniana de gêneros discursivos e olharmos para os da web, veremos que os analistas terão de enfrentar muito mais a dimensão genérica do relativamente do que o aspecto da estabilidade. Estudos exploratórios dessa natureza foram realizados diante de práticas discursivas digitais também novas, como é o caso do e-mail (PAIVA, 2005), do blog (KOMESU, 2005; MILLER, 2009a) e do próprio bilhete digital (MARTINS, 2007). Compreendemos, no entanto, que atestar o status genérico de práticas novas, como o scrap, requer uma pesquisa muito mais longa e complexa do que o estudo que ora apresentamos. Mesmo assim, somos cônscios de que a teoria clássica e contemporânea de gêneros pode lançar luzes nas pesquisas que descrevem gêneros do ambiente digital e, nessa direção, percebemos que os postulados de Bakhtin (1997)2, Bhatia (1993), Marcuschi (2000) e Miller (2009a) poderiam servir de ponto de partida para a jornada que nos dispomos a explorar. Com os estudos de Bakhtin (1997), o conceito de língua passou a girar em torno da prática interacional. Para ele, a utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, que emanam de uma ou doutra esfera de atividade humana. A partir daí, as reflexões acerca das construções genéricas avançaram na medida em que os gêneros passaram a ser conhecidos como formações inerentes ao cotidiano de uma dada sociedade, e não um mecanismo de ornamentação da língua, pertencente somente à literatura e à retórica. Gênero passa a ser visto como um tipo relativamente estável de enunciado inserido em uma determinada esfera da comunicação humana. Bakhtin (1997), então, organiza o gênero sob um tripé conceitual, a saber, a estrutura composicional, o conteúdo temático e o estilo, além de tratar o intuito discursivo, que mais tarde seria tratado como propósito comunicativo (SWALES, 1990). Não estamos querendo afirmar, no entanto, que analisar o scrap sob a ótica do conceito bakhtiniano de gênero constitui uma tarefa simples, pois o pensador russo não previu gêneros multimodais, como o scrap (por razões óbvias, Bakhtin jamais viu, nem previu, a internet e suas potencialidades enunciativas). Contudo, se a língua realiza-se por meio de enunciados orais ou

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Dados de março de 2010. Informação disponível em: 2 A edição traduzida que usamos é de 1997, mas a publicação original foi em 1953. 39

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escritos, como bem defende Bakhtin, o que dizer de scraps que mesclam várias modalidades, como o do exemplo abaixo?

Figura 1: As novas relações com a escrita no scrap

Evidências empíricas como a que flagramos na figura 1, revelam que a escrita, no meio digital, passa a adquirir outras formas, com outras funções. No caso, vemos que o recado é composto por duas linguagens, uma verbal e outra visual. Esta é construída apenas com caracteres de escrita e traz a figura de um rosto sorrindo, o que caracteriza a alegria do enunciador em lembrar do coenunciador, confirmando o que aparece linguisticamente: “Por que te deixei um scrap??? 1º: Pra te dar Oi!! 2º: Pra dizer que me lembrei de vc!!! 3º: Pra te desejar um ótimo dia amanhã e sempre [...]”. Ou seja, caracteres de escrita se distanciam de seus usos canônicos e passam a constituir uma imagem a qual complementa os sentimentos do enunciador por meio de uma linguagem multimodal, possibilitada pelo Orkut. Figuras dessa natureza indicam não só haver uma intimidade afetiva entre os interlocutores do scrap, mas também apontam para as novas relações com a escrita (ARAÚJO, 2008) que estão em curso em gêneros, como o scrap. O tripé conceitual que está na base da definição de gênero elaborada por Bakhtin parece não suportar o peso das peculiaridades de algumas práticas linguajeiras da web. Verifiquemos, por exemplo, práticas como o blog (KOMESU, 2005; MILLER, 2009b), a homepage (ASKEHAVE; NIELSEN, 2005) e o e-mail (PAIVA, 2005), que são tomados como gêneros e tem formas, estilo e conteúdo dos mais variados. Da mesma forma, há quem defenda que essas mesmas práticas não são gêneros, alegando que a tamanha flexibilidade que lhes caracteriza impede que eles sejam assim reconhecidos. Portanto, uma das saídas por nós imaginada para estudar os gêneros digitais é vê-los como entidades sociocomunicativas, o que significa não levar em conta prioritariamente padrões formais, pois “[...] quando dominamos um gênero textual não dominamos uma forma linguística e sim uma forma de realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares” (MARCUSCHI, 2000, p. 5). Ao considerar os gêneros como artefatos socioculturais, Marcuschi (2008a, p. 16) argumenta que eles são, antes de tudo, “formas culturais e cognitivas de ação social corporificadas de modo particular na linguagem”. São culturais, pois eles não têm idêntica circulação situacional em todas as culturas. A escolha de um determinado gênero que tenha o intuito de atingir um determinado propósito numa dada situação comunicativa pode ser inapropriada se realizada numa outra cultura. “Não podemos supor que em todas as culturas se escreva uma carta do mesmo modo nem que se dê um telefonema da mesma maneira” (MARCUSCHI, 2008b, p. 172); são cognitivos, pois são identificados pelos integrantes de uma determinada comunidade que partilham da mesma língua/cultura, ou seja, é

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como se os usuários tivessem modelos cognitivos que permitissem o reconhecimento de um determinado gênero em uma dada situação comunicativa. É natural que sejam encontradas características formais nos gêneros também, mas, segundo Marcuschi (2000), elas são exigências de categorias cognitivas e culturais, posição esta defendida também por Bhatia (1993, p. 21), para quem os fatores psicológicos contribuem para aspectos táticos para a construção do gênero, o que caracteriza o seu processo dinâmico. O propósito comunicativo é inevitavelmente refletido na estruturação cognitiva interpretativa do gênero, que, de certa forma, representa as regularidades típicas de organização nele. Essas regularidades devem ser vistas como de natureza cognitiva, porque elas refletem as estratégias que os membros de um discurso particular ou de uma comunidade profissional tipicamente usam em uma construção e entendem que aquele gênero alcança determinados propósitos comunicativos. Essa estruturação cognitiva reflete conhecimento social acumulado e convencionalizado disponível para um discurso particular ou uma comunidade profissional 3.

Em suma, o que há de estável num gênero está muito mais ligado à cognição do que à materialidade ou a elementos linguísticos. Os propósitos comunicativos, assim como em Askehave e Swales (2001), ainda são elementos privilegiados na definição do gênero, mas eles são só reflexos da estruturação cognitiva que os membros de uma determinada comunidade que compartilha determinados gêneros têm esquematizados em sua mente. Logo, antes da produção de um gênero, os indivíduos movem esses esquemas que recuperam conhecimento social, informações sobre o contexto de uso, levantamento de hipóteses acerca do seu interlocutor etc., para, a partir daí, materializar esses dados em gêneros que permitirão alcançar os propósitos daquela interação específica. Nessa perspectiva, a relação propósito comunicativo – cognição está intimamente relacionada. No que diz respeito aos gêneros surgidos no ambiente hipertextual da web, há muito se questiona se eles são, de fato, novidade ou são apenas modificações e adaptações dos já existentes. Para Huckin (2007, p.77), embora os gêneros digitais se pareçam, em certos aspectos, com os de fora da internet, a maneira de interagir com eles é radicalmente distinta devido, entre outros fatores, à velocidade, sendo que é mais do que apenas a velocidade – embora essa seja a diferença mais fundamental […] – é também a criatividade que seus usuários trazem para produzi-los. Soma-se a isso a natureza mais pública desses gêneros, e a circulação da informação […] Tudo isso, e mais, clama para eles serem considerados novos gêneros, e não apenas novas tecnologias4.

Resumindo, se considerarmos que cada enunciado constitui um novo acontecimento e único na comunicação discursiva, ou seja, os gêneros sendo tomados a partir de sua historicidade, jamais podendo ser repetidos, então podemos dizer que os gêneros que emergem das relações entre linguagem e tecnologias digitais são novos, pois, apesar de terem sua contraparte em gêneros do ambiente não digital, são acontecimentos únicos em um dado ambiente (o digital), feitos para aquele meio específico e com características próprias da rede.

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Nossa tradução de: “The communicative purpose is inevitably reflected in the interpretative cognitive structuring of the genre, which, in a way, represents the typical regularities of organization in it. These regularities must be seen as cognitive in nature because they reflect the strategies that members of a particular discourse or professional community typically use in the construction and understanding of that genre to achieve specific communicative purposes. This cognitive structuring reflects accumulated and conventionalized social knowledge available to a particular discourse of professional community. (p. 21) 4 Nossa tradução de: It´s more than just speed – although that´s the most fundamental difference […] - it´s also the creativity that users bring to bear. Plus the more public nature of these genres, and the currency of the information […]. All of this, and more, calls for them to be considered new *genres*, not just new technologies. (p. 77) 41

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Com base nisso, para Askehave e Nielsen (2005, p.3), “a mídia [web] acrescenta propriedades únicas para os gêneros digitais em termos de produção, função e recepção, que não podem ser ignorados na caracterização do gênero. Uma das mais significantes características da mídia web é o uso do hipertexto.”5, que é, como já dissemos, algo só permitido num computador online. O scrap, quando surgiu, era nada mais do que um gênero adaptado (no caso, do bilhete), já que permitia somente textos curtos, sem a possibilidade de nenhum recurso multimodal ou hipertextual. Hoje, com a web 2.06, não podemos ser redutores e analisar o scrap somente dessa forma, pois muito do que na web é produzido perde características próprias quando trazido para a bidimensionalidade do papel, como veremos em todos os exemplos aqui analisados, e constituem a incrível instabilidade dessa prática discursiva no plano visual, ao mesmo tempo que configura uma estabilidade no plano cognitivo. Da genericidade do scrap Julgamos relevante explorar inicialmente a hipótese da genericidade do scrap, dados os inúmeros usos diários feitos pelos orkuteiros. Assim, dentre as características que podem nos levar a pensar sobre o tema, está o conceito de gênero de Bakhtin (1997), sempre atual, que pode abrigar também o scrap, tendo em vista este ser um evento comunicativo muito instável devido, principalmente, à natureza do ambiente onde se atualiza e a dinamicidade interativa que esse ambiente tem. Além disso, é uma prática discursiva que evoluiu muito rapidamente. O espaço onde os scraps se materializam, comumente, de maneira intersemiótica denomina-se scrapbook. O que chama atenção não é a elaboração de uma mensagem, mas a evolução sofrida pelo scrap em tão pouco tempo, como poderemos averiguar por meio dos exemplos que se seguem:

Figura 2: scrap prototípico

Pelo exemplo, vemos que se trata de uma mensagem de cunho epistolar, cujas características são realçadas por Silva (2002, p. 32), No caso da maioria dos gêneros epistolares, têm-se algumas fórmulas lingüísticodiscursivas, as chamadas rotinas comunicativas, como o vocativo, a saudação e a despedida, que, no percurso de mais três séculos, vêm mantendo uma estabilidade na composição textual desses gêneros.

