Revista Dramaturgias 1(2016) / Journal Dramaturgies 1(2016)

Share Embed


Descrição do Produto

D R A M AT U R G I A S

Apresentação

Uma Nova Revista? Marcus Mota

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Uma nova revista?

Sim, e vou explicar por quê.

Apresentação

2

Primeiro, o conceito de dramaturgia. Desde fins do século XIX, a atividade de dramaturgia tem passado por redefinição de seu escopo. A narrativa predominante que procura tornar compreensível tal processo nos conta o seguinte: o modelo linear ou fordista de processos criativos para a cena no século XIX fora questionado por diversos teatrólogos, entre eles Meyerhold1. Ou seja, no lugar da pretensa centralização na figura do dramaturgo das atividades de proposição e organização de um evento multissensorial para uma recepção, outros agentes do processo criativo começaram a reivindicar um papel mais ativo. Não que não estivessem ativamente vinculados. A questão residia em articular essa função de modo mais efetivo, problematizando tanto relações de poder e noções de autoria quanto formas de expressão e recepção. Bem essa é uma das possíveis narrativas... De qualquer forma, o século XX viu essa redefinição tornar-se exponencial, com a existência de, entre outras, dramaturgia da direção, dramaturgia da dança, dramaturgia do ator, dramaturgia da luz, e assim por diante2. Ou seja, a função-dramaturgia foi apropriada e resignificada, não residindo mais nas mãos daquele que escreve textos para a cena. (Mas será que sempre foi assim?!!!) Pode parecer, em um primeiro momento, paradoxal isso de ‘dramaturgias de não dramaturgos’, ou dramaturgos de outras dramaturgias. Tudo muda a partir da perspectiva em que a questão é colocada3. Por exemplo. Há tradições teatrais em que a função-dramaturgia encontrou uma ou-

1 Especialmente em seu texto de ‘História e Técnica do teatro’ (1907), incluído como primeira parte do livro Do teatro (1912). Recente tradução do livro para o português foi realizada por Diogo Moschkovich (Iluminuras, 2014). Sigo tradução de B.Piccon-Vallin ( L’Age D’Homme, 2001). Ainda para a narrativa em torno da ampliação do conceito de dramaturgia, v. a obra coletiva De Quoi la Dramaturgie Est-Elle le Nom (L’Harmattan, 2014). 2 Digno de nota é o incremento de publicações em torno da dramaturgia da dança, como se vê no livro de K. Profeta, Dramaturgy in Motion (University of Wiscounsin Press, 2015); e no organizado por P. Hansen e D. Callinson, Dance Dramaturgy: Modes of Agency, Awareness and World Chereopgraphies ( Palgrave Macmillan, 2015). Isso sem contar com uma tradição independente, pelo menos desde o Renascimento Italiano, sobre dramaturgia musical. Veja-se, por exemplo, a obra Musique et dramaturgie ( Publications de la Sorbonne,2003), editada por Laurent Feneyrou. 3 Há sempre o ponto de vista dos dramaturgos, daqueles que tecnicamente escrevem para a cena, demonstrando uma revitalização de sua atividade, com o recurso a diversos e novos processos escriturais, como se vê na coletânea de textos da Theaterschrift 1994,vol 5-6; nos artigos e livros de Sarrazac, como L’Avenir du Drame (L’Aire,1981) ou Poétique du drama moderne (Seuil,2012); D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Apresentação

4 Para esforços de contextualização do conceito de dramaturgia a partir de teatros nacionais, ver, de K. Trencsényi e G. Proehl, Dramaturgy in the Making (Bloomsbury Methuen Drama, 2015), que reelabora e amplia questões presentes no livro Dramaturgy: A Revolution in Theatre (Cambridge University Press, 2006), de M. Luckhurst, este mais vinculado ao contexto britânico, como o livro Dramaturgy and Performance, de C. Turner and S.Behrndt, (Palgrave Macmillan,2008). 5 V. J. Danan Qu’Est-Ce que la Dramaturgie? (Actes Sud-Papiers,2010). Como reação a essa dicotomia, v. artigo de M. Zenelak “Why We Don’t Need Directors: A Dramaturgical/Historical Manifesto” Theatre Topics 13(2003):105-109. 6 Veja-se o caso de uma dramaturgia do cinema a partir da dramaturgia do drama clássico ateniense, tomado como princípio estético por Jean Mitry em Esthétique et psychologie du cinéma (Cerf, 2001), reformulando, para isso, os conceitos de Eisenstein. 7 Como se observa a lista de vencedores dos Concursos Trágicos na Crônica de Paros. Conf. clássica edição de F.Jacoby Das Marmor Parium (Weidemammsche, 1904).V. link http://www.ashmolean. museum/ash/faqs/q004 . Para mais dados/documentos das Grandes Dionisíacas, v. a obra de E. Csapo e W. Slater The Context of Ancient Drama (Michigan University Press, 1994). Para o público em língua portuguesa, consultar a obra de I. Castijo, O teatro grego em contexto de Representação ( Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

3

Apresentação

tra abordagem, como no caso alemão4. Fundamental para isso é o caso do polímata G. E. Lessing (1729-1781), que tanto elaborou textos para teatro, quanto escreveu textos de teoria e crítica teatral. A partir desse desdobramento, principalmente, desenvolveu-se a distinção entre a função-dramaturgia e a função-dramaturgismo: a primeira relacionada ao ato de escrever textos para a cena; e a segunda, de colaborar em produções teatrais, por meio de traduções, escolha de textos, análises textuais, contextualizações históricas, entre outras atividades. Na tradição alemã, a profissionalização dessas distinções dramatúrgicas nos colocam diante do dramaturgo e do dramaturgista. Mesmo se essas funções possam até serem realizadas pela mesma pessoa em outras tradições, a distinção possibilitou uma fenomenologia ou compreensão mais detida daquilo que passa pela escrita de textos mas que atravessa e arregimenta diversas habilidades e saberes5. A tradição ateniense sempre é referida para se abalizar o sentido de ‘dramaturgia6’. Mas entre a palavra e o conceito se interpõe a dinâmica histórica. De fato, nem Ésquilo, nem Sófocles, nem Eurípides foram conhecidos como ‘dramaturgos’ durante o tempo em que viveram ou em período próximo subsequente. Como Homero e outros que se valiam da cultura performativa (Mousiké) para apresentar seus materiais diante de uma audiência, eles são chamados de poiētés. E, no caso específico da dramaturgia ateniense, eles são denominados de chorodidaskalos7. O segundo termo se diz respeito a alguém contratado para treinar o coro, ensinar os movimentos e as canções que serão performadas para o público. Nos primeiros tempos dos concursos trágicos (Sec. VI .C), pelo menos até Ésquilo (Sec. V. a.C.), o diretor do coro também providenciava os versos das partes faladas e das partes cantadas/dançadas. Já poiētés, alinha artistas e artesãos de diversas tradições e modalidades - performers, agricultores, ferreiros - que se exercitam em atividades de produção materialmente con-

Marcus Mota

Apresentação

4

dicionadas8. Assim, apenas interrogar o vocábulo em si em nada nos esclarece sobre a amplitude de usos do termo9. ‘Dramaturgia’ é um termo tardio, antecedido por toda uma cultura que se expressa performativamente e que encontrou nos concursos trágicos em Atenas uma entre suas possibilidades de exploração de diversas tradições performativas anteriores (rapsódia, lírica coral, lírica monódica, Ditirambo, etc) e que no curso de sua existência efetivou modos de composição e produção de espetáculos que foram alterados, tanto quanto o foi sua recepção10. Mais que a composição linguística do termo ‘dramaturgia’, interrogando o que de fato fizeram Ésquilo, Sófocles e Eurípides, entre outros, podemos perceber que as demandas de uma atividade multitarefa e interartística são seu horizonte. A fluidez e ampliação dos usos de ‘dramaturgia, não se confinam a um resgate desse modelo plural: antes, há uma fluidez e heterogeneidade do próprio campo ou intercampo das artes performativas e da compreensão da complexidade na produção de conhecimentos e vínculos. Assim, algo que foi compreendido como a atividade de ordenar um evento em suas partes constituintes encontra-se agora envolvido tanto nas diversas etapas de um processo criativo (composição, realização, recepção, produção), quanto nas mais diversas modalidades de práticas artísticas e intelectuais. Provocativamente também, a maior adesão ao conceito de ‘dramaturgia’ acaba por demonstrar um certo esgotamento de concepções solipsistas das artes da cena, que privilegiam a atuação e o trabalho do ator sobre e a partir de si mesmo como horizonte quase que exclusivo do processo criativo teatral. Ao lidar com sínteses recursivas entre pensamento e ação, planejamento e realização, a atividade dramatúrgica proporciona àquilo ao que se conjuga uma dimensão integrativa, reparadora, proporcionando uma correção de estratégias essencialistas e abstratizantes. A partir de procedimentos de arranjo, montagem, redistribuição, a atividade dramatúrgica coloca tudo em jogo e por isso ultrapassa dicotomias estéreis e irrefletidas, zonas de conforto e embuste. Não seria, pois, a atividade 8 Sobre o termo, consultar, de P. Acton, Poiesis. Manufacturing in Classical Athens (Oxford University Press, 2014); de P. Wilson, The Athenian Institution of Khoregia ( Cambridge University Press, 2003); de M. Finkenberg, The Birth of Literary Fiction in Ancient Greece ( Oxford University Press, 1998). 9 As atestações do termo se encontram nas obras: 1- Geografia, de Estrabão (64 ou 63 a.C - 24 ); 2- Meditações, de Marco Aurélio (121-180); 3- Sobre a Pantomima, de Luciano( 125-180); 4História da Igreja, de Eusébio de Cesaréia (265-339). ‘Dramaturgia’ é composto por Drama(t) + ergon/energeia, como o famoso vocábulo ‘platônico’ Demiourgo (dēmio + ergon/energeia). Em sua imediata linguisticidade, ‘dramaturgia’ refere-se a ações/acontecimentos organizados para sua apresentação, Drama(t), e ao trabalho de elaboração dessas ações/acontecimentos, ergon/energeia. Nesse sentido, temos o termo também tardio dramatopoiós, drama (t) + poiein, que indica ‘aquele que elabora dramas’. 10 Sobre a dinâmica de tradições da Mousiké, ver: de L.A. Swift, The Hidden Chorus (Oxford University Press, 2010); J. Herington, Poetry into Drama: Early Tragedy and the Greek Poetic Tradition (University of California Press, 1985); D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Apresentação

11 Outro esforço, em menor escala, é o de K. Trencsényi e B. Cochrane em New Dramaturgy: International Perspectives on Theory and Practice (Bloomsbury Methuen Drama, 2014). 12 E. Goffmann Os Quadros da Experiências Social (Editora Vozes, 2012,p.30). Ainda neste linha, temos: Life as Theater: A Dramaturgical Sourcebook (De Gruyter,2005), editado por D.Brissett e C. Edgley; e The Drama of Social Life: A Dramaturgical Handbook ( Routledge, 2013), editado por C. Edgley. 13 Algumas dessas ferramentas se encontram em obras como: G. Freytag, Die Technik des Dramas ( S.Hilzel, 1863); M. Pfister The Theory and Analysis of Drama. (Cambridge University Press, 1988); P. Castagno, New Playwriting Strategies. (Routledge, 2001); organizado por J-P. Sarrazac, Léxico do Drama Modernos e Contemporâneo (Cosac&Naify,2014); K. Stutterheim, Handbuch Angewandter Dramaturgie: Vom Geheimnis filmischen Erzählens, Film, TV und Games. (Peter Lang, 2015). É preciso diferenciar obras que de fato problematizem os conceitos e as experiências em dramaturgia e outras que prescrevem concepções e condutas de escrita para a cena, muitos delas vazadas a partir de uma apreensão bem seletiva da Poética de Aristóteles.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

5

Apresentação

dramatúrgica, retomando o estilo de Gaston Bachelard, uma reimaginação do mundo? O mais recente exercício enciclopédico de dar conta da expansão do conceito de dramaturgia reside no The Routledge Companion to Dramaturgy (Routledge, 2015) A editora desse companion, a dramaturga e pesquisadora Magda Romanska, apresenta uma heterogeneidade de práticas associadas às práticas dramatúrgicas. Temos desde novas formas de escrita dramatúrgica a práticas artísticas fronteiriças e/ou híbridas nas quais a dramaturgia com ou sem escrita está presente. Assim, dramaturgia musical, dramaturgia em teatro de animação, dramaturgia digital, dramaturgia fílmica, dramaturgia de jogos de computador (games), encontram-se lado a lado com discussões sobre atividades tradicionalmente vinculadas ao dramaturgo textual, como adaptação e tradução de obras, pesquisa de contextualização ou pré-produção de espetáculos, dramaturgias colaborativas e/ou coletivas, entre outras11. Além desse influxo mesmo das artes da cena, temos uma já longa presença do conceito de dramaturgia nas Ciências Sociais, especialmente nos trabalhos instigantes e exploratórios de E. Goffman. Retomando um apelo presente desde Platão e sua análise e crítica da espetacularização de Atenas, tais estudos investigam outras dramaturgias, as das relações interpessoais, mais especificamente: “minha perspectiva é situacionista, o que significa aqui um preocupação com aquilo a que um indivíduo pode estar atento em determinado momento, e isto muitas vezes envolve alguns outros indivíduos determinados e não se restringe necessariamente à arena mutuamente controlada de um encontro face a face”12. Desse modo, a dramaturgia comparece duplamente como uma ferramenta de produção e análise de eventos observáveis. As infindáveis divergências entre métodos e pressupostos que se valem de dados e formas dramaturgicamente orientadas catapultam o conceito/experiência para o intercruzamento e entrechoque de diversas tradições intelectuais e estéticas13. Ou seja, eventos da vida social podem ser organizados e analisados dramaturgicamente, e eventos estéticos dramaturgicamente organizados expõe-se como

Marcus Mota

Apresentação

6

procedimentos dramatúrgicos que pode ser elaborados e interpretados. Assim, não é vão que em meio à discursividade cada vez mais abstrata e autoreferencial de grande parte das chamadas Humanidades, podemos perceber, na contramão, uma cada vez mais intensa presença de referências à dramaturgia. Atravessando séculos nas obras restantes de autores como Ésquilo, Aristófanes e Shakespeare, como fósseis de uma vida social em volta do palco, a experiência dramatúrgica nos apela para algo que não se detém, que não se circunscreve ao que eu venha dela enunciar. Dar vozes e corpos a outros, fazer outros entrarem em um estado imaginativo complexo, manipular tempos e espaços - tudo isso e muito mais movimenta a prática dramatúrgica como uma modelização de mundos possíveis, de possibilidades, de descoberta e compreensão de nosso finito estar aqui. Segundo, o Laboratório de Dramaturgia (LADI)14. A Revista Dramaturgias tem como locus de partida as pesquisas e produções artísticas que, a partir do LADI, tornaram possíveis os diversos contatos com os colaboradores da revista. A opção de partir não de um Programa de Pós-Graduação e sim de uma outra modalidade de organização de pesquisadores e artista objetiva: 1- promover um fórum para artistas, pesquisadores e estudantes envolvidos de fato nas especificidades da redefinição do escopo da dramaturgia; 2- capacitar este fórum, para que seja ágil, formativo e plural em suas manifestações; 3- documentar e disponibilizar as atividades do LADI. O LADI foi formalizado em 1998 no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília para, inicialmente, prover um suporte mínimo para as atividades de pesquisa e produção de textos para espetáculos, muito, naquele momento, em função das demandas da graduação em Interpretação Teatral. Com o passar dos anos principalmente a partir do envolvimento na produção e realização de obras dramático-musicais, o LADI ampliou seu raio de ação, agregando atividades já consolidadas em outras novas. Assim, temos uma coerente tradição a partir do LADI de estudos de Recepção Clássica, de dramaturgia musical e de análise de textos teatrais. Parcerias e colaborações fundamentais como Hugo Rodas e Márcia Duarte fizeram com que o LADI enfrentasse as implicações de um descentramento da palavra ou, melhor, um reencantamento com a escrita e com a palavra falada, o que determinou uma maior flexibilidade nas ideias e nas ações desenvolvidas. Além dessa parcerias imediatas em processos criativos, o LADI se envolveu em atividades como: a- tradução de textos teatrais15; 14 Sobre o LADI, v. meus textos: 1- “Teatro musicado para todos: Experiências do Laboratório de Dramaturgia-UnB”, Revista Participação 25(2014):80-96. Link: http://periodicos.unb.br/index. php/participacao/article/view/11534; 2- “Teatro Musicado, Roteiro Diagramático e Seminários Interdisciplinares: Experiências em Pesquisa,Ensino e Criação no Laboratório de Dramaturgia da UnB”, Revista Cena 19 (2016). Link: http://www.seer.ufrgs.br/cena/article/view/60710/37722 . 15 Exemplo de disso são as traduções das obras de F. Garcia Lorca, publicadas pela Editora UniverD R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Apresentação

E chegamos a 2016. Por uma conjunção de datas, temos neste ano os 400 anos de morte de Shakespeare e Cervantes, além dos 80 anos do assassinato de F. Garcia Lorca, todos dramaturgos na acepção mais usual do termo. Nada mais auspicioso então que começarmos por um deles, o bardo inglês, como material para o dossiê temático deste primeiro número da Revista Dramaturgias. sidade de Brasília ( Assim que passarem cinco anos, Yerma, A casa de Bernarda Alba e o livro de ensaios Conferências, todos em 2000) e os textos de Ésquilo ( Sete Contra Tebas e As Suplicantes). 16 Tais pesquisas e estudos se manifestam de dezenas de artigos e alguns livros publicados, com financiamento de órgãos como DPP-UnB, Capes e CNPq. Para os textos, v. www.brasilia.academia. edu/MarcusMota . 17 A primeira parte desses mais de 40 textos teatrais se encontra publicada em A Trágica Virtude. 26 exercícios não lineares para a cena. (Editora PPG-Arte,2013), a partir de recursos do FAC (Fundo de Arte e Cultura do Distrito Federal). Para o primeiro texto elaborado por mim, ‘O filho da Costureirra’, veja o blog http://ofilhodacostureira.blogspot.com.br/ . 18 Sobre David, veja a interface online com textos, playbacks, vídeos e partituras: http://www.quasecinema.org/david/index.html , desenvolvida com o multiartista e pesquisador Alexandre Rangel, a partir de projeto financiado pelo CNPq.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

7

Apresentação

b- pesquisas sobre a recepção de dramaturgias históricas, como o teatro grego e o teatro shakesperiano, além de textos outros envolvidos em atos/culturas performativamente orientados, como Homero, Heráclito, Platão, e Romance Grego, além de narrativas como a de Adonias Filho16; c- elaboração de textos teatrais, iniciada em 1996, a partir de demandas de TCCs, depois como provimento de obras para artistas, grupos e produções profissionais17. d- direção, produção e redramaturgização de espetáculos dramático-musicais, com remontagem de óperas como Bodas de Fígaro, de Mozart (2004), e Carmen, de Bizet (2005), entre outras. Não se tratava de apenas realizar a direção artística dessas obras de repertório: havia a pesquisa da bibliografia de cada obra, a determinação do conceito de cada montagem, as transformações nos papéis e cenas (cortes, acréscimos, alterações, transformações de papéis cantados em falados e vice-versa), elaboração das notas de acompanhamento do processo criativo (notas da direção) que, posteriormente, subsidiariam o Guia do Espetáculo. e- dramaturgia musical, com elaboração de texto e música de espetáculos, como os de Saul (2006), No muro. Ópera Hip-hop (2009/2010) e David (2012), entre outros)18. f- organização/curadoria de eventos artísticos e/ou acadêmicos, como a mostra teatral e seminário A experiência da Cena (CCBB-Brasília,2006), Seminário Internacional de Teoria Teatral I e II (UnB,2010,2013); I Seminário Internacional de Artes Integradas (UFG,2013); e o I Festival Internacional de Teatro Antigo (UnB/SBEC 2013). A partir do volume dessas ações e dos intercâmbios decorrentes, a publicação desta revista busca consolidar parcerias e disponibilizar as experiências realizadas nesses anos de trabalho incessante.

Marcus Mota

Apresentação

8

Para tanto, a primeira parte da revista se organiza em torno de Shakespeare, em um dossiê temático organizado pelo artista, gestor cultural, tradutor, pesquisador e professor Márcio Meirelles, vinculado ao Teatro Villa Velha, em Salvador19. Com uma imensa paixão pelas obras do Bardo inglês, Márcio Meirelles tem conduzido regularmente diversas montagens e diálogos com os textos de Shakespeare, principalmente em função das atividades da Universidade Livre. O enfrentamento dos textos de Shakespeare é parte do currículo na formação dos artistas da Universidade Livre. Nessas montagens, Márcio Meirelles se alia a especialistas das obras que analisa. E foi o diálogo com o tradutor, pesquisador e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que determinou a composição de grande parte deste dossiê Shakespeare que ora se publica. Os diálogos e parcerias que Márcio Meirelles realiza podem ser compreendidas em função das complexidades e relevância do dramaturgismo em processos criativos: a exploração das especificidades formais e de conteúdo da obra escolhida necessitam esclarecimentos de especialistas. Tais esclarecimentos são transformados em impulsos para atos criativos, para decisões que permeia as diversas dimensões de se propor e realizar uma obra multidimensional para a cena. A aproximação entre textualidade e suas possibilidades de interpretação e recriação se mostra nas artigos que compõem o dossiê, direcionados para diversos aspectos da recepção da obra de Shakespeare, por meio de intertextos com obras obras, tradições e mídias, como o cinema. Assim, os artigos tanto contextualizam as produções shakesperianas analisadas, quanto apontam para a renovação das interpretações e leituras dessas obras. Desse modo, a criatividade de Shakespeare se manifesta na concriatividade de seus leitores20. A segunda parte da Revista Dramaturgias entra no espírito comemorativo em torno de Shakespeare, disponibilizando materiais sobre a presença de Shakespeare no LADI. Os estudos das obras de Shakespeare e elaboração e montagem de espetáculos a partir dessas obras foram um dos eixos criativos do LADI. Em virtude do espaço, o foco desta seção reside em apenas um dos exemplos desse confluência criativa: o texto da peça Iago, que estreou na mostra teatral e seminário A experiência da Cena, no CCBB-Brasília, em 2006. Texto, ensaio, música são aqui reunidos. Em sequências, temos algumas outras seções fixas da Revista Dramaturgias. Primeiro, é o caso de um diário elaborado por Hugo Rodas, com ideias e reminiscências, uma memória do futuro. Este espaço recorrente da revista é dedicado ao meu mestre e mestre 19 Contato com Márcio Meirelles (e minha admiração) se deu em virtude do processo criativo para a montagem de Sete Contra Tebas, a partir de 2015, que foi o trabalho de conclusão da primeira turma da Universidade Livre. Sobre a experiência, v. https://www.academia.edu/26437503/Ana_ lise_de_espeta_culo._Os_Sete_Contra_Tebas_%C3%89squilo . 20 Sobre o termo’concriatividade’ v. Ronaldes de Melo Souza . “A ética concriativa de Gadamer”. In: Revista Tempo Brasileiro, nº 94. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1988, pp. 69-86. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Apresentação

de gerações de artistas que se encantam com a energia contagiante e inteligência cênica fora do comum de Hugo Rodas. Damos a palavra a ele, para que ele fale do que quiser, do jeito que ele quiser. Em seguida, temos uma seção de traduções. O meu colega e amigo Carlos Alberto da Fonseca, ator, pesquisador, escritor, tradutor e grande especialista em cultura e arte na Antiguidade ( grega, romana e sanscrítica), vai nos brindar com uma tradução única em português do grande tratado das artes cênicas Natyasatra. Em cada número da Revista Dramaturgias teremos novas seções traduzidas deste tratado. Para nossa revista, além dessa série que ora se inicia, ele nos brinda com sua tradução de A estrada para Damasco, de A. Strindberg, autor tão atual a partir dos estudos de J.P. Sarrazac, especialmente em Poétique du Drame Moderne ( Seuil, 2012), Théâtes Intimes (Actes Sud,1992). A tradução é acompanhada de ensaio de sua colega a professora Iná Camargo Costa. E, finalmente, temos contribuição da inquieta e produtiva dupla de escritores e pesquisadores Marco Vasques e Rubens Cunha, que muito tem laborado para que a crítica teatral ocupe um lugar cada vez mais visível no cenário intelectual brasileiro.

Brasília, Outubro de 2016 Marcus Mota

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

9

Apresentação

A Revista Dramaturgias inicia agora sua jornada, sob os auspícios de efemérides de célebres figuras da cena, e do trabalho de artistas e pesquisadores aqui reunidos. Creio já ser um bom começo.

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

O Q É UM SHAKESPEARE PARA Q SE POSSA FAZER UM Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

10

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

O Q É UM SHAKESPEARE PARA Q SE POSSA FAZER UM1 Márcio Meirelles2 Universidade Livre do Teatro Vila Velha

e essa difusão é a chave portanto é fazer escolhas q portas abrir qdo aparentemente há tantas quais deixar abertas só para se olhar e perceber a dimensão do edifício em quais entrar quais manter fechadas quais entreabrir para dar a sensação de q se pode escolher outras saídas como conduzir o espectador pelo labirinto de frases q nos levam dificilmente em linha reta para o cerne da ideia para isso é preciso ter em conta q n existem personagens mas pensamentos em ação q todos aqueles seres - do q conduz a trama q nem sempre é o personagem título ao mais pequeno q surge apenas em uma cena e nunca mais na peça e para sempre na memória -

1 Texto escrito para o programa d’A MÁQUINA SHAKESPEARE – montagem de Hamlet e Macbeth em 2015 para o teatro Vila Velha (Salvador/Bahia). 2 Diretor, Cenógrafo, Dramaturgo, Figurinista e Tradutor. Site o�icial http://www.marciomeirelles.com.br/

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

11

Dossiê Shakespeare

n é difícil fazer shakespeare é só fazer shakespeare isso parece apenas uma boa frase e é uma verdade o q n quer dizer q n seja trabalhoso afinal o q é um shakespeare para q se possa fazer um é política poesia ação aventura sexo filosofia reflexão debate prazer é basicamente teatro o melhor teatro a única maneira de se fazer cada uma de suas peças se descobre em cada uma delas nos versos na prosa no ritmo nas imagens na escolha do pulso certo para dizer qualquer fala na música no movimento provocado pelo deslocamento do ar qdo cada palavra é dita está na escolha do conjunto de metáforas e imagens q ele fez p criar o efeito de difusão específico de cada uma

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

12

são necessários e têm sua grandeza como cada ser humano q encontramos na fila do banco e nunca mais em seu grupo ele tinha 16 atores então pq compunha para tantas vozes se elas n fossem absolutamente necessárias descobrir a necessidade de cada um desses pensamentos q agem num jogo montado pelo autor é o caminho em suas tramas ele – o autor – age através dos movimentos e estratégias de cada voz q ele cria e lança mão de todos os recursos à mão para fazer um discurso q nos fale de nós num aparente paradoxo quem existe é o autor agindo através de cada personagem é preciso então q se descubra o q quer o autor o q quis o q disse a seus contemporâneos q de tão claro e bem dito chegou até nós e continua a dizer o paradoxo é q se trata de um autor de quem n se sabe nada com certeza apenas existem seis assinaturas em documentos burocráticos nenhum verso manuscrito exceto as páginas do texto colaborativo sobre thomas more q talvez pela coincidência da caligrafia do manuscrito e a das assinaturas sejam essas páginas do texto do mesmo shakespeare q assinou os documentos e q talvez seja o shakespeare q escreveu as peças publicadas em seu nome pq guardam mtas semelhanças de estilo e forma c as cenas do manuscrito esse shakespeare inventou a humanidade ou a retratou melhor do q ninguém em sua totalidade é o cara q inventou mais de 800 palavras de uma língua inglesa q estava sendo construída e consolidada que criou frases q repetimos mais de 400 anos depois sem saber da onde vem – apenas de hamlet temos SER OU N SER EIS A QUESTÃO . EXISTEM MAIS MISTÉRIOS ENTRE O CÉU E A TERRA DO Q SONHA NOSSA FILOSOFIA . FRAGILIDADE SEU NOME É MULHER . HÁ ALGO DE PODRE NO REINO DA DINAMARCA para se pensar numa biografia para este nome é preciso recorrer à biografia de todo seu mundo contemporâneo e intuir a partir daí a sua história é uma história coletiva se os poetas e dramaturgos de sua época viviam assim e faziam isso então provavelmente se os habitantes de stratford upon avon nascidos mais ou menos na data em q está registrado o seu nascimento tinham tais hábitos e viveram

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

O Q É UM SHAKESPEARE PARA Q SE POSSA FAZER UM

tais fatos então pode ser q se os cidadãos de londres entre os séculos xvi e xvii sofriam e gozavam de tais vicissitudes limites pressões prazeres recursos então SE TODOS ENTÃO ou SE ACONTECEU ENTÃO é a biografia deste autor umas poucas certezas se tem sobre ele uma delas é q alguém escreveu um conjunto de obras magníficas c estilo coincidências diálogos intertextuais estruturas inconfundíveis e apesar de dar mto trabalho é mto fácil fazer um shakespeare é só fazer shakespeare sem querer fazer outra coisa além de shakespeare

ESCOLHAS DECISÕES CAMINHOS

fazer shakespeare era a missão do segundo arco/ano do programa de formação universidade LIVRE de teatro vila velha no primeiro arco/ano foi traduzir FRANKENSTEIN do romance de mary shelley para a cena fazer uma tradução foi o q fizemos e ao longo desses dois anos montamos dez peças e apresentamos 13 experimentos = mostras/debates públicos de processos e reflexões sobre teatro e cena e caminhos e o bardo nos acompanha desde o segundo mês de trabalho c incursões pelo ritmo fala poética estrutura finalmente a decisão de montar como parte do processo programa trabalho MACBETH e HAMLET logo duas das peças icônicas os monumentos sobre os quais há bibliotecas inteiras e nem toda uma vida daria para ler e ver e ouvir tudo produzido em textos imagens e sons sobre cada uma delas mas escolhemos as duas

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

13

Dossiê Shakespeare

a principal escolha para uma encenação de suas peças em outra língua é a tradução que tradução escolher seguramente a q mais aproxime seu estilo pulso jogo da nova língua q o lambe isso é fundamental todas as suas peças têm em português pelo menos umas quatro traduções de quatro conjuntos de obras completas traduzidas depois é escolher o ator ou atriz q tenham em si determinados personagens – os pensamentos em ação – q dão o tom da obra que conduzem o discurso e compor ao redor deles c os outros atores-atrizes/vozes a polifonia q vai agarrar a consciência do rei q p isso é feito teatro

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

14

nos interessa o limite o quase impossível o extenuante o urgente nos interessa o abismo o salto inominável o eterno o exorbitante nos interessa a humanidade e a política e a poesia e o ser humano e o mito e fomos kamikazes num voo de olhos sentidos razão emoção bem abertos escancarados ao encontro dos dois os dois falam de golpes de estados geradores de tragédias nos dois o sobrenatural se interpõe nos dois há uma mulher q é sacrificada nos dois há um caminho sem volta para o fim nos dois como em toda a obra do bardo há uma ordem q foi rompida e uma nova ordem q precisa ser instaurada na primeira cena de MACBETH aparecem as irmãs do destino e n dizem pq na de HAMLET o fantasma do pai depois tanto umas qto outro voltam e desencadeiam as peças na segunda cena de MACBETH sabemos a situação política da escócia q vai sediar a tragédia em HAMLET da dinamarca hamlet nos diz ser ou n ser onde reflete como a consciência das consequências de um ato nos paralisa macbeth nos diz ficasse feito o feito onde pondera sobre o mesmo assunto qdo macbeth desiste momentaneamente do plano lady macbeth n o reconhece qdo hamlet põe em ação o seu plano ofélia n o reconhece ofélia enlouquece e se afoga lady macbeth enlouquece e morre lavando as mãos e por aí vamos toda a obra de shakespeare é carregada de citações e coincidências personagens q aparecem ou são citados em mais de uma peça ações e frases e imagens q se repetem ou assemelham ou são variações de um mesmo tema assim as duas montagens entre as quais formando uma trilogia inseriu-se JANGO – UMA TRAGEDYA única peça escrita por glauber rocha montada para comemorar os 50 anos do teatro vila velha também uma tragédia gerada por um golpe de estado glaubershakespeareanamente construída são parte de uma obra em rede q está em construção temos exercitado a ressignificação dos elementos de nossa obra constantemente e em MACBETH/HAMLET+HAMLETMACHINE = A MAQUINA SHAKESPEARE isso tem sido uma tônica incluindo a definição de elenco yan brito o jango “destronado” é duncan e o fantasma do rei Hamlet

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

O Q É UM SHAKESPEARE PARA Q SE POSSA FAZER UM

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

15

Dossiê Shakespeare

vinicius bustani faz hamlet e malcolm dois filhos de reis assassinados c os tronos usurpados e tb foi júlio souza “órfão” de jango frustrado pela impossibilidade de construção de uma nova ordem tiago querino faz macbeth q toma o poder através da força e fortembrasse q toma o poder da dinamarca depois da tragédia e foi brizola q incitava jango à luta armada só para falar nos atores dos papéis título as músicas de POR QUE HÉCUBA JANGO FRANKENSTEIN foram tb colocadas em cenas das duas peças q tinham a mesma necessidade sonora para existirem plenas fragmentos de POR QUE HÉCUBA são usados em hamlet na cena em q os atores recitam trechos da guerra de troia o carrinho de supermercado cheio de aparelhos telefônicos de ESPELHO PARA CEGOS reaparece em HAMLET MÁQUINA depois de já ter aparecido em JANGO c a mesma função parte do figurino de uma peça aparece na outra como já apareceram em HÉCUBA FRANKENSTEIN TROILUS E CRÉSSIDA o modelo das saias foi criado em 1990 para um espetáculo de dança sobre a guerra de troia e continuam a falar sobre as guerras contemporâneas até hj com seu movimento e panejamento em diferentes texturas e cores e tecidos e outras peças de roupa ou conceitos de figurino vão nos lembrando de suas histórias em cena estamos num teatro q pode mudar de configuração para cada espetáculo e exercitamos c isso a dramaturgia do espaço desde muito tempo mas principalmente e mais recentemente a partir dos experimentos da LIVRE a cada encontro c o público propomos uma relação física específica e própria para cada encontro refazemos o espaço do vila p instalar desde o momento da entrada já c o elenco em cena a ação q vai se desenrolar em torno do espectador estamos em torno do espectador n apenas em frente a ele estamos por todos os lados como no mundo ou ele está em volta da cena como na vida estamos sempre n frontalmente estabelecendo uma relação dual mas simultaneamente atuando em todo o espaço ao mesmo tempo as imagens dos mortos dos massacres da guerra cotidiana são as mesmas de várias peças e dos noticiários sangrentos de todos os dias na tv q no teatro acompanhando cenas fictícias similares redimensionam nossa passividade diante das tragédias o piso é da MULHER COMO CAMPO DE BATALHA as cortinas em tiras nos acompanham desde a re-inauguração do vila c DOM QUIXOTE os bancos vêm do bando de teatro olodum e são do bando desde a primeira peça q criei para eles ESSA É NOSSA PRAIA e foram incorporadas ao novo projeto político do vila sem deixar de pertencer ao bando as alfaias e tambores africanos e brasileiros acompanham todas as montagens de tragédias colocando o pulso e o ritmo necessários ao desenrolar da trama

Márcio Meirelles

assim cenas antigas se superpõem à q está ante nós criando texturas de memória para quem já viu outros espetáculos nossos e criando nova e indefinível densidade ao olhar estreante em nossa obra

HAMLET

Dossiê Shakespeare

16

hamlet tem 2 edições contemporâneas de shakespeare – o 1o e o 2o quarto – e a do famoso fólio c as obras completas publicado poucos anos depois de sua morte o 1o quarto q veio a público pouco depois da data suposta de sua estreia – atestado de popularidade da peça qdo lançada – durante muito tempo foi considerado espúrio fruto de pirataria de algum ator q aprendendo todo o texto da peça de cor o recitou p algum editor em troca de algumas moedas faturando assim com o sucesso dos outros o q teria resultado num texto incompleto truncado c nomes de personagens trocados – corambis em vez de polônio gertred em vez de gertrude etc – cenas fora do lugar supressão de algum solilóquio ou fala importante considerando o fólio como o cânone os textos originais ora então pq o 2o quarto é tão extenso e tb diferente com mais material do que o fólio com tempo de encenação se montado sem cortes de mais ou menos 6 horas qdo todas as peças de shakespeare duram em torno de 2 horas e meia e pq os editores n consideram o fólio tão original assim q encaixam aqui e ali trechos do 2o quarto pq sentem falta de algumas “explicações” o q torna hamlet uma das peças mais longas de shakespeare e q raramente n sofre cortes em suas encenações atualmente muitos estudiosos consideram a seguinte hipótese – o autor teria escrito realmente o texto do 2o quarto e levado para a sua companhia e lido c os atores q num processo colaborativo como se pratica até hoje sugeriram cortes e alterações q resultaram na “versão de palco” da obra o sucesso levou à sua publicação e a subsequente lançamento da “versão do autor” o 2o quarto c o texto na íntegra depois de algum tempo talvez já em stratford preparando a edição de suas obras completas o bardo retrabalhou a peça levando em conta os 2 textos publicados o q seria talvez sua “versão definitiva” levando esta hipótese em consideração o único texto q n pode ter sido escrito por shakespeare á a versão q conhecemos esta é uma versão de editores a escolha por montar o 1o quarto é pelo gosto de acreditar na hipótese de q ele é a versão de palco da peça como foi montada pela trupe do bardo em seu teatro é mais ágil teatral mais perto do jogo de suas outras peças deixa mais lacunas em aberto mais brechas para nossa imaginação talvez menos material para reflexões mas o suficiente para manter ou até potencializar o impacto de seu discurso josé roberto o’shea nos presenteia c uma excelente tradução do 1o quarto num livro D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

O Q É UM SHAKESPEARE PARA Q SE POSSA FAZER UM

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

17

Dossiê Shakespeare

chamado O PRIMEIRO HAMLET publicado pela hedra nos falamos e ele autorizou a montagem no caminho a ideia de fazer uma montagem simultânea de A MÁQUINA HAMLET de heiner muller e a descoberta de q ele introduziu seu texto como a peça dentro da peça em sua montagem e o vontade de testar tb isso como talvez uma nova leitura do assassinato do rei ou seja da destruição de uma antiga ordem e o fizemos e já q alteramos e interferimos e sampleamos alternativas novas como o próprio shakespeare talvez o tenha feito e com certeza o fez pelo menos usando canções conhecidas e alterando-as p encaixa-las em suas tramas e discursos pedimos tb autorização a matéi visniec para samplear fragmentos de POR QUE HÉCUBA e trocar as citações de falas sobre a guerra de troia feitas por hamlet e os atores e q o levam ao solilóquio quem é hécuba para esse ator ou ele para hécuba onde se maldiz por ainda vacilar em executar a vingança demandada pelo fantasma do pai e tem a certeza de q é com o teatro q agarra a consciência do rei e com certeza uma peça de matéi desperta muitas consciências então numa interferência autorreferente colocamos imagens e reencenações de fragmentos de nossas próprias montagens assim como recorremos às imagens de nossa montagem de JANGO para nos lembrar do golpe de 64 qdo o fantasma do rei pede vingança ainda n resolvemos no brasil o golpe de 64 e a ditadura decorrente dele e como hamlet assistimos impassíveis as tentativas de sua reencenação c pedidos de impeachment para a presidente recém eleita democraticamente dentro do sistema eleitoral q vivemos devido à insatisfação de alguns pelos mesmos programas e tendências tentados por getúlio e jango para tornar a distribuição de renda mais justa e diminuir a miséria e a pobreza ainda q com a mesma falha o n enfrentamento direto ao dragão da maldade – o próprio sistema político econômico do brasil e a mesma oligarquia q o controla – enfrentamento trocado por mtas concessões e negociações c ele escolhemos tratar hamlet entre as muitas possibilidades como o discurso de uma geração entre duas ordens uma q findou e q n deve ser restaurada pq se degenerou e n é mais útil e uma nova ordem q ainda n se constituiu a geração de hamlet laertes ofélia horácio é a geração do movimento passe livre é a geração q sente algo de podre no reino da dinamarca mas n tem um modelo construído para implantar é a geração de uma revolta difusa muiltifocal sistêmica contra um sistema q n aponta saídas para impasses vitais como o meio ambiente e sua sustentabilidade por exemplo a convivência possível nas grandes cidades a distribuição de renda e capacidade de sobreviver ao caos urbano ou ao isolamento rural onde a terra n é de todos fortembrasse n é a solução é a consequência da violência é o retorno brutal à barbárie talvez depois da destruição de toda uma geração menos um sobrevivente horácio q por

Márcio Meirelles

pedido de hamlet sobrevive como memória de um escândalo testemunha de um tempo q n deve se repetir nem como tragédia nem como farsa pq hamlet sabe q o resto não pode ser o silêncio

MACBETH

Dossiê Shakespeare

18

ao contrário de hamlet macbeth só tem uma publicação de sua época a do fólio lançada depois da morte do autor há muitas dúvidas sobre o q foi escrito por shakespeare e o q está ali como uma interpolação para a encenação ou seja temos aí uma “versão de palco” provavelmente o texto publicado no fólio é o q foi encenado há algumas decisões a serem tomadas a primeira a tradução pq tb ao contrário do 1o quarto existem muitas em português escolhemos a de bárbara heliodora pq aos nossos ouvidos é a q mais se aproxima do pulso original mantendo coerência fidelidade fluidez tb ao contrário de hamlet as interferências feitas no texto para nossa encenação são muito poucas em troca dos personagens convidadas pelo porteiro a entrar no castelo na noite em q o rei é morto – levando em conta q os originais eram referências a personagens e acontecimentos reais e q precisariam de notas de rodapé para serem entendidas hj – colocamos referencias a personagens contemporâneos passiveis de serem identificadas pelo público atual sem alterar a estrutura original das falas do porteiro pequenos cortes e alguma edição aqui e ali para fluir a encenação construída e n mais nenhuma intervenção nenhum outro texto agregado o grande trabalho foi lutar contra as convenções criadas ao longo dos tempos nas encenações e montagens q nos mostra uma lady macbeth vilã como na tradição judaico cristã é apresentada a mulher e um macbeth sem afeto q mata pq n ama ao contrario e um macbeth mata mesmo amando pq é inevitável a morte para q o destino se cumpra e n importa o afeto q tenha por duncan ou banquo importa q há um destino a cumprir e a consciência de q todos os feitos têm consequência q o poderiam paralisar no início da peça é removida pela estratégia de responsabilizar a mulher pelo sucesso ou fracasso da empresa e por outras ações e decisões q vai tomando inclusive a de descartar a cumplicidade de seu duplo feminino empurrado p um limbo e p uma ausência durante todo o 4o ato aparecendo apenas para morrer mostrar q macbeth n é um monstro ao contrário q cada um de nós pode ser macbeth se n tivermos claros e defendidos certos valores se contra um destino trágico e inevitável n lutarmos a favor do equilíbrio e tirar o sobrenatural do ar a humanidade de macbeth está justamente na humanidade dos outros personagens e em suas motivações esse é o jogo proposto por shakespeare D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

O Q É UM SHAKESPEARE PARA Q SE POSSA FAZER UM

as irmãs do destino nunca as tratamos como bruxas ou feiticeiras mas mulheres cônscias de sua humanidade e papel no mundo papel de mães q perdem os filhos a cada dia de cidadãs q perdem a capacidade de seguir e decidir que são renegadas a papéis inferiores subjugadas por um mundo patriarcal e por isso montam o teatro das profecias e assim conduzem erraticamente as vezes os acontecimentos shakespeare n acreditava q as bruxas tinham o poder de realizar mas o de induzir a realização esse é o perigo nomeado por hécate o excesso de informação n processado corretamente nos leva à perdição assim hamlet é uma peça doc um registro deste momento e macbeth uma peça aviso cuidado homem como em algumas casas vemos cuidado cão

O FUTURO

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

19

Dossiê Shakespeare

o q é montar estas duas obras o q é fazer teatro por quem ainda fazer teatro qdo as opções de representação deleite narrativas meios de distribuição de discursos e produções performativas são tantas e falo da capacidade q todos e qualquer um têm disso de produzir seu próprio discurso sem ser representado por ninguém e colocar no mundo p ser visto ouvido experimentado por milhares de pessoas a um clique é preciso fazer shakespeare esse teatro tribal c 31 atores e mais os técnicos em cena ainda q reduzido o público pelo excesso de alternativas pelo medo disseminado pela indústria da segurança para fomentar o mercado da proteção da fortificação e intransponibilidade das propriedades e do armamento do cidadão pela falta de qualidade quantidade conforto opções do sistema de transporte urbano q empurra o cidadão para o mercado automobilístico dificultando o acesso e circulação ainda mais nos grandes centros pela falta de cultura de ir ao teatro pela pouca informação do q seja teatro e dos benefícios q traz ao mundo o seu consumo sistemático em sessões onde a humanidade precisa ser coletiva precisa estar presente em corpo e lugar para q aconteça pela estupidez da distribuição gratuita de ingressos na tentativa de aumentar a frequência ao preço de criar dependências perversas do produtor ao patrocinador e n ao público ainda q reduzido o público por esses e outros fatores o teatro ainda é necessário o teatro vila velha começou a produzir diretamente seus espetáculos a partir de 2013 para responder ou se questionar sobre tudo isso e em dois anos deu à cidade – ou melhor trocou c a cidade por ingressos vendidos – 10 espetáculos 5 deles c elencos de mais de 30 pessoas isso é possível pq o vila adotou uma política de formação de público mas tb de artistas de uma maneira sistemática e investigativa o programa universidade LIVRE de teatro vila velha vai se construindo a medida q avança vai entendendo a realidade e respondendo a questões e formulando perguntas ainda sem

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

20

respostas vai demandando e fomentando e provendo a sociedade de teatro a ideia de um artista gestor de seu próprio trabalho é a idéia de um artista q se faz perguntas tb como o operário de brecht o artista q se pergunta diariamente qual o seu lugar no mundo e no tempo em q vive e atua q carrega peso físico e a responsabilidade de convocar uma assembleia para debater as questões de seu tempo q entende de mercado e economia para poder entender as grandes disputas do mundo q se transvestem em ideologia religião etc mas q são econômicas as motivações pq trocamos a disputa territorial a caça pesca e agricultura por negócios status especulação virtual guerras sem regras torneios sem causa a n ser o enriquecimento o acumulo o capital se autofecundando e nos devorando a responsabilidade de aprender fazendo seguros de q a plateia está aprendendo assistindo q todos somos aprendizes e podemos trocar o q descobrimos a cada minuto c o outro numa rede q nos impede de cair q nos conecta c a humanidade no q ela tem de melhor e no q ela tem de pior e lidar c os muitos lados desta coisa mundo potencializando a construção e a demolição necessárias de tudo q proporciona ou impede a felicidade e lutar pelo prazer de ser e estar neste momento preciso em q estamos e somos alguma coisa no universo fazemos um teatro coral como os corais nos retroalimentado e ao sistema cênico emocional afetivo imagético simbólico do mundo como um coro q sabe a necessidade de corifeus e diálogos c o herói mas sabe tb e mais da grandeza de ser coletivo de pertencer a um grupo e de ter a força de muitos ao nosso lado para seguirmos vamos continuar no teatro vila velha a fazer este teatro q entendemos necessário e formar novos atores e atuadores no mundo criar conteúdos para alimentar a fome humana de contato e de respostas ao vazio do depois e do antes fazer o q podemos fazer seguimos márcio meirelles rio . 21.01.2015 fotos de algumas montagens de shakespeare que fiz: https://www.flickr.com/photos/marciomeirelles/collections/72157672316656705/

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

Máquina Shakespeare. Fotoensaio Márcio Meirelles

21

Dossiê Shakespeare

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio. Márcio Meirelles1 Universidade Livre do Teatro Vila Velha

entre 2014 e 2015 foi montada a máquina shakespeare para o teatro vila velha – encenação de HAMLET + HAMLETMACHINE e MACBETH – aqui algumas fotos da experiência

FOTOS HAMLET

Dossiê Shakespeare

22

SER OU NÃO SER EIS AÍ O PONTO ato 1 cena 2 tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha hamlet = vinicius bustani foto = márcio meirelles

1 Diretor, Cenógrafo, Dramaturgo, Figurinista e Tradutor. Site oficial http://www.marciomeirelles.com.br/ D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

23

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Dossiê Shakespeare

SOU O ESPÍRITO DO TEU PAI ato 1 cena 4 tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha fantasma = yan britto + coro foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

24

PALAVRAS PALAVRAS . wordSwords ato 2 cena 2 tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha hamlet = vinicius bustani foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

25

Dossiê Shakespeare

VAI PRUM CONVENTO PRUM PUTEIRO VAI ato 2 cena 2 tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

26

O TEATRO MOSTRA TUDO O TEATRO NÃO ESCONDE NADA ato 3 cena 2 tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha hamlet = vinicius bustani foto = márcio meirelles D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

27

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Dossiê Shakespeare

EU ERA HAMLET ato 3 cena 3 + HAMLETMACHINE . heiner müller tradução = christine rörigh + marcos renaut encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha atriz/hamlet = giza vasconcelos foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

28

EU SOU OFÉLIA AQUELA QUE O RIO NÃO LEVOU ato 3 cena 3 + HAMLETMACHINE . heiner müller tradução = christine rörigh + marcos renaut encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha atriz/ofélia = deise ramos + atriz/hamlet = giza vasconcelos foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

29

Dossiê Shakespeare

HAMLET MEU FILHO ato 3 cena 3 tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha gertred = marcia ribeiro + hamlet = vinicius bustani foto = márcio meirelles

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

30

ato 3 cena tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha ofélia = babi ferreira foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

31

Dossiê Shakespeare

ato 3 cena tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha ofélia = babi ferreira foto = márcio meirelles

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

32

ato 3 cena tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha coro = victoria matos + mari gavim + gertred = marcia ribeiro + ofélia = babi ferreira foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

33

Dossiê Shakespeare

ato 5 cena 1 tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha o coveiro = vado souza foto = márcio meirelles

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

34

POBRE YORIK ato 5 cena 1 tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha o coveiro = vado souza foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

35

Dossiê Shakespeare

DIZ A ELA .... ato 5 cena 1 tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha o coveiro = vado souza foto = márcio meirelles

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

36

O RESTO É SILÊNCIO ato 5 cena 3 tradução = josé roberto o’shea encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha horacio = jean pedro + hamlet = vinicius bustani foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

FOTOS MACBETH

37

Dossiê Shakespeare

abertura tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha foto = márcio meirelles

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

38

DIZEI ato 1 cena 3 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha as irmãs = deise ramos + cris + grazielle mascarenhas + macbeth = tiago querino + banquo = jean pedro foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

39

Dossiê Shakespeare

É UM PUNHAL ato 2 cena 2 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha macbeth = tiago querino foto = márcio meirelles

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

40

O REI ESTÁ MORTO ato 2 cena 3 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

41

Dossiê Shakespeare

ato 2 cena 3 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha foto = márcio meirelles

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

42

ato 3 cena 2 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

43

Dossiê Shakespeare

ato 3 cena 2 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha macbeth = tiago querino + lady macbeth = amanda brito foto = márcio meirelles

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

44

ato 3 cena 2 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha macbeth = tiago querino + as irmãs = deise ramos + graziele mascarenhas + cris foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

45

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Dossiê Shakespeare

ato 4 cena 1 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha malcolm = vinicius bustani + macduff = vado souza foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

46

ato 5 cena 1 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha lady macbeth = fernanda veiga foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

47

Dossiê Shakespeare

ato 5 cena 1 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha lady macbeth = amanda brito + macbeth = tiago querino foto = márcio meirelles

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

48

AMANHÃ AMANHÃ AMANHÃ ato 5 cena 1 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha lady macbeth = amanda brito + macbeth = tiago querino foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Máquina Shakespeare. Fotoensaio

49

Dossiê Shakespeare

APAREÇA TIRANO ato 5 cena 1 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha macduff = vado souza foto = márcio meirelles

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Márcio Meirelles

Dossiê Shakespeare

50

ato 5 cena 1 tradução = bárbara heliodora encenação = márcio meirelles realização = teatro vila velha macbeth = tiago querino + macduff = vado souza foto = márcio meirelles

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

A Antiguidade Clássica em Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare Elizabeth Ramos 51

Dossiê Shakespeare

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

A Antiguidade Clássica em Sonho de uma noite de verão de William Shakespeare1 Elizabeth Ramos Universidade Federal da Bahia

Resumo: Com base no texto dramático de Sonho de uma noite de verão, o texto discute a importância da tradição clássica na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, mostrando como William Shakespeare se apropria da cultura da Grécia e da Roma antigas e a recria em grande parte da sua produção dramática, mantendo não apenas aspectos técnicos do teatro clássico grego,  como também fazendo uso de recursos temáticos que, muitas vezes, são deslocados da história para a ficção.   Palavras-chave: William Shakespeare, drama Clássico, Sonho de uma noite de verão, Márcio Meirelles. 

Dossiê Shakespeare

52

Abstract: Taking from the text of the play Midsummer night’s dream, the article outlines the importance of the Classical tradition in the English drama in the 16th and 17th centuries, showing how William Shakespeare appropriates himself of ancient Greek and Roman cultures recreating them in great part of his production, keeping both technical features of the Classical drama, and thematic resources which often are shifted from History into fiction. Key words:  William Shakespeare, Classical drama, Midsummer night dream, Márcio Meirelles. É sempre bom lembrar a importância que a tradição clássica exerceu na produção dramática da Inglaterra renascentista, gerando plateias que se tornaram bem mais familiarizadas com a mitologia clássica do que são, atualmente, as dos nossos dias, a ponto de “os gregos e os romanos terem servido como modelos para as narrativas da época”, (GARBER, 2004: 73) A popularidade da tradução de Sir Thomas North, das Vidas Paralelas (1579), de Plutarco, ensejou para os ingleses a ideia de um terceiro conjunto de vidas: as dos reis e heróis ingleses, como paralelas às dos antigos. [...] Políticos e intelectuais, além da rainha e seus conselheiros, buscavam a Roma clássica como padrão para a nação inglesa e seu então recente poder imperial.2 (GARBER, 2004: 73) 1 Texto adaptado a partir da conferência que ministrei em Fortaleza, no Programa de Pós-Graduação em Tradução da Universidade Federal do Ceará (Poet), em agosto de 2016. 2 Minha tradução de: “[...] and the popularity of works like Sir Thomas North’s translation of Plutarch’s Parallel Lives of the Noble Grecians and Romans (1579) gave rise to the idea that a third D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

A Antiguidade Clássica em Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare

No legado da cultura da Roma Antiga, cuja matriz é sem dúvida a tradição literária grega, Shakespeare vai buscar em Terêncio a estrutura de suas peças, todas em cinco atos; parte de Plauto para construir as tragicomédias e as peripécias engraçadas com final feliz; e, de Sêneca, extrai o estoicismo de alguns de seus heróis trágicos, não mais joguetes dos deuses gregos, mas dotados de livre arbítrio, conforme é possível ver no último monólogo de Otelo, pouco antes de sua morte trágica. OTELO – Calma! Uma palavra ou duas antes que saiam! Prestei algum serviço ao Estado; todos sabem. Mas deixemos isto de lado... Peço apenas que em suas cartas, ao relatarem estes lamentáveis fatos, refiram-se a mim como sou; não atenuem e não agravem nada. Falem de um homem que não teve bom senso ao lidar com o amor, e exagerou no sentimento; falem de um homem que, embora não fosse ciumento, deixou-se dominar pelo ciúme, e ultrapassou o limite; de um homem ordinário que atirou longe a mais preciosa joia; de um homem que, pouco afeito a lágrimas, chorou pranto semelhante às árvores da Arábia quando vertem sua goma medicinal. Digam isto e acrescentem que, certa vez, em Alepo, ao ver um turco ímpio de turbante batendo num veneziano e insultando o Estado, agarrei-o pelo pescoço e assim o feri3. (Apunhala-se) (Ato V, Cena II)

set of lives, those of the English kings and heroes, might be seen as “parallel” to those of the ancients. […] Politicians and theorist, and the Queen and her counselors, looked to classical Rome as the pattern for the English nation and its nascent imperial power.” 3 Minha tradução.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

Sem nunca ter saído da Inglaterra e com conhecimentos duvidosos do latim e nenhum do grego antigo, mas aparentemente dedicando algum tempo à leitura de Plutarco e Ovídio nas traduções de Thomas North para o inglês, Shakespeare desloca para a Inglaterra renascentista traços de uma história distante no tempo e no espaço, sem, no entanto buscar a reconstrução descritiva ou a acuidade histórica de eventos e ações humanas. Uma rápida visita às comédias, que se desenrolam a partir de um estado de equilíbrio apolíneo para o das confusões dionisíacas, até afinal atingirem o equilíbrio entre as duas forças, permite-nos observar que, por exemplo, A comédia de erros (1594) deriva da farsa de Plauto, Os Gêmeos, além de estabelecer diálogo, no seu Ato 3, com O anfitrião, do mesmo Plauto. Sonho de uma noite de verão (1594) mantém estreita relação com Plutarco e Ovídio, em vários aspectos sobre os quais nos deteremos mais adiante. Por outro lado, embora Shakespeare em suas tragédias demonstre aderência a uma visão menos clássica e menos centrada no herói, privilegiando uma narrativa mais próxima da tradição do drama medieval. (BROWN, 2007:21), demonstra claramente a inserção de temáticas que nos remetem à Antiguidade clássica. Em Troilo e Créssida (1601), a intertextualidade privilegia a retomada do cerco de Tróia; Coriolano marca a volta de Shakespeare às Vidas Paralelas, de Plutarco, em a Vida de Caio Márcio Coriolano. Tito Andrônico, peça escrita no final do século XVI, ficcionaliza eventos da história do Im-

53

Elizabeth Ramos

pério Romano pautados sobre a corrupção política como fator decisivo para seu enfraquecimento e sua queda. Timão de Atenas (1607) indica, a partir do próprio título, a forte relação intertextual com a literatura clássica, remetendo mais uma vez a Plutarco em sua Vida de Marco Antônio e à Vida de Alcebíades. Comentaristas acreditam que é provável que Shakespeare tenha lido o Misantropo de Luciano de Samósata, tributário do grego Menandro. Na tragédia Antônio e Cleópatra (1608), o dramaturgo modifica o caráter libertino do personagem masculino construído por Plutarco, deslocando-o para um homem digno. Na conhecida Romeu e Julieta, o personagem Mercúcio zomba do protagonista, no Ato 2, cena IV: “Romeu [...] vai escorregar em versos de Petrarca. Diante de sua amada, Laura é uma vagabunda, [...] Dido é uma puta, Cleópatra uma cigana, Helena e Hero rameiras sem-vergonha, e Tisbe uma bela de uma meretriz.4” Ao escrever Júlio César (1599), mais uma vez Shakespeare retorna a Plutarco em suas Vidas Paralelas e à História das Guerras Romanas, de Apiano. Para construir os discursos de Brutus e Marco Antônio, recorre à retórica como se pode observar no belo discurso deste último, diante do corpo morto de Júlio César.

Dossiê Shakespeare

54

Amigos, concidadãos de Roma, ouçam-me; Venho para enterrar César, não para louvá-lo. O mal que os homens fazem sobrevive a eles, O bem, por vezes, é enterrado com seus ossos. Que assim seja com César. O honrado Brutus disse- lhes que César era ambicioso; Se isso for verdade, era um grave erro, E por ele César pagou. Peço licença a Brutus e aos demais, pois Brutus é um homem muito honrado, assim como os demais são também muito honrados. Venho falar no enterro de César. Foi meu amigo, justo e fiel a mim. Mas Brutus diz que ele era ambicioso, e Brutus é um homem muito honrado. César trouxe de volta a Roma mil cativos, cujo resgate encheu nossos cofres; Seria este um César ambicioso? Quando o pobre sofria, ele chorava: A ambição deve ter feição mais dura. Mas Brutus diz que ele era ambicioso, e Brutus é um homem muito honrado.

4 Minha tradução. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

A Antiguidade Clássica em Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare

Vocês todos viram que, no Lupercal, três vezes ofereci-lhe a coroa real, e três vezes ele a recusou. Isso é ambição? Mas Brutus diz que ele era ambicioso E sabemos que é um homem muito honrado. Não falo para refutar Brutus, mas para falar tudo o que sei: Vocês todos, não sem razão, o amaram; Que razão os impede de chorar sua morte? Ah bom senso! Isto só existe nas feras; O homem perdeu o juízo! Mas me perdoem, meu coração está com César no caixão, e me calarei até que volte para mim.5 (Ato III, Cena II, p. 322)

A comédia Sonho de uma noite de verão As comédias shakespearianas seguem o modelo da estrutura cômica da comédia ro5 Minha tradução. 6 Minha tradução de: “The “Parallel” in the tile Parallel Lives meant that the author provided not only a biography but also a comparison.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

55

Dossiê Shakespeare

A esses intertextos, Shakespeare acrescenta personagens menores e mudanças de lócus dramático, parecendo ecoar a máxima de Terêncio – “Sou humano, e nada do que é humano é estranho a mim” – rompendo com o maniqueísmo e trazendo ao palco a natureza humana nas suas imperfeições e qualidades. Com relação às peças históricas, é difícil apontar qualquer vínculo intertextual com os clássicos que possa ir além do desejo vigente na época, como já afirmei, de que a vida de reis ingleses se constituísse numa extensão das Vidas Paralelas de Plutarco, uma vez que “o termo Paralelas no título significava que o autor não apenas produzia uma biografia, mas também uma comparação.6” (GARBER, 2004: 410) Nesse sentido, é possível observar o inegável tom épico que o dramaturgo imprime aos seus Henrys, conferindo, ao longo dos versos, traços de heroísmo às conquistas, por exemplo, de Henrique V. Além das relações intertextuais temáticas, o leitor/espectador das peças de Shakespeare não raro se depara com topônimos e nomes de personagens clássicos inseridos numa estrutura dramática que, em muito, é tributária desse longo período da história entre o século VIII a.C e a queda do Império Romano, no século V d.C. Observemos agora como se dão essas relações com a Antiguidade clássica na comédia Sonho de uma noite de verão, relações essas que pervivem na nossa contemporaneidade.

Elizabeth Ramos

Dossiê Shakespeare

56

mana e da commedia dell’arte oriunda da Itália do século XV. Aqui, naturalmente, nos interessa o primeiro modelo construído a partir das peças de Terêncio e Plauto, que eram adotadas nas escolas da Inglaterra renascentista com vista ao ensino do latim, a despeito da “imoralidade” conferida aos enredos baseados no triunfo dos jovens enamorados, que, auxiliados por serviçais astutos, contrariavam os desejos e o poder da figura paterna. Também a partir do ensino do latim, tanto nas escolas quanto nas universidades, os alunos – apenas meninos vale salientar – também estudavam Filosofia e Retórica, o que resultava numa expectativa de que, no palco, um personagem bem educado fizesse uso dos tropos, figuras da retórica e reflexões sobre o homem e seu papel no mundo, como observamos no discurso de Marco Antônio, em Júlio César. Seguindo a linha da influência clássica, Sonho de uma noite de verão (1594) se desenvolve sob a influência de acentuados traços da escrita pastoral, associando o bosque aos seres supranaturais (fadas e elfos), à magia, ao perder-se num espaço imaginado onde não vigoram as regras do mundo “normal”, onde é possível ou não obter a satisfação dos desejos. (HISCOCK & LONGSTAFFE, 2009: 60) Ademais, observamos uma variedade de fontes intertextuais, que seguem “a estrutura da intriga da Comédia Nova grega, conforme transmitida pelos romanos Plauto e Terêncio” (FRYE, 2013: 299), cuja forma dramática altamente convencional constitui, até os nossos dias, a base para grande parte da comédia. Aqui, Shakespeare inicia a história com a informação de Egeu a Teseu, duque de Atenas, de que sua filha Hérmia, apaixonada por Lisandro, contrariando a ordem do pai, recusa casar-se com Demétrio, que é amado por Helena. Impedidos por Egeu de se unirem e vendo-se diante da ameaça imposta pela lei ateniense que punia com a morte ou o convento moças que transgredissem a autoridade paterna, Hérmia e Lisandro decidem fugir para o bosque, não sem antes contarem a Helena sobre seu plano. Helena, imaginando que uma possível aproximação poderia ajuda-la a angariar o amor de Demétrio, convence o rapaz a juntar-se aos amigos no “mundo verde”. Aqui, adoto o termo cunhado por Northrop Frye, para se referir ao espaço onde se resolvem os problemas instaurados na comédia, de fato confirmando os princípios da escrita pastoral grega: “A ação da comédia inicia-se em um mundo representado como normal, entra no mundo verde, passa ali por uma metamorfose em que o desenlace cômico é atingido e retorna para o mundo normal.” (FRYE, 2013: 321) Como nas pastorais da Antiguidade clássica, o bosque de Sonho de uma noite de verão, habitado por fadas e duendes, liderados por Titânia, rainha das fadas, e Oberon, rei dos elfos, será o lugar de solução do problema, após muitas confusões causadas pelo elfo Puck. As peripécias envolvem os loucos arroubos de Lizandro que, desprezando Hérmia, associa-se a Demétrio na paixão por Helena. Envolve, ainda, o encantamento de Titânia por Bottom, o tecelão, que estava na floresta com os demais artesãos – o marceneiro, o funileiro, o alfaiate e o carpinteiro – para ensaiar Píramo e Tisbe, peça que irão encenar como interlúdio, nas celebrações do casamento de Teseu e Hipólita, noivos que se en-

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

A Antiguidade Clássica em Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

57

Dossiê Shakespeare

contravam em Atenas, em grandes preparativos para a ocasião. Como a magia do sumo extraído dos amores perfeitos havia transformado a cabeça de Bottom numa cabeça de asno, o absurdo das cenas românticas e sensuais garante o alívio cômico que se estabelece com o embevecimento de Titânia pelo novo amor com corpo de homem e cabeça de animal. Diante do caos, Oberon exige, então, que Puck corrija os enganos, fazendo com que todos se apaixonem pelas pessoas certas. O final feliz é marcado com os casamentos de Teseu e Hipólita,  Hérmia e Lisandro, Helena e Demétrio, e com a apresentação bem sucedida de Píramo e Tisbe encenada pelos artesãos em homenagem ao Duque e sua esposa. Oberon e Titânia fazem as pazes, e Puck, feliz com o desfecho, conclui que tudo não passou de um ‘sonho de uma noite de verão’. Gostaria, agora, de me deter nas palavras de Northrop Frye a respeito da Comédia Nova grega, traçando a partir delas, uma reflexão estrutural sobre Sonho de uma noite de verão. Segundo Frye, [...] O que normalmente ocorre é que um jovem deseja uma moça, seu desejo não se concretiza por alguma oposição, geralmente paterna, e que, próximo ao final da peça, alguma reviravolta na intriga permite que o herói obtenha o que deseja. (FRYE, 2013:299) Como vimos, em Sonho de uma noite de verão o amor de Hérmia por Lisandro não pode se concretizar, devido à oposição de seu pai, Egeu. No bosque, haverá a reviravolta da história e, não apenas a heroína como também os demais enamorados obterão o que desejam. Prosseguindo sobre a Comédia Nova grega, Frye afirma que “nesse padrão simples, há vários elementos complexos. Em primeiro lugar, o movimento da comédia é, geralmente, um movimento de um tipo de sociedade para outro.” (FRYE, 2013:299) Conforme observamos, o deslocamento em Sonho de uma noite de verão se dá da sociedade do mundo dos homens, para a sociedade dos elfos e fadas, no bosque. “No início da peça”, prossegue Frye, “as personagens obstrutoras estão no comando da sociedade do drama, e o público reconhece que eles são usurpadores.” Vimos que Sonho de uma noite de verão tem início com a denúncia, vigente na época, porém não menos absurda de Egeu junto a Teseu, a respeito da recusa de Hérmia em acatar a ordem paterna de se casar com Demétrio. A arbitrariedade socialmente justificada deve ser reforçada ou não pelo duque, que, na condição de representante do Estado, pode legalmente punir a moça com a morte ou o confinamento perpétuo em convento, o que termina não acontecendo. Tal qual na Comédia Nova grega, em Sonho de uma noite de verão, “no final da peça, o artifício na intriga que une o herói à heroína faz com que uma nova sociedade se cristalize em torno do herói, e o momento em que essa cristalização ocorre constitui o ponto de resolução na ação, o reconhecimento cômico, anagnorisis ou cognitio. O surgimento dessa nova sociedade é frequentemente sinalizado por algum tipo de festa ou ritual festivo [...]. Os casamentos são o exemplo mais comum”. (FRYE, 2013: 299) Na peça shakespeariana, os casamentos marcam o início da nova sociedade e a encenação de Píramo e Tisbe sina-

Elizabeth Ramos

Dossiê Shakespeare

58

liza o ritual festivo próprio do final da comédia. [...] o deslocamento da pistis à gnosis, de uma sociedade controlada pelo hábito, pela sujeição ritual, pela lei arbitrária e pelas personagens mais velhas, a uma sociedade controlada pelos jovens e pela liberdade pragmática é fundamentalmente, como a palavra grega sugere, um deslocamento da ilusão para a realidade. A ilusão é tudo aquilo o que for fixo ou definível, e a realidade é mais bem compreendida como sua negação [...] (FRYE, 2013: 306) Mas, para além dos vínculos estruturais, é incontestável a intertextualidade antroponímica com a Antiguidade Clássica construída por Shakespeare ao nomear os personagens centrais da trama e coloca-los em situações e condições distintas daquelas que conhecemos na história Antiga. Egeu, o personagem que deflagra o problema que irá desencadear a trama da comédia, é deslocado de Medéia e surge em Sonho de uma noite de verão como pai de Hérmia, que deixa de ser uma ninfa da mitologia grega, para se encontrar com Helena, que já havia saído da mitologia como filha de Zeus e Leda para se tornar a personagem homérica, cujo rapto foi a provável causa da Guerra de Troia. Lisandro (395 a.C.), por sua vez, remete ao general espartano que derrotou os atenienses, tomou Atenas e pôs fim à Guerra do Peloponeso. Demétrio alude a Deméter, filha de Cronos e Réia, irmã de Zeus, deusa da agricultura e da colheita, protetora do casamento, responsável pelas estações do ano. Filóstrato, o sofista grego, é reconstruído como Mestre de Cerimônia de Teseu, o Duque shakespeariano, que em Plutarco é casado com Fedra e antes, na mitologia grega, vai a Creta, combater o Minotauro, para então isentar os Atenienses do tributo que lhes fora imposto. Em Sonho de uma noite de verão, Teseu irá se casar com Hipólita, que na mitologia da Grécia Antiga é filha de Ares e da rainha Otrera, conhecida por possuir um cinturão mágico, que coube a Hércules resgatar, no nono dos seus doze trabalhos. A inserção de Titânia, rainha das fadas, sai das Metamorfoses de Ovídio para ressaltar as imagens eróticas que permeiam as comédias shakespearianas e muitos dos sonhos de uma noite num verão no bosque.

Um sonho na Bahia Partindo do princípio de que performances encenadas no palco são traduções, transmutações, transformações de textos dramáticos escritos, detenho-me agora sobre a premiada tradução de Sonho de uma noite de verão encenada pelo Bando de Teatro Olodum, em 2006, sob a direção de Márcio Meirelles, diretor que problematiza o fato de que, embora 80% da população da cidade seja constituída por afrodescendentes, o número de atores e atrizes negros não correspondia, na época, ao percentual. Dessa forma, o Bando de Teatro Olodum aceitou o desafio de temperar o texto shakespeariano com traços culturais marcadamente afro-baianos, como o Carnaval, as cores, a dança, a música e os rituais religiosos do Candomblé. A peça seria então performatizada por um grupo de teatro negro, para uma plateia baiana eminentemente negra,

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

A Antiguidade Clássica em Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare

confirmando o fato de que o teatro é de todos e para todos. A tradução homônima da peça de William Shakespeare emerge no palco do Teatro Vila Velha, em Salvador, envolta numa atmosfera alegre e divertida construída por atores e atrizes que cresceram longe das esferas privilegiadas da sociedade e iniciaram a carreira, em sua maioria, sem qualquer experiência de palco. Alguns tiveram a oportunidade de estudar artes dramáticas formalmente, outros aprenderam encenando, remetendo-nos a certos tipos de plateias locais que pensam como o personagem Filostrato de Sonho de uma noite de verão: Trabalhadores rudes de Atenas, Que estreiam hoje a inteligência, Aplicando práticas amadoras Num espetáculo para sua anuência.7 (5.1)

7 Minha tradução.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

59

Dossiê Shakespeare

Para situar a construção da encenação, é preciso recorrer ao nosso imaginário brasileiro que associa uma noite no meio do verão ao Carnaval, nossa festa mais popular dessa época do ano. A tradução de Sonho de uma noite de verão de Meirelles é, pois, encenada num palco afro-brasileiro, durante o Carnaval, privilegiando referências culturais baianas, mantendo, simultaneamente, fortes vínculos com o texto shakespeariano de partida, particularmente em relação ao tema do amor. Na condição de sujeito-tradutor, Márcio Meirelles, necessariamente, se apropria do texto shakespeariano, ocupando o tempo e o espaço de William Shakespeare, para levá-lo transformado a novos territórios, em outras épocas, num movimento que exige exercícios de interpretação, recriação, deslocamentos e reconfiguração da obra de partida para a nossa cultura e as nossas tradições. A performance do Bando incorpora diferentes signos culturais dentre os quais o Candomblé e diferentes ritmos afro-brasileiros, convidando a plateia a expandir sua perspectiva ocidental e admirar a mistura de música com outros sistemas de encenação. O público se depara com personagens shakespearianos que se movimentam no palco ao som do Ijexá, do samba-reggae, do galope e do rap, ritmos que permeiam esta alegre versão de Midsummer Night’s Dream, como se respondendo à pergunta feita por Teseu no Ato V, Cena 1: “[...] O que temos para encantar esta noite,/ Teatro ou música? Como encurtar / Esta demora senão com prazeres?” O Bando traz então, para o deleite da plateia, teatro e música traduzidos nos vigorosos movimento de corpo que sacodem tecidos leves e coloridos agitados no palco sob efeitos de luz e som, dando a impressão de que os personagens flutuam no ar, como num sonho. Como de praxe em performances da África negra, música, encenação e movimentos de dança não podem ser dissociados um do outro. Música demanda movimento. Or-

Elizabeth Ramos

Dossiê Shakespeare

60

namentos dourados decoram as cabeças dos personagens; contas, pérolas de vidro adornam os pescoços e colos; braços e pernas musculosos e potentes facilitam os movimentos das fadas do mundo verde do bosque. Deslocada para a Bahia, a comédia shakespeariana marcada por traços da Antiguidade clássica, revela uma cultura construída de maneira estereotipada sobre a informalidade, refletida na fala dos personagens, em particular, dos artesãos; a sensualidade, confirmada nos movimentos de braços, pernas e quadris que se contorcem, especialmente no universo dos enamorados e das fadas; e a religiosidade, no uso de atabaques e no posicionamento dos atores e atrizes sentados à direita e à esquerda, para além dos limites do palco, quando não estão atuando ou tocando instrumentos musicais, numa clara alusão ao cenário dos rituais de Candomblé. O palco desta tradução de Sonho de uma noite de verão aparece sob um conjunto de árvores cujos galhos são compostos por fitas coloridas que nos remetem às serpentinas de Carnaval e, simultaneamente, constroem o teto de um boteco popular, onde atores e atrizes abrem o espetáculo dançando desordenadamente ao som alto e alegre de um ritmo carnavalesco, sob a proteção dos olhos atentos de William Shakespeare retratado num quadro ao fundo do palco. Vemo-nos, pois, diante de uma cena de celebração, anunciando, já na abertura, o final feliz da peça. Aqui, as duas temporalidades da comédia – os humanos e os seres sobrenaturais – misturam-se, dançando e cantando em ritmo de samba de fundo de quintal. O volume da música aos poucos vai diminuindo e o silêncio se instala. Ao mesmo tempo, os atores e atrizes vão saindo, retirando as mesas e cadeiras que antes compunham o ambiente do boteco. A partir desta cena, o palco repetirá a ausência do cenário, mantendo apenas alguns elementos e referências indicativos do espaço, traços próprios do teatro elisabetano. Um ator – aquele que mais tarde saberemos se tratar de Bottom ou, nesta tradução, Bobina – adormece, deitado no chão e é acordado por um grupo de jovens acrobatas que cambalhotam – na realidade, três Pucks – que adentram o palco. Bobina acorda e se levanta, saindo atrás dos três meninos. A cena de alguma forma antecipa as palavras finais de Puck, no Ato 5, Cena 1: “E que este tema bisonho, / Apenas criou um sonho.” O vazio do palco expressa a mudança de ambiente. Num claro movimento de double bind, aqui sob a perspectiva derridiana com relação ao texto de partida, a primeira temporalidade de Sonho de uma noite de verão, aquela das criaturas humanas, é imediatamente estabelecida. Os olhos do público se deparam com uma destemida Hipólita de pé no palco, e um bravo e forte Teseu, com seus longos dreadlocks, de pé na plateia. Ambos declaram o júbilo que antecede seu casamento. Apesar do contentamento, os movimentos de corpo são minimizados, e as cores se limitam ao preto e um pouco de branco, exceto com relação a Hipólita, que se mostra rica e sensualmente vestida em preto e vermelho. O pai de Hérmia, Egeu, entra em cena vestindo uma túnica preta, apresentando a

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

A Antiguidade Clássica em Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare

8 Tradução de Bárbara Heliodora.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

61

Dossiê Shakespeare

filha, Demétrio e Lisandro. O palco escuro leva a plateia a antecipar a gravidade da cena. Teseu continua de pé junto ao público, agora em companhia de Hipólita, pronto a anunciar o castigo de Hérmia, caso a moça insista em se rebelar contra o desejo do pai de vê-la casada com Demétrio. O deslocamento, que ocorre entre a temporalidade das criaturas humanas para a dos deuses e fadas do bosque, é marcado então pelo vigor dos sensuais movimentos corporais, pela diversidade de ritmos, pelos ornamentos e cores, em particular, o vermelho e o amarelo nos trajes de Titânia e suas quatro poderosas fadas, que se vestem com um mesmo figurino e portam enfeites africanos no pescoço e na cabeça. Oberon também é um personagem forte, com maquiagem étnica no rosto, capacete dourado e a túnica negra a expor seu corpo vigoroso. Dois outros atores replicam sua imagem e se movimentam como se fossem sua sombra ao longo da encenação deste mundo imaginário, construindo um triplo Oberon, numa clara remissão a Hécate, deusa trina da mitologia grega. Nesse novo universo, o público é também surpreendido com a existência de três Pucks no palco – encenados pelos mesmos três jovens que acordaram Bobina, no início da performance. Tal qual os Oberons, esses também se parecem e se movimentam como num teatro de malabares e saltimbancos – como se ecoassem a fala de Oberon no Ato 5, Cena 1 – “E quem dali viver o dia / Terá fortuna e alegria. E assim os três casais de amantes / Sempre serão no amor constantes; [...]8”. Portanto, três Pucks para os três casais, cuja relação é afetada pela magia das gotas – Hermia e Demétrio, Helena e Lisandro, Titânia e Oberon – e um Puck para cada Oberon. Resolvidos os desentendimentos, o palco remete o público de volta à temporalidade humana, onde Teseu e Hipólita, além dos jovens enamorados de pé, surgem diante da plateia vestidos de branco, prontos para o casamento. As roupas escuras que, no início da performance, cobriam os corpos dos dois jovens casais dão agora lugar a túnicas leves e soltas, reforçando a leveza da concórdia. Confirma-se o retorno da história à normalidade e o equilíbrio das forças apolíneas e dionisíacas é restaurado. Livres de suas roupas de trabalho, os artesãos aparecem agora no centro do palco, cobertos de fitas coloridas e outros adereços, para encenar Píramo e Tisbe, zombando do amor, por meio da metateatralidade. Bobina (Bottom) e Sanfona (Flute), em companhia de Pedro Quina (Peter Quince), Fominha (Starveling), Bicudo (Snout) e Justinho (Snug), com seus novos nomes de certa forma relacionados às profissões que desempenham, retomam a tradição popular brasileira. Fominha, no papel de Luar, traz nos braços um dragão de brinquedo e uma espada. Afinal, de acordo com a tradição, São Jorge habita a lua, e lá, trava sua luta constante com o monstro. Por sua vez, Pedro Quina leva à cabeça a réplica de uma igreja de Salvador,

Elizabeth Ramos

Dossiê Shakespeare

62

numa clara alusão à religiosidade baiana. Quando Teseu, ao fim da encenação dos artesãos, conclama os presentes ao baile, todos dançam juntos ao som da mesma canção que abriu o espetáculo. As criaturas do mundo verde, além de Bobina e do resto do elenco acompanham. As fitas, galhos de árvores que antes serviam de teto do palco, caem para abraçar os atores e atrizes. Desfaz-se o sonho. Finda a peça. Por meio de um processo dual de apropriação e recuperação, de interpretação e criação de algo novo, Meirelles se mostra um dramaturgo contemporâneo, entendendo a contemporaneidade como “uma singular relação como o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias [...]”. (AGAMBEN, 2013: 59) O tradutor Márcio Meirelles, dramaturgo e diretor que pensou em encenar uma peça baseada no amor, foi ele próprio afetado pelo amor e, com sua tradução, afetou o texto de partida também por amor. Numa conjunção amorosa, suas soluções acabam por fazer um elogio à plateia, ao permitir que, tal como acontecia no período elisabetano, o público reconhecesse no palco situações que lhe são familiares, apurando o olhar para interpretar os movimentos, as canções e a fala dos atores, recriando e tornando visível, de forma extraordinária, uma África negra tão presente e tão distante.