E essas rotinas discursivas são possíveis de serem verificadas neste exemplar, razão pela qual os enunciados “netoooooooooo!! Ei sumindo, a cintia deixou teu dinheiro comigo!! e “avista quando aparece pra eu te entragar [sic] viu!! bijim trazem o vocativo, a mensagem propriamente dita e a despedida, respectivamente. Agora é bem verdade que, no Orkut, essas rotinas sofrem certa modificação em virtude do meio. Não há a necessidade de assinatura, por 5

Nossa tradução de “the medium adds unique properties to the web genre in terms of production, function, and reception which cannot be ignored in the genre characterization. One of the most significant characteristics of the web medium is its use of hypertext.” 6 Entendemos web 2.0 como uma evolução da plataforma da internet. Ela chegou em 2004 e propiciou o aumento da largura da banda, ocasionando uma maior velocidade na conexão e permitindo recursos antes impossíveis na web 1.0, como os vídeos do Youtube, o Google Talk, no Orkut, as figuras animadas em muitos sites, inclusive no Orkut. 42

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exemplo, pois esse elemento já é dado pelo scrapbook, inclusive com foto7. Além disso, à direita, ainda tem-se a data do envio, algo também nem sempre trazido em bilhetes, até porque a natureza do gênero não exige, diferente de uma carta, por exemplo. Ainda é possível verificar, também, traços do internetês, como a abreviação de palavras (bijim), por exemplo. Alheio a tais rotinas, ainda tem-se um P.S. (Post-scriptum), originalmente “escrito depois”, que traz uma informação a ser acrescentada a uma carta depois de terminada. No caso em específico, nota-se uma clara mudança de tópico e diz respeito ao estado de saúde do coenunciador, temática esta não trabalhada na mensagem, muito provavelmente porque não era este o propósito do scrap. O que dissemos é relevante porque aponta para certa tradição discursiva de epistolaridade do scrap. Consideramos que não devemos olhar para a dimensão histórico-temporal dos gêneros digitais com as mesmas lentes que usamos para enxergarmos os gêneros mais conhecidos. Podemos dizer que, na web, o tempo corre diferentemente. O scrap, embora tenha apenas seis anos, teve uma evolução tamanha que, se comparado a outros gêneros de outras mídias, estes proporcionalmente levariam um tempo muito maior para chegar ao mesmo nível de mudanças sofridas pelo evento comunicativo em análise. Nessa direção, um dos argumentos que nos faz levantar a hipótese de tratar o scrap como gênero é sua historicidade. Note que ele tem traços típicos do bilhete (assinatura, dada pelo próprio meio onde ele se atualiza; vocativo, mensagem curta de caráter informativo e despedida – ausente neste exemplo em específico, mas muito comum nos scraps), ou seja, é possível falar em uma transmutação do gênero para o ambiente virtual. O scrap absorveu características do gênero bilhete, apropriando-se de suas rotinas discursivas, cujos traços podem remontar a práticas de letramento bastante antigas na história da humanidade, por estar na comunicação básica, no cotidiano das pessoas. Nesse sentido, é digno de nota o trabalho de Martins (2007, p. 28), que também estudou o scrap, chamando-o de bilhete digital. A tese da pesquisadora é a de que o bilhete digital utilizado no Orkut é nada mais do que uma reconfiguração do bilhete tradicional. Primeiramente, a autora postula as regularidades estruturais do gênero em análise: O bilhete digital no Orkut é uma das consequências da Internet e possui relação assíncrona, de duração limitada, mensagens curtas, formato de estrutura fixa, participantes em número variado e conhecidos, de função interpessoal, com assuntos de temas livres ou combinados, semiose: puro texto corrido, curto, e mensagem gravada automaticamente.

Características como as que a autora postulou são válidas para exemplos como o da figura 2, por se tratar de um scrap clássico. Acerca disso, consideramos que este enunciado tem características do bilhete, daí a razoabilidade da hipótese da autora, de que o bilhete digital nada mais é do que uma reconfiguração do bilhete tradicional. Como posteriores argumentos para a sustentação de sua tese, ela acrescenta: [...] constatei que nos bilhetes digitais realizam-se quatro movimentos, que agora descrevo: Movimento 1: Nome do remetente ou apelido; Movimento 2: Saudação; Movimento 3: A mensagem propriamente dita; Movimento 4: Despedida” (MARTINS, 2007, p. 61).

Para a autora, a estrutura formal é a grande responsável pela afirmação de que o bilhete digital surgiu do bilhete tradicional. Além do aspecto composicional, elencado acima, outras características que aproximam tais gêneros são “a projeção de informações curtas, rápidas, sem 7

Embora saibamos que o Orkut é um ambiente público, em todos os exemplos foram omitidos o nome e a foto do emissor, por uma questão de preservação da identidade. São dados irrelevantes para a pesquisa. 43

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muitos escritos” (MARTINS, 2007, p. 65) e “uma forte tendência à utilização informal da linguagem” (p. 66). Entretanto, a mais notável diferença diz respeito não à produção do bilhete digital, mas à recepção: Os bilhetes tradicionais podem ou não ser sigilosos, já no Orkut, os recados são públicos, o ambiente virtual o torna comum a todos, pode ser lido e comentado por qualquer visitante que pode ou não sentir-se motivado pela reação da resposta-ativa do interlocutor. A partir daí, a escrita constrói uma imagem para seus interlocutores, utilizando, para tanto, um jogo dialógico intenso. Ao enfatizar essa dicotomia, elementos que compõem a situação de produção do enunciado são alterados: o receptor e a intenção discursiva diferenciada, obtém-se um novo gênero, com características do bilhete tradicional. Há uma reconfiguração do bilhete tradicional para os recados no ambiente virtual, o Orkut. (MARTINS, 2007, p. 52, grifos nossos).

Como dissemos, é pertinente a análise da autora, principalmente no que diz respeito à publicização dos scraps: diferentemente do bilhete tradicional, o scrap estará disponível para todos que tenham uma conta no Orkut, desde que o dono do profile não bloqueie o acesso de outros usuários ao scrapbook. Essa rede de relacionamentos dá essa possibilidade, portanto há um certo cuidado com o conteúdo a ser publicado nos scraps, que pode ser visto por todos. Se uma informação de caráter mais íntimo foi escrita naquele espaço, há o risco de sanções, como o fato de o usuário ter sua privacidade invadida por pessoas alheias ao assunto tratado no scrap, o que não ocorre nos bilhetes tradicionais. Independentemente disso, a composição do scrap, desde 2007, sofreu alterações, quando o Orkut adquiriu novas características procedentes das melhorias da largura de banda, principalmente da web 2.0, e passou a permitir sons, imagens, gifs e outros elementos semióticos enriquecedores, impensáveis na web 1.0. Isso abalou profundamente a natureza dos gêneros digitais, e o scrap não saiu incólume a isso. Vejamos:

Figura 3 – Mensagem afetiva

O exemplo acima traz uma mensagem afetiva pela qual o enunciador deseja ao seu coenunciador um bom fim de semana. Para isso, ele não se utilizou apenas de linguagem verbal. A figura é, na verdade, a inserção de um código HTML8 que se materializa no desenho de uma 8

HTML é sigla para Hyper Text Markup Language – Linguagem de Marcação de Hipertexto. Esses marcadores são utilizados para a produção de páginas na Web. Para um estudo mais aprofundado sobre o tema, remeto o leitor para . 44

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jovem acompanhada de uma mensagem afetuosa, com cores claras e singelas, o que, naturalmente, influi na construção do sentido. Diante das potencialidades enunciativas do scrap possibilitadas desde o segundo semestre de 2007, o enunciador tem muito mais opções de transmitir uma mensagem para quem quer que seja. Um recado com todos esses aparatos semióticos, como figuras, cores, fontes distintas, por exemplo, eram impossíveis antes de se permitir a inserção de códigos HTML no espaço destinado à mensagem. Com isso, a tendência foi que a formação do scrap, que, àquela altura, já permitia agregar outros gêneros, passou a ser muito mais complexa, desafiando os limites analisados por Martins (2007), por exemplo. Note que, embora o enunciador se utilize de uma saudação “oiii...^.^” e de uma despedida – “beijinhos.......................” –, ele poderia manter somente o HTML que inseriu, e o propósito seria alcançado (desejar um bom fim de semana ao coenunciador). A depender do caso, traços dos moves 1, 2 ou 4, que, segundo a pesquisadora, poderiam caracterizar o gênero bilhete digital, nem sempre aparecem, como se vê abaixo.

Figura 4: Pregação

Este enunciador se utiliza do scrap para realizar pregação, gênero do campo religioso, pois tem como propósito incutir no leitor um certo posicionamento ideológico. Todavia, não deixa de ser um recado, a partir do momento em que o interlocutor o recebe dessa maneira. Segundo sua metodologia, os trinta exemplos analisados na pesquisa foram coletados nos dias 8 e 9 de agosto de 2007 (MARTINS, 2007, p. 59), data em que já estavam disponíveis no Orkut diversos recursos multimodais que propiciam uma nova forma de construir sentido, como a presença de links, figuras, imagens e animações. Isso significa que atribuir o status genérico ao scrap somente com base nos movimentos retóricos dos bilhetes digitais, propostos pela autora, é deixar de lado características bastante marcadas de um novo modo de transmitir mensagens curtas: por meio de outras semioses – como imagem e som – ou por meio de mesclas genéricas complexas que constituem o scrap, enfim, de outros traços que existem naquele evento comunicativo e só são possíveis graças à plataforma web 2.0. Frente a eles, atrelar à única distinção entre bilhetes digitais e tradicionais os aspectos da materialidade linguística nos parece ser um tanto redutor: Acredito que posso apresentar, entre os objetivos atingidos, a caracterização da linguagem utilizada no ambiente virtual Orkut, conferindo ao bilhete digital o status de gênero textual emergente da tecnologia por meio da reconfiguração do bilhete tradicional, por apresentar uma estrutura de composição textual regular com os padrões que se repetem (MARTINS, 2007, p. 77).

Não teríamos, a rigor, outro gênero, mas apenas uma mudança de suporte sofrida pelo bilhete que, naturalmente, ao ser recategorizado, absorveu características do ambiente digital. O que aproxima os bilhetes tradicionais dos digitais não é apenas a materialidade linguística; pelo contrário, é aquilo que não aparece na superfície do texto, que é o propósito comunicativo geral. É neste ponto que entra um outro argumento, além da historicidade do gênero, que nos leva à hipótese de considerar a genericidade do scrap: o aspecto sociocognitivo do gênero (BHATIA, 45

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1993; MARCUSCHI, 2000). Em nossa análise, verificamos que as “regularidades” no scrap são, na verdade, o que menos aparecem na materialidade. Como dissemos, o scrap, há muito, deixou de ser um mero bilhete para assumir a forma e o estilo de outros gêneros. Telles (2006, p. 28), em pesquisa sobre o Orkut, já atentava para este fato: O termo scrap tornou-se tão popular que hoje é comum ouvir um ou outro usuário dizer: “Você recebeu o scrap que lhe mandei ontem?” Ou: “Ainda não respondi a seu scrap”. Na maioria das vezes, os usuários fazem isso para divulgar shows, correntes [...], propagandas, mensagens de fim de ano, de Natal e de datas festivas.

Mesmo em 2006, a variedade de gêneros que se rotulavam sob nome de scrap já era perceptível, o que permite mostrar o quadro restritivo em que se inscreveu o corpus analisado por Martins (2007) e contribui para argumentarmos que o scrap pode ser um gênero também sob o ponto de vista dos usuários, que o reconhecem como uma prática discursiva que circula em meio social e já está relativamente estabilizada no Orkut. É importante que fique claro que não se invalida de forma nenhuma tal pesquisa, mas é fato que não foi levada em conta toda uma realidade enunciativa potencializada pelo scrap. Bezerra (2009, p. 515) também teve a mesma impressão de Telles (2006): “[...] o que se exibe nas páginas de recado do Orkut pouco tem a ver com o gênero originalmente previsto para ser reproduzido e veiculado ali. [...] Uma diversidade de gêneros coexiste sob o amplo manto do „recado do Orkut‟”. Ou seja, ao que parece, muitos são os gêneros que constituem o scrap com os mais variados propósitos comunicativos. Diante de tantos propósitos, é natural que uma única estrutura que caracterize o bilhete digital não dê conta de todos eles. Vale ressaltar que o bilhete já tinha (e continua tendo) propósitos distintos, o que nos instigava afirmar que essa mudança nos propósitos poderia levar a gêneros distintos. Entretanto, entendamos, então, que o bilhete é um gênero que tem como propósito comunicativo geral estabelecer uma comunicação simples e rápida com alguém que não se encontra no mesmo plano físico (ou que, pelo menos, dois interlocutores não tenham a possibilidade de se manifestar oralmente num mesmo ambiente, como dois alunos numa sala de aula, por exemplo). Mas é importante salientar que ele pode ter variados propósitos comunicativos específicos, como convidar, agradecer, felicitar, lembrar, cumprimentar, pedir, anunciar, dar uma má notícia etc. (LIMA-NETO, ARAÚJO, 2009, p. 11).