Concluindo Tal qual o modelo clássico, Sonho de uma noite de verão faz emergir o protagonismo de homens comuns, no caso, artesãos que se empenham em ensaiar a peça Píramo e Tisbe, conto romântico da mitologia romana também contado por Ovídio, que irão encenar como interlúdio na festa do casamento do Duque Teseu com Hipólita. Numa mostra de criatividade, Shakespeare mistura esses homens do povo à aristocracia. No entanto, embora seja possível observar que o teatro shakespeariano tenha buscado na Antiguidade clássica muitos aspectos da sua dramaticidade, a leitura cuidadosa do conjunto das comédias de William Shakespeare aponta para um autor que rompeu com a unidade de lugar própria das peças gregas e latinas; com a unidade de ação, uma vez que os personagens secundários têm poder de decisão sobre o andamento da história; e com a unidade de tempo, visto que a trama não necessariamente se desenvolve em um dia. Tanto quanto nas tragédias, é possível constatar que as comédias do dramaturgo inglês, trazem ao palco combinações de opostos – nobres e camponeses, crença e magia, corpos grotescos e graciosos – chamando a atenção para o vasto espectro da experiência humana nas suas leviandades, dores, tristezas, alegrias e mordacidade, ensejando reflexões que se traduzem também na nossa contemporaneidade. Dessa forma, a fruição da comicidade nas comédias inglesas renascentistas mais populares não necessariamente implicava o risível. Suplantava-o. “Algo nasce no final da comédia, e o espectador desse nascimento é um membro de uma sociedade agitada” (FRYE, 2013: 307). A graça das

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

A Antiguidade Clássica em Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare

cenas era identificada, porque os espectadores reconheciam no palco traços humanos que lhes eram familiares, permitindo-lhes apreciar a peça, a despeito da sua escolaridade, condição socioeconômica, profissão, gênero. A influência da dramaticidade clássica no teatro shakespeariano demandaria discussões bem mais verticalizadas. No entanto, fica patente o fato de que seja no teatro clássico, no renascentista, ou no contemporâneo, “o mundo é sempre um grande palco, onde homens e mulheres são meros atores, com suas entradas, saídas e seus vários papeis”.

Referências bibliográficas

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

63

Dossiê Shakespeare

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Capecó: Argos, 2013. BROWN, John Russell. A.C.Bradley on Shakespeare’s tragedies. London: Palgrave MacMillan, 2007 FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica: quatro ensaios. Tradução de Marcus de Martini. São Paulo: Realizações Editora, 2013. GARBER, Marjorie. Shakespeare after all. New York: Anchor Books, 2004. HISCOCK, Andrew, LONGSTAFFE, Stephen (ed.). The Shakespeare handbook. London: Continuum, 2009 SHAKESPEARE, William. The complete Works. Ed. Stanley Wells e Gary Taylor. New York: Oxford University Press, 2005.

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

Espaços da cena shakespeariana Joana Angélica Lavallé

Dossiê Shakespeare

64

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Espaços da cena shakespeariana Joana Angélica Lavallé de Mendonça Silva1 [email protected] O amor ri de muralhas e barreiras. William Shakespeare

RESUMO: A descoberta das ruínas do Globe Theatre e do Rose Theatre em Londres no ano de 1989 propiciou novas perspectivas para pesquisas e especulações a respeito do que teriam sido os espaços de encenação da época de Shakespeare. A partir de estudos de Anne Surgers (2009), Muriel Cunin (2008) e Evelyn Lima (2011 e 2012), o presente artigo pretende discutir aspectos do edifício teatral e da relação do espectador com a cena no período elisabetano, como exercício de gerar subsídios para criações teatrais contemporâneas inspiradas em Shakespeare. PALAVRAS-CHAVE: Shakespeare. Teatro elisabetano. Cenografia. Espaço teatral.

KEYWORDS: Shakespeare. Elizabethan theatre. Scenography. Theatrical space. Sabe-se que investigações em torno de usos dos espaços têm sido primordiais na cena hoje, ao mesmo tempo em que experiências do passado servem como fonte de reflexões críticas para novas criações, releituras e retomadas nos diversos modos de fazer teatro. Quais seriam as possíveis contribuições que o estudo do espaço e da arquitetura do teatro elisabetano pode trazer para a encenação da obra de William Shakespeare (15641616)? A partir da abordagem de pesquisas de Muriel Cunin, Anne Surgers e Evelyn Lima acerca do espaço teatral na cena shakespeariana, têm-se compreensão de práticas artísticas que podem vir a dialogar com determinadas tendências da cenografia contemporânea. No sentido de investigar o teatro e seu espaço, tanto à época de Shakespeare quanto hoje, Evelyn Lima frisa que em qualquer temporalidade o espaço tea1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGAC-UNIRIO) e Professora substituta de Artes Cênicas/Cenografia e Indumentária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

65

Dossiê Shakespeare

ABSTRACT: In the year of 1989, the discovery of the ruins of the Globe Theatre and the Rose Theatre in London has provided new perspectives for research and speculation about what would have been the staging areas of Shakespeare’s time. This article discusses aspects of the theater building and the viewer’s relationship to the Elizabethan scene as an exercise to generate subsidies for theatrical contemporary creations inspired by Shakespeare. It was based on studies of Anne Surgers (2009), Muriel Cunin (2008) and Evelyn Lima (2011 and 2012).

Joana Angélica Lavallé

tral “está relacionado às sociedades que o utilizam, pois existe uma relação de cumplicidade mútua, que trata das características culturais, necessidades funcionais, formulações estéticas [...]” (LIMA, 2012: 65).

Dossiê Shakespeare

66

Por teatro elisabetano entende-se uma forma de teatro público própria da Inglaterra de fins do séculos dezesseis (início do reinado de Elizabeth I, daí a origem do termo) e início do século dezessete, onde fomentam-se mutuamente a arquitetura, a dramaturgia e uma determinada forma de atuação, de acordo com Anne Surgers (2009). Este teatro desenvolve-se sob a proteção de um forte poder político. Esta tipologia arquitetônica de edifício teatral não perdurou significativamente no tempo, sendo suplantada no mundo ocidental pela hegemonia dos palcos do teatro à italiana (ou proscenium arch stage nos países de língua inglesa) há cerca de quatrocentos anos. Praticamente todos os teatros públicos elisabetanos foram destruídos pelos puritanos em 1642 por razões políticas e religiosas, desde então não fazendo mais parte da paisagem de Londres. No entanto, posteriormente, uma vasta produção foi desenvolvida no tempo a partir da obra shakespeariana. As práticas que se materializaram naqueles espaços singulares influenciaram diversas experiências hoje, de modo a evocar para alguns criadores teatrais a vontade de proximidade e encontro com o público. Dotado de grande poder de comunicação com plateias numerosas e heterogêneas, a utopia do teatro elisabetano de certa forma ainda persiste como um dos fundamentos do teatro ocidental. Constata-se a potência de espacialidade presente na escrita cênica de Shakespeare, escrita que levava em conta a presença de uma arquitetura que reunia diariamente milhares de pessoas para ver teatro. De algum modo aquele espaço se insinua no texto e, desta forma, no momento da performance teatral, implica rastros que permanecem. Os teatros públicos localizavam-se nas periferias de cidade, áreas não tão rigorosamente reguladas pelas leis como a City propriamente dita, com entorno livre não limítrofe com outras edificações. A existência de edifícios construídos especificamente para a atividade teatral possibilitou certa liberdade nas novas maneiras de encenar enquanto permaneceram vivas as tradições artísticas das trupes mambembes (LIMA, 2012: 68). Em O teatro e a polis: Shakespeare e Londres, Marlene Soares dos Santos (2002) enfatiza que a compreensão daquele teatro é indissociável do conhecimento da polis que o abriga, a Londres elisabetana. Santos observa que “a tragédia grega está intimamente associada a Atenas [...] da mesma maneira que não se pode separar nem a Broadway de Nova Iorque, nem a Comédie Française de Paris e nem o West End da Londres contemporânea”. Convém avaliar como era o uso daqueles espaços pelos contemporâneos de Shakespeare. Segundo Muriel Cunin (2008), na Londres dos anos 1590, apresentações teatrais aconteciam praticamente todos os dias da semana, com enorme afluência de público: reuniam-se espectadores em um teatro de aspecto monumental na cidade, cujas dimensões, no entanto, mantinham proporções adequadas à escala humana, conforme observa D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Espaços da cena shakespeariana

Lima (2012). Sobretudo pelo fato de surgir da demanda mútua entre atores, autores e espectadores, esta forma de teatro público propiciou uma estreita e múltipla relação com a plateia: No decorrer dos séculos a dramaturgia de Shakespeare assumiu o caráter erudito, porém em sua época era bastante popular, visto que o público de suas apresentações era composto de todas as classes sociais. Vale lembrar que o The Globe comportava uma plateia de cerca de três mil espectadores que reunia dos artesãos e pequenos comerciantes aos aristocratas [...]. (LIMA, 2012: 106) O público pagante era composto de pessoas de todas as classes sociais, embora quanto à distribuição física no espaço teatral, a localização destas classes na plateia fosse nitidamente hierarquizada, de acordo com Lima (2012). Marlene Santos (2002) aponta que Shakespeare e os demais dramaturgos elisabetanos trabalhavam para um empreendimento comercial, cujo público era popular na acepção abrangente da palavra, com exceção dos paupérrimos.

2 Andrew Gurr afirma em The shakespearean stage 1574-1642 que a atividade de dramaturgos e companhias de atores era intensa mesmo antes da existência de edifícios destinados exclusivamente às práticas teatrais, podendo acontecer nas praças, mercados, no interior de residências da nobreza ou na Corte (GURR, 2009:139).

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

67

Dossiê Shakespeare

O “povo”, que pagava ingressos mais baratos, permanecia em pé em torno do palco centralizado e avançado na plateia, o que permitia uma grande proximidade física com o espaço da cena. Já as galerias cobertas e situadas em diferentes níveis abrigavam o público das classes nobres e mais abastadas, que podiam ver e ser vistos amplamente pelo conjunto de espectadores. O boom de construção de teatros que acontece na cidade de Londres dos anos 1590 ocorre devido à crescente demanda de espectadores e ao caráter reconhecidamente popular de um momento de intensa atividade teatral (CUNIN, 2008). Sabe-se que os dramaturgos do período elisabetano em dado momento passaram a escrever tendo em mente estes edifícios teatrais, isto é, a partir do amplo conhecimento e acesso aos espaços onde seriam encenadas suas peças2. Em seu tempo estes textos serviram às encenações das diversas companhias de atores existentes, tendo em vista certas singularidades arquitetônicas. A descoberta das ruínas do Globe Theatre e do Rose Theatre na cidade em 1989 foi um fato que colaborou no interesse e no aprofundamento dos estudos acerca do que teria sido o espaço no qual aquela atividade teatral se desenvolveu, o que gerou novas perspectivas para as pesquisas a respeito da cena elisabetana. O open air amphitheatre foi o espaço teatral mais recorrente para o qual Shakespeare (1564-1616) desenvolveu sua dramaturgia, na qual observou-se a referida incorporação da arquitetura. Estes amphitheatres, entre eles The Globe Theatre e The Swan. apresenta-

Joana Angélica Lavallé

ram certas similaridades que o levaram a constituir-se como tipologia arquitetônica. O que se sabe hoje a respeito das características físicas destes edifícios teatrais permanece no campo das suposições, a partir de desenhos, depoimentos e vestígios arqueológicos dos teatros. A Londres elisabetana, resguardando-se as devidas proporções, era uma cidade populosa e cosmopolita, em cujo porto movimentado circulavam viajantes estrangeiros de diversas nacionalidades. Muitos deles puderam experienciar os teatros. Tem-se como uma das possíveis fontes sobre a arquitetura teatral elisabetana a gravura que representa o interior do teatro The Swan3, produzida pelo estudioso Aernout van Buchel em 1596 base no relato (ou outro desenho) do viajante holandês Johannes de Witt, ou seja, contemporâneo dos primeiros teatros públicos construídos. A partir desta fonte, supõe-se que a estrutura básica dos amphitheatres (SURGERS, 2009:124-125) pode quase sempre ser identificada por:

Dossiê Shakespeare

68

a) planta baixa de forma aparentemente circular ou poligonal: o “wooden O”4 a que se refere Shakespeare no prólogo de Henry V, cujo diâmetro seria de vinte e cinco a trinta metros; b) plateia coberta em três níveis de galerias para os espectadores sentados, contornando o pátio interno vazio. c) pátio interno a céu aberto, com palco centralizado e avançado na parte baixa da plateia, onde os espectadores permaneciam de pé, ou seja, esta seria a localização mais próxima da área de cena para os espectadores, que permaneciam próximos dos atores.

3 Teatro público localizado em Londres na região de Southwark, o bairro dos teatros (LIMA, 2012:23). 4 Em português, “O feito de madeira” (tradução da autora). D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Espaços da cena shakespeariana

69

Na descrição de Santos (1994:83) o teatro elisabetano continha três níveis de palco: o palco externo avançado na plateia, que possuía um alçapão pelos quais poderiam sair figuras infernais, o palco interno coberto e o palco superior, no qual ficavam músicos ou atores, por exemplo, Julieta na famosa cena do balcão. A cenografia e o espaço teatral — vestígios visíveis do momento do espetáculo — nos permitem refletir posteriormente a respeito da cena. De acordo com Surgers (2009), estes amphitheatres estabelecem uma cena aberta, pela diversidade de pontos de vista existentes na plateia e ao mesmo tempo fechada sobre si mesma, em virtude da planta circular do edifício. A partir das relações palco-plateia instituídas nesta estrutura, Surgers desenvolve o conceito de cenografia-arquitetura como característico da cena elisabetana, da qual Shakespeare teria sido um dos principais colaboradores (SURGERS, 2009:141). A arquitetura do teatro elisabetano para Surgers constitui-se como cenografia na medida em que impõe a escritura da cena em diferentes dimensões. O jogo de atuação delineava-se tridimensionalmente neste espaço monumental, o que era propiciado pela presença dos diferentes níveis do espaço cênico do edifício. Esta configuração acaba por induzir seu próprio uso e admite, inclusive, a possibilidade do desenvolvimento de cenas simultâneas. Este desenho da cena, praticamente toda envolvida pelos espectadores, imprimia na performance dos atores uma grande fisicalidade. A ampliação dos movimentos dos atores buscava ocupar aquele palco despojado que aliou monumentalidade e proximidade com

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

Figura 1 - The Swan Theatre, segundo desenho de Van Buchel (1593) a partir de Johannes de Witt, encontrado em 1888.

Joana Angélica Lavallé

Dossiê Shakespeare

70

o público. Como os espetáculos aconteciam durante o dia, atores e público partilham a mesma luminosidade e mudanças climáticas do ambiente, deste modo possivelmente reações visíveis da plateia influenciavam a cena em curso. Muitos espetáculos do teatro elisabetano aconteceram nesta estrutura arquitetônica fixa e a céu aberto, na qual a presença da cenografia, tal qual a compreendemos tradicionalmente, era discreta. É próprio da poética da cena shakespeariana evocar uma multiplicidade de espaços, deslocamentos geográficos e a alternância dinâmica entre ambientes internos e externos. Desta forma a cenografia caracterizava-se pelo uso de elementos de cena de modo metonímico, pela ampliação dos movimentos dos atores e pelo poder de sugestão da palavra que convocava o espectador a saltos imaginários no tempo e no espaço. Quanto ao referido uso metonímico dos elementos cênicos, pode-se estabelecer na cena elisabetana um paralelo com a sinédoque, figura de linguagem amplamente utilizada na dramaturgia shakespeariana conforme analisaram Muriel Cunin (2008) e Surgers (2009). Esta figura de linguagem é uma variante da metonímia, na qual uma parte designa o todo. Com relação à cenografia, por exemplo, uma única árvore como elemento de cena pode sugerir ao espectador do espetáculo a presença de uma floresta. Uma simples placa poderia ser indicativa do local da ação. De que forma se percebe que a materialidade desta tipologia de edifício teatral é levada em consideração no momento da tessitura do texto? Em Shakespeare et l´architecture, Cunin sugere que estas características se insinuam por meio de determinadas falas de personagens e Surgers trata da potência de espacialidade presente nas palavras dos personagens shakespearianos (2009): O mundo é um grande palco E os homens e as mulheres são atores; Tem suas entradas e saídas E um homem tem na vida várias partes [...] (As you like it, II.7)5 A imagem do mundo como palco e do palco como mundo é recorrente, e é compartilhada com o teor simbólico da forma circular como agregadora e propiciadora da experiência de comunhão. A opção por esta configuração através dos tempos representou para seus promotores um sonho de criar um espetáculo vivo, aberto a todos, inclusive nas encenações contemporâneas. Natalie Carrasso analisou o caráter histórico e simbólico da cena central e dos espaços cênicos circulares vistos como potenciais aproximadores da cena e da plateia. A partir do anfiteatro grego, passando pala localização em círculo dos espectadores na cena medieval, a autora conclui que para este teatro inglês representa um lugar intermediário 5 Trecho de Shakespeare traduzido por Barbara Heliodora na introdução do artigo A Inglaterra e o teatro elisabetano. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Espaços da cena shakespeariana

Romeu – Oh! Fala ainda, anjo luminoso! Porque esta noite apareces tão resplandecente sobre minha cabeça como um alado mensageiro celeste, distante dos olhos extáticos e maravilhados mortais que se inclinam para trás para contemplá-lo, quando ele galga as nuvens preguiçosas e navega no seio do ar. (Romeu e Julieta, II-2)7

Estas imagens atribuem uma conotação sublime à personagem Julieta, aspectos que retornam ao longo de todo o texto. Em dado momento aparenta remeter à perspectiva do público: “distante dos olhos extáticos e maravilhados mortais que se inclinam para trás para contemplá-lo”. Deste modo, se aproximam e se comunicam o lugar da ficção, o espaço no qual acontece a performance teatral e a presença física do espectador. Neste sentido, Surgers chama a atenção sobre a ação da retórica8 das imagens poéticas

6 Espaços metafóricos segundo Jean Pierre Ryngaert constituem o conjunto das marcas espaciais de um texto que não estão explicitamente ligadas a um projeto de representação. Inclui todos os advérbios de lugar, verbos que indicam o movimento, imagens, comparações, metáforas e, de maneira geral, todo o léxico do espaço, o que constitui um sistema revelador, por vezes mais rico que as meras informações técnicas. 7 SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Tradução de F. Carlos de Almeida Cunha e Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 8 Surgers frisa que, neste momento, enquanto na Itália renascentista eram desenvolvidos os tratados

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

71

Dossiê Shakespeare

entre o mundo supra-celeste (cuja forma circular do teto a céu aberto o lembra simbolicamente) e o mundo terreno. O uso da cena central, presente no teatro elisabetano, para a autora divide o mesmo simbolismo do espaço que define a forma circular como uma figuração do mundo celeste. Ironicamente as peças shakespearianas contém poucas indicações cênicas que detalhem ambientes e lugares, embora proliferem no texto a menção a determinados espaços metafóricos6 (RYNGAERT, 1996: 89). O cenógrafo ou diretor que empreende um levantamento dos espaços indicados se depara com didascálias sucintas como “Uma praça pública” em Romeu e Julieta e certas traduções, como a de Barbara Heliodora, nem mesmo contém indicações. Como possibilidade de indicação espacial, Cunin (2008) compreende que personagens de Shakespeare evocam metaforicamente características do espaço do teatro elisabetano, que podem vir a ser fonte de subsídios para a criação cênica. Afinal nem todas as indicações são operatórias, elas podem pertencer ao campo poético. Em Romeu e Julieta a menção recorrente a determinados espaços metafóricos aparenta relacionar-se a certas características materiais da arquitetura do teatro elisabetano: a forma circular da planta do edifício, o teto a céu aberto, a existência de vários níveis na cena e na plateia, o que vem a gerar uma infinidade de associações simbólicas. No trecho a seguir nota-se uma proliferação de imagens poéticas que se referem a elementos celestiais, isto é, pertencentes a um plano elevado, o céu, visível naquele teatro:

Joana Angélica Lavallé

como co-criadora dos espaços no momento do espetáculo junto ao público. Neste momento, o espectador acaba por fazer parte da construção da visualidade da cena através do apelo constante à sua imaginação, por meio do texto proferido pelos atores. Como no prólogo de Henry V: Será que esta arena pode conter os vastos campos da França? Será que conseguiremos colocar neste o de madeira todas as batalhas tonitruantes que agitaram o ar em Agincourt, na França? Então, deixem que nós, os autores, que somos apenas cifras para contar esta grande história, trabalhemos sobre as suas forças de imaginação.

Dossiê Shakespeare

72

Estabelece-se uma correlação entre o textual, o visível e o imaginário. Ao estabelecer uma comparação com o teatro à italiana hoje hegemônico, Surgers compreende que o modelo italiano se baseia em uma separação entre a realidade e a ficção, e em uma ilusão de realidade dada visualmente, através do cubo e da perspectiva. O princípio que une a sala à cena elisabetana, em outros termos, que une o real à ficção representada, é oposto ao princípio italiano. Essa diferença de modelos de representação está inscrita no espaço. (SURGERS, 2009: 123). Na busca do sentido do teatro como lugar de encontro não somente de atores, espectadores e lugares, recorre-se a Milton Santos em Técnica, espaço, tempo ao entendermos que temporalidades distintas coexistem e interagem. (SANTOS, M., 1994: 45-46 apud LIMA, 2012:17). Sobre encenações de “clássicos” na cena contemporânea, Pavis (2010:314) observa que, uma vez que esta acontece, não visa alcançar o sentido definitivo daquela obra, e sim acrescentar uma ou outra perspectiva peculiar. O dramaturgo elisabetano Ben Jonson dizia que Shakespeare não pertencia a apenas uma época, e sim a todas. É possível dialogar hoje com a dinâmica da cena shakespeariana em outras configurações espaciais? Como encenar Shakespeare em nossos dias? Shakespeare nosso contemporâneo, obra de Jan Kott encarada com restrições pelos estudos literários, sem dúvida alargou o espectro de possibilidades para os criadores teatrais como Peter Brook e para as versões cinematográficas, a partir da segunda metade do século XX. O teor político, a violência e o erotismo, que permaneceram amenizados pelo viés do Romantismo nos palcos do século XIX, passaram a vir à tona. Kott, não chegou a aprofundar as breves considerações por ele apontadas a respeito de novas espacializações e visualidades para a cena shakespeariana hoje. No entanto, a cada dia ampliam-se as abordagens a respeito do espaço teatral como campo de investigações cênicas, reflexões e práticas que passaram a assumir maior relevância e visibilidade na cena contemporânea. A construção de uma controversa réplica de um espaço teatral elisabetano na Lon-

de arquitetura, na Inglaterra eram os tratados de retórica, que constava como disciplina que integrava o ensino básico e o universitário (SURGERS, 2009). D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Espaços da cena shakespeariana

Figura 2- Romeu e Julieta do grupo Galpão em Belo Horizonte, Festival Internacional de Palco e Rua, 2012. Foto: Guto Muniz. Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/11.124/3572. Acesso em 03/08/2016.

9 Ver artigo de Franklin Hildy Colocando uma cinta ao redor do Globe: a arqueologia e o tamanho do Teatro de Shakespeare (HILDY, 2012:121-138).

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

73

Dossiê Shakespeare

dres atual a partir de estudos e conjecturas, o Shakespearean Globe Theatre9 buscou propiciar, por meio da proposta de retomada do uso desta configuração de espaço teatral, mais uma possibilidade de pesquisa cênica da obra shakespeariana. Entretanto, por mais que companhias de todo o mundo apresentem-se com sucesso de público neste teatro, sabe-se que é impossível pretender reproduzir, no sentido historicizante, a experiência do teatro elisabetano. O grupo Galpão de Belo Horizonte em 2000 e em 2012 apresentou sua montagem de Romeu e Julieta neste edifício teatral conforme analisou Lima (2011:79-86). Esta encantou a plateia inglesa pelo uso espetacular do cancioneiro popular e inspiração no circo-teatro brasileiro, não somente nos aspectos visuais, mas também na valorização de alguns aspectos cômicos do texto trágico. A cenografia do espetáculo dirigido por Gabriel Villela foi a princípio concebida para as ruas e foi predominantemente nesta configuração que a montagem percorreu espaços urbanos de inúmeras cidades brasileiras. Romeu e Julieta do Galpão, entretanto, em qualquer lugar que seja encenada apresenta algumas relações espaciais que dialogam com a cena daquele teatro: a área de cena em formato circular, a cena em diversos níveis, a ênfase na corporeidade do ator e a proximidade física com o público. A cenografia-arquitetura deste espetáculo de rua possui uma estrutura autônoma que pode se instalar em diferentes espaços urbanos sem prejuízo do projeto. A configuração espacial da cena aberta e circular permite a integração entre o lugar teatral, o público e a cenografia.

Joana Angélica Lavallé

Dossiê Shakespeare

74

Após séculos de supremacia do teatro à italiana, e com a ruptura e as experimentações realizadas ao final do século dezenove e ao longo de todo o século vinte, o século XXI é permeado por novas experiências, retomadas e releituras de diversos modos de fazer teatro, o que implicam diferentes formas de experimentação no uso dos espaços e da cenografia em espaços teatrais como o teatro à italiana, os espaços de uso múltiplo, o teatro elisabetano (ou melhor, sua réplica) e os espaços urbanos. Em A porta aberta, Peter Brook desconstrói a suposição de que a qualidade do espaço teatral seja exclusiva de determinada tipologia arquitetônica ou desenho de cena específico. Sobre o que constituiria a qualidade de um espaço teatral, afirma que “[...] o bom espaço é aquele para o qual convergem muitas energias diferentes, e onde todas essas categorias desaparecem”10 (BROOK, 2005:5-6). Embora coloque a questão do espaço como primordial na discussão da encenação contemporânea, Pavis (2010) recusa a tentativa de sistematizar um conjunto de tipologias de cenografias. Como exercício de articulação com uma cena dita “original”, a exemplo daquele realizado cenicamente pelo grupo Galpão, pode-se apontar dentre as pesquisas contemporâneas da cenografia elencadas por Pavis (2005:45-46), aquelas que a meu ver podem dialogar com a cena elisabetana: a) “Abrir” o espaço e multiplicar os pontos de vista a fim de relativizar a percepção única e fixa, distribuir o público em volta ou eventualmente dentro do evento teatral. b) Dispor a cenografia no espaço em função das necessidades do ator e para um projeto dramatúrgico específico; c) Reestruturar a cenografia levando-a a basear-se alternadamente no espaço, no objeto, no figurino: termos que superam a visão do senso comum da cenografia como mera superfície a ser revestida. d) Desmaterializar a cenografia: o uso de materiais leves e de fácil deslocamento possibilita utilizar o palco como prolongamento do movimento dos atores. e) Romper a frontalidade e a chamada caixa cênica italiana de modo a abrir o palco para a plateia, para os olhares e a aproximar o espectador da ação. O palco italiano é percebido como anacrônico, hierarquizado e baseado numa percepção distante e ilusionista. Esta recusa não exclui uma forte retomada deste palco, no entanto não mais como refúgio da verossimilhança. Acrescenta-se a valorização do papel do espectador, o corpo como cenografia e por fim outras perspectivas para a ideia de cenografia-arquitetura, isto é, relações entre a cenografia, o espaço teatral e a cidade na qual estão inseridos. Retomam-se aqui implicações da ideia de cenografia-arquitetura como algo que pode vir a ser levado em conta na criação de espetáculos hoje. A cenografia engloba o espaço teatral e o entorno urbano que a abriga: tudo que já passou por ali, espaço também recep10 As categorias a que Brook se refere são teatro popular, teatro comercial e alta cultura. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Espaços da cena shakespeariana

Figura 3- Os dois cavalheiros de Verona do grupo Nós do Morro no Barbican Theatre. Fotos: Ellie Kurtz. Fonte: acervo do grupo Nós do Morro

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

75

Dossiê Shakespeare

táculo de vidas, memórias e o tempo presente. A encenação de Peter Brook de Timon de Atenas, que reinaugurou o Teatro Bouffes du Nord em Paris, manteve as paredes do edifício expostas em cena, já que remetem a tempo, experiência, memória. Marvin Carlson em Places of performance entende que na experiência teatral deve-se ter a sensibilidade de fazer uso das conotações culturais e espaciais do local na qual ela se estabelece. (CARLSON, 2012:20) Como exemplo da utilização do corpo e do figurino como cenografia, temos a montagem de Os dois cavalheiros de Verona do grupo teatral carioca Nós do Morro em 2006, dirigida por Guti Fraga, Fátima Domingues e Miwa Yanagizawa. Mesmo ao utilizar o palco à italiana, padrão ocidental predominante de espaço teatral, dialoga com a lógica própria da dinâmica do teatro shakespeariano e sua forma de encenação. A cenografia desta montagem, criada por Fernando Mello da Costa, aparenta uma extrema simplicidade. O jogo dos corpos dos atores em cena, a maneira com que eles se distribuem e se deslocam no espaço cênico configuram esta cenografia dinâmica. Os corpos dos atores (juntamente com seus respectivos figurinos) constituem-se como formas plásticas que criam uma composição em três dimensões no espaço cênico. Aquilo que Pavis definiu como espaço gestual: “[...] espaço criado pela presença, a posição cênica e os deslocamentos dos atores: espaço “emitido” e traçado pelo ator, induzido por sua corporeidade, espaço evolutivo suscetível de se estender ou se retrair.”(PAVIS, 2005142). A ausência de grandes estruturas que configuram ambientes ou reproduzam lugares leva ao despojamento do palco, o que permite que as relações espaciais sejam constituídas simbolicamente pelo jogo de atuação que conta com a cumplicidade da plateia e pela manipulação de tecidos que transitam entre o figurino e a cenografia.

Joana Angélica Lavallé

Precisamente hoje vem à tona a valorização cada vez maior da participação do espectador. A cenógrafa Doris Rollemberg observa que no teatro o espaço do observador é também espaço de criação, a ponto de situá-lo como dimensão adicional da cena. (ROLLEMBERG, 2012:3) Esta premissa segue o princípio de igualdade de inteligências artista-espectador preconizado por Jacques Rancière (2010) em suas reflexões acerca das funções do espectador e o teatro contemporâneo. Compreende-se que nos variados modos de fazer teatro hoje coexistem variadas possibilidades de diálogo entre a cena dos anfiteatros da época de Shakespeare e a cena contemporânea. Novas apreensões, tensões e contribuições revigoram as obras no tempo e em outros lugares, o que tem interessado à

Dossiê Shakespeare

76

crítica shakespeariana no atual estado da arte. A despeito do predomínio do uso do palco à italiana e sua respectiva lógica ilusionista, herança do Renascimento, estas considerações a respeito do que teria sido a atividade teatral da época de Shakespeare permitem visualizar certos princípios que podem vir a ser retomados em outros espaços teatrais hoje. Seja como referência, seja como citação ou como exercício de articulação entre temporalidades, afinal as cenografias contemporâneas compreendem praticamente todas as formas já vividas ou imaginadas (ARONSON, 2013:19). Dentre estes princípios, o palco despojado como síntese e a economia de elementos cênicos, explorar relações entre a arquitetura teatral, a cidade, a cenografia e o corpo do ator, a proximidade e cumplicidade estabelecida entre o espectador e a cena, a diversificação dos pontos de vista (no sentido figurado e no sentido literal) e sobretudo a valorização da experiência de comunhão coletiva propiciada pelo teatro. Talvez estes sejam alguns dos aspectos da nova relação elisabetana desejada por Peter Brook. Longe de pretender esgotar possibilidades, refletir acerca do espaço revela redes de sentido que não são exclusivas da cenografia. Deste modo, estas redes não necessariamente precisam ser explicitadas ao pé da letra na encenação, no entanto devem ser levadas em conta numa criação cenográfica. Deste modo, podem se aproximar, comunicar e atritar o lugar da ficção e o lugar da performance teatral. Também podem fazer avançar

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Espaços da cena shakespeariana

na apreciação do espetáculo por parte do espectador, e na sua fruição artística como aquele que a completa livremente com a sua imaginação.

Referências bibliográficas

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

77

Dossiê Shakespeare

ARONSON, Arnold. Cenografia hoje. In: A[l]berto. Revista da São Paulo Escola de Teatro n°5, 2013. Disponível em: http://www.spescoladeteatro.org.br/revista-sp/revistasp-alberto-05. php. Acesso: 15/08/2016. BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Grupo Galpão: diário de montagem (Livro 1 Romeu e Julieta). Belo Horizonte: UFMG, 2003. BROOK, Peter. A porta aberta. Trad. Antonio Mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. CARASSO, Nathalie Toulouse. La Scène centrale: un modèle utopique?, Agôn. Dossiers, N°3: Utopies de la scène, scènes de l’utopie, Réinventer le cercle. Disponível em . Acesso em 7/08/2016. CARLSON, Marvin. A cidade como teatro. In: Revista Percevejo on line, volume 04, número 1, agosto-dezembro de 2012. p. 1-22. CUNIN, Muriel. Shakespeare et l´architecture. Nouvelles inventions pour bien bâtir et bien jouer. Paris: Honoré Champion Éditeur Br, 2008. CRUZ, Doris Rollemberg. A cenografia além do espaço e do tempo. In: Revista Percevejo on-line. Volume 04, Número 02, agosto-dezembro/2012. FERNANDES, Silvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010. GURR, Andrew. The Shakespearean Stage 1574-1642. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. HELIODORA, Barbara. A Inglaterra e o teatro elisabetano. In: CAMATI, Anna S. e Miranda, Célia A. de (org.). Shakespeare sob múltiplos olhares. Curitiba: Ed. Solar do Rosário, 2009. HILDY, Franklin. Colocando uma “cinta” ao redor do The Globe. Arqueologia e tamanho do teatro de Shakespeare. In: LIMA, Evelyn F.W. (org.) Arquitetura, Teatro e Cultura. Rio de Janeiro: Contracapa, p. 117-135. KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2002. LIMA, Evelyn F. W. Le Groupe Galpão et le spectaculaire: L’exemple de Roméo et Juliette au Shakespeare´s Globe Theatre. Sociétés et représentations v. 31, Paris, p. Publications de la Sorbonne, 2011, p. 79-86. Também disponível em www.cairn.info/revue-societes-et-representations-2011-1-page-79.htm. DOI, p. 10.3917/sr.031.0079. Acesso 15/05/2016. LIMA, Evelyn F. W. Notas sobre a cenografia: dispositivos cênicos espetaculares em espetáculos do século XVII e na contemporaneidade. In Revista Urdimento número 20, setembro 2013, pp. 99-107. LIMA, Evelyn F. W. Princípios arquiteturais aplicados aos edifícios teatrais em Londres,

Joana Angélica Lavallé

Dossiê Shakespeare

78

Paris e Madri no final do século XVI e ao longo do século XVII. In: LIMA, Evelyn F.W. (org.) Arquitetura, Teatro e Cultura. Revisitando espaços, cidades e dramaturgos do século XVII. Rio de Janeiro: Contracapa, 2012, p. 63-83. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2005. PORTO, Marta (org.). Nós do Morro, 20 anos. Rio de Janeiro: X Brasil, 2008. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução Daniele Avila. In: Urdimento/ Revista de Estudos em Artes Cênicas/Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós graduação em Teatro. Volume 1, n. 15, outubro 2010, Florianópolis: UDESC/CEART, p. 110-126. RYNGAERT, Jean Pierre. O espaço e o tempo. In Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996. SANTOS, Marlene Soares dos. O teatro e a pólis: Shakespeare e Londres. In: Revista Semear, número 8, 2008. Disponível em: http://www.letras.pucrio.br/unidades%26nucleos/catedra/revista/8Sem_15.html. Acesso em 20/08/2016. SANTOS, Marlene Soares dos. O teatro elisabetano. In: O teatro através da história volume I. (Org.) Carlinda Fragale Pate Nuñez et alii. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil; Entourage Produções Artísticas, 1994, pp. 69-97. SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Tradução Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Tradução de F. Carlos de Almeida Cunha e Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural, 1978. SILVA, Joana Angélica Lavallé de Mendonça. Espaços para Shakespeare no percurso de grupos teatrais brasileiros: Nós do Morro, Bando de Teatro Olodum e Galpão. 2014. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. SILVA, Joana Angélica Lavallé de Mendonça; LIMA, Evelyn Furquim Werneck. O mundo é um palco: uma cenografia-arquitetura nas cidades. In: O Percevejo Online, v. 8, n. 1, 2016, pp. 132-148. SURGERS, Anne. Scénographie du théâtre occidental. Paris: Ed. Arman Colin, 2009.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

Voicing Ophelia: An Analysis of Franco Zeffirelli’s and Kenneth Branagh’s Representation of Ophelia Marina Martins Amaral e José Roberto O’Oshea 79

Dossiê Shakespeare

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Voicing Ophelia: An Analysis of Franco Zeffirelli’s and Kenneth Branagh’s Representation of Ophelia Marina Martins Amaral1 (UFSC) José Roberto O’Shea2 (UFSC)

Abstract: This essay compares and contrasts two different performances of William Shakespeare’s Ophelia. The first performance is from Franco Zeffirelli’s filmic production, Hamlet, from 1990, in which Ophelia is played by Helena Bonhan Carter, and the second is from Kenneth Branagh’s filmic production, Hamlet,from1996, in which the role is played by Kate Winslet. The scene here foregrounded is the famous “madness scene” (4.5), which dramatizes the character’s mental break down and serves as prelude for her iconic death. Key-Words: Ophelia;Franco Zeffirelli;Kenneth Branagh; Madness; Hamlet.

Dossiê Shakespeare

80

Resumo: O presente artigo compara e contrasta duas atuações distintas da personagem Ofélia, de William Shakespeare. A primeira diz respeito à produção fílmica de Franco Zefirelli, Hamlet, de 1990, na qual Ofélia é representada por Helena Bonhan Carter, e a segunda se refere à produção fílmica de Kenneth Branagh, Hamlet, de 1996, em que o papel é desempenhado por Kate Winslet. A cena aqui topicalizada é a célebre “cena da loucura” (ato 4, cena 5), que dramatiza o colapso nervoso da personagem e serve de preludio à sua morte icônica. Palavras-chave: Ofélia; Franco Zefirelli; Kenneth Branagh; Loucura, Hamlet. Ophelia is a deceivingly simple character in Shakespeare’s The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark. The character is a noble young woman, daughter of Polonius and sister of Laertes, and she is in love with prince Hamlet. She is one of the two female characters who appear in the play, and, as the arguable heroine, she ends up going insane and dies drowned. Ophelia stands out in the play in comparison with the other female character, i.e., Gertrude, Queen of Denmark and Prince Hamlet’s mother, although they share some thematic similarities, such as: the condition of being women, their love for prince Hamlet,

1 Bachelor’s degree in the Fine Artsfrom UDESC, Universidade do Estado de Santa Catarina, with an academic extensionat Universidade de Coimbra, in Portugal. Master’s degree in the Fine Arts, also from UDESC, with the dissertation titled “Domingos Fossari: A Memória da Alma no Traço”. Marina is currently a doctoral studentat PGI, with the work inprogresstitled “Reminiscence of Images: The Representation of Shakespeare’s Ophelia in the History of Western Art”. 2 PhD in English and American Literature from The University of North Carolina, Chapel Hill, USA, and Master’s in Literature from The American University, Washington, DC, USA. Professor Titular (retired) from Universidade Federal de Santa Catarina, working full time with the post-graduate program in English. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Voicing Ophelia: An Analysis of Franco Zeffirelli’s and Kenneth Branagh’s Representation of Ophelia

and their status as “traitors” in the vision of the protagonist. According to Leonardo B. A. Carneiro in Thy Name is Woman: A (Re)Construção das Identidades Femininas em Adaptações Narrativas de Hamlet, a doctoral dissertation from 2014, both female characters are involved in thematic ambivalence in the play. Carneiro believes that Ophelia and Gertrude, despite being the object of relatively negative views in much of the Shakespearean criticism over the centuries, have the power to attract the attention of the audience. Gertrude has often been received by the critics as a mischievous adulteress and/or a protective mother. Ophelia went from contempt to acclamation in Victorian adaptations, and both characters have been frequently used in gender discussions about Shakespeare’s drama. In spite of being, strictly speaking, a secondary character, Ophelia has become one of the most important and pictorially represented of Shakespeare’s characters, especially in the visual arts. Yet the similarities and dualities shared by these two female characters have not been perceived in the same manner or with the same persistence, at least not in the history of Western art. Ophelia stands out and has been represented by neoclassic, romantic, Victorians, expressionists, surrealists, symbolists, cubists and post-modern artists, having become iconic, rendered, e.g., in the highly popular painting Ophelia (picture1) by the great master Sir John Everett Millais (1829-96).

81

Dossiê Shakespeare

Picture 1 – Sir John Everett Millais, Ophelia (1851-52)

This intense exposure happens because of the depth and complexity of her character. After all, when we analyze Ophelia, we must consider some intriguing thematic aspects that are intrinsic to her, such as, melancholy, gender issues, psychological depression, and especially the mysterious circumstances of her death. For Alex Miyoshi, in his essay “A escolha de Ofélia: Representações visuais da dama nas águas no século 19”, from 2010, the multiplicity of representations of Ophelia is caused by the ambiguous understanding of the action pertaining to her demise, as famously narrated by Queen Gertrude in mere seventeen and a half lines (act 4, scene7), an action that is not staged, and therefore more suggestive:

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Marina Martins Amaral e José Roberto O’Oshea

There is a willow grows askaunt the brook, That shows his hoary leaves in the glassy stream, Therewith fantastic garlands did she make Of crow-flowers, nettles, daisies, and long purples That liberal shepherds give a grosser name, But our cull-cold maids do dead men’s fingers call them. There on the pendant boughs her crownet weeds Clamb’ring to hang, an envious sliver broke, When down her weedy trophies and herself Fell in the weeping brook. Her clothes spread wide, And mermaid-like awhile they bore her up, Which time she chaunted snatches of old lauds, As one incapable of her own distress, Or like a creature native and indued Unto that element. But long it could not be

Dossiê Shakespeare

82

Till that her garments, heavy with their drink, Pull’d the poor wretch from her melodious lay To muddy death. (166-82)

Drawing on a myriad of filmic options, this essay intends to compare and contrast two specific depictions, actually, performances of Ophelia, one from Kenneth Branagh’s film, played by Kate Winslet, and the other from Franco Zeffirelli’s film, played by Helena Bonhan Carter. The scene analyzed is the famous “madness scene” (4.5), which dramatizes Ophelia’s emotional break down and serves as prelude for iconic her death. Hamlet is the longest Shakespearean play to be staged. Although it has become a classic and, therefore, often staged according to standard aesthetic values of any given time, Hamlet has been produced by hundreds of directors in hundreds of different ways. All such productions are connected by the text--which can be the First Quarto (1603), the Second Quarto (1604), the First Folio(1623), or a conflated edition--but the uniqueness of each production is set by the arrangement of non-textual elements, such as, costume, set, music, lighting, enunciation, stage business, cast, etc. To be sure, Dennis Kennedy, in his book Looking at Shakespeare: A Visual History of Twentieth-century Performance, proposes that “The written drama is usually the foundation of a performance […]” (8). However, Kennedy submits that, although written drama is fundamental to traditional theatre, it is far from being the only or primary rationale. Written drama is a guideline to a play, but what can make a production successful is not the “play on paper” but the “play in action”; by “play in action” we mean what happens on stage, the action that is often referred to as “stage business”, a combination of elements that transform the written play into a unique production. This is the dimension that elicits different approaches D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Voicing Ophelia: An Analysis of Franco Zeffirelli’s and Kenneth Branagh’s Representation of Ophelia

to the same written drama.In order to understand the importance of such elements, and their combination in a production, let us take as case studies two different filmic renderings of the same Shakespeare’s play Hamlet. Two great productions of Hamlet are Kenneth Branagh’s and Franco Zeffirelli’s. Both directors worked with the original written drama, but their respective filmic adaptations of Hamlet could not have been more different from each other. Branagh’s Hamlet, from 1996, is a sizeable production, with a large budget, in which the director displays luxurious costumes and sets. This magnificent version has the exterior scenes shot at Blenheim Palace, in Woodstock, in Central England, and for the interior scenes has a set specially designed to reflect the English baroque style of the palace. Branagh’s Hamlet has significant visual appeal. We can notice that the director shows that Shakespeare did not write his plays for the purpose of being read, but to be staged, to be seen by an audience for the purpose of enjoyment. Branagh states: I do believe that Shakespeare is more understandable when it is performed. His plays were not written as plays which had an immediate life as a published document. They were written very quickly and put on stage very quickly. If they weren’t popular then they were taken off very quickly. Shakespeare’s company had a very commercial intent and purpose. They were all business partners in this venture. If a play didn’t work, it was off.3

3 Available in: http://www.filmeducation.org/pdf/film/Hamlet.pdf. Accessed on: 24/06/2015 4 Available in: http://www.josiebrown.com/signal_editorial/files/Branagh.pdf. Accessed on: 24/06/2015.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

Possibly, in order to make Shakespeare’s text more approachable to the viewers, Branagh uses silent “Flashbacks”, as mechanisms to help the audience visualize parts of the original text that are just spoken in the play and not staged,for example, the death of Hamlet’s father, or prince Hamlet’s famous memory of Yorick playing with him when he was just a kid. Branagh proudly uses the whole text of the First Folio and Second Quarto combined in his production, adding just one word to the original, the word “attack”. The film ends up being one of the longest productions in the history of cinema, with four hours. Disclosing his own interpretation of Shakespeare’s written drama, Branagh makes strong statements in the movie, such as affirming the sexual nature of the relationship between prince Hamlet and Ophelia, which in is one of the most polemic issues in the original play. Branagh’s film is played in a Great War, classy atmosphere. The director explains that he has tried to evoke a more contemporary sense of the classic play in order to make the audience relate better to the production. In an interview for Spotlight,4 made by Josie Brown,Branagh says: “I personally find it hard to accept 20th century Shakespeare, because we’ve had 100 years of films now, and people didn’t talk that way. But look a little further back and you’re not sure how people spoke, so Shakespearean language doesn’t sit so uncomfortably”. And he continues, explaining why he chooses to bring Hamlet forward in time:

83

Marina Martins Amaral e José Roberto O’Oshea

The medieval look for Hamlet – the woe’d look, if you like, the ‘sack top’ look – it does not tell stories to me in the same way. The Elizabethan period doesn’t do it for me either. But in this kind of world, it seemed a good place for that story to be set […]. It was a period in history when a lot of Europe was wronged by few large, extended royal families, often intermarrying with arranged marriages to try and protect boundaries which were always changed anyway. We borrowed from a pretty incestuous and excessive world: the Czarists, the royal family, you know, the Romavovs, The Hapsburgs–both of which had the elegant looks: the women and the men both looked marvelous. (ibid)

Dossiê Shakespeare

84

On the order hand, Zeffirelli’s production, from 1990, is played in a medieval period. The movie was shot in Blackness Castle, close to Edinburgh, in Scotland, Dunnotar Castle, in the east of Scotland, Dover Castle, south-east of England, and sets were built in Muchalls Village, north-east of Scotland, as well.5The film lasts two hours and eighteen minutes. Being much briefer than Branagh’s, this adaptation offers a more concise version of the original text, omitting entire scenes, characters, such as Reinaldo, and famous lines, such as Marcelo’s: “Something is rotten in the state of Denmark” (1.4.90).Zeffirelli’s idea seems to be not to show Hamlet in the same way that it had been played in traditional theater over the years, and,in contrast with the flashbacks used by Branagh, he plays the original text using a direct sequence of events—except for the opening scene, in which we get to see King Hamlet dead. When we analyze Branagh’s and Zeffirelli’s Hamlet the differences are many. The different representations of Ophelia made by the two directors, for instance, which is the main subject of this essay, produce important contrasts if the two productions are analyzed back to back. A great characteristic of Branagh’s film is the attention given to Ophelia. Branagh is arguably the first film director to allow Ophelia to become more than a mere “object”, a character marginally necessary to the plot. Looking at major English language cinema productions of Hamlet, we notice that in Laurence Olivier’s film of 1948, for instance, Ophelia is accorded 803 words; in Zeffirelli’s 456 words; and in Michael Almereyda’s a scant 447 words. In contrast, Branagh’s Ophelia has 1233 words, and the character is allowed her whole soliloquy in act 3.6 When we talk about Ophelia, it is almost impossible to dissociate her from the famous “madness scene” (4.5). This is probably one of the most commented scenes in Hamlet. This scene becomes important in the play because this is the moment when we can see Ophelia’s ruin, after realizing that her father is dead, killed by her lover, that she is being rejected by prince Hamlet, and that she is left alone, since her only family, her brother, is absent. 5 ZUBA, Márcio Eduardo. Do texto dramático para a tela: Hamlet por Franco Zeffirelli. TCC (Graduação)- Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Humanas e Letras, Departamento de Letras Estrangeiras Modernas, Curitiba, 2006. Available in: http://www.letras.ufpr.br/documentos/graduacao/monografias/ss_2006/Marcio_Zuba.pdf 6 LEONARD, Kendra Preston. The Lady Vanishes: Aurality and Agency in Cinematic Ophelias. Available in: http://kendraprestonleonard.com/wp-content/uploads/2013/08/The-Lady-Vanishes.pdf D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Voicing Ophelia: An Analysis of Franco Zeffirelli’s and Kenneth Branagh’s Representation of Ophelia

Picture 2- Frame 1:16’17”/CD2. Film Hamlet, dir. Kenneth Branagh.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

85

Dossiê Shakespeare

Branagh’s production stars Kate Winslet as Ophelia, portraying a strong-willed and mature young woman, whereas in Zeffirelli’s version, Helena Bonham Carter portrays Ophelia as almost childlike and dreamy. Hence,the directors present two altogether unlike “madness scenes”.Branagh’s “madness scene” is played in a large, luxurious mirror room of the Palace, and was filmed in a long-shot scene. First Ophelia appears in a radical visual interpolation, inside a padded cell, wearing a strait jacket,bouncing herself against the walls, trying to get out. The camera shoots her from above, from the point of view of Queen Gertrude, who watches Ophelia from an opening on the ceiling of the cell (picture 2). In the following shot, she appears released from the cell, laying down on the shiny floor of the mirror room, still wearing the straitjacket, saying the line: “Where is the beauteous majesty of Denmark?” The queen unties the jacket, Ophelia struggles and sits up (picture 3). King Claudius, then, enters the scene and seems disturbed by the apparently nonsense songs sung by Ophelia. She talks to the king in a calm way until he mentions her father’s death. Then, she screams and runs to the back of the room.The camera that was positioned to film all the characters from a front/group point of view now is located in the opposite side of the room, filming all the characters from the back, except Ophelia (picture 4). The shot places the observer in the position of one of the characters, watching Ophelia’s mental break down. Ophelia starts to sing, in a closer shot. The king calls her name and attracts her attention. She walks back towards him and starts to sing the famous Saint Valentine’s Day song, with intense sexual content; meantime, she lies on the floor and moves erotically (picture 5). The camera begins in a close-up shot and then turns into flashbacks of Ophelia in bed with prince Hamlet, a scene which, as we have argued, foregrounds Branagh’s interpretation of the sexual nature of the young couple’s relationship. Then, the king tries to fasten her jacket again, the camera turns into an open shot, Ophelia manages to escape and leaves the room running into the palace (picture 6). This scene has two most appealing characteristics. First, we are shown the temperance of Branagh’s Ophelia. Even taken by insanity, she manages to show maturity as a young woman, an innocent but not naïve person. She is portrayed as a strong figure who lives in a man’s world. And second, we have the reaction of the king and queen. They seem disturbed, but there is no deep pain or compassion to Ophelia in their actions. It seems more a selfish concern, apparently different from Zeffirelli’s queen’s reaction.

Marina Martins Amaral e José Roberto O’Oshea

Picture 3 - Frame 1: 18’55”/ CD2. Film Hamlet, dir. Kenneth Branagh.

Dossiê Shakespeare

86

Picture 4 - Frame 00’10”/CD3. Film Hamlet, dir. Kenneth Branagh.

Picture 5 - Frame 00’46”/CD3. Film Hamlet, dir. Kenneth Branagh.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Voicing Ophelia: An Analysis of Franco Zeffirelli’s and Kenneth Branagh’s Representation of Ophelia

Picture 6 - Frame 01’41”/CD3. Film Hamlet, dir. Kenneth Branagh.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

87

Dossiê Shakespeare

By contrast, in Zeffirelli’s production we see a childlike, helpless Ophelia. The “madness” scene starts with Ophelia in a medium shot emerging behind a brick wall outside the castle (picture 7). She wears a dirty, shapeless gown that makes her look like a little girl; the camera follows her; she acts crazy and erotically with some guard, singing parts of the Saint Valentine’s Day song and playing with his belt in a sexual way (picture 8). An independent shot shows the queen watching Ophelia from a window. Here, Ophelia runs into the castle, and, different from Branagh’s, who lies down on the floor, demands to see Gertrude and says the classic line: “Where is the beauteous majesty of Denmark?” She goes on singing, looking devastated. The camera goes back and forth, from Ophelia to the queen, while both walk slowly toward each other. The queen stops walking; she seems to be afraid, and tries to escape from the awkward situation. The king enters and the queen then no longer seems afraid, but in deep pain for Ophelia’s predicament, feeling pity for the young noble girl who is falling apart in front of her eyes. However, differently from Branagh’s Ophelia, who delivers her lines in front of the king and queen desolate by her own sad fate, Zeffirelli’s sometimes in the scene seems to coerce the queen and king, although not in a conscious way. The king tries to talk to Ophelia, who delivers what appears to be at first nonsense lines. Then, she brings her hands to her head and starts making insane sounds (picture 9). She sits down on the floor. The camera plays again with back and forth perspectives, from Ophelia to the people in the castle, showing her as the center of attention--she is the one being watched. In a long shot we see Ophelia walking away and saying good-bye to some ladies, who follow her out of the castle (picture 10). The queen ends the scene crying, and Ophelia, in despair, cries outside the castle, clawing on the brick walls (picture 11). Finally, Ophelia is carried away.

Marina Martins Amaral e José Roberto O’Oshea

Picture 7 - Frame 1 18’17”. Film Hamlet, dir. Franco Zefirelli.

Dossiê Shakespeare

88

Picture 8 - Frame 1 19’16”. Film Hamlet, dir. Franco Zefirelli.

Picture 9–Frame 1 21’27”. Film Hamlet, dir. Franco Zefirelli. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Voicing Ophelia: An Analysis of Franco Zeffirelli’s and Kenneth Branagh’s Representation of Ophelia

Picture 10 - Frame 1 22’21”. Film Hamlet, dir. Franco Zefirelli.

89

Dossiê Shakespeare

Picture 11 – Frame 1 22’59”. Film Hamlet, dir. Franco Zefirelli.

Deconstructing our visual reminiscence of Millais’s classic representation of drowned Ophelia floating on her back (fig. 1), Branagh, in his film, has Ophelia die floating face down in a river. This is a woman who appears to have been sorely abused and who somehow took her fate into her own hands. We can say that Winslet’s Ophelia’s death is not accidental. But Bonham Carter’s Ophelia’s death might have been.These two Ophelias differ from each other in many ways, but in Zeffirelli’s production Ophelia descends into madness reverting herself to an earlier stage of life. She often opens her eyes wide and changes her expression and mood, from happy to sad, to lunatic, to indignant, suddenly, as if she is not in control of her body. Sometimes she seems afraid of being caught, glaring at the sides, hiding behind walls, like a child. But although Branagh’s Ophelia becomes a lunatic as well, her insanity seems more due to anger caused by how she is treated and by her present situation. She does not scream or change expression or lose control of her

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Marina Martins Amaral e José Roberto O’Oshea

Dossiê Shakespeare

90

body.Winslet portrays a mad, self-conscious Ophelia; her face is calm and her voice even.7 Despite the fact that Ophelia is supposedly a minor character in Hamlet, she can be understood today as one of the most intriguing figures in the play. Her change--from being a fair maiden to madness, followed by a mysterious death--presents a greater complexity to the character than we can initially notice. For Yi-Chi Chen (2011), Ophelia is more than just a flat character that Shakespeare arranges to play as Gertrude’s double or to strengthen the tragic effects of the play. With her transformation from the obedient daughter of Polonius to the mad woman who speaks of bawdy connotations at the court, Ophelia’s madness displays her inner conflicts and plight that she fails to ease. (CHEN, 2011, p.01) Thus, the madness scene in Hamlet is the moment when the audience gets in contact with the true voice of Ophelia. It is through bawdy language and the “inappropriate behavior” that Ophelia truly expresses her plight and manages to deal with her deep suffering. Ophelia’s madness serves as freedom to the submissive character that we saw in the beginning of the play, and also as protection, since being mad can relieve the pain of her grim reality: the death of her father and the neglect of her lover, prince Hamlet. Modesty and sensuality, accidental or voluntary death, tragic or romantic action, these are some of the complex thematic issues that surround Ophelia. A written drama offers many different interpretations. We have had innumerous Ophelias, and Hamlets, throughout time, and we will have a lot more, if productions continue to be made. Ultimately, when we compare and contrast Branagh’s and Zeffirelli’s Ophelias, we can conclude how important is the director’s interpretation and reading of a play. A director’s adaptation can “make” or “break” a production and can shape the idea that the audience has in relation to a given play text. There is no right way to portray Ophelia, of course. There are many Ophelias, one different from the other. However, for the sake of artistic success, each and every Ophelia had better be consistent with their own production, making sense between the written text and the visual text.

References: CARNEIRO, Leonardo Bérenger Alves. Thy Name is Woman: A (Re)construção das Identidades Femininas em Adaptações Narrativas de Hamlet. PHD Dissertation. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014. CHEN, Yi-Chi. “Pregnant with Madness— Ophelia’s Struggle and Madness in Hamlet”. Lecturer of the Language Center, Southern Taiwan University, 2011. KENNEDY, Dennis.Looking at Shakespeare: A Visual History of Twentieth-Century Performance. Second Edition. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

7 Available in: http://wps.ablongman.com/wps/media/objects/1570/1608209/writing/model_docs/ synth.pdf. Accessed on: 24/06/2015. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Voicing Ophelia: An Analysis of Franco Zeffirelli’s and Kenneth Branagh’s Representation of Ophelia

LEONARD, Kendra Preston. The Lady Vanishes: Aurality and Agency in Cinematic Ophelias. Available in: http://kendraprestonleonard.com/wp-content/uploads/2013/08/ The-Lady-Vanishes.pdf MIYOSHI, Alex. “A escolha de Ofélia:  Representações visuais  da dama nas águas no século 19”.Revista de História da Arte e Arqueologia. Campinas: Unicamp, vol. 13. (2010): (79-92). SHAKESPEARE, William. Hamlet, Prince of Denmark. The Riverside Shakespeare. Second Edition. G. Blakemore Evans et al. Boston: Houghton Mifflin Co, 1997. 11891234. ZUBA, Márcio Eduardo. Do texto dramático para a tela: Hamlet por Franco Zeffirelli. TCC/Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2006. Available in: http://www.letras.ufpr.br/documentos/graduacao/monografias/ss_2006/Marcio_Zuba.pdf

Online References:

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

91

Dossiê Shakespeare

http://www.filmeducation.org/pdf/film/Hamlet.pdf http://wps.ablongman.com/wps/media/objects/1570/1608209/writing/model_docs/ synth.pdf http://www.josiebrown.com/signal_editorial/files/Branagh.pdf

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

The Portrayal of King Henry in Kenneth Branagh’s Adaptation of Henry V Janaina Mirian Rosa e Ketlyn Mara Rosa Dossiê Shakespeare

92

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

The Portrayal of King Henry in Kenneth Branagh’s Adaptation of Henry V Janaina Mirian Rosa1 (UFSC) Ketlyn Mara Rosa2 (UFSC)

Abstract: The issue of war is present in a number of Shakespeare’s works, one of them being Henry V. The figure of King Henry, his motivations to go to war, and his behavior in the battlefield are among some of the elements that can be explored in theatrical and filmic productions. The aim of this article is to cinematically analyze the film adaptation of the play, directed by Kenneth Branagh in 1989, more specifically the portrayal of the complex figure of King Henry, as well as how war, violence, and their consequences are visually presented, mostly focusing on the battle of Agincourt. Keywords: Henry V, Film adaptation, War, Violence

Palavras-Chave: Henry V, Adaptação fílmica, Guerra, Violência The issue of war is present in a number of Shakespeare’s works, one of them being Henry V. In fact, Barbara A. Mowat and Paul Werstine comment on the popularity of the play by saying that “Henry V is Shakespeare’s most famous ‘war play’, perhaps because it represents war in such a variety of ways and thereby tests whatever understanding of

1 Janaina Mirian Rosa holds an MA degree in English and Corresponding Literature (UFSC, 2015), which concentrated on the study of Shakespeare’s plays in performance, more specifically, the analysis of Folias d’Arte’s production of Otelo.Her current PhD research at UFSC also focuses on the investigation of Shakespeare’s works in performance, this time examining productions of Hamlet,under the supervision of Professor José Roberto O’Shea (UFSC). Email: janainamrosa@ yahoo.com.br. 2 Ketlyn Mara Rosa holds an MA degree in English and Corresponding Literature (UFSC, 2015) focused on the filmic representations of graphic violence in the World War II miniseries Band of Brothers. Her current PhD research at UFSC looks into the spatial and technological representations of contemporary wars in cinema, under the supervision of Professor Anelise Corseuil (UFSC) and Professor Robert Burgoyne (University of St. Andrews). Email: [email protected].

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

93

Dossiê Shakespeare

Resumo: O tema da guerra está presente em várias peças de Shakespeare, uma delas sendo a obra Henrique V. A figura do Rei Henrique, suas motivações para participar da guerra, e seu comportamento no campo de batalha são alguns elementos que podem ser explorados em produções teatrais e fílmicas. O objetivo deste artigo é fazer uma análise cinemática da adaptação da peça dirigida por Kenneth Branagh em 1989, mais especificamente em relação à representação da figura complexa do Rei Henrique, além de investigar como a guerra, violência e suas consequências são visualmente apresentadas, focando na batalha de Agincourt.

Janaina Mirian Rosa e Ketlyn Mara Rosa

war we may bring to it” (MOWAT; WERSTINE 2004:xiii). The figure of King Henry, his motivations to go to war, and his behavior in the battlefield are among some of the elements that can be explored in theatrical and filmic productions. The aim of this article is to cinematically analyze the film adaptation of the play, directed by Kenneth Branagh in 1989, more specifically the portrayal of the complex figure of King Henry, as well as how war, violence, and their consequences are visually presented, mostly focusing on the battle of Agincourt. The historical and political context regarding the composition of Henry V was of military turmoil for England that involved, for instance, the conflict with the Spanish Armada. Andrew Gurr illustrates this historical moment by observing that:

Dossiê Shakespeare

94

Shakespeare’s play was written as the conclusion of his long series of plays about English history which he started near the beginning of the 1590s. It was a militaristic decade, starting with vivid memories of the Armada of 1588 heightened by a renewed Spanish attempt at invasion in 1592, and marked by the long campaigns that had begun across the North Sea in the 1580s, where English armies were aiding the Protestants of the Netherlands against their Spanish masters. London was full of news about these campaigns, and periodically full of soldiers discharged or on leave. (GURR 2005:1)

Therefore, this militaristic context can be perceived in the intense foregrounding of the war conflict during the play and its violent outcome. The play itself suggests a sense of ambiguity regarding on the one hand the glorification of war and the conquests of King Henry, and on the other hand the demystification and criticism of the military grandeur. In the playtext, it is possible to perceive elements that address the exaltation of war and the figure of the king due to his brave engagement in the battlefield. Mowat and Werstine observe such aspects, more specifically in relation to the role of the Chorus and King Henry’s speeches associated with the siege of Harfleur and the battle of Agincourt: Some of the play glorifies war, especially the play’s Choruses and Henry’s speeches urging his troops into battle: “Once more unto the breach, dear friends, once more, / Or close the wall up with our English dead!” During this first engagement between the invading English army and the French at Harfleur, Henry tells his men that they can never be more truly and gloriously the sons of their fathers than in making war. The play’s Chorus urges us to join the invasion by grappling our imaginations to the sterns of Henry’s ships as they set sail for France, and then to join with the Chorus in praise of Henry on the eve of his greatest battle, Agincourt: “Praise and glory on his head!” Repeatedly the Chorus glorifies the warlike king, calling him “the mirror,” or paragon, “of all Christian kings” and “this star of England”. (MOWAT; WERSTINE 2004:xiii)

As it can be perceived in Mowat and Werstine’s comment, war is portrayed as a very favorable circumstance to achieve a sense of honorable accomplishment. King Henry apD R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

The Portrayal of King Henry in Kenneth Branagh’s Adaptation of Henry V

pears as a majestic figure, an image reinforced by the Chorus, who should be appreciated as the rightful leader of England. As for the unmasking of the gruesome side of war and the criticism attached to it, the playtext offers references to greediness and atrocities. Mowat and Werstine point out the figures of the bishops scheming about war and taxes, the soldiers in search of their own financial advantage, and King Henry making allusions to the monstrosities of war: But when the Chorus is offstage we hear other voices of war that are less alluring. We hear bishops conniving for war so that they can postpone a bill in Parliament that would heavily tax the Church’s wealth. Then we hear soldiers in a tavern enthusiastic for war, not in the hope of winning glory, but in the expectation of reaping profits (“To suck, to suck, the very blood to suck”). Even in the impressive speeches of Henry and his nobles threatening the French, there are many chilling references to the human cost of war, to “the widows’ tears, the orphans’ cries, / ... the privèd maidens’ groans” for dead combatants, as well as to the horrors awaiting the non-combatants: “the filthy and contagious clouds / Of heavy murder, spoil,” rape, and infanticide. (MOWAT; WERSTINE 2004:xiii-xiv)

Olivier cut all the darker underside of Shakespeare’s conception of Henry V by eliminating his barely controlled anger at being mocked by the Dauphin and discarding the traitors’ scene, the violent threats at Harfleur, the hanging of Bardolph, and the order to “Kill all the prisoners”. The film made a stunning contrast with the World War II England, hammered from above by Hit-

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

The circumstances around war, as it will be perceived in the film to be analyzed in this article, can be structured in a way that often involve petty machinations and physically violent acts as a stark opposition to the idealization of war. Gurr also comments on the issue of ambiguity in the playtext regarding the role of the Chorus in praising Henry’s patriotic achievements as opposed to the dubious outcomes of the battles. The critic states that “in some significant respects Henry V offers on its surface the patriotic triumphalism of a Chorus who glorifies Henry’s conquests, while through the story itself runs a strong hint of scepticism about the terms and the nature of his victories” (GURR 2005:2). In relation to film and theatrical productions of this Shakespeare’s play, the manner in which Henry’s decisions are portrayed determine what kind of focus is given to his character, and also what approach is being offered to the understanding of war conflicts. In 1944, Laurence Olivier directed and played the leading role in the filmic adaptation of Henry V, culturally immersed in a World War II context, which highlights the remembrance of England’s triumphant cultural tradition. In order to portray an absolute heroic and fair King Henry, Olivier removes significant passages that emphasize the ambiguous nature of the character. As Samuel Crowl remarks:

95

Janaina Mirian Rosa e Ketlyn Mara Rosa

ler’s Luftwaffe and from below by the daily deprivations of wartime existence. (CROWL 2006:20)

Dossiê Shakespeare

96

Such cutting of passages in Olivier’s film endorses the patriotic view of King Henry, avoiding the criticism related to the abusive behavior and negligent mind frame of world leaders. Branagh’s filmic adaptation of Henry V offers a somber version of the king. It was released in a quite distinct historical context in comparison to Olivier’s, that is, a post-Vietnam and The Falklands War environment. Crowl comments that while Olivier nurtures a feeling of going to war, as the invasion of France by the Allies was about to happen, Branagh, who also plays the title role, does the opposite by emphasizing the significance of returning home (CROWL 2006:32). In cinematic terms, Branagh’s version makes use of darker colors, shadows, and the outdoor scenes are mostly shot while raining (CROWL 2006:22). Also, the film opts from the start to establish a claustrophobic atmosphere with a lack of establishing shots and extensive use of close-up shots. Crowl gives as an example one of the initial scenes of the film between the Archbishop of Canterbury (Charles Kay) and the Bishop of Ely (Alec McCowen) in which their conversation is depicted in a fast pace, with quick cuts to each character’s reaction shots in close-up (CROWL 2006:23). One scene in Branagh’s Henry V that features the abusive and violent ways of the king is the depiction of his threatening speech when conquering Harfleur. With words filled with menacing intentions, Henry gives an ultimatum to the French Governor (David Lloyd Meredith). The portrayal of the following lines delivered by Branagh’s Henry emphasizes his brutal and unforgiving stance: KING HENRY. Therefore, you men of Harfleur, Take pity of your town and of your people Whiles yet my soldiers are in my command, Whiles yet the cool and temperate wind of grace O’erblows the filthy and contagious clouds Of heady murder, spoil, and villany. If not, why, in a moment look to see The blind and bloody soldier with foul hand Desire the locks of your shrill-shrieking daughters, Your fathers taken by the silver beards And their most reverend heads dashed to the walls, Your naked infants spitted upon pikes Whiles the mad mothers, with their howls confused, Do break the clouds (3.3.27-40)3

3 Excerpt extracted from the online Folger Shakespeare Library edition of The Life of King Henry V. In the film, Branagh’s Henry’s lines are equivalent to the aforementioned excerpt, apart from line D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

The Portrayal of King Henry in Kenneth Branagh’s Adaptation of Henry V

The cinematic depiction of the passage cited above starts with an extreme long shot in a high angle with Henry on his horse and positioned in the center of the image. The corners are dark while the center illuminates his figure (see fig. 1)4. Most of the speech is given in a medium shot of Henry in a low angle which produces the effect of empowering him (see fig. 2). His words are spoken in an angry and aggressive manner until the end of the speech which culminates in a close-up as he almost screams out the offenses (see fig. 3). The reaction of the Governor of Harfleur (David Lloyd Meredith) is of hopelessness as he is aware that he has no means of defending the town (see fig. 4). The townspeople are depicted as faceless shadows who move around the fog to listen to the terrifying speech (see fig. 5). Henry’s wrath becomes visible in this sequence, which refers to one of the passages removed from Olivier’s film, and reveals the cold-hearted nature of the king.

97 Fig. 2. Medium shot of Henry

Fig. 3. Henry’s close-up

Fig. 4. French Governor’s reaction

Fig. 5. The people of Harfleur

35 in which the word “Desire” is replaced by “defile”. 4 All pictures in this article are taken from Branagh’s Henry V (1989).

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

Fig. 1. Extreme long shot

Janaina Mirian Rosa e Ketlyn Mara Rosa

The patriotic flame of King Henry is certainly revealed during the portrayal of his speech before the battle of Agincourt,5 presenting a majestic and heroic leader who encourages his soldiers even against all the odds of the battle. The depiction of the speech starts as a tracking shot slowly approaches Henry surrounded by his soldiers. Among the trees and his men, Henry is calm and happy, delivering words of hope to the impeding battle. The tracking shot stops as Henry climbs a wagon and confidently continues delivering his speech (see fig. 6). The next shot is a medium close-up of him, accompanied by a triumphant soundtrack, followed by a slightly high angle shot of the soldiers’ reactions to the speech (see figs. 7 and 8). They seem pleased and encouraged by the bravery of their commander. Henry is then framed in a tighter shot, a close-up (see fig. 9), in the moment when he spiritedly delivers one of the most iconic passages of his speech:

Dossiê Shakespeare

98

KING HENRY From this day to the ending of the world, But we in it shall be rememberèd— We few, we happy few, we band of brothers; For he today that sheds his blood with me Shall be my brother; (4.3.60-64)6 The climax of the scene is portrayed in a long shot in which Henry is centered and surrounded by his friendly soldiers. As the king proudly raises his arm and finishes his speech, the soldiers produce a loud and powerful cheer that echoes for a few seconds (see fig. 10). Such scene evokes a strong feeling of patriotism and exalts Henry as a majestic and trustworthy figure who defends the honor of his country.

Fig. 6. Henry gives his speech among the soldiers

5 In the online Folger Shakespeare Library edition of The Life of King Henry V, the aforementioned speech is located in 4.3. 6 Excerpt extracted from the online Folger Shakespeare Library edition of The Life of King Henry V. Branagh’s Henry’s lines are equivalent to the aforementioned excerpt. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

The Portrayal of King Henry in Kenneth Branagh’s Adaptation of Henry V

Figs. 7 and 8. Henry in a middle close-up and the soldiers’ reaction

Fig. 9. An emotional close-up

Fig. 10. The triumphant finale

Figs. 11 and 12. The Duke of York is killed in battle

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

99

Dossiê Shakespeare

There is a clash, however, between the patriotism of Henry’s speech and the cruel portrayal of the battle of Agincourt. War is depicted in a very intimate way in the film. There are no establishing shots of the battlefield to locate the encounter of the armies. The tight framing of the battle sequence brings a claustrophobic feeling through closeups. For instance, the French army cannot be seen approaching the English in the beginning of the battle. Only the apprehensive reaction shots of the English soldiers and the sounds of the incoming galloping horses can be heard. Once they meet, the encounter becomes bloody, as arrows rain from the sky, men are slain, stabbed in the back, and drown one another in the mud. In one of the most graphic deaths of the battle scene, the Duke of York (James Simmons) is killed by seven French soldiers who circle him. In a medium long shot, the Duke emerges from the middle of the French soldiers, centralized in the frame with blood spurting from his mouth, only to be complemented by a close-up of his face which highlights his despair and pain (see figs. 11 and 12). The display of merciless violence in the field contrasts with the cheerful and encouraging environment promoted by the king before the battle of Agincourt.

Janaina Mirian Rosa e Ketlyn Mara Rosa

Another element that challenges the idea of glorifying war is the presence of mud as a recurrent adversity in the soldiers’ daily life and battle circumstances. According to Santanu Das “mud confuses the categories of solid and liquid. Moreover, it clings to the human body defying its own inert nature and giving the impression of malevolent agency” (DAS 2008:35). In the film, mud stands for another layer of hardship, a sensorial difficulty that attaches itself to one’s body, drags the soldiers down, and prevents full movement. The movie portrays a long walk to Agincourt in which the soldiers experience terrible weather, with constant rain and therefore abundant mud on the roads. In one of the shots, the English flag is dragged through the mud, and in another, a boy falls face down on the mud when trying to push a cart (see figs. 13 and 14). It is possible to observe that these images stand for the lack of glory for the soldiers who are involved in the war efforts. The slimy and viscous environment is extended to the battlefield which features multiple dead bodies disgracefully splashing on the mud (see fig. 15). These images are far from the idealized and patriotic view of sacrifice from Henry’s words.

Dossiê Shakespeare

100

Figs. 13, 14, and 15. The mud on the roads and battlefield

At the end of the battle, the film displays a long take that evokes the somber consequences of war, that is, the destruction and death brought upon the participants of the conflict. The sequence starts with a close-up of one of the soldiers singing “Non Nobis” as the frame opens to disclose the wrecked battlefield and the figure of King Henry carrying a dead boy on his shoulder. The camera tracks along Henry and the soldiers whose path displays a catalogue of gruesome images (see fig. 16): a destroyed landscape, black smoke in the background, a battlefield littered with inert bodies, dead soldiers on trees and spikes, dead horses, pools of blood, and men looting dead bodies. The pitiful procession includes a group of desperate women who approach the dead body of the boy carried by the king (see fig. 17). Henry’s facial expression throughout his path is not of heroic D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

The Portrayal of King Henry in Kenneth Branagh’s Adaptation of Henry V

contemplation for the victory (see fig. 18). His last image in the long take is a medium close-up with his eyes closed and head down, showing a battered king (see fig. 19). The lack of dignity and the insurmountable disrespect for human life displayed on the battlefield, suggested by the long take, also contrasts with the ideal of conquests and honorable fight. The palpable consequences of bloodshed shown in the film highlight the cost of war for those involved in the clashes.

Fig. 16. Henry walks along the destroyed field Fig. 17. Women trying to reach the boy

101

Thus, the complexity of the character King Henry in the film relies on the fact that he can be considered either a great leader and faithful patriot who confronts the French or a cold-hearted king who threatens others with violence and abuse. In the depiction of the siege of Harfleur, for instance, Henry demonstrates a menacing attitude towards the Governor and the people of the town, intimidating them with unimaginable horrors. This scene suggests the dark side of Henry’s nature, emphasizing that as a conquering king he cannot always maintain his immaculate image. In the portrayal of the speech that precedes the battle of Agincourt, however, Henry personifies the figure of a majestic and encouraging king who claims to have a purposeful aim for his country and soldiers. The representation of the battle of Agincourt itself, on the other hand, seems to evoke the feeling of waste and destruction, both in material terms and number of casualties. The complexity of the figure of King Henry is constantly dealt with in the film, showing some moments in which he is portrayed as a heroic figure and others as a tyrant. However, the representation of war in the film strongly proposes the idea of massacre and severe consequences in which lives were lost in the name of England, that is, to please the greediness of high officers to conquer more land and power.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

Fig. 18. Henry’s expression Fig. 19. Henry’s medium close-up

Janaina Mirian Rosa e Ketlyn Mara Rosa

References CROWL, S. The Films of Kenneth Branagh. Westport: Praeger, 2006. DAS, S. Touch and Intimacy in First World War Literature. London: Cambridge University Press, 2008. Henry V. Dir. Kenneth Branagh. Renaissance Films and BBC, 1989. SHAKESPEARE, W. King Henry V. Ed. Andrew Gurr. New Cambridge Shakespeare. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. ---. The Life of King Henry V. Eds. Barbara A. Mowat and Paul Werstine. Folger Shakespeare Library. Link: http://www.folgerdigitaltexts.org/PDF/H5.pdf. ---. The Life of King Henry V. Eds. Barbara A. Mowat and Paul Werstine. Folger Shakespeare Library. New York: Washington Square Press, 2004.

Dossiê Shakespeare

102

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

“How ill this taper burns!” The Dramaturgy of Shakespeare’s Julius Caesar at the Globe Dr. Alexander Martin Gross 103

Dossiê Shakespeare

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

“How ill this taper burns!” The Dramaturgy of Shakespeare’s Julius Caesar at the Globe Dr. Alexander Martin Gross1 Universidade Federal de Santa Catarina [email protected]

Dossiê Shakespeare

104

Abstract: The Globe theatre, built in London in 1599, is the prime example of the Renaissance stage and its associated conventions, and this article points to the variety of ways in which William Shakespeare’s immediate physical environment is inscribed in his work. The article discusses the structural features and theatrical resources of the Globe with reference to Shakespeare’s The Tragedy of Julius Caesar. The structure of the playhouse, the expectations of its audiences, and the resources at the disposal of the playing company all helped to shape Shakespeare’s dramaturgy. Key moments from the play text are employed in order to illustrate the significance of working conditions in Shakespeare’s writing for the new playhouse, with three scenes from Julius Caesar discussed in detail. The scenic economy of the Renaissance stage is considered in terms of theatre historian J. L. Styan’s principle of “imaginative neutrality,” and the importance of three-dimensional staging and a collaborative audience is highlighted. The concept of metatheatre, which applies to moments of theatrical self-consciousness that draw attention to the status of a given play as a fiction, is discussed with reference to the local significance of performances at the Globe, and to Shakespeare’s use of anachronisms in a Roman setting. The article also discusses the rapid progress of time and transposition of scenes which characterise Julius Caesar in terms of dramatic intensity, and suggests that these are resultant from the conditions of performance at the playhouse. Keywords: Shakespeare; Globe theatre; Julius Caesar; Metatheatre. Resumo: O Teatro Globe, construído em Londres em 1599, é o exemplo cardinal do palco Renascentista e suas convenções associadas, e este artigo aponta as várias maneiras em que o ambiente físico imediato de William Shakespeare está inscrito em sua obra. O artigo aborda os elementos estruturais e recursos teatrais do Globe no que se refere à Tragédia de Júlio César de Shakespeare. A estrutura do teatro, as expectativas da audiência e os recursos à disposição da companhia de teatro colaboraram para dar forma à dramaturgia de Shakespeare. Momentos-chave do texto da peça são empregados de modo a ilustrar a significância das condições de trabalho na escrita de Shakespeare para o novo teatro, com 1 Doutor em Inglês: Estudos Linguísticos e Literários, UFSC (2016); Mestre em Letras (Inglês), UFSC (2012); Bachelor of Arts, Lancaster University (2007); nascido em Munique, Alemanha. Interesses de pesquisa incluem a literatura e o drama do renascimento europeu, os contextos da obra de Shakespeare, e a história da cidade de Londres. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

“How ill this taper burns!” The Dramaturgy of Shakespeare’s Julius Caesar at the Globe

três cenas de Júlio César discutidas em detalhes. A economia cenográfica do palco Renascentista é considerada a partir do princípio da “neutralidade imaginativa”, do historiador do teatro J. L. Styan, e a importância da encenação tridimensional e de uma audiência colaborativa é ressaltada. O conceito de metateatro, aplicado a momentos de autoconsciência que chamam atenção para a condição de uma determinada peça como ficção, é discutido no tocante à significância local das representações no Globe, e ao uso de anacronismos em ambiente romano por parte de Shakespeare. O artigo discute também a rápida progressão do tempo e transposição de cenas que caracterizam Júlio César em termos de intensidade dramática, e sugere que estas são resultantes das condições de encenação no Teatro Globe. Palavras-chave: Shakespeare; Teatro Globe; Júlio César; Metateatro.

[F]or us the [Globe] signifies more than a physical structure for the presentation of plays. It has become the symbol of an entire art. Its construction initiated a glorious decade during which the company achieved a level of stability and a quality of productivity rarely matched in the history of the theater. (1962: ix)

Relocation to the southern liberties in 1599 afforded the Chamberlain’s Men increased freedoms.3 It was a significant move by an already famous playwright and his 2 The company came under the patronage of King James I in 1603, and was named “The King’s Men” thereafter. The King’s Men acquired the Blackfriars indoor theatre in July 1608, and this limits the period in which the Globe was their principal focus of dramatic production to 1599-1608 (GROSS 2016: 27ff.). 3 The liberties were areas outside the jurisdiction of the City of London authorities. A liberty in this sense is defined as “an area of local administration distinct from neighbouring territory and pos-

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

105

Dossiê Shakespeare

The Globe playhouse, built in London in 1599, is the prime example of the Renaissance theatre stage and its associated conventions, and this article points to the variety of ways in which William Shakespeare’s immediate creative environment is inscribed in his work. The structure of the playhouse, the expectations of its audiences, and the resources at the disposal of the playing company all helped to shape Shakespeare’s dramaturgy. These factors are considered here with reference to Shakespeare’s The Tragedy of Julius Caesar, with three scenes from the play discussed in detail. The Globe was the solution to a precarious business situation for the playwright and his company, the Lord Chamberlain’s Men, during 1597-99. During the following nine years that the Chamberlain-King’s Men spent with the Globe as their principal focus of dramatic production, London audiences were entertained by new plays that included Julius Caesar, As You Like It, Hamlet, Twelfth Night, Othello, King Lear, Macbeth, and Antony and Cleopatra, an extraordinary period of prolific success even in the context of a stellar career.2 James Shapiro has called the year 1599 “perhaps the decisive one, in Shakespeare’s development as a writer” (2005: x), while Bernard Beckerman succinctly states the case for studying this exceptional period of theatre history:

Alexander Martin Gross

Dossiê Shakespeare

106

colleagues, heralded by the grandiose name of the new theatre, the Globe. This appellation implied from the very outset that something all-encompassing was at hand, and Julius Caesar immediately lived up to that expectation with its compelling topical insights into the classical past. The play is dated to 1599 since it does not appear in Francis Meres’s Palladis Tamia (1598), and contemporary allusions in Henry V and Hamlet–as well as moments in Julius Caesar itself–are commonly cited to support the notion that it was one of Shakespeare’s earliest offerings at the Globe, if not the first (DANIELL 1998: 12ff.). The play was first published in the First Folio of 1623, and all associations drawn between Shakespeare’s environment in 1599 and the play text are necessarily qualified by this important warning from theatre historian Andrew Gurr: “Any attempt to examine the conditions and the traditions of Shakespearean staging is inhibited by the distance between the event as fixed in print and the flexible actualities of the local conditions of performance” (2009: 209). Considering the complicated processes involved in the editing and printing of Shakespeare’s works in preparation for the First Folio, there can be no certainty that the lines printed in the text were indeed spoken on any given day at the Globe. Analysing the extant play text, published in 1623, in terms of the environment of its conception in 1599 is thus a necessarily transhistorical exercise. While the emphasis is on the specific theatre space that first saw the play performed, the scarcity of evidence related to the Globe itself means that a more general examination of London playhouses and their staging practices is called for. The Globe is here considered as the prime example of the Shakespearean stage, in particular the amphitheatre playhouses between 1599 and 1608. In assessing how its characteristics helped to shape the composition and enactment of Julius Caesar, an appropriate starting point is theatre historian J. L. Styan’s principle of the four “basic and irreducible ingredients of the Elizabethan theatre which the playwright took into account,” at least in terms of structural features: 1. A tight, enclosing auditorium. 2. A projecting platform almost as deep as it was wide. 3. Two upstage entrances on to the platform. 4. At least one balcony. (STYAN 2001: 12) The unique ownership structure of the Globe, in which Shakespeare and four of his fellow players owned one half of the interest, enabled the actors to build a playhouse more or less to their own specifications. Many inferences about the Globe’s structure and basic features are derived from a famous drawing of the interior of the Swan theatre, discovered in 1888.4 It is a copy by Arend van Buchell of a sketch sent to him by De Witt in 1596, and it is the only extant visual record of an amphitheatre playhouse of that time

sessing a degree of independence” (“liberty, n.1. 6.c.” OED). 4 The Swan was built on London’s Bankside in 1595. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

“How ill this taper burns!” The Dramaturgy of Shakespeare’s Julius Caesar at the Globe

(fig. 1). The sketch is of dubious authenticity, and probably depicts features from various contemporary London playhouses. However, the most significant features that De Witt includes reflect Styan’s principle: the expansive, square platform that is clearly raised from the ground, the tiring-house façade with two pairs of doors and a balcony above, and two large pillars that support the canopy or heavens, as well as three gallery levels that surround the stage. Already from this modest sketch, the three-dimensional nature of Shakespearean staging is identifiable. From other evidence such as the archaeological discoveries at the site of the Rose in 1989, or the building contract for the Fortune playhouse, further details have been discovered.5 A large trapdoor was built in to the platform of most playhouses, and the underside of the heavens was decorated with images of the sun, moon, and stars, and probably the signs of the zodiac, pointing to the metaphorical potential of the structure as a whole.

107

Dossiê Shakespeare

Fig. 1: Arend van Buchell’s copy of the drawing of the Swan playhouse (1596) by Johannes De Witt. From Foakes, Illustrations of the English Stage 1580-1642.

5 The Rose, built in 1587, was the first of the public playhouses on Bankside; the Fortune was built in Cripplegate, north of the City of London, in 1600.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Alexander Martin Gross

In order to apprehend the dramaturgical impact that the various characteristics of the playhouse may have had, this article examines three relevant scenes from Julius Caesar in turn: act 1 scene 3, act 2 scene 1, and act 4 scene 3. In advance, a consideration of some of the less material conditions that constituted the playhouse environment is needed. Gurr has for many years been at pains to point out the crucial differences between the Elizabethan audience and the modern spectator, the former conditioned to hear the language, the latter to see the spectacle. He states that “[a] good playhouse audience will listen to the poetry and be properly rewarded in the mind” (2004: 3). While most modern theatres–and of course cinemas–situate the viewer directly in front of the action for the prime vantage point, the Globe was exemplary of playhouse design that emphasised hearing over seeing, and accommodated as many people as possible as close as possible to the platform. Closest of all were those wittily referred to as understanders, punning on their position beneath the raised stage. Significantly, plays were heard and seen from areas beside and even behind the stage, allowing for a three-dimensional experience that was truly shared by all in attendance. Gurr comments on the importance of this facet of Shakespeare’s theatre:

Dossiê Shakespeare

108

Today we have almost totally lost the feeling of experiencing a play as a member of a crowd. Crowds packed together develop a strength of collective emotion that energises everyone and conditions their reception of the theatre event. (GURR 2009: 210)

Meanwhile, in his influential treatise on the flexibility of the Shakespearean stage, Styan highlights the intimacy that the playhouse retained despite crowds of several thousands as a key factor in its success:6 Above all, the shape into which the spectators were mustered and their physical relationship with the players determined the emotional range of the play, the intimacy or remoteness of the playing and the immediacy or alienation of the response. (STYAN 2001:14)

The active role of the crowd, encouraged by their proximity, was necessary not least because of the scenic economy of the stage. The lack of elaborate scenery and stage resources such as props and mechanisms meant that the audience shared not only the experience, but also the responsibility to make the performance a success, as the entreaty from the prologue of Henry V indicates: “Piece out our imperfections with your thoughts” (1.0.23). Gurr underscores the significant role played by the audience: “Staging then had an essential economy, and at least half the vigour of the event came from the audience sharing it” (GURR 2009: 211). There was of course always the possibility of a negative reaction, and in the same way that audience involvement is seen to have been conducive 6 Estimates of the first Globe’s capacity range between 1,500 and over 3,000. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

“How ill this taper burns!” The Dramaturgy of Shakespeare’s Julius Caesar at the Globe

to richer performances, criticism may be imagined to have been more direct and potent than in the theatre today. The moment in Julius Caesar when Casca tries to reassure Brutus and Cassius of the veracity of his account of Caesar’s refusal may be indicative of a discerning playhouse audience that was all too ready to voice its opinions: If the tag-rag people did not clap him and hiss him, according as he pleas’d and displeas’d them, as they use to do the players in the theatre, I am no true man. (1.3.257-61)7

7 Quotations from the play are taken from The Riverside Shakespeare, ed. G. Blakemore Evans (1974).

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

109

Dossiê Shakespeare

The key to apprehending the extent to which Shakespeare wrote specifically for his audience at the Globe is to examine the various contemporary sociopolitical expectations and preoccupations, but also the conventions of playing–and playgoing–that conditioned performances. On a summer’s afternoon, a play like Julius Caesar with its frequent shifts in time and place demanded considerable suspension of disbelief, and the readiness of the playgoers to accept illusions enabled Shakespeare to broaden the scope of his work and transpose the action from day to night, from Rome to Sardis, or even between the realms of imaginary and real. It is an actor-audience relationship that Styan has called “creative collaboration” (2001: 17). Styan’s “principle of imaginative neutrality,” meanwhile, is employed at this point to explain how the structure of the Globe–more precisely, its lack of theatrical resources–combined with the creative collaboration of the audience to afford Shakespeare the greatest possible freedom in composition. Styan perceives the Shakespearean stage as a neutral space that has to be engaged by playwright, actor, and audience alike, commenting that “there are rarely any constant reminders of Shakespeare’s time and place, and this stage is primarily and properly the target area for imaginative thought and emotion” (1989: 196). Instead of “constant reminders” in the form of decorations, props, and scene changes, it is Shakespeare’s language that is almost without exception the indicator of time and place in Julius Caesar. Styan insists that the absence of such “clutter” as visible indications of time and place is a key factor in promoting the sense of audience involvement that was integral to the success of the Shakespearean theatre. It also allowed for the rapid movement between scenes that was required, as one of the most considerable exigencies affecting Shakespeare was the need–in the case of Julius Caesar–to condense the historical events of several years into the “two hours’ traffic” of his stage. Gurr cites a letter from the Lord Chamberlain to the Lord Mayor in 1594 that implies a time limit to which Shakespeare had to adhere in staging his plays, as the company’s patron informs “that where heretofore they began not their Plaies til towardes Fower a clock, they will now begin at two and have done betwene fower and five” (qtd. in GURR 2009: 219). Act 1 scene 3 of Julius Caesar is notable for the contextual significance of its “fearful

Alexander Martin Gross

night” and its prodigies. To the sound of “thunder and lightning,” the entrance of Casca and Cicero marks the play’s first shift to a night-time setting, which is immediately indicated by Cicero: “Good even, Casca” (1.3.1). Gurr explains that in playhouses of the period, “[t]hunder came from what [Ben] Jonson called the ‘roul’d bullet’ trundled down a sheet of metal, or a ‘tempestuous drum’” (2009: 228). In any case, it was a fairly uncomplicated method of drawing the audience at an afternoon performance into a dark, frightening illusion; the onus remained predominantly on Shakespeare’s language–and its delivery–to not only reiterate the night setting but also convey the ferocity and abnormality of the conditions in the following lines from Casca:

Dossiê Shakespeare

110

Are not you mov’d, when all the sway of earth Shakes like a thing unfirm? O Cicero, I have seen tempests when the scolding winds Have riv’d the knotty oaks, and I have seen Th’ambitious ocean swell, and rage, and foam, To be exalted with the threat’ning clouds; But never till to-night, never till now, Did I go through a tempest dropping fire. (1.3.3-10) There follows another lengthy exposition from Casca, exemplary of numerous moments in the play when events are verbally portrayed, rather than shown on stage. Already by this point, an enraptured audience has been reminded of Pompey’s triumph, heard Cassius’s embellished story of swimming the Tiber with Caesar, and been informed by Casca of Caesar’s refusal of the crown. All of these events are fashioned with the use of language alone, although the latter is brought to attention a little earlier by noises off that signal its occurrence in close proximity to the action onstage.8 The end of the scene provides a further example of the verbalisation of events to hurry the action along, as Cassius instructs Cinna to plant the conspiratorial letter at Brutus’s house, while the words “take this paper” demonstrate how the language can implicitly direct onstage actions and the use of props (1.3.142). The transition between acts 1 and 2 serves as an apposite example of Shakespeare’s dexterity in transposing scenes and advancing the passage of time, without recourse to the visual “clutter” that Styan mentions. Scene and act breaks were an innovation brought about by the move to indoor playhouses, in the case of Shakespeare’s company–by then named the King’s Men–to the Blackfriars theatre hall in 1608. Performances at the early public amphitheatres were continuous, without intervals, and the appearance of Julius Caesar in the First Folio in five acts is attributable to a later convention of dramaturgy which impressed upon the editing and printing of the play text in 1623. What is now

8 Noises off are sounds made offstage to be heard by the audience. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

“How ill this taper burns!” The Dramaturgy of Shakespeare’s Julius Caesar at the Globe

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

111

Dossiê Shakespeare

known as act 1 ends with Cassius signalling the time and referencing the group’s intention to wake and prevail upon Brutus that night: “Let us go, / For it is after midnight, and ere day / We will awake him and be sure of him” (1.3.162-64). Shortly afterwards, Brutus enters alone on stage with the words “I cannot by the progress of the stars / Give guess how near to day” (2.1.2-3). He asks Lucius for a taper in his study, which consolidates the illusion of darkness. The audience at this point is complicit with the conspirators, fully aware of their impending arrival and the purpose of the letter that Lucius will shortly hand to Brutus. It is an imbalance that undermines the soliloquy–which sees Brutus vacillate between notions of loyalty and honour–with a sense of inevitability. With the emphasis on the darkness that precedes a morning of great tumult, Shakespeare perhaps apologetically offers a justification for Brutus reading the contents of the letter aloud onstage when an outdoor setting has already been established: “The exhalations whizzing in the air / Give so much light that I may read by them” (2.1.44-45). The date is signalled in act 2 scene 1 with an allusion to the curiosity of discordant calendars. Protestant Elizabethan England observed a different calendar to Catholic Europe after Pope Gregory XIII introduced the Gregorian calendar in 1582, modifying the Julian calendar that had been introduced in 46 BC under the authority of Julius Caesar. Tellingly, Elizabethans continued to live in “Caesar’s time,” and Shapiro proposes that Brutus’s line “Is not tomorrow, boy, the first of March?”–which is commonly emended to “Is not tomorrow, boy, the [ides] of March?” (2.1.40)–is in fact a possible allusion to this calendrical rupture, suggesting that Elizabethans “would have smiled knowingly at Brutus’ confusion in being off by a couple of weeks” (2005: 170). David Daniell also identifies this discrepancy, commenting that Brutus’s question “would have been familiar to all Elizabethans: he needs to know what calendar he is working under” (1998: 21). It serves as an example that the Roman world of the play was never far from the world around the Elizabethan playhouse in which the play was first performed. Ultimately the audience is informed by Lucius that “March is wasted fifteen days” (2.1.59). The soothsayer’s earlier interjections of “Beware the ides of March” (1.2.18, 23) ensure that not only those acquainted with Plutarch’s Lives, Shakespeare’s principal source for Julius Caesar, were alerted to the portentous significance of this date. The implication is of course that Brutus resolved only on the very same morning to participate in Caesar’s murder, and this reflects Shakespeare’s narrative compression of time. Particularly in the run up to act 3 scene 1, where Caesar’s assassination represents the dramatic peak of the play, the language stresses rapid temporal progress, heightening dramatic intensity. Amidst otherwise pulsating action that courses throughout the play, act 2 scene 1 serves as a form of respite that Styan calls “remarkable for its gentle prelude and its sensitive close” (2001: 209). As well as Brutus’s assuaging conversations with Lucius and Portia, there is an amusing interval involving Decius, Casca, and Cinna, as Brutus and Cassius whisper privately onstage. In just eleven lines, the conspirators try to ascertain their locality, reiterate the date by implication, and illustrate that dawn is encroaching. Arthur

Alexander Martin Gross

Humphreys comments that the “brief intermission relieves the tension, creates the local atmosphere, marks the significant progress of the hours, and fixes attention on the Capitol” (2008: 135). It is also conceivable that the passage elicited metatheatrical stage business, momentarily conveying the audience again from Rome to London:9 DECIUS Here lies the east; doth not the day break here? CASCA No. CINNA O, pardon, sir, it doth; and yon grey lines That fret the clouds are messengers of day.

Dossiê Shakespeare

112

CASCA You shall confess that you are both deceiv’d. Here, as I point my sword, the sun arises, Which is a great way growing on the south, Weighing the youthful season of the year. Some two months hence, up higher toward the north He first presents his fire, and the high east Stands, as the Capitol, directly here. (2.1.101-11) Drawing on the famous Elizabethan association of the Roman Capitol with the Tower of London, it is possible to infer an allusion to London from these lines, as the Tower indeed stood in a “high east” direction from the Globe.10 A cursory wave of Casca’s sword in that direction would allow Shakespeare’s words to resonate more directly in the ears of the “groundlings,” and perhaps provoke a reaction that contributes to the relief of tension. Even within this comparatively measured scene, the “drive of time” to which Humphreys calls attention continues to be clearly evident, as Shakespeare underwrites the events of the first two acts with palpable temporal pressure that is verbally indicated. This dramatic stratagem, which serves to intensify the climactic scene of Caesar’s death in act 3 scene 1, perhaps explains the anachronistic inclusion of clocks on several occasions in the play. The morning of the assassination in act 2 scene 1 includes one such occurrence, as a stage direction–“clock strikes”–prompts the following exchange: BRUTUS Peace, count the clock.

9 Metatheatre is defined as “any moment of self-consciousness by which a play draws attention to its own fictional status as a theatrical pretence” (BALDICK 2004:151). 10 The Tower of London was thought by many Elizabethans to have been built by Julius Caesar. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

“How ill this taper burns!” The Dramaturgy of Shakespeare’s Julius Caesar at the Globe

CASSIUS The clock hath stricken three. TREBONIUS ‘Tis time to part. (2.1.192) This dramatisation of time is quickly followed by the establishment of a location and deadline for the meeting with Caesar: DECIUS I will bring him to the Capitol. CASSIUS Nay, we will all of us be there to fetch him. BRUTUS By the eight hour; is that the uttermost? CINNA Be that the uttermost, and fail not then. (2.1.212-14)

113

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

In a play that has already progressed one month by this point, an imagined interval of a few hours is tantalisingly brief, especially with Casca’s subsequent announcement: “The morning comes upon’s” (2.1.221). Indeed, just over 200 lines later at the Captiol, Caesar asks Brutus “What is’t a’clock?” and the response is “Caesar, ‘tis strucken eight” (2.2.114). It is worth noting that Daniell advances another possible reason for the anachronism of the clock in this instance, emphasising Caesar’s well-known “concern for timekeeping,” and proposing that “just as Brutus is taking the lead to kill Caesar, Shakespeare makes the setting itself [. . .] demonstrate the triumph of Caesar’s time down the ages” (1998: 21-22). While this is a valid interpretation, other anachronisms such as the “chimney-tops” of Murellus’ speech (1.1.39) or the book with pages that Brutus begins to read–“Let me see, let me see; is not the leaf turn’d down / Where I left reading? Here it is, I think” (4.3.27374)–suggest that the use of a clock may be more simply attributable to the need for the efficient dramatisation of time. The various anachronims are also indicative of the underlying theme of transposition between the historical and the contemporary, linking the Roman world of the play with the London environment of the playhouse. The third part of Julius Caesar that is of particular interest in terms of inferring staging conditions from the extant text comes after the quarrel and subsequent reconciliation between Brutus and Cassius in act 4 scene 3. The time and locality of the play have been radically shifted in the aftermath of Caesar’s death and the famous orations from Brutus and Antony in act 3. Lucilius informs Brutus of Cassius and his men: “They mean this night in Sardis to be quartered” (4.2.27), and this signals not only a departure from Rome, but also Shakespeare’s compression of over two and a half years of history into a negligible

Alexander Martin Gross

Dossiê Shakespeare

114

interval.11 The events presented in Julius Caesar could conceivably have formed a twopart play in the mould of Shakespeare’s histories, the first part ending on the catastrophe of Caesar’s death, and the second with the demise of Brutus and Cassius. As it was, Shakespeare was here faced with the unenviable task of restoring dramatic tension to a play that had just witnessed one of the most intense moments that an audience was likely to see across London’s playhouses, an assassination acted out with over a dozen characters onstage and which touched a cultural nerve. The imaginative neutrality of the stage is fully invoked as Brutus discerns the Ghost of Caesar in his tent near Sardis. Given the stage direction that prompts the entrance of the Ghost, it may be assumed that it was a physical presence onstage. Nonetheless, it is still Brutus’s language and its enactment that consolidate the fearsome sight which confronts him, recalling Styan’s observation that “the neutrality of the platform’s space implies the strongest commitment by author, actor, and audience to the particular relationships of the play” (1989: 196). The effect of the illusion of Caesar’s Ghost is particularly dependent on the ability of the actor to match Shakespeare’s words with concordant emotion, and on the willingness of the audience to accept that the character before them is a supernatural entity: How ill this taper burns! Ha! who comes here? I think it is the weakness of mine eyes That shapes this monstrous apparition. It comes upon me. Art thou any thing? Art thou some god, some angel, or some devil, That mak’st my blood cold, and my hair to stare? Speak to me what thou art. (4.3.275-81) One structural feature of the Globe that may have facilitated Shakespeare’s dramaturgy at this point is the inbuilt trapdoor in the platform, for if this was employed for the entrance of the Ghost, its symbolic quality of “cellarage as hell” would have allowed for an immediate relation of the “monstrous apparition” to the underworld.12 The subsequent brief exchange references “Philippi” three times over five lines before the disappearance of the Ghost. With a similar effect to the foreboding repetition of “the Ides of March,” the audience is left in no doubt as to the locality of the impending dramatic climax. The tension is augmented a mere thirty lines later as, with the Ghost’s warning of “thou shalt see

11 Caesar was assassinated on 15 March 44 BC; the two battles of Philippi (which Shakespeare also compresses into one event in act 5) followed in 42 BC. 12 Gurr discusses the playhouse conventions associated with the trapdoor which would be exercised in the staging of Hamlet at the Globe shortly after 1599, explaining that it provided “a hell [...] for the ghost of Hamlet’s father to descend into before he speaks from his purgatorial grave under the ostensible earth of the stage floor” (2009: 223). D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

“How ill this taper burns!” The Dramaturgy of Shakespeare’s Julius Caesar at the Globe

Fig. 2: Drawing by C. Walter Hodges of a possible Elizabethan staging of Antony’s funeral oration in act 3 scene 2 of Julius Caesar. From Spevack, ed. Julius Caesar.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

115

Dossiê Shakespeare

me at Phillipi” (4.3.283) still reverberating in the auditorium, Octavius signals the play’s final major transposition of place: “They mean to warn us at Philippi here” (5.1.5). Again the momentum builds inexorably towards the climax. A moment in Julius Caesar that has been the focus of some critical debate concerning staging occurs in act 3 scene 2, known as the Forum scene. It is notable for the public orations given by Brutus and Antony, and includes textual indications of character positioning that are open to interpretation. Brutus speaks of a pulpit from which he will address the plebeians and appeal for their acceptance, before informing Antony: “And you shall speak / In the same pulpit whereto I am going, / After my speech is ended” (3.1.249-51). When the time comes for Brutus to speak, at the beginning of act 3 scene 2, the “third plebeian” interjects with the words “The noble Brutus is ascended; silence!” (3.2.11). The opening stage direction for the scene in the First Folio reads “Enter Brutus and goes into the Pulpit, and Cassius, with the Plebeians,” but many modern editors of the play have interpolated a stage direction–commonly “Brutus goes up into the pulpit”–at 3.2.8, to coincide more logically with the third plebeian’s remark. The upward motion is the principal matter of contention. It is possible that Brutus and Antony both delivered the speeches from the gallery level of the tiring-house, on the balcony. This idea is supported by the words “Brutus is ascended” (3.2.11) and also “Descend” directed at Antony following the conclusion of his speech (3.2.162). The incidental lines of the plebeians are thought to allow time for Brutus and Antony to assume their positions. C. Walter Hodges provided a sketch of this possible staging, depicting Antony aloft on the balcony (fig. 2).

Alexander Martin Gross

There are, however, two significant problems with the interpretation that the Forum speeches were given from gallery level. The balcony was only accessible via the tiring-house itself, and Humphreys points out that there are no further stage directions to mark the necessary entrances and exits of the speakers, while Daniell comments that the actors’ “command of a stage audience would be poorer” from gallery level. Both appear to broadly concur that intimacy with the other actors and the audience was a priority, and that the “pulpit” was most likely a temporary prop upstage on the platform (HUMPHREYS 2008: 174; DANIELL 1998: 253). This is an interpretation that is corroborated to some degree by the mention of a chair as Antony is urged to speak: 1. PLEB. Stay ho, and let us hear Mark Antony. 3. PLEB. Let him go up into the public chair, We’ll hear him. Noble Antony, go up. (3.2.63-64)

Dossiê Shakespeare

116

These words allow for the interpretation that the scene is an example of the use of stage props at the Globe, with a chair or rostrum perhaps brought into view at the end of the previous scene. Gurr explains that a “dais or scaffold was certainly carried on for the relevant scene by stage hands” during the contemporary play The Dumb Knight, and that “the wealthier and longer-lived companies”–such as the Chamberlain’s Men with its commodious Globe–“could accumulate a good many such standard properties” (2009: 237). The present article has discussed the structure of the Globe, the expectations of its audiences, and the theatrical resources thought to have been at the disposal of Shakespeare’s playing company. The study has foregrounded the fact that the Globe was the first London playhouse to be built to specifications set by professional players who were also its part-owners, before identifying the basic features that Shakespeare could consider in composition. In light of key scenes and moments from Julius Caesar, the significance of these factors as part of the playwright’s working conditions has been highlighted. The article has also addressed Shakespeare’s use of anachronisms in a Roman setting, as well as a notable moment of controversy regarding the inference of staging from the play text. The rapid dramatic progress of time and the transpositions of scenes that characterise Julius Caesar in terms of dramatic intensity have also been associated with the requirements and conditions of the theatre space. The dramaturgy of Julius Caesar is shown to be significantly shaped by the conditions of composition and enactment that appertained to Shakespeare and the Lord Chamberlain’s Men at the Globe in 1599.

LIST OF REFERENCES: BALDICK, C., ed. Oxford Concise Dictionary of Literary Terms. 2nd ed. Oxford: Oxford UP, 2004. BECKERMAN, B. Shakespeare at the Globe: 1599-1609. New York: Macmillan, 1962. DANIELL, D., ed. Julius Caesar. London: Arden Shakespeare, 1998. Arden Shakespeare

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

“How ill this taper burns!” The Dramaturgy of Shakespeare’s Julius Caesar at the Globe

3rd Series. FOAKES, R. A. Illustrations of the English Stage 1580-1642. London: Scolar Press, 1985. GROSS, A. M. “The Abstracts and Brief Chronicles” of the City: Shakespeare’s Globe Tragedies and Their Conditions of Performance. Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, 2016. GURR, A. Playgoing in Shakespeare’s London. 1987. 3rd ed. Cambridge: Cambridge UP, 2004. ---. The Shakespearean Stage. 4th ed. Cambridge: Cambridge UP, 2009. HUMPHREYS, A., ed. Julius Caesar. 1984. Oxford: Oxford UP, 2008. Oxf. Shakespeare. SHAKESPEARE, W. Complete Works. The Riverside Shakespeare. Ed. G. Blakemore Evans, et al. Boston: Houghton Mifflin Company, 1974. SHAPIRO, J. 1599: A Year in the Life of William Shakespeare. London: Faber and Faber, 2005. SPEVACK, M., ed. Julius Caesar. By William Shakespeare. Cambridge: Cambrige UP, 1988. New Cam. Shakespeare. STYAN, J. L. Shakespeare’s Stagecraft. 1967. Cambridge: Cambridge UP, 2001. ---. “Stage Space and the Shakespeare Experience.” In: Marvin and Ruth Thompson, eds. Shakespeare and the Sense of Performance. Newark: Delaware UP, 1989, pp. 195-209.

117

Dossiê Shakespeare

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

Charles Macready’s King John: Victorian Theatre and Double-voiced Medievalism Fernanda Korovsky Moura Dossiê Shakespeare

118

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Charles Macready’s King John: Victorian Theatre and Double-voiced Medievalism1 Fernanda Korovsky Moura2

Abstract: During the nineteenth century, there was a revival of interest in the Middle Ages, which was considered the birth of English culture and identity in opposition to Classical Antiquity. This movement was called the Medieval Revival. It was expressed in several areas of knowledge and artistic manifestations, including in the theatre. Charles Macready’s reconstruction of Shakespeare’s King John in 1842 at Theatre Royal Drury Lane in London is inserted in this context. Macready’s production brings together two perspectives of the Middle Ages on stage: the more negative Renaissance view along with the Victorian idealised outlook, cha0racterising a phenomenon I call double-voiced medievalism, based on Richard Schoch’s concept of double-voiced historicism. Keywords: Charles Macready; William Shakespeare; Victorian theatre; Double-voiced medievalism.

Palavras-chave: Charles Macready; William Shakespeare; Teatro vitoriano; Medievalismo. Time is a wonderful and mysterious concept. No wonder it has fascinated artists throughout the centuries. The English bard was no exception. In his sonnet 65, Shake-

1 This paper is the result of the research conducted for my Master’s thesis at UFSC under the supervision of Prof. Dr. José Roberto O’Shea. 2 Fernanda Korovsky Moura has an MA in English Language and Literature at UFSC. She has begun a Research Master in Literary Studies at Leiden University at the Netherlands. Her research is concentrated mainly on Shakespearean Studies, Victorian Theatre and representations of the Middle Ages on stage. Contact: [email protected].

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

Resumo: Durante o século XIX, houve um renascimento de interesse na Idade Média, considerada o nascimento da cultura e da identidade inglesas em oposição a Antiguidade Clássica. Esse movimento foi chamado de Medieval Revival. Ele foi expresso em várias áreas do conhecimento e manifestações artísticas, incluindo o teatro. A reconstrução de King John, de Shakespeare, por Charles Macready no Theatre Royal Drury Lane, em Londres, em 1842 está inserida neste contexto. A produção de Macready reúne duas perspectivas sobre a Idade Média em cena: a visão renascentista mais negativa junto com a perspectiva idealizada da Era Vitoriana, caracterizando um fenômeno que chamo de double-voiced medievalism, com base no conceito de double-voiced historicism Richard Schoch.

119

Fernanda Korovsky Moura

Dossiê Shakespeare

120

speare writes about the unstoppable force of time, this “wreckful siege of battering days” (l. 6). Nothing can stop time’s wrath, not even impregnable rocks or “gates of steel so strong” (l. 8). Not even “time’s best jewel” (l. 10) can resist time, unfortunately. As what this jewel may refer to, the interpretations abound. I sustain that “time’s best jewel” is art— theatrical art. As lamentable as it may be, a theatrical event fades as soon as the curtains close on the stage. Countless times curtains have been closed on stages around the world throughout the centuries, each performance with an enchantment of its own. However, albeit these spectacles are over, their magic has not been extinguished. As Shakespeare puts it, “unless this miracle have might, / That in black ink my love may still shine bright” (l. 13-14); as long as our pens continue to write about these spectacles, they remain alive. The theatrical event itself is, de facto, irretrievable. Nonetheless, based on research and imagination, it is possible to reconstruct those theatrical events, bringing them back to life. That is the fascinating task of the theatre historian. Several past theatrical events are worth being rescued and brought “back to life” by theatre historians. My choice for this paper has been to revive William Charles Macready’s work, the Eminent Victorian tragedian. More specifically, I aim at analysing Macready’s reconstruction of Shakespeare’s King John in 1842, which premiered at Theatre Royal Drury Lane on 24 October 24, as an illustration of the concept double-voiced medievalism. This was a play that gained unprecedented popularity in the nineteenth century, possibly due to the Victorian attraction to the Middle Ages, as I will go on to argue.

Reconstructing history When it comes to history, Raymond Aron affirms that “no such thing as a historical reality exists ready made, so that science merely has to reproduce it faithfully. The historical reality, because it is human, is ambiguous and inexhaustible” (ARON 1961: 118). From this perspective, there is not one single historical reality that can be retrieved by historians and therefore reproduced faithfully. As Aron explains, history is human and, consequently, “ambiguous and inexhaustible”, open to interpretations and continuous debates. Linda Hutcheon in The Politics of Postmodernism (1989) points out that Fredric Jameson’s idea of History—with capital letter—as “uninterrupted narratives” has been contested by a postmodern perspective on histories—in the plural—that are “plural, interrupted, unrepressed” (HUTCHEON 1989: 65). The approach to History as a unique, unalterable and unquestionable report of past events no longer stands. Phyllis Racking adds to this discussion by affirming that “in the light of the contemporary revolution in historiography, the old positivist claims about an objectively ‘true’ history beyond the reach of ideology seem impossible to sustain” (RACKING 1990: x). Today—and I strongly agree with this view—, history is seen as multifaceted and fragmented. It is the result of an everlasting discussion and overlapping of different interpretations—congruent or incongruent—of past events.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Charles Macready’s King John: Victorian Theatre and Double-voiced Medievalism

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

121

Dossiê Shakespeare

The writing of history—historiography—must take into consideration the fragmented nature of history. Racking explains that the change of perspectives on historiographical understanding began during the Renaissance, the period in which Shakespeare lived and wrote. According to Racking, historiography ceased to be regarded as the written expression of one undisputable truth; it was now beginning to be seen as the result of multiple interpretations and, for that matter, susceptible to incredibility and contestation. Additionally, the advent of the moving type and the increase of popular literacy allowed history writing to become more accessible to a wider public (RACKING 1990: 13). Racking also submits that the figure of the historian was slowly being demystified during the Renaissance: he was “no longer an authority simply by virtue of his authorship, he came to be seen as a fallible human being, located in a particular time and place, limited by ignorance, subject to bias and blindness, struggling to recover a past in which he had not lived” (RACKING 1990: 13). These new ideas surrounding historiography most certainly influenced the artistic production of the time, including Shakespeare’s. Since the historian had fallen from his pedestal of supreme historical authority and was regarded as susceptible to errors, historiography was no longer unreachable. If historians were “fallible human beings”, other fallible human beings could express their own reconstructions of history, such as artists, poets and playwrights. Reconstructing history on stage has been a fascinating expression of art and history. First of all, it is crucial to remember that any attempt to represent any historical moment on stage is not a reproduction, but a reconstruction. Even an analyst watching the theatrical event first-hand will construct his/her interpretation based on his/her individual background, which will be different from another analyst’s who may be watching the very same performance. Therefore, every analysis of any performance, live or not, is a reconstruction. José Roberto O’Shea adds to this discussion by stating that “the analysis of performance is not an experimental science in search of empirical demonstration, but an interpretative intellectual exercise, in search of construction of meaning” (O’SHEA 2015: 7-8). The word construction, and its derivation reconstruction, is key in Hutcheon’s, O’Shea’s, and my own perspective of performance analysis. Every performance after the close of the curtains, as put by O’Shea, “vanishes” (O’SHEA 2015: 8). Therefore, any attempt to retrieve it will forcefully be a reconstruction, based on interpretation and meaning construction. Theatre—unlike drama, which is the written dramatic text and, therefore, has a long life—“having vita brevis, […] is not fixed, hardly recordable, unrepeatable, and difficult to measure” (O’SHEA 2004: 146). Theatre encompasses a lot more than the written text: it has performance at its core. As O’Shea puts it: “theatre is spoken language signifying side by side visual, aural, and sensorial language, by means of actors, space, movement, props, light, music, and the complex interrelations among these, all coming to fruition in reception” (O’SHEA 2004: 147). All these elements, which are so fluid and likely to change in every performance, will inevitably influence the spectator’s experience in the theatre. Even spectators watching the same performance in the same playhouse but sitting at dif-

Fernanda Korovsky Moura

ferent distances and angles from the stage will forcefully have distinguished perceptions. Therefore, each spectator constructs the performance as well as a theatre historian does.

Victorian historical theatre

Dossiê Shakespeare

122

Victorians were also mesmerised by the concept of time. During the nineteenth century, there emerged a desire to know the past. The English wished to understand their heritage, even more at a time of significant change, such as the moment in which Victorians lived. In contrast to the chaotic Victorian Era, they searched their past for a moment in history on which they could look back in a nostalgic manner, in which they could feel “at home”. And they chose the Middle Ages, the birth of English culture. The medieval past with its huge castles, brave knights, free people, and courtly love, was revived in the English imagination, being expressed in several areas of thought and artistic expression. As a result, artists from the past regained prominence, such as William Shakespeare— especially his historical plays, which reconstructed significant moments and historical figures. Added to the Victorian taste for spectacle, productions of Shakespeare’s historical plays became a visual feast: extravagant costume, grand sets, admirable performances; all underlined by careful historical research. William Charles Macready (1793-1873) was one of the main Victorian theatre managers who ventured into the realm of historical theatre. His productions were abundant, but my focus here will be on his 1842 production of King John at Drury Lane. In reconstructing past events in the theatre, several “possible worlds” converge on stage. Thomas Postlewait describes these possible worlds as the contexts to which the theatrical event is related. According to Postlewait, theatre events are capable of representing and being influenced by any aspect of the world, in a multitude of modes, means, and manners. They also engage with alternative and possible worlds, the “as if ” versions of existence. The theatrical arts have always been an important arena for representing the full imaginative realms of possibility (and even impossibility), as we fill the stage or the film with gods, demons, aliens, creatures, and a wild range of human beings. (POSTLEWAIT 2009: 12)

In the case of Macready’s production of King John, it encompasses three worlds: the world in which the staging was situated, the city of London during the Victorian Era; the world the staging represented, thirteenth-century England ruled by King John; as well as the world around its teller, Shakespeare’s late-sixteenth. These three worlds converge and give meaning to Macready’s production. Schoch discusses this fascinating issue of different historical worlds converging on stage in terms of double-voiced historicism. Theatrical representations of Shakespeare’s medieval plays, King John included, “necessarily encoded Renaissance values about the

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Charles Macready’s King John: Victorian Theatre and Double-voiced Medievalism

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

123

Dossiê Shakespeare

Middle Ages” (SCHOCH 2006: 145). In this way, Victorian theatre managers had to imagine three historical moments at once: the Middle Ages, Shakespeare’s Renaissance England and their Victorian era. As Schoch points out, it was eventually perceived “that the Middle Ages could not be authentically restored because it was always already mediated through an Elizabethan perspective” (SCHOCH 2006: 146). In any case, the medieval past could never be retrieved regardless of the historical moment in which this attempt was made, either during the Renaissance, in the Victorian era, or nowadays. As we have seen, any effort to recover the past would inevitably go through the interpretative filter of the historian, which in turn is inescapably influenced by his/her ideological positions and cultural repertoire. What Schoch brings to the discussion, however, is that Shakespeare’s reconstruction of King John’s reign, for instance, is influenced by his time’s and his own conceptions of the monarch, and Renaissance views on the nature of historiography and medievalism. Moreover, Macready’s production of Shakespeare’s reconstruction of King John’s reign adds a new voice to this historical process: Macready unavoidably brings to the nineteenth-century stage Victorian—and his own—conceptions of thirteenth-century England along with Victorian—and his own—ideas on historiography and medievalism. Based on Schoch’s definition of double-voiced historicism, I propose a new concept: double-voiced medievalism. Schoch’s concept defines the convergence of two different historical perspectives of the same historical event, such as Shakespeare’s and Macready’s reconstructions of King John’s reign in dialogue on the Victorian stage. Double-voiced medievalism, in this sense, refers to two different perspectives of the medieval past in confluence. Given this standpoint, neither perspective of the Middle Ages eventually undermines the other. Contrarily, traces of both views are perceptible and intertwine. Macready’s 1842 production of King John, for instance, was a place where Renaissance and Victorian perspectives of the Middle Ages converged. During the Renaissance, the Middle Ages were regarded as the Dark Ages, a moment of barbarous brutality and rarely any intellectual improvement—contrary to the “enlightened” sixteenth century, in their own view. In the nineteenth century, however, as the aforementioned Medieval Revival movement illustrate as the Middle Ages began to be seen through an idealised lens as the Golden Age in English history. Schoch points out that the incongruities between Shakespeare’s medieval and the Victorian idealised Middle Ages occurred even at the level of narrative: “For with the possible exception of Henry V, the chronicle plays dramatize an unflattering period in the English past: John was a murderer, Richard II weak and derelict, Henry IV a usurper, and Henry VIII a tyrant and adulterer” (SCHOCH 2006: 150). In this way, Renaissance and Victorian perspectives on the Middle Ages were at odds. The Elizabethans sought in the medieval past examples to be contrasted. They believed that Elizabethan England was ahead of the prosaic Middle Ages, and going back to a medieval past was to retrocede. According to Chandler, “the Elizabethan differed from their successors in their approaches to the past, since they used the Middle Ages to support change rather than challenge it”

Fernanda Korovsky Moura

(SCHOCH 2006: 2), hence Shakespeare’s choice of imperfect monarchs, which would allow the Elizabethans to reflect upon their current political affairs. On the other hand, nineteenth-century England, as we have seen, was in the midst of modern chaos and desolate about the uncertainties of the future. As Chandler points out, Victorian medievalists lamented the situation of the impoverished industrial proletariat, “working an eighty-four-hour week in lint-choked factories and living in sickness-breeding, filthy hovels. They believed that by comparison to the modern wage slave, even a thirteenth-century serf was fortunate” (CHANDLER 1970: 3). In this way, differently from Renaissance thinkers, the Victorians believed the Middle Ages were a lost paradise. The medieval man was considered “a dynamic and generous creature, capable of loyal feeling and heroic action” (CHANDLER 1970: 7), very different from the modern nineteenth-century “wage slave”. The medieval movement in Victorian England was “a social and political ideal and its symbolic value [was] a metaphor of belief ” (CHANDLER 1970: 10); a belief in order, chivalry and, as we have seen, a desire to feel at home. As Chandler puts it, “in contrast to the certainties of the Middle Ages, modern life seemed to offer only broken lines and meaningless energies” (CHANDLER 1970: 11).

Dossiê Shakespeare

124

Macready’s King John and double-voiced medievalism on the Victorian stage On 24 October 1842, Macready’s King John premiered with pomp at Royal Theatre Drury Lane. The production was very well received and acclaimed by theatre-goers and critics alike. The reviewer in The Examiner, five days after the opening, compared Macready’s piece with previous productions of the play, and affirmed “it is six years since we saw King John, with some seven ragged supernumeraries for the power of England, while that of France, headed by a king in boots à la Louis Quatorze, crawled about the stage with three” (qtd. in SHATTUCK 1962:1). The critic condemned that earlier production of King John which, unlike Macready’s, had only a few performers on stage to represent the English and French armies, and offered an actor wearing late-seventeenth century boots in order to represent an early-thirteenth century king. Those discrepancies could no longer entertain the Victorian audience at the theatre. Macready was certainly up to the challenge of entertaining the Victorians, and, in The Examiner reviewer’s words, performed the work of an alchemist, “converting to richest use the meagre resources of the stage” (qtd. in SHATTUCK 1962:1). Unlike the other performance which the critic disapproved, Macready’s King John was praised for the care with which every detail in costume and scenery was developed: “The accoutrements are complete, from the helmet to the spur of each mailed warrior. Not a distinction is missed in the appointments. From citizen to baron, gentleman to knight, herald to man-at-arms, soldier to servant, priest to king, gradations are marked with picturesque exactness, to the eye and to the mind” (qtd. in SHATTUCK 1962:1). It is interesting that the critic uses the expression

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Charles Macready’s King John: Victorian Theatre and Double-voiced Medievalism

“to the eye and to the mind”, because, although the costumes and set were reconstructed based on historical research, they still left a margin for the audience’s imagination, which is a characteristic of the theatre. Moreover, the set created by William Telbin (1813-1873) added to the spectacle of Macready’s King John. The same reviewer in The Examiner wrote: The council room, the field before and after the battle, the fortifications of Angiers, the moated and embattled fortress of Northampton, the glitter of the Royal tent, the gloom of Swinstead Abbey; they have all the air of truth, the character of simple and strong fidelity. And above all, in every moment of the tragedy, there is Mind at work, without which wealth of material is nothing. (qtd. in SHATTUCK 1962:1)

Final considerations The curtains were closed at Drury Lane in 1842. However, as I argued in this paper, it is possible to reconstruct it based on historical research. This study is grounded

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

125

Dossiê Shakespeare

Again, the critic uses the word Mind—with a capital letter—alluding to the importance of room for imagination in the theatre. As he puts it—and I strongly agree—there is little use for spectacular scenery and majestic costumes if there are not smart minds behind it to bring it all to life. These minds belong to all the agents involved in Macready’s production—Macready himself, Telbin, the costume designer Charles Hamilton Smith (1776-1859), the cast, and others, who often enough do not even figure in historical archives—agents who collectively incited the audience’s imagination, inviting them to reconstruct the Middle Ages on the Victorian stage. In The Examiner critic’s words, it is also possible to identify traces of double-voiced medievalism. In his review of Macready’s King John, the critic brings together two views of the Middle Ages: the negative view of a prosaic medieval past, as thought by the Elizabethans, as well as a romanticised perspective of the Middle Ages, typical of the Victorian Era. According to this Victorian critic, “the rude heroic forms of the English past; the gothic and chivalric grandeur of the Middle Age; the woes and wars of a barbarous but an earnest time, with its reckless splendour, its selfish cruelty, and its gloomy suffering: are in this revival realized” (qtd. in SHATTUCK 1962:1). Therefore, he sees in Macready’s production a romanticised medieval past, which he describes as “heroic”, with “chivalric grandeur” and “reckless splendour”. At the same time, however, the critic is able to spot in Macready’s King John “the woes and wars of a barbarous” Middle Ages, its “selfish cruelty” and “gloomy suffering”, illustrating the Elizabethan perspective on the medieval past. This more negative outlook on the Middle Ages can, of course, also be found in Shakespeare’s King John, created in the midst of Renaissance ideas about the medieval past. This extract of The Examiner, therefore, is an example of the double-voiced medievalism surrounding historical and artistic productions in Victorian theatre.

Fernanda Korovsky Moura

Dossiê Shakespeare

126

on postmodern perspectives on history, historiography, and theatre historiography. As Hutcheon points out, history can no longer be seen as a unique continuum, stable and incontestable. History is now regarded as plural, fragmented, and liable to diverse interpretations. This manner, historical accounts inevitably go through the interpretative filter of their teller, who brings his/her own political, social, and cultural background to the discussion. Therefore, no historical writing is impartial. From a postmodern perspective, theatre historiography has also come to regard theatrical performances as reconstructions of the past. As Postlewait and O’Shea explain, the past itself is irretrievable; any attempt to go back to what happened inside a playhouse yesterday, last week, or two hundred years ago will forcefully be a reconstruction, which is never ideologically neutral. Another concept which has guided this study is Schoch’s idea of double-voiced historicism. As we have seen, Schoch explains his concept as the overlapping of distinct historical perspectives in one artistic manifestation. For instance, in Macready’s King John, the reconstruction of the past is pervaded by two different historical approaches: thirteenth-century England is reconstructed by a Renaissance writer, whose play in turn is reconstructed by a Victorian theatre director. Therefore, two historical voices overlap. This is a fascinating perception, which has led me to think of a new concept that I have called double-voiced medievalism. In my view, Macready’s 1842 King John also encompasses two different approaches to the medieval past, which intertwine. Renaissance writers had a quite negative view of the Middle Ages, which they believed were a prosaic and barbaric time, in their view “superseded” by the sixteenth century. Victorians, on the other hand, regained interest in the Middle Ages due to the overwhelming social, economic, political, and scientific transformations of the nineteenth century. In a turbulent present, the idyllic medieval past was revived as the Golden Age in English history. Thus, the Middle Ages were more a mythical than a real place for the Victorians, who idealised the medieval past. As a consequence, Macready’s production of King John intertwined two different approaches towards the Middle Ages: the Renaissance perspective—illustrated by Shakespeare’s original text—and the Victorian romanticised view—illustrated by Macready’s reconstruction of the play. As I wrote in the beginning of this final section, the curtains were closed in 1842. However, it is always possible to take a glimpse behind them. Based on historical research, it is possible to imaginatively reconstruct what happened on stage over a hundred and seventy years ago. Unfortunately, we cannot go back in time, and watch Macready’s premiere of King John at Drury Lane. Nevertheless, we can always watch it “in our mind’s eye” (Hamlet 1.2.186).

References ARON, R. Introduction to the Philosophy of History: An Essay on the Limits of Historical Objectivity. Boston: Beacon Press, 1961.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Charles Macready’s King John: Victorian Theatre and Double-voiced Medievalism

CHANDLER, A. A Dream of Order: The Medieval Ideal in 19th-Century English Literature. Lincoln: University of Nebraska Press, 1970. HUTCHEON, L. The Politics of Postmodernism. London: Routledge, 1989. O’SHEA. “Impossibilities and Possibilities: the Challenges of Dramatic Performance Analysis”. Estudos Anglo-Americanos 40(2013): 6-18. Web. 21. November. 2015. ___. “From Printed Text to Performance Text: Brazilian Translations of Shakespearean Drama”. In: Homem, Rui Carvalho; Hoenselaars, Ton (Org.). Translating Shakespeare for the Twenty-First Century. Amsterdam: Rodopi, 2004, pp; 145-162. POSTLEWAIT, T. The Cambridge Introduction to Theatre Historiography. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. RACKING, P. Stages of History: Shakespeare’s English Chronicles. New York: Cornell University Press, 1990. SCHOCH, R. Shakespeare’s Victorian Stage: Performing History in the Theatre of Charles Kean. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. SHAKESPEARE, William. The Complete Works of William Shakespeare. Ware: Wordsworth Editions, 1996. SHATTUCK, C. H. William Charles Macready’s King John. Urbana: University of Illinois Press, 1962.

127

Dossiê Shakespeare

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

The Most Lamentable Romaine Tragedy: Titus Andronicus − Criticism, Stage History, and Contemporary Readings dos Santos Avila

Dossiê Shakespeare

128 Filipe

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

The Most Lamentable Romaine Tragedy: Titus Andronicus Criticism, Stage History, and Contemporary Readings Filipe dos Santos Avila1 Universidade Federal de Santa Catarina

Abstract: This essay foregrounds William Shakespeare’s early tragedy Titus Andronicus, overviews the critical debate concerning the play’s controversial authorship, takes into account the play’s reception and life on stage, and presents germane contemporary readings of the playtextdrawn from differenttheoretical standpoints. The essay concludes that the text is not supreme in creating meaning or establishing authority and that these are a direct function of performance and criticism. Keywords: Shakespeare; Titus Andronicus; performance criticism.

Palavras-chave: Shakespeare; Tito Andrônico; análise espetacular.

Introduction Professor Coleman, a character from Philip Roth’s The Human Stain, says, in his first class on the classics, that Western literature begins with a quarrel: the quarrel over a young female, Helen of Troy in the Iliad(2001:4).The story of Titus Andronicus, Shakespeare’s most violent tragedy, could also be said to begin with a quarrel over a young female, that is, Lavinia, Titus Andronicus’ daughter. However intricate the revenge plot of this early tragedy, ultimately the main conflict deals with the control of Lavinia, the aristocratic young female whose body, in a way, symbolizes the Roman Empire. The play begins with the former Emperor’s two sons fighting over succession and, subsequently, over the right to marry Lavinia. Moreover, Lavinia’s rape and mutilation by 1

Filipe dos Santos Avila has an M.A. in English Language and Literature from the Federal University of Santa Catarina and is currently a doctorate student at the same university. His M.A. thesis was entitled “Shakespeare in the Tube: Theatricalizing Violence in the BBC’s Titus Andronicus”, and his doctoral dissertation addresses performance analysis and contextualization of contemporary stagings of Titus Andronicus.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

129

Dossiê Shakespeare

Resumo: O presente ensaio topicaliza umas das primeiras tragédias de William Shakespeare, Tito Andrônico, revê o debate crítico acerca da controvérsia autoral relativa à peça, aborda a recepção e a presença da peça no palco, e apresenta leituras relevantes e contemporâneas do texto da peça, selecionadas a partir de diferentes posturas teóricas. O ensaio conclui que o texto não é supremo na criação de sentido nem no estabelecimento de autoridade, e que sentido e autoridade se constituem como função direta da encenação e da crítica.

Filipe dos Santos Avila

the Goth Empress’s two sons epitomize the barbarian invasions of Rome. But the history of Titus Andronicus, the play itself, is also filled with struggles over authority, meanings, aesthetic value, and so on. Was Titus written by Shakespeare? Did he write all of it? What were his sources? Is the playa parody, a tragedy or both? Is it republican? Is it reactionary? After all, is it a good play? These are some of the questions we want to address in this essay, not to ultimately answer them but to expose conflicting points of view and contribute to the understanding of the play. The very fact that such questions have often been asked shows that, independently of who the author is or of its aesthetic merits, Titus Andronicus is worth studying. Thus, in this essay we overview some of the debate concerning the play’s reception, we take into account the question of authorship, the play’s life on the stage, and we also present germane contemporary readings of the playtext from different theoretical standpoints.

Beauty, Shock and Authorship

Dossiê Shakespeare

130

Before briefly discussing the play’s aesthetic status, we would like to address the question of authorship. As previously mentioned, it is not my aim to make an aesthetic defense of Titus Andronicus, but my goal in foregrounding this discussion is to highlight how fleeting the play’s aesthetic status has been and how considerations about its “beauty” have influenced the question of authorship. The main sources of my discussion will be the introductions to modern editions of Titus Andronicus, namely, The Riverside Shakespeare, The New Cambridge Shakespeare, The Arden Shakespeare, and The Oxford Shakespeare (see References). Critical consensus establishes that collaboration among playwrights in Early Modern England was a recurrent practice, and so, for a long time, scholars believed that Titus Andronicus could not be attributed solely to Shakespeare—he probably touched the play, but only to give it a few “Master-touches”. Professor Alan Hughes dedicates a section of his introduction to the New Cambridge Shakespeare edition of the play to the question of authorship and begins by pointing out that the only evidence—if we can call it that—that the play was not solely written by Shakespeare was an address to the reader written by Edward Ravencroft, a seventeenth-century writer, in his own adaptation of the story of Titus Andronicus. The address, as quoted by Hughes, reads: I have been told by some anciently conversant with the Stage, that it was not Originally his, but brought by a private Author to be Acted, and he only gave some Master-touches to one or two of the Principal Parts or Characters; this I am apt to believe, because ‘tis the most incorrect and indigested piece in all his Works; it seems rather a heap of Rubbish than a Structure. (qtd. in Hughes 2013:10)

Ravencroft’s address comprises no scholarly argument. To his taste the play was bad;

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

The Most Lamentable Romaine Tragedy: Titus Andronicus

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

131

Dossiê Shakespeare

therefore, it could not be Shakespeare’s. To Jonathan Bate, cogently, the motivation behind Ravencroft’s remark is to validate his own work in writing an adaptation: he “may have created a fiction about Shakespeare as improver in order to give precedent and warrant for his own practice as improver” (2014:79). Ben Jonson’s introduction to his play Bartholomew Fair(1614) also helped to start a “denigration process”, as put by Eugene Waith, editor of the Oxford Shakespeare edition. Jonson, in his introduction, mocks as having an old-fashioned taste those who still think highly of Titus Andronicus, since the play was written in the early 1590’s, almost thirty years before Jonson’s.Titus Andronicus had been a success, but both its authority and its quality were being questioned. This denigration process “continued for many years, and often led to the conviction that the play as we have it could not have been written by Shakespeare. Recognition of its merits and of its close ties with other works by Shakespeare was slow to come. It has been more characteristic of the twentieth than of preceding centuries” (2014:1). In the twentieth century, especially in the first half, scholars tried to formally question the authorship of Titus Andronicus. Bate expounds on how some compared Titus Andronicus to the works of George Peele, trying to establish him as author, and found several lexical parallels. Such parallels indeed exist, “but then there are equally striking parallels with anonymous plays such as Selimues Emperor of the Turks and Edmund Ironside, with [Christopher] Marlowe’s Jew of Malta, [Thomas] Kyd’s Spanish Tragedy, and [Thomas] Lodge’s Wounds of Civil War—and of course with Shakespeare’s works” (2014:81). Bate reminds us that it was common for Elizabethans to imitate words and expressions they encountered in their contemporaries’ works, hence rendering such comparisons rather unreliable in terms of establishing authorship (2014:81-2). But analyses of other linguistic elements, such as “connectives, articles, prepositions and pronouns [. . .] constitute a linguistic fingerprint as opposed to poetic plumage”, and a “computer analysis of these suggests [. . .] that Titus is by a single hand and that at this level its linguistic habits are very different from Peele’s” (2014:83).Yet, Shakespeare’s fingerprint in the play is, as most scholars agree, not in the language of the verse, but rather on the spectacular stagecraft. All evidence, both historical and linguistic, suggests that Titus was indeed written by Shakespeare, and that questioning its authority was due to its relative “poor taste” in comparison to other plays by the Bard rather than due to any historically valid claim. Thus the dislike for Titus Andronicus persists throughout the twentieth century. For T. S. Eliot Titus Andronicus is “one of the stupidest and most uninspired plays ever written […]. There is a wantonness, an irrelevance, about the crimes of which Seneca would never have been guilty” (qtd. in Hughes 2013:32). Harold Bloom sees the play as necessary for Shakespeare in his maturing years, but not for us (86). For Bloom, the play’s artistic failure lies in its problematic distinction between parody and tragedy. In the two performances Bloom attended, audiences “never quite knew when to be horrified and when to laugh, rather uneasily” (1998:77).Notoriously, Bloom writes that he would only attend another

Filipe dos Santos Avila

performance of Titus if Mel Brooks, well known for comedies, parodies and farces, directed it (1998:86). Currently, Shakespeare’s authorship is undoubtedly recognized, but certain critics, like Bloom, do not take the play to be a serious effort in writing tragedy. In spite of such negative opinions, Titus has seen a revival in its critical appraisal, especially due to performances after the Second World War.

Stage History

Dossiê Shakespeare

132

Titus Andronicus’ performance history is special: it “is the only Shakespearean play for which we have a contemporaneous illustration” (BATE2014:38), i.e., Henry Peacham’s drawing. Whether indeed a representation of a performance or simply a “quasi-emblematical representation” of the playtext, Peacham’s drawing is considered by Bate an “early ‘production’” of the play: “even if it is a production in Peacham’s mental theatre, [the drawing] demonstrates how a contemporary of Shakespeare’s visualized the play—and such a visualization must have depended on some experience of real theatre” (2014:41). Two features of the drawing are particularly worth noticing: the anachronism of the costumes and the stiff, emblem-like pose of the characters (BATE2014:43) (see figure 1). Another register of a nearly performance of Titus Andronicus is of a private performance “in the household of Sir John Harrington at Burley-on-the-Hill in Rutland”, (BATE2014:43) by, presumably, the Lord Chamberlain’s Men, Shakespeare’s company at the time, in 1596. Bate mentions that Sir John Harrington “had links with the Essex circle”, meaning that political aspects of the play may have interested him. However, the record we have of this performance does not concern its political aspects, but rather its theatricality: “Jacques Petit, a French tutor in the household, wrote home saying [. . .] ‘La monstre a plus valuque le sujet’” (2014:43-4), that is, the spectacle has more value than the plot. The theater and its audiences changed significantly after the Restoration. “Audiences were smaller, differently composed, and had acquired new tastes”, Alan Hughes writes, and “the Restoration playhouse had a proscenium arch and pictorial scenery which imposed entirely new conventions” (2013:23). It is in this context that the aforementioned adaptation of the play written by Ravenscroft was performed. His distaste for the play is clearly related to the conventions of the theater of his time, which shows that it is difficult to separate, in this case, literary criticism from theatrical practices. Titus was rarely performed in the seventeenth and the eighteenth centuries. The American actor Ira Aldrige, known as the “African Roscius” and naturalized English, was responsible for the only known performance of Titus Andronicus in the British Isles in the nineteenth century (WAITH2008:47). Reviews of his production emphasized Aldrige’s outstanding performance as Aaron, who, in Aldrige’s reading of the play (and the role), was more of a heroic figure (2008:48-9). Eugene Waith calls attention to the fact that “only Saturninus is a truly villainous character”; even Tamora and her sons are not entirely evil in this production (2008:49). Another century goes by and the horrors present in Titus

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

The Most Lamentable Romaine Tragedy: Titus Andronicus

Contemporary Critical Views and Concluding Remarks So far I have briefly covered the issue of authorship and stage history regarding Titus Andronicus, trying to elucidate whenever possible the relationship between these two aspects and the critical appraisal the play has received throughout the centuries. To conclude this essay, I would like to bring to discussion the significance of the violence in the play by evoking two opposite critical views. Leonard Tennenhouse argues that the exaggerated violence in the play is not gratuitous, but it serves a political purpose: it deals with a certain “political iconography” that displays the power of the monarch. The late Francis Barker, on the other hand, argues that the extravagant violence in Titus Andronicus serves to occlude real violence, i.e., State violence against the common people of Elizabethan

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

133

Dossiê Shakespeare

Andronicus still seem unfit to be performed in their entirety, with their sheer spectacle and complex characterization. Only in the Old Vic Theater in 1923 would the play be performed again, and for the first time “as Shakespeare wrote it since the early years of the Restoration” (WAITH 2008:49), but not until after the Second World War Titus Andronicus would regain part of its former glory as one of the most successful plays of its time. Alan Hughes highlights the difference in terms of reception before and after the war. Commenting on a negative review of the 1923 production, written by Herbert Farjeon, who thought the atrocities in the play were exaggerated, Hughes submits that “[o]f course, Farjeon was writing before the twentieth century had shown what it could really achieve in the way of atrocities” (2013:29). Thus the post-war brought Titus Andronicus back to the stage, as if the atrocities seen and experienced in the war made the play less alien to contemporary audiences. After Auschwitz and the atomic bomb, perhaps, the rape, mutilation, and cannibalism present in the play no longer seemed far-fetched. Among the post-war Tituses, two productions stand out: Peter Brook’s and Deborah Warner’s. So successful was Brook’s production that, as noted by Alan Hughes, it challenged critical conceptions about the play itself. Concerning Titus Andronicus, Hughes writes, “literary tradition found it bad”, but “Brook confronted [literary tradition] with a production so successful that the consensus was called into question. Scholars began to return to the text” (2013:42). The success of Brook’s production calls attention to the fact that performance is neither subject to the text nor to criticism, exclusively, but that these factors interact in unexpected ways on an equal level. Brook’s take on Titus was symbolic, and violence was stylized. Further on, Deborah Warner, in the 1980’s, rendered Titus both a more domestic and realistic play. Other productions worthwhile mentioning are Jane Howell’s BBC-TV adaptation (1985),with its ritualistic and Brechtian overtones (cf. AVILA, M.A. 2014), and Julie Taymor’s movie adaptation, Titus (1999),with its rich intertextuality, ranging from Fascist Italy through Marilyn Monroe and Hannibal Lecter.

Filipe dos Santos Avila

England. Succinctly put, for Barker, ignoring this violence and showing violence as something spectacular, Titus serves to legitimize State power. In my introduction I briefly mentioned that Lavinia’s body serves as a symbol for the Roman Empire itself. Tennenhouse develops this argument further, and at the same time he dismisses the violence of the play to be exaggerated or purposeless. He writes: The sheer spectacle of a woman, herself dismembered, herself carrying her father’s amputated hand in her mouth, has not earned this play a particularly high place in a canon based on lofty ideas and good taste. The mutilation of Lavinia’s body has been written off as one of the exuberant excesses of an immature playwright or else as the corrupting influence of another poet. But I would like to consider these sensational features as part of a political iconography which Shakespeare understood as well as anyone else, one which he felt obliged to use as well as free to exploit for his own dramatic purposes. (2005:106-7)

Dossiê Shakespeare

134

Tennenhouse calls attention to the fact that such representations of the female body were produced in “an age which thought of state power as female. Under such circumstances, these representations—perhaps any representation—of the aristocratic female provided the substance of a political iconography which enhanced the power of the Elizabethan state” (2005:112).If in Elizabethan England “[d]isplaying the monarch’s body was so essential to maintaining the power of state” (2005:106), it is difficult to conceive that such representation of an aristocratic female would be gratuitous. But if Tennenhouse focuses on the display of power in Titus Andronicus and the political iconography evoked through such a violent passage, Barker famously claims that what is present in Titus is the aforementioned occlusion of violence. The passage that motivates his reading is the killing of the clown/messenger in act 4, scene 4. As opposed to the other murders in the play, the clown’s hanging is “so undemonstrative and marginal that it has consistently escaped notice” (1993:165). This act, writes Barker, “is simply there: strange, unheimlich, and, I have found, haunting” (1993:168).Barker’s conclusion is that the atrocities in the play shift the focus away from killings such as these, the unjustified execution of common people by the State, a common practice in Early Modern England as his painstaking historical research indicates. Thus, for Barker, Titus Andronicus endorses “an entire historical culture of violence which it domesticates” (1993:205). These two readings, of course, do not exhaust the possibilities of thematic interpretations of the play, nor are these the only readings to be taken into account. Other possibilities pay to be pursued, such as, for instance, Andrew Hadfield’s argument that Titus is a republican play, advocating for a limited, democratic government. After all, the text is not supreme in creating meaning or authority: these invariably operate in close relationship with performance and criticism. Textually, The Most Lamentable Romaine Tragedie of Titus Andronicus, as the play is titled in the 1594 quarto, has remained the same for

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

The Most Lamentable Romaine Tragedy: Titus Andronicus

these four centuries, but the status of Titus Andronicus as a cultural artifact has drastically changed.

Appendix

135

Figure 1

Avila, Filipe. Shakespeare in the Tube: Theatricalizing Violence in BBC’s Titus Andronicus. Diss. UFSC, 2014. Barker, Francis. “A Wilderness of Tigers”.The Culture of Violence. Chicago: The University of Chicago Press, 1993, 143-208 Bloom, Harold. Shakespeare: The Invention of the Human. New York: Riverhead Books, 1998. Hadfield, Andrew. Shakespeare and Republicanism. Cambridge: Cambridge UP, 2008. Kiernan, Victor. “Tragedies: Titus Andronicus and Romeo and Juliet”. Shakespeare: Poet and Citizen. London: Verso, 1993. 133-44. Roth, Philip. The Human Stain.London: Vintage, 2001. Shakespeare, William. Titus Andronicus. The Riverside Shakespeare. Second Edition. Ed. G Blakmore Evans. Boston: Houghton, 1997. --. Titus Andronicus. The Oxford Shakespeare. Ed. Eugene Waith. Oxford: Oxford UP, 2008. --. Titus Andronicus. The New Cambridge Shakespeare. Second Edition. Ed. Alan Hughes. Cambridge: Cambridge UP, 2013 --. Titus Andronicus. The Arden Shakespeare. Second Edition. Ed. Jonathan Bate. New Delhi: Bloomsbury Publishing PLC, 2014. Tennenhouse, Leonard. “The Theater of Punishment”.Power on Display: The Politics of Shakespeare’s Genres. Oxon: Routledge, 2005, 102-146.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Dossiê Shakespeare

References

D R A M AT U R G I A S

Documenta

Shakespeare no LADI Marcus Mota

Documenta

136

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Shakespeare no LADI Marcus Mota Universidade de Brasília

Resumo: Relato sobre as principais atividades do Laboratório de Dramaturgia relacionadas à obra de W. Shakespeare. Palavras-Chave: Shakespeare, Dramaturgia musical, Texto, Intepretação Abstract: Report on the main activities of DramaLab based on W. Shakespeare works. Keywords: Shakespeare, Musical Dramaturgy, Text, Interpretation.