Isso quer dizer que compartilhamos com Martins (2007) a tese de que o scrap tem traços característicos do bilhete tradicional, porém não reduzimos nossa análise à materialidade linguística uma vez que as características do bilhete tradicional evoluíram em virtude do avanço das novas tecnologias. Enquanto um bilhete pode ter o propósito de anunciar algo com um simples enunciado, o scrap potencializa esse mesmo propósito colocando o próprio anúncio materializado no scrapbook. Um bilhete pode ter variados propósitos comunicativos, mas eles não são suficientes, no nosso entender, para nos levar a outro gênero. No scrap, assim como nos bilhetes, nas cartas, nas notícias, temos apenas variações do mesmo gênero. São exemplos que podem apresentar propósitos específicos distintos, mas têm o mesmo propósito geral. Se entendermos o scrap como gênero, será o propósito geral que o governará, pois é isto que está estabilizado na mente dos usuários. O que se materializa é instável, pois são gêneros distintos. É neste ponto que entra a noção básica de relativa estabilidade que propõe Bakhtin (1997) para os gêneros. Eles são voláteis, plásticos e maleáveis, sendo que é impossível que todos os exemplares de um mesmo gênero sigam um modelo-padrão.

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Figura 5 – Anúncio

À primeira vista, temos um anúncio de uma casa de shows. Seguindo a legenda acima, em 1, verificamos isso, já que parece ser um retrato fiel de um cartaz que pode ser afixado em uma parede, por exemplo. Ali encontramos o nome da casa de eventos e as atrações que acontecerão durante os sábados do mês de junho. Abaixo, temos o endereço e o contato telefônico. Este tipo de estrutura do enunciado equivale a de um anúncio, geralmente vindo em um cartaz de divulgação. Provavelmente, os leitores desse scrap, inconscientemente, verificarão que o propósito deste enunciado é divulgar a casa de shows por meio de suas atrações, o que, no nosso entender, configura o propósito geral de gêneros publicitários. Entretanto, estamos levando em conta somente informações contidas na superfície textual. No nosso entender, trata-se também de um recado. Primeiro, porque o enunciador da mensagem conhece os gostos musicais do coenunciador e sabe que este é o tipo de show que interessaria. Isso pode ser confirmado por 2: “Acho que algo nessa propaganda te interessa”. Veja que o próprio enunciador caracterizou o gênero como propaganda. Que fique claro que não negamos a coexistência de padrões desse gênero constituindo o gênero scrap, mas outras informações também devem ser levadas em conta na interação. Sabe-se, também, que um cartaz publicitário não seria mostrado a uma só pessoa. Isso foge aos propósitos do gênero anúncio, contido no cartaz, já que ele é elaborado para estar visível para um público-alvo bem maior. O enunciador poderia ter se utilizado do gênero bilhete, mandado um e-mail, um torpedo ou simplesmente telefonado para o seu coenunciador passando a mesma informação, mas ele optou pelo scrap que, diante dos recursos possibilitados pela web 2.0, torna a informação muito mais atrativa e interativa. Todo esse aparato utilizado pelo enunciador simplesmente transmite o seguinte enunciado: “Amigo, dê uma olhada neste cartaz. Há coisas que te interessam aqui”, o que, no nosso entender, não foge aos propósitos do recado. É só uma forma bem mais complexa (e muito mais interessante) de passar este conteúdo. Logo, o propósito específico – a divulgação dos eventos – pode ser mais facilmente atingido se o coenunciador tiver à sua frente uma réplica de um cartaz. Segundo, porque, como no ambiente digital os gêneros são muito instáveis, é viável dizer que a prototipicidade que qualquer internauta busca enxergar é de natureza mais sociocognitiva do que visual. Pode-se enxergar qualquer gênero no scrapbook, como vídeos, notícias ou até o anúncio em questão, mas a enunciação do Orkut aciona cognitivamente esquemas para que ali se veja um scrap ou algo que se aproxime dele. Neste caso em específico, as semioses utilizadas pelo enunciador pautaram-se na enunciação visual e textual. Entretanto, a hipertextualidade permite outras formas de se transmitir um recado: 47

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Figura 6: Podcast

Este exemplar traz um podcast – arquivo audiodigital que é publicado na internet e possibilita a reprodução de arquivos MP3 – que imita um aparelho de som e permite escutar músicas, desde que se clique no play [►]. O gênero que se terá acesso é a canção, pelo menos na materialidade, mas, cognitivamente, o leitor reconhece como o recado desde enunciador para aquele momento: “Escute esta música”. O que queremos dizer com isso é que o scrap é um evento comunicativo de formação complexa, por isso o seu status genérico não pode ser baseado em sua estrutura, somente. A partir do momento que se permitiram HTML, ficou impossível descrever o scrap por sua forma. Então, entender o gênero como um constructo sociocognitivo nos permite afirmar que o reconhecimento desse objeto se dá não apenas pelo que aparece visualmente, mas, sobretudo, por representação da prática de linguagem que se vai exercer. Isto é cognitivo, pelo fato de esta representação ser construída mentalmente, e é cultural, pelo fato de as práticas de linguagem serem reconhecidas socialmente. No scrap, então, converge uma mescla de INStabilidade – estabelecida pelas formas que aparecem para o coenunciador, como vemos, das mais variadas – e EStabilidade, esta sim a representação sociocognitiva de que, ao se enviar um scrap, seja ele da estrutura que aparecer, envia-se uma mensagem, um recado. É exatamente esta representação que permite o reconhecimento de um gênero. Por isso talvez Telles (2006) já tenha notado a popularização do termo scrap, mesmo em um trabalho que não é de Linguística, mas de Marketing. Isso apenas confirma que não é seguro reduzir o reconhecimento de um gênero apenas em seus aspectos visuais, tendo o analista que atentar para a dimensão sociocognitiva desse objeto. A figura abaixo pode nos ajudar a entender a construção desse raciocínio:

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Figura 7 – Promoção de banda

O exemplo constitui uma mescla por gêneros num único scrap, pois se constitui a partir de misturas de padrões de um anúncio publicitário e de um vídeo que traz um trecho do show da banda anunciada. Aparentemente, estamos diante de gêneros distintos, pois eles podem existir independentemente e separados, contudo, neste exemplo em específico, confluem para um objetivo específico – o de promover a banda de forró.

Figura 8 – Interpretação do scrap

Como estamos supondo, enquanto na tela do computador o scrap se materializa como na figura 8, com a visualização de pelo menos dois gêneros – o anúncio e o vídeo – e um alto grau de instabilidade, devido à flexibilidade dos gêneros e do ambiente digital, o que acontece por trás dos olhos do coenunciador, na cognição, é interpretado pelos membros que participam do Orkut como uma mensagem de natureza mais epistolar, curta, simples e com certo grau de intimidade, cujo propósito comunicativo específico é o de promover uma banda. Quem recebe este scrap 49

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realiza inferências para preencher o que não apareceu em materialidade linguística – exatamente o que se realiza na mente. Note que podem ser traços do bilhete tradicional. Enquanto o coenunciador conseguir recuperar cognitivamente a origem do scrap como tendo a mesma do bilhete ou do recado, será possível argumentar em favor da transmutação dos gêneros bilhete/recado pela web e enxergar esta prática de linguagem tão complexa como um gênero de formação híbrida, mas que tem a sua estabilidade em características históricas e pragmáticas, como o mesmo propósito comunicativo do bilhete. Entretanto, diante das novas tecnologias, daqui a pouco será complicado ou até impossível fazer essa recuperação, pois o ambiente onde este suposto gênero está inserido é volátil, o que pode fazer com que o scrap sofra transformações ainda mais bruscas e mude completamente, a ponto de não ser permitido relembrar as origens. Com problemáticas de mesma ordem, estão o e-mail (PAIVA, 2005) e o blog (MILLER, 2009b). Atestar a genericidade destes dois eventos comunicativos constitui grande desafio, exatamente por terem características muito fluidas. O e-mail hoje comporta gêneros dos mais diversos, como spams, anúncios, avisos etc., além de servir como suporte ou canal para envio de arquivos, como teses, por exemplo. O blog, que, segundo Komesu (2005), partiu do diário pessoal, poderia ser enxergado como gênero – como o foi para Miller (2009b) – desde que pudesse se recuperar única e exclusivamente essa origem, assim como estamos supondo ser a do scrap em relação ao bilhete. Mas hoje é impossível fazer essas recuperações, pois o blog é tão volátil que se pode, inclusive, falar em blogs: jornalístico, publicitário, esportivo, político etc. Por razões dessa natureza, vamos enxergar o scrap como gênero apenas se for entendido como uma transformação/transmutação do gênero bilhete e se for possível que os usuários de fato reconheçam a estabilidade do scrap no propósito comunicativo geral, não nos específicos. Olhando por este prisma, vê-se que o scrap é um evento comunicativo que potencializa mesclas de naturezas distintas, principalmente de gêneros vários, que são as que se materializam na tela do computador. Considerações Finais Embora haja ressalvas no que diz respeito à genericidade do scrap do Orkut, argumentamos, neste curto ensaio, que o scrap deve ser tratado, na verdade, não como somente um gênero simples, primário, como diria Bakhtin (1997), mas, sim, como um gênero emergente de complexa formação, pois ele se constitui de elementos multissemióticos e hipertextuais que colocam em evidência o seu gigantesco potencial enunciativo. O scrap, embora apresente, na superfície, traços de gêneros dos mais variados, como anúncios e notícias, por exemplo, traz em sua essência a realização do seu propósito comunicativo geral, que é o mesmo do bilhete/recado (suas contrapartes fora do ambiente digital), a saber, estabelecer uma comunicação simples e rápida com alguém que não se encontra no mesmo plano físico. É importante ressaltar, novamente, que os propósitos comunicativos específicos, que são variados, no caso do scrap, não têm força suficiente para formular um novo gênero. Diríamos, então, tratar-se de variações do mesmo gênero: são propósitos comunicativos distintos, mas todos sob o rótulo: scraps. Então, cartas-corrente digitais, cartões digitais, spams, agendas, cartões de visita etc., gêneros que se materializam superficialmente no scrapbook não podem ser analisados sem se levar em consideração aspectos também extralinguísticos, que, muitas vezes, não aparecem à primeira vista. Sugere-se avaliar a relação que há entre o enunciador e coenunciador da mensagem (únicos), os propósitos gerais dos gêneros que se encontram na superfície, que nem sempre entram em acordo com os propósitos originais do scrap, e a relação dos usuários com o gênero, já que, pelo fato de o gênero ser uma categoria também sociocognitiva, ao se deparar com uma construção genérica qualquer no scrap, o cérebro moverá esquemas que permitirão ao enunciador atentar para o fato de que aquele gênero que está

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aparecendo na superfície, como no caso do anúncio exemplificado, não está no seu habitat natural, portanto não se trata de um anúncio típico. Talvez neste aspecto encontre-se o erro de dizer que o scrap é um suporte para outros gêneros. Na verdade, esta é uma discussão que merece um estudo à parte, em virtude de a categoria suporte ainda se encontrar bastante nebulosa na literatura e termos de mexer com conceitos também de áreas alheias à Linguística, como a Informática. Referências ASKEHAVE, I.; NIELSEN, A. E. Digital genres: a challenge to traditional genre theory. Information Technology & People, v. 18, n. 2, p.120-141, 2005. ASKHAVE, I. & SWALES, J. M. Genre identification and communicative purpose: a problem and a possible solution. Applied Linguistics. OXFORD, UK, v. 22, n. 2, p. 195-212, 2001. ARAÚJO, J. C. “Pra tc c a galera vc tem q abreviar muito”: o internetês e as novas relações com a escrita. In: DIEB, M. (Org). Relações e saberes na escola: os sentidos do aprender e do ensinar. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 119-134. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, [1953] 1997. BHATIA, V. K. Analysing genre: language use in professional settings. London: Longman, 1993. BEZERRA, B. Gêneros textuais em suporte digital: os gêneros do Orkut. In: VI Congresso Internacional da Abralin, 2009, João Pessoa. Anais: VI Congresso Internacional da Abralin. João Pessoa: Ideia, 2009. v. 1. p. 513-519. CRYSTAL, D. A revolução da linguagem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edições, 2001. HUCKIN, T. Electronic genres and what they mean for genre theory and pedagogy: some thoughts. Anais do 4º Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais. Tubarão-SC: UNISUL, 2007. p. 70-80. KOMESU, F. Entre o público e o privado: um jogo enunciativo na constituição do escrevente de blogs na internet. 2005. 261 f. Tese. (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2005. LIMA-NETO, V.; ARAÚJO, J. C. Sobre a genericidade do scrap do Orkut. Anais do V Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais. Caxias do Sul-RS: UCS, 2009, p. 120. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: o que são e como se constituem. Recife: EDUPE, 2000. ______. Gêneros textuais: configuração, dinamicidade e circulação. 3. ed. In: KARWOSKI, A.; GAYDECZKA, B.; BRITO, K. S. (Org.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. Palmas e União da Vitória: Kaygangue, 2008a, p. 17-33. ______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b. MARTINS, C. C. L. Gêneros digitais e a escrita no Orkut: reconfiguração do gênero bilhete. 2007. 87 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) – Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, 2007. MILLER, C. Gênero como ação social. In: DIONÍSIO, A. P.; HOFFNAGEL, J. C. (Org.). Estudos sobre gênero textual, agência e tecnologia. Trad. e adaptação de Judith Chambliss Hoffnagel et al. Recife: EDUFPE, 2009a, p. 21-44. ______. Blogar como ação social: uma análise do gênero Weblog. In: DIONÍSIO, A. P.; HOFFNAGEL, J. C. (Org.). Estudos sobre gênero textual, agência e tecnologia. Trad. e adaptação de Judith Chambliss Hoffnagel et al. Recife: EDUFPE, 2009b, p. 61-92.

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AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM DA ANÁLISE LINGUÍSTICA – O LUGAR DO TEXTO LITERÁRIO Maria Clara Sobral Galindo*

Lívia Suassuna**

Resumo Na presente pesquisa, de caráter qualitativo-indiciário, investigou-se como é realizado o trabalho com a análise linguística em sala de aula, particularmente no que respeita à avaliação da aprendizagem. O objetivo principal foi analisar se e como a análise linguística é ensinada/avaliada em sua relação com o texto literário. Para tanto, observaram-se aulas em duas escolas públicas da cidade de Recife, uma estadual e outra de aplicação. Ao longo das observações, procurou-se investigar como os professores situavam a linguagem literária no processo de ensino-aprendizagem-avaliação da análise linguística. Como esperado, foram encontradas práticas diferenciadas – desde o trabalho desenvolvido com base na concepção de língua como sistema, ao de reflexão acerca dos recursos, usos e efeitos de sentido produzidos pelas diferentes construções linguísticas. Palavras-chave: análise linguística; avaliação; ensino; linguagem

Abstract In this research, which follows the qualitative and semiotic approaches, we investigated how the work with linguistic analysis is conducted in the classroom, with special attention to the learning assessment. This paper aims at examine whether and how linguistic analysis is taught/assessed in its relation with the literary text. For this, we observed classes in two public schools in Recife, one of the state and another belonging to the Federal University. Throughout the observations, we investigated whether and how teachers included the literary language in the teachinglearning-assessment of linguistic analysis. As expected, we found different practices - from the work based on the view of language as a system, to the one which included discussions about the resources, uses and effects of meaning produced by different linguistic constructions. Keywords: linguistic analysis; assessment; teaching; language

Introdução A pesquisa ora relatada faz parte de um projeto mais amplo Avaliação em língua portuguesa – a análise linguística, que se subdivide em dois subprojetos através dos quais pudemos investigar os processos de avaliação da análise linguística por duas vertentes diferentes. Com o subprojeto 1, pudemos verificar que relações existem entre os objetos de ensino do eixo de análise linguística e os procedimentos avaliativos adotados, bem como os instrumentos e critérios adotados pelos docentes nesse processo avaliativo. No subprojeto 2, que ora *

Graduada em Letras – UFPE - [email protected]

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Doutora em Linguística – UNICAMP - [email protected] 53

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apresentamos, também investigamos o processo avaliativo, mas ficamos atentas especificamente à forma como o professor situa a linguagem literária em tal processo. Acreditamos que os dois vieses abordados são complementares, ambos indispensáveis para que se tenha uma perspectiva mais abrangente acerca das práticas de ensino-aprendizagem da análise linguística em sala de aula; separamos apenas para melhor estudá-los. Especificamente, definimos como objetivo da pesquisa, investigar como os professores situam a linguagem literária no processo de ensino-aprendizagem-avaliação da análise linguística, observando: a) se trabalham a análise linguística de textos literários; b) se avaliam de modo apropriado a aprendizagem da literatura, de modo a promover o letramento literário do aluno. Partindo da nossa hipótese inicial, de que nas escolas ainda predomina a perspectiva de linguagem enquanto código/sistema, e consequentemente, o ensino de análise linguística enquanto mero reconhecimento/identificação de regras gramaticais, desenvolvemos a pesquisa ora apresentada. Para nós, tratou-se de identificar práticas que tomem a análise linguística em conjunto com o texto literário, reconhecendo nele não apenas o significado global, mas também a riqueza de nuances linguísticas que constroem esse significado; práticas que proponham uma reflexão sobre os diferentes efeitos de sentido possíveis quando da modificação de determinadas construções, do uso de determinadas expressões, da intencionalidade do autor, etc. Iniciaremos nossa abordagem teórica expondo um ponto que nos parece fundamental e que ainda não representa um consenso entre teóricos da linguagem e educadores de escolas públicas: a escolarização ou didatização da linguagem. De um lado, temos Geraldi (1996), para quem a apropriação da linguagem é “resultante da reflexão assistemática, circunstancial e fortemente marcada pela intuição de todo falante da língua” (p.129). Segundo o autor, todo falante realiza atividades epilinguísticas quando faz uso da língua, avaliando em tais momentos se os recursos expressivos utilizados “são apropriados para a ocasião, se exprimem o que se deseja, o que é preciso silenciar e o que é preciso dizer, quais os conhecimentos que é preciso tomar como compartilhados etc” (p.130). A escola estaria se inserindo, portanto, na contramão desse curso de aprendizagem e reflexão da/sobre a língua, posto que propõe soluções para problemas com os quais os alunos ainda não se depararam em suas vivências linguísticas. Assim, as atividades que envolvem o ensino da gramática normativa se apresentam “como a verdadeira e única reflexão sobre os recursos expressivos de uma língua” (p.130). Ao encontrar, nas aulas de português, uma exposição de regras previamente determinadas como verdades absolutas, que não respondem a muitas de suas perguntas acerca das funções da linguagem, dos diferentes tipos e usos da mesma, o aluno provavelmente questiona-se “Por que estou aprendendo essas regras?”, “Em que elas me ajudam?”, “A língua é apenas regras?”, e por fim, “Por que eu não aprendo português?”, como se a língua que ele deveria estar aprendendo na escola e a que ele usa em seu cotidiano não fossem variantes de uma mesma língua. Em oposição a esse ensino tradicional, Geraldi (1996) propõe um trabalho de reflexão sobre a língua que tome como ponto de partida as dificuldades dos próprios alunos (sejam elas meramente ortográficas, ou de construção textual), encontradas nas produções textuais dos mesmos. De forma geral, A crítica básica e fundamental dos linguistas ao ensino tradicional recaiu sobre o caráter excessivamente normativo do trabalho com a linguagem nas escolas brasileiras. Segundo essa crítica, as nossas escolas, além de desconsiderarem a realidade multifacetada da língua, colocaram de forma desproporcional a transmissão das regras e conceitos presentes nas gramáticas tradicionais como o objeto nuclear de estudo, confundindo, em consequência, ensino de língua com o ensino de gramática. 54

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Aspectos relevantes do ensino da língua materna, como a leitura e a produção de textos, acabaram sendo deixados de lado. (FARACO e CASTRO, 1999:180).

Para tais linguistas, o texto deve ser priorizado como unidade didática, visto que “ele é, de fato, a manifestação viva da linguagem” (FARACO e CASTRO, 1999:181). Por outro lado, há outros estudiosos que veem problemas também em tais propostas, como é o caso de Morais (2002). Tendo observado, no ano de 2000, professoras indicadas pela secretaria de educação do município de Recife como exemplos de docentes que vinham fazendo um trabalho considerado “inovador”, Morais percebeu que, num primeiro momento, os depoimentos das docentes demonstravam uma “sintonia com os discursos oficiais vigentes” (p.9), estavam, portanto, de acordo com a idéia de que se deve trabalhar a gramática de forma contextualizada, partindo-se de textos. Num segundo momento, ao falarem sobre os “temas ou objetos tratados como conhecimentos linguísticos” (p. 11) que elas tomavam como foco em suas aulas, as professoras tendiam a concentrar suas preocupações em questões próprias do ensino tradicional, tais como o uso de letras maiúsculas, ortografia, pontuação, tipos de frases, separação silábica e classes de palavras, embora a maioria tenha mencionado “tópicos relativos à leitura (...) e a aspectos da dimensão textual” (p. 11). Segundo o autor, um dos primeiros problemas que ele encontra na proposta dos linguistas estaria vinculado “à priorização do texto como unidade didática”. Para ele, A defensável ênfase no tratamento da dimensão discursiva parece alimentar uma secundarização de outras dimensões do objeto língua, criando-se um preconceito com situações que privilegiem a reflexão sobre aspectos ortográficos, morfológicos, sintáticos, etc. porque remeteriam, supostamente, ao que alguns especialistas interpretam como uma concepção de língua como „sistema em si‟.” (MORAIS, 2002: 4).

Para caracterizar o sujeito que reflete sobre a língua, baseamo-nos em Mendonça (2006), para quem a escola deve ter o objetivo de formar “usuários da língua”, e não, como tem tentado, vale salientar, sem sucesso, formar “gramáticos”. Assim, para a autora, a escola deve formar sujeitos “capazes de agir verbalmente de modo autônomo, seguro e eficaz, tendo em vista os propósitos das múltiplas situações de interação” com que se deparam cotidianamente (p. 204). No campo da avaliação, tomamos como referência a proposição de Hadji (1994), que defende a avaliação formativa em oposição à classificatória. A concepção formativa levaria à superação da avaliação da análise linguística baseada em questões que exigem do aluno apenas a identificação/reconhecimento de normas, questões estritamente estruturais, que não levam o aluno a refletir sobre a linguagem. Nesse caso, a atividade de análise linguística funciona como mero exercício de memorização, já que está fundada no paradigma estruturalista de linguagem. Por essa razão, as respostas dos alunos são sempre consideradas certas ou erradas, conforme um padrão preestabelecido. Assumindo, portanto, as concepções de língua como discurso, de texto como um todo significativo e de análise linguística como atividade de reflexão sobre a língua, e ainda tomando a avaliação como prática formativa e processual, passamos a investigar as práticas de avaliação de análise linguística encaminhadas nas salas de aula do ensino fundamental e médio. Metodologia A pesquisa foi realizada em uma turma do ensino fundamental (EF – 2º segmento) e em outra do ensino médio (EM), pertencentes a duas escolas públicas de Recife, município escolhido por estar envolvido com projetos desenvolvidos pelo Núcleo de Avaliação e Pesquisa 55