1 Entrei para o Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília como professor substituto em 1995, passei em concurso para professor efetivo em Junho de 2015, mas só assinei o termo de posse em Janeiro de 1996. 2 As ementas das disciplinas, projetos de pesquisa e cursos de extensão dessa época estão reunidas nos anexos ao meu livro Imaginação Dramática (Texto&Imagem,1998). Havia nos currículos antigos a percepção que alunos de tradições estéticas diversas deveriam ter experiências com outras tradições. As discipinas de ELEHA tinham essa função: alunos de Música frequentavam aulas de Teatro e Artes Visuais. E assim por diante. Estes contatos interartísticos foram eliminados por reformas curriculares que objetivaram reduzir o tempo de presença do aluno na Universidade. Pelo menos nos currículos... 3 Dramaturgias: Conceitos, Exercícios e Experiências. A sair pela Editora da Universidade de Brasília. 4 O filme é baseado em na peça teatral The Dresser, de Ronald Harwood, de 1980. Em 2015 foi realizada uma versão para a tv do mesmo material pela BBC, dirigida por Richard Eyre.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

137

Documenta

Iniciando meus trabalhos como professor de Teoria e História do Teatro no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília em 19951, estive cotidianamente envolvido em discussões de textos teatrais, com um destaque para a obra de Shakespeare, of course. No currículo antigo, eu ministrava uma disciplina de introdução a teatro e vídeo para alunos de todo o Instituto de Artes (na época, alunos dos Departamentos de Artes Visuais, Música, Teatro) chamada ELEHA 2 ( Elementos de Linguagem Estética e História da Arte ) e três disciplinas de repertório para alunos do curso de Teatro ( Literatura Dramática 2,3,4)2. Em ELEHA 2, eu me valia do jogo entre textos teatrais e filmes para trabalhar conceitos básicos de estética, de organização de obras e de sua fruição, experiência que mais tardes seria redimensionada no curso para educação à distância que agora integra meu livro Dramaturgias3. Entre as obras analisadas, estava o filme O Fiel Camareiro (1983), de Peter Yeats4. Nesta, acompanhamos as tensões entre um velho e rabugento ator de uma companhia teatral

Marcus Mota

Documenta

138

especializada no repertório do bardo inglês e outras figuras dessa companhia, especialmente seu assistente pessoal. Durante o filme, trechos de diversas peças de Shakespeare eram reencenados ou citados nas falas das personagens. Ao mostrar os bastidores do teatro, as relações entre os integrantes da companhia, o filme servia para os jovens estudantes de artes entrarem em contato com diversos aspectos materiais e éticos do processo criativo cênico. Ao mesmo tempo, era uma antologia de Shakespeare, um contato com alguns de seus momentos emblemáticos. Já nas aulas de Literatura Dramática, especialmente as dedicadas ao período elisabetano, ao Siglo d’Oro e ao Teatro do Classicismo Francês - Literatura Dramática 3 - , havia uma oportunidade maior para se analisar e discutir os textos de Shakespeare. A partir dessa disciplina elaborei o ‘Seminário Shakespeare’, um recorte na ementa com ênfase nas obras do bardo inglês5. Este Seminário Shakespeare se desdobrou em algumas outras atividades: as leituras e análises preparatórias para o Seminário me levaram a escrever uma série de textos, o quais foram depois transformados em artigos e aulas de dramaturgia, como as que ministrei entrei 2008 e 2009 na Florida State University6. Assim, o know-how produzido e testado em Brasília foi depois levado para Tallahassee e lá reelaborado. Digno de nota são as análises da macroestrutura ou divisão em partes das obras, como a de Ricardo III: como ações de composição, o seccionamento e distribuição dos eventos em si mesmo tanto produz o ritmo do espetáculo como manifesta modos de enfatizar a compreensão da obra. Em Ricardo III, por exemplo, assistimos à ascensão de Gloucester ao trono. De nada, de ninguém, de uma criatura abjeta, ele se torna rei. Ora, isso só se tornou possível pela cooptação, por mais e mais pessoas aderirem ao irresistível fluxo de sua ascendência. Isso é construído até o ato III. A sucessão de cenas efetiva a superação dos obstáculos. Por isso, as cenas são habilmente construídas com ou sem a presença de Gloucester: quando ele está só, tudo é explicitado, a platéia no mesmo tempo dos planos do usurpador. Quando Gloucester entra em cena, ele redimensiona os eventos, altera o movimento de oposição à sua figura. Este ritmo de mudanças e alterações é manifesto no monólogo de abertura da peça. Mas este mesma imagem do ritmo natural de mudanças afeta o próprio Gloucester, pois, a partir da segunda metade da peça, ele começa seu ritmo descendente. Antes, Gloucester cresce, ele é maior que o mundo. Após, ele está dentro do mundo, dentro do ritmo natural das estações do ano. Um diagrama sobre o primeiro ato de Ricardo III mostra como o ritmo ascendente de Gloucester é efetivado a partir do jogo entre seus monólogos e suas interações assimétricas com diversos grupos e/ou agentes dramáticos:

5 Veja nesta mesma revista a apresentação do artigo “Notas sobre peças de Shakespeare”. 6 Material que será publicado como parte do livro Dramaturgias: Conceitos, Exercícios e Experiências, pela Editora Universidade de Brasília. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Shakespeare no LADI

1

2

3

4

Monólogo de Gloucester (411)

Monólogo de Lady Anne (32)

Cena de grupo (41)

O sonho de Clarence. (83)

Gloucester e Hasting. Diálogo de transição (22)

Diálogo entre Lady Anne e Gloucester(96)

Diálogo entre Gloucester e o grupo (65)

Os dois assassinos e os guardas. Diálogo de transição (16)

Monólogo de Glocester (18)

Gloucester e Gentlemen. Diálogo de transição (03)

Diálogo entre Margaret e Gloucester (196)

Diálogo entre os assassinos(53)

Monólogo de Gloucester

Gloucester, Grupo e um Servo. Diálogo de transição (20)

Clarence e os assassinos (108)

Monólogo de Gloucester (15)

Palavras finais dos assassinos (13)

Gloucester e os dois assassinos (17)

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

139

Documenta

A partir do diagrama podemos observar que ato se inicia com duas cenas espelhadas: as cenas 1 e 2 abrem e fecham com monólogos, com centros de cena bem distinguíveis. A diferença entre elas marca-se por inclusão: Lady Anne abre a segunda cena, ocupando o lugar de abertura em monólogo, antes proferido por Gloucester. Mas o usurpador continua com a última palavra. Tudo acontece entre as margens propostas por Gloucester. Após conseguir enfrentar o seu maior obstáculo - seduzir a viúva do homem que ele próprio matou -, Gloucester, e o padrão dramatúrgico, avança para conquistar a corte. A cena 3 apresenta a maior duração e complexidade desse ato inicial, servindo também para exibir a extensão do empreendimento de Gloucester. A ruptura com o padrão das duas cenas anteriores marca tanto esta expansão quanto futuros revezes no projeto de Gloucester: para fundamentar seu projeto de poder, Gloucester precisou que outros cooptassem com ele. Muitos daqueles que cooptaram ou foram silenciados, futuramente iram reverter as decisões tomadas nessa cena. Assim, a cena III é ao mesmo tempo a imagem da tensão entre a adesão completa e a ruína. Ao fim da cena três, temos justapostos o tradicional monólogo de Gloucester e a fala dos assassinos. No lugar da cena terminar com o monólogo do usurpador, vemos que, a partir da adesão e cooptação, outros passam agir em conformidade ao projeto de poder acatado. Gloucester atua em ausência. É o que se manifesta na cena 4, que fecha o ato. Gloucester não se apresenta visivelmente em cena mas o assassinato de Clarence, um dos muitos atos necessários à elevação de Gloucester ao trono, é a materialização daquilo que em um primeiro momento estava confinado ao espaço-tempo de um monólogo, mas que aos poucos vai se generalizando como uma doença. Para que Gloucester se torne rei, os outros precisam se tornar Gloucester. A macroestrutura cifra esse ritmo de transformações. O monólogo inicial de

Marcus Mota

Documenta

140

Gloucester, com suas imagens cósmicas de entrechoque de forças, aponta para os embates que, ironicamente, superam indivíduos. Com o expediente da macroestrutura, as leituras se direcionavam para o modo de construção da obra, para aquilo que está ali registrado: as divisão em partes e as entradas e saídas das figuras da peça, os espaços, os atos verbais como rubricas, antecipações, contracenações, e outros procedimentos. A ênfase na dramaturgia textual promovia o deslocamento da interação do leitor com a obra para a construtividade comum de algo que compreendido em sua elaboração. Ou seja, tanto o leitor quanto a obra co-participavam de um mútuo diálogo criativo. A partir da compreensão do modo com esta obra em particular foi construída, eu como leitor estava apto a elaborar outras obras. Para mim, em um curso de Artes, eu não via outra função mais relevante que transformar a leitura de textos artísticos em uma propedêutica a atos criativos. Isso funcionou comigo mesmo. De professor de textos dramáticos fui me metamorfoseando em autor de textos dramáticos. E Shakespeare lá estava comigo desde os primeiros passos. Assim, foram elaboradas três espetáculos a partir da obra de Shakespeare, todos consoantes com as atividade do Seminário Shakespeare: a- Um dia de Festa (2004); Iago (2005); Caliban (2007). São todos textos depois de meu doutorado em dramaturgia musical, elaborado no estudo de técnicas audiovisuais presentes em Ésquilo (2002), mas são textos diretamente relacionados com leituras das obras de Shakespeare. Um Dia de Festa foi um trabalho dramático-musical entre o LADI e estudantes de conclusão do curso em Artes Cênicas7. O texto composto especialmente para as atrizes a partir de suas memórias e referências musicais a partir da cultura tradicional. O texto é todo em versos, valendo-se de técnicas da blocos de falas e contracenação da tragédia grega e de Shakespeare, especialmente Hamlet, peça sobre a qual eu havia realizado um curso de extensão em 20008. A experiência com o verso, uma dramaturgia versificada seria depois utilizada no meu primeiro grande musical com orquestra - Saul, de 2006. Entre os exercícios de dramaturgia musical em verso Um dia de Festa (2004) e Saul (2006), elaborei o texto de Iago, a partir dos versos de Shakespeare. O processo criativo foi de, a partir de uma análise do texto da peça, selecionar algumas frases e algumas cenas,

7 Escrevi sobre o processo criativo e dramaturgia no artigo “ Dramaturgia musical e cultura popular: apropriação e transformação de materiais sonoros para a cena”. In: G. Teixeira, M. V. Garcia e R. Gusmão (Eds) Anais do IV Seminário Nacional Transe: Patrimônio imaterial, performance cultural e retradicionalização. Brasília, 2004, p.203-213. 8 Curso “Como ler imagens? Estudo Comparativo das versões fílmicas de Hamlet”, no qual comparava texto da peça e as transposições cinematográficas realizadas por Laurence Olivier (1948) e Keneth Branagh (1996). Já o Curso “Shakespeare: Matrizes dramáticas da tragicomédia” em 1998, trabalhava com a construção textual de Ricardo III, Otello e Macbeth. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Shakespeare no LADI

9 Sobre pesquisa na Florida State University com ópera, v. meu texto “ Direção Cênica de Obras Dramático-Musicais: o trabalho de Matthew Lata no Florida State Opera” In: R. C. Camargo; C. R. O. Zanini (Eds.). Música na Contemporaneidade: Ações e Reflexões. Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2015,p. 97-112. 10 Sobre o evento, v. http://www.ican2008.ul.pt/ICAN2008_en/ . A comunicação intitulava-se “Interação entre narrativa e drama em As Etiópicas, de Heliodoro e Conto de Inverno , de W. Shake-

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

141

Documenta

traduzi-las e inseri-las em um novo contexto: o de discutir o impacto sobre a audiência da violência contra a mulher, tema que eu enfrentaria depois em minha remontagem da ópera Carmen, em 2007. Eu estava trabalhando desde 1996 em textos que giravam em torno da (des) construção das imagens e ações da masculinidade. O último esforço foi um intenso trabalho de escrita cênica na elaboração de obras como Não se esqueça de mim (2003), As coisas que não se mostram (2003) Uma Noite Um Bar (2003), Cachorro Morto (2004), o Violador( 2004). Todos estes textos integram a coletânea inédita que denominei O Macho Desnudo. Roteiros Cênicos para (Des) Construção do Masculino. Neste número da Revista Dramaturgias dedica-se uma inteira sessão em torno da obra Iago, que foi dirigida em diversas ocasiões por Nitza Tenenblat, professora do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. Aqui são publicados: o texto da peça; sua tradução para o inglês, por Nitza Tenenblat; e um artigo que apresentei no Congresso International da Shakespeare Association World Congress, ocorrido em Brisbane, na semana que antecedeu a estréia de Saul, no Teatro Nacional de Brasília, em 2006. Para não congestionar este número da Revista Dramaturgias dedicado a Shakespeare, deixei para um próximo número a publicação de parte do imenso material que disponho sobre o processo criativo e realização do musical Caliban (fotos, texto, roteiro, partituras, programa, etc). A obra é uma reelaboração de A Tempestade, escrita no tempo em que estava em licença, pesquisando na Florida State University, (2006) e apresentada em 2007, fechando o ciclo de parcerias entre o LADI e o Opera Estúdio do Departamento de Música da Universidade de Brasília, que ainda contou com as montagens de Bodas de Fígaro, de Mozart (2004); O Telefone, de Menotti (2005); Carmen, de Bizet (2005); O Empresário, de Mozart (2005); e Cavalleria Rusticana, de P. Mascagni (2006)9. Com modificações curriculares no curso de Artes Cênicas e maior envolvimento em pesquisas e dramaturgia musical e composição musical, fui deixando um pouco o contato direto com a obra de Shakespeare. Melhor, deixei de ser um professor de ‘literatura dramática’ que se valia das peças de Shakespeare em aulas de análise textual, para um dramaturgo e compositor que muito aprendeu com a dramaturgia de Shakespeare. Mas uma nova direção se abriu: em 2008 tive a oportunidade de aproximar tradições aparentemente distantes: a dramaturgia de Shakespeare e a tradição clássica, especialmente o chamado ‘romance Grego’. Apresentei uma comunicação ao IV ICAN (International Conference on the Ancient Novel), em Lisboa sobre o diálogo intertextual entre Conto de Inverno, de Shakespeare e As Etiópicas, de Heliodoro10. Várias questões em atra-

Marcus Mota

Documenta

142

íam para tal diálogo. Primeiro, a partir do impacto da leitura de As Etiópicas, o aspecto híbrido entre narrativa e drama ali explorados me induziram para uma futura transposição dramático-musical do material de Heliodoro. Segundo, o estudo das obras finais de Shakespeare, as peças-romance, manifestava uma maior aproximação do bardo inglês com a tradição clássica, rompendo com o proverbial julgamento de Ben Johnson, em poema que abre o Primeiro Fólio: “ Small Latin and Less Greek”. Porém, recente bibliografia tem esclarecido que essa fama de autor com pouco domínio da cultura clássica se desfaz11. E o impacto circulação de obras chamadas de ‘romance grego’ amplia a questão: uma das marcas desta produção tardia foi justamente a de reciclar a cultura clássica, expondo seus procedimentos compositivos. Eram obras escritas para leitores impregnados em uma cultura livresca, na manipulação de referências textuais. Esse estimulante encontro entre Shakespeare e a Cultura Clássica fomentou depois meus estudos de pós-doutorado na Universidade de Lisboa, entre 2014 e 2015, sob a supervisão da querida pesquisadora Marília Futre Pinheiro, organizadora do IV ICAN. Aquilo que em 2008 fora deslumbrado, agora virou tarefa, mas realizada de outro modo: o conúbio Shakespeare-Heliodoro, esse intercampo entre narrativa e drama foi retomado e redramaturgizado em uma Suíte Orquestral - a ‘Suíte Helidoriana’12. Encerrando as considerações aqui exposta, apresento parágrafos finais do meu projeto de Pós-doutorado, que apontam para últimos e não derradeiros desdobramentos de meu renovado contato com Shakespeare: speare” e foi publicada como capítulo do meu livro Nos Passos de Homero. Ensaios sobre Performance, Filosofia, Música e Dança a partir da Antiguidade (Annablume, 2013, pp.167-187). 11 Como nas seguintes obras: B. Mowat, The Dramaturgy of Shakespeare’s Romances. The Romances as Open Form Drama (The University of Georgia Press. 1976); C. & M. Martindale, Shakespeare and the Uses of Antiquity (Routledge, 1990); C. Martindale & A. Booth (Eds), Shakespesre and the Classics (Cambridge University Press, 2004); M.Stagman, Shakespeare’s Greek Drama Secret (Cambridge Scholars Publishing, 2010); C. Burrow, Shakespeare and Classical Antiquity (Oxford University Press, 2013); C. Gesner, Shakespeare and the Greek Novel ( University of Kentucky Press, 2014). Um ainda útil trabalho de fontes textuais está na obra de P. Stapfer, Shakespeare and Classical Antiquity (Kegan Paul& Co. , 1880), disponível em https://archive.org/details/cu31924013163534, isso sem falar nos oito volumes da obra de G. Bullough Narrative and Dramatic Sources of Shakespeare, agora disponíveis pela Routledge Online. Sobre a amplitude da bibliografia, v. J.W.Velz, Shakespeare and the Classical Tradition: A Critical Guide to Commentary, 1660-1960 (University of Minnesota Press, 1968); e L. Walker, Shakespeare and the Classical Tradition: An Annotated Bibliography, 1961-1991( Routledge, 2016). 12 Sobre esta pesquisa e seus produtos , v. “A obra como experiência recepcional: o caso das As Etiópicas, de Heliodoro. De Shakespeare até nós” In: Anais online VIII Congresso da Abrace, 2014 ( Link: portalabrace.org/viiicongresso/resumos/teorias/MOTA Marcus.pdf ); “Audiocenas:Elaborando um amanhecer a partir de As Etiópicas, de Heliodoro” In: Anais online do 13 ART Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, 2014 ( Link: https://art.medialab.ufg.br/p/9324-13-art-2014 ). Está disponível em vídeo a palestra “Audiocenas e Etiópicas: pesquisa e processo criativo” realizada na Universidade de Lisboa em 2014, nos seminários do CLEPUL ( Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Européias. Link do vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=noLOHxEkrx4 . D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Shakespeare no LADI

13 Conf. C. Cobb, The Staging of Romance in Late Shakespeare: Text and Theatrical Technique. Associated University Presses, 2010; e os textos de D. Lindley, “Blackfriars, Music, and Masque: Theatrical Contexts of the Last Plays” In: ALEXANDER,C. (Org.). The Cambridge Companion to Shakespeare’s Last Plays. Cambridge University Press, 2009, pp.29-4, e Shakespeare and Music. (Arden Shakespeare, 2005).

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

143

Documenta

“Para se compreender o impacto desse know-how presente em As Etiópicas, basta entender que, em um momento posterior da transmissão, circulação e recepção da tradição grego-latina, durante o período elisabetano, as novidades do fim da carreira de Shakespeare têm direta relação com a leitura das narrativas restantes do ‘romance grego’. Daí se compreende a dificuldade em classificar as obras últimas de Shakespeare (Péricles, Cimbelino, Conto de Inverno e A tempesdade), chamadas algumas vezes de Peças-romance, pois elas integram elementos de diversos gêneros (comédia e de tragédia) enfatizam imagens e referências arcaicas como magia e fantasia, e revelam maior relevância de sound design em sua realização13. Desse modo, a ação shakesperiana se compreende dentro de um contexto de dramaturgias em contato e mútua iluminação, pois, ao se esclarecer a situação de Shakespeare leitor de As Etiópicas, podemos enfim defender algo pouco comentado na discussão de escritas cênicas: a produtividade da intertextualidade na dinamização de repertórios. As peças-romance de Shakespeare revitalizam o gesto de Heliodoro em responder à complexidade e heterogeneidade do evento cênico com uma organização textual que explora tensões e acumulações audiovisuais e temáticas. Nesse sentido, Shakespeare renova sua dramaturgia a partir do estudo e análise do texto de As Etiópicas produzindo novas obras, do mesmo modo que Heliodoro elabora As Etiópicas a partir do estudo e análise da tradição precedente. A estreita colaboração entre dramaturgia, análise textual e repertório aqui é realizada em produtos estéticos que são eles mesmos a explicitação de modos de intervenção na tradição. Em outras palavras, tanto as peças-romance de Shakespeare quanto As Etiópicas de Heliodoro podem ser entendidas como ficções exploratórias das potencialidades dramatúrgicas do repertório. São escritas dramatúrgicas e, ao mesmo tempo, estudos de dramaturgia. Shakespeare e Heliodoro compartilham em suas obras esta hermeutização estética que reúne em uma mesma realização organização textual de procedimentos expressivos e seleção e, disto, conhecimento de obras do repertório. É obra estudada gerando mais obras. Sendo assim, o estudo de uma dramaturgia impulsionadora de dramaturgias com a de Heliodoro proporciona a possibilidade de se colocar em discussão formas de construção da História do teatro, práticas de análise de textos cênicos e sobrevalorizações de opções estéticas. Em todo caso está o debate sobre os modos de produção de conhecimento em Artes Cênicas, sobre como dentro de currículos na graduação e na pós-graduação são efetuados ou não links entre o conhecimento e transformação de repertórios.”

D R A M AT U R G I A S

Documenta

IAGO Metadrama para quatro figuras e coro Marcus Mota Documenta

144

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO Metadrama para quatro figuras e coro

1

marcus Mota

ELENCO ATOR A, QUE FAZ IAGO, a maldade confusa que aos poucos se manifesta, mas somente pela ação dos outros. A persuasiva voz. ATOR B, QUE FAZ CÁSSIO, o homem comum na hora e no lugar errados. ATOR C, QUE FAZ OTELO, espada por espada, braço por braço, arrastando homens e mulheres sem saber para onde. ATRIZ D, QUE FAZ DESDÊMONA, o fim do ciclo, a tentativa de romper com o fascínio que a violência causa. CORO, a cada momento, uma reação.

145

OTELO Olhem: estou armado! E uma melhor que esta nunca esteve com melhor soldado. Já aconteceu de com este braço e esta espada abrir caminho através de obstáculos vinte vezes maiores. (Desistindo de lutar, vendo a inutilidade de sua ação) Mas prá quê? Destino sem controle! Agora eu sei... Não fiquem com medo, (para a espada) mesmo com isso... (Contracena com a espada, até chegar à ponta dela.) Aqui é o fim da minha viagem, o fim... ponto extremo onde meu barco chegou. 1 Escrito em 2005. Estréia no CCBB-Brasília, durante a mostra teatral A experiência da cena, em fevereiro de 2006. 2 Partitura em anexo, ao fim da peça. Canção de Desdêmona, baseada na Canção do Sicômoro.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

Cenário de guerra. Cercas de arame, trincheiras e metais retorcidos. Corpos de soldados mortos espalhados. Encenação do fim (adaptado) de Otelo, de W. Shakespeare. (Sob a melodia da Canção do Sicômoro, o público entra2. Otelo afastado um pouco da esposa morta, Desdêmona. Após, entra o Coro armado e ameaçador. Otelo empunhando a espada em resposta:)

Marcus Mota

Documenta

146

Não recuem: o medo é inútil. Apontem um dedo contra Otelo e ele recua. Prá onde eu iria ? (Olha para a mulher morta) E tu, vagabunda azarada, e tu? Pálida como tua camisola! Co’ esse rosto, no juízo final, vai lançar prá fora do céu minha’alma e demônios vão me possuir. Frio, muito frio sinto... como tua pureza... Ah, desgraça: me espanquem, demônios! O céu não, não! Tempestades me levem! Que eu asse no enxofre! Me afoguem no inferno! Ah, Desdêmona! Morta. Morta. Não! Ah não, não, não! (Entrando outra parte do Coro trazendo Iago preso. Cássio lidera este Coro. Cássio está ferido, fraco.) CÁSSIO Onde está o louco, o desgraçado? OTELO Aqui. Aquele que era Otelo... CÁSSIO (Mandando trazer Iago para frente.) O traíra: tragam o vilão prá cá! OTELO (Olhando para o chão, para os pés de Iago.) É lenda. Não vejo nada que lembre o diabo. Então posso te matar.(fere Iago com a espada) CÁSSIO (Para o Coro) A espada! Tirem! IAGO Ferido... mas vivo. OTELO (Seguro por parte do Coro.) Bom! Muito bom! Eu te quero assim. Prá ti a morte é coisa nenhuma. CÁSSIO Ah, Otelo, tu que já foi alguém, se deixar levar por esse bandido!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

O que dizer... OTELO Diz o tu que quiser... Que eu sou um assassino honrado, é, Fiz tudo pela honra, sem impulso. CÁSSIO (apontando para Iago) Esse infeliz já confessou sua parte. Então vocês estavam juntos nisso? OTELO É. CÁSSIO Mas por quê, general, qual a razão? OTELO Agora eu sei. Não mereço perdão. Mas suplico: perguntem para o demônio aí por que ele fez isso comigo.

147

Documenta

IAGO Não me perguntem nada. O que foi, foi. A partir de agora, não falo mais. OTELO (Em revolta, mas contido pelo coro) Desgraçado! Desgraçado! Vilão! CÁSSIO (para Otelo) O senhor deve deixar esse quarto! Já! Seu poder e comando não mais lhe pertencem. (Para Iago) Quanto a esse bandido, se houver tortura cruel e engenhosa que o atormente por muito, muito tempo, que seja assim. Vamos, vamos embora. (Empurra Otelo) Será tratado como criminoso. OTELO (Interrompendo sua saída) Por favor, esperem: quero falar. Eu servi ao Estado, todos sabem. Mas... isso não. Suplico aos senhores Que quando relatarem o que eu fiz, contem tudo.Não atenuem nada.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Marcus Mota

Mas não se excedam. Falem sem maldade de alguém amou demais, e sem pensar; que não tinha ciúmes, mas, enganado, perturbou-se ao extremo; e co’as mãos jogou fora uma jóia tão rica, a mais preciosa. Falem de seus olhos que antes nunca mostrando comoção, agora se derramam em mil lágrimas. Contem tudo isso, e escrevam. E não deixem de contar que uma vez em viagem, quando eu vi um bandido espancando um cidadão e xingando nosso Estado, eu peguei pelo pescoço o cachorro miserável e o matei assim: Ah... (Otelo se mata com sua espada)

Documenta

148

CÁSSIO Que final sangrento! Nada mais resta! OTELO (Para a mulher) Antes de te matar, eu te beijei. Agora morro e te beijo outra vez. (Cai sobre a mulher. Todos observam os mortos. Aos poucos, parte do coro faz um círculo em volta dos cadáveres e a outra parte sai com Iago que é empurrado com violência, tendo seu rosto encoberto por um capuz de enforcamento. Pano. Cena se esvazia. Após alguns instantes, entra o ator que desempenhou o personagem Iago. Ele chega sob o som estridente de aplausos. O ator chega cambaleante, as mãos em seu flanco esquerdo segurando uma ferida mortal que sangra. Ele atira-se para uma poltrona mais à frente do palco, pega um controle remoto e fixa o olhar nos espectadores. Após reclamar de dores, começa a falar. Enquanto fala, entra o ator que desempenhou o papel de Miguel Cássio. Enquanto Miguel Cássio ajuda Iago quanto ao figurino e maquilagem, entram felizes, mais ao fundo, os atores que desempenham Otelo e Desdêmona.) ATOR A, QUE FAZ IAGO Ah, desgraçado! Desgraçado! ATOR B, QUE FAZ CÁSSIO Calma! Deixa eu ver?! (Mexendo nas roupas de Iago). A Ai! Tire a mão daí. Quer me matar também?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

B Só quero ver o que aconteceu. A armadura: tire! A (Empurrando) Sai daqui! Fique longe de mim! B (Tentando tirar a armadura) Deixe eu te ajudar. Levante os braços! A (A armadura sendo tirada) Não! Ai, bem aí, bem aí! Ele me acertou de propósito, viu?! De propósito! B Calma! Desse jeito... A Olha esse corte! Ele podia ter acabado comigo! B ( Tirando as roupas de Iago, com cuidado.) Não sei porque tanta roupa em cima da gente! 149

B (Desanima. Deixa de fazer o que está fazendo.) Já tá exagerando! Não foi nada. Passou de raspão. A Não foi nada, é? Não foi nada? Vocês sempre desculpando o coitadinho, o desgraçado ...sempre... B (Se limpando. O sangue.) Eu? Que que eu tenho a ver com isso! A (Se vestindo novamente sozinho) É muito perigoso ser Iago! Alguém precisa fazer alguma coisa! B Quer o meu papel? O de Otelo? Ou o de Desdêmona?(rindo) A Sai, sai. Prá variar, você não está entendendo nada, nada.Como sempre. B(Voltando-se) Como assim?!! O que você tá inventando agora?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

A Ai, seu idiota! Cuidado!

Marcus Mota

A(como se tivesse uma platéia.) Não foi o que eu disse? Você não consegue entender nada mesmo! B Olha, todos conhecem essa peça! A As coisas pioraram... Iago ser ferido é uma coisa que assusta. B Quem? A Aquele desgraçado! E você, um idiota! B Não vai me dizer que você tá com medo?! Um simples acidente e ...

Documenta

150

A (Procurando se erguer e se afastar de Cássio) Acidente? Olha, você está cada dia mais parecido com Cássio: é apenas alguém que não sabe, que continua sem saber. B Mas você tá falando sobre o quê, afinal!?! Fala! A As coisas aí bem na sua frente e você nada!!! Nada!!! B Eu vi a cena! Eu estava lá! Ele fez o que tinha de fazer! Só isso! A Então você acha que foi só isso? Que o desgraçado do coitadinho... B (Sem paciência) Mas qual é esse novo imenso mistério que ... A O que você acha, heim? Que é fácil carregar tudo isso, esse mundo de horror e destruição, assim sem pensar em nada? Por acaso eu sou uma máquina? Um monstro? B (Tentando mostrar o que aconteceu) Como é que é? A (Abraçando Cássio.) Você quer é que eu te explique as coisas, não é ? Que eu te mostre tudo, tudo o que realmente estamos fazendo aqui noite após noite!?! Pois eu vou fazer isso, meu amigo. Eu

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

posso fazer isso por você. Vou dizer tudo o que você precisa saber. E depois quero ver quem se atreve a dizer que o meu papel é o de um simples vilão. (Entram ‘Otelo’ e ‘Desdêmona’ aos beijos) ATOR C , QUE FAZ O PAPEL DE OTELO Olha só como já estão amiguinhos! É o novo casal da peça! ATRIZ D, QUE FAZ O PAPEL DE DESDÊMONA. Shakespeare é cheio de surpresas! C (Vira-se e depois da fala beija a mulher, ela meio desconfortável com a situação.) O espetáculo continua noite adentro, noite afora. (Ele se esforça em mantê-la junto a si, de seu abraço.) Enquanto ele se ocupa em acabar com o mundo, a gente... D (afastando-se um pouco.) Alguém precisa fazer o trabalho sujo. A (para C) A tua espada está cada vez mais afiada, viu?

D Ele me olha de um jeito... Parece que me vigia, persegue. C (para A) Tá ouvindo isso?! tá ouvindo isso??? B (procurando contornar o conflito) Calma ! Calma! Sem confusão! Tem gente ainda por aí! A (Para C. Irônico.) É, você realmente está cada vez mais parecido com Otelo. C (Para A) O que tu quer dizer com isso? A (Para B.) Não falei? C (Para D) O que ele tá querendo dizer?(Sacode a mulher) Me fala, me fala! D Eu lá sei!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

151

Documenta

C Então cuidado! E não fique muito perto de mim! E, principalmente, dela!

Marcus Mota

C (Solta a mulher e vai na direção de A) Deixa eu te mostrar o que eu acho disso de você ficar olhando prá minha mulher! D ( cansada, como se estivesse passando um texto já batido) Sempre faz isso, todo dia a mesma coisa... B (Tentando apartar a briga) Vocês estão malucos? Chega disso, ouviram?! Chega! C (para B) Me largue! Me deixe acabar com ele. D “Honesto Iago”... nunca um texto foi tão mal escrito! B Parem com isso! Parem com isso! (O ator que faz Iago é empurrado por Otelo e vai com desdém para sua poltrona, segurando seus ferimentos entre risos).

Documenta

152

A “Quando eu não te amar mais, o caos vai ser novamente estabelecido.” D (Levanta-se do chão.) Não adianta nada.Olha ele lá! C (para A) Escute uma coisa, rapazinho: amanhã, durante o espetáculo, se você se aproximar dela, te prepara: eu vou te pegar na frente de todo mundo, ouviu? Tá me entendendo? Tá avisado: amanhã você não escapa. Amanhã eu acabo com esse tormento! (Saem C e D. C vai puxando D pelo braço com força.) A (para B) Você viu o que aconteceu? Viu o que ele fez? É disso que eu estava falando. B(Tirando o figurino, maquilagem e se arrumando para sair) Sei, sei. As coisas que só você entende! De novo! A (típico monólogo) Não é preciso ser Iago para entender o que está havendo, meu amigo. Eu odeio o mouro e ele me odeia. Nos colocaram juntos nessa peça e, quanto mais o tempo passa, mais eu tenho certeza que não foi uma boa idéia reunir gente assim. Às vezes me falta a maldade necessária para fazer acontecer, de uma vez por todas, aquilo que é inevitável, aquilo que precisa acontecer. E nessa espera, noite após noite, fico pensando porque manter longe algo que eu mesmo, a qualquer momento, posso realizar... Será espada por espada!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

B (Enfastiado dos monólogos de Iago) Vamos beber? Hoje foi difícil acabar. Parecia uma tortura. Cada dia piora, parece que não tem fim. Vamos beber?

B Com tanta mulher no mundo você foi logo... A Mas ela não é linda, não é? Principalmente por que está com ele... B (Meio se afastando) Não entendi! O que você quer dizer com... A(vai para servi-lo de mais bebida.) Quando você vê um casal assim tão feliz, não dá a vontade de ir lá e... B E o quê? A Tu sabe, tu já conhece essa história. B Não cara, não sei de nada. Onde tu tá querendo chegar?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

153

Documenta

A A noite, meu amigo, a noite. Essa noite é uma noite perfeita para Iago. ( Saem pisando e tropeçando nos corpos deitados no chão. Em seguida, sons distorcidos de uma batalha sanguinária podem ser escutados. Gritos surdos de alguém que é atingido de surpresa por um golpe de espada e não possui a oportunidade de chamar por socorro e vê-se afundar sob a lâmina que abre espaços no corpo atingido que engole qualquer possibilidade de fuga. Ruídos de ossos se quebrando lentamente, até virarem pó. Sons do ferro de espada trançando sua coreografia de embate e relampejar. A batida contínua de graves tambores em ritmo uniforme, pontual, como os passos de algo se aproximando, algo sobre nossas cabeças. Em meio a essa orquestração de uma mítica batalha, começam as vozes humanas, sons sem palavra ou melodia, um suspiro rouco, gutural, como as ondas do mar, indo e vindo, trazendo a memória de almas sem nome e rosto, um só fôlego se formando diante de nós. A partir desse Coro, os corpos mutilados de todas as guerras começam a se levantar, e se colocam em passo de marcha contra a platéia, uma marcha lentíssima, que se avoluma no olhar desses que andam e cada vez mais eliminam qualquer campo de visão do público. Quando não houver mais distância entre a platéia e esse Coro, há um estampido de tambor e flauta trilando bem agudo. O coro cai e ao fundo chegam A e B bêbados, conversando, um amparado no outro. O ator A vai enchendo o copo de B.)

Marcus Mota

A Olha, pode falar: nunca te deu vontade de saber mais dela? De espiar nas frestas do camarim? B Quem? Eu!? A Toda noite vocês falando, uma noite dessas vocês juntos... não me diz que nunca pensou nisso!?! B Mas... mas... A Pode falar. Prá mim você pode dizer tudo. E o que tem de mal nisso - desejar a mulher do cara. Agora é proibido gostar de mulher? Qual o problema? Você pode gostar dela se quiser. Se você quiser, você pode até ficar com ela. Eu não me importo...

Documenta

154

B Mas eu nunca quis nada com ela! De onde você tirou isso. Realmente, ela é muito bonita. Mas entre achar isso e querer algo mais ... A E por que não? Só por que não está escrito? Você precisa de alguém prá dizer o que você deve fazer? B(estendendo o copo) Eu preciso é beber mais. Com você por perto, eu preciso de mais bebida. A “Está em nós ser isso ou aquilo”. Se você quiser, ela é tua. Ela te ama. E não há nada melhor do que isso, o amor de uma mulher noite adentro. B(Bebendo rindo.) Não adianta. Você não vai me convencer. E eu vou beber às tuas custas. A ( Se afastando com a bebida.) Ah, é insuportável essa tua natureza tão nobre e dedicada! Servo de tudo que já existe! B(indo atrás de A) Ei! Pode ir embora mas deixe a bebida! A (Evitando que B pegue a bebida) Mas eu te convido a prestar mais atenção nas coisas, a ver mais, a ver melhor. Responde: quando eles, o maldito casalzinho começou a ficar junto?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

B Não sei, não me lembro. Acho que desde os primeiros ensaios. A Muito bem. E eles sempre demonstraram “intensa paixão e vontade”? B Não, não. Só no começo. Só até a estréia. Me dá, me dá. A (Dá a garrafa para B.) E depois? Lembre! B (Esforço para lembrar) Com o passar das apresentações ... as coisas se acalmaram ... as carícias foram desaparecendo... A E tudo foi ficando frio e vazio – um profundo tédio. Ele cada vez mais violento, viril... B É... pode ser... pode ser...

155

B Não sei bem... acho que... A Cássio, Cássio isso que você imagina ser amor não passa de um parasita, que enxertaram em nós para nos distrair. Meu amigo Cássio: até quando você vai continuar invisível, esquecido atrás de Otelo ? B(rindo) Eu quem? O que você... A (Puxando o braço de B, trazendo B para junto de si) A mulher, Cássio, tome a mulher e a tua história vai ser diferente. Existem muitas coisas no ventre do tempo esperando ser paridas. Então pegue essa mulher e crave os dentes nela! Você precisa disso hoje, agora. Eles estão jantando perto daqui. Vamos lá acabar com essa farsa! Como eu odeio a mentira! B Largue meu braço, seu maluco! Saia de perto de mim!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

A Ou seja, antes faziam questão de desfilar essa sujeira por aí, obrigando todo mundo a ser platéia desse horror.

Marcus Mota

A A mulher, Cássio. Você pode, você deve. Nada faz sentido nesse mundo enquanto Cássio não dormir com a mulher de Otelo, pelo menos uma vez. Vamos enxertar um pouco de alegria nessa peça tão insuportável. B Me deixe, homem! A espada, ela devia estar envenenada! Eu não vou ser a tua mão! Você deve ter perdido muito sangue! A(A empurrando B para fora de cena) O cavalo certo cobrindo a égua certa, o bode velho com os cornos enterrados no chão! O mundo enfim nos trilhos certos!

Documenta

156

(O mesmo Coro realiza uma dança burlesca que contém motivos animalescos e ludibriosos. A personagem que faz Iago atravessa essa paisagem de sátiros abraçado à personagem que faz Cássio, procurando convencê-lo a ousar. Após a saída deles, parte do Coro sai e empurra uma cama com as personagens que fazem Desdêmona e Otelo. A outra parte do Coro continua sua dança. Com a chegada da cama, tudo se suaviza e as feras da noite aplacam seu frenesi. A personagem que faz Desdêmona encontra-se na cama deitada sobre Otelo. ) A ATRIZ D QUE FAZ DESDÊMONA (Coloca as mãos na cabeça de C, abraçando o pescoço dele) Você me ama?Ama de verdade? O ATOR C QUE FAZ OTELO (Vira-se para ela . Rude.) Mas por que isso agora? D (Descendo as mãos, agora pousando suas mãos nas mãos de Otelo) Só me responda: você me ama? C (afastando as mãos dela) Você tem cada pergunta. E a essa hora da noite... D (Vira-se abruptamente. Sentada sobre o ventre de Otelo. Eles frente a frente, olhos nos olhos. Ele vai dizer alguma coisa e ela o interrompe colocando o dedo nos lábio dele. Ele sorri, pensando em sexo. Ele se aproxima mais para beijar, arma o abraço e ela se afasta, erguendo-se e levando consigo o lençol. Usa o lençol para apoiar as referências de sua fala.) Até o meio do terceiro ato, eu sou bela, linda e você me quer. Há uma noite de núpcias nos esperando. A cama está arrumada, os lençóis limpos e a porta aberta. Mas no quarto ato, você enlouquece. Vem com todo seu ódio prá cima de mim e me esbofeteia sem

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

C ( Firme para a mulher, segurando suas mãos.) Pare com essas coisas e me escute: Eu não sou Otelo, ouviu? Eu não sou Otelo! D (Aos prantos) Por que mostrar essas coisas? Prá que fazer um espetáculo disso?! Uma mulher, meu amor, uma mulher... Você me entende? Você consegue...( Entram Cássio e Iago bêbados, como se estivessem debaixo do prédio onde moram Otelo e Desdêmona. Eles chamam Otelo com provocações a respeito de sua virilidade) C (Se afasta. Vai pegar uma bebida.) A temporada está acabando. Vamos ver se você...

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

157

Documenta

razão. E logo depois, no quinto e último ato, enquanto eu dormia em nossa cama, nos mesmos lençóis ainda limpos, a porta aberta, você entra com uma vela na mão em busca de meu pescoço. Você me beija e eu não te reconheço. Diz que vai me matar e eu suplico piedade a Deus, a ti. E você fica me abanando no meu rosto a memória de um lenço. Mas então me mate amanhã, espere mais, ou daqui a meia hora, eu peço, já com o desespero me encurtando o fôlego. E você cala minha boca aos gritos, me xingando de vagabunda, suas mãos fortes e duras encontrando meu pescoço. E não mais há luz ou nada para se ver ou respirar. Tudo enquanto eu dormia. Então você me ama? Isso é o amor de homem? (Ela senta-se no chão e chora. Otelo levanta-se e vai abraçá-la, consolá-la. Ela recusa. Ele continua seu forte abraço, vendo-a assim fragilizada, o corpo aparecendo por entre os lençóis.) Por quê? Por que isso tudo? Primeiro o amor. Depois... As mulheres, elas precisam sempre morrer: asfixiadas, loucas, envenenadas... Primeiro, o amor. E, no fim do amor, o fim do amor, para onde o amor aponta: morte. (Vira-se, fica de frente para ele e fala desesperadamente. Nisso, o Coro começa a fazer um movimento de cerco, o prazer da antecipada dor que a caça acuada sente brilha em seus rostos) E se eu não quiser isso, heim? Tudo bem? Tudo bem se eu não quiser assim, essa desgraça? E se eu não quiser essa morte, essas mãos em volta de minha garganta? Eu posso não querer, posso? Eu posso recusar, fugir, correr, ir embora?! (Para todos no teatro) Ninguém, ninguém vem ajudar quando uma mulher grita. (Olha para ele) O assassino desfila a sua força, na frente de todos. E nada. Ele traz a luz, meu bem, ele invade um quarto que é só dele. Ele te procura e te acha sob o olhar cada vez mais satisfeito da platéia. ( Lança Otelo para longe de si. Ela se joga ao chão chorando. O Coro pega o lençol, cobre-se e prepara-se para cobrir Desdêmona, como um ataque, como sexo. Somente o rosto dela ficará de fora dessa incrível engrenagem.) Então é assim que o homem me ama: com minhas feridas, com meu corpo morto, um nojo - asco e pedra. Até o meio do terceiro ato eu sou bela e linda. E para gozar, você me enche de bofetadas e me quebra inteira (Otelo interrompe a cena, tirando o lençol e abraçando Desdêmona. O Coro sai correndo como se tivesse sido humilhado, descoberto em sua nudez. )

Marcus Mota

D Sabe o que é morrer todo dia ? Todo dia? C Você acha que é só com você? Eu também morro no fim. D Não, você se mata. É diferente. C (Bebe. Rindo) É muito cadáver nessa porcaria D Quero saber, me responde (Tira o copo dele):quando você me bate ou me asfixia, o que você sente, heim? O que passa pela tua cabeça? Como você pode não sentir nada fazendo aquilo comigo? C (pega o copo de volta e se afasta, não olhando Desdêmona nos olhos ) Mas Otelo precisa matar. (Rindo e se servindo mais) Se não fosse assim, não seria Otelo

Documenta

158

D Por isso eu perguntei se você me amava. Se você realmente me amasse, não deixaria nunca isso acontecer comigo. C (Virando-se, já com um pouco de raiva.) Mas onde você quer chegar com a merda dessa discussão, heim? onde? D (se afasta dele) Justamente nisso. Nisso. C (Indo atrás dela, com raiva, segurando a bebida e o copo.) Por acaso você acha que alguém viria aqui para ver o “amor de Otelo e Desdêmona”? Não, não, não. Eles vêm por isso: prá se assegurar que tudo vai acabar mal, como sempre. (O Coro começa a realizar coreografados atos de guerra) Isso é o que fascina: a renovada visão de tudo se destruindo. Ninguém sai de casa para assistir (parodiando)“Você me ama? Você me ama.”. Há coisas melhores para se fazer, meu bem. É... Um soldado sabe a guerra de sua vida. E não há como fugir dela. E estamos em uma época impossível de escapar da guerra. D(entendendo as coisas) E mesmo quem não vai prá guerra, quem não luta precisa morrer... C Tá começando a entender.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

D Por isso você apenas feriu Iago mas me assassina todo dia. C (Percebendo o que disse) Não, não,não: aí é diferente. Você, eu gosto, eu quero de verdade. D Sei, sei. Se gostasse... C Prá que isso, heim? Prá que essa coisa toda? Você acha que é fácil prá mim... D O que prá você? C Por acaso você já pensou em Otelo? D E você em Desdêmona?

159

D Por quê? Por que com o louco ciumento enganado que mata a mulher é pior? C O problema de Otelo não é o ciúme. D Ah não é não?!? Olha essa espada! Olha a espada! C (Vira-se para Desdêmona) O grande problema de Otelo é a mulher. D Como é que é? C Sem a mulher, nada disso teria acontecido. Não haveria razão para fazer o que ele fez. Se ela não existisse, todos seriam felizes. D(surpresa) Então agora Otelo é um pensador! Essa eu não sabia...então ele não é mais o idiota , o imbecil estúpido que seguiu a voz de outro imbecil? Não é esse que é Otelo? Pois, eu te digo, meu amor, Otelo é mil vezes pior que Iago. E você mil vezes pior que Otelo.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

C (Afastando-se, cansado. Sem argumento.Senta-se) Não há como pensar nela. Mas Otelo... terrível! É terrível!

Marcus Mota

C (Afasta-se de Desdêmona. Não quer olhar o rosto da mulher. Ira!) É melhor você parar. Eu não tenho nada a ver com isso. A gente aqui junto e de repente... D Não fuja agora. Eu preciso falar. C (pensando, de costas para Desdêmona) Parece que a gente ainda tem a noite inteira, meu amor, a noite inteira. (Apaga-se a luz. Em outro lugar ilumina-se a entrada de Cássio empurrado por um Iago completamente possesso e determinado em cumprir a destruição de tudo em volta. Ambos embriagados e cansados de procurar o casal.) ATOR B QUE FAZ CÁSSIO Pare de me empurrar, eu já disse! Pare de me empurrar! ATOR A QUE FAZ IAGO Vamos logo, já estamos chegando.

Documenta

160

B Você tá falando isso a noite inteira! A (Pára. Olha em volta.) É por aqui. Eles devem estar por aqui. B É o que você disse quando a gente foi atrás deles no bar. A E a gente chegou atrasado. Eu estava certo. Como agora. B Já é tarde. Amanhã tem ensaio e depois espetáculo. A Eles devem estar em casa. Tenho certeza! B Eles é que estão certos. Chega! A caça acabou! A A gente precisa continuar, viu? A gente deve. B (Interrompendo o empurra-empurra) A gente quem? O que eu tenho a ver com isso? Você inventa um negócio, me enfia nele e ainda sou eu quem vai na frente?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

A Pare de pensar e olhe o quanto a gente já avançou. Antes não existia nada, só uma desconfiança. Agora estamos aqui, começo de madrugada, prontos para fazer o que realmente precisa ser feito. B Mas que merda essa prá qual você tá me empurrando? Me explica! A Não adianta nesse momento dizer tudo. Ouve: depois que a gente fizer, depois que principalmente você realizar, é que tudo vai fazer sentido. Senão, vai parecer apenas alguma coisa entre mim e ele, uma vingançazinha. Todos viram o cara me ferindo com sua espada. Todos viram sua raiva contra mim. Mas isso não importa. Não interessa nada se foi comigo. Essa não é a coisa mais importante. O importante é você... B Eu?!!

B (Senta-se e ri de cansaço.) A Logo você vai parar de resistir e vai fazer, você vai atingir Otelo, e Otelo vai cair. E tudo fará sentido nessa queda. Vendo o grande homem cair, você vai entender o que eu estou querendo, o que eu estou te ajudando a cumprir. Daí você vai ter, enfim, a mulher, tudo o que você sempre quis. Todos os inúteis dias de sua vida vão ficar prá trás. Por causa da mulher, uma vida inteira se perdeu e uma nova começa bem agora. B (Mãos na cabeça.) Pare de falar, por favor. Pare! Fique longe de mim! Chega! Como se fala nessa peça! A (Levantando o sujeito.) Cássio, Cássio: levante. Vamos para a casa do mouro, interromper novamente um amor que não se completa. A cama de Otelo vai ser tua. A mulher do outro é nossa companheira. Quando tudo piora é que estamos bem.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

161

Documenta

A É, você, justamente você, que sempre esteve ali, disponível, sem oferecer resistência ou dificuldade alguma.Você é o melhor nesse caso. Só você pode trazer um benefício para todos os envolvidos nisso. Sem você, nada do que virá terá algum valor. É a coisa mais certa desse mundo. Comigo tudo fica vergonhoso e horrível. Mas com você é a perfeição. Então, por mais que você se violente ou recuse, por mais que você não entenda ou não queira, só você, meu amigo, somente alguém assim como você vai poder completar tudo e movimentar a roda que impulsiona essa engrenagem.

Marcus Mota

B Mas... mas.. A Não pense em nada. É assim que o mundo avança em seu eixo, caro Cássio. Tudo deve acontecer como foi escrito. Ontem e hoje, a novidade é a mesma espada nessas carnes. Olha como as luzes do apartamento deles ainda não se apagaram. E onde há luz, há uma porta aberta para nós. (O Coro se arruma com roupas de guerra. Na seqüência que se segue, os diálogos serão articulados em função de uma guerra sangrenta desempenhada pelo Coro). ATRIZ D QUE FAZ DESDÊMONA (Colocando a roupa de sua apresentação da peça Otelo) Eu vou embora. É impossível ficar com alguém como você. ATOR C QUE FAZ OTELO (Na cama, de cuecas, as mãos nos órgãos,frustrado pelo sexo não realizado.) Ah, vai fugir. Depois eu é que sou o covarde!

Documenta

162

D O que você vai fazer? Vai me prender? Vai me matar? C Fez o que fez, ficou aí me acusando de tudo e agora... D Você nunca entende, não é? Você é sempre o pobrezinho do homem que nunca entende. C A gente estava na cama e daí você, do nada, foi ... D (Ele se levanta e vai até ela, pensando ainda reverter a situação.) Então a culpa é minha?!! É isso que você quer dizer. A culpa é... C O que você quer, heim? Me diz: o que você quer que eu faça? D Tire as mãos de mim! C(surpreso) Mas, mas você está pensando o quê?!! D Tire as mãos de mim que eu já sei onde isso vai dar.(Sai do apartamento. Entra Iago comemorando.)

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

ATOR A QUE FAZ IAGO (Ele vai girando em volta de C, como que conhecendo e mostrando o quarto.) O quarto todo preparado, a cama, a luz... C ( Sentado na cama , confuso, mais frustrado.) A última pessoa do mundo que eu queria ver hoje era você. A Realmente um lugar bonito demais prá se ficar só. C Ela vai voltar. Quando acabar a temporada, tudo vai se resolver. A Você conseguiu mesmo arrumar a cena. Dá vontade até de ser sua mulher. C Uma noite dessas e eu ainda te acerto forte com a espada.

C Mais um bosta que fala, fala sem parar! A (Falando junto de C) Mas nesse momento ela desceu as escadas e se encontrou com Cássio. Ela chora, está triste e você sabe bem por quê. (No ouvido de C) Cássio vai ouvir o que ela tem prá falar. Cássio vai amar ouvir cada palavra, todas as que a mulher precisa dizer. E entre eles vai crescer uma vontade de estarem juntos, cada vez mais próximos, longe desse quarto onde tudo acaba. (Se afastando de C) E você, meu amigo, não pode mais fazer nada. Pois ela se foi. Mesmo que você traga a mulher de volta, mesmo que você amarre o corpo dela na cama e a enterre aqui dentro, ela já saiu desse quarto. A mulher estava tão perto de você e num instante, num fôlego, tudo se perdeu, para sempre. C (levantando-se) É o que você quer, não é mesmo? É o que você sempre quis. Por isso me cercava com esses seus olhos. Desde os primeiros ensaios, a mesma coisa, o olhar em tudo que eu fazia, me roubando o tempo inteiro. A Agora ela conversa com Cássio, um em frente do outro, o mesmo ar em seus pulmões. Ela já está dentro dele, assim como Cássio no mais profundo dela.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

163

Documenta

A Mas não adianta nada o quarto sem ela, não é? É para isso toda essa cena, todo o esforço para estar aqui com a mulher. No fim das contas, é a única coisa que importa.

Marcus Mota

Documenta

164

C (puxa A para sua direção) Olhe para mim, seu merda. Sempre querendo meu lugar, torcendo para que eu errasse ou ficasse doente, ensaiando as minhas partes, desejando tudo o que o que é meu. Você me procurava em todas as coisas. Aonde quer que você fosse, você me buscava. Pois agora, aqui em meu quarto, a luz acesa, a cama preparada, você conseguiu, seu idiota, você me encontrou. Agora somos só nós dois e o que vai acontecer? Você acha que eu vou fugir ou chamar outra pessoa? Somos só você e eu, frente a frente, de verdade, e não o seu amiguinho de merda ou minha mulher. E o que você vai fazer então, heim? Vai me beijar? Vai me morder? Vai gritar ou morrer de rir? (Joga A no chão. C fala cercando o homem caído.) Você é um bosta, uma provocação inútil. Passou o ano inteiro, dias e noites se preparando, fazendo o que podia para estar aqui. E então some, desaparece, se enfia dentro dessa visão maluca. Seu merda! Merda! Achando que é a figura da peça! Seu bosta, bosta, bosta de merda! Péssimo ator, horroroso, um lixo! (Puxa C e o leva contra a parede, para espancá-lo. O Coro prepara uma sala de tortura com uma mulher ao centro, duplicando a cena. Cada frase de Otelo é um soco em Iago). Você alguma vez acreditou de verdade que essa conversa toda sobre minha mulher poderia me afetar? O pai dela mesmo disse que ela era indigna de confiança e amaldiçoou nossa vida. Outros falaram do perigo de se apaixonar por uma jovem atriz. Mas ela é meu prêmio. Eu mereço a mulher por tudo que eu já fiz. Amanhã a noite é a última apresentação, a consagração. E você não vai me perturbar. Nem você, nem ninguém. Eu vou fazer de tudo para que as coisas continuem como estão. (Em uma escada, conversam B e D) ATOR B QUE FAZ CÁSSIO É perigoso sair assim sem rumo pela noite. ATRIZ D QUE FAZ DESDÊMONA Perigoso é viver com esse homem, com qualquer um. B Volte para sua casa, antes que alguém espalhe mentiras. D Uma mulher não pode conversar com um homem sem que isso vire acusação. Uma mulher não pode andar pela rua sem ser percebida. É impossível não ser vista, invadida, arruinada. É como uma ameaça, uma ameaça eterna, desde que se nasce. B Mas sempre foi assim. É por isso que precisa de proteção e... D Que proteção coisa nenhuma! Você é igual a ele. Vocês são todos iguais. Eu não preciso de nada, ouviu? Eu não preciso precisar disso. Agora porque tem que ser assim, vocês D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

se apresentam como heróis e tornam a minha vida uma desgraça. Mas eu também não quero mais isso. Eu recuso toda essa ajuda. Eu vou ficar aqui até o fim, falando e gritando, até que alguém me ouça e saia dessa escuridão e grite também, bem alto. E , quem sabe, por essa terrível gritaria, alguma coisa alguém me ouça e meu sangue não seja derramado. Você me entendeu, seu merda? Você está me entendo agora? Quer que eu repita, que dance e cante tudo outra vez? B(perturbado) E a porcaria do Iago dizendo todas aquelas bobagens sobre amor e mulher, me fazendo perder um tempo enorme com essa loucura. (Pega no braço dela.)Vamos, vamos, minha senhora. Vamos pro quarto. A senhora vai se entender é com seu marido. Eu não tenho nada a ver com isso. A senhora pode falar e berrar o que quiser. Mas não prá mim. Eu não tenho culpa alguma. A senhora que descarregue esse monte de coisas lá no seu quarto, o mais longe possível daqui.(Empurrando a mulher para que ela volte para o quarto) D(Andando contra a sua vontade) É o que eu esperava. Você não entendeu nada. Seu burro, burro. Todos vocês! B E pensar que eu quase acreditei que você...

165

Documenta

D Burro, burro: me largue, você é igualzinho ao outro. B Ô noite estúpida, noite de merda! D Me deixe aqui, não me leve de volta para o quarto! B Cássio vai sorrir, Otelo enlouquecer.... (NO QUARTO. Quando C começa a pensar a partir dos estímulos de A. ) ATOR A QUE FAZ IAGO (Ferido e cansado de apanhar. Continua a dupla tortura.) Não é em mim que você tem de bater, meu amigo! C Quantas vezes eu preciso te machucar prá você calar a boca! A Você pode me ferir e fazer sangrar que nada, nada vai me impedir de dizer o que eu tenho de dizer.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Marcus Mota

C Falar, falar, falar. A noite inteira é gente falando no meu ouvido. A Me ouça então. Veja o que eu falo. Você sabe bem o que vou dizer. C Você não precisa falar mais nada. Apenas saia de minha casa.

Documenta

166

A Meu caro Otelo, nosso Otelo de hoje, olhe mais, veja melhor. Ela saiu faz é tempo. E Cássio também. E você aqui me esmurrando. Como devo dizer isso? Como devo me pronunciar? Aí estão os fatos, a verdade honestamente colocada. Eu ainda preciso argumentar? Diante de tudo isso, eu preciso te persuadir? (Com todas as sílabas:) Ela não te quer mais. De repente, foi o que aconteceu. Depois de uma noite de amor, ela mostrou um outro rosto. O gozo foi insuficiente, todas as noites de antes não serviram para nada. Você sempre fez o seu melhor, sempre honrou a sua forte presença. Tudo estava aqui nesta cama, toda a sua ciência. E num instante, num breve momento sem resposta, ela, dona de si, alheia a todas essas coisas, insensível a você e a esse empenho, ela, a mulher, Otelo, ela somente, a mulher sussurrava dentro de si, na escuridão do quarto, no fundo dos lençóis, ‘adeus’, ‘adeus’. Mesmo com você dentro dela, a mulher abria seu espaço de fuga para longe do teu rosto. Mesmo com você usando todos seus músculos para contê-la, a mulher corria firme prá outros braços. Pois ela esperou você ficar fraco prá te surpreender, prá dizer suas palavras, prá te ferir no rosto. E você nunca mais vai conseguir calar aquilo que passeia em teus ouvidos, nunca mais vai conseguir fechar teus olhos. Ela quis assim, ela não te quer mais. O gozo foi insuficiente, e ela te diz adeus. C (Se afastando, perturbado, pensando, não querendo aceitar essa realidade que Iago anuncia) Ela não falou nada disso, seu estúpido. Você nem estava aqui. Você não sabe de nada. A Então por que você me bateu tanto? O que você quer esconder? Se ela não te quer, que culpa eu tenho? C (Volta-se para Iago.) Se é assim, por que ela não disse... não me... Mas não, ficou aí se fazendo de Desdêmona, angustiada por não sei o quê e me culpando. A É assim que elas fazem quando não querem dizer a verdade. Tudo é outra coisa, maior e mais intensa. Mas o que realmente está acontecendo é que elas vão partir.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

C (Lembrando. Falando consigo.) Saímos, jantamos, viemos prá cá, estava tudo bem, eu ali pronto e, de repente, sem explicação, ela começa a falar e me perguntar se eu a amo. A (Crescendo, por saber ter cravado os dentes em Otelo.) Viu? Não te disse? Ela exige o que não pode dar em troca. Sempre a mesma pergunta! E o que ela quer saber que já não sabe? É isso, meu amigo, isso mesmo! C Depois se transformou na personagem da peça e ficou exigindo de mim que eu mudasse tudo, que eu deixasse de fazer o que sempre faço, para salvá-la desse mundo que ela dizia estar vendo. A (Exibe-se, a partir do coro, uma mulher em uma cadeira, mãos atadas, olhos vendados. Fila de torturadores, que a chicoteiam) Uma doença, meu caro, uma terrível doença é o que elas têm. Onde já se viu erguer um tremendo espetáculo desses prá desviar a atenção da verdade?!

A Que farsa! Que terrível farsa, com o único propósito de fazer com as pessoas pensem o pior de você, para ocultar o que realmente ela está fazendo. C E então por causa disso eu me torno no homem mais terrível que já existiu, alguém capaz de matar a sua própria mulher por causa de um engano, de uma mentira, por causa da merda de uma mentira inventada e produzida pela minha própria mulher ? A Pois enquanto você fica confuso, ela age. Enquanto você se perturba, ela aproveita. Todos os caminhos estão abertos para a mulher. Ela conseguiu sair do quarto, escapou disso que ela transformou em prisão e tortura. As mãos de seu homem se tornaram instrumentos de dor e humilhação. Você acabou com os sonhos dela. Por tua causa ela foi esquecida e abandonada. Você fez com que ela pensasse que não poderia conseguir coisa melhor que essa cama. Mas ela quer mais, muito mais. C (Com as mãos na cabeça, como se estivesse tendo uma enorme dor de cabeça, diante da revelação.) Mentira!!! Uma tremenda de uma mentira tudo isso, Iago! Aquela desgraçada me enganou!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

167

Documenta

C E depois, frente à minha completa surpresa e ignorância, começou a me acusar, como se eu fosse o culpado de todos os sofrimentos e angústias e desgraças que as mulheres de todas as épocas e nações sofreram ou vão sofrer.

Marcus Mota

A Na verdade, ela vem te enganando faz é tempo. C Me fazer acreditar, querer que eu acredite nisso, que me torne um monstro, para ela se ver livre, feliz. Como eu poderia viver assim, carregando a miséria dessa culpa horrível, horrível? Mas ela deve ter planejado tudo ao me escolher como alvo. (Cai na cama e segura os lençóis com força) A Nenhum detalhe passou desapercebido por ela. C Como eu poderia pensar que alguém seria capaz de fazer isso? Agora que eu perdi o sentido, eu não tenho mais valor algum. A E a história continua. Agora será com Cássio. Quem sabe o que virá depois...

Documenta

168

C Uma raiva enorme me comanda e eu vou obedecer. Estou totalmente aberto e fora de mim. Eu preciso fazer algo, Iago, eu preciso arrebentar essa ferida. A Faça o que deve ser feito. (Fora do prédio ) B (Sentado no chão, segurando uma garrafa de bebida, as mãos dentro das calças. O Coro desempenha um harém que adormece Cássio em sua embriaguez) Que a mulher faça o que quiser! Eu não me importo. Não quero saber. Nada vai acontecer por minha causa. Se eu subisse as escadas e o marido dela me visse... Iago, os olhos de Iago! ... Mas nada vai acontecer mesmo. Ela é bela e linda, e eu a quero. A bosta do Iago! ... Bem que eu gostaria que ela ... A pior coisa é uma noite assim, a bebida, tudo pronto e nada. Mas eu quero... Como eu quero... Sua boca em minha boca, o cheiro de seus cabelos... O calor de sua pele, de toda a sua pele em meus dedos... Ai , mulher! Que merda! Ah, que coisa boa, ah como é gostoso. Aqui ó, é isso. Pega aí, vai: pega tudo. Que merda! Como isso é bom! Que bosta de merda! Como essa mulher é linda, é linda. Ah.... Ah... (Nas escadas) D (Enquanto Desdêmona fala, o Coro vem deslizando pelo chão em situação de ataque. Aos poucos vão tomando conta do corpo dela até que ela pare de falar) Quando fui embora de casa, meu pai se sentiu traído. Ele sofria no meu lugar, como se fosse a mulher de meu homem, como se fosse dormir e fazer amor com um homem to-

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

C Por que ninguém consegue fazer essa mulher parar de falar ? Eu não agüento mais! Iago, me ajude! A Você sabe o que deve fazer! Todos aqui estão esperando! C (vira-se para D calada pela fita na boca e segura o rosto dela) Por que heim, por que fez isso? Quem é você, me diga, quem é você? A Ela não vai dizer mais nada. A melhor coisa é isso.. (Entra Ator B bêbado. C se arremessa contra ele.) C O que você fez com ela? Vem Iago, me ajuda, me veste! (Iago traz a roupa do personagem Otelo para C. Ao mesmo tempo, A se veste também de Iago. O Coro toma assento como

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

169

Documenta

dinho seu. Meu pai só conseguia me ver sofrendo e sentindo dor por que eu nasci apenas prá fazer amor com outro homem. Então, traído e rasgado por dentro, ele parou de falar comigo, com outros, cheio de vergonha e medo de se ver em uma cama amando. Eu podia ver em seu rosto as marcas das unhas fechando os olhos para não ver nunca mais o medo. Daí eu saí de casa prá nunca mais voltar. E vi outros homens como meu pai, culpados por se sentirem como mulheres, com medo, homens com medo do violador. E em nenhum outro pude ver senão isso: o pavor de ser mulher, o pavor de virar mulherzinha na cama. Por isso não olham, não ouvem, não conseguem a mulher. Fogem da mulher como fogem do violador. Então sempre se sentem traídos, enganados, porque a mulher traz consigo aquele que violenta e apavora. A mulher prepara, pelas carícias, a invasão dolorosa. E todos os homens, como meu pai, não querem entender que continuam entregues a seus delírios e pesadelos, enquanto dormem com a mulher. E eu cansei dessa história, cansei de ser a masturbação anônima e mentirosa e resolvi falar. Pois a mulher não tem de morrer! Ela não precisa ser isso! E vou fazer de tudo quando entrar de novo nesse quarto para que ela não morra. Mesmo que esteja escrito, mesmo que esteja decidido no coração de alguém que ela deva morrer, eu vou romper a moldura, vou rasgar a máscara e lutar, lutar com todas as minhas forças para não morrer, para continuar existindo ali em frente de todos, além da garganta sufocada, além da palavra, da sílaba, do som que ultrapassa o ruído da vida deixando o corpo para se perder no ar. (O Coro arrasta a Atriz C para dentro do quarto.) Por que nenhuma mulher deve morrer mais, nenhuma , em palco algum! Nenhuma mulher deve vir à cena para morrer e ser morta, violentamente, como se isso fosse a única coisa que restasse para ela! Chega! Estão matando alguém, de verdade, de verdade! Ouçam, ouçam, estão matando alguém de verdade, de verdade...(Calam a atriz C com uma fita.)

Marcus Mota

uma platéia prazeirosa em ouvir e ver o pior: a cena que se arma ) Eu vou mostrar prá esse monstro o que o ele deve sofrer. Que os céus me inspirem a não tirar o mal do mal. Há tanta necessidade de morte, e a hora do jantar já passou. ( Ator C, praguejando, espanca B, enquanto Ator A veste ator B com roupas de dormir de Desdêmona. Ao fim, B é jogado desacordado na cama. Durante a sessão de espancamento, D consegue se desvencilhar da fita em sua boca e canta a “Canção do Sicômoro”. Após cantar, ela se senta em canto mais ao fundo e distante do centro da cena para observar com horror, contrastando com a platéia do Coro, a representação distorcida da cena II do Ato V de Otelo de Shakespeare. Iago segura uma luz para que Otelo faça o que tem de fazer. )

Documenta

170

OTELO (Ator C) Essa é a culpa, a culpada, minha alma! Não me peçam seu nome, oh céus sem mancha. Ela!!! Mas não vou derramar seu sangue; nem ferir pele mais branca que a neve, leve e suave escultura de vento. Mas deve morrer, não trair mais homens. Apague-se a luz e apague-se a luz: (para a lâmpada que Iago segura) Se eu te calo, oh ardente condutor, posso recuperar tua antiga voz quando quiser. (para ator B) Mas a tua luz não, oh mais dissimulada coisa do mundo: não sei mesmo onde possa estar o fogo que te acenda. Quando arrancar a flor, não poderei restituir sua seiva. Ela vai murchar. E eu sentir seu cheiro. (Otelo beija ator B, uma mordida que arranca sangue. Ele acorda assim violentamente e se contorce e grita e puxa os lençóis, mas é seguro firmemente por Iago que o amarra e amordaça. Desanimada, ATRIZ D suspira sua canção. Otelo vai tirando a camisa como quem vai fazer sexo selvagem e violento. O Coro fica excitado e come mais pipocas e comenta o que vai acontecendo, torcendo pelo pior.) Ah perfume suave, que quase faz a justiça quebrar sua espada (novos beijos terríveis). Beija! Isso, até morrer. Eu vou te matar e te amar depois. Beija, que é o último: doce e mortal. Deveria chorar mas é terrível: os céus me agridem, ferem onde mais amo. Acorda, puta!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

ATOR A QUE FAZ IAGO (Falando por Ator b que faz Cássio. Voz de mulher. Ele parodia a vítima, zombando de seus medos e honestidade) Quem está aí? Otelo? OTELO É, sua burra! Ou você esperava outro homem?!! IAGO Já vem prá cama, meu senhor? OTELO Já pediu perdão aos céus, puta? IAGO Sempre! OTELO Se você, puta, lembrar de algum crime ainda não confessado aos céus fale agora!

171

OTELO Olha: fale agora e seja breve, puta!(Andando em volta da cama, mirando o golpe, arrumando a posição do corpo de Cássio, que vai ficar de quatro, tudo com a ajuda de Iago). Não mataria alguém despreparado. Não, pelo céus! Tua alma não, puta! IAGO Matar? Matar? OTELO É, matar! IAGO Que os céus tenham pena de mim! OTELO (a mão no coração) Amém, amém! IAGO Isso, amém, com fé, mas não me mate!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

IAGO Ai, meu senhor, não sei de nada, nada!!

Marcus Mota

OTELO Ãhã! IAGO (gemer) Ai, que não há como fugir do medo vendo teus olhos de um lado para outro buscando achar culpa em mim que eu não tenho. OTELO Pensa nos teus erros. IAGO Errei só em te amar. OTELO E por isso vai morrer.

Documenta

172

IAGO Que aberração esta - amor e morte!? Ai, porque você está mordendo os lábios? Desejo de sangue agita teu corpo. Maus presságios. Mas eu espero mesmo que não me atinjam. OTELO Cale a boca, quieta! IAGO Vou calar. Mas por quê? OTELO A cama, os lençóis - tudo que eu amei você deu pro Cássio! IAGO Não, por minha vida e alma! Pergunte prá ele! OTELO Cuidado, puta de merda, com a mentira: essa cama é tua tumba! (pula na cama e fica atrás de Cássio que está de quatro. Pega no pescoço dele com uma mão e com a outra se apoia no corpo de Cássio para fazer movimentos de sexo) IAGO Não, não quero morrer! D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

OTELO Mas vai, e logo. Então vai falando, tudo, confessa! Pois não adianta jurar que não fez. Nada vai sufocar esse desejo meu que geme pelo teu corpo morto. IAGO Ninguém vai me ajudar? OTELO Amém, amém! IAGO Então você, Otelo, me ouça: eu nunca fiz algo contra ti. Nunca amei Cássio nem outro homem com o mesmo amor que eu te amo! Nunca, meu amor, nunca! 173

Documenta

OTELO Pelos céus, eu vi, a cama, os lençóis!! Puta falsa, roubou meu coração, e quer que eu considere assassinato o sacrifício purificador que estou fazendo?!!? Mas eu vi, eu vi! IAGO Viu o quê, Otelo? Viu o quê? Mas o que você quis ver? Confesse você a verdade! OTELO Eu já conheço a verdade! IAGO Qual é? OTELO Você é uma vagabunda! IAGO O que? OTELO Vagabunda!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Marcus Mota

IAGO Não, você não disse isso! OTELO Por acaso estou com a boca amarrada? O honesto Iago me fez ver tudo! IAGO O medo me faz ver melhor. É inútil!! OTELO (Puxa os cabelos de Cássio para se apoiar no ato de sexo) Se teus cabelos fossem muitas vidas para cada eu teria uma boca! IAGO Que horror! Você; enganado; e eu, destruída! OTELO Sua puta! Em minha frente, aos prantos, por ele!

Documenta

174

IAGO Me mande embora, mas não, não me mate! OTELO Fica aí, sua puta! IAGO Essa noite não... me mate amanhã! OTELO Não! Quietinha! IAGO Meia hora, meu Deus! OTELO É tarde demais! (Asfixia Cássio. O coro que vinha acompanhando tudo se apavora e se dispersa, correndo de um lado para outro em desespero. Os gritos sufocados na garganta, o rosto vibrando um apelo não expresso, os olhos abertos ao máximo. Otelo, arfando, recompondo-se, pende sobre o corpo morto do ator B que fez Cássio vestido de Desdêmona. Ao ver o coro se dispersando, Otelo fica sem entender, como se despertasse de sua loucura. Olha para Iago que lhe volta as costas. Otelo, aos poucos, começa a entender que tem um cadáver entre suas pernas. Otelo puxa suas calças que estavam arriadas e, envergonhado, se veste, olhando de um lado para o outro, temendo ser pego em flagrante. A atriz D que faz

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metadrama para quatro figuras e coro

Desdêmona, com esforço e ódio, tenta a todo custo tirar a fita de sua boca. Iago começa a rir, repetindo ‘Idiota! Idiota’. O coro, ao fim se reestrutura e forma um batalhão de linchamento que se arremessa como um golpe fatal contra Otelo. Em meio ao linchamento, Desdêmona enfim consegue tirar sua fita na boca. Desdêmona então vai se arrastando para ver a destruição de Otelo. A peça termina com os sons dela se arrastando e o som de sua respiração, seu esforço para estar ali, sua voz conspirando para continuar viva. Nesse cansaço, por fim, ela sussurra a Canção do Sicômoro. Em plena escuridão, Iago das sombras vem andando para o público, com uma espada na mão e fala)

FIM

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

175

Documenta

OTELO Por acaso eu preciso de alguma razão fazer o que eu fiz? Falem! Respondam! Eu preciso mesmo de uma razão? E se eu apenas quisesse e pronto, heim? E se você, é, você também quisesse? O que você quer fazer? Me fala! E você? Não há ninguém no mundo, uma pessoa só que você não gostaria de enfiar uma espada? Uma, uma só. Pense bem, olhe em volta! Olhe! Procure! Não pare! Continue! Eu tenho certeza que você vai encontrar! Vamos, não desanime! Há pelo menos uma pessoa, uma só esperando toda a tua atenção, todo o seu carinho. No momento apenas uma. Ela. E você está esperando o quê? (Se afastando para o palco) Por acaso você precisa de alguma razão prá isso tudo? Me fale, me responda: e se você apenas quisesse e pronto. Mais nada. Uma pessoa só prá todo mundo saber. Todo mundo. Todo mundo.

D R A M AT U R G I A S

Documenta

IAGO Metatheatre for four characters and chorus Marcus Mota Documenta

176

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO Metatheatre for four characters and chorus By Marcus Mota Translation by Nitza Tenenblat

CAST ACTOR A, who plays IAGO, the confused evil that slowly manifests itself but only through the action of others. The persuasive voice. ACTOR B, who plays CASSIO, the common man in the wrong place and time. ACTOR C, who plays OTHELLO, an eye for an eye, tooth for a tooth, dragging men and women without knowing where. ACTOR D, who plays DESDEMONA, the end of the cycle, the attempt to break through with the fascination caused by violence. CHORUS, at every moment a reaction.