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Educacional da Universidade Federal de Pernambuco (NAPE-UFPE), através do qual se realizam avaliações de sistemas escolares e pesquisas diversas nas áreas de avaliação institucional e da aprendizagem. Quanto às escolas, escolhemos uma pertencente à rede estadual e outra de aplicação. A primeira delas faz parte de um grupo de escolas que poderíamos chamar de escola pública padrão, com todas as dificuldades estruturais e de corpo docente, altos índices de evasão, baixo rendimento escolar, histórico de vandalismo e violência. Já a segunda poderíamos chamar de escola pública referência, pois funciona como modelo de estrutura. O Colégio de Aplicação é campo de experimentação pedagógica, está estreitamente ligado às atividades e experiências realizadas pela universidade e, além disso, possui um projeto pedagógico e curricular no qual está previsto, para o alunado, o desenvolvimento de uma visão crítica em relação aos mais variados campos do conhecimento, além de testagem de hipóteses, domínio das várias linguagens e capacidade de compreender a sociedade na qual está inserido. Como visto, optamos por duas escolas com realidades distintas. Essa escolha foi proposital e motivada pela possibilidade de verificar quais fatores colaboram para o fracasso e quais fatores contribuem para um bom desempenho escolar. A opção pela inclusão, neste projeto, do nível médio de ensino deu-se principalmente porque pretendemos acompanhar como era encaminhada a análise linguística dos textos literários, tendo em vista que a literatura brasileira se constitui sistemática e legalmente em objeto de ensino-aprendizagem nessa modalidade de ensino. A coleta de dados foi realizada durante o mês de maio de 2009, na escola estadual, junto a uma turma do 2º ano do ensino médio, e, na escola de aplicação, no período de março a junho de 2009, no 8º ano do ensino fundamental. Durante a observação das aulas, prestamos atenção especial a questões como: o que é ensinado na escola como sendo análise linguística, como são abordadas as especificidades e a diversidade dos recursos expressivos, o que o professor elege como prioridade no processo de avaliação da análise linguística, e que competências, habilidades e saberes orientam esse processo. Observamos também os encaminhamentos metodológicos do ensino de análise lingüística e seus objetivos, os posicionamentos dos alunos em relação ao funcionamento e às peculiaridades da língua, bem como o trabalho de reflexão sobre a língua, desenvolvido a partir de textos literários. De posse dos dados, procuramos caracterizar as práticas docentes e identificar aquelas mais adequadas a uma visão de linguagem como discurso e que favorecem um trabalho de reflexão sobre a língua, contribuindo para que o aluno amplie seu conhecimento acerca do funcionamento da língua, em suas especificidades, variedades e contexto de uso. Resultados e Discussão Durante a coleta de dados, tivemos contato com dois professores que, de acordo com as observações realizadas, adotam posicionamentos diferentes frente às novas concepções de linguagem que circulam no discurso acadêmico, na área de ensino de língua materna e nos documentos oficiais. A seguir, de um lado, apresentaremos práticas que revelam dificuldades de adaptação a essas novas concepções (que redefinem objetos e metodologias de ensino) e, de outro lado, práticas que representam uma grande afinação com as novas teorias que assumem o texto como unidade básica do ensino de língua portuguesa, inclusive no eixo de análise linguística. Teceremos nossos comentários a partir de exemplos de situações de aula de cada um dos professores.

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O trabalho com análise linguística Exporemos a seguir duas situações de aula (uma de cada escola) em que foi trabalhado o eixo da análise linguística. Na escola da rede estadual, no dia 11/05/2009, por ocasião da ausência do docente do horário anterior ao da aula de português, a aula foi adiantada a pedido dos alunos. A professora de português, que estava regendo em outra turma nesse horário, propôs que os alunos do 2º ano respondessem uma ficha de exercícios (anexo 1) a título de reposição de aula. A docente estava, portanto, ministrando aula em duas turmas ao mesmo tempo (fomos informadas de que esse não foi um caso isolado e que é inclusive incentivado pela coordenação da escola, para que não seja necessária a reposição de aulas fora do horário original dos alunos). Destacamos que no momento da resolução do exercício a professora não estava junto à turma do 2º ano. A esse respeito concordamos com Kleiman (1997), quando afirma que o professor afirma seu papel de mediador ao interferir nas hipóteses levantadas pelos alunos, fazendo-os retornar ao texto para se certificar das suas interpretações ou recuar mediante um elemento formal que não autorize determinadas conclusões. Entendemos que a professora se absteve desse papel, por não estar presente na ocasião da resolução da ficha proposta. Retomando a discussão acerca dos problemas da escolarização ou sistematização da linguagem realizadas de forma “irracional” (GERALDI, 1996), vale destacar que, nas aulas anteriores à proposição da ficha de exercícios em questão (que trata dos conteúdos: funções da linguagem, figuras de linguagem, características do gênero textual anúncio publicitário, primeira geração do Romantismo brasileiro, substantivos), a mesma turma havia estudado termos integrantes da oração, e, nas aulas que se seguiram à correção da ficha, o conteúdo trabalhado foi verbo. Segundo a professora, os conteúdos da ficha foram estudados no ano anterior com os alunos do então 2º ano C, e como pudemos observar, os mesmos não foram retomados posteriormente. Lembramos que os conteúdos citados foram trabalhados de forma semelhante à da ficha em anexo: apenas com exercícios estruturais nos quais a análise é realizada tomando por unidade básica a frase, no caso, frases descontextualizadas. Como se pode perceber, não são preparadas atividades que desenvolvam os conteúdos próprios da gramática da língua de forma contextualizada e significativa para os alunos, nem são propostos projetos temáticos a partir dos quais o professor elegeria textos ligados a um mesmo tema que contemplassem tais conteúdos de forma a abordar efeitos de sentido, recursos expressivos, intencionalidade do autor, função social e características dos gêneros textuais. Acerca desse tipo de prática descontextualizada e com base no isolamento de unidades mínimas (palavra, frase), Mendonça afirma: O fluxo natural de aprendizagem é: da competência discursiva para a competência textual até a competência gramatical (...). O isolamento de unidades mínimas – que é a parte da competência gramatical – é um procedimento de análise e que só tem razão se retornar ao nível macro: na escola, analisar o uso de determinada palavra num texto só tem sentido se isso trouxer alguma contribuição à compreensão do funcionamento da linguagem (...). (MENDONÇA, 2006: 203)

A mesma autora defende ainda que não se deve excluir “a necessidade de sistematização na AL (leia-se análise linguística), já que, especialmente nessa etapa da escolarização (ensino médio), não há mais motivos para tratar os fenômenos normativos, sistêmicos, textuais e discursivos de forma intuitiva” (p. 204). Para tanto se faz necessário que “o trabalho com AL no EM parta de uma reflexão explícita e organizada para resultar na construção progressiva de

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conhecimentos e categorias” (grifo da autora) que expliquem os fenômenos linguísticos estudados em sala (id, ibid.). Apesar de na escola de aplicação termos observado aulas num oitavo ano do ensino fundamental, já percebemos nessas aulas a desejável reflexão explícita e organizada de que nos fala Mendonça (2006). A seguir, vejamos dois exemplos desse tipo de trabalho sistematizado e “racional” de reflexão sobre a língua, no qual os alunos são constantemente motivados a pensar. Primeiramente expomos três questões extraídas da “Avaliação de língua portuguesa” (anexo 2), realizada no dia 13/04/2009: e) Do ponto de vista gramatical, podemos dizer que o sujeito do verbo jogar, no trecho que segue, é indeterminado? Por quê? É cumprimentado, abraçado e eles começam a falar sobre os bons tempos em que ficaram ricos às custas do povo. Jogam uma partida descontraída e depois comem lagosta e caviar. f) Encontre três situações verbais em que o sujeito é desinencial. Por que será que o autor do texto escolheu expor assim o sujeito? Levante hipóteses. g) Leia o trecho: “Abrem a porta e o senador se vê no meio de um lindo campo de golfe. Ao fundo, o clube onde estão todos os seus amigos e outros políticos com os quais havia trabalhado, todos muito felizes.” Temos aqui um caso de sujeito indeterminado. Encontre-o, justificando sua resposta.

Destacamos, das questões acima, as solicitações claras de justificativa das respostas, através das quais o professor acompanha as estratégias e percursos de construção do conhecimento realizados por seus alunos. Esse tipo de questão exige do estudante uma disposição para a reflexão e para a compreensão dos próprios caminhos de estruturação do pensamento por ele percorridos, o que não acontece com as questões da ficha de exercícios distribuída aos alunos da escola estadual. Destacamos outra diferença fundamental entre as duas propostas relatadas: todas as questões da avaliação desenvolvida no CAp surgem de um texto e retomam esse texto, os alunos precisam voltar a ele para checar suas conclusões; a atividade de análise linguística estava, pois, atrelada ao eixo de leitura e também ao de produção textual, posto que as questões são discursivas. O mesmo não se observa nas questões da ficha proposta à turma da escola da rede estadual, que consistiam em questões estruturais descontextualizadas, trabalhadas apenas ao nível da frase e que não contemplam os demais eixos do ensino da língua. Assim nada avaliam além da capacidade de reconhecimento/identificação/reprodução de regras gramaticais pré-estabelecidas. Concordamos com Mendonça (2006) quando afirma que o trabalho exclusivo com o eixo análise linguística não se justifica mais nem pela “preparação para o vestibular”, visto que o mesmo tem seguido um movimento que tende a valorizar as habilidades de leitura e produção textual, em detrimento do conhecimento metalinguístico, o que quer dizer que o próprio vestibular tem privilegiado o saber do uso em vez do saber sobre a língua. Portanto, segundo a mesma autora, as atividades de análise linguística teriam como objetivo principal “contribuir para o desenvolvimento de habilidades de leitura/escuta, de produção de textos orais e escritos e de análise e sistematização dos fenômenos linguísticos” (p. 208). Finalmente relatamos as formas como tais exercícios foram retomados em sala após sua realização. Na turma do 2º ano (EM) a professora devolveu as fichas aos alunos e releu suas questões anunciando as respostas corretas, ao passo que no 8º ano (EF), no dia da entrega das avaliações (15/04/2009), houve um momento de discussão de cada questão em que os alunos puderam se colocar e expor suas dificuldades. Em seguida, as avaliações com resultado insatisfatório, face aos objetivos a serem atingidos pelos alunos da respectiva série (objetivos esses preestabelecidos no programa da disciplina), foram devolvidas aos alunos para refacção. O desempenho dos alunos é notificado pelo professor, que elabora um parecer avaliativo (sem 58

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notas ou conceitos) a cada bimestre. Entendemos que o professor afirma seu papel de mediador a partir do momento em que interfere nas hipóteses levantadas pelos alunos, fazendo-os retornar ao texto para se certificar das suas interpretações ou recuar mediante um elemento formal que não autorize determinadas conclusões (KLEIMAN, 1997). Vimos que isso acontece apenas na escola de aplicação, comparando-se as duas escolas. Salientamos, por fim, que a avaliação não deve ser concebida como forma ou tentativa de medir conhecimento, mas deve promover juízos de valor e apontar possibilidades de mudança (SUASSUNA, 2006). Análise lingüística: articulações com a literatura Tradicionalmente o ensino de língua e literatura vem sendo realizado de forma separada, seja de forma explícita, com professores distintos, seja de forma camuflada, com o mesmo professor que, por sua vez, separa essas duas facetas da linguagem. Acerca dessa prática dicotômica, cabe lembrar a questão levantada por Leite (2006), quando lembra que “o material com que trabalha a literatura é fundamentalmente a palavra e que, portanto, estudar literatura significa também estudar língua e vice-versa” (p.18). Logo, seu ensino não poderia estar dissociado do ensino de língua. Mas estamos cientes de que há várias concepções de literatura. Segundo a mesma autora, teríamos cinco acepções básicas: 1) literatura enquanto patrimônio cultural; 2) literatura enquanto sistema de obras, autores e público; 3) literatura enquanto disciplina escolar (história literária); 4) literatura como sendo o conjunto de obras consagradas como literárias pela crítica; e 5) “qualquer texto, mesmo não consagrado, com intenção literária, visível num trabalho da linguagem e da imaginação, ou simplesmente esse trabalho enquanto tal” (p.18). De acordo com a autora, apesar de a acepção ideal ser a quinta, pois ela entende a literatura como “trabalho com a linguagem”, observa-se que a escola vem trabalhando fundamentalmente com as acepções 1, 3 e 4. Abaixo relataremos duas situações de aula que revelam diferentes concepções. Na aula do dia 08/05/2009, a primeira por nós observada na escola da rede estadual, após a resolução de exercícios sobre os termos integrantes da oração, extraídos do livro didático1, a professora lembra aos alunos que os trabalhos de literatura sobre a prosa do Romantismo brasileiro serão apresentados na aula do dia 27/05/2009. Em grupos, os alunos deveriam pesquisar para expor para a turma o contexto histórico da escola literária, suas características, a biografia de um dos autores escolhidos pela professora2, bem como o resumo de um dos romances do autor correspondente a cada grupo (os alunos não necessariamente precisariam ler a obra sobre a qual iriam apresentar o resumo)3. No dia da apresentação, o horário da aula anterior havia sido utilizado para reposição; no quadro, havia três questões objetivas sobre orações coordenadas. O horário seguinte, próprio da aula de língua portuguesa, foi destinado à apresentação dos seminários. Poucos alunos apresentaram o trabalho de fato, em média dois de cada grupo (de seis integrantes), os demais leram papéis visivelmente improvisados e riam a todo o momento. Quando todos falavam, ficava claro que cada um havia estudado ou memorizado apenas sua parte. Em nenhum momento os alunos apresentaram para análise trechos das obras em que se verificassem as características do Romantismo. As apresentações sofreram várias interrupções por parte de alunos de outras turmas que entravam na sala para debochar dos amigos ou fugir de brigas. Após os seminários a professora pediu que os alunos resolvessem 1