177

(The audience enters accompanied by the ‘Willow Song’. Othello is slightly distant from his dead wife, Desdemona. The armed and threatening Chorus enters. Othello, wielding his sword in response:) OTHELLO Behold, I have a weapon; A better never did itself sustain Upon a soldier’s thigh: I have seen the day, That, with this little arm, and this good sword, I have made my way through more impediments Than twenty times your stop. (Giving up, seeing the uselessness of the action) But oh, vain boast! Who can control his fate? ‘Tis not so now. Be not afraid, (to the sword) though you do see me weaponed; (Plays against the sword, until he reaches its tip.) Here is my journey’s end, here is my butt And very seamark of my utmost sail. Do you go back dismayed? ‘Tis a lost fear; Man but a rush against Othello’s breast, And he retires. Where should Othello go?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

Scenery of war. Wire fences, trenches and twisted metal. Scattered bodies of dead soldiers. The (adapted) performance of the end) of Othello, by W. Shakespeare.

Marcus Mota

(To the dead woman.) Now, how dos thou look now? Oh, ill-starred wench! Pale as thy smock! When we shall meet at compt, This look of thine will hurl my soul from heaven, And fiends will snatch at it. Cold, cold, my girl? Even like thy chastity. Oh cursed, cursed slave! Whip me, ye devils, From the possession of this heavenly sight! Blow me about in winds! Roast me in sulfur! Wash me in steep-down gulfs of liquid fire! O Desdemona! Dead Desdemona! Dead! Oh! Oh! (Another partion of the Chorus enters bringing in Iago as prisoner. Cassio leads this Chorus. Cassio is hurt, weak.) CASSIO Where is this rash and most unfortunate man?

Documenta

178

OTHELLO That’s he that was Othello… Here I am. CASSIO (commanding Iago forward.) Where is the viper? Bring the villain forth! OTHELLO (Looking towards Iago’s feet.) ’Tis a fable. If that thou be’st a devil, I cannot kill thee. (He wounds Iago with the sword.) CASSIO (to the Chorus) Wrench his sword from him! IAGO I bleed, sir… but not killed!... OTHELLO (Held by part of the Chorus) I am not sorry neither! I’d have thee live, For in my sense ‘tis happiness to die. CASSIO Oh , Othello, that was once so good, Fallen in the practice of a cursed slave! What shall be said to thee… OTHELLO Why, anything… An honorable murderer, if you will, For naught did I in hate, but all in honor. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

CASSIO (pointing to Iago) This wretch hath part confessed his villainy. Did you and he consent in this together? OTHELLO Ay. CASSIO But General, for what reason? OTHELLO Now I know. I don’t deserve pardoning. Will you, I pray, demand that demi-devil Why he hath thus ensnared my soul and body. IAGO Demand me nothing. What you know, you know. From this time forth I never will speak word. OTHELLO (Outraged but held back by the Chorus) Viper! Viper! Villain!

179

Documenta

CASSIO (to Othello) You must forsake this room! At once! Your power and your command is taken off. (to Iago) For this slave, If there be any cunning cruelty That can torment him much and hold him long, It shall be his. Come, bring away. (pushes Othello) You shall close prisoner rest. OTHELLO (Interrupting their exit) Soft you; a word or two before you go. I have done the state some service, and they know it. No more than that. I pray you, in you letters, When you shall these unlucky deeds relate, Speak of me as I am; nothing extenuate, Nor set down aught in malice: then must you speak Of one that loved not wisely but too well; Of one not easily jealous but, being wrought, Perplexed in the extreme; of one whose hand, threw a pearl away. The richest of all. Speak of one whose subdued eyes, Albeit unused to the melting mood,

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Marcus Mota

Drop tears as ever. Set you down this; And say besides that in travels once, Where a malignant thief Beat a citizen and traduced the state, I took by the throat the miserable dog, And smote him, thus. Ah…. (Othello stabs himself with his sword.) CASSIO Oh, bloody period! All that is spoke is marred.

Documenta

180

OTHELLO (to the woman) I kissed thee ere I killed thee. No way but this: Killing myself, to die upon a kiss. (He falls over the woman. Everyone observes the dead bodies. Slowly, part of the Chorus makes a circle around the cadavers and the other part leaves with Iago who is pushed off stage with violence, his face being covered with a hood for his hanging. Scene. The stage is emptied. After a few instants the actor who played the role of Iago enters. He arrives with the sound of a standing ovation. The actor stumbles in, with his hands on his left flank, holding a dead wound that bleeds. He throws himself on a couch upstage, takes a remote control, and stares at the spectators. After complaining about his pains he begins to speak. As he does, the actor that played the role of Michael Cassio enters. While Michael Cassio helps Iago with his costume and make-up, the actors who played Othello and Desdemona enter happily from upstage.) ACTOR A, WHO PLAYS IAGO That bastard! Bastard! ACTOR B, WHO PLAYS CASSIO Relax! Let me see?! (Meddling with Iago’s clothes.) A Ouch! Get your hands off. Want to kill me too? B I just want to see what happened. The armor: take it off! A (Pushing) Get out! Stay away from me! B (Trying to take the armor off) Let me help you. Raise your arms!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

A (As the armor is taken off) No! Ouch, right there, right there! He hit me on purpose, see?! On purpose! B Calm down! This way... A Look at this cut! He could of ruined me! B (Taking off Iago’s clothes with care.) I don’t know why we’ve got so much clothes on! A Ouch, you idiot! Be careful! B (Gives up. Stops what he was doing.) You’re exaggerating! It wasn’t that bad. It was close. A You think it wasn’t that bad? I wasn’t that bad? You’re always forgiving the poor little thing, the bastard… always…

A (Dressing himself on his own) It’s very dangerous to be Iago! Someone has to do something! B Do you want my role? Othello’s? Or Desdemona’s? (laughing) A Cut it out, cut it out. As always, you don’t understanding anything, anything. As always. B (Turning back) What do you mean?!! What are you coming up with now? A (as if speaking to the audience) What did I just say? You really can’t understand anything! B Look, everyone knows this play! A Things got worse… Iago getting wounded is scary. B Who?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

B (Cleaning himself. The blood.) Me? What do I have to do with this!

181

Marcus Mota

A That bastard! And you, what an idiot! B Don’t tell me you’re afraid?! A simple accident and… A (Trying to get up and withdrawing from Cassio) Accident? You know, you’re becoming more and more alike Cassio: you’re just someone that has no clue, that continues clueless. B What are you really talking about, after all?! Speak up! A Everything right there in front of you and you just don’t get it!!! Just don’t get it!!! B I saw the scene! I was there! He did what he had to do! That’s it!

Documenta

182

A So you think that was it? That the poor little bastard… B (impatient) What is this new immense mystery that… A What do you think? Do you think it’s easy to carry all this, this world of horror and destruction, like this without thinking about anything? Do I look like a machine? A monster? B (Trying to show what happened) What…? A (Embracing Cassio) You want me to explain everything to you, right? Want me to show everything, what we’re really doing here, night after night!?! Well I can do that my friend. I can do that for you. I’ll tell you everything you need to know. And then, I want to see who dares to call my role one of a simple villain. (‘Othello’ and ‘Desdemona’ enter kissing) ACTOR C, WHO PLAYS THE PART OF OTHELLO Look at how friendly they are already! It’s the play’s new couple! ACTRESS D, WHO PLAYS THE PART OF DESDEMONA Shakespeare is full of surprises! C (Turns, and after the speech, kisses the woman; she is slightly uncomfortable with the

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

situation.) The show must go on. (He tries to keep her next to him, in his arms.) While he’s busy trying to destroy the world, we… D (taking some distance.) Someone needs to do the dirty job. A (to C) Your sword is getting sharper each day, do you hear me? C Then be careful! And don’t get too close to me! And specially (to he woman) her! D He looks at me like… Looks like he’s stalking me, chasing me. C (to A) Did you hear that?! Did you hear that??? B (trying to prevent the conflict) Calm down! Calm down! Quit fighting! There’s still people around!

183

Documenta

A (to C. Ironic.) Yes, you really, really are looking more like Othello. C (To A) What do mean by that? A (To B) Told you so. C (To D) What does he mean: (Shakes the woman) Tell me, tell me! D I don’t know! C (Lets the woman go and charges in A’s direction) Let me show you what I thing of you staring at my woman! D (tired, as if repeating an old script) It’s always the same, every day the same thing… B (Trying to stop the fight) Are you crazy? Enough of this, you hear me?! Enough! C (to B) Let go of me! Let me finish him up.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Marcus Mota

D “Honest Iago”... what a crappy line! B Stop this! Stop this! (The actor that plays Iago is pushed by Othello and disdainfully goes to his chair, holding his wounds as he laughs). A “I do love thee. And when I love thee not, Chaos is come again.” D (Getting up from the floor.) There’s no use. Look at him!

Documenta

184

C (to A) Listen to this, kid: tomorrow, during the performance, if you go near her, get ready: I am going to get you in front of everyone, you hear me? Do you understand? You’ve been warned: tomorrow you won’t escape. Tomorrow I end this torment! (C and D exit. C pulls D by the arm forcefully.) A (to B) Did you see what happened? Did you see what he did? That’s what I was talking about. B (Taking off his costume, make-up and getting ready to leave.) Yeah, yeah. The stuff only you understand! Again! A (typical monologue) You don’t have to be Iago to understand what is going on, my friend. I hate the moor and he hates me. They put us together in this play and the more time goes by, the more certain I am that it wasn’t a good idea to join people like us together. Sometimes I lack the necessary evil to make happen, for once and for all, what is inevitable, what needs to happen. And as I wait, night after night, I keep thinking why delay something that I myself, at any moment, can do… It’ll be an eye for an eye! B (Tired of Iago’s monologues) Let’s go for a drink? Today everything was hard to get over with, a drag. It felt like torture. Everyday it gets worst, seems like it will never end. Let’s go for a drink? A The night, my friend, the night. This is a perfect night for Iago. (They exit stepping and tripping over the bodies lying on the floor. Then, distorted sounds of a bloody battle are heard. Deaf cries of someone that is hit by surprise by the blow of a sword, is unable to ask for help, and sees himself drown under the blade that opens spaces in the hit body, swallowing any possibility of escape. Noises of bones slowly breaking D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

until they turn into dust. Sounds of iron swords weaving their choreography of clashing and lightning. The continuous thumps of low-pitched drums in a uniform rhythm, punctual, like steps of something approaching, something over our heads. In the midst of this mythic battle, human voices emerge, sounds without words or melody, a hoarse sigh, guttural, like the waves from the sea, coming and going, bringing the memory of the souls without name or face, one single breath forming before us. Initiated by this Chorus, the mutilated bodies from all the wars start to get up and march against the audience, a very slow march, that grows in the eyes of those who walk increasingly eliminating the audience’s field of vision. When the distance between audience and Chorus is inexistent, there is a stomping of drums and trilling of a very high-pitched flute. The Chorus falls and upstage A and B enter drunk, talking, one carrying the other. Actor A fills B’s cup.) B With so many women in the world you decided to… A But she is beautiful, isn’t she? Specially because she’s with him… B (Taking some distance) I don’t get it! What do you mean by…

185

B And what? A You know, you know the old story. B No man, I don’t know anything. What do you mean? A Look, you can tell me: you never wanted to know more about her? To peak through the blinds of the dressing room? B Who? Me!? A Every night you talk, one of these nights, the two of you together…don’t tell me you never thought of it!?! B But…but…

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

A (reaches to serve him more liquor.) When you see such a happy couple, don’t you feel like going there and…

Marcus Mota

A You can tell me. To me, you can say everything. What wrong with it – desiring the guy’s woman. Is it forbidden to like women? What’s the problem? You can like her if you want to. If you want to, you can even have her. I don’t care… B But I never wanted anything with her! Where did you get that from. Indeed, she is very beautiful. But from thinking about it to wanting something more… A And why not? Just because it isn’t written? Do you need someone to tell you what to do? B (offering his cup) What I need is another drink. With you nearby, I need more to drink. A ”Tis in ourselves that we are thus or thus.” If you want her, she’s yours. She loves you. And there’s nothing better than this, the love of a woman day in and day out.

Documenta

186

B (Drinking laughing.) It’s no use. You won’t convince me. And the drinks are on you! A (Distancing himself with the drink.) Oh, your noble and dedicated nature is unbearable! Slave to everything thing there ever was! B(following A) Hey! You can go, but leave the drink! A (Avoiding B from getting the drink) But I invite you to pay closer attention to things, to see more, to see better. Answer me: when did they, the damn little couple start to go out? B I don’t know, I don’t remember. I think since the first rehearsals. A Very well. And did they always demonstrate “intense passion and desire”? B No, no. Just in the beginning. Only until the opening night. Give it to me, give it to me. A (Giving the bottle to B.) And then? Remember! B (Trying hard to remember) As the performances went by... things started calming down... the caresses disappearing... D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

A And everything became cold and empty – a profound bore. He became ever so violent and virile... B Yes... maybe... maybe... A In other words, they made a point out of parading this filth around, turning everybody into audience members of this horror. B I don’t know... I think... A Cassio, Cassio, what you think is love is nothing more than a parasite, that was inserted in us to distract us. My friend Cassio: how long will you continue invisible, forgotten behind Othello? B (laughing) Me who? What do you...

187

B Let go of my arm, you lunatic! Get away from me! A The woman, Cassio. You can, you should. Nothing in this world makes sense until Cassio doesn’t sleep with Othello’s woman, at least once. Let’s add some fun into this unendurable play. B Leave me, man! The sword, it must have been poisoned! I’m not going to be your sword! You must have lost a lot of blood! A (Pushing B off stage) The right horse covering the right mare, the old goat with his horns buried in the ground! Alas, the world on the right track! (The same Chorus enacts a burlesque dance with animalistic and scornful motifs. The actor who plays Iago walks through this landscape of satires clasped onto the actor who

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

A (Pulling B by the arm closer to him) The woman, Cássio, take the woman and your history will be different. “There are many events in the womb of time which will be delivered.” So take the woman and sink you teeth in her! You need this today, now. They’re having dinner near here. Let’s go end this farce! I hate liars!

Marcus Mota

plays Cassio, trying to persuade him to be bold. After they exit, part of the Chorus leaves and pushes on stage a bed with the actors who play Desdemona and Othello. The other part of the Chorus continues its dance. With the arrival of the bed, everything softens and the nocturnal beasts appease their frenzy. The actress who plays Desdemona is lying down on the bed over Othello.) ACTRESS D WHO PLAYS DESDEMONA (Putting her hands on C’s head, embracing his neck.) Do you love me? Truly love me? ACTOR C WHO PLYAS OTHELO (Turning towards her. Rude.) Why this now? D (Lowering her hands, placing them over Othello’s hands.)Just answer me: do you love me? C (pushing her hands away) You come up with some strange questions. And at this time of the night…

Documenta

188

D (Turns abruptly. Sitting over Othello’s abdomen. They sit facing each other, looking into each other’s eyes. He is about to say something but she interrupts him by placing a finger over his lips. He smiles, thinking of sex. He comes closer to kiss her, opens his arms for an embrace and she distances herself, getting up and taking the sheet with her. She uses the sheet to support the references in her text.) Until the middle of the third act, I am beautiful, gorgeous and you want me. A nuptial evening awaits us. The bed is made, the sheets are clean and the door is open. But in the fourth act, you go mad. You come to me with all your rage and slap me without reason. And soon after, in the fifth and final act, while I sleep in our bed, in the same clean sheets, the open door, you come in holding a candle in search of my neck. You kiss me and I don’t recognize you. You tell me you’re going to kill me and I plead God for mercy, plead you for mercy. And you stand waving in my face the memory of a handkerchief. Then kill me tomorrow, wait a little, or in another half hour, I plead, with despair shortening my breath. And you shut my mouth screaming, calling me a whore, your strong and hard hands finding my neck. And there is no more light or anything else to see or breathe. Everything while I was asleep. So do you love me? Is this how men love? (She sits on the floor and cries. Othello gets up and reaches to embrace her, console her. She refuses. He continues the forceful embrace, seeing her fragile, the body appearing through the sheet.) Why? Why all this? First love. Then... Women, they always need to die: asphyxiated, mad, poisoned... First, the love. And after love, the end of love, where love points toward: death. (Turns facing him and speaks desperately. Meanwhile, the Chorus starts to move in siege, the pleasure in the anticipated pain of the recoiling prey shines in their eyes.) What if I don’t want this, huh? Is that ok? Is it ok if I don’t want it this way, all this misfortune? And D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

what if I don’t want this death, these hands around my throat? Can I not want this, can I? Can I refuse, run away, run, leave?! (To everyone in the theatre) No one, no one comes to help when a woman screams. (Looks at him) The assassin parades his strength in front of everyone. And nothing. He brings the light, my dear, he invades a room that is solely his. He searches for you and finds you under the evermore satisfying gaze of the audience. (She pushes Othello away from her. She falls to the floor crying. The Chorus takes the sheet, covers itself, and prepares to cover Desdemona, as in an attack, as in sex. Only her face will be exposed outside of this incredible apparatus.) So this is how the man loves me: with my wounds, with my dead body, disgusting - repugnant and stone-like. Until half of the third act I am beautiful and gorgeous. And to cum, you slap me around and shred me into pieces. (Othello interrupts the scene taking the sheet off and embracing Desdemona. The Chorus runs away as if it had been humiliated, uncovered in its own nudity.) C (Firmly to the woman, holding her hands.) Stop this and listen to me: I am not Othello, you hear me? I am not Othello!

C (Distancing himself. Grabs a drink.) The season is ending. Let’s see if you... D Do you know what it means to die every day? Every day? C Do you think it only happens to you? I die at the end too. D No, you kill yourself. It’s different. C (Drinks. Laughing) Way too many corps in this junk D I want to know, tell me (takes the cup away from him): when you hit me or asphyxiate me, what do you feel, huh? What goes through your mind? How can you not feel anything doing that to me? C (getting the cup back and distancing himself, not facing Desdemona in the eyes) But Othello must kill. (Laughing and pouring himself some more) Or else, it wouldn’t be Othello.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

189

Documenta

D (Weeping) Why show these things? Why make a performance out of this?! A woman, my love, a woman... Do you understand? Can you... (Enter Cassio and Iago drunk, as if they were under the building where Othello and Desdemona live. They call for Othello with provocations about his virility)

Marcus Mota

D That’s why I asked if you loved me. If you really loved me, you’d never let this happen to me. C (Turning, a bit angry.) What is your point with this bullshit conversation, huh? What? D (Distancing herself from him) Exactly this. This! C(Going after her, with anger, holding the drink and the glass.) Do you, by any chance, think that anyone would come here to see “the love of Othello and Desdemona?” No, no, no. There come here for this: to make sure that everything will end terribly, as always. (The Chorus starts to enact choreographed acts of war) This is what fascinates: the renewed view of everything in destruction. No one leaves the house to see (parodying) “Do you love me? Do you love me.... What if I don’t want to… is it alright… is it alright…” There are better things to do, honey. Yes... A soldier knows his battles. And there is no way out of them. And times are such that it’s impossible to escape war.

Documenta

190

D (understanding things) And even those who don’t go to war, those who don’t fight, must die... C You’re starting to get it. D That’s why you only hurt Iago, but you murder me every day. C (Realizing what he has said) No, no, no: that’s different. I really like you, I really want you. D I know, I know. I can only imagine if you didin’t... C What’s this for? What’s all this for? Do you think it’s easy for me... D What for you? C Have you ever thought about Othello? D And you about Desdemona?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

C (Distancing himself, tired. Without an argument. He sits) There’s no way you can think about her. But Othello... terrible! It’s terrible! D Why? Why is it that with a mad jealous mistaken man who kills a woman, it’s worse? C Othello’s problem is not jealousy. D Oh no it isn’t? Look at this sword! Look at the sword! C (Turning towards Desdemona) Othello’s big problem is the woman. D What? C Without the woman, none of this would have happened. There would be no reason for him to do what he did. If she didn’t exist, everyone would be happier.

C (Distancing himself from Desdemona. He doesn’t want to look at the woman’s face. Wrath!) You better stop. I have nothing to do with this. We were here together and all of a sudden... D Don’t run away now. I need to talk. C (thinking, his back to Desdemona) Seems like we have all night, my love, all night. (Lights off. Lit, in another place, Cassio enters being pushed by a totally possessed Iago determined to accomplish the destruction of everything around them. Both are drunk and tired of looking for the couple. ) ACTOR B WHO PLAYS CASSIO Stop pushing me, I said! Stop pushing me! ACTOR A WHO PLAYS IAGO Let’s go, we’re almost there.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

D (surprised) So now Othello is a philosopher! I didn’t know that... so he’s not the idiot anymore, the stupid imbecile that followed the voice of another imbecile? Isn’t that who Othello is? Well I’ll tell you, my love, Othello is a thousand times worse than Iago. And you, a thousand times worse than Othello.

191

Marcus Mota

B You’ve been saying this all night long! A (Stops. Looks around.) It’s this way. They should be near here. B That’s what you said when we went after them back at the bar. A And we got there too late. I was right. Like now. B It’s late. Tomorrow we have rehearsal and then the performance. A They must be at home. I’m sure!

Documenta

192

B They’re the ones that are right. Enough! The hunt is over! A We need to go on, ok? We have to. B (Interrupting the pushing and pulling) We who? What do I have to do with this? You invent something, you push me into it and then I have to take the lead? A Stop thinking and look how much we’ve advanced. Earlier there wasn’t anything, just a hunch. Now we are here, at the break of day, ready to do what really needs to be done. B But what bullshit are you pushing me into? Explain! A There’s no use in telling you everything now. Listen: after we carry out, after specially you carry out, that’s when everything will make sense. Otherwise it will seem like something just between him and I, a little vengeance of sorts. Everyone saw the guy wounding me with his sword. Everyone saw his anger against me. But that doesn’t matter. It doesn’t matter that it happened to me. That’s not the most important thing. The important thing is you... B Me?!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

A Yes, you, precisely you, who were always there, available, nonresistant nor being difficult. You are the best in this case. Only you can bring benefits to everyone involved in this. Without you, nothing that comes will have any value. It’s the most righteous thing in this world. With me everything is shameful and horrible. But with you it’s perfection. So, as much as you force yourself or refuse to, as much as you don’t understand or don’t want to, only you, my friend, only someone like you will succeed in making the wheels of the world move. B (Sits down and laughs of exhaustion.) A Soon you will stop resisting and will do it, you will hit Othello and Othello will fall. And everything will make sense. Seeing the great man fall, you will understand what I want, what I am helping you to accomplish. Then, you will have, at last, the woman, everything you ever wanted. All of the useless days of your life will be behind you. Because of the woman, an entire life went down the drain and a new one is about to begin.

A (Getting him up) Cassio, Cassio: get up. Let’s go to the moor’s house, interrupt once again an incomplete lover affair. Othello’s bed will be yours. The guy’s woman is our partner. When everything gets worse, that’s when we are at our best. B But…but… A Don’t think about anything. Focus Cassio, focus. Everything must happen as it was written. Yesterday and today, the novelty is the same sword in these pieces of meat. Look at how the lights in their apartment haven’t gone out yet. And where there is light, there is a door open for us. (The Chorus dresses in war suits. In the next sequence, the dialogues will be articulated with regard to a bloody war carried out by the Chorus.) ACTRESS D WHO PLAYS DESDEMONA (Putting on her costume from her performance in Othello) I’m leaving. It’s impossible to stay with someone like you. ACTOR C WHO PLAYS OTHELLO (In bed, in his underwear, hands on his organs,

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

B (Hands on his head.) Stop talking, please. Stop! Stay away from me! Enough! There so much babbling in this play!

193

Marcus Mota

frustrated from interrupted sex.) Oh, so you’re going to run away. And I am the coward one! D What are you going to do? Arrest me? Kill me? C You did what you did, accused me of everything and now… D You never understand, do you? You are always the poor little man that never understands. C We were in bed and then you, out of nowhere, went… D (He stands up and crosses to planning on reverting the situation.) So it’s my fault?!! That’s what you mean. The fault is…

Documenta

194

C What do you want, huh? Tell me: what do you want me to do? D Take your hands off of me! C (Surpriesd) But, but who do you think you are?!! D Take your hands off of me ’cause I already know where this is headed. (Leaves the apartment. Iago enters celebrating.) ACTOR A WHO PLAYS IAGO (He revolves around C, as if getting to know the room and showing it.) The entire room prepared, the bed, the lights… C (Sitting on the bed, confused, even more frustrated.) The last person in the world that I wanted to see today was you. A Honestly, too beautiful a place to stay single. C She will return. When the season is over, everything will be alright. A You really did set the scene. Makes me even want to be your woman.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

C One of these nights I am going to hit you hard with the sword. A But what’s the use of the room without her, right? That’s the reason for this entire scene, every effort to be here with the woman. At the end of the day, that’s the only thing that matters. C Another shit-face that talks, talks non-stop! A (Speaking closely to C) But right now she has gone down the stairs and met Cassio. She cries and is sad, and you certainly know why. (In C’s ear) Cassio will listen to what she has to say. Cassio will love to hear each word, every single one the woman needs to say. And between them will grow a desire to be together, to be even closer, away from this room where everything ends. (Distancing himself from C) And you, my friend, can’t do a single thing. Because she is gone. Even if you bring the woman back, even if you tie her body on the bed and bury her in here, she has already left this room. The woman was so close to you and in an instant, a breath, everything was gone, forever.

A Now she talks with Cassio, they are face to face, the same air in their lungs. She is already in him, just like Cassio is in her deepest insides. C (pulling A towards him) Look at me, you shit-face. Always wanting my spot, cheering for me to mess up or get sick, rehearsing my parts, wanting everything that’s mine. You searched for me in everything. Wherever you went, you searched for me. Well now, here in my room, the lights on, the bed all done, you did it, you idiot, you found me. Now it’s just the two of us and what will happen? Do you think I am going to run away or call for someone else? It’s just you and me, face to face, for real; not your bullshit friend or my woman. And what are you going to do, huh? Kiss me? Bite me? Scream or roar with laughter? (Throws A on the floor. C speaks encircling the stricken man.) You are a piece of shit, a useless provocation. You spent the entire year, days and nights getting ready, doing what you could to be here. So go, disappear, shove yourself into this loony vision. You shit-face! Shit-face! You think you’re the hot stuff in the show! You piece of shit, shit, shitty shit-face! Worst actor, horrible, piece of garbage! (Pulls C and takes him against the wall to beat him up. The Chorus prepares a torture

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

C (Standing up) That’s what you want, isn’t it? That’s what you have always wanted. That’s why you stalked me with your eyes. Ever since the first rehearsals, the same thing, your eyes on everything I did, stealing from me all the time.

195

Marcus Mota

chamber with a woman in the middle, duplicating the scene. Each phrase from Othello is a blow on Iago.) Did you ever truly believe that this talk about my woman could affect me? Even her father told me that she was unworthy of trust and cursed our lives. Others talked about the dangers of falling in love with an actress. But she is my prize. I deserve the woman for everything I have already done. Tomorrow is the last performance, the consecration. And you won’t disturb me. Neither you nor anybody. I will do everything I can to keep things just the way they are. (On a staircase, B and D talk) ACTOR B WHO PLAYS CASSIO It’s dangerous to wander the streets without destination at night. ACTOR D WHO PLAYS DESDEMONA Danger is living with this man, with any man. B Go back to your home, before someone spreads lies.

Documenta

196

D A woman can’t talk to a man without it becoming an accusation. A woman can’t walk down the streets unnoticed. It’s impossible not to be seen, invaded, ruined. It’s like a threat, an eternal threat, since birth. C But it’s always been this way. That’s why you need protection and… D I don’t need any protection! You are just like him. You are all alike. I don’t need anything, did you hear me? I don’t need to need this. Now, just because it has to be this way, you present yourselves as heroes and make my life miserable. But I don’t want that anymore either. I refuse all your help. I will stand here until the end, speaking and screaming, until someone listens to me and leaves this darkness and screams too, really loud. And, who knows, with this terrible screaming, something, someone will listen and my blood won’t be spilled. Did you understand me, you piece of shit? Do you understand me now? Do you want me to dance and sing it all over again? B (disturbed) And that damn Iago saying all that rubbish about love and women, making me loose a huge time with all this madness. (Grabs her arm.) Let’s go, let’s go, let’s go, ma’am. Let’s go to your room. Ma’am, you are going to straighten things out with your husband. I have nothing to do with this. You can talk and scream whatever you want. But not to me. It’s not my fault. You can unload this bunch of stuff in your room, the farthest away from here. (Pushing the woman back to the room.)

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

D (Walking against her will) It’s what I expected. You didn’t understand anything. You jerk, jerk! All of you! B And to think that I almost believed that you… D Jerk, jerk: let me go, you’re exactly like him. B Oh, stupid night out, night out full of shit! D Leave me here, don’t take me back to the room! B “As Cassio shall smile, Othello shall go mad…” (In the room. When C starts thinking from A’s stimuli.)

C How many times will I have to hurt you for you to shut your mouth! A You can wound me and make me bleed but nothing, nothing will stop me from saying what I have to say. C Talk, talk, talk. All night long there are people talking in my ear. A Listen to me then. See what I have to say. You know very well what I’m going to say. C You don’t have to say anything else. Just leave my house. A My dear Othello, today’s Othello, see more, see better. She has been gone for quite a while. And so has Cassio. And you are here beating me up. How should I put this? How should I pronounce myself? Here are the facts, the truth honestly put. And I still need to argue? Considering all this, I still need to persuade you? (Pronouncing all the syllables:) She doesn’t want you anymore. All of a sudden, that’s what happened. After a night of love, she has shown a different face. Cumming wasn’t enough, all the previous nights

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

197

Documenta

ACTOR A WHO PLAYS IAGO (Wounded and tired of getting beaten up. The double torture continues.) I’m not the one you should be hitting, my friend!

Marcus Mota

were good for nothing. You always did you best, always honored your strong presence. Everything was here in this bed, all of you science. And in one instant, in a brief moment without an answer, she, self-confident, removed from all of these things, insensitive to you and this earnest effort, she, the woman, Othello, just her, the woman whispered within herself, in the darkness of the room, deep down in the sheets, ‘good-bye’, ‘good-bye’. Even when you were insider her, the woman cleared space to escape away from your face. Even when you used all of your muscles to contain her, she was running straight to someone else’s arms. As she waited for you to become weak to take you by surprise, to tell you those words, to wound you on the face. And you won’t ever be able to hush what wanders in you ears, never will be able to close your eyes. She wanted it this way, she doesn’t want you anymore. Cumming wasn’t enough, and she says good-bye. C (Distancing himself, troubled, thinking, not wanting to accept the reality Iago is proclaiming) She didn’t say any of this, you stupid. You weren’t even here. You don’t know a thing.

Documenta

198

A Then why did you beat me up so much? What do you want to hide? Is it my fault she doesn’t want you any more? C (Turning towards Iago.) If so, then why didn’t she tell me… didn’t… But no, she stood there pretending to be Desdemona, in anguish because of I-don’t-know-what and blaming me. A That’s the way they do it when they don’t want to say the truth. Everything is something else, bigger and more intense. But what is really happening is they are leaving. C (Remembering. Talking to himself.) We left, dined, came over here, everything was fine, I was there, ready, and all of a sudden, without any explanation, she started to talk and ask me if I loved her. A (Growing, knowing he as sunk his teeth into Othello.) See? Didn’t I tell you? She demands what she can’t give back. It’s always the same question! And what does she want to know that she doesn’t already? That’s it, my friend, that’s it! C Then she changed into the character of the play and started demanding that I change everything, that I stop doing what I always do, to save her from this world that she said she was seeing. A (A woman from the Chorus is displayed in a chair, arms tied up, eyes blindfolded. A line of torturers whip her.) A disease, my dear, a terrible disease is what they have. Where have you ever seen such a

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

tremendous show like this one just to deviate the attention from the truth? C And then, faced with my complete surprise and ignorance, she started to accuse me, as if I were the only one guilty of all the suffering and anguish and miseries that all the women of all the ages and nations have suffered or will suffer. A What a farce! What a terrible farce, with the sole purpose to make people think the worst of you, to hide what she is really doing. C And then, because of this, I become the most terrible man there ever was, someone capable of killing his own woman because of a mistake, a lie, because of the crap of a lie invented and produced by my own woman?

C (With his hands on his head, as if having an enormous headache upon the revelation.) A lie!!! A tremendous lie, all of this, Iago! “Damn her, lewd minx!” A In all honesty, she’s been deceiving you for a long time. C Making me believe, wanting me to believe in all this, that I am monster, for her to be free, happy. How could I live this way, carrying the misery of this horrible, horrible blame? But she must have planned everything when she chose me as target. (Falls in bed and holds the sheets firmly) A She left no detail behind. C How could I have thought that someone was capable of doing this? Now that I make no sense, I have no value. A And history goes on. Now it will be Cassio. Who knows what will follow...

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

199

Documenta

A Well while you are confused, she is in action. While you are disturbed, she takes advantage. All of the paths are open for the woman. She got out of the room, escaped from what she transformed into prison and torture. The hands of a man became instruments of pain and humiliation. You ended her dreams. Because of you she has been forgotten and abandoned. You made her think she couldn’t get anything better than this bed. But she wants more, lots more.

Marcus Mota

C Rage carves into my soul and I must follow suit. I am completely vulnerable and beside myself. I need to do something Iago, I need to tear this wound open. A Do what you must. (Outside the building)

Documenta

200

B (Sitting on the floor, holding to a bottle of liquor, hands in his pants. The Chorus performs a harem that puts a drunken Cassio to sleep.) May the woman do what she wills! I don’t care. I don’t want to care. Nothing is going to happen because of me. If I went up the stairs and her husband saw me... Iago, Iago’s eyes! ... But nothing is going to happen anyway. She is beautiful and I want her. That crappy Iago! ... I’d certainly like her to... The worst thing is a night like this one, the drinks, everything ready, and nothing. But I want her... How I want her... Her mouth in my mouth, the smell of her hair... The heat of her skin, of all her skin on my fingers... Oh, woman! Shit! Oh, this is nice, oh, this is really good. Right here, like this, that’s it. Take it, come on: take it all. Shit! This is so good! Crap of shit! This woman is so beautiful, she’s beautiful. Oh....oh... (On the stairs) D (While Desdemona speaks, the chorus comes sliding on the floor in attack position. Slowly they take hold of her body until she stops speaking) When I left home, my father felt betrayed. He suffered in my place as if he were my man’s woman, as if he were going to sleep and make love to a man that was all his. My father could only see me suffering and in pain because I was born solely to make love to another man. So, betrayed and torn inside, he stopped talking to me, with others, full of shame and fear of seeing himself in bed making love. I could see in his face the traces of nails closing his eyes so he would never again see the fear. Then I left home, never again to return. And I saw other men, like my father, guilty for feeling like women, afraid, men afraid of the violator. And in no other did I see but this: the terror of being a woman, the terror of becoming a woman in bed. That’s why they don’t see, don’t hear, can’t get the woman. They run away from the woman like they run away from the violator. So they always feel betrayed, tricked, because the woman brings alongside with her, he who violates and terrifies. The woman prepares, with her caresses, the painful invasion. And all the men, like my father, don’t want to understand that they have still given in to their deliriums and nightmares, while they sleep with the woman. And I am tired of this history, I am tired of being the anonymous and false masturbation and I decided to speak up. Because the woman doesn’t have to die! She doesn’t need this! And I will do everything I can when I reenter this room to prevent her death. Even if it’s written, even if it’s been decided in someone’s heart that she must die, I will break the frame and fight, fight with all my strength not to die, to continue existing there in front of everyone, beyond the D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

suffocated throat, beyond the word, the syllable, the sound that exceeds the noise of life leaving the body lost in the air. (The Chorus drags Actress C inside the room.) Because no woman should ever die, no one, on any stage! No woman should come on stage to die and be killed violently, as if this were the only thing left for her! Enough! You are really killing someone, for real, for real! Listen, listen, someone is being killed for real, for real, for real... (They silence actress C with a tape.) C Why isn’t anyone capable of making this woman stop talking? I can’t take it anymore! Iago, help me! A You know what to do! Everyone here is waiting! C (Turns towards D, silenced by the tape and holds her face) Why, huh, why did you do this? Who are you, tell me, who are you? A She won’t say anything else. That’s the best part... (Actor B enters, drunk. C throws himself against him.)

201

OTHELLO (Actor C) It is the cause, it is the cause, my soul. Let me not name it to you, you chaste stars, She!!! Yet I’ll not shed her blood, Nor scar that whiter skin of hers, than snow, And smooth as monumental alabaster. Yet she must die, else she’ll betray more men. Put out the light, and then put out the light. (to the candle held by Iago)

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

C What did you do to her? Come, Iago, dress me! (Iago brings Othello’s character clothes to C. At the same time, A dresses as Iago. The Chorus takes seat as an audience pleased to hear and see the worst: the scene that takes place) I’m going to give this monster the suffering he deserves. May heaven forbid that I shall take evil from evil. Death hath awakened and dinner time hath past. (Actor C, cursing, beats B up, while actor A dresses actor B with Desdemona’s sleeping gown. At the end, B is thrown unconscious on the bed. During the beating, D is able to get rid of the tape on her mouth and sings the Willow Song. After singing, she sits in a corner upstage and away from the center of the scene to observe, with horror, contrasting with the Chorus as audience, the distorted representation of the beginning of Scene II Act V of Othello, by Shakespeare. Iago holds a light so that Othello can do what has to be done.)

Marcus Mota

Documenta

202

If I quench thee, thou flaming minister, I can again thy former light restore, (to actor B) But once put out thy light, Thou cunning’st pattern of excelling nature, I know not where is that Promethean heat That can thy light relume. When I have plucked thy rose, I cannot give it vital growth again, It must needs wither. I’ll smell thee on the tree. (Othello kisses B, a bite that spurts blood. He wakes up violently and contorts screaming and pulling on the sheets, but is held firmly by Iago that ties him up and gags him. Discouraged, ACTRESS D whispers her song. Othello takes off his shirt as if to engage in savage and violent sex. The Chorus gets excited and eats more popcorn, commenting on what will happen in the scene, wishing for the worst. O balmy breath, that dost almost persuade Justice to break her sword (more terrible kisses.) One more! Be thus when thou art dead, and I will kill thee, And love thee after. One more, and that’s the last. So sweet was never so fatal. I must weep, But they are cruel tears. This sorrow’s heavenly, It strikes where it doth love. – Wake up, bitch! ACTOR A WHO PLAYS IAGO (Talking for Actor B who plays Cassio. He uses a woman’s voice. He parodies the victim, making fun of her fears and honesty) Who’s there? Othello? OTHELLO Ay, you idiot! Or did you expect some other man?!! IAGO Will you come to bed, my lord? OTHELLO Have you prayed tonight, bitch? IAGO Ay, my lord. OTHELLO If you, bitch, bethink yourself of any crime Unreconciled as yet – to heaven and grace, Speak it now!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

IAGO Ay, my lord, I know nothing, nothing!! OTHELLO Well, do it, and be brief, bitch! (Walking around the bed, aiming for the strike, positioning Cassio’s body, who will be put on all fours, with the help of Iago.) I would not kill thy unprepared spirit, No, heaven forfend, I would not kill thy soul, bitch! IAGO Talk you of killing? Killing? OTHELLO Ay, killing! IAGO Then heaven Have mercy on me! OTHELLO (his hand on his heart) Amen, amen!

203

Documenta

IAGO If you say so, amen, with all my heart, but I hope you will not kill me! OTHELLO Hum! IAGO (moaning) And yet I fear you. For you are fatal then When your eyes roll so. Why I should fear I know not, Since guiltiness I know not. OTHELLO Think on thy sins. IAGO They are loves I bear to you. OTHELLO Ay, and for that thou diest. IAGO That death’s unnatural that kills for loving. Alas, why gnaw you so your nether lip? Some bloody passion shakes your very frame.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Marcus Mota

There are portents. But yet I hope, I hope, They do not point on me. OTHELLO Shut up, and be still! IAGO I will so. What’s the matter? OTHELLO The bed, the sheets which I so loved and gave thee, Thou gav’st to Cassio! IAGO No, by my life and soul! Ask him!

Documenta

204

OTHELLO Shitty bitch, take heed, Take heed of perjury: thou art on my death-bed. (jumps on the bed and gets behind Cassio, who is on all fours. He holds Cassio’s neck with one hand and with the other, supports his body on Cassio’s to engage in sexual movements) IAGO Ay, but not yet to die! OTHELLO Yes, presently: Therefore confess thee freely of thy sin! For to deny each article with oath Cannot remove nor choke the strong conception That I do groan withal. Thou art to die! IAGO Isn’t anybody gonna help me? (to the audience) OTHELLO Amen, amen! IAGO And have you mercy too. I never did Offend you in my life, never loved Cassio Or any other man with such warranty of heaven As I love thee! Never, my lord, never!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

IAGO - Metatheatre for four characters and chorus

OTHELLO By heaven, I saw the bed, the sheets!! Oh perjured bitch, thou dost stole my heart, And makes me call what I intend to do A murder, which I thought a sacrifice?!!? I saw, I saw! IAGO What hath thou seen, Othello? What? What hath thou the desire to see? Confess the truth! OTHELLO I already know the truth! IAGO What shall it be? OTHELLO That thou art a whore!

205

Documenta

IAGO What? OTHELLO A whore! IAGO No, thou did not say so! OTHELLO Hath my mouth stopped? Honest Iago hath cleared mine eyes. IAGO O, my fear interprets. It’s useless!! OTHELLO (Pulls on Cassio’s hair to lean for the sexual act) Had all thy hairs been lives, my great revenge Had stomach for them all! IAGO Alas! Thou art betrayed, and I undone! OTHELLO You bitch! Weep’st thou for him to my face?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Marcus Mota

IAGO O, banish me, my lord, but kill me not! OTHELLO Down, bitch! IAGO Kill me tomorrow, let me live tonight! OTHELLO Nay! Stay, dear! IAGO But half an hour, my God!

Documenta

206

OTHELLO It is too late. (Asphyxiates Cassio. The Chorus, who was following the action, frets and scatters, running across the stage in despair. The cry smothered down their throats, their faces shaking with an unexpressed plea, their eyes opened to the limit. Othello, gasping, collecting himself, hangs over the dead body of actor B who played Cassio dressed as Desdemona. Seeing the Chorus scatter, Othello is lost, as if awakened from his madness. Looks at Iago who turns his back at him. Othello, slowly, starts to understand that there is a corps between his legs. He pulls up his pants and ashamed dresses himself, looking at both sides in fear of being caught. Acress D who plays Desdemona, with effort and hatred, tries with great pains to take the tape off of her mouth. Iago starts to laugh, repeating ‘Idiot! Idiot!’. The Chorus, finally restructures itself in the form of a lynching battalion that throws itself against Othello in a fatal knockdown. In the midst of this lynching, Desdemona finally takes the tape off her mouth and drags herself to see Othello’s destruction. The play ends with the sounds of her dragging and breathing, her effort to be there, her voice conspiring to stay alive. Fatigued, she whispers the Willow Song. From within the darkness of the shadows, Iago walks towards the audience with a sword in his hand and speaks. IAGO: Do I, by any chance, need a reason to have done what I did? Tell me! Answer me! Do I really need a reason? What if I just wanted to and that was it, huh? What if you, yes, you also wanted to? What do you want to do? Tell me! What about you? Isn’t there anyone in the world, one single person that you would like to drive a sword into? One, just one. Think carefully, look around! Look! Seek! Don’t stop! Continue! I am sure you will find someone! Come on, don’t give up! There is at least one person, a single one waiting for all the attention you can give, all your care. Right now there is only one. Him. Her. And what are you waiting for? (Exiting upstage.) Do really need a reason for all this? Tell me, answer me: what if you just wanted to and that was it. One single person. To share with everyone. Everyone. Everyone. THE END D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

Um Otelo brasileiro: violência e metateatralidade em Iago Marcus Mota 207

Documenta

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Um Otelo brasileiro: violência e metateatralidade em Iago

1

marcus Mota Universidade de Brasília – Brasil [email protected]

Resumo: Este texto procura apresentar os pressupostos para a elaboração da peça Iago. Escrita a partir de Otelo, Iago busca colocar em primeiro plano algo presente no texto shakesperiano: o espetáculo cruento em torno da morte de uma mulher inocente. Palavras-chave: Shakespeare, Otelo, Violência, Metateatralidade. Abstract: This paper deals with how Iago was elaborated as a rereading of Shakespeare’s Othello. The main focus of Iago was display a theatrical exploration of death and violence against an innocent woman.

Documenta

208

Keywords: Shakespeare, Othello, Violence, Metatheatre. Empresto o título desta minha conferência do importante livro de Helen Caldwell sobre a narrativa de Machado de Assis2. A exegese que Caldwell realiza de Dom Casmurro demonstra como a obra shakesperiana é reinterpretada, com conseqüente ampliação de suas situações e personagens. Mais que uma adaptação ou transposição do material shakesperiano, Machado de Assis proporciona rediscussão de linhas hegemônicas de Otelo, desestabilizando certezas que a obra teatral procura desenvolver na busca da intensidade dos efeitos de representação. Se em Otelo há um esforço em mostrar como as pessoas se enganam sobre a realidade, Machado de Assis situa esse engano não em um agente externo, mas em uma deliberada ação por parte da personagem. Em Dom Casmurro, o jogo de disfarces e mal-entendidos não se situa entre as personagens, mas é proposto por um narrador claudicante, que se denuncia em sua obsessão em comprovar que aquilo que afirma é o que aconteceu3. Em todo caso, tanto o texto teatral shakesperiano quanto a narrativa machadiana projetam um tipo de envolvimento com sua recepção através da assimetria entre as personagens. O drama não está no pathos do ciúme, mas no saber (ou no não saber)4.

1 Texto apresentado ao International Shakespeare Assoociation World Congress. Brisbane, 2006. Agradecimentos à FINATEC, por despesas de viagem e hospedagem. 2 CALDWELL 2002. 3 SOUZA 2006. 4 MOTA 1998. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Um Otelo brasileiro: violência e metateatralidade em Iago

5 HELIODORA 1998. 6 BLOOM 1989:539.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

209

Documenta

A díade Iago-Otelo provoca tal assimetria. Em Otelo, Shakespeare trabalha em uma estrutura cômica, tipo personagem escada, embaralhando o primeiro e segundo planos5. A audiência acompanha arco ascendente do oficial rebaixado Iago em sua vingança contra seu senhor Otelo. Otelo, até a revelação final, de nada sabe. E assassina injustamente sua esposa, deixando-se levar pelas palavras e fatos fabricados por Iago. Em Dom Casmurro, a díade é incorporada por personagens que se desdobram em Iago-Otelo. A dualidade cômica de Otelo é um horizonte de ação, um padrão de personagens cindidos. A ênfase na subjetividade, em centros subjetivos acarreta personalidades plásticas, divididas. Ou seja, para as audiências modernas, Machado de Assis mostra como a interiorização de um desdobramento personativo sobrepõe valores antagônicos. Afinal, a aproximação entre Iago e Otelo não é fortuita ou casual. Há um pouco (muito) de Iago em Otelo. E a singularidade da personagem não significa a separação de valores antagônicos. Diante disso, Machado de Assis efetiva no Brasil, uma ex-colônia européia, uma tradição de apropriação criativa de clássicos. E essa apropriação criativa não só produz um novo ponto de partida, um novo original, como rediscute aspectos fundamentais da obra shakesperiana. Fora das metrópoles, antes que se discutissem questões pós-coloniais, Machado de Assis, no ato de transformar Shakespeare, ilumina procedimentos que possibilitam o entrechoque de culturas e modos de representação. Ao deslocar a questão do engano, de uma didática do mal para uma internalização da consciência das ações e suas conseqüências, Machado de Assis situa o universo imaginativo da díade Otelo-Iago em outros parâmetros que o modelo judaico-cristão. O que interessa agora é a ocasião, a oportunidade, a deliberada atitude de fazer valer a sua disposição. Fora do reino da causalidade teológica, baseada em pecado-punição, ninguém morre ou mata em Dom Casmurro. O efeito é maior que a causa. E não se luta por princípios, mas por uma satisfação pessoal. Com esse precedente, dispus-me a também me apropriar criativamente da obra shakesperiana, elaborando o texto do espetáculo Iago. A possibilidade de se transformar os clássicos a partir de sua reinterpretação constitui um trabalho cotidiano no teatro. Sempre estamos modificando seja em função das circunstâncias, seja em função de um processo criativo específico. A minha versão teatral de Otelo foi motivada por minha indignação ao ler a provocativa análise que H. Bloom realiza da obra Shakesperiana. Rompendo com as expectativas de leituras, Bloom nos oferece um panegírico de Iago: Iago é “um artista tão livre de si mesmo (...) Grande improvisador, ele age com vigor e senso de oportunidade, ajustando sua trama às ocasiões que se apresentam.(...) É um inventor, um indivíduo propenso a experimentos, sempre disposto a testar mecanismos até então desconhecidos.(...)6”

Marcus Mota

Documenta

210

Tal elogio chega aos extremos quando Bloom afirma que “Shakespeare inventa em Iago um sublime poeta cômico, de natureza sádica, um arconte do niilismo que sente prazer em devolver às trevas o deus da guerra. Será possível inventar Iago sem que tal feito traga ao inventor grande satisfação? Será que não apreciamos Iago, apesar da ambivalência de nossos sentimentos por ele ? 7” Essa perigosa equação entre teatralidade e excelência, que Bloom aplica a Iago, foi realmente determinante para que eu revisitasse o texto shakeaperiano em busca de respostas. Pois a sublimidade de Iago, ao mesmo tempo em que iguala teatralidade e sofismática e sofisticada argumentação, também aponta para um fatal esquecimento: o assassinato de uma mulher, e de uma mulher inocente. Tal fato não pode passar desapercebido quando se encena Shakespeare no Brasil. Machado de Assis já havia cifrado este esquecimento ao propor uma ambivalente figura feminina em seu Dom Camurro. Grande parte da discussão após o romance resumia-se ao adultério ou não de Capitu. Em uma cultura marcada por restrições e violência contra a mulher, as figuras shakesperianas necessitam de uma nova utilização. Nos trópicos, a erotização do feminino e não sua idealização é o que predomina. Esta erotização limita a mulher à esfera da sexualidade (luxúria ou reprodução). O suposto adultério de Capitu demarca o enquadramento que Bentinho tem de uma mulher que escapa à lógica hegemônica. A negativização da mulher é uma contrapartida da descontinuidade entre representação e realidade. Ironicamente, Machado de Assis desconstrói o relato de Bentinho a partir do próprio relato. Bentinho fala contra si mesmo. De forma que o desmesurado elogio de Iago não só é um louvor de certas habilidades da personagem como também uma argumentação que busca definir a teatralidade do espetáculo shakesperiano. A sedução que Otelo provoca nos espectadores estaria relacionada com a inteligência e argúcia do personagem Iago. Mas e o último e sanguinário ato? E a bofetada de Otelo em Desdêmona no quarto ato? Contrariamente a essa intelectualização das relações entre os personagens, a teatralidade de Otelo fundamenta-se em um elaborado e detalhado espetáculo violento, cujo desenlace vai sendo realizado pouco a pouco, com pequenas, intensas e exatas doses de agressividade. As coisas não se resolvem na mente, em um plano superior sublimado, mas em uma arena terrível, feroz. A transformação de Otelo em assassino conduz a platéia para o desejo de ver consumado os atos que são mostrados ou parcialmente sugeridos. Quando, enfim, palavra e ação se integram, Desdêmona é morta. Por mais que o espetáculo, ao explicitar tamanha progressão da violência, também explicite a manipulação de Iago, é o assassinato, é a longa cena de mortal clímax o que captura toda a atenção. Em cena o contraste entre a brutalidade primitiva de Otelo e a fragilidade semi-virginal de Desdêmona intensifica os atos de ataque, de aniquilação. A desproporção entre as figuras projeta um desejo de posse e destruição, invertendo os 7 BLOOOM 1989:559. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Um Otelo brasileiro: violência e metateatralidade em Iago

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

211

Documenta

papéis entre vítima e perpetrador da desgraça. É como se Desdêmona provocasse sua própria morte por ser o que é. Objetivando reverter e denunciar tanto o intelectualismo de H.Bloom quanto a atração que o espetáculo sangrento causa, estruturei Iago em um metadrama: atores que acabam de interpretar a peça Otelo se vêem tomados por seus papéis e passam a agir em suas vidas como os personagens da peça. Para fazer isso, selecionei cenas, personagens e frases emblemáticas da peça de Shakespeare. Iago começa com a cena final de Otelo: Otelo, após ter assassinado sua esposa, é preso, discute com Iago - que nada responde – e depois se suicida. O nível formal do verso shakesperiano é mantido, ocasionando um reconhecimento de que há uma peça dentro da peça que estamos assistindo. Porém, no mesmo texto há a inserção de palavras outras - exclamações, xingamentos, adjetivações – que vão causando um estranhamento, uma passagem do universo conhecido da peça para o universo que será posteriormente representado. Ainda nessa abertura, outra interferência: o deslocamento da canção que Desdêmona canta no quarto ato após ter sido esbofeteada. A cena de abertura é, pois, um funeral para os mortos, uma lamentação. Deslocando o lamento para antes dos fatos, subverte-se a lógica de se compadecer apenas após os acontecimentos. Iago não é uma celebração das habilidades manipuladores de Iago, mas um lamento-denúncia sobre as conseqüências dessa manipulação. Ampliando a metateatralidade, a peça após a abertura se articula em dois planos: o plano da guerra e todos seus atos correlacionados – maus tratos físicos, tortura, abuso, estupro e morte – interpretado por um coro e o plano da peça, com atores entregues à possessão de seus papéis. Em alguns momentos estes planos se interpenetram. Em outros, temos espetáculos paralelos. Mas sempre uma perspectiva não unificada. Ou seja, essa articulação de planos duplica o jogo de interpretação da peça, na qual temos atores de hoje sendo possuídos pelos papéis da peça Otelo. Dentro desse desdobramento generalizado, tudo o que se mostra apresenta-se como feito, organizado para produzir efeitos. O espetáculo se mostra como espetáculo e se denuncia como espetáculo. A maquinaria de destruição, o ritmo persecutório que vai tomando conta da cena, com a transformação de Otelo em assassino não é o eixo principal do espetáculo. Há múltiplos focos, uma dispersão organizada de interesses. Cada personagem procura justificar-se e expor sua hesitação frente a essa fusão entre ator e papel. Os personagens hesitantes e desdobrados questionam o que devem fazer como personagens desse espetáculo violento. E a maior violência não é a da morte de Desdêmona e sim a da desconstrução do espetáculo com celebração da violência. A última cena de Iago é um anticlímax. Toda ela é construída a partir do texto shakesperiano submetido a dois procedimentos de deformação: as falas dos personagens são atribuídas a outros atores e são traduzidas por um vocabulário mais agressivo e de baixo calão. Ao fim, o ator que interpreta Cássio, após ter sido barbaramente violentado e viola-

Marcus Mota

do, é morto pelo ator que interpreta Otelo, tudo sob o comando do ator que faz o papel de Iago dizendo as falas de Desdêmona. Otelo não mata Desdêmona. Em um final bizarro, ele mata e estupra um homem, um seu igual. O grotesco de tudo isso procura mostrar a cegueira dos atos de Otelo e da platéia. O ator que interpreta Iago vira-se para o público e solicita que novos crimes sejam efetivados. Se as pessoas aplaudem vergonhosas mortes como esta, por que se envergonhariam de em suas vidas agirem como em parte agiram os personagens da peça? Do mundo fechado ao universo infinito – em uma cultura carnavalizada como a do Brasil, espetáculos que encerrem a violência por ela mesma concorrem com a explosão de agressividade dos grandes centros urbanos e com formas de espetáculos massivos (filmes, tv) que exploram negativamente expectativas e eventos funestos. A peça Otelo no Brasil é uma oportunidade para que a fusão entre cultura da violência e sociedade como espetáculo se defrontem com a ilusão de suas práticas e ideais e percebam que 1 – ninguém quer ser vitimizado; 2 – as coisas não acontecem só com os outros; 3 – eu sou capaz de matar.

Documenta

212

Referências Bibiográficas BLOOM,H. Shakeaspeare. A Invenção do Humano. São Paulo: Objetiva,1998. CALDWELL, H. O Otelo Brasiliero de Machado de Assis (The Brazilian Othello of Machado of Assis). Ateliê Editorial,2002. HELIODORA, B. Falando de Shakeapeare ( Talking about Shakespeare) Perspectiva, 1998. MOTA, M. “Fundamentos para uma tradição compreensiva da realidade:Machado de Assis e o instinto de nacionalidade” In: ABRALIC, 1990, UFMG. Anais do 2o. Congresso ABRALIC. Belo Horizonte : Editora UFMG, 1990. v. 1. p. 111-117. MOTA, M. Imaginação dramática. Texto&Imagem, 1998. SOUZA, R. M. O Romance Tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Editora Uerj, 2006.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

Seminário Shakespeare Marcus Mota 213

Documenta

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Notas sobre peças de Shakespeare Marcus Mota Universidade de Brasília Laboratório de Dramaturgia(LADI) [email protected]

Resumo: Aqui se reúnem ensaios e notas sobre peças de Shakespeare, escritos entre 1995 e 2007 para o Seminário Shakespeare. As obras estudadas são Tito Andrônico, Noite de Reis, Tróilo e Cressida, Comédia de Erros e Rei Lear. Palavras-chave: Shakespeare, Dramaturgia, Comicidade, Hermenêutica. Abstract: Here are are presented and collected essays and notes based on Shakespeare’s Plays. These texts were written from 1995 to 2005 as material to the Seminar on Shakespeare. The plays that were studied and analysed are: Titus Andronicus, Twelfth Night,Troilus and Cressida, The Comedy of Errors, King Lear.

Documenta

214

Keywords: Shakespeare, Dramaturgy, Comicity, Hermeneutics.

0 – Apresentação Entre 1995 e 2007 ministrei no Departamento de Artes Cênicas da UnB a disciplina ‘Literatura Dramática’ III, que, a partir da análise de textos cênicos, buscava o estudo de repertório europeu em autores como Lope de Vega, Calderón de La Barca, Racine, Moliére e, claro, Shakespeare. A partir de um certo tempo, transformei, por opção, o curso em uma espécie de ‘Seminário Shakespeare’: a cada semestre sete peças do bardo inglês eram estudadas. Durante esse tempo, elaborei alguns pequenos textos que publiquei em um site que disponibilizava minha produção artística e intelectual. Estes textos ou notas eram ideias advindas a partir da preparação e aplicação das aulas de análise textual. Seriam materiais para um futuro livro nunca escrito sobre análise de textos teatrais. Muitos desses textos se perderam em função de problemas que tive com o fechamento da empresa responsável por meu site. Os textos aqui reunidos estão em ordem temporal inversa - dos mais recentes aos mais antigos. O que se pode observar é uma mudança de foco e de vocabulário que registra mudanças mesmas no LADI: como minha experiência era mais em análise de textos literários, os primeiros textos expressam questões e métodos oriundos de minhas pesquisas em imaginação literária a partir de Gaston Bachelard1.

1 V. minha dissertação de mestrado A Hermenêutica da Imaginação em Adonias Filho (UnB, 2002), agora reescrita e incluída na primeira parte do livro Imaginação e Morte. Ensaios sobre a Representação da Finitude (Editora UnB,2014). D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Seminário Shakespeare

A partir de um maior contato com a diversidade multitarefa de eventos cênicos, comecei a reelaborar estratégias de leitura e interpretação de textos teatrais. Algo, porém, que sempre me determinou foi produzir textos que não fossem explicações das obras analisadas. Isto é, meu diálogo era com algum aspecto da organização do texto estudado2.

1 – Titus Andrônicus: Violência, Morte e Espetáculo3

2 Comento mais tais estratégias em “Dramaturgia, colaboração e aprendizagem: um encontro com Hugo Rodas” In: Histórias do Teatro Brasiliense. Brasília:IdA/UnB, 2003, p. 198-217). Sobre tais estratégias hermêuticas, v. H.G. Gadamer (Verdade e Método. Petrópolis:Vozes,1997). 3 Escrito em 21/10/2007. 4 “One of the stupidest and most uninspired plays ever written”, no ensaio ‘Seneca in Elisabethan translation’ In Selected Essays 1917-1932 (Nova York: Harcourt,Brace and Company 1934,p.23). 5 Shakespeare: A invenção do Humano ( Objetiva,2000). 6 Sobre o tema, v. “O narrador”, de Walter Benjamin In Magia e Técnica, arte e política.Ensaios sobre literatura e história da cultura. (São Paulo: Brasiliense,1994,p. 197-221); e os dois volumes de O Homem diante da morte, de P. Ariès ( Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989).

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

215

Documenta

Mas isso é Shakespeare? Mesmo hoje, a carnificina de Titus Andronicus coloca em questionamento a busca de um padrão estético para uma produção tão variada como a do bardo. O excesso contra o corpo, em mutilações, estupro, sacrifícios, assassinatos e canibalismo desafia sensibilidades que buscam seu prazer na contemplação e reprodução de esquemas narrativos. O que parece incomodar muitos críticos é o fato de aquilo que se mostra em sua brutalidade venha a ser considerado ‘teatro’. T.S. Eliot chegou, no século passado, a dizer que Titus Andronicus era uma das mais estúpidas e menos inspiradas coisas já escritas4. Já H. Bloom, afirma que a peça foi fundamental para o aprendizado do dramaturgo, para Shakespeare somente, e não para nós5. Essa visão negativa, excludente nos impulsiona para um limite, para aquilo que não se quer aceitar. O ciclo de sangue e morte que atravessa a peça foi atraente para os espectadores da época e continua sendo um recurso em obras das mais variados gostos. Ou seja, como entretenimento, morrer e matar são atos que marcam parâmetros de composição e recepção de espetáculos. O aparente arcaísmo das mortes em Titus Andronicus nos revela uma abordagem que escapa de nossos hábitos de representar a morte, da morte domada, da morte como convenção6. No excesso está a violência não justificada, não admitida dentro das violências socialmente possíveis. O grotesco e quase cômico ‘terrir’ (terror como rir) da peça ressalta como nos é inconfortável acompanhar uma sequência de atos que ultrapassam a medida de sua pressuposta finalidade. O caos de Roma, da Roma da peça, é instaurado pela recusa de Titus, valoroso guerreiro como Coriolano, em aceitar ser coroado Imperador. Em seu lugar assenta-se um

Marcus Mota

Documenta

216

soberano tolo, manipulado por uma vingativa rainha de povos bárbaros, Tamora, esta manipulada por um amante monstruoso e armador de perfídias, o mouro Aarão. Como se vê, parece uma antologia de tipos famosos... A vingança de Tamora toma a primeira parte da peça. Ela responde a morte de seu filho, incinerado em ritual de sacrifício para aplacar os deuses. O filho de Tamora fora estripado, seus membros cortados, suas entranhas postas para arder no fogo. Titus, o homem do dever-fazer, não ouve as súplicas de Tamora. Os atos II e III vão consumar essa vingança desproporcional: a filha de Titus, Lavínia, estuprada e mutilada (as mãos e a língua cortadas), dois filhos de Titus mortos (cabeças cortadas) e o próprio Titus com tendo decepado uma de suas mãos para tentar salvar os filhos. A segunda vingança ocupa os dois atos finais. Habilmente, Shakespeare inicia por cenas amenas essa nova etapa da peça, adiando as mortes esperadas. O adiamento dilata-se em uma brincadeira com a morte, na qual a rainha Tamora, como uma feiticeira, vai ao encontro de Titus, fantasiada de uma divindade ctônica – Vingança - assistida por seus dois filhos-auxiliares, Estupro e Assassinato. O jogo entre o disfarce e o desmascaramento é tão explícito que tudo se transforma em absurdo, emendando nas mortes finais, até a de Titus, o personagem que dá nome à peça. Enfim, tudo tem que morrer para ser atrativo. A generalizada mútua violência segue outra racionalidade, outra explicação. O excesso aponta para uma ultrapassagem, para uma ‘a mais’, para uma diferente lógica, vinculada ao espetáculo. Ao planejar e impetrar as mortes, as personagens exibem um poder-fazer que não acata restrições e demandas outras que as ditadas por uma estrita ratificação daquilo que é sabido e partilhado. Aplicando-se ao rigor de seguir àquilo que a elas se impõe, as figuras em cena não mais partilham de valores que supomos haver em uma pessoa. Daí nosso desconforto e negação. Essas máquinas de matar parecem distantes de nós, de nossa civilização, de nosso repertório. O que nos resta, com Titus Andronicus, é parar de perseguir a projeção humanizante, e acompanhar o estranho, seu vulto, sua voz, mesmo entre os nacos de carne e a tortura.

2 – Dramaturgia de Noite de Reis: Teatralidade e Comicidade7 Começando pelo título - A décima segunda noite. O título refere-se à festividade que celebra o encontro dos reis magos com o menino Jesus, doze dias depois de seu nascimento. Um menino pobre saudado como rei, Deus virando criança – uma série de transformações que colocam o mundo ao avesso. Daí a folia, folia de reis, reisado (“dança rápida ao som do pandeiro; folgança ruidosa;pândega” no século XVI 8), do francês folie,

7 Texto elaborado em 25/09/2007. Este texto e o n. 4 integram um conjunto de pesquisas sobre a dramaturgia cômica. V. MOTA, M. “Dramaturgia e Comicidade: notas de pesquisa. In: Da cena Contemporânea. Porto Alegre: Abrace/UFRGS, 2012, p. 72-81. 8 CUNHA,A.G. Dicionário Etimológico. Nova Fronteira, 1987. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Seminário Shakespeare

9 Em sisuda nota introdutória à sua tradução (Aguilar, 1989), Oscar Mendes afirma que “ O título da comédia não possui qualquer relação com o assunto. Twelfth Night ou Décima-segunda noite se refere ao fato de haver sido apresentada pela primeira vez na décima segunda noite depois do natal, ou seja, na festa da Epifania ou Dia de Reis”. 10 Temos: 1 – Orsino; 2 – Viola/Sebastião; 3 – Olívia; 4 – Malvólio; 5 – Tobias, Andrew, Maria; 6 – Feste, o bobo.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

217

Documenta

‘loucura’, ‘desvario’,’tolice’, ‘asneira’, ‘mania’9. O subtítulo – “ o que você quiser “ (What you Will) – expande essa dimensão de festa dos disfarces na qual aquilo que é, é apenas aquilo que parece ser – uma máscara. Agora, além disso, ser é querer, mas não se atinge o que se quer. Para além de um polemismo metafísico, a relação entre aparências e desejos exibe e enfatiza a metateatralidade do espetáculo, o espetáculo mostrando-se como armação, como arranjo. A peça organiza-se em uma série de distintas e distinguíveis trajetórias de personagem, as quais entram em rota de colisão, expondo os diferentes projetos, fantasias de cada uma das trajetórias10. A comicidade está justamente entre reunir os díspares. Nos encontros, os reunidos mais se distanciam e se opõem. Como Shakespeare trabalha com a cena pivotal (há um centro de cena, um foco principal; e a margem, foco secundário), quando as trajetórias díspares convergem no mesmo espaço-tempo da cena, a expectativa de harmonização, de acordo é trabalhada de modo a se ampliar aquilo que já era assimétrico. Ou seja, a dramaturgia de Shakespeare aqui apresenta para o público trajetórias com potencial de conflito e acerto ou hegemonia. Porém, quanto essas trajetórias são reunidas em cenas convergentes, aquilo que antes já era assimétrico passa a ser mais antitético, como em um arremesso – a proximidade dos díspares revela-se em distância hiperbólica, impossibilidade de homogeneização. O acordo, a simetria adiados, configura o espetáculo até sua conclusão. Então temos 1- apresentação das trajetórias assimétricas; 2- momentos de sincronização dessas trajetórias e intensificação das disparidades; 3-resoluções breves, às vezes inauditas, dessa intensificação. Os disfarces e os duplos conectam esse ritmo de trajetórias díspares à manifesta teatralidade do espetáculo. A comicidade produz seus efeitos pela identificação das assimetrias entre as personagens, traduzidas em desníveis cognitivos: as personagens não sabem o que está acontecendo, quem está diante delas. Ou seja, não se aplica aos agentes de cena uma verossimilhança estreita, como se fossem pessoas aqueles que no palco agitam-se. Contracenando frontalmente com travestidos, com personagens disfarçados, as personagens contribuem não para seu conhecimento do que está acontecendo. É preciso ter em mente que o disfarce é um expediente direto é claro: uma personagem disfarçada em cena não passa de uma personagem disfarçada em cena. O acúmulo e sobreposição de informações não se dirigem para os agentes dramáticos e sim para a platéia. Como os mascarados, a platéia se vê cumulada de informações. O não saber da personagem reforça

Marcus Mota

o conhecimento que a audiência tem do que está acontecimento. A limitação da perspectiva da personagem amplia a perspectiva da platéia. Ao saber mais, a audiência vincula os atos em cena não apenas ao momento de sua realização. Esse saber mais vincula a audiência ao espetáculo, mobiliza uma participação mais completa com todos os recursos disponibilizados em cena. Na cena I, do ato III, temos um exemplo dessa convergência. Viola e Olívia se encontram em um jardim da condessa. Cesário-Viola vem em nome de outro, de Orsino. É um atravessador da sedução do Duque de Ilíria. Olívio não quer saber de Orsino, do outro, mas sim deste, de Cesário-Viola. Essas cadeias abertas, como no poema ‘Quadrilha’, de Carlos Drummond de Andrade, justapõem-se: VIOLA Então sigo o rumo do sol. Graça e paz acompanhem a senhora. Quer que eu leve algo pro meu amo? Then westward-ho! Grace and good disposition. Attend your ladyship! You’ll nothing, madam, to my lord by me?

Documenta

218

OLÍVIA Não vá, eu imploro. Fale o que você pensa de mim. Stay:I prithee, tell me what thou thinkest of me. VIOLA Que você pensa que não é o que é. That you do think you are not what you are. OLÍVIA Se penso assim, eu penso o mesmo de você. If I think so, I think the same of you. VIOLA Então a senhora está certa: Eu não sou o que eu sou. Then think you right: I am not what I am. OLÍVIA Quem me dera que você fosse como eu quero. I would you were as I would have you be! VIOLA Isso seria melhor, madame, do que eu sou? Que assim fora, pois agora sou o teu bobo. Would it be better, madam, than I am? I wish it might, for now I am your fool. Assim, o disfarce não oculta nada. Tudo precisa ser mostrado. O esconder é uma demonstração do revelar, de focar algo. Daí a teatralidade ostensiva da dramaturgia de Shakespeare, explorada intensamente em suas comédias. Viola esconde sua identidade. Ela chega ao estranho reino de Ilíria, uma terra fantásti-

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Seminário Shakespeare

11 EPSTEIN, N. Friendly Shakespeare. Penguin Books, 1993

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

219

Documenta

ca onde as pessoas se entregam a ouvir canções tristes,cair em amor instantaneamente, armar brincadeiras pesadas e encher a cara11. Na cena dois do primeiro ato, tudo isso é performando para o público. A naúfraga abonada vai entrar para o serviço do duque, para conhecer esse estranho país, para nos fazer conhecer o mundo representado. Para nós que tudo observamos, Viola é uma mulher disfarçada de homem. No tempo de Shakespeare tal jogo era ainda mais complexo. Era um jovem ator, fazendo o papel de uma mulher travestida de homem. De qualquer jeito temos um ator fazendo uma personagem que se disfarça. O ator é duplamente desdobrado como figura, no papel e na mascarada. No decorrer da peça, Viola situa-se entre os amores de Orsino e Olívia (até o nome Viola é uma retomada de Olívia). Orsino vai aprender o que é amar por uma mulher vestido de homem; já Olívia que amou Cesário - Viola vai ficar com o gêmeo, o duplo de Viola. Em si mesmos os agentes não possuem a habilidade de perceber que os eventos são maiores que seus partícipes, uma clara imagem que espetáculo é maior que as personagens. Paradoxo aparente de uma dramaturgia cômica, pois, na verdade, os agentes contribuem mais para o conhecimento do espetáculo que de si mesmos. Nisso se aproximam das marionetes, como figuras que dentro do espaço de sua exibição realizam os atos mais diversos por que podem, por que são bonecos. E não se pede deles nenhuma explicação. E quando a explicação é apresentada, ela tem a lógica daquilo que é mostrada: é uma lógica performativa, a lógica de um espetáculo como espetáculo, que justifica a si mesmo a partir de suas escolhas. As falas do bobo valem-se dessa manipulação de uma expectativa de coerência. Elas se parecem com enigmas ou sentenças filosóficas. Há interpenetração do cômico e do sério que chega a desorientar mesmo a audiências. Esses enigmas não são profundos mistérios. Tudo que vem à cena tem sua dimensão de superfície, de exibição. Na verdade, como os duplos e disfarces, as falas do bobo são jogos que se aplicam imediatamente ao que está acontecendo, expondo a limitação de conhecimento dos outros agentes. Para entender, é preciso decifrar interpretar. E não há tempo: o bobo, como uma metralhadora, engata uma associação em outra. Há um desperdício em tudo isso. Uma coisa é ler o que o bobo diz. Outra coisa é ouvir e ver o bobo falando. A palavra nos remete para algo fora da linguagem. Sua complicação vem de seu arranjo. A relevância da organização, da disposição das palavras, da sintaxe do dito, da enunciação vem em primeiro lugar. Como o disfarce sobre a personagem. O que se mostra, o espetáculo é evidenciado nisso. As habilidades de refazer os sentidos através de configurar os materiais são focadas. Nisso, a figura do bobo retoma uma tradição dos sonhos, profecias, presságios e outras modalidades de atos e agentes que, em teatros com recursos mínimos, produziram seus efeitos por meio por performances que expunham sua teatralidade, o nexo entre teatralidade e limites/possibilidades de entendimento.

Marcus Mota

3 – Tróilo e Cressida: Dramaturgia e Montagem12 A peça integra o chamado grupo de peças-problema (Tróilo e Créssida, Bem está o que bem acaba e Medida por Medida), classificação esta que agrupa peças com questões abertas quanto ao gênero, entre outras dificuldades. Em nosso caso, Tróilo e Cressida (1602) nas primeiras edições aparece sucessivamente como drama histórico, comédia e tragédia. A indeterminação do gênero coloca em questão uma pretensa unidade da representação em Shakespeare e, decorrente disso, em grandes dramaturgias. A impossibilidade desde cedo de a peça se reduzir a uma etiqueta unívoca nos incita a acompanhar mais de perto o espetáculo para o qual o texto provê materiais. Primeiramente, a macro-estrutura, a divisão em partes. O primeiro ato assim se configura: Prólogo Cena 1- Tróia. Externa. Proximidades do palácio de Príamo Cena 2- Tróia. Externa. Proximidades do palácio de Príamo Cena 3- Acampamento dos helenos, fora da cidade de Tróia.