Livro “Português: linguagens”, de William R. Cereja e Thereza C. Magalhães, para o 2º ano do ensino médio, vol. 2, Editora Saraiva. 2 Os autores escolhidos pela professora foram José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida e Visconde de Taunay. 3 A estrutura da apresentação sugerida pela professora foi a seguinte: 1º) contexto histórico, 2º) biografia do autor, 3º) resumo do enredo do romance, o que denota uma concepção de literatura como sistema de autores e obras, consagrados pela crítica literária, correspondente às acepções 2 e 4 descritas por Leite (2006). 59

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questões do livro didático; a atividade era basicamente ligar orações por meio de conjunções. Quando perguntamos à docente como ela avaliava os seminários, ela respondeu que a avaliação era individual e que ela levava em consideração a autonomia do aluno durante a apresentação. Vale destacar que a professora não participou do processo de elaboração dos seminários, nenhum momento de aula foi destinado ao acompanhamento da construção dos mesmos. Como visto, não houve trabalho de levantamento de conhecimentos prévios acerca do Romantismo brasileiro, não houve debate que abordasse a escola literária, nem durante nem após as apresentações, também não observamos um trabalho que vinculasse o estudo de literatura à reflexão sobre a língua, e, por fim, os critérios de avaliação não foram expostos aos alunos. A seguir, trazemos para análise uma situação de aula acompanhada na escola de aplicação, que obedeceu à seguinte ordem: a) os alunos do 8º ano leram uma breve biografia do compositor Assis Valente, b) ouviram uma de suas músicas (“... E o mundo não se acabou”), c) responderam às questões presentes na ficha elaborada pelo próprio professor (anexo 3). Seguem as questões: 1) Destaque elementos que expressam humor, na canção. 2) Quem anunciou que o mundo ia se acabar? 3) Que estrutura lingüística faz chegar à resposta da questão anterior? 4) De que outro modo você poderia causar o mesmo efeito? 5) A indeterminação, no seu entender, foi intencional? 6) Qual a classe social a que, provavelmente, pertence o eu lírico do texto? 7) Que extravagâncias foram feitas por causa da “profecia” e quais as suas consequências? 8) O que você imagina que o gajo disse “que não se passou”? 9) Veja a frase da canção: “Por causa disso nesta noite lá no morro não se fez batucada.” a) Quem fez batucada? b) Há outra forma de dizer a sentença sem alterar-lhe o sentido? c) Por que será que o autor, então, não a utilizou?

Os alunos estavam estudando o tema do Apocalipse e já haviam lido o texto O Ano XII, de Hilário Franco Jr., em casa, a pedido do professor. Destacamos, das perguntas presentes na ficha relativa ao autor Assis Valente, as de número 2, 3, 4 e 9, através das quais o educando é levado efetivamente a refletir sobre a língua e seus recursos expressivos, a discutir a motivação do uso de determinadas construções e a levantar hipóteses, que confirma ou não junto ao professor e ao texto. Acerca desse tipo de atividade, Mendonça (2006), em tabela ilustrativa das diferenças básicas entre “ensino de gramática” e “prática de análise linguística”, expõe uma distinção que nos parece importante apresentar. Segundo ela, enquanto o ensino de gramática assume uma “preferência por exercícios estruturais, de identificação e classificação de unidades/ funções morfossintáticas e correção”, a prática de análise linguística prioriza a proposição de “questões abertas e atividades de pesquisa, que exigem comparação e reflexão sobre adequação e efeitos de sentido” (p. 207, grifo nosso). Salientamos que a primeira aula por nós observada (11/03/2009) foi a que se seguiu às atividades de escuta da canção e de leitura do texto. Essa aula retomava exatamente o conteúdo termos integrantes da oração, mais precisamente sujeito indeterminado, sujeito desinencial e oração sem sujeito, cuja introdução já havia sido realizada através da letra da música de Assis Valente. O professor relembrou a história que a música contava, dizendo: “Ninguém quer dar uma notícia dessas (do fim do mundo). Por isso, a indeterminação dos sujeitos. Vamos ver isso...”. Em seguida os alunos respondem algumas questões do livro didático4. A partir das suas respostas, o professor vai levando-os a descobrirem 4

Livro “Português: linguagens”, de William R. Cereja e Thereza C. Magalhães, para a 7ª série do ensino fundamental. 60

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a norma. Na aula seguinte, eles alunos assistiram ao filme 2012 – O ano da profecia, e o tema continuou a ser trabalhado nas aulas posteriores. Dentre os principais objetivos estava o de que os alunos produzissem os próprios “Apocalipses”, ao fim do semestre.

Conclusões Como visto, estamos diante de duas práticas bastante distintas. De um lado temos uma reprodução dos moldes tradicionais do ensino de gramática, em que o trabalho com o eixo de análise linguística é reduzido a atividades de exposição unilateral de conceitos, cuja avaliação está baseada prioritariamente em exercícios de identificação de regras e estruturas. Principal alvo da crítica dos linguistas, tal prática denuncia uma visão de língua como código/ sistema de regras, como algo estático e imutável, perspectiva que frequentemente leva a uma concepção que toma o ensino de língua por ensino de gramática (FARACO e CASTRO, 1999). Em contrapartida, observamos um trabalho revelador de uma concepção de linguagem como forma de interação social, a partir da qual se constroem aulas cujo maior objetivo é o exercício de reflexão sobre a linguagem. Uma prática de produção de conhecimento conjunta e partilhada, que se desenvolve a partir de discussões e do levantamento de hipóteses sobre a língua. Aulas em que o estudo da língua está intimamente ligado ao estudo da literatura, posto que língua e literatura são feitas da mesma matéria (LEITE, 2006), e nas quais os três eixos do ensino de português (produção textual, leitura e análise linguística) estão presentes de forma articulada. Estamos cientes de que os profissionais do ensino envolvidos nesta pesquisa estão sujeitos tanto à interferência de “fatores externos à própria disciplina Português – fatores de natureza social, política, cultural”, quanto à interferência de “fatores internos à disciplina – fatores relativos ao estatuto da (sua) área de conhecimentos sobre a língua” (SOARES, 2001, p. 149). Entendemos, também, que os universos escolares em que estão inseridos os dois professores observados são bastante distintos e que as instituições afetam diretamente o trabalho realizado em sala de aula. Sabemos, por exemplo, que numa escola como a da rede estadual, cujos alunos não têm o hábito da leitura, numa escola na qual o próprio professor às vezes não tem clareza de como encaminhar um processo avaliativo, nem de como trabalhar os eixos do ensino da língua em conjunto, a atividade de ensino-aprendizagem fica comprometida. E, tendo visto o êxito atingido pela escola de aplicação, uma instituição que tem um alunado motivado, uma tradição na área da educação experimental, e principalmente, um projeto pedagógico e curricular orientador da prática docente, construído com a participação dos próprios professores, constatamos que as condições de trabalho a que estão submetidos os professores são decisivas para o sucesso ou o fracasso das práticas de ensino. Sentimos, portanto, a necessidade de se colocarem os professores (bem como os alunos) no centro da construção de qualquer política pedagógica, pois As únicas pessoas em condições de encarar um trabalho de modificação das escolas são os professores. Qualquer projeto que não considere como ingrediente prioritário os professores – desde que estes, por sua vez, façam o mesmo com os alunos – certamente fracassará. (POSSENTI, 2003:56).

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Referências FARACO, C. e CASTRO, G. de. Por uma teoria que fundamente o ensino de língua materna (ou de como um pouquinho de gramática nem sempre é bom). Em: Educar. Curitiba: Editora da UFPR, nº 15, p. 179-194, 1999. GERALDI, J. W. Ensino de gramática x reflexão sobre a língua. Em: Linguagem e ensino. Campinas, ABL/Mercado de Letras, p.139-136, 1996. HADJI, C. Avaliação, regras do jogo – das intenções aos instrumentos. Porto: Porto Editora, 4ª ed., 1994. KLEIMAN, A. Texto e leitor – aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1997. LEITE, L. C. de M. Gramática e literatura: desencontros e esperanças. Em: GERALDI, J. W. (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, p. 17-25, 2006. MENDONÇA, M. Análise linguística no ensino médio: um novo olhar, um outro objeto. Em: MENDONÇA, M. R. S. e BUNZEN, C. (orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, p. 199-226, 2006. MORAIS, A. G. de. Monstro à solta ou... “análise lingüística” na escola: apropriações de professoras das séries iniciais ante as novas prescrições para o ensino de gramática. Em: Anais da 25ª reunião anual da ANPED, Caxambu, p. 1-18, outubro de 2002. POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras, 10ª reimpressão, 2003. SOARES, M. Que professores de português queremos formar? Em: Revista Movimento, Rio de Janeiro, nº 03, p.149-155, maio de 2001. SUASSUNA, L. Instrumentos de avaliação em língua portuguesa: limites e possibilidades. Em: MARCUSCHI, Beth e SUASSUNA, Lívia (orgs.). Avaliação em língua portuguesa: contribuições para a prática pedagógica. Belo Horizonte: Autêntica, p. 111-125, 2006.

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AS POSSIBILIDADES DE LEITURA DA COMUNICAÇÃO PUBLICITÁRIA Milton Chamarelli Filho* Resumo: neste artigo, analisamos uma publicidade educacional da Rede Salesiana. Para procedermos à análise, utilizamos instrumentos das teorias semióticas da cultura, discursiva e peirceana. Nossa pretensão é antes propor um percurso de leitura de um texto publicitário a partir dos seus elementos constituintes, considerando-se que eles são ―signos plenos‖, ―com vistas a uma maior leitura‖ (BARTHES, 1990). Abstract: this article, we analyze an communication advertising of network Salesian education. To proceed to the analysis, we used instruments of semiotics theories: semiotics of culture, semiotics of discourse and Peirce‘s semiotics. Our intention is first to propose a course of reading a text ad from their constituents, considering that they are "full signs", "with a view to further reading" (BARTHES, 1990). Palavras-chave: semiótica; publicidade; educação Key-words: semiotics; advertising; education Considerações iniciais Há alguns anos, a propaganda de instituições de ensino particular passou a fazer parte dos meios de comunicação. Se antes esse espaço era predominante ocupado pelas publicidades de artigos tradicionais, tais como refrigerantes, automóveis e higiene pessoal, etc. atualmente, é grande também o número de escolas, cursos e universidades que anunciam seu ―produto‖: o ensino. Uma das possíveis causas dessa mudança diz respeito à importância que a educação institucionalizada passou a ter para a sociedade em geral e para a sociedade brasileira, principalmente a partir da década de 70 do século XX. Frente a um sistema educacional público marcado pelos altos índices de evasão e de repetência nas séries iniciais, o ensino particular tornou-se uma opção para aqueles que dispunham de poder maior aquisitivo para custear suas mensalidades. Não é difícil supor que a maioria dessas publicidades seja dirigida à classe média, na medida em que se supõe que as maiores ambições desta sejam a qualificação superior e profissional. Nesse sentido, a educação passa à condição de responsável pela ―garantia de um futuro‖ aos filhos dessa classe, visando-lhes fornecer uma posição social e financeira estável. Como consequência dessa mudança de importância sobre a educação, nasce a publicidade das instituições de ensino, e, ao passo que ela se torna um bem anunciado, passa à lógica da esfera publicitária, ou seja, passa a ser concebida como um produto ligado aos desejos de uma grupo consumidor, logo, passível de ser transformado em discurso que igualmente visa atender às expectativas de uma camada social. Como exemplo, podemos observar o nome estabelecimento escolares circulando na mídia como marcas. Nesta condição, passam a existir como nomes a serem lembrados pelos consumidores (índice de recall1), em virtude do investimento de marketing que faz com que existam na mente dos seus potenciais compradores, a partir dos valores que lhes são associados. É a partir desses valores que a publicidade constrói