Documenta

220

O prólogo é performado por um agente de ambivalente estatuto: primeiro, a cena é um destaque do resto do espetáculo, pois este personagem isolado cujo nome é sua função- Prólogo – função que se esgota durante sua presença em cena, pois o agente não mais retornará ao palco; segundo, ampliando este destaque, o agente após, inserir a audiência nos eventos representados, por meio de um sumário do espaço e de alguns antecedentes da trama homérica, dirige-se abertamente aos espectadores, evidenciando a metateatralidade de performance. Ou seja, o prólogo do Prólogo divide-se em duas partes: de uma panorâmica apresentação de cenários, figuras e acontecimentos para a ênfase na interação, nas expectativas dos eventos que serão ainda representados. A mudança do amplo enfoque retrospectivo, que incide sobre eventos referidos mas não atuais, para o prospectivo, que parte da atualidade da audiência para um futuro aberto, está na auto-apresentação do prólogo, como alguém armado, orientando a audiência a conectar o espetáculo de agora com a tradição de peças com cenas de guerra, como Henrique V(1499). O destacado prólogo arremete-se para uma ambiência de guerra, por meio do mapeamento lugares de batalha e enumeração de belicosos e valentes lutadores, bem como as razões da disputa e as disposições dos espíritos em animosidade para ser interrompido abruptamente com o deslocamento do foco de atenção para quem observa os eventos narrados. Assim, um ritmo ágil, apressado, urgente encaminha a abertura do espetáculo para a cena seguinte. O armado prólogo demanda potenciais beligerantes respostas. Ao mesmo tempo, no que o prólogo se apressa em dizer, alonga-se em silenciar: não ouvimos nenhum nome dos que posteriormente vão protagonizar a obra. As amplas di-

12 Escrito em 30/04/2007. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Seminário Shakespeare

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

221

Documenta

mensões da guerra e a imediata relação com a platéia são eventos conjugados sem que sem se vislumbre quem estará envolvido no centro dos acontecimentos encenados. Disto, esta ausência também desdobra em nova ausência: não só os protagonistas como também suas situações, seus encontros e desencontros são referidos. O Prólogo fala da guerra, mas não fala dos que de fato vão guerrear. Assim, este anti-prólogo abre um espetáculo difícil de classificar, uma peça sem gênero, ou um anti-gênero teatral. O estranhamento, contudo, não se reduz ao prólogo do Prólogo. Na cena seguinte, não há guerra: há uma personagem que integra a elite de Tróia (filho do rei Príamo) que não quer combater. Antes, ele se apresenta comparando-se aos gregos em hipérboles negativas cujo parâmetro invertido é o universo feminino: os gregos são mais hábeis, fortes, cruéis e valentes, e Tróilo é mais fraco que uma lágrima de mulher, menos valente que uma virgem na noite. É um conjunto de proporções: as qualidades do outro vinculam-se e culminam em total virilidade. Por outro lado, Tróilo, ao seu turno, é inversamente desmontado, desmasculinizado, até virar nem homem, nem mulher, mas um garotinho sem experiência alguma. Ao armado Prólogo, temos aquele que não quer lugar a premente guerra, que se desarma, que se dissocia daquilo previamente enunciado. Um príncipe não guerreiro em um estado de guerra, um príncipe que prefere um outro campo de batalha, o seu próprio coração. Desde logo temos o entrechoque entre a primeira cena e o prólogo. É como se um espetáculo tivesse sido anunciado, prometido e um outro é representado. A performance de Tróilo nega a guerra. Tróilo nega a si mesmo como príncipe e membro da elite de um dos lados do conflito, nega a dimensão ampla da batalha previamente referida e atualizada no seu status, nas responsabilidades de um filho do rei em época de guerra. Nessa negação afirma-se a opção personagem de restringir sua vontade apenas em um afeto para uma mulher em particular. Com isso, Tróilo redefine o espetáculo recém-iniciado. Sua atuação ao mesmo promove um evento em cena e reorganiza o que havia sido proposto como horizonte de longa duração da peça. Tanto para o evento de agora quanto para aquilo que virá, Tróilo é uma nova perspectiva do universo representado. Esse ato anti-representacional, essa atuação contra o espetáculo em processo de fazer-se, determina para a audiência um reposicionamento daquilo que se performa. As expectativas de longo curso são em parte substituídas por ou associadas a expectativas de revisão, como se a cada nova cena o espetáculo projeta nova relevâncias. Assim, o que importava em uma parte é renegociado em outra. Com a sucessão, a instabilidade de uma continuidade de perspectiva unificante cede o um lugar para a estabilidade dos aspectos plurais em conflitos e interrelacionados. Trata-se de uma diferente maneira de montar, de estabelecer vínculos entre as partes. Cada uma delas é um evento que se apropria dos anteriores e estabelece sua recepção a partir da diferença, da transformação em presença do que era tido como norma. Dessa maneira, a norma, o padrão é a revisão, a intervenção modificadora das ações e dos agentes apresentados.

Marcus Mota

Logo, o estatuto ambivalente dos agentes é a aplicação da lógica ambivalente da montagem. Pois as referências estão co-presentes, acumuladas. O Prólogo é e não é um arauto, está e não está no mundo representado. Tróilo é e não é um guerreiro, e um apaixonado. E assim as demais figuras em cena.

4- A Quadratura do Círculo - A Comicidade em A Comédia dos Erros13

Documenta

222

Examinado A comédia dos erros de Shakespeare podemos encontrar elementos para uma explicitação mais pontual da teoria da comicidade a partir de sua produção. O que é engraçado nesta obra? Por que ela se propõe como cômica? A situação dos duplos tem uma enorme tradição. Shakespeare mesmo apropria-se do texto de Plauto – dois textos na verdade, Os dois Menecmos e Anfitrião - e amplia o procedimento: temos dois duplos, um jogo de duplos de duplos. Por mais incrível que pareça, a ideia de duplo não restringe à confusão que ela engendra. Ao mesmo tempo que aponta para uma divisão, uma separação, aponta para uma união, uma completude, como se vê no mito contado justamente pelo comediógrafo Aristófanes em O banquete, Platão. Estas tendências convergentes e divergentes, agentes estruturadores e desestruturados se cifram na figura do duplo. Logo, o duplo do duplo é uma pesquisa de seu limites e possibilidades . Inicialmente é bom tem em mente que, como uma das obras da fase inicial de Shakespeare, A comédia dos erros não é um exercício juvenil, mas sim trabalho de um homem com seus trinta anos que morreria 20 poucos anos depois. Não se trata de ‘tentativas teatrais, mas de uma obra consciente de seus meios. E que a peça representa? Justamente a si mesma, seus procedimentos. A comicidade de A comédia dos erros está na exploração da sobreposição de lógicas parciais de explicação de um fenômeno de baixa ocorrência no mundo real: primeiro, dois irmãos gêmeos, separados por anos, encontram-se em uma cidade. Isso já é difícil acontecer. Pra piorar, cada um dos irmãos possui um servo, que são gêmeos entre si também. Este disparate é a base da comédia. Os erros, os equívocos, a fonte do prazer do espetáculo consiste em dilatar ao máximo o tempo de encontro dos dois irmãos. Para o espectador, a sequência dos eventos estabelece uma relação de assimetria com os agentes em cena: cada círculo em volta das personagens é posto em instabilidade frente ao irmão errando, agindo como ele mesmo, enquanto que a platéia assiste a expansão da assimetria entre os círculos. Explicando. Após um prólogo que projeta os protagonistas da peça, temos a exposição do padrão de contracenação assimétrica entre os personagens: um desconfiado Antífolo de Siracusa (A) chega na cidade de Éfeso, um porto comercial, com seu servo Drómio de Siracusa. (B). Tudo em ordem. Mas o servo sai e entra o servo (B’) do outro irmão (A’) .

13 Elaborado em 6/5/2006. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Seminário Shakespeare

5 – Caos e ordem: a dramaticidade personativa de Rei Lear de Shakespeare14 A cena de abertura de Rei Lear nos oferece a preciosa oportunidade de discorrer acerca das matrizes dramáticas que orientam a palavra rumo à cena. Preocupando-se com a recepção do que dramatiza, Shakespeare dispõe os eventos de maneira a configurá-los em determinada formatividade, mediação imaginativa que possibilita a interação entre

14 Este texto integra o livro Imaginação Dramática. Brasília: Texto&Imagem, 1998.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

223

Documenta

Em cena temos A com B’. Eles não se conhecem, não tem intimidade, pertencem a mundos diferentes. Cada um age de acordo com sua própria compreensão. Nunca pensariam que estão diante de gêmeos idênticos. E a situação inversa é a mesma coisa – tanto para o senhor, quanto para o servo há uma completa perda de nexos além da aparência, daquilo que eles conhecem previamente. E é com esse conhecimento prévio que eles buscam controlam o que está acontecendo. E este esforço de explicar o que não se explicar vão ampliando o desencontro entre o que parecem ser o que são mas são outra coisa. A falsa semelhança entre o gêmeo atual e o inatual provoca essa instabilidade referencial que é intensificada pela presença mesma daquilo se acredita ser o verdadeiro referente. É tão absurdo pensar que aquilo que está na frente um do outro seja outra coisa que, pois, a única solução é justamente intervir, forçar este que ali está a voltar a ser aquilo em que se acredita que ele de algum modo seja Assim, estabelece-se uma lógica, um padrão desvinculante, dissociativo entre os partícipes do pequeno mundo de Antífolo de Éfeso. Da rua para a casa – este padrão de encontros/desencontros vai tomando conta dos espaços que Antífolo de Éfeso frequentava. Assim, mapeando seus hábitos, pessoas e lugares, o caminho reverso do irmão desfaz, refaz uma cotidianeidade. E não há descanso. Não se trata de um estrangeiro na cidade. É o estrangeiro igualzinho ao familiar. É o mesmo que é outro, mas que ninguém percebe para além da semelhança a causa de tamanha confusão. Na medida em que o padrão avançava mais sem poder explicar o que está acontecendo ficam todos em cena e mais cônscios não somente do padrão, mas dos procedimentos que unificam a representação ficam os espectadores. Este deslocamento das coisas para sua organização, para sua redistribuição coloca em primeiro plano os atos mesmos de disposição daquilo que é mostrado. Na comédia não há intimidade: as personagens são figuras que projetam o movimento de sua materialização. Nós rimos porque percebemos aquilo que realmente determina as contracenações. Movemos as cordas desses bonecos e rimos por que são bonecos. A saturação de desestruturação explicita a estruturação mesma dos eventos. A comédia nos mostra que uma dada situação fundamenta-se em sua construtividade. O meio para tornar isso perceptível é aproximar nossa tendência à estruturação com seu contra-movimento presente no espetáculo. Enfim, a comicidade é uma educação em modos de se organizar o real.

Marcus Mota

Documenta

224

palco e platéia. Dispor os eventos é distribuí-los, arranjá-los sob uma forma, criando o que Hölderlin denominou ritmo de representação15. Contudo, a descrição desta maquinaria intencional não objetiva substituir a peça por meio de uma abstração sistêmica. Explicitar a poética da obra teatral - eis nosso objetivo. O ritmo de representação se oferece como um conjunto de individualizações de certas tensões adotadas pelos personagens. O agente dramático percorre o caminho de radicalizar seu horizonte-base, ao mesmo tempo que contracena com as linhas diretrizes dos outros. Por meio de um princípio de economia compositiva, a extrema variedade de sucessão dos eventos se coordena ao contexto fundamental de sua validação. Desta forma, o rígido controle da representação, ao se adotar perspectivas complementares que se especificam, produz a coesão e a coerência do espetáculo, realiza a obra em seu próprio fazer. O ritmo aqui não é conceptual, é um medium. Senão, vejamos. A cena de abertura de Rei Lear baseia-se na partilha do reino. Esta imagem-princeps solicita a imaginação de um vetor desestruturante, a atualidade de uma ruína que será pouco a pouco conquistada. A transferência do poder faz irromper o desequilíbrio de uma Ordem e sua consequente reordenação. Ou melhor, da presumida estabilidade de um reino emerge uma caoticidade que se alimenta dessa ficção de ordem. Em toda a peça a miragem de um cosmo cede à vigorosa realidade de uma destruição irremediável. Começa a peça já por sua estética de corrosão e a grande arte de Shakespeare será dar o tempo e o espaço dessa lógica às avessas, dessa lógica da iconoclastia, dessa verdade do que não é, do que tudo torna informe, que doa as formas e sentidos ao que, imediatamente, formas nem sentido teria. E por quê ? Ao se individualizar horizontes de base que permeiam uma obra que desconstrói uma ordem, surge a inquietante interrogação a respeito de como figurar a desfiguração, ultrapassando as motivações sempre vivas de uma estética clássica, que toma dos princípios formais abstratos de harmonia, equilíbrio e verossimilhança seu alento e seu logos. Uma razão absoluta a priori, que buscasse enfeixar o fenômeno constituído e constituidor da peça em categorias-atos de eliminação do díspar e do contraditório, fatalmente soçobraria em suas estratégias de inteligibilidade. Não apreendendo a poética própria de Rei Lear, marcada pelo ritmo de representação que distribui em palco agentes como eventos personificadores de uma caoticidade, este cógito se verá hesitante e confuso, abraçando-se nos esqueletos externos do enredo - pensar a quitina para chegar ao cadáver... Mas vemos a partilha. Chega o rei e distribui seu reino, como o espetáculo distribuirá as tensões. Assim como cada parte guarda uma relação com o todo Imperial, cada tensão apresentada guarda e distende as matrizes dramáticas da peça. Contudo, a divisão do poder só realça a perda do reino, e não a justa e consequente resolução do que se apresenta. Uma outra linha de ação se sobrepõe à partilha. O mapa e as partes do mapa não 15 V. Holderlin Reflexões. A. Abrances (Org.)Relume-Dumará, 1994. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Seminário Shakespeare

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

225

Documenta

correspondem às distintas e distinguíveis realidades das herdeiras. Uma delas, Cordélia, acompanha em seu apartes a transmissão das terras e as dissimulações que se encontram nos fatos. Contrariando os desígnios reais, ela, Cordélia, não acata a partilha, pois não compartilha dos mesmos desejos de suas irmãs. A mais amada torna-se, em seguida, a mais odiada. Por uma inverossímil mudança em seu pathos, o rei troca a oferta por banimento, em um extremo de extremos que só se explica por que está implicado na estrutura de imagens de Rei Lear. Podemos afirmar que só uma excessividade pode fazer a mediação entre palco e platéia, concretizando, para além do que se vê - mas incondicionalmente relacionada com o que está - o grau de concreção e futuridade da peça. A temporalidade do teatro exige que se ultrapasse o isolacionismo dos fatos, fazendo com que cada evento singularize a tensão de base do drama. O que ocorre em cada momento da peça aponta para as matrizes assumidas no ritmo de representação que engendra a obra que se põe em cena. Figurando sempre uma presença, efetiva-se a especificação das tensões que de si mesmas mutuamente se conformam e se reenviam. A ira de Lear é ficcional, tal como a personagem, assumindo a descontinuidade que desbloqueia o acesso ao ritmo de representação. O mapa desfeito não cessa de ser rasgado. Irreversivelmente, temos a passagem da ordem presumida à desordem manifesta. O que veremos adiante será a explicitação das tensões que seguirão o curso de seu horizonte base. Novamente. As personagem facultam para o espectador pontos de orientação. A viragem do pathos real ocasionará a reversibilidade dos acontecimentos. A mudança para com Cordélia indica uma nova situação para Lear. Confrontando os estados e suas transformações, o público é construído pela obra. A recepção participa atualizando o ritmo da representação. Novamente ainda: esta mudança pontual faz convergir para as outras mudanças a intensidade de sua realização. Tão drástica como foi a viragem de Cordélia mais será a de Lear. Temos um conjunto de pontos implicados que se interligam na perspectiva ficcional que é revelada em cada evento. Conhece-se a peça ao se reconhecer a coerência da imaginação. Um mundo em movimentação, mesmo que seja para a sua instabilidade, passa a ser real diante de nossos olhos. A dinâmica imaginativa do espetáculo comanda sua compreensão. Cada personagem e cada evento encontram-se fronteiriços uns com os outros, limitando a si próprios e os restantes. Em cena, a individualização dos caracteres nos veicula o drama mesmo da obra em seu acontecimento e abertura, sua plasticidade originária e originante. Os finitos fictos necessitam do paradoxo de sua excedência para se promoverem como sentido e forma inteligíveis e imagináveis . A palavra em muitas vezes explicita e explora esta maquinaria que se funda e que se autoregulamenta após. Nada - é só o que em meio a sua ira Lear fala. “Do nada, nada virá”. Esta é emblemática divisa da peça, o sentido do sentido da poética do drama. A esta declaração, acrescenta-se a de Cordélia, ao fim desta longa abertura : “o tempo desvendará”. Estas duas afirmações convergem para fornecer o horizonte interpretativo da obra. É

Marcus Mota

Documenta

226

preciso, para acompanhar o que surge por entre as cenas, uma sensibilidade que supere a localidade dos eventos e veja irromper, em cada momento, a emergência de uma diferenciação que, contida nos apelos breves de uma referência ou de uma resposta, sucumbe sem objeto e sem conclusão por entre o desassombro inexplicado e perplexo de uma vertigem sem nome. A fala do Rei conjuga-se com a profecia de Cordélia. A metamorfose dos acontecimentos desvela violentamente a desmesura que a tudo abarca. Próximo está de nós a abismática sombra que empalidece todos os projetos. Entre o querer e o efetuar, indeterminam-se as resultantes. O rigoroso ritmo de representação encontra seu telos no vigoroso contexto de sua vacuidade. Termina esta longa cena de abertura com o diálogo das filhas que ganharam seu quinhão da herança paterna. Regane e Goneril direcionam as explosões de raiva do rei e a expulsão da irmã Cordélia - atos que lhe beneficiam - como surtos de uma mente doente, de uma razão que desfalece. Este artifício faz notar a convergência da interpretação dos eventos para uma perspectiva individual. O que acontece sempre o é para alguém e no conflito de interpretações nasce a derrocada de uma ordem de sentido estável. Como os abutres despedaçando o já morto, elas induzem o encaminhamento dos fatos para a justificativa de suas próprias prerrogativas que assim e desse modo ganham veracidade em função de sua coordenação ao estatuto de seu discurso-base. O espectador se vê diante da verossímil inverosimilhança do mal tornado presença em palco sem que dele se compadeça. Esta amoralidade estética é mais do mera visão de mundo. Temos aqui as estratégias personativas que exigem de cada personagem sua individualização e sua contracenação. As duas irmãs profetizam a figura de Edmundo, aparente subdrama do espetáculo. É o que vemos na segunda cena deste primeiro ato. A sós, outra família, outro palácio, problemas próximos aos de Lear acontecem. Estas duas famílias como duas esferas que se tangenciam em sua cosmografia, fornecem um jogo de similitudes que pode se descrito dessa maneiras: Lear-Glócester, Cordélia-Edgar, Regane e Goneril-Edmund, reduplicação que vai além da analogia e da metáfora. Este jogo de similitudes efetiva a economia expressiva da peça de forma a propositar cada momento do espetáculo na sua exata tensão. Algumas ausências se remetem para outras presenças, perfazendo a multirreferência dos espaços preenchidos. Tudo submete-se ao contínuo esforço de intensificação e diferenciação que se cria. Se antes, no tempo da dramaturgia ática clássica, o dramaturgo dispunha de um estoque de referências oriundas das memórias míticas e lendárias, agora, nessa modernidade que se forma e constrói, a peça mesma vai ter de fornecer um campo de identificações para o espectador. Estamos longe do autofechamento formal e abstrato das vanguardas, mas situados na autorepresentação do espetáculo como tal. Como conhecer sem um horizonte para o saber ? Este é configurado na dinâmica do ritmo de sua representação, as linhas de tensão inscritas no espaço tempo de sua realização. O espectador tem a impressão de estar vendo o que acontece e o que acontece parece ter surgido ali, diante de seus olhos. Ele mesmo relaciona e une os fios de inteligibilidade que pode pegar com suas mãos, tecendo a su-

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Seminário Shakespeare

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

227

Documenta

cessão, entretecendo a ilusão cênica. No jogo de similitudes pode-se aprender por uma diferença que surge por entre as malhas tecidas para serem trançadas, mesmo já estando terminado o vestido. Doce ironia... Eis Edmund contraponto de Goneril e Regane, em cena como as duas antes terminaram sua anterior presença: um estar a sós consigo e com os espectadores, no qual apresenta seus planos, explicita-se, o que fará mais e sempre. Para quem monologa Edmund senão para a própria cena , como forma de tornar palpável visível e audível sua específica posição no espetáculo ? Não se trata de fluxo de consciência. Aqui não há imagens mas as razões de seus atos, o predicado definidor do sujeito. O bastardo sobrepujará o legítimo - eis seu lema. Contemporâneo de sua ânsia de poder é o incremento de sua subjetividade. E para dramatizar esta gradação são necessárias formas e fases. E qual recurso senão o decurso de uma transferência de responsabilidade, uma dissimulação que simula um revelar? Em seu diálogo com o pai, da mesma maneira que temos a dupla realidade de injusto e justiceiro, na figura de Edmund, temos a dupla recepção espetáculo divido entre a perspicácia do filho e a ignorância de Glócester. O público bem vê como esta ficcionalização ganha sua própria verdade, pois o que se vê é a justaposição duplicadora de realidades num mesmo espaço. Ele sabe que a dualidade é unificada no ato mesmo de sua legibilidade concretizada em palco. As ambivalências tem a intenção de recolher a descontinuidade fundamental de todas as coisas e dar às mesmas os instrumentos de sus repertorização. Edmund engana só o pai, mas evoca a dupla vivência possível de um princípio monológico. Aqui e nestes tempos, as ambivalências são determinadas, disseminam-se como os raios de uma estrutura que medeia os acontecimentos. Mesmo a ambivalência mais pessoal - sua intimidade - é compreensível em função da razão construtiva da obra. A ficção não é um engodo que esconde as artimanhas da subjetividade em sua aporia narcísica. O ego é um espetáculo que morre como todos os espetáculos do mundo, como morre a própria arte. Os signos do mundo guardam e aguardam pela competência que os engendra. Edmund dissimula e realça este dissimular que esconde o que não é. Utilizando-se do disfarce de uma incorpórea verdade ( a mentira), ele seduz o pai. Sem provas senão a desse show de mágica do qual tira do que não existe a precária existência de uma condenação, ele garante seu acesso à confiança do pai e se legitima como veículo para os futuros fatos. Edmund é um simulacro e, como todos os simulacros, segundo Shakespeare, cairá por terra, expostos no limite de sua excessividade que demonstra sua imponderabilidade. Aqui não ha lugar para absurdos. Ainda para Shakespeare o real é real e ficção é ficção, longe de nossa neurótica desmedida inglória. O que faz Edmundo não é ficção mas o sonho do sujeito que a maior realidade do mundo decepará. Mas enquanto isso ... Glócester, seduzido, acusa os céus pelos transtornos na terra, antecipando o ritmo cósmico que será avistado na tempestade que ora se aproxima, mas já irrompeu no louco coração dos homens. Vaticinando estes novos tempos, os momentos de um mondo às avessas, tipicamente pós-renascentista no qual o natural e o cultural,

Marcus Mota

Documenta

228

frente aos conflitos de sua inteligibilidade, após a quebra da episteme teológica medieval, Glócester só consegue balbuciar: ‘é estranho’. A estranheza se dá no desencontro de um homem com seu mundo, e na sintomática ausência de um fator absoluto de explicação de tudo o que é ou existe. Exacerbando este contexto, além dos conflitos , temos a desestruturação dos valores, signos das ordens constituídas e que acabam de ruir. O que antes era tido como válido, frente ao longo tempo de sua duração, encontra um novo uso, uma nova materialidade que não consegue suprir o passo que se arrasta. O estupor de Glócester é o entrechoque das épocas em um presente sem futuro, que será radicalizada e corporificada na loucura do Rei. A ordem real louca é a viragem final. Sai Glócester e quem fica só ? O nosso agora não dissimulado Edmund. Ele converte a estranheza do pai em excelente loucura do mundo. Mobilizando os conflitos e as disparidades para si, a si mesmo evidencia como norma e diretriz para os cadáveres sem sentido do cosmo em crise. Aposta na ação subjetiva que remonta para a eficiência dos projetos individuais como maneira de se sobreviver aos destroços sem sentido do que já não é. Edmundo é a garantia de um presente reduzido a um futuro circunscrito à pendência de um resultado. Se tudo der certo, Edmund certo se apoderará do que quer. Eis aqui a denúncia de uma subjetividade cativa de sua persuasão desde que se compartilhe a egolatria. Edmund só vencerá entronizando em cada um o ego ditatorial de uma verdade sem questionamento. O poder só avança pela negação dos limites, e o maior dos limites e o maior dos esquecimento está no si-próprio. A saída de Glócester aponta para a entrada de Edgar, o irmão de Edmund. A presença de Edgar retoma a ausência do pai Glócesteser quanto ao controle dos sentidos operado pelo bastardo Edmundo. Esta lógica implacável da distribuição dos conflitos e dos afetados pelo conflito efetiva a eficiência do jogo de similitudes proporcionador das diferenças, da individualizações postas em cena. Criando a memória do espetáculo, este jogo agora é transposto das esferas da famílias para o interior delas. O que se vê é a instauração de uma ordem frente a outra que se arruína. Esta ordem terá a justa medida e o real delineamento de seu programa-base. Edgar ignora, como seu pai, o imperioso voluntarismo de Edmundo e este dos dois se utiliza. Não há poder sem sujeitos: os que se assujeitam e os que manipulam a partir de sua aparente impessoalidade. Ao fim deste encontro com seu irmão, Edmund resume o espetáculo em que atua: um pai crédulo e um irmão nobre, tudo modelado a seus modo e bom tudo lhe parece assim. O mundo às avessas aguarda sua resolução. A dissimulação de Edmund, contemporânea e homóloga a das filhas de Lear, revelar-se-á como astúcia que denuncia quem delas se serviu. No imaginário de Shakespeare as ambivalências se determinam até o fim da peça. A variação encontra seu complemento que as emenda. A lógica da imaginação shakesperiana doa a verdade dos projetos. Tudo é construído e significado, até o próprio caos. Edmund é um mal que encontrará a futuridade correlativa de sua imposição como figura no mundo da obra. Após, cinematograficamente, a peça conduz-nos para tornar a ver Lear. Aqui encontra-se ele diferentemente. Cada visagem sua corresponde para o espectador uma alte-

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Seminário Shakespeare

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

229

Documenta

ração sugerida e concretizada pelo ritmo de representação do espetáculo. Os cortes e o tempo novo da cena dramatizam o seguir e o diferenciar deste ritmo. Os novos elementos agem como intensificação e valência da obra em sua especificidade. As cenas presentes desdobram o jogo de similitudes praticado. A ordem representacional surge como iluminação deste movimento que de si mesmo solicita o seguir, o ofertar e o perceber. Os cortes abruptos e as personagens individualizam, demarcam os campos de atividade na atualidade de suas respostas ao fazer-se da obra. Tornamos a ver Lear e ele não está só e já não é mais o mesmo, sendo Lear. O que agora faz a diferença é a emergência do personagem Bobo. Sem nome e sem passado, identificável apenas pelas suas falas e sua relação com o rei, o Bobo é a irrealidade palpável de um parasitismo sem substância. De si mesmo não existe: necessita de Outro. Para este, revela o sentido dos acontecimentos bem como a intimidade desconhecida do hospedeiro. Para tanto, usa de uma linguagem cifrada da qual não dá a chave do código. Parodiando seu alvo-Outro, não resolve e nem se envolve com o que anuncia em suas canções, advinhas, danças, mímicas e apotegmas. Distende-se como Outro deste Lear, como sem nome e sem laços, tão distante como a percepção dos fatos e do autosaber do rei. Sua consciência é uma razão que não arregimenta para si os dividendos egolátricos do saber. Ele é a não-pessoa da peça, paradoxalmente contraposto a Edmund. Vê-se como a peça constrói-se com atos personativos que oferecem vários níveis convergentes e complementares de realidade. Do nada, nada virá, disse Lear e a profecia se cumpre, também no Bobo. Ele é uma figura sem persona, só existe pela cena, por Lear. Como duplo do rei, o Bobo reúne e torna intransitivos os nexos dos fatos. Como operador ficcional da peça, reivindica para si o olhar que pratica a imaginação e a reconhece como ficção. Os outros personagens individualizam o ritmo da peça, individualizando-se; o Bobo configura o ato da obra como ficção, mostrando como é feito um personagem. Sua pseudo-ingenuidade repercute a verdade da imaginação como fazer intencional e perceptível como tal. Nada de psicologismos: o Outro aqui é uma ciência operativa que não se reduz em conceitos. A imagem-Bobo se oferece como conhecimento das marcas restritivas da formatividade dinâmica da imaginação dramática posta em ação. Imaginar é engendrar, é circunscrever. Criar é limitar. Esta desconstrução de Lear ofertada pelo Bobo reverbera o descentramento da figura do rei já sem castelo. Este deixar de ser que será experimentado com toda a sua veemência por Lear, acopla-se à impessoal figura do Bobo. Acompanhando Lear (e nós seguindo o bobo), veremos a dramatização de uma ontologia característica na qual aquele que já não é, e deixa de ser, é . Este diagrama de forças de uma despersonalização personificante acompanha as origens do próprio teatro. Por isso, desde seus princípios, a arte dramática representou personagens para a morte. A morte, este terrível-grande-nada, agencia os comportamentos mais diversos. Para ela se encaminham os atores, tornando concreta e sensível, a realidade do que se não vê. O chamado ‘heroísmo trágico’ é o de um inexplicável acatamento da finitude que conclama e devora os membros do mundo. Inexoravel-

Marcus Mota

Documenta

230

mente preso a esta destinação, caminham para a morte e ela, em sus rostos e clamores ou na paz de um rosto sem face , faz-se presente. Captar essa atualidade imaterial que só se vê por mediação - eis uma tarefa à qual se dispôs o teatro. A loucura do rei e a morte trágica dos heróis da raça se oferecem como situações-limite que colocam o horizonte definidor da maquinaria dramática. Trabalhando com uma ontologia pontual, na qual atua o instante de um entre-estado, a cena aponta para a recepção do existencialismo de uma específica. imaginação. Esta imaginação dramática nos proporciona os meios possíveis para se atingir este movimento ontológico que ajusta, em um mesmo tempo e espaço, a modificação de algo que é a partir dele mesmo. A cena, e as artes dela derivadas, originou-se como extensão e exposição de nossa indiviso modo de nos significar e finitizar. Lear É, no extremo de sua pendência, sem deixar de ser em seu arco-nada. O teatro dramatiza-se ao colocar em palco a figura de Lear. O conhecimento dessa ontologia pontual transforma a imaginação em operador de nossa finitude, vista agora sem desespero, mas aprendida e compreendida em sua potência plástica. Por isso, isso ecoam uma memória dramática na fala do Bobo quando mostra quem Lear é: a sombra de Lear. Estes elementos indiciais - sombra, fumaça, cicatriz- renovam e projetam a sensibilidade receptiva que trabalha com estruturas autônomas de sentido que preconizam a participação de um sujeito. Não sendo nem realidades acabadas nem informes anuências de uma ausência sem telos, os signos indiciais corroboram a natureza perceptiva do teatro e sua relação complexa com os eventos. A constituição do sujeito-receptor se faz, complementarmente na construção do espetáculo. Dois que não são em sua totalidade se tornam no fazer da peça. O fantasma de Lear não assombra, mas assoma.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Documenta

Huguianas Hugo Rodas 231

Documenta

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Shakespeare: Encontro Primeiro Hugo Rodas Universidade de Brasília

Resumo: Memórias sobre Shakeaspeare, a partir das vivências do grande diretor Hugo Rodas Palavras-Chave: Hugo Rodas, Shakespeare, Memórias. Abstract: Recollections on Shakeapeares based on Hugo Rodas’live and works. Keywords: Hugo Rodas, Shakespeare, Memories.

Documenta

232

Umas das primeiras histórias da minha vida, uns dos meus primeiros sonhos, um dos meus primeiros pesadelos, uma das primeiras tragédias vividas que se tornou o meu primeiro trabalho em um espaço não convencional: Romeu e Julieta. 1986. Eu estava voltando de São Paulo, com o coração na mão entre tantos desencontros. Como sempre, totalmente apaixonado e dividido. Quando, trabalhando na Fundação Cultural na Área de Teatro, propus à Iara de Cunto, da dança, um projeto no qual juntaríamos as linguagens. Essa junção sempre foi a razão do meu trabalho, mas nunca havia compartilhado isso com alguém. Chamamos o projeto de ‘Gambiarra’. Falei do meu sonho de montar Romeu e Julieta. Iara amou a ideia. Convidamos Marcelo Ferreira para administrar a Oficina de Dança; Fernando Corbal, e suas inesquecíveis taças de cristal, para criar a música, e vendedores de verdade com suas barraquinhas - pipoca, bebidas, cachorro-quente, barracas de jogos, fogos de artifício, tudo de frente para a Rodoviária, ampliando a platéia até ao infinito, com a Esplanada nos Ministérios como a grande feira da Praça de Verona e o Circo Udi Grudi como os grandes comediantes. Trinta oficineiros-Capuletos e um grupo de capoeiristas-Montéquios performavam a eterna briga tendo como armas suas diferentes técnicas, até que o convite para a festa dos Capuletos nos introduzia no espaço de ação da peça. Uma experiência inesquecível, que logo depois foi repetida, ou melhor, recriada na cidade de Porto, Portugal, com o grupo Ginasiano, nas Caves Sanderman - a ribeira do Rio Douro como espaço da feira, e as próprias caves como palco. Foi como se o sonho virasse realidade. Dez anos mais tarde, junto ao extinto grupo de teatro universitário Tucan, realizamos um trabalho com cada ator escolhendo um texto das peças de Shakespeare, trabalho que teve duas versões: uma, chamada de ‘Shakespeare in Concert’, no qual irrompíamos do fosso do Teatro Nacional como uma orquestra, na qual cada ator era responsável por um instrumento, usando-o no texto-partitura de cada personagem; e a outra, no memorável teatro Galpão, com inspiração no ‘The Globe’, com uma fantástica cenografia do Miguel Simão, iluminada pelo eterno companheiro Dalton Camargo. Sempre tive uma curiosidade imensa, sempre tive uma memória presente que não é lembrança, sempre reconheci os diferentes toques de uma mesmas mão, os diferentes D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Huguianas

tons de uma mesma corda. E essa memória que não é lembrança hoje impulsiona meus motores e faz reconhecer meus acertos e desacertos. Até o próximo encontro. Hugo Rodas Agosto, 2016

233

Documenta

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

D R A M AT U R G I A S

Tradução

Estrada para Damasco August Strindberg Carlos Alberto da Fonseca

Tradução

Tradução: 234

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco1 Uma trilogia August Strindberg Tradução: Carlos Alberto da Fonseca

PARTE I. PERSONAGENS: ESTRANHO DAMA MENDIGO MÉDICO SUA IRMÃ

235

VELHO

Tradução

MÃE ABADESSA CONFESSOR PRIMEIRO CARPIDOR SEGUNDO CARPIDOR TERCEIRO CARPIDOR GERENTE CÉSAR CRIADO SEM FALA: FERREIRO MULHER DO MOLEIRO ACOMPANHANTES DO FUNERAL

1 Tradução a partir da versão inglesa de Graham Rawson, original sueco foi publicado em dois momentos: as duas primeiras partes em 1898, e a terceira em 1904. Na tradução seguiu-se o texto disponível no site do Project Gutenberg.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

August Strindberg

CENAS: CENA I

A esquina da rua

CENA XVII

CENA II

A casa do médico

CENA XVI

CENA III

Quarto de um hotel CENA XV

CENA IV

Na praia

CENA XIV

CENA V

Na estrada

CENA XIII

CENA VI

Na ravina

CENA XII

CENA VII

Numa cozinha

CENA XI

CENA VIII

O quarto “rosa”

CENA X

CENA IX

O Convento

CENA I ESQUINA DE RUA

Tradução

236

[Esquina de rua com um banco sob uma árvore; perto dali, a porta lateral de uma pequena igreja gótica; também uma agência do correio e um café com cadeiras na calçada. O correio e o café estão fechados. Ouve-se uma marcha fúnebre, que fica mais alta e depois diminui. Um ESTRANHO está parado no meio-fio da calçada e parece não saber para onde ir. O sino de uma igreja bate primeiramente um quarto de hora e depois a hora cheia. São três horas. Uma DAMA entra e saúda o ESTRANHO. Vai passar por ele, mas para.] ESTRANHO. É você! Eu pressenti que você viria. DAMA. Você queria que eu viesse: eu senti isso. Mas por que está esperando aqui? ESTRANHO. Não sei. Tinha que esperar em algum lugar. Tenho que esperar em algum lugar. DAMA. Quem você está esperando? ESTRANHO. Queria poder lhe dizer! Durante quarenta anos fiquei esperando alguma coisa: acredito que chamem isso de felicidade; ou o fim da infelicidade. (Pausa.) Essa música terrível de novo. Ouça! Mas não se vá, eu lhe peço. Vou sentir medo, se você se for. DAMA. Nós nos vimos ontem pela primeira vez; e conversamos durante quatro horas. Você conquistou minha simpatia, mas não deve abusar de minha gentileza por essa razão. ESTRANHO. Sei muito bem disso. Mas lhe peço para não ir embora. Sou estranho aqui, não tenho amigos; e meus poucos conhecidos mais parecem ser meus inimigos. DAMA. Você tem inimigos em toda parte. Está sozinho em todo lugar. Por que abandonou sua esposa e seus filhos? ESTRANHO. Gostaria de saber. Gostaria de saber por que ainda vivo; porque estou aqui D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

agora; para onde eu poderia ir e o que poderia fazer! Você acredita que quem está vivo já pode estar condenado? DAMA. Não. ESTRANHO. Olhe para mim. DAMA. A vida não lhe deu nenhum prazer? ESTRANHO. Nenhum! Se alguma vez eu tivesse pensado desse jeito, seria apenas uma armadilha para prolongar minhas misérias. Se algum fruto maduro me caísse nas mãos, ele estaria envenenado ou podre no seu interior. DAMA. Qual sua religião, se me perdoa a pergunta? ESTRANHO. Apenas essa: que quando não puder mais suportar as coisas, então eu me irei. DAMA. Para onde? ESTRANHO. Para a aniquilação. Se não seguro a vida em minhas mãos, pelo menos seguro a minha morte... Isso me dá uma maravilhosa sensação de poder. ESTRANHO. Do mesmo modo que brinquei com minha vida. (Pausa.) Eu era escritor. Mas a despeito de meu temperamento melancólico nunca fui capaz de levar nada a sério - nem mesmo meus piores problemas. Às vezes eu achava que a própria vida tinha mais realidade que meus livros. (Ouve-se um De Profundis vindo da procissão fúnebre.) Estão voltando. Por que eles ficam indo e vindo nessas ruas? DAMA. Você tem medo deles? ESTRANHO. Eles me irritam. Este lugar deve estar enfeitiçado. Não, não é da morte que tenho medo, mas da solidão; morto não se está mais sozinho. Não sei quem está aqui, eu ou qualquer outro, e nem sei se está sozinho. O ar fica pesado e parece engendrar seres invisíveis, que possuem vida e cuja presença pode ser sentida. DAMA. Você percebeu isso? ESTRANHO. Durante algum tempo, percebi uma grande parte disso; mas não como costumava fazer. Antes eu apenas via objetos e acontecimentos, formas e cores, enquanto agora percebo ideias e sentidos. A vida, que antes não tinha sentido, começou a ter um. Agora eu vejo intenção onde só costumava ver casualidade. (Pausa.) Quando encontrei você ontem, senti que fui tocado em meu caminho, para me salvar ou para me destruir. DAMA. Por que eu destruiria você? ESTRANHO. Porque pode ser seu destino.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

DAMA. Você está brincando com a morte!

237

August Strindberg

DAMA. Essa ideia nunca cruzou meu pensamento; foi muita simpatia que senti por você... Nunca, em toda minha vida, encontrei alguém como você. Basta olhar para você e as lágrimas começam a brotar nos meus olhos. Diga, o que você tem em sua consciência? Fez alguma coisa errada, que nunca foi descoberta ou punida? ESTRANHO. Você pode perguntar o que queira! Não, não tenho em minha consciência mais pecados do que qualquer homem livre. Exceto esse: eu determinei que a vida nunca me fizesse de bobo. DAMA. Mas é preciso ser um pouco enganado para se conseguir viver. ESTRANHO. Isso parece ser uma espécie de obrigação; mas eu gostaria de me ver livre dela. (Pausa.) Eu tenho outro segredo. Murmura-se na minha família que fui uma criança trocada. DAMA. Como assim? ESTRANHO. Uma criança colocada por duendes no berço de um recém-nascido. DAMA. Você acredita nessas coisas?

Tradução

238

ESTRANHO. Não. Mas, como toda parábola, isso pode dizer alguma coisa a meu respeito. (Pausa.) Quando criança eu estava sempre chorando e não me parecia estar ocupando qualquer lugar na vida das pessoas. Eu odiava meus pais e eles me odiavam. Eu não seguia nenhuma convenção, nenhuma regra, nenhuma lei, e só queria me perder nas florestas e navegar em alto mar. DAMA. Não recebia nenhuma ajuda de ninguém? ESTRANHO. Nunca. Mas frequentemente pensava que dois seres guiavam meu destino. Um me oferecia tudo o que desejasse; mas o outro sempre estava atento para difamar meus dons com vilania, de modo que fossem inúteis para mim e não pudesse gozar deles. É verdade que a vida me deu tudo o que lhe pedi - mas tudo se tornou sem valor para mim. DAMA. Você teve tudo e mesmo assim não estava contente? ESTRANHO. Essa é a maldição... DAMA. Não diga isso! Mas por que você não desejou coisas que transcendessem esta vida, que nunca pudessem ser conspurcadas? ESTRANHO. Porque duvidava que houvesse um além. DAMA. Mas e os duendes? ESTRANHO. São só uma historinha de fadas. (Apontando para o banco.) Podemos nos sentar aqui?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

DAMA. Sim. Quem você está esperando? ESTRANHO. Na verdade, estou esperando o correio abrir. Tem uma carta para mim - o carteiro me procurou ontem mas não me encontrou. (Sentam-se.) Conte alguma coisa sobre você agora. (Ela tira de uma cestinha o crochê que estivera fazendo.) DAMA. Não há nada para contar.

DAMA. Gosto de ouvir você falar. Mas não fale dos duendes: isso me deixa triste ESTRANHO. Sinceramente, não acredito neles; embora sempre estejam se fazendo notar. Será que esses duendes são as almas dos infelizes que ainda estão esperando redenção? Se são, eu sou filho de um espírito maligno. Uma vez acreditei que estava perto da redenção - através de uma mulher. Mas meu erro não podia ser maior: eu estava mergulhado no sétimo inferno. DAMA. Você deve ser infeliz. Mas não vai ser para sempre. ESTRANHO. Você acha que bimbalhar de sinos e água benta podem me dar conforto? Já experimentei os dois, e só tornaram as coisas piores. Eu me senti como o demônio quando vê o sinal da cruz. (Pausa.) Vamos falar de você agora. DAMA. Não é preciso. (Pausa.) Você foi censurado alguma vez por ter usado mal os dons de sua vida? ESTRANHO. Fui censurado por tudo. Na cidade em que morava ninguém era mais odiado que eu. Sozinho ali cheguei e sozinho dali fui expulso. Quando entrava num local público, as pessoas se retiravam. Se queria alugar uma casa, o dono desistia do negócio.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

239

Tradução

ESTRANHO. Que estranho, eu preferia mesmo que fosse assim. Impessoal, sem nomes - saber só um dos seus nomes. Gostaria de batizar você - vamos ver, como você gostaria de ser chamada. Eva! (com um gesto para as laterais.) Trombetas! (A Marcha Fúnebre é ouvida novamente.) Eles de novo! Agora preciso inventar sua idade, porque não sei quantos anos tem. De agora em diante tem trinta e quatro anos - portanto, você nasceu em sessenta e quatro. (Pausa.) Agora sua personagem, porque não sei nem isso. Vou lhe dar uma boa personagem, sua voz me lembra minha mãe, quero dizer, a ideia de uma mãe, porque minha mãe nunca me acariciou, embora me lembre dela batendo em mim. Veja, eu fui criado assim num grande cortado! Olho por olho, dente por dente. Vê essa cicatriz na minha testa? Foi um corte que meu irmão me fez com uma faca, depois que lhe atirei uma pedra. Nunca falei disso ao meu pai, porque ele me expulsou de casa quando minha irmã se casou. Eu nasci quando minha família estava falida e de luto depois que um tio tirou a vida de meu pai e eu nem quis ir ao enterro dele. Agora você conhece minha família. Esse é o estábulo de onde eu vim. Uma vez consegui escapar por catorze anos de trabalho duro - de modo que tinha toda razão em agradecer os duendes - embora nem sempre me sinta à vontade para agradecer a sujeira que fizeram.

August Strindberg

Os padres me lançaram uma praga no púlpito, os professores em suas escrivaninhas, e os pais em suas casas. O comitê da igreja queria tirar meus filhos de minha casa. Então eu ergui blasfemamente meu dedo... para o céu! DAMA. Por que te odiavam tanto? ESTRANHO. Como é que eu podia saber! Mas eu sabia! Eu não aguentava ver homens sofrendo. Então comecei a dizer, e a escrever também: libertem-se, eu vou ajudar vocês. E para os pobres eu dizia: não permitam que os ricos explorem vocês. E para as mulheres: não permitam serem escravizadas pelos homens. E – o pior de tudo – para as crianças: não obedeçam seus pais, se eles forem injustos. O que se seguiu era impossível de prever. Eu descobri que todos estavam contra mim: ricos e pobres, homens e mulheres, pais e filhos. E então vieram a doença e a pobreza, a mendicância e a vergonha, o repúdio, as penas da lei, o exílio, a solidão, e agora... Diga, você acha que sou louco? DAMA. Não. ESTRANHO. Você deve ser a única. E lhe sou sumamente grato. 240

DAMA. (levantando-se) Preciso ir embora agora.

Tradução

ESTRANHO. Você também? DAMA. E você não pode ficar aqui. ESTRANHO. Para onde posso ir? DAMA. Para casa. Para o suor do seu trabalho. ESTRANHO. Mas eu não sou trabalhador braçal. Sou escritor. DAMA. Eu sei. Eu não quis ofender você. O poder criativo é uma coisa que lhe foi dada, e que também pode ser levada embora. Cuide para não ser privado do seu. ESTRANHO. Para onde você vai? DAMA. Para uma loja, só. ESTRANHO. (após uma pausa) Diga, você tem fé? DAMA. Não tenho fé nenhuma. ESTRANHO. Melhor assim: você tem um futuro. Como eu queria ser seu velho pai cego, a quem você poderia levar para o mercado para cantar para ganhar seu pão. Minha tragédia é que não posso ficar velho, é o que acontece aos filhos dos duendes, eles têm cabeças grandes e nunca choram. Gostaria muito de ser o cachorro de alguém. Eu poderia seguir meu dono e nunca estaria sozinho de novo. Teria uma refeição em horas marcadas, um chute vez ou outra, e depois, talvez, um carinho, ou uma varada no mais das vezes... DAMA. Bom, preciso ir. Adeus. (Sai.)

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. (meio fora do ar) Adeus. (Continua sentado. Tira o chapéu e enxuga a testa. Desenha alguma coisa no chão com a bengala. Um MENDIGO entra. Tem um olhar estranho e está catando objetos na sarjeta.) O que está pegando aí, mendigo? MENDIGO. Por que me chama assim? Não sou mendigo. Por acaso lhe pedi alguma coisa? ESTRANHO. Me perdoe, me desculpe. É terrível julgar pelas aparências. MENDIGO. É isso aí. Por exemplo, você consegue adivinhar quem eu sou? ESTRANHO. Não vou nem tentar, não me interessa. MENDIGO. Ninguém quer saber antes da hora. O interesse geralmente só vem mais tarde – quando já é tarde demais. Virtus post nummos! ESTRANHO. Essa agora! Agora se pede esmola em latim?

ESTRANHO. Não sei se você, mendigo, é cínico ou maluco. MENDIGO. Eu também não sei. ESTRANHO. Você sabe quem eu sou? MENDIGO. Não. E isso também não me interessa. ESTRANHO. Bom, o interesse geralmente vem mais tarde... Vê, você sempre tenta me fazer tirar palavras de sua boca. E isso é a mesma coisa que recolher as bitucas das outras pessoas. MENDIGO. Então não vai seguir meu exemplo? ESTRANHO. O que é essa cicatriz na sua testa? MENDIGO. Quem a fez foi uma pessoa próxima. ESTRANHO. Agora você me deixou com medo! Você é real? Posso tocar em você? (Toca o braço dele.) É, não há dúvida disso... Você faria a bondade de aceitar uma moedinha em troca da promessa de procurar o anel de Polícrates em outra parte da cidade? (Dá a ele uma moeda.) Post nummos virtus... Outro eco. Você tem que ir depressa. MENDIGO. Eu vou. Mas você me mandou ir longe demais. Vou voltar antes de chegar

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

241

Tradução

MENDIGO. Veja só, já ficou interessado. Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci. Sempre me dei bem em tudo em que me meti, porque nunca tentei nada. Eu devia me chamar Polícrates, que encontrou um anel de ouro no estômago de um peixe. A vida me deu tudo que pedi. Mas eu nunca pedi nada, eu cresci cansado do sucesso e joguei o anel fora. No entanto, agora que fiquei velho lamento isso. Procurei por ele nos esgotos, mas, como procurar leva tempo, na falta do meu anel de ouro não desdenhei um punhadinho de tocos de cigarro...

August Strindberg

no fim. Agora só pertencemos um ao outro por amizade. ESTRANHO. Amizade! Sou seu amigo? MENDIGO. Bem, eu sou seu. Quando se está sozinho no mundo não se pode ser pessoal. ESTRANHO. Então me deixe lhe dizer, você se esqueceu de você... MENDIGO. Você é muito gentil.! Mas a gente vai se ver de novo e você será muito bem-vindo. (Sai.) ESTRANHO. (Sentando-se de novo e novamente desenhando no chão com a bengala) Domingo de tarde! Um tempo comprido, úmido, triste, depois do costumeiro almoço de domingo com rosbife, repolho e ensopado de batatas. Agora os velhos estão cochilando, os jovens jogando xadrez e fumando. Os empregados foram à igreja e as lojas estão fechadas. Essa tarde terrível, esse dia de descanso, quando não há nada para empregar a alma, quando é tão difícil encontrar um amigo quanto uma loja de vinhos. (A DAMA volta, agora está usando uma flor no peito.) Estranho! Não consigo falar sem ser contestado no ato!

Tradução

242

DAMA. Então, ainda está aqui? ESTRANHO. Se fico sentado aqui, ou em qualquer outro lugar, e escrevo na areia – não creio que isso importe para alguém. Então, fico aqui escrevendo na areia. DAMA. O que está escrevendo? Posso ver? ESTRANHO. Acho que vai descobrir: Eva 1864... Não, não apague com o pé. DAMA. O que aconteceu nessa data? ESTRANHO. Um desastre para você… e para mim. DAMA. Você sabe o que é? ESTRANHO. Sim, e mais que isso. Que o heléboro branco que está usando é uma mandrágora cujo significado simbólico é malevolência e calúnia; mas já foi utilizada na medicina para a cura da loucura. Pode dá-la para mim? DAMA. (hesitando) Como remédio? ESTRANHO. Naturalmente. (Pausa.) Você leu meus livros? DAMA. Tenho todos, sabe? E tenho que lhe agradecer por me ter dado liberdade e crença nos direitos humanos e na dignidade humana. ESTRANHO. Então você não leu os mais recentes? DAMA. Não. E se não forem iguais aos primeiros, então não os quero ler. ESTRANHO. Então me prometa nunca abrir qualquer outro livro meu.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

DAMA. Vou refletir sobre isso mais tarde. Muito bem, eu prometo. ESTRANHO. Muito bem! Mas cumpra mesmo sua promessa. Lembre-se do que aconteceu à esposa do Barba-azul quando a curiosidade a acabou levando para o quarto proibido... DAMA. Veja, você já exige de mim coisas como essa do Barba-azul. O que você não vê, ou esqueceu há muito tempo, é que sou casada e que meu marido é médico, e que ele admira sua obra. Então a casa dele está aberta para você, se der o prazer de sua visita. ESTRANHO. Eu fiz tudo, tudo o que podia para me esquecer disso. Acabei expurgando isso da minha memória de modo que isso não tem mais qualquer realidade para mim. DAMA. Se é assim, você irá comigo para minha casa esta noite? ESTRANHO. Não. Você virá comigo? DAMA. Para onde?

DAMA. Estou surpresa por não estar zangada com você. Mas você não está falando sério. ESTRANHO. Se estou ou não isso é aqui comigo. Ah! E agora o órgão da igreja! Mas não vai durar muito para o bar abrir. DAMA. É verdade. Você bebe? ESTRANHO. Sim. Bebo um bom bocado! O vinho faz minha alma sair de sua prisão, subir para o firmamento, onde ela vê o que ainda não foi visto e ouve o que os homens jamais ouviram... DAMA. E no dia seguinte? ESTRANHO. Tenho os mais deliciosos escrúpulos de consciência! Experimento as purificadoras emoções da culpa e do arrependimento. Curto os sofrimentos do corpo enquanto minha alma flutua como fumaça sobre minha cabeça. É como se alguém ficasse suspenso entre a Vida e a Morte, quando o espírito sente que já abriu suas asas e pode voar, se quiser, DAMA. Vá para a igreja por alguns momentos. Não vai ouvir nenhum sermão, só a bonita música da hora das vésperas. ESTRANHO. Não. Na igreja não! Essa música me deprime porque sinto que esse não é o meu lugar... Que sou uma alma triste e que é impossível para mim voltar a entrar ali para me tornar uma criança de novo.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

243

Tradução

ESTRANHO. A qualquer lugar! Não tenho casa, apenas um baú. E algum dinheiro às vezes. E com pouca frequência. É a única coisa que a vida me tem recusado caprichosamente talvez porque eu nunca o tenha desejado de modo suficientemente intenso. (A DAMA balança a cabeça.) E então? No que está pensando?

August Strindberg

DAMA. Você sente tudo isso… agora? ESTRANHO. Sim. Já senti isso antes, como se me tivesse quebrado em mil pedaços e estivesse sendo misturado no caldeirão de uma bruxa, afundando no caldo grosso de um sopão ou renovado no cheiro bom de um cozido fino. Tudo só depende da habilidade da bruxa! DAMA. Isso soa como as palavras de um oráculo. Precisamos ver se você não se torna uma criança de novo. ESTRANHO. Teríamos que começar com o berço, e desta vez com a criança certa.

Tradução

244

DAMA. Exatamente. Espere aqui por mim enquanto vou à igreja. Se o café estiver aberto eu lhe pedirei por favor para não beber. Mas felizmente ele está fechado. (A DAMA sai. O ESTRANHO se senta novamente e de novo desenha na areia. Entram seis acompanhantes do funeral vestidos de marrom com alguns carpidores. Um deles carrega uma bandeira com a insígnia dos carpinteiros, feita de crepe marrom; outro, um grande machado decorado com abeto; um terceiro, uma almofada com um martelo de juiz. Param do lado de fora do café e esperam.) ESTRANHO. Desculpem-me, que funeral estão esperando? PRIMEIRO CARPIDOR. De um arrombador de casas. (Ele imita o bater de um relógio.) ESTRANHO. Um arrombador de casas de verdade? Ou aquele inseto que se aloja no madeiramento das casas e faz tic-tic? PRIMEIRO CARPIDOR. Ambos - mas principalmente do inseto. Como é que ele se chama mesmo ESTRANHO. (para si mesmo) Ele quer me enlouquecer dizendo o nome anóbio, o inseto dos velórios. Mas não vou dizer. Você acha que eu sou um ladrão? SEGUNDO CARPIDOR. Não. (O relógio toca de novo.) ESTRANHO. Vocês estão tentando me amedrontar? Ou o morto faz milagres? Nesse caso, melhor eu explicar que meus nervos são muito bons e que não acredito em milagres. Mas eu acho estranho que os carpidores vistam marrom. Por que não preto? É mais barato e adequado. TERCEIRO CARPIDOR. Para nós, em nossa simplicidade, parece preto; mas se Sua Excelência desejar, pode parecer marrom para você. ESTRANHO. Uma companhia excêntrica! Um gosto incomum que eu gostaria de atribuir ao vinho que bebi ontem. Se eu lhes dissesse que era abeto, vocês provavelmente diriam – o que mesmo? PRIMEIRO CARPIDOR. Folhas de parreira.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Eu imaginei mesmo que não seria abeto! O café está abrindo finalmente! (O café se abre, o ESTRANHO se senta a uma mesa e é servido com vinho. Os CARPIDORES se sentam a outras mesas.) Devem mesmo estar felizes de terem se livrado dele, já que os carpidores se põem a beber vinho mal tenha terminado o funeral. PRIMEIRO CARPIDOR. Era um bom camarada, não podia levar a vida a sério. ESTRANHO. E que provavelmente bebia? SEGUNDO CARPIDOR. Sim, claro. TERCEIRO CARPIDOR. E que outros cuidem de sua mulher e de seus filhos. ESTRANHO. Ele não devia ter feito isso. É por isso que os amigos dele falam tão bem dele? Por favor, não sacuda minha mesa enquanto estou bebendo. SEGUNDO CARPIDOR. Quando estou bebendo eu não me importo. ESTRANHO. Bom, eu me importo. Há uma grande diferença entre nós! (Os CARPIDORES sussurram entre si. O MENDIGO retorna.) Aí está o mendigo de novo! MENDIGO. (sentando-se a uma mesa) Vinho, Moselle!

245

MENDIGO. Omnia serviliter pro dominatione! Sou um homem livre com educação universitária. Eu me recusei a pagar taxas porque não queria me tornar membro do parlamento. Moselle! GERENTE. Vai ter transporte gratuito da polícia para o asilo, se não sair. ESTRANHO. Caros senhores, vocês poderiam discutir isso em outro lugar. Estão perturbando seus clientes. GERENTE. Você é testemunha de que estou no meu direito. ESTRANHO. Não. Essa coisa toda é muito estressante. Mesmo sem pagar taxas ele tem o direito de gozar dos pequenos prazeres da vida. GERENTE. Você então é o tipo que liberaria os presos de cumprirem suas penas? ESTRANHO. Essa é demais! Você deveria saber que sou um homem famoso. (O GERENTE e os CARPIDORES riem.) GERENTE. Infamoso, provavelmente! Vou olhar na lista da polícia, e ver se a descrição coincide: trinta e oito anos, cabelos castanhos, bigode, olhos azuis; desempregado, recursos desconhecidos, casado, mas abandonou a esposa e os filhos; muito conhecido por sua visão revolucionária de questões sociais: dá a impressão de que não está de posse completa de suas faculdades... Coincide!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

GERENTE. (consultando um decreto da polícia) Não posso servi-lo: você não pagou seus impostos. Aqui está seu nome, sua idade e profissão, e a decisão da corte de justiça

August Strindberg

ESTRANHO. (levantando-se, pálido e surpreso) O quê? GERENTE. Sim, coincide totalmente. MENDIGO. Talvez ele esteja na lista. E não eu! GERENTE. Está me parecendo que é isso sim. Em qualquer caso, seria melhor ambos desocuparem o lugar. MENDIGO. (para o ESTRANHO) Devemos? ESTRANHO. Nós? Isso está começando a parecer uma conspiração. (Ouve-se o sino da igreja. O sol aparece e ilumina a janela cor-de-rosa acima da porta da igreja, que agora está aberta, descortinando seu interior. Ouve-se o órgão e o coro está cantando a Ave-Maria.) DAMA. (Vindo da igreja) Onde você está? O que está fazendo? Por que me chamou? Precisa se dependurar na barra de uma saia como uma criança? ESTRANHO. Estou com medo agora. Parece que as coisas não têm mais uma explicação natural.

Tradução

246

DAMA. Mas você não tinha medo de nada. Nem mesmo da morte! ESTRANHO. Da morte... não. Mas de alguma outra coisa, do desconhecido. DAMA. Ouça. Me dê sua mão. Você está doente. Vou levá-lo a um médico. Vem! ESTRANHO. Se você quiser. Mas me diga: isso é um carnaval ou... a realidade? DAMA. É muito real. ESTRANHO. Esse mendigo deve ser um cara muito infeliz. Ele se parece mesmo comigo. DAMA. Vai parecer, se você continuar bebendo. Agora vá ao correio e pegue sua carta. E depois venha comigo. ESTRANHO. Não, não quero. É só sobre ações judiciais. DAMA. Se não for? ESTRANHO. Só bisbilhotice rancorosa. DAMA. Bom, faça como quiser. Ninguém escapa de seu destino. Neste momento sinto que uma enorme vontade de nos julgar está tomando forma e até já tomou uma decisão. ESTRANHO. Você também sente isso! Ouvi o martelo bater justo agora; e as cadeiras serem puxadas para trás. O escrivão já saiu à minha procura! Oh, suspense! Não, não quero acompanhar você. DAMA. Me diga, o que você fez para mim? Na igreja descobri que não conseguia rezar. Uma vela no altar estava apagada e um vento gelado bateu em meu rosto quando ouvi você me chamar. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Eu não chamei você. Mas eu queria você. DAMA. Você não é tão fraco quanto diz ser. Você tem uma força enorme; e tenho medo de você... ESTRANHO. Quando estou sozinho não tenho força alguma; mas se encontro uma única companhia eu fico forte. Posso ficar forte agora; e vou acompanhar você. DAMA. Talvez você me livre do lobisomem. ESTRANHO. Quem é ele? DAMA. É assim que eu o chamo. ESTRANHO. Confie em mim. Matar dragões, libertar princesas, derrotar lobisomens – isso é a vida!

CENA II CASA DO MÉDICO [Quintal fechado em três lados por uma casa de um só andar com teto de telhas. Janelas pequenas nas três fachadas. À direita, varanda com porta de vidro. À esquerda, rosas trepadeiras e colmeias do lado de fora das janelas. No meio do quintal uma pilha de lenha na forma de uma cúpula. Um poço ao lado dela. O topo de uma amendoeira pode ser visto acima da fachada central da casa. No canto direito, um portão de jardim. Perto do poço uma grande tartaruga. À direita, entrada para uma adega, uma geladeira e um latão de lixo. A IRMÃ DO MÉDICO entra, vindo da varanda, com um telegrama.] IRMÃ. Agora o infortúnio vai cair sobre sua casa. MÉDICO. Quando não foi assim, minha querida irmã? IRMÃ. Desta vez... Ingeborg está chegando e traz um convidado... Adivinhe quem? MÉDICO. Espere! Eu sei, porque antevi isso faz tempo, até mesmo desejei que acontecesse, pois ele é um escritor que sempre admirei. Aprendi muito com ele e muitas vezes quis me encontrar com ele. Agora ele está chegando, você diz. Onde Ingeborg o encontrou? IRMÃ. Na cidade, parece. Provavelmente em algum salão literário.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

247

Tradução

DAMA. Então venha, meu libertador! (Ela ergue o véu de seu rosto, beija-o na boca e se afasta depressa. O ESTRANHO fica onde está por um momento, surpreso, e espantado. Vem da igreja um longo arpejo de vozes femininas, quase como um grito. A janela rosa de repente fica escura e a árvore sobre o banco é sacudida pelo vento. Os CARPIDORES se levantam e olham para o céu como se vissem alguma coisa terrível. O ESTRANHO corre para fora atrás da DAMA.)

August Strindberg

MÉDICO. Muitas vezes perguntei se esse homem era o garoto de mesmo nome que era meu amigo na escola. Eu espero que não; pois ele não parecia ser bafejado pela sorte em nenhum momento. E essa tendência infeliz deve tê-lo acompanhado por toda a vida. IRMÃ. Não permita que ele entre. Saia. Diga que está ocupado. MÉDICO. Não. Ninguém escapa ao seu destino. IRMÃ. Mas você nunca inclinou sua cabeça diante de ninguém! Por que rastejar diante desse espectro, e chamá-lo de destino? MÉDICO. A vida me ensinou a fazê-lo. Perdi tempo e energia combatendo o inevitável. IRMÃ. Mas por que permitir que sua esposa se comporte dessa maneira? Ela vai comprometer vocês dois. MÉDICO. Você acha? Porque, quando eu a fiz romper seu noivado, eu lhe ofereci falsas esperanças de uma vida de liberdade em vez da escravidão que ela conhecia. Além disso, nunca pude amá-la de modo a poder lhe dar ordens.

Tradução

248

IRMÃ. Você seria amigo de seu inimigo? MÉDICO. Oh...! IRMÃ. Você vai permitir que ela traga para dentro de casa alguém que vai te destruir? Se você ao menos soubesse como eu odeio esse homem... MÉDICO. Eu sei. O último livro dele é terrível; mostra até que lhe está faltando algum equilíbrio mental. IRMÃ. Deviam fazê-lo calar a boca. MÉDICO. Muitas pessoas já disseram isso, mas não acho que ele seja tão mau assim. IRMÃ. Porque você é excêntrico, e vive em contato diário com uma mulher que é louca. MÉDICO. Admito que a anormalidade sempre exerceu uma forte atração sobre mim e a originalidade não é mesmo um lugar comum. (Ouve-se a sirene de um vapor.) O que é isso? IRMÃ. Seus nervos estão à flor da pele. É só o vapor. (Pausa.) Agora, eu lhe imploro, vai embora! MÉDICO. Eu gostaria de ir, mas me sinto preso aqui. (Pausa.) Daqui posso ver o retrato dele no meu escritório. A luz do sol lança uma sombra sobre ele que o muda completamente. Faz que ele pareça com... É horrível! Vê o que quero dizer? IRMÃ. O diabo! Sai daí! MÉDICO. Não consigo, não posso.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

IRMÃ. Então pelo menos se defenda. MÉDICO. Eu sempre faço isso. Mas desta vez sinto que está se aproximando uma tempestade de trovões. Como tantas vezes tentei fugir, e não consegui. É como se a terra fosse ferro e eu a ponta de um compasso. Se minha infelicidade chegar, não vai ser por minha livre escolha. Eles já chegaram aí à porta. IRMÃ. Não ouvi nada. MÉDICO. Eu ouvi! Agora posso vê-los também! Ele é o amigo de minha infância. Caiu em dificuldades na escola, mas eu fui censurado e punido. O apelido dele era César, não sei por quê. IRMÃ. E esse homem... MÉDICO. É o que sempre acontece. César! (A DAMA entra.) DAMA. Trouxe um visitante. MÉDICO. Eu sei, e ele é bem-vindo. DAMA. Eu o deixei na casa, para se lavar.

249

Tradução

MÉDICO. Bom, você está satisfeita com a conquista? DAMA. Acho que ele é o homem mais infeliz que conheci. MÉDICO. Não seria um pouco demais? DAMA. Não, existe infelicidade suficiente para todos nós. MÉDICO. Existe mesmo! (Para sua IRMÃ.) Você poderia dizer a ele para vir? (Sua IRMÃ sai.) Você fez alguma coisa interessante? DAMA. Sim, encontrei várias pessoas estranhas. Você tem tido muitos pacientes? MÉDICO. Não. O consultório está vazio nesta manhã. Acho que a profissão está decaindo. DAMA (gentilmente). Lamento. Diga-me, essa pilha de lenha não deveria ser levada para dentro da casa? Aqui fora vai ficar úmida. MÉDICO. (sem reprovação) Sim, e as abelhas deveriam ser mortas, também; e as frutas do pomar deveriam ser colhidas. Mas não tenho tempo para isso. DAMA. Você está cansado. MÉDICO. Cansado de tudo. DAMA. (sem azedume) E olha que tem uma esposa que nem ao menos quer te ajudar. MÉDICO. (gentilmente) Você não deveria dizer isso, já que eu não penso assim.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

August Strindberg

DAMA. (Voltando para a varanda) Aí está ele! (O ESTRANHO entra na varanda, vestido de modo que o faz parecer mais jovem que antes. Tem um ar de candura forçada. Parece reconhecer o médico, e recua, mas logo se recobra.) MÉDICO. Seja bem-vindo. ESTRANHO. É muito gentil de sua parte. MÉDICO. Você traz bom tempo com você. E precisamos disso, tem chovido muito nas últimas seis semanas. ESTRANHO. Não seriam sete? Geralmente chove durante sete semanas quando chove em Saint Swithin. Mas é mais tarde no ano – que bobagem o que disse! MÉDICO. Como você está acostumado à vida da cidade, temo que ache o campo um pouco idiota. ESTRANHO. Oh não. Não me sinto melhor em casa do que aqui. Desculpe-me perguntar – mas já não nos encontramos antes, quando éramos meninos?

Tradução

250

MÉDICO. Nunca. (A DAMA está sentada à mesa e faz seu crochê.) ESTRANHO. Tem certeza? MÉDICO. Absoluta. Segui sua carreira literária desde o primeiro livro com grande interesse, como minha esposa lhe contou. De modo que se eu o tivesse encontrado antes eu certamente me lembraria do seu nome. (Pausa.) Bom, agora você pode ver como um médico do interior vive! ESTRANHO. Se você soubesse como é a vida de alguém que diz ser um libertador, certamente não o invejaria. MÉDICO. Posso imaginar; já vi como as pessoas amam suas correntes. Talvez seja assim que deve ser. ESTRANHO. (ouvindo) Estranho. Quem está tocando na aldeia? MÉDICO. Não sei. Você sabe, Ingeborg? DAMA. Não. ESTRANHO. A Marcha Fúnebre de Mendelssohn! Ela me persegue. Nunca sei se a estou ouvindo ou não. MÉDICO. Você sofre alucinações? ESTRANHO. Não. Mas sou perseguido por incidentes triviais. Está ouvindo alguém tocando? MÉDICO. Sim.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

DAMA. Alguém está tocando Mendelssohn. MÉDICO. Não é assim tão surpreendente. ESTRANHO. Não, não é. Mas que esteja sendo tocado precisamente no lugar certo, na hora certa... (Levanta-se.) MÉDICO. Para você ter certeza, vou perguntar à minha irmã. (Sai através da varanda.) ESTRANHO. (para a DAMA) Estou sufocando aqui. Não posso passar a noite sob este teto. Seu marido parece um lobisomem e na presença dele você vira uma estátua de sal. Um assassinato deve ter acontecido nesta casa; este lugar é mal-assombrado. Vou fugir assim que encontrar uma desculpa. (O MÉDICO volta.) MÉDICO. É a mocinha do correio. ESTRANHO. (nervosamente) Bom. Está tudo bem, então. Você tem uma casa original. Essa pilha de lenha, por exemplo. MÉDICO. Sim. Foi atingida por raios duas vezes. ESTRANHO. Que terrível E você ainda a mantém?

251

ESTRANHO. (olhando ao redor) Flores de heléboro, também! Onde você as conseguiu? Estão florindo no verão! Alguma coisa está de cabeça para baixo aqui. MÉDICO. Elas me foram dadas por um paciente. Ele ainda não está completamente bom. ESTRANHO. Ele está internado na clínica? MÉDICO. Sim. É uma alma tranquila, que reflete sobre o despropósito da natureza. Ele acha uma maluquice o heléboro crescer na neve e congelar; então ele coloca as plantas no porão e as replanta ao ar livre na primavera. ESTRANHO. Mas um louco... na casa. Que desagradável! MÉDICO. Ele é completamente inofensivo. ESTRANHO. Como ele perdeu o juízo? MÉDICO. Quem pode dizer? É uma doença da mente, não do corpo. ESTRANHO. Diga-me… ele está aqui agora? MÉDICO. Sim. Ele tem liberdade para caminhar pelo jardim e se distrair um pouco. Mas se a presença dele o perturba, podemos trancá-lo. ESTRANHO. Por que esses pobres diabos expõem assim suas misérias?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

MÉDICO. Por isso mesmo. Eu a fiz alta o suficiente para desafiar os raios, e para fazer um pouco de sombra no verão. É como a abóbora do profeta. Mas no outono é preciso ir para o depósito de madeira.

August Strindberg

MÉDICO. É difícil saber quando estão maduros... ESTRANHO. Para o quê? MÉDICO. Para o que está por vir. ESTRANHO. Não há nada por vir. (Pausa.) MÉDICO. Quem sabe! ESTRANHO. Sinto-me estranhamente desconfortável. Você tem material médico... espécimes... cadáveres? MÉDICO. Oh sim. Na câmara frigorífica – para as autoridades, você sabe. (Ele estende um braço e uma perna.) Olhe aqui. ESTRANHO. Não. Parecido demais com o Barba-azul! MÉDICO. (acidamente) O que quer dizer com isso? (Olhando para a DAMA.) Você acha que mato minhas esposas?

Tradução

252

ESTRANHO. Oh não. É claro que não. Esta casa também é mal-assombrada? MÉDICO. Oh sim. Pergunte à minha esposa. (Ele desaparece atrás da pilha de lenha onde não pode ser visto pelo ESTRANHO nem pela DAMA.) DAMA. Não precisa sussurrar, meu marido é surdo. Embora saiba ler lábios. ESTRANHO. Então me permita dizer que nunca experimentei uma meia hora mais dolorosa. Nós nos dissemos os lugares-comuns mais batidos, porque nenhum de nós tem coragem de dizer o que pensa. Sofri tanto que me veio a ideia de abrir minhas veias para me acalmar. Mas agora eu gostaria de dizer a ele a verdade e ver no que dá. Podemos dizer na cara dele que queremos ir embora juntos e que você já se cansou da loucura dele? DAMA. Se você disser alguma coisa vou começar a odiar você. Você tem que se comportar em qualquer circunstância. ESTRANHO. Que educadinha você é! (O MÉDICO agora se torna visível ao ESTRANHO e à DAMA, que continuam conversando.) Venha embora comigo, antes do sol se por. (Pausa.) Diga-me, por que você me beijou ontem? DAMA. Mas... ESTRANHO. Suponhamos que ele possa ouvir o que dizemos! Não confio nele. MÉDICO. O que podemos fazer para divertir nosso convidado? DAMA. Ele não precisa de muita coisa para se divertir. A vida dele não tem sido feliz. (O MÉDICO sopra um assobio. O LOUCO vem ao jardim. Tem uma coroa de louros e suas roupas são curiosas.)

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MÉDICO. Vem aqui, César. ESTRANHO. (incomodado) Como? Ele se chama César? MÉDICO. Não. É um apelido que lhe dei, por me lembrar de um garoto que estudava comigo. ESTRANHO. (perturbado) Oh! MÉDICO. Ele esteve envolvido num acidente estranho, e eu levei toda a culpa. DAMA. (para o ESTRANHO) Não deve acreditar que um garoto pudesse ser tão perverso. (O ESTRANHO parece angustiado. O LOUCO chega mais perto.) MÉDICO. César, venha cá e saúde o famoso escritor. CÉSAR. Esse é o grande homem? DAMA. (para o MÉDICO) Por que permitiu que ele viesse, se ele perturba nosso convidado? MÉDICO. César, você precisa se comportar. Ou vou ter que bater em você.

ESTRANHO. (para a DAMA) Vou embora. Isso é uma armadilha? O que devo pensar? Num minuto vai cutucar as abelhas para me divertir. DAMA. Confie em mim... Aconteça o que acontecer! E vire seu rosto pra lá quando falar comigo. ESTRANHO. Esse lobisomem nunca nos abandona. MÉDICO. (olhando seu relógio) Vocês me desculpem, tenho que sair por meia hora para ver um paciente. Espero que o tempo não pegue vocês pelas mãos. ESTRANHO. Já estou acostumado a esperar pelo que nunca chega... MÉDICO. (para o LOUCO) Venha, César. Preciso ver você no porão. (Sai com o LOUCO.) ESTRANHO. (para a DAMA) O que significa isso? Alguém está tentando me atormentar! Você me disse que seu marido me receberia bem, e eu acreditei em você. Mas ele não consegue abrir a boca sem me ofender. Cada palavra dele me fura como um aguilhão. E essa marcha fúnebre... tem alguém tocando isso mesmo! E aqui, mais uma vez, heléboros! Por que tudo continua numa ronda eterna? Cadáveres, mendigos, loucos, destinos humanos e memórias da infância? Retire-se, deixe-me libertar você desse inferno. DAMA. Foi por isso que trouxe você aqui. Também para que não dissessem que você roubou a esposa de um homem. Mas uma coisa tenho que lhe perguntar: posso confiar em você?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

253

Tradução

CÉSAR. Sim. Ele é César, mas não é grande. Ele ainda não sabe quem veio primeiro, a galinha ou o ovo. Mas eu sei.

August Strindberg

ESTRANHO. Você acredita nos meus sentimentos? DAMA. Não estou falando deles. Temos certeza dos seus sentimentos. Eles vão durar tanto quanto puderem durar. ESTRANHO. Confia no meu modo de pensar e agir? Tenho somas de dinheiro muito grandes para receber. Tudo que tenho a fazer é escrever ou telegrafar... DAMA. Então vou confiar em você. (pondo de lado seu trabalho.) Agora vamos sair direto por aquela porta. Siga pela sebe de lilases até chegar a um portão. Vamos nos encontrar na próxima aldeia. ESTRANHO. (hesitando) Não gosto de sair pela porta dos fundos. Preferia encontrar a saída com ele aqui. DAMA. Rápido! ESTRANHO. Você não vem comigo?

Tradução

254

DAMA. Sim. Mas nesse caso eu devo sair primeiro. (Ela se vira e joga um beijo na direção da varanda.) Meu pobre lobisomem!

CENA III QUARTO DE UM HOTEL [O ESTRANHO entra seguido pela DAMA. Um CRIADO.] ESTRANHO. (que está carregando uma maleta) Tem algum outro quarto livre? CRIADO. Não. ESTRANHO. Não quero o que me deram. DAMA. Mas é o único: os outros hotéis estão todos lotados. ESTRANHO. (ao CRIADO) Pode sair. (A DAMA se afunda numa poltrona sem tirar o chapéu e o casaco.) O que vai querer? DAMA. Gostaria que você me matasse. ESTRANHO. Não me espanta! Expulsos de hotéis porque não somos casados, e perturbados pela polícia, fomos forçados a vir a este lugar, o último que eu escolheria. Exatamente a este quarto, número oito... Alguém deve mesmo estar contra mim! DAMA. Este quarto é o número oito? ESTRANHO. Por que pergunta? Já esteve aqui antes? DAMA. Você esteve?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Sim. DAMA. Então vamos embora. Seguir a estrada, até a floresta. Não importa onde. ESTRANHO. Eu gostaria de ir. Mas após essas horas terríveis estou tão cansado quanto você. Senti que aqui poderia estar o fim de nossa jornada. Eu resisti, tentei ir na direção contrária, mas os trens estavam atrasados, ou os perdemos, e tivemos que chegar aqui. Neste quarto! O diabo está aqui dentro – pelo menos aquilo que chamo de diabo. Mas ainda vou me encontrar com ele. DAMA. Parece que nunca encontraremos paz na terra de novo. ESTRANHO. Nada mudou. As flores de heléboro estão morrendo. (Olhando para dois quadros.) Aí está ele de novo. E aquele é o Hotel Breuer em Montreux. Já estive lá também. DAMA. Você foi ao correio? ESTRANHO. Pensei que você me perguntaria isso. Fui. E como resposta a cinco cartas e três telegramas havia um telegrama dizendo que meu editor se ausentou por um dia. DAMA. Então estamos perdidos.

255

ESTRANHO. Muito provavelmente.

ESTRANHO. Então só resta uma coisa a fazer. DAMA. Duas. ESTRANHO. A segunda é impossível. DAMA. Qual é a segunda? ESTRANHO. Ir para a casa de meus pais no interior. DAMA. Você está começando a ler meus pensamentos. ESTRANHO. Faz tempo que não temos qualquer segredo um para o outro. DAMA. Então o sonho todo está no fim. ESTRANHO. Pode ser. DAMA. Você tem que telegrafar outra vez. ESTRANHO. Eu deveria, eu sei. Mas não consigo me mover daqui. Não acredito mais que possa conseguir. Alguém me paralisou aqui. DAMA. E a mim também! Nós decidimos nunca falar sobre o passado e ainda o arrastamos conosco. Olhe para esse tapete. As flores parecem formar...

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

DAMA. O criado vai voltar em cinco minutos para pedir nossos passaportes. Então o gerente vai subir e nos dizer para irmos embora.

August Strindberg

ESTRANHO. Ele! É ele. Ele está em toda parte. Quantas mil vezes ele... Mas vejo outra pessoa no estampado da toalha da mesa. Não, é uma ilusão! A qualquer momento vou ouvir minha marcha fúnebre… e então tudo estará terminado. (Ouvindo.) Pronto, aí está! DAMA. Não estou ouvindo nada. ESTRANHO. Eu estou... eu estou.... DAMA. Vamos para casa? ESTRANHO. O último lugar. O pior de todos! Chegar como um andarilho, um mendigo. Impossível! DAMA. Sim, eu sei, mas... Não, seria demais. Levar vergonha, desgraça e tristeza para os velhos, e ver você humilhado, e você a mim! Nunca reconquistaríamos o respeito outra vez. ESTRANHO. Seria pior que a morte. Entretanto, sinto que é inevitável, e começo a ansiar por ela, chegar a ela rapidamente, se puder ser assim.

Tradução

256

DAMA. (interrompendo seu trabalho) Mas não quero ser insultada em sua presença. Precisamos encontrar outro jeito. Se pelo menos estivéssemos casados – o divórcio seria fácil, porque meu casamento anterior são foi reconhecido pelas leis do país em que nos casamos... Tudo o que precisamos é ir embora e sermos casados pelo mesmo padre... mas isso seria mortificante para você! ESTRANHO. Isso teria que se ajustar com todo o resto! Essa lua de mel está se tornando uma romaria! DAMA. Tem razão! O gerente vai aparecer daqui a cinco minutos para nos expulsar. Só há um modo de acabar com essas humilhações. Por nossa livre e espontânea vontade devemos aceitar o pior... Já estou ouvindo passos! ESTRANHO. Já antevia isso e estou pronto. Pronto para tudo. Se não posso vencer o oculto, pelo menos posso mostrar a você o quanto posso suportar... Você precisa empenhar as joias. Posso resgatá-las quando meu editor voltar para casa, se ele não se afogou nadando ou foi morto num acidente de trem. Um homem ambicioso como eu deve estar pronto a sacrificar sua honra em primeiro lugar. DAMA. Já que estamos de acordo, não seria melhor sairmos do quarto? Oh, meu Deus! Ele já está chegando. ESTRANHO. Vamos. Vamos passar pelo corredor de criados e criadas. Vermelhos de vergonha e brancos de indignação. Os animais podem se esconder em suas tocas, mas nós somos obrigados a exibir nossa vergonha. (Pausa.) Baixe seu véu. DAMA. Então isso é a liberdade!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. E eu... eu sou o libertador. (Saem.)

CENA IV NA PRAIA [Uma casinha num rochedo numa praia. No lado de fora uma mesa com cadeiras. O ESTRANHO e a DAMA estão vestidos com roupas menos escuras e parecem mais jovens que na cena anterior. A DAMA está fazendo crochê.] ESTRANHO. Três felizes dias pacíficos ao lado de minha esposa, e eis a ansiedade de volta! DAMA. Do que tem medo? ESTRANHO. Que isso não dure mais tempo. DAMA. Por que está pensando isso? ESTRANHO. Não sei. Acredito que tudo vai terminar repentinamente, terrivelmente. Há algo de decepcionante até mesmo no crepúsculo e na tranquilidade. Sinto que a felicidade não faz parte do meu destino.

257

DAMA. Mas já acabou tudo! Meus pais se conformaram com o que fizemos. Meu marido compreende e escreveu uma carta gentil.

Tradução

ESTRANHO. O que isso importa? O destino tece sua teia; uma vez mais eu ouço o martelo bater e as cadeiras sendo puxadas para longe da mesa – a sentença já foi pronunciada. E isso deve ter acontecido antes de eu ter nascido, porque mesmo na infância comecei a cumprir minha sentença. Não existe um só momento da minha vida em que eu possa pensar em felicidade. DAMA. Homem desafortunado! E olha que você teve tudo o que quis da vida! ESTRANHO. Tudo. Desgraçadamente eu me esqueci de desejar dinheiro. DAMA. Está pensando nisso outra vez. ESTRANHO. Está surpresa? DAMA. Quieto! ESTRANHO. O que é isso em que você está sempre trabalhando? Fica aí sentada como uma das Parcas, trançando os fios com os dedos. Não para não, continua. A mais bonita das visões femininas é uma mulher inclinada sobre seu trabalho, ou sobre seu filho. O que você está fazendo? DAMA. Nada. Uma coisa de crochê. ESTRANHO. Parece uma renda de nervos e nós na qual fixasse seus pensamentos. O

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

August Strindberg

cérebro deve parecer isso – do lado de dentro. DAMA. Se eu conseguisse pensar a metade das coisas que você imagina... Mas eu não penso em nada. ESTRANHO. Talvez seja por isso que me sinto tão bem quando estou com você. Porque acho você tão perfeita que não consigo imaginar a vida sem você! Agora as nuvens se dissiparam. Agora o céu está claro! Essa brisa ligeira – sinta como ela nos acaricia! Isso é a vida! Sim, agora estou vivo. E sinto meu espírito crescendo, se ampliando, se tornando tênue, infinito. Estou em toda parte, no oceano que é meu sangue, nas rochas que são meus ossos, nas árvores, nas flores, e minha cabeça alcança os céus. Posso observar o universo inteiro. Eu sou o universo. E sinto o poder do Criador dentro de mim, pois sou Ele! Queria poder agarrar tudo em minha mão e refazer tudo em algo mais perfeito, mais duradouro, mais bonito. Quero que toda criação e todos os seres criados sejam felizes, que possam nascer sem dor, viver sem sofrimento, e morrer em calmo contentamento. Eva! Morra comigo agora! Neste momento, pois o próximo vai trazer tristeza outra vez DAMA. Não estou pronta para morrer ainda.

Tradução

258

ESTRANHO. Por que não? DAMA. Acredito que existam coisas que ainda não fiz. Talvez não tenha sofrido o suficiente. ESTRANHO. Será esse o propósito da vida? DAMA. Parece ser. (Pausa.) Agora quero lhe perguntar uma coisa. ESTRANHO. O que é? DAMA. Não blasfeme contra o céu novamente, nem se compare ao Criador, porque assim você me lembra o César. ESTRANHO. (agitadamente) César! Como pode dizer isso? DAMA. Sinto muito se disse alguma coisa que não devia. Foi maluquice minha falar do César agora. Me perdoe. ESTRANHO. Você acha que o César e eu nos parecemos um ao outro em nossas blasfêmias? DAMA. Claro que não. ESTRANHO. Estranho. Acredito em você quando me diz que não pretende me ferir; ainda que você me magoe, como todos os outros. Por quê? DAMA. Porque você é hipersensível. ESTRANHO. Você dizendo isso de novo! Acha que tenho lugares sensíveis ocultos?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

DAMA. Não. Não quis dizer isso. E agora os espíritos da suspeita e da discórdia estão surgindo entre nós. Afaste-os para longe - já. ESTRANHO. Não deve dizer que blasfemo quando uso palavras bem conhecidas: veja, somos parecidos para os deuses. DAMA. Mas se for assim, porque você não pode se ajudar, ou a nós dois? ESTRANHO. Não posso? Espere. Nós vimos só o começo. DAMA. Se o fim for desse jeito, que o céu nos ajude! ESTRANHO. Sei do que tem medo, e eu quis apenas lhe trazer de volta uma surpresa agradável. Não quero mais atormentar você. (Ele pega uma carta registrada, ainda não aberta.) Olhe! DAMA. O dinheiro chegou! ESTRANHO. Hoje de manhã. Quem pode me destruir agora? DAMA. Não fale assim. Você sabe quem poderia fazer isso. 259

ESTRANHO. Quem? ESTRANHO. E a coragem deles. Especialmente a coragem. Ela era meu calcanhar de Aquiles; eu me aborreço com tudo, exceto essa pavorosa falta de dinheiro. DAMA. Posso lhe perguntar quanto foi que enviaram? ESTRANHO. Não sei. Ainda não abri a carta. Mas eu sei quanto devo esperar. Melhor abrir e ver. (Ele abre a carta.) O quê? Apenas um extrato mostrando que nada tenho a receber! Tem alguma coisa errada nisso. DAMA. Começo a imaginar que sim. ESTRANHO. Sei que estou condenado. Mas estou pronto para reverter a maldição de volta para quem tão nobremente me amaldiçoou... (Amassa e joga a carta.) Com uma maldição especial para mim. DAMA. Não. Assim você me assusta. ESTRANHO. Tem medo de mim. Tanto quanto me despreza! O desafio foi lançado, agora você vai ver um conflito entre dois grandes oponentes. (Abre o casaco e olha ameaçadoramente para a frente.) Acerte-me com seu raio se ousar! Me meta medo com seu trovão se puder! DAMA. Não fale assim. ESTRANHO. Vou falar sim. Quem ousa estraçalhar meu sonho de amor? Quem arranca

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

DAMA. Aquele que pune a arrogância dos homens.

August Strindberg

o cálice de meus lábios; e a mulher de meus braços? Aqueles que me invejam, deuses ou demônios! Deuses pequeno-burgueses que revidam golpes de espada com alfinetadas às costas, que não lutam à frente de seus homens, mas os atacam com contas não pagas. Um modo sub-reptício de desacreditar um senhor diante de seus criados. Eles nunca atacam, nunca sacam uma arma, apenas corrompem e vilipendiam! Poderes, senhores e soberanos! Tudo a mesma coisa! DAMA. Que os céus não castiguem você. ESTRANHO. O céu está azul e silencioso. O oceano está silencioso e idiota. Ouça, estou ouvindo um poema – é isso que ouço quando uma ideia começa a germinar na minha mente. Primeiro o ritmo; desta vez como o trovão de cascos de animais, um tilintar de esporas e de fardas. Mas tem um bater de asas também, como a vela de um navio adejando... Estandartes! DAMA. Não. É o vento. Consegue ouvi-lo por entre as árvores?

Tradução

260

ESTRANHO. Quieta! Estão cavalgando sobre uma ponte, uma ponte de madeira. Não há água na fonte, apenas pedregulhos. Espere! Agora posso ouvi-los, homens e mulheres, rezando um terço. A saudação dos anjos. Agora consigo ver onde você está trabalhando – uma grande cozinha, com paredes muito brancas, três janelas de treliças com flores. No canto do lado esquerdo um fogão, à direita uma mesa com cadeiras de madeira. E sobre a mesa, no canto, um crucifixo suspenso, uma vela acesa abaixo dele. O teto de vigas escurecidas, um feixe de galhos de visco pendente na parede. DAMA. (amedrontada) Onde você está vendo tudo isso? ESTRANHO. No seu trabalho. DAMA. Consegue ver pessoas nele? ESTRANHO. Um velho está sentado à mesa, inclinado sobre uma bolsa de caça, as mãos juntas em prece. Uma mulher, sua juventude prolongada, de joelhos no chão. Novamente ouço os anjos saudando, como se estivessem distantes. Mas esses dois que estão na cozinha estão imóveis como figuras de cera. Um véu encobre tudo... Não, não era um poema! (Despertando.) Era algo mais. DAMA. Era realidade! A cozinha de casa, onde você nunca colocou os pés. Aquele velho era meu avô, o guarda florestal, e a mulher era minha mãe. Estavam rezando por nós! Eram seis horas e os criados estavam rezando um terço do lado de fora, como sempre fazem. ESTRANHO. Você me deixa inquieto. Isso era o começo de uma segunda visão? Era bonita. Um cômodo branco como a neve. Com flores e visco. Mas por que estavam rezando por nós? DAMA. Por que seria! Porque fizemos coisas erradas? D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. O que é errado? DAMA. Li que isso não existe. E, no entanto... Eu gostaria de ver minha mãe, não meu pai, porque ele me expulsou de casa como fez com ela. ESTRANHO. Por que ele expulsou sua mãe? DAMA. Quem poderia dizer? Muito menos uma criança. Vamos para minha casa. Quero fazer isso. ESTRANHO. Para o covil do leão, o buraco da cobra? Um a mais ou um a menos não importa. Vou fazer isso por você, mas não como o filho pródigo. Não, você vai ver que posso atravessar o fogo e a água por você. DAMA. Como você sabe? ESTRANHO. Eu adivinho. DAMA. E você consegue ver que no caminho para o lugar onde meus pais vivem as montanhas são íngremes demais para carros? ESTRANHO. Isso é extraordinário de se ouvir, mas li ou sonhei algo parecido.

ESTRANHO. Estou pronto – para qualquer coisa! (A DAMA o beija na testa e faz o sinal da cruz, simplesmente, timidamente e sem gesticular.) DAMA. Então venha!

CENA V NA ESTRADA [Uma paisagem com colinas; uma capela à direita a alguma distância, numa elevação. A estrada, ladeada por árvores frutíferas, serpenteia vindo do fundo. Entre as árvores podem-se ver colinas, nas quais há crucifixos, oradas e memoriais para vítimas de acidentes. Em primeiro plano uma placa com a legenda “Mendigos proibidos nessa paróquia”. O ESTRANHO e a DAMA entram.] DAMA. Você está cansado. ESTRANHO. Não vou negar. Mas é humilhante confessar que estou faminto, que o dinheiro acabou. Nunca pensei que isso fosse me acontecer. DAMA. Parece que deveríamos estar preparados para qualquer coisa, pois acho que caímos em desgraça. Meu sapato furou, e eu poderia chorar por termos chegado a isso,

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

DAMA. Pode ser. Mas não vai ver nada que não seja natural, embora possa parecer incomum, porque homens e mulheres são uma raça estranha. Está pronto para me acompanhar?

261

August Strindberg

parecendo mendigos. ESTRANHO. (apontando para o cartaz) E mendigos não são permitidos nesta paróquia. Por que escrever isso em letras grandes aqui? DAMA. Está aí há muito tempo pelo que me lembro. Pense nisso, não voltei aqui desde minha infância. E naquele tempo a estrada era mais curta e as colinas eram mais baixas. As árvores também eram menores e eu costumava ouvir pássaros cantando. ESTRANHO. Para você os pássaros cantavam o ano todo! Agora eles só cantam na primavera – e o outono já vem chegando. Mas naquele tempo você costumava dançar ao longo desse caminho interminável de calvários, colhendo flores nos pés das cruzes. (Uma trompa de caça à distância.) O que foi isso? DAMA. Meu avô voltando da caça. Um bom velho. Vamos, para chegar à casa com o entardecer. ESTRANHO. Ainda está longe? 262

ESTRANHO. É o rio que estou ouvindo.

Tradução

DAMA. Não. É só atravessarmos as colinas e o rio. DAMA. O rio perto do qual eu nasci e cresci. Eu tinha dezoito anos quando cruzei essa margem, para ver o que havia no azul cinzento da distância... Agora já vi. ESTRANHO. Está chorando! DAMA. Pobre velhinho! Quando entrei no barco, ele disse: “Minha menina, para além daqui está o mundo. Quando tiver visto o suficiente, volte para suas montanhas e elas vão esconder você”. Agora já vi o suficiente. Demais até! ESTRANHO. Vamos. Já está começando a escurecer. (Pegam suas capas de viagem e caminham.)

CENA VI NUMA RAVINA [Uma ravina de beira de estrada, uma colina coberta de pinheiros. Em primeiro plano uma cabana de madeira, uma vassoura do lado de fora com um pelego de carneiro pendurado à esquerda, uma oficina de forja, uma chama vermelha vista pela abertura da porta. À direita, um moinho de trigo. No fundo, a estrada entre moinhos e pontes. As formações rochosas parecem perfis de gigantes.] [Ao abrir-se a cortina, o FERREIRO está à porta de sua oficina e a MULHER DO MOLEIRO à porta do moinho. Quando a DAMA entra eles acenam um para o outro e saem. As roupas da DAMA e do ESTRANHO estão gastas e esfarrapadas.] D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Estão se escondendo de nós, provavelmente. DAMA. Não acho isso, não. ESTRANHO. Que lugar estranho! Tudo parece conspirar para despertar a inquietude. O que faz aquela vassoura ali? E o pelego de carneiro? Provavelmente porque é o lugar onde costumam ficar, mas eles me fazem pensar em feitiçaria. Porque a oficina de forja é preta e o moinho é branco? Porque um tem fuligem e o outro está coberto de trigo; mas quando vi o ferreiro negro à luz de sua forja e a mulher branca do moleiro, isso me lembrou um velho poema. Olhe para as faces dos gigantes... Lá está o lobisomem de quem salvei você. Veja ali o perfil dele, veja! DAMA. Sim, mas aquilo é apenas uma pedra. ESTRANHO. É só pedra, mas ainda assim é o lobisomem. DAMA. Posso lhe dizer por que podemos vê-lo? ESTRANHO. Você quer dizer – é sua consciência? O que nos pega quando estamos cansados e com fome, e fica em silêncio depois de termos comido e estarmos descansados. É horrível chegarmos assim em farrapos. Nossas roupas se esfrangalharam enquanto subíamos pelos espinheiros. Alguém está lutando contra mim. ESTRANHO. Porque quero lutar em campo aberto, às claras; e não batalhar com contas não pagas e bolsos vazios. Por falar nisso: este é meu último tostão. O diabo fique com ele, se é que ele existe! (Atira a moeda no mato.) DAMA. Oh! Poderíamos pagar a balsa com ela. Agora vamos ter de falar em dinheiro quando chegarmos em casa. ESTRANHO. Quando é que podemos falar de qualquer outra coisa? DAMA. Só porque você a desperdiçou. ESTRANHO. Como sempre desperdicei tudo... DAMA. Mas nem todas as coisas podem ser jogadas fora. Algumas são boas. ESTRANHO. Nunca as vi. DAMA. Então me siga que vou lhe mostrar. ESTRANHO. Vou com você. (Ele hesita ao passar pela oficina de forja.) DAMA. (que continuou em frente) Você tem medo do fogo ESTRANHO. Não, mas... (Ouve-se a trompa à distância. Ele se apressa para ir atrás da oficina seguindo a DAMA.)

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

DAMA. Por que você o desafiou?

263

August Strindberg

CENA VII NUMA COZINHA [Uma cozinha grande com paredes brancas. Três janelas no canto direito, arranjadas de modo que duas estão no fundo e uma na parede da direita. As janelas são pequenas e possuem um grande recuo, no qual há vasos de flores. O teto é bem iluminado e preto de fuligem. No canto esquerdo, uma estante com utensílios de cobre, ferro e alumínio, e vasilhas de madeira. No canto direito um crucifixo com uma vela. Junto dele uma mesa quadrada com bancos. Ramalhetes de visco nas paredes. Uma porta ao fundo. Um asilo para indigentes pode ser visto do lado de fora e, pela janela do fundo, a igreja. Perto do fogão uma cama para os cachorros e uma mesa com comida para os indigentes.]

Tradução

264

[O VELHO está sentado à mesa perto do crucifixo, com as mãos entrelaçadas e uma bolsa de caça à sua frente. É um homem forte, de cerca de oitenta anos com cabelos brancos e longa barba, vestido como guarda florestal. A MÃE está ajoelhada no chão, cabelos grisalhos e cerca de cinquenta anos; seu vestido é preto e branco. Ouvem-se vozes de homens, mulheres e crianças cantando a última estrofe da Ave-Maria: “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém.”] VELHO e MÃE. Amém! MÃE. Agora, vou lhe contar, Pai. Viram dois vagabundos perto do rio. As roupas deles estavam esfarrapadas e sujas, e parecia que tinham estado na água. E quando foram pagar o balseiro, não tinham dinheiro. Agora estão secando suas roupas na cabana do balseiro. VELHO. Deixe que eles fiquem lá. MÃE. Não negue sua casa a um mendigo. Ele bem pode ser um anjo. VELHO. Lá isso é verdade. Deixe que entrem. MÃE. Vou colocar comida para eles na mesa dos pobres. Você se importa com isso? VELHO. Não. MÃE. Dou cidra a eles? VELHO. Sim. E pode acender a lareira, devem estar com frio. MÃE. Tenho pouco tempo. Mas vou fazer isso, se você quiser, Pai. VELHO. (olhando pela janela) Acho que é o melhor que você tem a fazer. MÃE. Para o que está olhando aí? VELHO. O rio está subindo. E me pergunto como se já tivesse setenta anos – quando é que vou chegar ao mar. MÃE. Você está triste esta noite, Pai.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

VELHO ... et introibo ad altare Dei: ad Deum qui laetificat juventutem meam. Sim, estou me sentindo triste… Deus, Deus meu: quare tristis es anima mea, et quare conturbas me. MÃE. Spera in Deo... (A criada entra e acena para a MÃE, que caminha em sua direção. Elas cochicham alguma coisa e a jovem sai.) VELHO. Eu ouvi o que você disse. Oh Deus! Tenho que suportar isso também! MÃE. Você não precisa vê-los. Suba para seu quarto. VELHO. Não. Isso seria um castigo. Mas por que vieram assim: como vagabundos. MÃE. Talvez tenham perdido o caminho e ainda tenham muito a percorrer. VELHO. Mas trazer o marido dela! Ela perdeu a vergonha? MÃE. Você conhece a natureza extravagante de Ingeborg. Ela acha que tudo o que faz é adequado, ou melhor, correto. Você já a viu alguma vez envergonhada, ou sofrendo com uma contrariedade? Eu nunca vi. Mas, pelo contrário, não é que ela não sinta vergonha. E tudo o que ela faz, quão questionável seja, parece natural quando ela o faz.

MÃE. É verdade. Mas pode ser que Ingeborg tenha alguma missão nesta vida do homem; e também na dela. Talvez estejam destinados a torturarem um ao outro até a expiação completa. VELHO. Talvez. Mas não tenho nada a ver com o que me parece vergonhoso. Tenho que aceitá-lo debaixo do meu teto, como tudo o mais. Nada mais me está reservado. MÃE. Muito bem então. (A DAMA e o ESTRANHO entram.) Sejam bem-vindos. DAMA. Obrigado, Mãe. (Ela olha para o VELHO, que se levanta e olha para o ESTRANHO.) Paz, meu avô. Esse é meu marido. Aperte a mão dele. VELHO. Primeiro quero olhar para ele. (Chega perto do ESTRANHO, coloca as mãos nos ombros dele e o olha nos olhos.) Que motivo o traz aqui? ESTRANHO. (francamente) Nenhum, a não ser fazer companhia para minha esposa, seu desejo mais intenso. VELHO. Se é verdade, sejam bem-vindos! Tive uma vida longa e tormentosa até aqui e finalmente encontrei uma certa paz na solidão. Eu lhes peço que não a perturbem.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

265

Tradução

VELHO. Sempre quis saber por que ninguém conseguia ficar zangado com ela. Ela não se sente irresponsável, ou pensa que qualquer coisa mais dura que lhe seja dita seja um insulto. Ela parece impessoal; ou antes, duas pessoas, uma que não comete nenhum pecado enquanto a outra dá absolvição... Mas esse homem! Não existe ninguém que eu tenha odiado mais que ele. Ele vê o mal por toda parte; e de ninguém mais ouvi falarem tanta coisa ruim.

August Strindberg

ESTRANHO. Não vim aqui para lhe pedir favores. Não vou levar nada comigo quando for embora. VELHO. Essa não é a resposta que eu queria, pois todos nós precisamos um do outro. Talvez eu precise de você. Ninguém sabe, meu rapaz. DAMA. Vovô! VELHO. Sim, minha criança. Não posso desejar sua felicidade, porque isso não existe, mas lhe desejo força para carregar seu destino. Agora vou deixá-la. Sua mãe vai falar com você. (Sai.) DAMA (para sua mãe). Você preparou aquela mesa para nós, Mãe? MÃE. Não, foi um engano, como pode imaginar. DAMA. Eu sei que parecemos dois miseráveis. Nós nos perdemos nas montanhas, e se vovô não tivesse tocado aquela trompa... MÃE. Seu avô desistiu de caçar há muito tempo.

Tradução

266

DAMA. Então foi alguma outra pessoa... Ouve, Mãe, vou até o quarto rosa e volto logo MÃE. Certo. Volte num instante. (A DAMA parece querer dizer alguma coisa, mas não o faz, e sai.) ESTRANHO. (para a Mãe) Já vi esse cômodo antes. MÃE. E eu vi você. Sempre esperei você chegar. ESTRANHO. Assim como se espera um desastre? MÃE. Por que diz isso? ESTRANHO. Porque percebo devastação onde quer que eu vá. Mas como devo ir a algum lugar, e não posso mudar meu destino, perdi meus escrúpulos. MÃE. Então você é igual à minha filha – ela, também, não tem escrúpulos e nenhuma consciência ESTRANHO. O quê? MÃE. Acha que estou falando mal dela? Eu nunca faria isso. De minha própria filha. Só sugeri uma comparação, porque você a conhece. ESTRANHO. Mas eu notei o que você falou sobre Eva. MÃE. Por que você chama Ingeborg de Eva? ESTRANHO. Inventando um novo nome para ela eu a fiz minha. Eu queria mudá-la... MÃE. E refazer a imagem que tinha dela? (rindo.) Bem que me disseram que os feiticeiros

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

rurais esculpem imagens de suas vítimas e dão a elas os nomes das pessoas que querem enfeitiçar. Era esse o seu plano: por meio dessa Eva, que você mesmo fez, você pretendia destruir por completo o Sexo! ESTRANHO. (olhando para a MÃE surpreso) Essas palavras malditas! Perdoe-me. Mas você tem crenças religiosas: como pode pensar essas coisas? MÃE. Os pensamentos eram seus. ESTRANHO. Isso está começando a ficar interessante. Eu imaginei um idílio na floresta, mas isto é o caldeirão de uma feiticeira. MÃE. Não completamente. Você esqueceu, ou nunca soube, que um homem me abandonou vergonhosamente, e que você é um homem que também abandonou vergonhosamente uma mulher. ESTRANHO. Francas palavras. Agora eu sei onde eu estou. MÃE. Eu gostaria de saber onde eu estou. Você consegue sustentar duas famílias? ESTRANHO. Se tudo vai bem.

267

MÃE. Nem tudo – nesta vida. Dinheiro pode ser perdido. MÃE. De verdade? Sabe-se muito bem que o maior dos talentos pode falhar... gradualmente ou de repente. ESTRANHO. Nunca encontrei ninguém que pudesse sufocar a coragem de alguém. MÃE. O orgulho pode ser sufocado. Seu último livro é muito mais fraco. ESTRANHO. Você o leu? MÃE. Sim. Eis porque conheço todos os seus segredos. Então não tente me enganar; não seria bom para você. (Pausa.) Uma bobagem, mas não faria nenhum bem para nós: por que você não pagou o balseiro? ESTRANHO. Meu calcanhar de Aquiles! Eu tinha jogado fora minha última moeda. Não se pode falar de outra coisa além de dinheiro nesta casa? MÃE. Claro que sim. Mas nesta casa nós cumprimos nosso dever antes do prazer. Então vocês vieram a pé porque não tinham dinheiro? ESTRANHO. (hesitando) Sim... MÃE. (sorrindo) Provavelmente nada para comer? ESTRANHO. (hesitando) Não... MÃE. Você é um companheiro muito fino!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

ESTRANHO. Mas o capital do meu talento não posso perder nunca.

August Strindberg

ESTRANHO. Em toda a minha vida nunca me encaixei nessa categoria. MÃE. Bem posso acreditar. É uma pena. Eu poderia rir da figura que você faz, se eu não soubesse que isso faria você chorar, e outras pessoas com você. (Pausa.) Mas agora você satisfez sua vontade, volte para a mulher que o ama; porque se você a deixar nunca mais vai sorrir, e logo vai esquecer o que era felicidade. ESTRANHO. Isso é uma ameaça? MÃE. Um aviso. Vai agora, e coma sua ceia. ESTRANHO. (Apontando para a mesa dos pobres) Ali? MÃE. Uma brincadeira bem fraca, que bem poderia se tornar realidade. Já vi isso acontecer. ESTRANHO. Logo vou acreditar que tudo pode acontecer – isso é o pior que já soube ter acontecido.

268

ESTRANHO. (desalentado) Estou preparado para qualquer coisa. (Sai. Um instante depois o VELHO entra.)

Tradução

MÃE. Pode acontecer ainda bem pior. Espere!

VELHO. Não era nenhum anjo afinal de contas. MÃE. Nenhum anjo bom, com certeza. VELHO. Com certeza! (Pausa.) Você sabe como as pessoas daqui são supersticiosas. Quando cheguei ao rio ouvi o seguinte: um fazendeiro disse que seu cavalo se assustara com “ele”; um outro disse que os cachorros ficaram tão bravos, que teve de os amarrar. O balseiro jurou que seu barco bebia menos água quando “ele” chegava. Superstição, mas... MÃE. Mas o quê? VELHO. Era só uma gralha que havia voado na janela, embora estivesse fechada. Uma ilusão, talvez. MÃE. Talvez. Mas por que uma pessoa frequentemente vê coisas assim na hora certa? VELHO. A presença desse homem é intolerável. Quando ele me olha me falta o ar. MÃE. Temos que nos livrar dele. Estou certa de que ele não vai querer ficar aqui por longo tempo. VELHO. Não. Ele não vai querer envelhecer aqui. (Pausa.) Ouça, recebi uma carta ontem à noite prevenindo-me sobre ele. Entre outras coisas ele está sendo procurado pela Justiça. MÃE. Pela Justiça?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

VELHO. Sim. Questões de dinheiro. Mas, lembre-se, as leis da hospitalidade protegem mendigos e inimigos. Que ele fique por alguns dias, até ter descansado dessa jornada assustadora. Você vai ver como a Providência colocou as mãos sobre ele, como sua alma está sendo triturada no moinho e ficando pronta para a peneira... MÃE. Senti um chamado para ser uma ferramenta nas mãos da Providência. VELHO. Não confunda isso com seu desejo de vingança. MÃE. Vou tentar não fazê-lo, se puder. VELHO. Bom, boa noite. MÃE. Você acha que Ingeborg leu o último livro dele? VELHO. Não é provável. Se o tivesse lido, nunca se teria casado com um homem que tivesse aquelas opiniões. MÃE. Não, ela não o leu. Mas agora deve lê-lo..

CENA VIII

269

[Um quarto simples, agradavelmente mobiliado na casa do guarda florestal. Paredes em vermelho, cortinas de musselina rosa claro. Nas pequenas janelas de treliça há flores. À direita, uma escrivaninha e uma estante de livros. À esquerda, um sofá embaixo de cortinas na forma de um baldaquim. Mesas e cadeiras no estilo alemão antigo. No fundo, uma porta. Do lado de fora podem-se ver o campo e a casa dos pobres, um edifício escuro, desagradável, com janelas escuras, sem cortinas. Luz do sol forte. A DAMA está sentada no sofá, crochetando.] MÃE (De pé, com um livro encadernado de tecido rosa na mão.) Você não vai ler o livro de seu marido? DAMA. Não esse. Eu prometi não ler. MÃE. Você não quer conhecer o homem a quem confiou seu destino? DAMA. E para que serviria? Estamos todos certos com nossas razões. MÃE. Você não faz grandes exigências da vida? DAMA. Por que deveria? Nunca seriam cumpridas. MÃE. Eu não sei se você nasceu cheia de sabedoria do mundo ou de loucura. DAMA. Nem eu mesma sei. MÃE. Se o sol brilha e você tem o que comer, já está satisfeita.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

O QUARTO ROSA

August Strindberg

DAMA. Sim. E, quando acontece assim, aproveito muito bem. MÃE. Mudando de assunto: você sabia que seu marido estava sendo processado pela Justiça por causa das dívidas dele? DAMA. Sim. Isso acontece a todos os escritores. MÃE. Ele é um burro ou um tratante? DAMA. Nenhum dos dois. Ele não é um homem comum; e é uma pena que não possa dizer a ele nada que ele já não saiba. É por isso que não nos falamos muito; mas ele é feliz por eu estar perto dele e eu também sou por ficar perto dele. MÃE. Você navegando em águas calmas? Não deve estar longe dos canais de irrigação! Mas você não acha que teria mais o que conversar se tivesse lido o que ele escreveu? DAMA. Talvez. Você podia me passar o livro, se quiser.

270

DAMA. (escondendo o livro na bolsa) Ele está vindo aí. Se falar com ele, pode ser que ele perceba de longe.

Tradução

MÃE. Pegue-o e o esconda. Seria uma bela surpresa se pudesse citar alguma coisa dessa obra-prima.

MÃE. Se ele desconfiasse o quanto faz as pessoas sofrerem – de longe. (Sai pela esquerda. A DAMA, sozinha por um instante, olha para o livro e parece desanimada. Esconde-o na bolsa.) ESTRANHO. (entrando) Sua mãe estava aqui? Estavam falando de mim, claro. Posso ouvir as palavras rabugentas dela. Elas chicoteiam o ar e escurecem a luz do sol. Ainda posso vislumbrar a impressão do corpo dela na atmosfera da sala, e ainda sinto o odor de serpente morta que deixou. DAMA. Você está irritadiço hoje. ESTRANHO. Terrivelmente. Algum maluco afinou meus nervos fora do tom, e está tocando neles com um arco de crinas de cavalo até meus dentes rangerem... Você não sabe o que é isso! Há alguém aqui que é mais forte que eu! Alguém com uma lanterna me iluminando o rosto por onde quer que eu ande. Costumam praticar magia negra neste lugar? DAMA. Não vire as costas para a luz do sol. Olhe para essa paisagem bonita, vai se sentir mais calmo. ESTRANHO. Não suporto esse asilo de indigentes. Parece que foi construído ali só pra me aporrinhar. E uma mulher enlouquecida sempre fica ali convidando para entrar. DAMA. Acha que tratam você mal aqui? ESTRANHO. De certo modo não. Alimentam-me com guloseimas, como se eu tivesse

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

que engordar para ser levado ao matadouro. Mas não consigo comer porque o fazem com má vontade, e sinto os raios gelados de seu ódio. Parece-me que sopra um vento gelado por toda parte, embora tudo esteja parado e quente. E fico ouvindo aquele moinho amaldiçoado... DAMA. Ele não está moendo agora. ESTRANHO. Sim. Moendo... moendo. DAMA. Ouça. Não há ódio nenhum aqui. Piedade, no pior dos casos. ESTRANHO. Outra coisa... Por que as pessoas que encontramos fazem o sinal da cruz? DAMA. Apenas porque estão acostumadas a rezar em silêncio. (Pausa.) Você recebeu uma carta desagradável nesta manhã?

DAMA. Por quê? ESTRANHO. Por quê? Por que uma pessoa que nasce ignorante neste mundo, desconhecendo tudo sobre leis, usos e costumes, inadvertidamente cai em erro? E por isso é punida. Por que alguém que cresceu numa juventude cheia de altíssima ambição que só o levou a praticar ações vis é abominado? Por quê, por quê? DAMA. (que secretamente estivera olhando para o livro: distraidamente) Deve haver uma razão, mesmo que não a conheçamos. ESTRANHO. Se for para humilhar alguém, esse é um método muito pobre. Só me torna muito mais arrogante. Eva! DAMA. Não me chame assim. ESTRANHO. (bruscamente) Por que não? DAMA. Não gosto desse nome. Você se sentiria assim também se eu o chamasse de César. ESTRANHO. Tem que voltar a esse assunto? DAMA. A que assunto? ESTRANHO. Você mencionou esse nome por alguma razão? DAMA. César? Não. Mas estou começando a descobrir coisas.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

271

Tradução

ESTRANHO. Sim. Do tipo que faz seu cabelo ficar em pé na sua cabeça, de um jeito que te dá vontade de amaldiçoar o destino. Devo uma certa soma de dinheiro. Mas não estou conseguindo pagar. Agora a Justiça está se voltando contra mim num processo movido... pelos guardiães de meus filhos, porque não paguei a pensão. Ninguém nunca foi colocado nessa posição desonrosa. Eu sou incensurável. Posso pagar do meu jeito, eu quero pagar, mas estou desprevenido no momento! Não por culpa minha, embora para minha vergonha! Não é da minha natureza agir assim. O diabo meteu a mão nessa história.

August Strindberg

ESTRANHO. Muito bem! Então posso honrosamente me desonrar por minhas próprias mãos. Eu sou César, o colegial, por cuja escapada seu marido, o lobisomem, foi punido. O destino se delicia construindo laços com a eternidade. Um esporte muito nobre esse! (A DAMA, incerta com relação ao que fazer, não responde.) Diga alguma coisa! DAMA. Não consigo. ESTRANHO. Diga que ele se tornou lobisomem porque, quando criança, perdeu a crença na justiça dos céus, devido ao fato de que, embora inocente, foi punido pelo malfeito de outra pessoa. Mas, se disser isso, eu vou dizer que sofri dez vezes mais em minha consciência, e que a crise espiritual que se seguiu deixou-me tão enfraquecido que nunca mais fiz aquilo de novo. DAMA. Não. Não foi isso. ESTRANHO. Então o que foi? Não me respeita mais? DAMA. Não é isso também.

Tradução

272

ESTRANHO. Então é me fazer sentir vergonha diante de você! E isso seria o fim de tudo entre nós. DAMA. Não! ESTRANHO. Eva. DAMA. Lá vem você com maus pensamentos. ESTRANHO. Você quebrou sua promessa: esteve lendo meu livro! DAMA. Sim, estive. ESTRANHO. Então fez muito mal. DAMA. Minha intenção era boa... ESTRANHO. Até mesmo os resultados das suas boas intenções são terríveis! Você me jogou para o ar com meu próprio petardo. Por que todas nossas más ações ficam amontoadas – tanto as bobagens infantis quanto as ações realmente perversas? É muito fácil colher o mal onde ele foi semeado. Mas eu nunca vi uma boa ação ser premiada. Nunca! É uma desgraça para Aquele que registra todos os pecados, os capitais quanto os veniais. Nenhum homem pode fazê-lo: os homens poderiam perdoar, mas os deuses... jamais.! DAMA. Não diga isso. Diga que você perdoaria. ESTRANHO. Não tenho a memória curta. Mas o que eu teria perdoado em você? DAMA. Mais do que posso dizer. ESTRANHO. Diga. Talvez depois fiquemos quites.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

DAMA. Eu e ele costumávamos ler a maldição do Deuteronômio contra você... porque você arruinou a vida dele. ESTRANHO. Que maldição é essa? DAMA. Do quinto livro de Moisés. Os padres a cantam no início dos jejuns. ESTRANHO. Não me lembro disso. Qual a importância dela – uma maldição a mais ou a menos? DAMA. Na minha família aqueles a quem amaldiçoamos não escapam. ESTRANHO. Não acredito nisso. Mas acredito sim que o mal emana desta casa. Que o mal da casa retroceda para ela mesma! É o que peço em oração! Agora, segundo o costume, seria meu dever me suicidar, mas não posso, porque tenho outras coisas para fazer. Veja, nem posso morrer, e assim perdi meu último tesouro – que, com razão, chamo de minha religião. Ouvi que o homem pode engalfinhar-se com Deus, e com sucesso; mas nem mesmo Jó poderia lutar contra Satã. (Pausa.) Vamos falar de você...

ESTRANHO. Então você comeu da árvore do conhecimento? Adeus. DAMA. Está indo embora? ESTRANHO. Não posso ficar aqui DAMA. Não vá embora. ESTRANHO. Eu devo ir. Preciso esclarecer tudo. Vou me despedir dos velhos agora. Volto logo. Não vou me demorar. (Sai.) DAMA. (permanece imóvel, depois vai para a porta e olha para fora. Ajoelha-se.) Não! Ele não vai voltar! Cortina.

CENA IX CONVENTO [O refeitório de um convento antigo, semelhando uma igreja romana simples caiada de

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

273

Tradução

DAMA. Agora não. Mais tarde talvez. Desde que conheci aquele seu livro terrível – só dei uma olhadela nele, só li algumas linhas aqui e ali - senti como se tivesse comido da árvore do conhecimento. Meus olhos se abriram e eu sei o que são o bem e o mal. E agora vejo o mal que há em você e porque sou chamada de Eva. Ela era mãe e trouxe pecado para o mundo; e foi outra mãe que trouxe expiação. A maldição da humanidade foi dada pela primeira, a benção pela segunda. Em mim você não destruirá meu sexo. Talvez eu tenha uma missão diferente na sua vida. Ainda vamos ver!

August Strindberg

branco. Há manchas escuras nas paredes, parecidas a figuras estranhas. Uma mesa longa com tigelas; ao final dela uma cadeira alta para o Leitor. No fundo uma porta que leva para a capela. Velas acesas sobre as mesas. Na parede, à esquerda, uma pintura representando o Arcanjo Miguel matando o Demônio.] [O ESTRANHO está sentado à esquerda, a uma mesa do refeitório, vestindo a roupa branca de paciente, com uma tigela diante dele. À mesa, do lado direito, estão sentados os carpidores vestidos de marrom da cena I. Uma mulher chorosa com duas crianças. Uma mulher que parece a DAMA, mas que não é ela e que está crochetando em vez de comer. Um homem muito parecido com o Médico, um outro com o Louco. Outros como o Pai, a Mãe, o Irmão, Pais do “Filho Pródigo”. Todos estão vestidos de branco, mas sobre suas roupas brancas há outras de crepe colorido. Suas faces são como de cera e cadavéricas, toda sua aparência é exagerada, seus gestos estranhos. Quando a Cortina se abre estão terminando um Pai-nosso, exceto o ESTRANHO.] ESTRANHO. (erguendo-se e se dirigindo à ABADESSA, que está em pé servindo à mesa.) Mãe, posso lhe falar?

Tradução

274

ABADESSA. (num hábito branco e preto de Santo Agostinho) Sim, meu filho. (Dirige-se um pouco para trás.) ESTRANHO. Em primeiro lugar, onde estou? ABADESSA. Num convento chamado São Salvador. Foi encontrado nas colinas, acima da ravina, com uma cruz que você arrancou de um calvário e com a qual ameaçava alguém que estava nas nuvens. E na verdade você achava que o via mesmo. Estava febril e havia perdido uma galocha. Foi recolhido, sem ferimentos, perto de um rochedo, mas delirando. Foi trazido ao hospital e colocado numa cama. Desde então, tem falado selvagemente, e reclamado de uma dor nos quadris, mas os enfermeiros não encontraram nenhum problema. ESTRANHO. Que coisas eu dizia? ABADESSA. Você tinha os sonhos febris usuais. Censurava a você mesmo por toda série de coisas, e achava que podia ver suas vítimas, como as chamava. ESTRANHO. E depois? ABADESSA. Seus pensamentos logo se voltavam para questões de dinheiro. Queria pagar você mesmo o hospital. Eu tentava acalmá-lo dizendo-lhe que não lhe seria solicitado nenhum pagamento, que tudo aqui é feito por caridade... ESTRANHO. Eu não quero caridade. ABADESSA. É mais abençoado dar do que receber, mas uma criatura de coração nobre pode aceitar e ser agradecida.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Eu não quero caridade. ABADESSA. Hm! ESTRANHO. Diga-me, por que nenhuma dessas pessoas se senta à mesma mesa comigo? Elas ficam indo... e vindo... ABADESSA. Parecem ter medo de você. ESTRANHO. Por quê? ABADESSA. Você parece tão ... ESTRANHO. Eu? Mas o que há com elas? São reais? ABADESSA. Se quer dizer se são de verdade, elas têm uma realidade terrível. Podem parecer estranhas para você, porque ainda está febril. Ou talvez haja uma outra razão. ESTRANHO. Parece que as conheço, a todas elas! Eu as vejo como num espelho: elas agem como se estivessem comendo... Elas estão representando alguma peça de teatro? Aquelas ali parecem meus pais, ou antes... (Pausa.) Até agora não me metiam medo, porque a vida foi inútil para mim... Mas agora estou começando a ficar assustado.

CONFESSOR. (vestido com o hábito preto e branco dos dominicanos) Irmã! ABADESSA. Fale com aquele paciente sentado ali à mesa. CONFESSOR. Vou falar logo em seguida. ESTRANHO. Permita-me uma pergunta primeiro. Já nos encontramos antes? CONFESSOR. Sim. Eu me sentei ao lado de sua cama, quando você estava delirando. A seu pedido, eu o ouvi em confissão. ESTRANHO. O quê? Em confissão? CONFESSOR. Sim. Mas não pude lhe dar absolvição porque parecia que você estava febril. ESTRANHO. Por quê? CONFESSOR. Não havia praticamente nenhum pecado ou vício que não pudesse declarar – coisas tão odiosas suficientes para fazê-lo viver em penitência antes de pedir absolvição. Agora você é você outra vez e posso lhe perguntar se existe alguma base para as acusações que fez contra si mesmo. (A ABADESSA sai) ESTRANHO. Você tem esse direito? CONFESSOR. Não. Na verdade, nenhum direito. (Pausa.) Mas você quer saber em com-

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

ABADESSA. Se não acha que são reais, vou chamar o Confessor para apresentar você. (Faz sinal para o CONFESSOR, que se aproxima.)

275

August Strindberg

Tradução

276

panhia de quem você está! São os melhores. Ali, por exemplo, está um louco, César, que perdeu o juízo ao ler as obras de um certo escritor cuja notoriedade é maior do que sua fama. Está ali também um mendigo, que não admite que é um mendigo porque aprendeu Latim e é livre. Depois, um médico, chamado de lobisomem, cuja história é bastante conhecida. E também um pai e uma mãe que quase morreram de desgosto com um filho que ergueu a mão para eles. Ele deve ser culpado de não visitar a tumba de seu pai e de profanar o túmulo de sua mãe. Há também sua irmã infeliz, a quem ele arrastou pela neve, como ele mesmo conta, com as melhores intenções. Mais adiante há uma mulher que foi abandonada com os dois filhos, ainda há uma outra fazendo seu crochê... São todos velhos conhecidos. Vá até lá e os cumprimente! (O ESTRANHO havia virado as costas para o grupo: agora ele se dirige para a mesa, pela esquerda, e se senta de costas para as pessoas. Ergue a cabeça, vê o quadro do Arcanjo Miguel e abaixa os olhos. O CONFESSOR fica atrás do ESTRANHO. Ouve-se um Réquiem católico vindo da capela. O CONFESSOR fala ao ESTRANHO em voz baixa enquanto a música continua.) Quantus tremor est futurus - Quando judex est venturus - Cuncta stricte discussurus, - Tuba mirum spargens sonum - Per sepulchra regionum - Coget omnes ante thronum. - Mors stupebit et natura, - Cum resurget creatura - Judicanti responsura - Liber scriptus proferetur - In quo totum continetur - Unde mundus judicetur. - Judex ergo cum sedebit - Quidquid latet apparebit - Nil inultum remanebit. (Vai até a escrivaninha, pela direita, e abre seu breviário. A música para.) Vamos continuar a leitura... “Mas se não prestardes atenção à voz do Senhor todas essas maldições hão de cair sobre vós. Malditos sereis na cidade, e malditos sereis no campo, malditos serão os que chegarem e malditos serão os que partirem”. TODOS. (em voz pouco elevada) Malditos! CONFESSOR. “O Senhor vos enviará vexame e reprovação em tudo o que fizerdes com vossas mãos até serdes todos destruídos e perecerdes rapidamente por causa da fraqueza de vossas ações e por onde quer que tenhais renunciado a mim.” TODOS. (em voz alta) Malditos! CONFESSOR. “O Senhor vos obrigará a serdes castigados diante de vossos inimigos: tereis apenas um caminho para chegar diante deles, e sete para deles fugir e sereis levados para todos os reinos da terra. E vossos cadáveres serão devorados por todas as aves do ar e pelas bestas da terra, e nenhum homem as espantará. O Senhor vos golpeará com as pragas do Egito, com chagas e comichão, com loucura e cegueira que vos farão andar às apalpadelas em plena luz do dia feito cegos nas trevas. Não fareis nenhum progresso em vossas vidas, e sereis espoliados e oprimidos, e ninguém vos salvará. Vós vos casareis com vossas esposas e um outro homem se deitará com elas: construireis uma casa, mas não morareis nela: plantareis um vinhedo, mas não colhereis as uvas que brotarem. Vossos filhos e vossas filhas serão entregues a outra gente e vossos olhos murcharão de saudade deles; e não haverá qualquer poder em vossas mãos. E não encontrareis qualquer alívio

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

sobre a terra, nem a sola de vossos pés encontrará repouso: o Senhor vos dará um coração trêmulo, e olhos deficientes e mente angustiada. E vossa vida ficará suspensa em dúvidas diante de vós, e sentireis medo dia e noite. De manhã direis “quisera Deus que ainda fosse noite”. E à noite direis “quisera Deus que já fosse de manhã”. E porque servistes não a vosso Senhor Deus quando vivíeis em segurança, vós o servireis na fome, e na sede, e na nudez e na necessidade e Ele vai colocar uma canga de ferro em vossos pescoços, até que vos tenha destruído!’ TODOS. Amém! (O CONFESSOR leu o texto acima em voz alta e rapidamente, sem se voltar para o ESTRANHO. Todos os presentes, exceto a DAMA, que está crochetando, ouviram com atenção e concordam com a maldição, embora pareçam não notar o ESTRANHO, que ficou atrás deles, mergulhado em si mesmo. O ESTRANHO agora se levanta como que para sair. O CONFESSOR vai até ele.) ESTRANHO. O que foi aquilo? CONFESSOR. O Livro do Deuteronômio. ESTRANHO. Claro. Mas me lembro de que há bênçãos nele, também. CONFESSOR. Sim, para os que guardam os mandamentos d’Ele.

CONFESSOR. Veja bem que ele seja o médico certo! ESTRANHO. Naturalmente! CONFESSOR. Que possa curar prazerosos “escrúpulos de consciência”! ABADESSA. Se você precisar de caridade novamente, agora já sabe onde encontrar. ESTRANHO. Não. Eu não. ABADESSA. (em voz baixa) Então vou lhe dizer. Num quarto “rosa”, perto de um regato murmurante. ESTRANHO. É bem verdade! Num quarto “rosa”. Espere, há quanto tempo estou aqui? ABADESSA. Faz três meses hoje.. ESTRANHO. Três meses! Estive dormindo? Ou onde foi que estive? (Olhando para fora da janela) É outono. As árvores estão nuas, as nuvens parecem geladas. Agora está vindo de volta para mim! Consegue ouvir um moinho girando? O som de uma trompa? O rumorejar de um rio? Uma floresta sussurrando e uma mulher se lamentando? Você tem razão. É preciso mesmo buscar a caridade. Adeus. (Sai.)

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

ESTRANHO. Hm... Não posso negar que, por um momento, me senti sacudido. As tentações, devemos resistir a elas, ou os avisos devem ser obedecidos? (Pausa.) De todo modo, estou certo de que agora estou febril. Tenho que ir a um médico de verdade.

277

August Strindberg

CONFESSOR. ( para a ABADESSA) Louco! Muito louco! Cortina.

CENA X O QUARTO “ROSA” [As cortinas foram fechadas. As janelas estão escancaradas para a escuridão exterior. A mobília foi coberta com panos marrons e empurrada para trás. As flores foram retiradas, e o grande fogão foi aceso. A MÃE está de pé passando a ferro cortinas brancas com uma única lamparina. Alguém bate à porta.] MÃE. Entre! ESTRANHO. (entrando) Onde está minha mulher? MÃE. De onde você vem? 278

MÃE. Qual delas você quer dizer?

Tradução

ESTRANHO. Do inferno, acho. Mas onde está minha mulher? ESTRANHO. Sua pergunta se justifica. Tudo se justifica, exceto eu. MÃE. Deve haver uma razão. Estou contente que tenha percebido isso. Onde você esteve? ESTRANHO. Num asilo de pobres, num asilo de loucos ou num hospital, não sei direito. Gostaria de pensar que tudo isso é um sonho febril. Estive doente: perdi a memória e não acredito que se tenham passado três meses. Mas onde está minha mulher? MÃE. Eu é que devia lhe perguntar isso. Quando você a abandonou, ela saiu – procurando por você. Se ela ficou cansada de procurar, não sei dizer. ESTRANHO. Alguma coisa está fora do lugar aqui. Onde está o Velho? MÃE. Onde não existe mais sofrimento. ESTRANHO. Você quer dizer que ele está morto? MÃE. Sim. Ele morreu. ESTRANHO. Você diz isso como se quisesse adicioná-lo às minhas vítimas. MÃE. Talvez estivesse certa em fazê-lo. ESTRANHO. Ele não parecia ser sensível: era capaz de esforços cansativos. MÃE. Não. Ele apenas odiava o que era do mal, em si mesmo e nos outros. ESTRANHO. Então estou errado nisso também! (Pausa.)

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MÃE. O que você quer aqui? ESTRANHO. Caridade! MÃE. Finalmente! Como era lá no hospital! Sente-se aí e me conte. ESTRANHO. (sentando-se) Não quero pensar nisso. Não quero nem saber que aquilo era um hospital. MÃE. Que estranho. Conte o que aconteceu depois que saiu de lá. ESTRANHO. Caí nas montanhas, feri meus quadris e perdi a consciência. Se falar comigo gentilmente poderá saber mais. MÃE. Eu o farei. ESTRANHO. Quando acordei, estava numa cama de ferro vermelha. Três homens puxavam uma corda que corria entre dois blocos. Toda vez que puxavam eu sentia que ficava meio metro mais alto.... MÃE. Eles estavam tracionando seus quadris.

MÃE. Não eram visões nada agradáveis. ESTRANHO. Não. Finalmente cheguei à conclusão... de que eu era um verdadeiro velhaco. MÃE. Por que se dar esse nome? ESTRANHO. Eu sei que você preferiria me ouvir dizer que sou um canalha. Mas poderia parecer que eu estivesse me elogiando. Isso implicaria uma certeza sobre mim que eu ainda não possuo. MÃE. Ainda está em dúvida? ESTRANHO. Em grande medida. Mas comecei a fazer uma vaga ideia. MÃE. Qual...? ESTRANHO. De que existem forças nas quais, até agora, eu não acredito. MÃE. Você já entendeu que nem você, nem qualquer outro homem, dirige seu próprio destino? ESTRANHO. Entendi. MÃE. Então você já trilhou uma boa parte do caminho.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

279

Tradução

ESTRANHO. Não havia pensado nisso. Então... fiquei deitado olhando minha vida passada se desenrolar diante de mim como um filme, através da minha infância, minha juventude... E quando o rolo terminou começou tudo de novo. Todo tempo eu ouvia um moinho girando... Ainda posso ouvi-lo. Sim, aqui também!

August Strindberg

ESTRANHO. Mas eu próprio estou mudado. Estou arruinado, pois perdi toda aptidão para escrever. E não consigo dormir à noite. MÃE. Não me diga! ESTRANHO. Essas coisas que chamam de pesadelos me paralisam. O pior de tudo no fim das contas: eu não ouso morrer, porque não tenho certeza de que minhas misérias vão terminar com o meu fim. MÃE. Oh! Não me diga! ESTRANHO. Pior ainda: eu me eduquei para ter aversão a mim mesmo de modo que pudesse escapar de mim mesmo, se eu soubesse como. Se eu fosse cristão, não poderia obedecer ao primeiro mandamento, amar meu próximo como a mim mesmo, pois eu teria que odiá-lo como a mim mesmo. É verdade que sou um velhaco. Sempre desconfiei disso, e porque nunca quis que a vida me fizesse de bobo, observei os “outros” cuidadosamente. Quando vi que eles não eram melhores que eu, me ressenti com a tentativa de eles me humilharem.

Tradução

280

MÃE. Você errou em pensar que isso fosse uma questão entre você e os outros. Você tem que tratar disso com Ele. ESTRANHO. Com quem? MÃE. O Ser Invisível, que guia seu destino. ESTRANHO. Gostaria de vê-Lo. MÃE. Isso seria sua morte. ESTRANHO. Oh não! MÃE. Onde você consegue esse espírito diabólico de rebelião? Se você não quer inclinar seu pescoço com o resto, será quebrado como uma vareta de bambu. ESTRANHO. Não sei de onde vem essa idiotice medonha. É verdade que uma conta não paga me faz tremer, mas, se eu tivesse que escalar o monte Sinai e enfrentar o Ser Eterno, eu não cobriria meu rosto. MÃE. Jesus e Maria! Não diga essas coisas. Você vai me fazer pensar que é um filho do Diabo. ESTRANHO. Parece que essa é a opinião geral. Mas eu ouvi que aquele que serve o Ser do Mal consegue honrarias, benesses e ouro como recompensa. Especialmente ouro. Você me acha suspeito? MÃE. Você trouxe uma maldição para minha casa. ESTRANHO. Então eu vou embora.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MÃE. E sair assim à noite. Ir onde? ESTRANHO. Procurar a única pessoa a quem odeio. MÃE. Tem certeza de que ela o vai receber? ESTRANHO. Absoluta. MÃE. Eu não tenho. ESTRANHO. Eu tenho. MÃE. Então devo dissipar suas dúvidas. ESTRANHO. Você não vai conseguir. MÃE. Sim, eu consigo. ESTRANHO. Isso é mentira. MÃE. Já não estamos mais nos falando educadamente. Temos que parar. Você consegue dormir no sótão? ESTRANHO. Não consigo dormir em lugar nenhum.

281

ESTRANHO. Você tem certeza de que não há ratos no sótão? Não tenho medo de fantasmas, mas os ratos não são nada agradáveis. MÃE. Agrada-me saber que não tem medo de fantasmas, pois ninguém dormiu uma noite inteira lá... seja qual tivesse sido a causa. ESTRANHO. (após um momento de hesitação) Nunca encontrei uma mulher mais perversa que você. A razão é que você tem religião. MÃE. Boa noite! Cortina.

CENA XI NA COZINHA [Está escuro, mas a lua do lado de fora lança sombras móveis das plantas da janela no chão da cozinha, conforme o movimento das nuvens de tempestade que passam. No canto, sob o crucifixo, onde o VELHO costumava se sentar, um corno de caça, uma arma e uma bolsa de caça pendurados na parede. Sobre a mesa, uma ave de rapina empalhada. Quando as janelas se abrem as cortinas balançam ao vento; e as toalhas de mesa, guardanapos e toalhas, que estão dependurados numa cordinha ao longo da lareira, se movem com o vento, cujo sussurro pode ser ouvido. Ao longe, o ruído de uma cachoeira. Ouvem-se pancadas na porta de madeira.]

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

MÃE. De todo modo, gostaria de lhe desejar uma boa noite, acredite você ou não na minha sinceridade.

August Strindberg

ESTRANHO. (entrando, meio vestido, uma vela na mão) Tem alguém aí? Não. (Volta com um candelabro, que faz as sombras ficarem menos marcadas.) O que está se movendo aí no chão? Tem alguém aí? (Vai para a mesa, vê a ave empalhada e fica parado com a luz.) Meu Deus! MÃE. (chegando com uma lamparina) Ainda de pé? ESTRANHO. Não conseguia dormir. MÃE. (gentilmente) Por que não, meu filho? ESTRANHO. Eu ouvi alguém acima de mim. MÃE. Impossível. Não há nada acima do sótão. ESTRANHO. Eu sei, por isso fiquei tão alarmado! O que se move no chão como serpentes? MÃE. Os raios da lua.

Tradução

282

ESTRANHO. Sim. Os raios da lua. Aí tem uma ave empalhada. E aquilo ali são toalhas. Tudo muito natural, é isso que me deixa alarmado. Quem bateu à porta no meio da noite? Havia alguém fechado do lado de fora? MÃE. Era um cavalo no estábulo. ESTRANHO. Por que ele fazia aquele barulho? MÃE. Alguns animais têm pesadelos. ESTRANHO. O que são pesadelos? MÃE. Quem sabe? ESTRANHO. Posso me sentar? MÃE. Eu quero falar seriamente com você. Fui rancorosa ontem à noite; precisa me perdoar. Foi só porque preciso de religião. Para poupar você, vou lhe contar o que os pesadelos são para mim. Minha má consciência! Se eu punisse a mim mesma ou se outra pessoa me punisse, eu não sei. Não me permito perguntar. (Pausa.) Agora me diga o que você viu no seu quarto. ESTRANHO. É difícil dizer. Nada. Quando entrei, senti como se alguém estivesse ali. Então fui para a cama. Mas alguém começou a caminhar de um lado para outro com um passo pesado. Você acredita em fantasmas? MÃE. Minha religião não me permitiria isso. Mas acredito que nosso senso de certo e errado vai encontrar um modo de nos punir. ESTRANHO. Logo senti um vento frio no meu peito – que chegou até meu coração e me fez ficar de pé. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MÃE. E depois? ESTRANHO. Fiquei parado e vi todo o filme da minha vida se desenrolar diante de mim. Eu vi tudo - e isso foi o pior de tudo. MÃE. Eu sei. Já passei por isso. Não existe nome para essa doença, e apenas uma forma de cura. ESTRANHO. E qual é? MÃE. Você sabe o que as crianças fazem quando fazem alguma coisa errada? ESTRANHO. O quê? MÃE. Primeiro pedem perdão! ESTRANHO. E depois? MÃE. Tentam se emendar. ESTRANHO. Não seria suficiente sofrer de acordo com seus deméritos? MÃE. Não. Isso seria uma vingança.

283

MÃE. Você poderia consertar uma vida que você destruiu? Desfazer uma má ação? ESTRANHO. Acho que não mesmo. Mas fui forçado a isso! Forçado porque ninguém me deu o direito de escolha. Maldito seja Aquele que me forçou! (Pondo a mão sobre o coração.) Ah! Ele está aqui, neste cômodo. Está arrancando meu coração! MÃE. Então incline sua cabeça. ESTRANHO. Não consigo. MÃE. Fique de joelhos. ESTRANHO. Não vou me ajoelhar. MÃE. Cristo, tenha piedade! O Senhor tenha piedade de você! De joelhos diante d’Aquele que foi crucificado! Só Ele pode limpar a sujeira que foi feita. ESTRANHO. Não diante d’Ele! Se eu fui forçado, vou me retratar... mais tarde. MÃE. De joelhos, meu filho! ESTRANHO. Não consigo dobrar o joelho. Não posso. Ajude-me, Deus Eterno. (Pausa.) MÃE. (após uma prece apressada) Você se sente melhor? ESTRANHO. Sim... Não era a morte. Era uma aniquilação!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

ESTRANHO. Então o que se deve fazer?

August Strindberg

MÃE. A aniquilação do Divino, a que chamamos de morte espiritual. ESTRANHO. Estou vendo. (Sem ironia.) Começo a compreender. MÃE. Meu filho! Você saiu de Jerusalém e está agora na estrada para Damasco. Volte para trás pelo mesmo caminho. Erga uma cruz em cada estação de parada, e pare na sétima. Para você não existe a décima-quarta, como para Ele. ESTRANHO. Você fala por enigmas. MÃE. Então siga em frente seu caminho. Procure todos aqueles a quem tem alguma coisa a dizer. Primeiro, sua mulher. ESTRANHO. Onde ela está? MÃE. Você tem que encontrá-la. Deve encontrá-la. No seu caminho não se esqueça de chamar aquele a quem chama de lobisomem. ESTRANHO. Nunca! MÃE. Você disse isso, quando chegou aqui. Como você sabe, eu esperei sua chegada.

Tradução

284

ESTRANHO. Por quê? MÃE. Por razão nenhuma. ESTRANHO. Justamente como vi esta cozinha... num transe... MÃE. Eis porque agora lamento tentar separar você e Ingeborg. Vai e procura por ela. Se a encontrar, muito que bem. Se não, talvez isso já estivesse predeterminado. (Pausa.) Já está amanhecendo. A manhã já veio e a noite passou. ESTRANHO. Que noite! MÃE. Você vai se lembrar dela. ESTRANHO. Não de toda ela... só alguma coisa. MÃE. (olhando para fora da janela, como se para si mesma) Amável estrela da manhã, quão longe do céu você foi cair! ESTRANHO. (após uma pausa) Você notou que, antes de o sol se levantar, um sentimento de terror toma conta da humanidade? Somos filhos da escuridão, nós que trememos diante da luz? MÃE. Você nunca vai parar de se questionar? ESTRANHO. Nunca. Porque eu anseio pela luz. MÃE. Vai então, e procura. E que a paz esteja com você!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

CENA XII NA RAVINA [A mesma paisagem de antes, mas com cores de outono. As árvores perderam suas folhas. O trabalho continua na oficina do ferreiro e no moinho. O FERREIRO está em pé no umbral da porta, a esposa do MOLEIRO, à direita. A DAMA veste uma jaqueta com um chapéu de couro com verniz; mas está de luto. O ESTRANHO está vestido à moda alpina da Bavária: jaqueta curta de material grosseiro, calção, botas pesadas e bordão de alpinista, chapéu verde com pena de galo silvestre. Por cima disso veste uma capa marrom com uma pelerine e capuz.] DAMA. (entrando, desalentada) Passou por aqui um homem com uma capa longa e chapéu verde? (O FERREIRO e a ESPOSA DO MOLEIRO acenam negativamente com a cabeça.) Alguém poderia me hospedar por esta noite? (O FERREIRO E A ESPOSA DO MOLEIRO acenam novamente a cabeça; para o FERREIRO.) Posso ficar um momento aqui na soleira da casa para me aquecer um pouco? (O FERREIRO a empurra para longe.) Deus os recompense segundo seus méritos! (Sai. Reaparece na pinguela, e sai outra vez.)

ECO. (imitando sua voz à distância) Caridade. (O FERREIRO e a ESPOSA DO MOLEIRO riem alto e por tão longo tempo, que, longamente, o ECO repete.) ESTRANHO. Bom Deus! Olho por olho – dente por dente. Isso ajuda a iluminar minha consciência! (Entra na ravina.)

CENA XIII NA ESTRADA [A mesma paisagem de antes, mas no outono. O MENDIGO está sentado no lado de fora de uma capela com um galho de laranja e uma gaiola de pássaros, dentro da qual há um estorninho. O ESTRANHO entra vestindo as mesmas roupas da cena precedente.] ESTRANHO. Mendigo! Você viu uma senhora com casaco e saia passar por aqui? MENDIGO. Já vi quinhentas. Mas, seriamente, queria lhe pedir para não me chamar de mendigo agora. Eu arranjei trabalho! ESTRANHO. Oh! Esse é você! MENDIGO. Ille ego qui quondam.... ESTRANHO. Que tipo de trabalho você arranjou?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

285

Tradução

ESTRANHO. (entrando) Uma mulher com saia e casaco cruzou o riacho? (O FERREIRO e a ESPOSA DO MOLEIRO sacodem a cabeça.) Você me daria um pedaço de pão? Eu pago. (A ESPOSA DO MOLEIRO recusa o dinheiro.) Não quero caridade!

August Strindberg

MENDIGO. Eu tenho um estorninho que assobia e canta. ESTRANHO. Você quer dizer que… ele faz seu trabalho? MENDIGO. Sim. Sou meu próprio patrão agora. ESTRANHO. Você caça passarinhos? MENDIGO. Não. O galho de laranja é só para manter as aparências. ESTRANHO. Então você ainda faz as mesmas coisas? MENDIGO. O que mais poderia fazer? O que existe em nós é só puro... contrassenso. ESTRANHO. É essa a conclusão final de sua filosofia de vida? MENDIGO. Minha metafísica completa. Essa visão pode estar fora de moda, mas... ESTRANHO. Você poderia falar sério por um momento? Conte-me sobre seu passado.

Tradução

286

MENDIGO. Por que puxar o fio dessa meada? Melhor deixá-la enrolada. Larga disso. Você acha que eu estou sempre feliz? Só quando encontro você: você é tão detestavelmente engraçado! ESTRANHO. Como você consegue rir com uma vida tão naufragada atrás de você? MENDIGO. Agora você está se tornando pessoal demais! (Pausa.) Se você não consegue rir da adversidade, mesmo que seja a de outros, você está mendigando a própria vida. Ouve! Se você seguir esse rastro de carro, vai chegar, no fim, ao oceano, e então o caminho vai terminar. Se você se sentar e descansar, vai começar a ter outra visão das coisas. Aqui existem muitos acidentes, temas religiosos, memórias desagradáveis que embaraçam o pensamento quando ele voa para o quarto “rosa”. Apenas siga o caminho! Se nele houver lama aqui e ali, abra suas asas e flutue. E por falar em flutuar, ouvi certa vez um pássaro que cantava sobre Polícrates e seu anel; ele se tornara possuidor de todas as maravilhas deste mundo, mas não sabia o que fazer com elas. Então enviou marés para o leste e o oeste do grande Nada que ele ajudara a formar do universo vazio. Eu não afirmaria que você era esse homem, a menos que acreditasse nisso firmemente e então poderia até jurar. Uma vez lhe perguntei se você sabia quem eu era, mas você disse que isso não lhe interessava. Em troca, eu lhe ofereci minha amizade, mas você a recusou grosseiramente. Entretanto, não sendo eu insensível ou ressentido, vou lhe dar um conselho para seu caminho. Siga a trilha! ESTRANHO. (esquivando-se dele) Você não me engane. MENDIGO. Você não acredita em nada, só no mal. Eis porque você não consegue nada de bom, só o que é ruim. Tente acreditar no que é bom. Tente! ESTRANHO. Vou tentar. Mas se eu for enganado, tenho o direito de...

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MENDIGO. Você não tem o direito de fazer isso. ESTRANHO. (como que para si mesmo) Quem é que lê meus pensamentos secretos, vira minha alma do avesso e me persegue? Por que você me persegue? MENDIGO. Saulo! Saulo! Por que você me persegue? (O ESTRANHO sai com uma gesticulação de horror. Acordes da Marcha Fúnebre são ouvidos novamente. A DAMA entra.) DAMA. Você viu passar por aqui um homem vestindo uma capa longa com um chapéu verde? MENDIGO. Havia um pobre diabo aqui, que saiu cambaleando... DAMA. O homem que estou procurando não é manco. MENDIGO. Nem aquele era. Parece que tinha machucado os quadris, e isso o fazia caminhar com desconforto. Não sou mal-intencionado. Olhe aqui no barro. DAMA. Onde? MENDIGO. (apontando) Ali! Naquele sulco. Nele você pode ver a impressão de um rastro de uma bota, fortemente plantado... MENDIGO. Siga o rastro! DAMA. (segurando a mão dele e a beijando) Obrigada, meu amigo. (Sai.)

CENA XIV NA PRAIA [A mesma paisagem de antes, mas agora é inverno. O mar é azul escuro e no horizonte grandes nuvens formam o desenho de cabeças enormes. À distância, três mastros nus de um barco naufragado, que se parecem a três cruzes brancas. A mesa e o banco ainda estão sob a árvore, mas as cadeiras foram removidas. Há neve sobre o chão. A intervalos ouve-se o sino de uma boia. O ESTRANHO entra pela esquerda, para um momento e olha para o mar, depois vai para a direita, atrás da cabana. A DAMA entra pela esquerda, e parece estar seguindo os rastros do ESTRANHO na neve; sai pela direita, na frente da cabana. O ESTRANHO retorna, pela direita, nota as pegadas da DAMA, para, e olha para trás, pela direita. A DAMA retorna, atira-se nos braços dele, mas recua.] DAMA. Você me empurrou para longe. ESTRANHO. Não. Parece que existe alguém entre nós dois. DAMA. E existe mesmo! (Pausa.) Que encontro! ESTRANHO. Sim. É inverno, como vê.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

DAMA. (olhando para o rastro) É ele! Seu passo pesado... Será que ainda o alcanço?

287

August Strindberg

DAMA. Posso sentir o frio que vem de você. ESTRANHO. Eu me congelei nas montanhas. DAMA. Você acha que a primavera vai voltar algum dia? ESTRANHO. Não para nós! Fomos expulsos do jardim e devemos vagar por pedras e espinhos. E quando nossas mãos e nossos pés estiverem machucados teremos que esfregar sal nas feridas... um do outro. E então o moinho vai começar a girar. Ele nunca vai parar, porque sempre haverá água. DAMA. Não há dúvida de que o que diz é verdade. ESTRANHO. Mas nunca vou admitir o inevitável. Mesmo que nos dilaceremos um ao outro não vou me entregar em sacrifício aos deuses. Declararei que a culpa foi minha, que fui eu que ensinei você a quebrar suas correntes. Eu que tentei você! Então você pode colocar a culpa em mim: pelo que fiz e pelo que aconteceu depois. DAMA. Você não vai suportar esse peso.

Tradução

288

ESTRANHO. Sim, eu vou. Há momentos em que sinto como se eu carregasse todo o pecado e todo o sofrimento, toda a imundície e toda a vergonha do mundo todo. Há momentos em que acredito que estamos condenados ao pecado e a praticar más ações como uma punição! (Pausa.) Há não muito tempo caí doente de febre, e no meio de tudo o que me aconteceu, sonhei que vi um crucifixo sem o Crucificado. E quando perguntei ao dominicano – porque havia um padre dominicano entre muitos outros – o que aquilo significava, ele disse: ‘Você não consentirá que Ele sofra por você. Sofra, então, você mesmo!’ É por isso que a humanidade cresceu tão consciente de seus próprios sofrimentos. DAMA. E por que as consciências ficam tão pesadas, se não existe ninguém para ajudar a carregar o fardo. ESTRANHO. Você também pensa assim? DAMA. Ainda não. Mas começo a achar que sim. ESTRANHO. Coloque sua mão na minha. A partir daqui vamos em frente juntos. DAMA. Vamos para onde? ESTRANHO. Volta! Pelo mesmo caminho em que viemos. Está cansada? DAMA. Agora não mais. ESTRANHO. Muitas vezes caí exausto. Mas encontrei um estranho mendigo – talvez você se lembre dele: todos achavam que ele era igual a mim. E ele me pediu, como experiência, para acreditar nas boas intenções dele. Eu acreditei – só a título de experiência - e...

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

DAMA. E? ESTRANHO. Foi tudo bem comigo. E desde então senti que fiquei forte para continuar meu caminho... DAMA. Vamos juntos! ESTRANHO. (virando-se para o mar) Sim. Está ficando escuro e as nuvens estão se juntando. DAMA. Não olhe para as nuvens. ESTRANHO. E aquilo lá longe, o que é? DAMA. Apenas um naufrágio. ESTRANHO. (murmurando) Três cruzes! Um novo Gólgota nos espera? DAMA. São cruzes brancas. Isso significa boa sorte. ESTRANHO. Tomara que sempre tenhamos boa sorte DAMA. Sim. Mas por enquanto não começou.

289

Tradução

ESTRANHO. Vamos!

CENA XV QUARTO NUM HOTEL [O quarto é como o de antes. A DAMA está sentada ao lado do ESTRANHO, fazendo crochê.] DAMA Diga alguma coisa. ESTRANHO. Não tenho nada agradável para dizer, desde que chegamos aqui. DAMA. Por que estava tão ansioso para entrar neste quarto terrível? ESTRANHO. Não sei. Era a última coisa que eu queria. Mas comecei a desejá-lo, a fim de sofrer. DAMA. E você está sofrendo? ESTRANHO. Sim. Não consigo mais ouvir música, ou olhar para qualquer coisa bonita. Durante o dia eu ouço o moinho e vejo aquela enorme paisagem agora se expandindo para abraçar o universo... E, à noite... DAMA. Por que você gritou durante seu sono? ESTRANHO. Eu estava sonhando. DAMA. Um sonho real?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

August Strindberg

ESTRANHO. Terrivelmente real. Mas veja que maldição pesa sobre mim. Sinto que devo descrevê-la, e para mais ninguém a não ser você. Entretanto não ouso lhe contar, Pois ele vai bater ruidosamente à porta do quarto que está trancado... DAMA. O passado! ESTRANHO. Sim. DAMA. (simplesmente) É uma loucura alguém manter um lugar assim fechado. ESTRANHO. Sim. (Pausa.) DAMA. Então agora me conte! ESTRANHO. Temo que tenha de contar. Sonhei que seu primeiro marido estava casado com minha primeira mulher. DAMA. Só você mesmo poderia ter sonhado semelhante coisa!