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Doutor em Comunicação e Semiótica PUC SP - Professor Adjunto do Curso de Letras e do Curso de Jornalismo da UFAC [email protected]; [email protected] 1

Avaliação, por técnicas especiais, sobre a intensidade como um anúncio foi memorizado pelas pessoas que o leram, ouviram ou o assistiram pela televisão ou cinema. (ERBOLATO, 1968, p. 215.) 19

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seus textos, ―formados com vistas a uma maior leitura‖2 breves considerações de ordem teórica.

porque significativos

. Passemos a algumas

A leitura de uma publicidade3 A tradição ocidental, logocêntrica, imputou o caráter de leitura somente aos textos verbais, sem considerar que as outras manifestações culturais e a própria cultura pudessem, igualmente, ser tomadas como textos e que, portanto, pudessem ser lidos. A concepção sobre a leitura de outros signos que não os textos literários começa efetivamente a mudar com o nascimento da semiótica. A emergência dos processos sígnicos, que se inicia com a invenção da prensa móvel por Gutenberg e que tem seu ápice com o nascimento da fotografia e do cinema, torna propício o aparecimento dessa disciplina no início do século XX. À medida que os signos se multiplicam em profusão, em virtude dos processos de reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1982), começa igualmente a nascer uma consciência dos processos que passam a fazer parte da relação com a realidade (mediação), daí a mídia e o universo midiático que passam a constituir aquilo que o semioticista russo, Iúri Lótman, chamou semiosfera. Se coube antes à exegese, à hermenêutica e à filologia estabelecer ou compreender o estudo dos textos lavrados em linguagem verbal, agora cabe à semiótica o conhecimento de outros tipos de signo e o sentido que deles pode advir. A despeito de tradições diferentes e de desenvolvimentos teóricos distintos, o mérito da semiótica é mostrar que aquém e além da linguagem verbal existem estruturas sígnicas que também têm significação. No último quartel do século XX, o semioticista lituano de origem russa, Algirdas Julius Greimas (1986, p. 18), considera que a significação pressupõe: [...] a existência de descontinuidades, no plano da percepção e a desvios diferenciais [...] criadores de significação. [...] Nós percebemos diferenças, e, graças a essa percepção, o mundo toma forma diante de nós [...]. Um único termo objeto não comporta significação.

A significação existe como condição essencial à produção dos signos, na medida em que não há cultura sem signos. Significação significa produzir sentido para outrem a partir de signos que podem ser materializados em diversas linguagens, por exemplo: verbal (escrita, oral), icônica, gestual, etc. Logo, a significação está presente em todos os signos produzidos pelo homem. As linguagens se materializam em textos/discursos de natureza diversa como signos da nossa cultura e sociedade. Os textos, como objetos culturais e sociais, refletem os valores que nas culturas e sociedades são estabelecidos. É por meio dos valores — como dimensão diferencial inerente aos signos —, que agimos no mundo, e é por meio deles que o sentido e as tramas dos textos se estabelece, fornecendo-nos uma leitura (compreensão) do mundo em que vivemos, aptidão da semiótica: Mas, afinal, para que serve a Semiótica? Serve para estabelecer as ligações entre um código e outro código, entre uma linguagem e outra linguagem. Serve para ler o mundo não-verbal: "ler" um quadro, "ler" uma dança, "ler" um filme - e para ensinar a ler o

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Roland Barthes, em seu texto inaugural A Retórica da imagem analisa a publicidade de massas Panzani. Segundo Barthes, na publicidade os signos são plenos, porque são ―formados com vistas a uma maior leitura‖. (BARTHES, 1990, p. 28) 3 Não é nossa intenção fazer um levantamento sobre o histórico das publicidades sobre o ensino no Brasil; vamos tratar apenas de uma publicidade brasileira da Rede Salesiana de Ensino. 20

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mundo verbal com ligação com o mundo icônico ou não-verbal. (PIGNATARI, 2004, p. 20)

Nosso objetivo, portanto, nesse artigo, é sugerir um percurso de leitura de uma publicidade educacional. Entretanto, não tomamos por base somente uma teoria, por acreditarmos que uma análise não possa prescindir de conceitos operatórios de pontos de vista diferentes. Essa opção vai ao encontro daquilo que diz Semprini (1996) quando afirma que ―os instrumentos e métodos analíticos serão evidentemente escolhidos em função das características e propriedades do corpus‖. A publicidade que analisamos foi publicada na Revista Veja, edição n° 2080, de 1 de outubro de 2008. O anunciante é a Rede Salesiana de Escolas, que é administrada por um convênio entre duas ordens religiosas: Salesianos de Dom Bosco e nove inspetorias das FMA – Filhas de Maria Auxiliadora4.

Publicidade Rede Salesiana A publicidade A princípio, o que mais chama a atenção na publicidade da Rede Salesiana é o fato de existirem dualidades bem visíveis: o layout da página é dividido simetricamente; essa bipartição corresponde a duas cores distintas: o branco e o vermelho. A partir dessa divisão, temos a colocação de um desenho e de uma fotografia que se completam em proporção; temos também o título tipograficamente diferenciado e a imagem de um menino de um lado e do outro a disposição do texto, do slogan e do apelo.

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Fonte: http://salesianosdobrasil.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=174&Itemid=190 Texto: Respeito, cidadania, fraternidade e esperança são valores da Rede Salesiana de Escolas. Aqui o aluno se prepara hoje para o futuro, aliando teoria e prática em atividades aplicadas na vida. Com um projeto pedagógico inovador, as escolas da Rede Salesiana garantem uma educação completa, formando, desde cedo, pessoas que se destacam no mercado profissional. Cidadãos que contribuem para um mundo melhor. Comece, no presente, a construção do futuro de seu filho. Aluno salesiano: cidadão hoje e no futuro. Da educação infantil ao ensino médio. Garanta sua vaga! www.rse.org.br 21

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A opção por dualidades remonta à maneira de percebermos aspectos do mundo que nos cerca e da cultura que nos constitui. Compõe aquilo que o teórico Ivanov chamou universais da cultura, assim classificado por Ivan Bystrina pelo nome de binariedade: Mecanismo presente na conformação do corpo humano (dois olhos, dois braços, duas pernas, duas mãos, os dois lados do pulmão, etc.), nas linguagens (o dia e a noite, o sol e a lua, ontem e hoje, hoje e amanhã, o claro e o escuro, etc.) e determinante nas criações culturais (certo e errado, bonito e feio, puro e impuro, domínio e anarquia, espírito e matéria, etc.)5

Complementar ao conceito de binariedade é o de polaridade, do mesmo autor: Contida no binarismo, sinaliza os opostos. Nasce das situações práticas, da observação empírica da realidade e atribui valor positivo ou negativo a cada um dos elementos binários. Nascimento e morte, começo e fim, surgimento e desaparecimento, entre outros, são, polaridades que pontuam a fronteira de uma existência possível. 6

Como recurso aos traços binariedade e a polaridade, a publicidade da Rede Salesiana opõe: ―futuro e presente‖, no título; as cores branca e vermelha; o desenho garatujado e a foto do carro. Passamos assim a observá-la por signos que balizam a nossa percepção porque são eles que orientam a sua leitura. Vejamos o porquê disso. Comecemos pelo título. Com a função básica de ―identificar o público-alvo e despertar o interesse pela leitura‖ (SANT‘ANNA, 2000, p. 160), o título da publicidade preenche bem o seu papel, porque constrói uma definição por oposição temporal, antitética, entre presente e futuro, mas revela uma ambiguidade, porquanto que a palavra ―presente‖ pode também ter o significado de ‗mimo‘. Observe-se também o papel da dêixis ‗aqui‘ que, ao ancorar o enunciado, indica ‗a escola‘ ou a ‗Rede Salesiana‘, delimitando assim o universo de quem está apto a sintetizar o lapso temporal entre futuro e presente, anunciado pelo título. Convém ainda observar que a palavra ―futuro‖ ganha, nesse contexto, não apenas uma acepção de ‗tempo prospectivo‘, mas de ‗destino‘, ‗sorte‘, ‗fortuna‘. Passemos ao texto. O texto publicitário é o local onde são alocados os principais argumentos para persuadir o leitor. Naturalmente que ele é construído em função da imagem de um possível destinatário, aqui, no caso, os pais. Como não se trata de qualquer escolha que está em jogo decidir, mas sim sobre o futuro do(s) filho(s), a publicidade optou por utilizar um texto ―racional‖, que, segundo Sant‘anna (2000, p. 159): ―dirige-se à inteligência lógica dos fatos, descreve o produto, dá razões, vantagens tem fortes argumentos de vendas. Direto. Objetivo‖. Supomos que uma das formas de demonstrar essa racionalidade é construir um texto persuasivamente eficaz, com argumentos que possam estar bem concatenados. O texto, em seu início, lança mão de um efeito retórico, também conhecido como hipérbato, ao colocar: ―Respeito, cidadania, fraternidade e esperança são valores da Rede Salesiana de Escolas‖. Ao fazer a inversão da frase, coloca em evidência substantivos que têm uma forte carga semântica: ―Respeito‖, ―cidadania‖, ―fraternidade‖ e ―esperança‖. O recurso de trazer para o início da frase aspectos relevantes é repetido nas duas orações que se seguem: ―Aqui o aluno se prepara hoje para o futuro, aliando teoria e prática em atividades aplicadas na vida‖. ―Com um projeto pedagógico inovador, as escolas da Rede Salesiana garantem uma educação completa, formando, desde cedo, pessoas que se destacam no mercado profissional‖. Em ambos os casos, temos uma relação coesiva, porque tanto a advérbio ―aqui‖ como sintagma preposicional ―Com um projeto pedagógico inovador‖, remetem à ―Rede Salesiana de escolas, anunciada na primeira frase. Com esse efeito de inversão, focaliza-se o tema das orações: no 5 6

IASBECK, 202, p. 140. Idem, ibidem. 22

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primeiro caso, os quatro substantivos; no segundo, o advérbio, que é um dêitico, atualizando e ancorando o nome da escola; no terceiro, com o sintagma, que traz uma das propostas da escola: a inovação. Outro efeito coesivo também observado é a retomada da palavra ―pessoas‖ por ―cidadãos‖, em: [...], desde cedo, pessoas que se destacam no mercado profissional. Cidadãos que contribuem para um mundo melhor[...]. Do ponto de vista semântico, essa substituição provoca uma espécie de ―restrição do sentido‖, e, do ponto de vista discursivo, a opção por ―cidadão‖ pretende qualificar não qualquer ―pessoa‖, mas sim aquelas que poderão exercer plenamente seus direitos no futuro. No texto, a publicidade faz a interpelação aos pais pelo uso da função conativa: ―Comece, no presente, a construção do futuro de seu filho‖. Nesta frase, reafirma-se a posição do título: a relação entre presente e futuro, como uma opção que pode ser feita pelos pais, caso queiram garantir o futuro dos filhos. Reforça-se ainda, ao final, a mesma relação vista acima, porém com a focalização sobre ―aluno salesiano‖. Por fim, a chamada: ―Garanta sua vaga!‖ O último elemento textual é o slogan, cuja função é a de ser uma síntese conceitual da marca. Assim, segundo Hoff e Gabrielli (2004, p. 62): Slogan é uma fórmula concisa e marcante, facilmente repetível, que resume o conceito ou referencial – racional ou emocional – do produto/serviço ou da marca, e o comunica em linguagem publicitária, de modo a aproximá-lo do seu público alvo.

O slogan da publicidade da Rede Salesiana é ―Entusiasmo diante da vida‖. Convém conferir a etimologia e o significado da palavra ―entusiasmo‖, já que ela parece nos dar uma pista sobre a concepção da escola sobre a sua responsabilidade de ensinar, no que diz respeito à condução do aluno do presente ao futuro e do futuro como presente. Antes, porém, torna-se necessário asseverar que o estudo do étimo nos ajuda na medida em que Cada palavra tomada isolada, com efeito, contém uma série de sentidos potenciais, de conotações virtuais, de possíveis usos contextuais. Dessa bagagem de possíveis acepções, cada uma das quais se situa na origem de uma história virtual, no momento em que a palavra é inserida em seu contexto linguístico imediato, somente algumas são selecionadas. As outras tonalizações de significado deixadas sem efeito permanecem, por assim dizer, suspensas no ar, temporariamente anestesiadas, mas sempre prontas a ser chamadas na situação, caso as partes sucessivas do texto o exijam. (VOLLI, 2004, p. 155)

Os dicionários registram que a etimologia da palavra ―entusiasmo‖ vem do grego ‗enthousiasmós‘, significando ‗transporte divino‘ (HOUAISS). Registram também que ―na antiguidade significava exaltação, arrebatamento extraordinário daqueles que estavam sob inspiração divina‖ (AURÉLIO). Atualmente significa: ‗exaltação criadora‘, ‗admiração‘, ‗arrebatamento‘ ‗viva alegria‘, ‗júbilo‘; ‗dedicação‘. A idéia de ‗transporte‘ da palavra entusiasmo parece estar sintetizada no logotipo da publicidade da Rede Salesiana

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Se observarmos o logotipo acima, vamos perceber muitas semelhanças com a representação da sinuosidade de auto-estradas. Assim, supomos que a idéia de um ―transporte‖ ou mesmo de uma ‗admiração‘ ou ‗dedicação‘ ―diante da vida‖, na tarefa de ensinar — não nos esqueçamos que só quem pode entusiasmar-se são pessoas e não escolas — são os valores que estão corporificados no slogan e no logotipo da Rede Salesiana. Passemos agora às imagens, que serão analisadas em função dos quatro códigos nela presentes: tipográfico, cromático, fotográfico e morfológico7: No título, temos a utilização do tipo das letras diferenciado: em ―Aqui o futuro‖, temos um formato arial, mais retilíneo, sem serifa e, portanto mais sisudo, e em ―presente‖, temos um formato mais próximo de um estilo cursivo, manuscrito. Como os signos na publicidade, conforme afirma Barthes, são ―plenos‖ porque, de fato, devem ser legíveis o suficiente deve-se supor que a diferenciação entre os tipos de letra não é fortuito, mas vai ao encontro da intencionalidade de quem o criou, agência, a dupla de criação. As cores predominantes são o branco e o vermelho, sendo que esta se destaca mais por aparecer em um número maior de elementos, nos carros, no ―pano de fundo‖, no uniforme do menino e no logo da escola. Longe de esoterismos, acreditamos que algumas suposições sobre o significado das cores sejam válidas porque são signos dos quais se revestem nossas imagens, nossos símbolos culturais; logo remetem àquela categoria que Peirce denominou primeiridade, ou seja, aquela que evoca qualidades de sentimentos8. Assim, afirmamos, ainda que com certa prudência, que a cor branca representa a pureza; cor predominante no lado da fotografia em que está o menino. E a cor vermelha, onde aparece o texto da escola, representa liderança. A pureza do presente mais a liderança do futuro, presente também no logo da escola, como já observamos. No que diz respeito ao código fotográfico, o que se pode observar é que o menino da publicidade da Rede Salesiana é retratado em primeiro plano. Chama-se assim a atenção para ele, desloca-o para uma posição de destaque na publicidade. Com efeito, não se pode deixar de conjeturar que ele seja, ao mesmo tempo, uma representação de um aluno da escola e de um menino de classe média. A posição que o menino ocupa na publicidade leva-nos também a refletir diretamente sobre espaço que a sua imagem ocupa no layout da revista. Antes, porém, é necessário ressaltar quais procedimentos adotamos ao observar uma página: [...] é preciso levar em consideração que a vista do leitor foi educada para, numa folha escrita ou impressa, seguir uma diagonal desde o alto, à esquerda, até a parte de baixo, à direita. A primeira região que o nosso hábito de leitura nos compele a olhar, o alto à esquerda, é chamada de área ótica primária. A região que a vista tem a encarar como o fim da leitura, a parte de baixo à direita, é chamada área terminal. Ela é a meta que o leitor quer atingir, em uma leitura. No momento em que sua vista percebe a página, consciente ou inconscientemente, e começa ao alto à esquerda e vai até a área terminal. O caminho que une essas duas áreas de atenção é chamado de diagonal de leitura. É o percurso mais curto e direto, entre o começo e o fim de uma página. Isso, porém, estabelece um problema de comunicação visual, que precisa ser sempre resolvido: a diagonal de leitura tende a guiar o leitor para fora dos outros dois extremos da página, que são chamados de cantos sem atração; como todas as partes da página se afastam da diagonal de leitura, esses cantos tendem ser pouco vistos e lidos. Que fazer para atrair a vista do leitor para eles? A solução é utilizar recursos ótico-magnéticos, isto é, fotos, desenhos, quadros e títulos em letras grandes: ancorando os cantos sem atração, isto é, colocando neles elementos fortemente atrativos, o artista gráfico dá à página muito maior legibilidade do que aquela onde esses cantos não recebem a devida atenção. (SANT‘ANNA, 2000, p. 174)

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Terminologia utilizada por Gomes (2008). Não por acaso se fala de cromoterapia ou dos efeitos psicológicos desempenhados pelas cores, pela escolha das cores em símbolos, etc. 8

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Ao dar relevo aos cantos sem atração, o artista gráfico ou publicitário ocupou esses espaços com elementos significativos: o menino e a foto do carro. Acima, já fizemos algumas interpretações, mas o que as valida? A análise dos signos, principalmente os imagéticos, dá margem a muitas especulações. Pelo fato de não estarmos utilizando uma metodologia específica, algumas das nossas suposições podem tornar-se simples conjecturas. Observando outra publicidade da Rede Salesiana9, poderemos chegar a algumas conclusões e validar o que dissemos acima e sugerir algumas interpretações. Vejamos.

Publicidade Rede Salesiana Nesta publicidade, encontramos a maioria das estratégias que foram observadas na publicidade anterior: a divisão dos elementos na página, o tipo de letra usada no título, o recurso de colocar e completar desenho e foto, em simetria. O fato de as estratégias se repetirem sugere que as peças façam parte de uma campanha publicitária. O recurso à binariedade e à polaridade repete-se, como forma de marcar dois momentos: futuro e presente. Essa dualidade, marcada principalmente pela junção das imagens e das cores — não nos esqueçamos aqui que o azul representa ‗confiança‘ e ‗tranquilidade‘ — é criada pelo fato de a publicidade poder funcionar como uma espécie de ―auxiliador da busca‖ 10, entre necessidade criada e um desejo a ser alcançado, mediados pelo produto que atua na síntese entre esses dois momentos por ela criados, representados. Há uma repetição, há uma redundância de elementos que remetem a essa tarefa da Rede abreviar esses dois tempos; o que significa que os signos dessa publicidade são redundantes, ao que podemos chamar de isotópicos. Segundo Greimas (apud VOLLI, 2007, p. 86), a isotopia diz respeito a ―um conjunto de categorias semânticas redundantes, que tornam possível a leitura uniforme da história‖, ou seja, à recorrência de vários níveis da mensagem, garantindo-lhe coerência. Mas, por que a escolha dessa categoria? Uma espécie de índole da publicidade é da fazer, conforme Barthes anunciou, com que seus signos sejam plenos ―com vistas a uma maior leitura‖. Nesse sentido, os signos que encontramos nessas publicidades são redundantes. Segundo Iasbeck (2002, p. 99), ―a redundância ocorre para não demandar muito esforço do receptor na leitura da mensagem‖ e 9

Disponível em: http://www.rse.org.br/portal/?grupoId=24. Além dessa peça e da anterior aqui observada, encontramos no site mais quatorze publicidades que fazem parte da campanha 2007-2008. 10 Charaudeau, 1982. 25

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segundo Machado (apud IASBECK, 2002, p. 99), para ―garantir que a comunicação vai ocorrer, apesar de todos os ruídos degeneradores do ambiente‖. Em suma, a isotopia, por meio da redundância, assegura a leitura da mensagem através da reiteração de categorias semânticas, garantindo a unidade do texto (VOLLI, 2007, p. 86). O fato de nessas publicidades termos signos que remetam a um traço semântico de transição entre dois momentos (a divisão das colunas, as duas cores, os dois desenhos) faz com que esses textos sejam redundantes, sejam isotópicos. A Rede é responsável por realizar a equação: futuro = presente (―o futuro é presente‖). A frase, porém, não está ancorada em nenhuma temporalidade específica, na medida em que em dimensiona o futuro na perspectiva do hoje, que tanto pode ser o presente do momento em que se abre a revista e se toma conhecimento da publicidade (ou que se de desenrola a partir daí) ou ―presente da consciência‖, a partir do qual se poderá divisar o futuro dos filhos. Pode-se também depreender da frase o sentido de ‗o futuro é (está) presente‘, ou seja, o futuro, com toda conotação de um tempo vindouro, de realização, de conhecimento e uso de tecnologias, que acontece agora na Rede Salesiana. Dessa forma, a publicidade, ao mesmo tempo em que reafirma os valores de classe média, ao oferecer a educação aos filhos como presente para um futuro, cria uma necessidade de se buscar o futuro no agora ou no que este lhe pode fornecer pelo conhecimento do que dele pode sobrevir, mas que se concretiza a partir de hoje (marco temporal físico (do conhecimento da publicidade em si) e psíquico, na medida em que esta passa a existir como efeito na consciência que se propõe como uma inalienável fronteira do inaudito, semelhante às publicidades de novos produtos e/ou serviços em que se instauram pressupostos a partir de ―agoras‖. Considerações finais A criação uma necessidade por meio de signos, que indica a síntese de uma demanda temporal, deve sugerir aos pais um ―estar a par‖, um ―certificar-se‖ de que seus filhos terão uma educação mais qualificada agora (pela presentificação do futuro, e, no futuro, como consequência). E é esse processo que, ao mesmo tempo dimensiona a busca de um presente (no) futuro ou de um futuro (no) presente, fazendo ceder a consciência da falta ao passado. Se o ―futuro é presente‖, não se pode perder tempo. Você deve: ―Entrar‖; logo: ―Garanta a sua vaga!‖. REFERÊNCIAS BARTHES, R. O óbvio e obtuso. Trad. de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BENJAMIM, W. ―A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica‖. In: LIMA, L.C. (Org.) Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. CHARAUDEAU, P. Éléments de sémiolinguistique d‘une théorie du langage à une analyse du discours. In: Connexions nº 38, Paris: ARIP-EPI, 1982. p. 7-30. ERBOLATO, M. L. Dicionário de propaganda e jornalismo. Campinas: Papirus, 1986. GOMES, N. D. Publicidade: comunicação persuasiva. Porto Alegre: Sulina, 2008. GREIMAS, A.-J. Semântica estrutural. Pesquisa de método. Trad. de Hakira Osakabe. São Paulo: Cultrix, 1986. HOFF, T.; GABRIELLI, L. Redação publicitária. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. IASBECK, L. C. A arte dos slogans: as técnicas de construção das frases de efeito do texto publicitário. São Paulo: Annablume, 2002. PIGNATARI, D. Semiótica e literatura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. SANT‘ANNA, A. Propaganda: teoria, técnica, prática. São Paulo: Thomson Learning, 2000. VOLLI, U. Manual de semiótica. Trad. de Silva Debetto C. Reis. São Paulo: Loyola, 2004. 26

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