Tradução

290

ESTRANHO. Gostaria que fosse assim. (Pausa.) Vi como ele tratava mal meus filhos. (Levantando-se.) Pus minhas mãos na garganta dele... Não consigo continuar... Mas eu não vou conseguir descansar enquanto não souber a verdade. E, conhecendo-a, devo ir ter com ele na casa dele. DAMA. Chegou a isso? ESTRANHO. Vai ser assim por algum tempo. Nada pode evitar isso agora. Tenho que vê-lo. DAMA. Mas e se ele não o quiser receber? ESTRANHO. Vou lá como paciente, e lhe falar de minha doença... DAMA. (assustada) Não faça isso! ESTRANHO. Você acha que ele poderia ser tentado a me calar como se eu fosse um louco! Tenho que arriscar. Quero arriscar tudo – vida, bem-estar, liberdade. Preciso de um choque emocional, forte o suficiente para me trazer de novo para a luz do dia. Exijo essa tortura, que minha punição esteja em proporção justa com meu pecado, de modo que eu não seja forçado a me afogar sob o peso de minha culpa. Tão fundo quanto o buraco da serpente, e tão rápido quanto isso possa ser! DAMA. Posso ir com você? ESTRANHO. Não há necessidade. Meus sofrimentos serão suficientes para ambos. DAMA. Então vou chamar você de meu libertador. E a maldição que lancei sobre você vai se transformar numa bênção. Olha! É primavera de novo. ESTRANHO. Estou vendo. A flor do heléboro começou a se abrir.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

DAMA. Mas você não sente a primavera no ar? ESTRANHO. O frio dentro de mim não é tão grande. DAMA. Talvez o lobisomem vá curar você de uma vez. ESTRANHO. Veremos. Talvez no fim das contas ele não seja tão perigoso. DAMA. Ele não é tão cruel quanto você. ESTRANHO. Mas meu sonho... DAMA. Esperemos que seja apenas um sonho. Agora minha lã acabou, e, com ela, meu trabalho inútil. Sujou um pouco enquanto o fazia. ESTRANHO. Pode ser lavado. DAMA. Ou tingido. ESTRANHO. De cor de rosa. DAMA. Nunca! ESTRANHO. É como um rolo de manuscrito.

291

ESTRANHO. Na sujeira das estradas, com lágrimas e sangue. DAMA. Mas a história já está quase no fim. Vá e escreva o último capítulo. ESTRANHO. Depois vamos nos encontrar na sétima estação. Onde nos encontramos.

CENA XVI A CASA DO MÉDICO [O cenário é mais ou menos o de antes. Mas a pilha de madeira foi levada embora. Num banco perto da varanda instrumentos cirúrgicos, facas, serras, fórceps, etc. O MÉDICO os está limpando.] IRMÃ. (vindo da varanda) Um paciente quer ver você. MÉDICO. Você sabe quem é? IRMÃ. Não o vi. Esse é o cartão dele. MÉDICO. (lendo-o) Isso ultrapassa tudo! IRMÃ. É ele? MÉDICO. Sim. A coragem eu respeito, mas isso é cinismo. Um tipo de desafio. Deixe-o entrar.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

DAMA. Com nossa história escrita nele.

August Strindberg

IRMÃ. Está falando sério? MÉDICO. Absolutamente. Mas se você quiser falar com ele um pouco, nesse seu jeito direto... IRMÃ. Eu gostaria. MÉDICO. Muito bem. Faça o trabalho pesado e deixe o polimento final para mim. IRMÃ. Pode confiar em mim. Vou dizer a ele tudo o que sua gentileza lhe proíbe dizer. MÉDICO. Chega de gentileza! Apresse-se, ou vou ficar impaciente. Feche as portas. (Sua IRMÃ sai.) O que está fazendo nessa lata de lixo, César? (CÉSAR entra.) Ouça, César, se seu inimigo chegasse aqui e colocasse a cabeça no seu colo, o que você faria? CÉSAR. Eu a cortaria fora! MÉDICO. Não foi isso o que lhe ensinei. CÉSAR. Não; você disse atire carvões em brasa nele. Mas eu acho isso uma vergonha.

Tradução

292

MÉDICO. Também acho, é mais cruel e mais ardiloso. (Pausa.) Não seria melhor uma vingança? Ela anima a outra pessoa, tira o peso dos ombros dela. CÉSAR. Se você sabe mais sobre isso do que eu, por que me pergunta? MÉDICO. Quieto! Não estou falando com você. (Pausa.) Muito bem. Primeiro corte a cabeça dele fora, e depois... Veremos. CÉSAR. Tudo depende de como ele se comporta. MÉDICO. Sim. De como ele se comporta. Quieto. Fique aí do lado. (O ESTRANHO vem pela varanda: parece excitado, mas suas maneiras traem uma certa resignação. CÉSAR saiu.) ESTRANHO. Está surpreso por me ver aqui? MÉDICO. (seriamente) Já desisti de ficar surpreso. Mas vejo que preciso começar de novo. ESTRANHO. Você me permite que lhe fale? MÉDICO. Pessoas decentes podem discutir sobre qualquer coisa. Você está doente? ESTRANHO. (hesitante) Sim. MÉDICO. Por que, entre tantas pessoas possíveis, você veio me ver? ESTRANHO. Você deve adivinhar! MÉDICO. Eu me recuso a isso. (Pausa.) O que você está sentindo? ESTRANHO. (com incerteza) Insônia. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MÉDICO. Isso não é uma doença, é um sintoma. Você já foi alguma vez a um médico? ESTRANHO. Eu estive repousando doente numa... instituição. Eu estava febril. Tinha uma doença estranha. MÉDICO. O que havia de tão estranho nela? ESTRANHO. Posso lhe fazer uma pergunta? Pode alguém agir normalmente e, entretanto, ser delirante? MÉDICO. Se você estiver louco, só assim. (O ESTRANHO se levanta, mas depois se senta outra vez.) Como se chamava o hospital? ESTRANHO. São Salvador. MÉDICO. Não é hospital. ESTRANHO. Convento, então. MÉDICO. Não. É um asilo. (O ESTRANHO se levanta, o MÉDICO também, e chama.) Irmã! Feche a porta da frente. E o portão que dá para a estrada. (Ao ESTRANHO.) Não quer se sentar? Tenho que manter as portas trancadas. Há muitos vagabundos por aí. MÉDICO. Jamais alguém recebe uma resposta sincera a essa pergunta, como você sabe. E ninguém que sofra disso acredita no que lhe dizem. Então, minha opinião seria indiferente para você. (Pausa.) Mas se é sua alma, procure uma cura espiritual. ESTRANHO. Você poderia ocupar o lugar dele por um instante? MÉDICO. Não tenho vocação para isso. ESTRANHO. Mas... MÉDICO. (interrompendo) Ou tempo. Vai acontecer um casamento aqui! ESTRANHO. Eu sonhei com isso! MÉDICO. Talvez conforte sua mente saber que isso me consolou, como se diz. Talvez você fique satisfeito, seria natural... mas vejo que, ao contrário, isso faz você sofrer ainda mais. Deve haver uma razão. Por que você ficaria tão desapontado com meu casamento com uma viúva? ESTRANHO. Com dois filhos? MÉDICO. Dois filhos! Eis o problema! Uma suposição detestável digna de você. Se existisse inferno, você seria seu comandante, por conta de sua habilidade em encontrar meios de punição que excedem minhas invenções mais desenfreadas. E eu é que sou chamado de lobisomem!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

ESTRANHO. (acalma-se) Seja franco comigo: acha que estou... louco?

293

August Strindberg

ESTRANHO. Poderia ser que... MÉDICO. (interrompendo-o) Por um longo tempo eu odiei você, por causa de uma ação imperdoável que você atribuiu ao meu bom nome. Mas quando fiquei mais velho e mais sábio vi que, embora a punição não fosse justa, eu a merecia por coisas ainda não descobertas. Além disso, você era um menino com consciência suficiente para se punir a si mesmo. Então você não precisa se preocupar mais com essa coisa toda. É sobre isso que você queria falar? ESTRANHO. Sim. MÉDICO. Então vai ficar contente se eu deixar você ir? (O ESTRANHO parece querer fazer uma pergunta.) Você pensou que eu calaria a sua boca? Ou cortaria você em pedaços com esses instrumentos? Que eu mataria você? ‘Talvez esses pobres diabos tivessem que ser privados de sua miséria!’ (O ESTRANHO olha para seu relógio.) Você ainda pode pegar o barco. ESTRANHO. Você me dá sua mão?

Tradução

294

MÉDICO. Impossível. E de que valeria eu perdoar você, se lhe falta força para perdoar a si mesmo? (Pausa.) Algumas coisas só podem ser curadas se forem desfeitas. Então isso não pode mais acontecer. ESTRANHO. São Salvador... MÉDICO. Socorreu você. Você desafiou o destino e foi vencido. Não há vergonha alguma por ter perdido essa luta. Eu fiz a mesma coisa, mas, como você vê, eu me livrei de minha pilha de madeira. Não quero mais trovões em meu lar. E não vou mais brincar com o relâmpago. ESTRANHO. Uma estação mais, e conseguirei meu objetivo. MÉDICO. Você nunca vai atingir seu objetivo. Adeus! ESTRANHO. Adeus!

CENA XVII UMA ESQUINA DE RUA [Mesmo cenário da Cena I. O ESTRANHO está sentado no banco perto da árvore, desenhando no chão.] DAMA. (entrando) O que você está fazendo? ESTRANHO. Escrevendo na areia… ainda. DAMA. Está ouvindo alguém cantando? ESTRANHO. (Apontando para a igreja) Sim. E vem dali! Fui injusto com alguém invo-

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

luntariamente. DAMA. Acho que sua perambulação deve terminar, agora que voltamos aqui. ESTRANHO. Onde começamos... na esquina da rua, entre o hotel, a igreja e o correio. Por falar nisso... não há ali uma carta registrada para mim, que eu nunca recebi? DAMA. Sim. Porque só havia coisas desagradáveis nela. ESTRANHO. Ou assuntos de lei. (Batendo na testa.) Então é essa a explicação. DAMA. Pegue-a. Acreditando que o que ela contém é bom. ESTRANHO. (ironicamente) Ótimo! DAMA. Acredite nisso. Imagine isso! ESTRANHO. (indo para o correio) Vou tentar. (A DAMA aguarda na calçada. O ESTRANHO volta com uma carta.) DAMA. E então? ESTRANHO. Sinto vergonha de mim mesmo. É o dinheiro.

295

ESTRANHO. Não em vão! Parece despeito o que acontece aqui, mas não é. Fui injusto com o Invisível quando errei... DAMA. Chega! Nada de acusações. ESTRANHO. Não. Foi minha própria estupidez ou fraqueza. Não quis fazer de minha vida uma loucura. É isso o que fui! Foi os gnomos... DAMA. Que fizeram essas mudanças em você. Venha. Vamos embora. ESTRANHO. E nos esconder e às nossas misérias nas montanhas. DAMA. Sim. As montanhas nos esconderão! (Pausa.) Mas primeiro tenho que ir e acender uma vela para minha boa Santa Elizabeth. Venha. (O ESTRANHO sacode a cabeça.) Venha! ESTRANHO. Muito bem. Vou seguir esse caminho. Mas não posso ficar. DAMA. Como pode dizer isso? Venha. Lá vai ouvir novas canções. (O ESTRANHO a segue até a porta da igreja.) ESTRANHO. Assim seja! DAMA. Venha! F I M.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

DAMA. Veja só! Todo esse sofrimento, todas essas lágrimas… em vão!

August Strindberg

PARTE II PERSONAGENS: O ESTRANHO A DAMA A MÃE O PAI O CONFESSOR O MÉDICO CÉSAR Figuras menos importantes: CRIADA PROFESSOR

Tradução

296

PESSOA MALTRAPILHA OUTRA PESSOA MALTRAPILHA PRIMEIRA MULHER SEGUNDA MULHER GARÇONETE POLICIAL CENAS: ATO I

Do lado de fora da Casa

ATO II

CENA I

Laboratório

CENA II

O Quarto “Rosa”

CENA I

O Salão de Banquete

CENA II

Uma cela de prisão

CENA III

O Quarto “Rosa”

CENA I

O Salão de Banquete

CENA II

Numa ravina

CENA III

O Quarto “‘Rosa”

ATO III

ATO IV

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ATO I DO LADO DE FORA DA CASA [À direita, um terreno plano, onde está edificada uma casa. Abaixo dela uma estrada corre para trás, onde existe uma floresta de pinheiros que sobe por colinas ao longe. À esquerda há a sugestão de uma margem de rio. Mas ele não pode ser visto. A casa é branca e tem janelas com painéis e barras de ferro. Sobre a parede, vinhas e rosas trepadeiras. Na frente da casa, no terraço, um poço; no fundo do terraço, pés de abóbora, cujas grandes flores amarelas pendem do muro. Árvores frutíferas estão plantadas ao longo da estrada, e uma cruz-memorial erigida na sua margem lembra um acidente ali ocorrido. Degraus levam do terraço para a estrada, e há vasos de flores na balaustrada. Na frente dos degraus há um banco. A estrada alcança o primeiro plano vindo da direita, descrevendo uma curva atrás do terraço, que se projeta como um promontório, e depois se perde no fundo. Luz do sol forte à esquerda. A MÃE está sentada no banco. O DOMINICANO está parado diante dela.] DOMINICANO. [A mesma personagem do CONFESSOR e do MENDIGO.] Você me chamou para discutir um assunto de família importante para você. Diga-me o que é.

DOMINICANO. É salutar para a alma ser testada pelo Eterno, e o triunfo aguarda quem for inabalável. MÃE. É o que frequentemente me digo, mas existem limites para o sofrimento que alguém pode suportar... DOMINICANO. Não existem limites. Sofrer é entrar em estado de graça. MÃE. Primeiro meu marido me abandonou por outra mulher. DOMINICANO. Deixe-o lá com ela. Ele vai voltar de joelhos para você! MÃE. E, como você sabe, Padre, minha única filha se casou com um médico. Mas ela o abandonou e voltou para minha casa com um estranho, que me foi apresentado como seu novo marido. DOMINICANO. Isso não é fácil de compreender. O divórcio não é reconhecido pela nossa religião. MÃE. Não. Mas eles cruzaram a fronteira, para se casarem num país com leis diferentes das nossas. Ele é um católico à antiga e encontrou um padre que os casasse. DOMINICANO. Esse casamento não é verdadeiro, e não pode ser dissolvido porque nunca existiu. Mas pode ser anulado. Quem é seu genro agora?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

MÃE. Padre, a vida me tem tratado muito mal. Não sei o que fiz para ser tão malquista pela Providência.

297

August Strindberg

MÃE. De verdade, eu gostaria de saber! De uma coisa eu sei, e isso já é suficiente para encher minha taça de amargura. Ele se divorciou e sua esposa e seus filhos vivem em circunstâncias miseráveis. DOMINICANO. Um caso difícil. Mas havemos de encontrar uma maneira de acertar tudo. O que ele faz? MÃE. Ele é escritor, dizem que é famoso. DOMINICANO. Ateu, também, suponho? MÃE. Sim. Pelo menos costumava ser; mas desde seu segundo casamento não teve mais uma hora feliz. O destino, como ele diz, o pegou com uma mão de ferro e o transformou num mendigo maltrapilho. A má sorte lhe deu golpe atrás de golpe, de modo que senti pena dele no momento mesmo em que se foi daqui. Depois perambulou pelas florestas e, mais tarde, dormiu nos campos em que caiu, até ser encontrado por pessoas generosas e levado para um convento. Ficou lá doente por três meses, sem que soubéssemos onde estava.

Tradução

298

DOMINICANO. Espere! No ano passado um homem foi trazido para o Convento de São Salvador, onde sou Confessor, nas circunstâncias que você descreveu. Enquanto estava febril, abriu seu coração para mim, e quase não existia pecado de que não se culpasse. Mas, quando voltou a si novamente, disse não se lembrar de nada. Então para provar seu coração e suas rédeas, me servi dos poderes apostólicos secretos que nos são dados, e, como um teste, empreguei a maldição menor. Pois quando um crime foi cometido em segredo, a maldição do Deuteronômio é lida sobre o homem suspeito. Se ele for inocente, ele segue sua vida incólume. Mas, se for pego por ela, então, como Paulo relata, “ele é entregue para Satã para a destruição da carne, para que seu espírito seja salvo.” MÃE. Oh Deus! Tem que ser ele! DOMINICANO. Sim, é ele. Seu genro! Os caminhos da Providência são insondáveis. Ele foi severamente atingido pela maldição? MÃE. Sim. Na noite em que dormiu aqui, foi arrancado de seu sono por um poder inexplicável que, como me disse, converteu seu coração em gelo... DOMINICANO. Ele tinha visões assustadoras? MÃE. Sim. DOMINICANO. E era ele assolado por aqueles pensamentos terríveis, dos quais Jó diz “quando eu digo meu leito me confortará, então Tu me intimidas com sonhos e me aterrorizas com visões, de modo que minha alma escolhe a asfixia, e prefere a morte à vida”. Tudo está como devia ser. Isso abriu os olhos dele? MÃE. Sim. Mas apenas para se notar que sua visão estava cegada. Pois seus sofrimentos

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

cresceram tanto, que não conseguiu mais encontrar uma explicação natural para eles, e, como nenhum médico podia curá-lo, começou a ver que estava lutando contra poderes conscientes superiores. DOMINICANO. Poderes que significavam que estava doente, e eram o próprio mal. É o curso natural das coisas. E depois? MÃE. Ele procurou livros que lhe ensinassem que tais poderes do mal podiam ser combatidos. DOMINICANO. Oh! Então ele procurou pelo que estava escondido e deveria permanecer assim! Ele foi bem sucedido em exorcizar os espíritos que o estavam castigando? MÃE. Ele diz que não. E parece que ele consegue dormir de novo. DOMINICANO. Sim, e ele acredita no que diz. Entretanto, dado que não aceitou verdadeiramente o amor da verdade, Deus vai perturbá-lo com uma grande desilusão, de modo que ele vai acreditar no que é falso. MÃE. O erro é dele mesmo. Mas ele mudou minha filha: em outros tempos ela não era nem quente nem fria, mas agora está se tornando o próprio mal. MÃE. Ficam nisso metade do tempo, felizmente; na outra metade, ficam praguejando um contra o outro, como demônios. DOMINICANO. É assim que devem proceder. Praguejarem um contra o outro até que venham para a Cruz. MÃE. Se eles não se separarem outra vez. DOMINICANO. O quê? Já fizeram isso? MÃE. Um já deixou o outro quatro vezes; mas sempre voltou atrás. Parece que estão acorrentados juntos. Seria uma boa coisa se o fossem, pois uma criança está a caminho. DOMINICANO. Deixe a criança vir. Filhos são presentes refrescantes para almas cansadas. MÃE. Espero que seja assim. Mas parece que esse será um pomo da discórdia. Eles ficam discutindo sobre o nome da criança; ficam brigando quanto ao batismo; e a mãe já está com ciúme dos filhos do marido com sua primeira esposa. Ele não consegue prometer que vai amar essa criança do mesmo modo que ama seus outros filhos, e a mãe insiste a todo momento que ele tem que!... Assim, suas misérias não têm fim. DOMINICANO. Oh sim, têm sim. Espere! Ele tem negócios com seus poderes superiores, de modo que temos algum controle sobre ele; e nossas preces serão mais poderosas que sua resistência. O efeito delas é tão extraordinário quanto misterioso. (O ESTRANHO

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

DOMINICANO. Como chegaram a isso?

299

August Strindberg

surge no terraço. Está com roupa de caça e veste um capacete tropical. Em sua mão tem um bordão de alpinista.) É ele quem chegou ali? MÃE. Sim. É meu atual genro. DOMINICANO. Singularmente igual ao primeiro! Mas veja como ele se comporta. Ainda não me viu, mas sente que estou aqui. (Faz o sinal da cruz no ar.) Veja como fica perturbado... Agora ficou rijo como um pingente de gelo. Veja! Vai gritar logo em seguida. ESTRANHO (que parou de repente, ficou rígido, e apertou o coração). Quem está aí embaixo? MÃE. Eu estou. ESTRANHO. Você não está sozinha. MÃE. Não. Há alguém aqui comigo.

Tradução

300

DOMINICANO. (fazendo o sinal da cruz) Agora ele não vai dizer nada, e vai cair como uma árvore abatida. (O ESTRANHO se encolhe e cai ao chão.) Vou embora agora. Seria demais para ele acordar e me ver aqui, mas vou voltar em seguida. Fique com ele, ele vai ficar em boas mãos! Adeus e a paz esteja com você. (Sai.) ESTRANHO. (levantando-se e descendo os degraus) Quem era? MÃE. Um viajante. Sente-se, você está tão pálido. ESTRANHO. Foi só uma tontura. MÃE. Vocês sempre inventam um nome novo para essa coisa, mas ele nunca significa nada bom. Sente-se aqui, no banco. ESTRANHO. Não; não gosto de me sentar aí. Sempre tem gente passando. MÃE. Eu me sento aqui desde que era criança, vendo a vida passar como o rio lá embaixo. Aqui, na estrada, vi os filhos das pessoas indo e vindo, brincando, azucrinando, pedindo, insultando e dançando. Adoro este banco e o rio lá embaixo, embora ele cause muitos estragos todo ano e leve parte da propriedade que herdamos. Na última primavera, todo o nosso feno se perdeu, de modo que precisamos vender nossos animais. A propriedade perdeu metade de seu valor nos últimos poucos anos, e quando o lago nas montanhas chegar a um novo nível e o brejo tiver sido tragado pelo rio, a água vai subir tanto que vai levar a casa embora. Faz dez anos que estamos brigando na justiça e perdemos todos os recursos; vamos ficar arruinados. É um destino inevitável. ESTRANHO. O destino não é inevitável. MÃE. Cuidado, se pensa em lutar contra ele. ESTRANHO. Já fiz isso.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MÃE. Lá vem você de novo! Não aprende nada com os castigos da Providência. ESTRANHO. Oh sim. Aprendi a odiar. Alguém consegue amar o que faz mal? MÃE. Tenho pouca instrução, como você sabe, mas li ontem numa enciclopédia que as Eumênides não são seres dispostos para o mal. ESTRANHO. É verdade, mas é mentira que sejam amigáveis. Só conheço uma fúria amigável. A minha própria! MÃE. Ingeborg para você é uma fúria? ESTRANHO. Sim. É, e como fúria é notável. Seu talento para me fazer sofrer supera as minhas invenções mais infernais; e, se eu escapar de suas mãos com vida, sairei do Fogo como ouro puro. MÃE. Você teve o que mereceu. Quis moldá-la conforme seus desejos, e conseguiu. ESTRANHO. Completamente. Mas onde está essa fúria? MÃE. Foi lá para baixo para a estrada há alguns minutos.

MÃE. Você ainda faz graça com isso? Espere! (A MÃE fica sozinha por um momento, até o ESTRANHO desaparecer. A DAMA então entra pela direita. Está usando um vestido de verão, e carregando um malote do correio; tem algumas cartas abertas na mão.) DAMA. Está sozinha, Mãe? MÃE. Acabei de ficar sozinha. DAMA. Aqui está o correio. Esta é de trabalho. MÃE. Quê? Você abre as cartas dele? DAMA. Todas elas, porque quero saber tudo o que diz respeito à minha vida. E quero eliminar tudo o que possa contribuir para o orgulho dele. Numa palavra, deixá-lo isolado, de modo que dependa de sua própria eletricidade e elimine o perigo de ser cortado em pedaços. MÃE. Como você ficou inteligente! DAMA. Sim. Se ele não é esperto a ponto de me confidenciar tudo, logo terei seu destino em minhas mãos. Agora, por favor, ele está fazendo experiências elétricas e julga que vai ser capaz de dominar a iluminação de modo a conseguir luz, calor energia. Bem. Vamos deixá-lo fazer o que deseja! Numa carta que chegou hoje, vi que ele está se correspondendo com alquimistas. MÃE. Ele está querendo fazer ouro? Ficou louco?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

301

Tradução

ESTRANHO. Lá para baixo? Então vou encontrar minha própria destruição. (vai para trás.)

August Strindberg

DAMA. Esse é o ponto importante. Se ele é um charlatão, o que faz não importa muito. MÃE. Você acredita nisso? DAMA. Acreditaria em qualquer mal que venha dele, ou qualquer bem, no mesmo dia. MÃE. Alguma outra novidade aí? DAMA. Os planos do marido de quem me divorciei para um segundo casamento deram errado; ficou melancólico, abandonou o trabalho e está perambulando pelas estradas. MÃE. Oh! Sempre foi meu genro preferido. Tem um coração muito bom por baixo daqueles modos grosseiros. DAMA. Sim. Só o chamei de lobisomem em seu papel de meu marido e senhor. Até onde eu sei, era um sujeito pacifico, a fim de encontrar consolo na vida e eu estava contente com isso. Mas agora me atormenta como uma má consciência. MÃE. Você tem consciência?

Tradução

302

DAMA. Não sabia direito, mas meus olhos foram abertos quando li as obras de meu marido, e agora sei a diferença entre o bem e o mal. MÃE. Mas ele proibiu que você as lesse, e nunca previu que você não o obedeceria. DAMA. Quem pode prever todos os resultados de qualquer ato? MÃE. Você tem mais notícias ruins aí no seu bolso, Pandora? DAMA. A pior de todas! Acredite, Mãe, a esposa de quem ele se divorciou vai se casar de novo. MÃE. Isso seria reanimador, para você e para ele. DAMA. Sabia que esse era o pior pesadelo dele? Que sua mulher se casasse de novo e seus filhos tivessem um padrasto? MÃE. Se ele não pudesse suportar isso sozinho, acho que seria um homem muito estranho. DAMA. Você acha que ele é muito sensível? Mas não foi ele mesmo que disse que, no fim do século dezenove, um homem do mundo educado nunca perderia o controle! MÃE. É fácil dizer isso; mas quando as coisas acontecem de verdade... DAMA. Entretanto havia um presente no fundo da caixa de Pandora que não era o infortúnio. Veja, Mãe! Um retrato do ilho dele de seis anos de idade. MÃE. (olhando para a fotografia) Uma criança adorável. DAMA. Faz bem a gente ver um retrato tão encantador e expressivo. Diga, você acha que meu filho vai ser tão bonito? O que me diz? Responda, ou vou ficar muito infeliz! Já amo D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

meu menino, mas sinto que o odiaria se não for tão adorável quanto o dele. Sim, estou enciumada. MÃE. Quando você chegou aqui da sua infeliz lua de mel, eu esperava que já tivesse passado pelo pior. Mas agora vejo que ela foi apenas uma prévia do que ainda estava por vir. DAMA. Estou pronta para qualquer coisa, e não acho que esse nó não possa ser desfeito. Ele tem que ser cortado! MÃE. Mas eliminando as cartas dele você só vai criar novas dificuldades para você. DAMA. Em dias passados, quando eu caminhava pela vida como um sonâmbulo, tudo parecia fácil para mim, mas comecei a perder essa certeza quando ele começou a despertar pensamentos em mim. (Ela guarda as cartas no saco postal.) Aí vem ele. Sh! MÃE. Mais uma coisa. Por que você permite que ele use aquele terno do seu primeiro marido? DAMA. Gosto de torturá-lo e humilhá-lo. Eu o convenci de que lhe servia e que pertencera a meu pai. Agora, quando o vejo metido nas coisas do lobisomem, sinto que tenho ambos em minhas garras. DAMA. Talvez fosse esse meu papel se eu representasse alguma coisa na vida desse homem! MÃE. Às vezes desejo que o rio inunde tudo e nos leve embora enquanto dormimos. Se eu tivesse que ficar aqui flutuando por cem anos talvez me lavasse do pecado com que esta casa foi construída. DAMA. Então é verdade que meu avô, o tabelião, se apropriou ilegalmente de uma propriedade que não era dele? Dizem que este lugar foi construído com a herança de viúvas e órfãos, com o dinheiro de pessoas arruinadas, com a propriedade de pessoas mortas e com o suborno de litigantes. MÃE. Não fale mais sobre isso. As lágrimas dos que ainda estão vivos dariam para formar um lago. E é esse lago, dizem, que está sendo drenado agora e vai fazer o rio nos mandar embora DAMA. Não se pode mover uma ação para interromper isso? Não existe justiça sobre a terra? MÃE. Não sobre a terra. Mas existe no céu. E o céu vai nos afogar, porque somos filhos de praticantes do mal. (Ela sobe os degraus.) DAMA. Mas já não bastam as lágrimas de cada um de nós? Temos de herdar as de outros? (O ESTRANHO volta.)

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

MÃE. Que o céu nos proteja! Como você se tornou vingativa!

303

August Strindberg

ESTRANHO. Você me chamou? DAMA. Não. Só tentei atrair você para mim, sem realmente querer você. ESTRANHO. Eu senti você se intrometer no meu destino de um modo que me deixou intranquilo. Logo você terá aprendido tudo o que sei. DAMA. E mais. ESTRANHO. Mas preciso lhe pedir para não colocar suas mãos ásperas sobre minha sorte. Eu sou Caim, está vendo, e estou sob o controle de poderes misteriosos, que não permitem que nenhum mortal interfira com seu ato de vingança. Vê esta marca na minha testa? (Ele tira o chapéu.) Ela significa: Vingança é meu lema, disse o Senhor. DAMA. Seu chapéu aperta...

Tradução

304

ESTRANHO. Não. Ele me irrita. E também o casaco. Se eu não quisesse agradar você, eu os atiraria no rio. Quando andei pela vizinhança, sabe que as pessoas me chamavam de doutor? Elas me tomam por seu marido o lobisomem. E não tenho mesmo sorte. Se pergunto quem plantou uma certa árvore, elas dizem: o doutor. Se pergunto a quem pertence o cesto verde de peixes, elas dizem: à esposa do doutor. Quer dizer, a você! Essa confusão entre ele e eu torna minha visita insuportável. Gostaria de ir embora... DAMA. Você já não tentou em vão deixar este lugar seis vezes? ESTRANHO. Sim. Mas na sétima, vai dar certo. DAMA. Então, tente! ESTRANHO. Você fala como se estivesse convencida de que vou falhar de novo. DAMA. E eu estou. ESTRANHO. Jogue uma outra praga , querida fúria. DAMA. Tudo bem, eu consigo. ESTRANHO. Um jeito novo! Tente dizer alguma coisa desnaturada que “as pessoas” ainda não tenham dito. DAMA. Sua primeira esposa é “as pessoas”. Que jeito delicado de me fazer lembrar dela. ESTRANHO. Tudo que vive e se move, tudo que está morto e frio, me faz me lembrar do que já se foi... DAMA. Até que esse ser venha, quem pode apagar a escuridão do passado e trazer alguma luz. ESTRANHO. Você quer dizer essa criança que estamos esperando! DAMA. Nossa criança!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Você a ama? DAMA. Comecei a amá-la hoje. ESTRANHO. Hoje? Por quê, o que aconteceu? Há cinco meses você queria procurar um juiz e se divorciar de mim porque não quis levá-la a um curandeiro que pudesse matar seu filho não-nascido. DAMA. Isso foi há muito tempo. As coisas agora estão mudadas. ESTRANHO. Por quê agora? (Ele olha ao redor como se estivesse esperando alguma coisa.) Agora? O correio chegou? DAMA. Você é ainda mais ardiloso que eu. Mas a discípula vai sobrepujar o mestre. ESTRANHO. Tem cartas aí para mim? DAMA. Não. ESTRANHO. Então me dê a sacola? DAMA. O que faz você pensar?

DAMA. (pegando a sacola postal que havia colocado atrás do banco) Olhe para isso! (O ESTRANHO pega a fotografia, olha para ela cuidadosamente e a coloca no bolso do casaco.) O que é isso? ESTRANHO. O passado. DAMA. Ele era bonito? ESTRANHO. Sim. Mais bonito do que o futuro pode ser. DAMA. (sombriamente) Você não deveria ter dito isso. ESTRANHO. Não, eu admito. E sinto muito... DAMA. Diga, você é capaz de sofrer? ESTRANHO. Agora, eu sofro duas vezes; porque sinto quando você está sofrendo. E se magoo você em legítima defesa, sou eu que sinto a dor da ferida DAMA. Isso significa que você está à minha mercê? ESTRANHO. Não. Menos agora que nunca, porque você está protegida pelo ser inocente que carrega perto de seu coração. DAMA. Ele vai ser meu vingador. ESTRANHO. Ou o meu!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

305

Tradução

ESTRANHO. Me dê a sacola, a menos que sua consciência não lhe permita distinguir entre uma sacola e um envelope.

August Strindberg

DAMA. (chorosamente) Pobre coisinha. Concebido em pecado e vergonha e nascido para vingar por ódio. ESTRANHO. Faz tempo que não ouvia você falar assim. DAMA. Eu me atrevo a dizer essas coisas. ESTRANHO. Essa era a voz que primeiro me encaminhou para você, era como a de uma mãe falando com seu filho. DAMA. Quando você diz “mãe” sinto que acredito só em coisas boas vindo de você, mas um momento depois me digo: é só um dos modos de me enganar. ESTRANHO. Que mal eu realmente lhe fiz? (A DAMA está incerta sobre o que responder.) Responda-me. Que mal eu lhe fiz? DAMA. Eu não sei. ESTRANHO. Então invente alguma coisa. Diga: eu odeio você porque não consigo enganar você.

Tradução

306

DAMA. Posso? Oh, sinto muito. ESTRANHO. Você deve ter veneno no bolso de seu vestido. DAMA. Sim, tenho! ESTRANHO. O que será? (Pausa.) Quem está vindo pela estrada? DAMA. Um profeta. ESTRANHO. É um homem, ou um espectro? DAMA. Um espectro do passado. ESTRANHO. Está vestindo um casaco preto e uma coroa de louros. Mas seus pés estão descalços. DAMA. É César. ESTRANHO. (confuso) César? Era meu apelido na escola. DAMA. Sim. Mas é também o nome do louco a quem meu... primeiro marido costumava procurar. Perdoe-me se lhe falo assim dele. ESTRANHO. Esse louco foi embora? DAMA. Ele se parece com ele, não é? (CÉSAR entra vindo do fundo, veste um hábito preto sem gola, tem uma coroa de louros na cabeça e seus pés estão descalços. Sua aparência geral é bizarra.) CÉSAR. Por que não me cumprimenta? Você deveria dizer: Ave, César! Porque agora

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

eu sou o senhor. O lobisomem, você tem que saber, perdeu a cabeça desde que o Grande Homem abandonou sua esposa, a quem havia roubado do primeiro amante dela, noivo ou seja lá como o quiser chamar. ESTRANHO. (para a DAMA) Aquilo era estricnina para dois adultos! (para CÉSAR) Onde está seu senhor agora – ou seu escravo, ou médico, ou criado? CÉSAR. Ele vai estar aqui daqui a pouco. Mas não precisa ficar com medo dele. Não vai usar adagas nem veneno. Ele só tem que se mostrar, para todas as coisas vivas fugirem dele, para as árvores deixarem suas folhas caírem, e a poeira das estradas correr diante dele num turbilhão como a coluna de nuvem diante dos Filhos de Israel... ESTRANHO. Ouça... CÉSAR. Calado, enquanto estou falando... Ás vezes ele acredita que é mesmo um lobisomem, e diz que gostaria de comer uma criança que ainda não tivesse nascido, e isto seria ficar de acordo com o direito de prioridade... (Segue seu caminho.) DAMA. (para o ESTRANHO) Você pode exorcizar esse demônio? ESTRANHO. Não posso fazer nada contra diabos que desafiam a luz do sol.

ESTRANHO. E isso agrada você! DAMA. Sim. Demais. ESTRANHO. Pena que não me dê nenhum prazer quando você sofre um ataque! Vamos nos sentar no banco – o banco dos réus. Porque aí vêm mais coisas. DAMA. Preferia que a gente fosse embora. ESTRANHO. Não, quero ver até onde posso suportar. Veja, a cada golpe do chicote sinto como se uma parcela do meu débito fosse apagada do meu livro de contas. DAMA. Mas eu não aguento mais. Olhe, aí vem ele de novo em pessoa. Céus! Esse homem, a quem eu pensei ter amado um dia! ESTRANHO. Pensou? Sim, porque tudo é mera ilusão. E isso já significa muito. Você vai! Eu fico sozinho com a tarefa de me confrontar com ele sozinho. (A DAMA desce os degraus, mas não alcança o final da escada antes que o médico se torne visível no fundo do palco. O MÉDICO entra, longos cabelos cinzentos e despenteados. Veste um capacete tropical e um casaco de caça similares às roupas do ESTRANHO. Comporta-se como se não tivesse notado a presença do ESTRANHO, e se senta numa pedra no outro lado da estrada, oposto ao ESTRANHO, que está sentado no banco. Tira o chapéu e enxuga o suor que corre

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

DAMA. Ontem você me fez uma observação arrogante, e agora ela se voltou contra você. Você disse que não era justo para seres invisíveis perseguirem à noite e atacarem na escuridão, eles deveriam surgir de dia quando o sol está brilhando. Pois agora eles vieram!

307

August Strindberg

pela testa. O ESTRANHO fica impaciente.) O que você quer? MÉDICO. Apenas ver essa casa outra vez, onde minha felicidade já morou e minhas rosas floresceram... ESTRANHO. Um inteligente homem do mundo teria escolhido um tempo em que os atuais habitantes da casa estivessem fora, de modo que não se tornasse assim tão ridículo. MÉDICO. Ridículo? Gostaria de saber qual de nós dois é mais ridículo? ESTRANHO. Neste momento, suponho que eu seja. MÉDICO. Sim. Mas não creio que você conheça a extensão de sua desgraça. ESTRANHO. O que quer dizer? MÉDICO. Que você quer possuir o que eu costumava possuir. ESTRANHO. Bom, continue.

Tradução

308

MÉDICO. Você percebeu que estamos usando roupas parecidas? Bom! Sabe qual a razão? É que você está usando as coisas que esqueci de jogar fora quando a catástrofe aconteceu. Nenhum homem do mundo dotado de inteligência no final do século dezenove se colocaria nessa situação. ESTRANHO. (atirando o chapéu e o casaco) Maldita aquela mulher! MÉDICO. Não precisa se lamentar. Roupas masculinas enjeitadas têm sido sempre fatais desde a famosa camisa de Nessus. Entre agora e se troque. Vou me sentar aqui fora e observar, e ouvir, como você se arranja sozinho com essa mulher amaldiçoada. Não esqueça sua bengala! (A DAMA, que se apressava em direção à casa, tropeça na frente dos degraus. O ESTRANHO para onde está, embaraçado.) A bengala! A bengala! ESTRANHO. Não peço nada para a mulher, mas pela criança. MÉDICO. (selvagemente) Então, há uma criança também. Nossa casa, nossas rosas, nossas roupas, as roupas de cama não esquecidas, e agora nosso filho! Estou dentro de sua casa, me sento à sua mesa, me deito em sua cama, existo em seu sangue, em seus pulmões, em seu cérebro, estou em toda parte e você não consegue se livrar de mim. Quando o pêndulo bater a hora da meia-noite, vou golpear frio no seu coração, de modo que ele pare como um relógio que não funcione. Quando você se sentar para trabalhar, vou me aproximar como uma nuvem de ópio, invisível, que vai colocar seus pensamentos para dormir, e confundir sua mente, de modo que você terá visões que não conseguirá distinguir da realidade. Vou me postar como uma pedra no seu caminho, de modo que você tropece e caia, vou me tornar o espinho que vai picar sua mão quando você for colher uma rosa. Minha alma vai se fechar sobre si mesma como uma teia de aranha, e vou puxar você como uma vaquinha por meio da mulher que roubou de mim. Seu filho vai ser meu e vou falar pela boca dele; você vai ver meu olhar nos olhos dele, de modo que vai D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

querê-lo longe de você como um inimigo. E agora, minha bem amada casa, adeus; adeus, quarto “rosa” – onde não existia felicidade que eu pudesse invejar. (Sai. O ESTRANHO esteve sentado no banco todo esse tempo, incapaz de responder, e ouviu como se estivesse sendo acusado.) Cortina.

ATO II CENA I LABORATÓRIO [Um jardim de inverno em estilo rococó com janelas altas. No meio da sala uma grande escrivaninha com várias peças de aparelhos químicos e físicos. Dois fios de cobre estão suspensos do teto para um eletroscópio postado no centro da mesa e dotado de alguns sinos, que devem registrar a tensão da eletricidade atmosférica.]

ESTRANHO. Onde está... Ingeborg? MÃE. Você sabe disso melhor que eu. ESTRANHO. Com o juiz, tratando do divórcio... MÃE. Por quê? ESTRANHO. Eu lhe disse. Não, isso parece tão fingido que você vai pensar que estou mentindo. MÃE. Então, conte-me! ESTRANHO. Ela quer o divórcio porque me recusei a expulsar esse homem, embora ele estivesse perturbado. Ela diz isso covardemente de mim... MÃE. Não acredito nisso. ESTRANHO. Veja você! Você só acredita no que quer; todo o resto é mentiras. Bom, será que estaria de acordo com seus interesses acreditar que ela tem roubado minhas cartas?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

309

Tradução

[Sobre a mesa, à esquerda, uma antiquada máquina geradora de eletricidade, com pratos de vidro, condutores de metal, bateria Leyden. Os armários são laqueados e broncos. À direita, uma antiquada lareira aberta com tripés, cadinhos, pinças, alicates, fole etc. No fundo uma porta com vista para o campo além, um tempo escuro e nublado, mas os raios vermelhos do sol ocasionalmente brilham na sala. Uma capa marrom e um chapéu estão dependurados perto da lareira; perto dali um saco de viagem e um bastão alpino. O ESTRANHO e a MÃE são descobertos juntos.]

August Strindberg

MÃE. Não sei de nada disso. ESTRANHO. Não estou lhe perguntando se você sabe ou não disso, mas se você acredita nisso. MÃE. (mudando de assunto) O que você está tentando fazer aqui? ESTRANHO. Estou fazendo experimentos relativos à eletricidade atmosférica. MÃE. E isso é um condutor de iluminação que você conectou à escrivaninha? ESTRANHO. Sim. Mas não há perigo; os sinos vão tocar se houver qualquer perturbação atmosférica. MÃE. Isso é blasfêmia e magia negra. Tome cuidado! E o que está fazendo ali, na lareira? ESTRANHO. Fazendo ouro. MÃE. Você acha que isso é possível?

Tradução

310

ESTRANHO. Você me toma por um charlatão? Não posso censurá-la por isso, mas não com tanta pressa. A qualquer momento espero obter um resultado confirmado de análise. MÃE. Provavelmente, não é? Mas o que vai fazer se Ingeborg não voltar? ESTRANHO. Ela vai voltar, desta vez. Mais tarde, talvez, quando a criança estiver aqui, ela vai voltar correndo. MÃE. Você parece estar muito seguro disso. ESTRANHO. Sim. Como eu disse, ainda estou. Enquanto o laço não estiver cortado, você pode senti-lo. E, depois de cortado, você ainda o sente de modo horrivelmente claro. MÃE. Mas quando tiverem se separado, você também estará preso à criança. Pode contar com isso desde já. ESTRANHO. Tenho feito algo contra isso que é de meu grande interesse, e que espero preencha minha vida vazia. MÃE. Você quer dizer ouro. E honraria! ESTRANHO. Exatamente! Para um homem a mais duradoura de todas as ilusões. MÃE. Então você constrói sobre ilusões? ESTRANHO. Sobre o que mais poderia eu construir, se tudo é ilusão? MÃE. Se você nunca despertar de seu sonho, vai encontrar uma realidade que jamais se sentiu capaz de sonhar. ESTRANHO. Então vou esperar que isso aconteça. MÃE. Espere então. Agora eu me vou e feche a janela, antes que a tempestade caia.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. (indo para o fundo do palco) Que interessante. (Ouve-se um corno de caça à distância.) Quem está tocando? MÃE. Ninguém sabe, e isso não significa nada de bom. (Sai.)

DAMA. (voltando em desespero, atirando-se à frente do ESTRANHO e colocando seus braços ao redor dos pés dele e sua cabeça no chão.) Ajude-me! Socorra-me! E me perdoe. ESTRANHO. Levante-se. Em nome de Deus! Levante-se. Não faça isso. O que aconteceu? DAMA. Em minha cólera agi tresloucadamente. Fui presa em minha própria rede. ESTRANHO. (erguendo-a) Levante-se, criança maluca, e me conte o que aconteceu. DAMA. Fui até o promotor público. ESTRANHO. ... e solicitou o divórcio... DAMA. ... essa era minha intenção, mas quando cheguei lá, dei queixa contra o lobisomem por invasão e tentativa de assassinato. ESTRANHO. Mas ele não é culpado de nada disso! DAMA. Não, mas dei queixa do mesmo modo... E quando estava lá, ele próprio chegou para dar queixa contra mim por falso testemunho. Então fui até o juiz que me disse para esperar uma sentença por no mínimo um mês. Pense nisso, meu filho vai nascer na pri-

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

311

Tradução

ESTRANHO. (ocupando-se com o eletroscópio e virando as costas para a janela aberta enquanto lida com o aparelho; pega um livro e lê em voz alta.) “Quando a raça de gigantes de Adão aumentara o suficiente para arriscar um ataque sobre os superiores, começaram a construir uma torre para chegar ao céu. Os superiores foram então tomados pelo medo e, para se protegerem, dissolveram a multidão confundindo suas línguas e suas mentes de modo que duas pessoas não pudessem se entender uma à outra, mesmo que falassem a mesma língua. Desde então, os superiores governam pela discórdia: dividir e governar. E a discórdia é sustentada pela crença de que a verdade foi encontrada, mas, quando se acredita num dos profetas, ele é um profeta mentiroso. Se, por outro lado, um mortal consegue penetrar no segredo dos superiores, ninguém acredita nele, e é atingido pela loucura como ninguém mais seria. Por isso os mortais têm sido ou mais ou menos enlouquecidos, particularmente aqueles que eram tidos como sábios, mas loucos são, na realidade, apenas os homens sábios, pois eles sabem ver, ouvir e sentir o invisível, o inaudível e o intangível, embora não consigam relatar suas experiências aos outros”. É o que diz o Zohar, o mais sábio de todos os livros de sabedoria, e portanto um livro em que ninguém acredita. Eu não construiria uma torre de Babel, mas atrairia os Poderes para minha ratoeira, e enviaria os subterrâneos aos poderes superiores, de modo que eles fossem neutralizados. É o Schedim supremo, que surgiu entre os homens mortais e é por isso que a alegria, a paz e a felicidade foram banidas da face da terra.

August Strindberg

são! Como posso escapar disso? Ajude-me. Você pode. Fale! ESTRANHO. Sim, posso ajudá-la. Mas, se eu o fizer, não se vingue mais tarde. DAMA. Você me conhece tão pouco. Mas me diga logo o que fazer. ESTRANHO. Vou assumir a culpa e dizer que enviei você. DAMA. Como você é generoso! Já estou ao par de todo essa coisa agora? ESTRANHO. Enxugue os olhos, minha criança, e relaxe. Mas me diga ainda uma coisa, que não tem nada a ver com isso. Você deixou esta bolsa aqui? (A DAMA fica embaraçada) Diga-me! DAMA. Algo semelhante já aconteceu alguma vez antes? ESTRANHO. Sim. O “outro” queria descobrir, desse jeito, se eu havia roubado algo. Na primeira vez que isso aconteceu eu chorei, porque era muito jovem e inocente. DAMA. Oh não!

Tradução

312

ESTRANHO. Agora você me parece ser a criatura mais desventurada sobre a terra. DAMA. Diz isso porque me ama? ESTRANHO. Não. Você andou roubando minhas cartas, também! Responda, sim! E foi por isso que você quis provar que eu roubei esta bolsa. DAMA. O que você tem aí, sobre a mesa. ESTRANHO. Iluminação! (Acontece um raio de luz, mas sem trovão.) DAMA. Não tem medo? ESTRANHO. Sim, às vezes; mas não do que você tem medo. (A face contorcida do MÉDICO surge do lado de fora da janela.) SENHOR. Tem um gato aqui na sala? Não me sinto bem. ESTRANHO. Não creio. Embora tenha a sensação de que há alguém aqui. DAMA. (virando-se e vendo o rosto do MÉDICO; depois grita e corre para o ESTRANHO, buscando proteção.) Oh! Ali! Tem alguém ali! ESTRANHO. Onde? Quem? (O rosto do MÉDICO desaparece.) DAMA. Ali, na janela. É ele! ESTRANHO. Não vejo ninguém. Você deve estar errada. DAMA. Não, eu o vi. O lobisomem! Não vamos nos livrar dele? ESTRANHO. Sim, vamos. Mas seria inútil, porque ele tem uma alma imortal, inacessível para as nossas. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

DAMA. Se eu tivesse sabido disso antes! ESTRANHO. Isso certamente está no catecismo. DAMA. Então só nos resta morrer! ESTRANHO. Essa foi anteriormente minha religião. Mas não acredito mais que a morte seja o fim, que nada nos resta exceto suportar tudo – lutar e sofrer! DAMA. Por quanto tempo devemos sofrer? ESTRANHO. Tanto quanto ele sofra e nossa consciência nos censure. DAMA. Então temos que tentar nos justificar para nossas consciências, pedir desculpas por nossas ações frívolas e descobrir nossas fraquezas. ESTRANHO. Bom, você pode tentar! DAMA. É você quem diz isso! Desde que soube que ele é infeliz, só consigo ver as qualidades dele, e você perde quando o comparo a ele.

DAMA. A quem censurar? ESTRANHO. A ele, que administra mal o destino humano. (Um raio, e os sinos elétricos começam a tocar.) DAMA. Meu Deus! O que foi isso? ESTRANHO. A resposta. DAMA. Tem um para-raios aqui? ESTRANHO. O sacerdote de Baal deseja induzir o raio a vir do céu... DAMA. Agora estou com medo, medo de você. Você é assustador. ESTRANHO. Você viu! DAMA. Quem é você para desafiar os Céus e para ousar brincar com os destinos humanos? ESTRANHO. Levante-se e se acalme. Ouça-me, acredite em mim, e me preste o devido respeito, e vou elevar a nós dois acima desta lagoa de sapos a que ambos descemos. Vou soprar sobre sua consciência doente de modo que ela se cure como uma ferida. Quem sou eu? Um homem que fez o que antes não havia sido feito, que vai destruir o Bezerro de Ouro e subir às mesas dos endinheirados. Tenho o destino do mundo no meu cadinho; e numa semana posso tornar um pobre no mais rico dos ricos. Ouro, o mais falso dos

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

313

Tradução

ESTRANHO. Veja como está tudo bem arranjado! Os sofrimentos dele o santificam, mas os meus me tornam repugnante e ridículo! Temos que encarar o imutável. Fomos destruídos por uma alma, somos assassinos.

August Strindberg

padrões, não governa mais; todos agora serão tão pobres quanto seus vizinhos, e os filhos dos homens vão correr rápido como formigas cujo ninho foi perturbado. DAMA. Que bem isso fará para nós? ESTRANHO. Então você acha que vou fazer ouro para enriquecer a nós e aos outros? Não. Vou fazê-lo para paralisar a ordem presente, rompê-la, como você vai ver! Sou o destruidor, o diluidor, o incendiário do mundo; e quando tudo for cinzas, vou vaguear faminto por entre as ruínas, alegrando-me com a ideia de que foi tudo obra minha: que eu escrevi a última página da história do mundo, que então terá chegado ao fim. (O rosto do DOMINICANO surge na janela aberta, sem ser visto pelos que estão no palco.) DAMA. Então era esse o sentido real do seu último livro! Não era invenção minha!

Tradução

314

ESTRANHO. Não. Mas para escrevê-lo, tive que ligar meu espírito ao espírito de outra pessoa, que podia tirar de mim o que alimentava minha alma. De modo que meu espírito pudesse enfim encontrar um sopro ardente, sobre o qual subir ao éter, burlar os Poderes, e alcançar o Trono a fim de depositar as lamentações da humanidade aos pés do Eterno... (O DOMINICANO faz o sinal da cruz no ar e desaparece.) Quem está aí? Quem é o ser Terrível que me segue e estropia meus pensamentos? Você viu alguém? DAMA. Não. Ninguém. ESTRANHO. Mas eu sinto sua presença. (Leva a mão ao coração.) Você ouve longe, muito longe, alguém rezando um rosário? DAMA. Sim, estou ouvindo. Mas não é a Ave Maria. É a maldição do Deuteronômio! Ai de nós! ESTRANHO. Então o som deve vir do convento de São Salvador. DAMA. Ai! Ai de nós! ESTRANHO. Minha amada. O que foi? DAMA. Minha amada! Diga isso de novo. ESTRANHO. Você está doente? DAMA. Não, mas estou com dor e feliz ao mesmo tempo. Peça à minha mãe para fazer minha cama. Mas antes me dê sua bênção. ESTRANHO. Posso...? DAMA. Diga que me perdoa; posso morrer se o bebê tirar minha vida. Diga que me ama. ESTRANHO. Estranho: não consigo fazer a palavra cruzar meus lábios. DAMA. Então você não me ama? ESTRANHO. Quando você diz isso, parece que não. É terrível, mas temo que odeie você. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

DAMA. Então pelo menos me dê sua mão, como faria a alguém em desespero. ESTRANHO. Eu gostaria, mas não consigo. Alguém em mim sente prazer com sua agonia, mas não sou eu. Eu gostaria de carregar você nos meus braços e suportar seu sofrimento por você. Mas não posso. Não consigo! DAMA. Você é duro como pedra. ESTRANHO. (com emoção contida) Talvez não. Talvez não. DAMA. Venha para mim! ESTRANHO. Não consigo me mover daqui. È como se alguém tivesse tomado posse de minha alma; e eu gostaria de me matar se assim tirasse a vida desse alguém. DAMA. Pense no seu filho com alegria... ESTRANHO. Não posso nem fazer isso, pois isso me prenderia à terra. DAMA. Se tivéssemos pecado, teríamos sido punidos! Já não sofremos bastante? ESTRANHO. Ainda não. Mas um dia terá sido suficiente.

Cortina.

CENA II O QUARTO “ROSA” [Um cômodo com paredes pintadas de rosa; tem pequenas janelas com treliças de ferro e plantas em vasos. As cortinas são vermelho-rosa, os móveis são em branco e vermelho. No fundo uma porta leva a um quarto de dormir branco; quando a porta se abre, pode-se ver uma cama grande com dossel e cortinas brancas. À direita, uma porta que leva para fora da casa. À esquerda, uma lareira acesa. À frente dela, uma banheira, coberta com uma toalha branca. Um berço coberto com um tecido branco, rosado e azul claro. Roupas de bebê espalhadas aqui e ali. Um vestido verde dependurado na parede do lado direito. Quatro Irmãs de Misericórdia estão de joelhos, de frente para a porta do fundo, vestidas no preto e branco das irmãs agostinianas. A parteira, de preto, está perto da lareira. A babá da criança usa um vestido de camponesa da Bretanha branco e preto. A MÃE está em pé ouvindo perto da porta do fundo. O ESTRANHO está sentado numa cadeira ereto e tentando ler um livro. Um chapéu e uma capa branca com uma pelerine e um capuz ali perto, e no chão há um pequeno saco de viagem. As Irmãs estão cantando um salmo. Os outros se juntam a elas esporadicamente, mas não o ESTRANHO.]

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

315

Tradução

DAMA. (desmaiando) Ajude-me. Socorro! Vou desmaiar! (O ESTRANHO estende a mão, como se tivesse voltado a si. A DAMA a beija. O ESTRANHO a ergue e a leva para a porta da casa.)

August Strindberg

IRMÃS. Salve, Regina, mater misericordiae; / Vita, dulcedo, et spes nostra, salve. / Ad te clamamus, exules filii Evae; / Ad te suspiramus gementes et flentes / In hac lacrymarum valle. (O ESTRANHO se levanta e caminha para a MÃE.) MÃE. Fique onde está! Um ser humano está vindo ao mundo; um outro está morrendo. É tudo a mesma coisa para você. ESTRANHO. Não estou certo! Se quero entrar, não me permitem. E quando não quero, você o quer. Eu gostaria de entrar agora. MÃE. Ela não quer ver você. Além disso, sua presença não é mais necessária. A criança é o mais importante agora. ESTRANHO. Para você, sim; mas eu ainda sou da maior importância para mim. MÃE. O médico proibiu a entrada de qualquer pessoa, seja quem for, porque a vida dela está em perigo. ESTRANHO. Que médico?

Tradução

316

MÃE. Ah então seus pensamentos voltaram! ESTRANHO. Sim. E foi você quem os guiou! Uma hora atrás deu a entender que o filho não podia ser meu. Com isso chamava sua filha de prostituta, mas isso não queria dizer nada para você, já que você só queria será me ferir no coração! Você é a criatura mais desprezível que conheço! MÃE. (para as IRMÃS) Irmãs! Rezem por esse homem infeliz ESTRANHO. Deixe-me entrar. Pela última vez… me deixem passar. MÃE. Saia desta sala, e da casa também. ESTRANHO. Se eu tivesse que fazer o que me pede, em dez minutos você mandaria a polícia atrás de mim por abandonar minha esposa e meu filho! MÃE. Eu só faria o que levasse você a ir para aquele convento que você conhece bem. CRIADA. (entrando, vindo do fundo) A Senhora está lhe pedindo que faça uma coisa por ela. ESTRANHO. O que ela quer? CRIADA. É provável que exista uma carta num vestido que ela deixou dependurado aqui. ESTRANHO. (olha ao redor e vê o vestido verde; vai até ele e tira uma carta do seu bolso) Está endereçada a mim, e foi aberta há dois dias. Aberta! Isso é mesmo muito bom! MÃE. Deve perdoar alguém que está doente como sua esposa. ESTRANHO. Ela não estava doente há dois dias.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MÃE. Não. Mas está agora. ESTRANHO. Mas não há dois dias! (Lendo a carta.) Bom, eu a perdoo agora, com a magnanimidade do vencedor. MÃE. Do vencedor? ESTRANHO. Sim. Pois fiz algo que ninguém havia feito antes. MÃE. Você quer dizer o ouro...? ESTRANHO. Aqui está um certificado da maior autoridade viva. Agora vou vê-lo eu mesmo. MÃE. Agora! ESTRANHO. A seu pedido. CRIADA. (para o ESTRANHO) A Senhora pede que entre. MÃE. Você ouviu?

MÃE. Não vai perdoar nunca! ESTRANHO. Vou, sim. Eu perdoo você – e vou embora. (Veste a capa e o chapéu, pega sua bengala e o saco de viagem.) Pois se eu ficasse, logo seria pior do que sou agora. A criança inocente, cuja missão era enobrecer nosso relacionamento deformado, foi emporcalhada por você no útero de sua mãe e convertido no pomo da discórdia e em fonte de punição e vingança. Por que eu ficaria aqui para ser reduzido a pedaços? MÃE. Para você, os deveres não existem. ESTRANHO. Oh sim, eles existem! E o primeiro deles é proteger a mim mesmo da destruição total. Adeus! Cortina.

ATO III CENA I O SALÃO DO BANQUETE [Sala num hotel preparada para um banquete. Longas mesas enfeitadas com flores e candelabros. Pratos com pavões, faisões com plumagem completa, cabeças de javali, lagostas

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

317

Tradução

ESTRANHO. Não, agora eu não quero! Você fez de sua própria filha, minha esposa, uma prostituta; e falou de meu filho ainda não nascido como um bastardo. Fique com os dois. Você assassinou minha honra. Não há nada que eu possa fazer para a recuperar outra vez.

August Strindberg

inteiras, ostras, salmão, ramos de aspargo, melões e uvas. Um conjunto com oito músicos ao fundo no lado direito.] [Na mesa alta: o ESTRANHO num hábito de frade; perto dele um uniforme civil com condecorações; um Frade professoral com uma condecoração; e outros Frades com condecorações de tipo mais ou menos notável. Na segunda mesa alguns Frades entre fraques pretos. Na terceira mesa, roupas limpas de todo dia. Na quarta mesa, figuras sujas e maltrapilhas de aparência esquisita.] [As mesas estão arranjadas de modo que a primeira está mais à esquerda e a quarta à direita, de modo que as pessoas sentadas à quarta mesa não podem ser vistas pelo ESTRANHO. Na quarta mesa, CÉSAR e o MÉDICO estão sentados, vestindo roupas surradas. São os que estão mais distantes. A sobremesa acabou de ser servida e os hóspedes têm taças douradas diante deles. A banda está tocando pianíssimo uma passagem central da Marcha Fúnebre de Mendelssohn. Os hóspedes estão conversando uns com os outros calmamente.] MÉDICO. (para CÉSAR) A companhia parece estar deprimida e a sobremesa veio bastante depressa!

Tradução

318

CÉSAR. Por falar nisso, essa coisa toda parece uma fraude! Ele fez ouro coisa nenhuma, é simplesmente uma mentira, como tudo o mais. MÉDICO. Não sei, mas, é o que dizem. E nessa era iluminada em que vivemos pode-se esperar qualquer coisa. CÉSAR. Há um professor na ponta da mesa principal, supostamente uma grande autoridade. Mas ele é professor de quê? MÉDICO. Não tenho ideia. Pode ser metalurgia ou química aplicada. CÉSAR. Consegue ver que condecoração está usando? MÉDICO. Não a conheço. Talvez uma de quinta categoria. CÉSAR. Bom, num jantar como este, de convite comprado, as companhias são sempre misturadas. MÉDICO. Hm! CÉSAR. Você quer dizer, que nós… hm... Eu admito que não estamos bem vestidos, mas até onde vai minha inteligência... MÉDICO. Ouça, César, você é um lunático sob minha responsabilidade, e deve evitar ao máximo falar sobre inteligência. CÉSAR. Essa é a maior impertinência que ouvi em muito tempo. Você não entende, idiota, que fui contratado para vigiar você desde que perdeu o juízo? PROFESSOR. (batendo em seu copo) Senhores! D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

CÉSAR. Ouve, ouve! PROFESSOR. Cavalheiros! Nossa pequena sociedade se sente hoje honrada pela presença do grande homem, que é nosso convidado de honra, e quando o comitê... CÉSAR. (para o MÉDICO) É o Governo, sabe! PROFESSOR ... e quando o comitê me pediu para atuar como intérprete e explicar as razões que os motivavam eu me senti num primeiro momento em dúvida se poderia aceitar a honra. Mas comparei minha própria incapacidade com a de outros, e descobri que ninguém perdia na comparação. VOZES. Bravo! PROFESSOR. Cavalheiros! Um século de descobertas está terminando com a maior de todas as descobertas – antevista por Pitágoras, preparada por Albertus e Paracelso e pela primeira vez levada a cabo por nosso convidado de honra. Vocês me permitirão dar esta fraca expressão de nossa admiração pelo maior homem de um grande século. Uma coroa de louros da sociedade! (Coloca uma coroa de louros na cabeça do ESTRANHO.) E do comitê: isso! (Dependura uma condecoração brilhante no pescoço do ESTRANHO.) Cavalheiros! Três vivas ao Grande Homem que fez ouro!

CÉSAR. Não deveríamos ter aproveitado essas coisas antes que as levassem embora? MÉDICO. Tudo isso parece mistificação, exceto essa coisa de fazer ouro. ESTRANHO. (batendo na mesa) Cavalheiros! Sempre tive orgulho do fato de que não sou uma pessoa fácil de enganar... CÉSAR. Ouça, ouça! ESTRANHO ... de que não sou facilmente levado por circunstâncias, mas sou tocado pela sinceridade tão óbvia no grande tributo que me prestam, e quando digo tocado, eu sei o que digo. CÉSAR. Bravo! ESTRANHO. Sempre existem pessoas céticas; e momentos na vida de cada um em que as dúvidas se instalam furtivamente até mesmo nos corações dos mais fortes. Vou confessar que eu mesmo duvidei, mas depois de me sentir objeto dessa sincera e cordial demonstração, e depois de ter participado deste régio festim, porque é mesmo digno de um rei; e vendo que, finalmente, o próprio Governo...

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

TODOS. (com exceção do ESTRANHO) Viva! (A banda toca as cordas da Marcha Fúnebre de Mendelssohn. Durante a última parte da fala anterior criados trocaram as taças douradas por outras de estanho, e agora começam a levar embora os faisões, os pavões etc. A música toca suavemente. Conversação generalizada.)

319

August Strindberg

VOZ. O Comitê! ESTRANHO ... o comitê, se quiserem, tão notavelmente reconheceu meus modestos méritos, não mais duvido, mas acredito! (Os de Uniforme Civil se movimentam.) Sim, senhores, este é o maior e mais satisfatório momento da minha vida, porque me trouxe de volta a maior coisa que um homem pode possuir, a crença em si mesmo. CÉSAR. Esplêndido! Bravo! ESTRANHO. Eu lhes agradeço. À sua saúde! (O PROFESSOR se levanta. Todos se erguem e começam a se misturar. Alguns dos músicos saem, mas dois permanecem.) CONVIDADO. (para o ESTRANHO) Uma tarde deliciosa! ESTRANHO. Maravilhosa. (Todos os Fraques saem.) PAI. (Um homem idoso, supervestido com um monóculo e cruzes militares; ao MÉDICO) O quê? Você está aqui?

320

PAI. É tarde demais no dia de hoje para me chamar de sogro. Além disso, sou sogro… dele agora.

Tradução

MÉDICO. Sim, meu sogro. Estou aqui. Eu vou a todo lugar para onde ele vai.

MÉDICO. Ele conhece você? PAI. Não. Não teve essa honra; e tenho que lhe pedir que preserve minha condição de incógnito. É verdade que ele fez ouro? MÉDICO. É o que dizem. Mas é certo que abandonou a esposa ainda no leito da maternidade. PAI. Isso significa que devo esperar por um terceiro genro? Não gosto dessa ideia! A incerteza de minha posição me faz odiar ser um sogro quase profissional. Naturalmente, não tenho nada contra, desde que... (As mesas agora ficaram limpas; as toalhas e os candelabros foram removidos, de modo que as próprias mesas, que são apenas tábuas sobre cavaletes, continuam ali. Uma grande jarra de faiança foi trazida e pequenas jarras de forma simples foram colocadas na mesa principal. As pessoas esfarrapadas se sentam perto do ESTRANHO na mesa principal e o PAI senta-se escarranchado numa cadeira e olha para ele.) CÉSAR. (batendo na mesa.) Cavalheiros! Esta festa foi qualificada como de rei não por conta da excelência do serviço, que, ao contrário, foi horroroso, mas porque o homem a quem honramos é um rei, um rei no reino do Intelecto. Só eu sou capaz de julgar isso. (Um dos esfarrapados ri.) Quieto. Miserável! Mas ele é mais que um rei, ele é um homem do povo, dos mais humildes. Um amigo dos oprimidos, o guardião dos tolos, o que traz felicidade para os idiotas. Não sei se foi bem sucedido em fazer ouro. Não me preocupo com isso, e dificilmente acredito nisso... (Murmúrio. Dois policiais entram e se sentam perto da porta, os músicos voltam e se assentam às mesas.) mas supondo que o tenha conD R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

seguido, ele respondeu todas as perguntas que a imprensa diária vem tentando resolver nos últimos cinquenta anos... É só uma presunção... ESTRANHO. Cavalheiros! ESFARRAPADO. Não. Não o interrompa. CÉSAR. Uma simples suposição sem fundamento real, e a análise pode estar errada! OUTRO ESFARRAPADO. Não diga coisas sem sentido! ESTRANHO. Falando em minha capacidade como convidado de honra nesta reunião eu diria que seria do interesse dos participantes ouvir as bases em que fundamentei minha prova... CÉSAR. Não queremos ouvir isso. Não, não. PAI. Espere! Considero que a justiça exige que ao acusado seja permitido se explicar. Poderia nosso convidado de honra contar para esta agradável companhia seu segredo em poucas palavras?

CÉSAR. Então a coisa toda não tem sentido, essa coisarada toda! Não acreditamos em autoridades – somos livres-pensadores. Alguém já ouviu alguma coisa tão descarada? Que trataríamos com honra com boa fé um homem de mistérios, um superescroque, um charlatão. PAI. Minha gente boa, esperem um pouco! (Durante esta cena uma tela na parede, harmoniosamente decorada com folhas de palmeiras e aves do paraíso, foi retirada, deixando ver uma chopeira e uma prateleira com canecos de cerveja, atrás da qual se vê uma garçonete servindo doses de bebida. Varredores de rua e mulheres sujas com vestes sujas dirigem-se à chopeira e começam a beber.) ESTRANHO. Fui chamado aqui para ser insultado? PAI. De modo algum. Meu amigo fala mesmo demais, mas não disse nada que o pudesse insultar. ESTRANHO. Então não é insultante ser chamado de charlatão? PAI. Ele não disse isso seriamente. ESTRANHO. Mesmo sendo só por brincadeira, acho a palavra superescroque extremamente difamatória. PAI. Ele não usou essa palavra.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

321

Tradução

ESTRANHO. Como responsável pela descoberta não posso desperdiçar meu segredo. Mas isso não vai ser preciso, porque submeti meus resultados a uma autoridade sob juramento.

August Strindberg

ESTRANHO. Qual? Apelo a todo mundo: ele não usou a palavra superescroque? TODOS. Não. Ele nunca disse isso! ESTRANHO. Então não sei mais onde estou – ou no meio de que gente me meti. PESSOA ESFARRAPADA. Tem alguma coisa errada com isso? (As pessoas murmuram.) MENDIGO. (adianta-se, carregando um par de muletas; bate na mesa com elas, alguns copos se quebram.) Sr. Presidente! Posso falar? (Quebra mais alguma louça.) Cavalheiros, nesta vida não me foi permitido ser enganado, mas desta vez eu fui. Meu amigo na cadeira me convenceu que fui completamente enganado na questão de seu poder de julgamento e compreensão plena, e me senti envolvido. Existem limites para a piedade e limites para a crueldade. Não gosto de ver um mérito real em ser atirado ao pó, e este homem merece um destino melhor do que ser atirado insensatamente ao chão. ESTRANHO. O que significa isso? (O PAI e o MÉDICO saíram durante a cena sem chamar a atenção. Só o mendigos permanece ao redor da mesa principal. Os que estão bebendo juntam-se em grupos e olham para o ESTRANHO.)

Tradução

322

MENDIGO. Você se toma pelo homem do século e aceita o convite da Sociedade dos Bêbados para ser festejado como um homem de ciência... ESTRANHO. (levantando-se) Mas o Governo... MENDIGO. Oh sim, o Comitê da Sociedade dos Bêbados lhe deu sua maior distinção – aquela condecoração pela qual você teve que pagar... ESTRANHO. E aquele professor? MENDIGO. Ele só se chama daquele modo, ele não é professor coisa alguma, embora dê lições. E o uniforme que deve ter impressionado você era apenas uma farda de porteiro. ESTRANHO. (amassando a guirlanda e rasgando a fita da comenda.) Muito bem! Mas quem era o velho com o monóculo? MENDIGO. Seu sogro! ESTRANHO. Quem fez essa brincadeira? MENDIGO. Não foi brincadeira, foi bem a sério. O professor veio a convite da Sociedade, é assim que eles se chamam, e lhe perguntaram se você aceitaria a festa. Você a aceitou, e isso a tornou séria! (Duas mulheres sujamente vestidas entram carregando uma lata de lixo dependurada numa vara e a colocam sobre a mesa principal.) PRIMEIRA MULHER. Se você é o homem que faz ouro, tem que pagar dois conhaques para nós. ESTRANHO. O que significa isso?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MENDIGO. É a última parte da recepção; quando se supõe que o ouro é apenas lixo. ESTRANHO. Se isso fosse verdade, o ouro poderia ser trocado por ouro. MENDIGO. Bom, isso é só a filosofia da Sociedade dos Bêbados. E você achou sua filosofia onde a procurou. SEGUNDA MULHER. (sentando-se perto do ESTRANHO) Você me reconhece? ESTRANHO. Não. SEGUNDA MULHER. Oh, não fique embaraçado tão tarde assim nesta tarde! ESTRANHO. Você se acredita uma de minhas vítimas? Que eu estava naquela centena que a seduziu? SEGUNDA MULHER. Não. Não é o que você pensa. Mas uma vez leram numa carta para mim, quando estava prestes a ser batizada, que dizia que era minha tarefa abrir caminho para todos os desejos da carne. Bem, eu cresci livre e floresci; e este é o fruto de meu espírito altamente desenvolvido! ESTRANHO. (levantando-se) Talvez eu possa ir agora?

323

ESTRANHO. O quê? Por mim? Eu não pedi nem encomendei nada. GARÇONETE. Não sei de nada disso; mas você é o último da companhia a ter recebido alguma coisa. ESTRANHO. (para o MENDIGO) Isso faz parte da recepção? MENDIGO. Sim, com certeza. E, como você sabe, tudo custa dinheiro, mesmo a honra.... ESTRANHO. (pegando um cartão de visita e entregando à GARÇONETE) Eis meu cartão. A conta será paga amanhã. GARÇONETE. (colocando o cartão na lata de lixo) Hm! Não conheço o nome; e já joguei um monte de cartões na lata de lixo. Quero o dinheiro. MENDIGO. Ouça, madame. Eu garanto que esse homem vai pagar. GARÇONETE. Também você está querendo fazer gracinha comigo! Polícia! Um momento, por favor. POLICIAL. O que está acontecendo? Pagamento, suponho. Venha à delegacia, vamos acertar isso lá. (Escreve alguma coisa numa caderneta.) ESTRANHO. Eu preferiria fazer isso a ficar aqui e discutir... (Ao MENDIGO.) Não me importo com uma piada, mas nunca esperei tanta crueldade como essa. MENDIGO. Deve-se esperar qualquer coisa quando se desafia uma pessoa tão poderosa

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

GARÇONETE. (chegando com uma conta) Sim, mas a conta tem que ser paga antes.

August Strindberg

como você fez! Permita-me lhe dizer uma coisa em confiança. Você deve estar preparado para o pior, para o muito pior! ESTRANHO. Pensar que fui tão ingênuo… tão… MENDIGO. Festins de Belshazzar sempre terminam com a mão ocupada – escrevendo uma conta. E a outra mão é colocada no ombro do convidado para conduzi-lo à delegacia! Mas isso tem que ser feito com nobreza, categoria! POLICIAL. (colocando a mão no ESTRANHO) Você já falou o que queria? AS MULHERES E OS ESFARRAPADOS. O alquimista não pode pagar. Hurrah! Está indo para a cadeia. Indo para a cadeia! SEGUNDA MULHER. Sim, ali vai ele, mas é uma vergonha. ESTRANHO. Está chateada por mim? Eu lhe agradeço por isso, mesmo que não mereça isso de você. Você sente piedade por mim!

Tradução

324

SEGUNDA MULHER. Sim. Ainda há algo que aprendi de você. (A cena muda sem se subir a cortina. O palco é escurecido e um medley de cenas, representando paisagens, palácios, salas, é apresentado, de modo que personagens e mobília não são vistos, só o ESTRANHO permanece visível e parece estar rígido, como se inconsciente. No final até ele desaparece, e da confusão emerge uma cela de prisão.)

CENA II CELA DE PRISÃO [À direita, uma porta e sobre ela uma abertura com barras por onde passa um facho de luz do sol que se projeta na parede da esquerda, onde está dependurado um grande crucifixo.] [O ESTRANHO, vestindo um casaco marrom e um chapéu, está sentado à mesa olhando para o facho de luz. A porta se abre e o MENDIGO entra.] MENDIGO. Está aí cismando sobre o quê? ESTRANHO. Perguntando a mim mesmo por que estou aqui, e também: onde eu estava ontem? MENDIGO. Onde você acha? ESTRANHO. Parece que no inferno, a menos que eu tivesse sonhado tudo. MENDIGO. Então acorde agora, porque vai se tornar realidade. ESTRANHO. Deixa acontecer. Só tenho medo de fantasmas. MENDIGO. (pegando um jornal) Em primeiro lugar, a grande autoridade confiscou o D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

certificado que lhe deu por fazer ouro. Ele diz, em seu comunicado, que você o enganou. O resultado é que esse memorando chama você de charlatão! ESTRANHO. Oh meu Deus! Contra o que estou lutando? MENDIGO. Dificuldades, como outros homens. ESTRANHO. Não, isso é alguma coisa mais... MENDIGO. Sua própria credulidade, então. ESTRANHO. Não, eu não sou crédulo, e sei que estou certo. MENDIGO. Para que serve isso, se ninguém acredita. ESTRANHO. Será que vou sair dessa prisão? Se sair, vou esclarecer tudo. MENDIGO. A coisa foi arranjada, e tudo foi pago. ESTRANHO. Oh? E quem teria pago, então? MENDIGO. A Sociedade, eu suponho; ou o Governo dos Bêbados. ESTRANHO. Então eu posso ir?

325

ESTRANHO. Bom, o que é? MENDIGO. Lembre-se, um iluminado homem do mundo não se pode deixar surpreender. ESTRANHO. Começo a adivinhar... MENDIGO. O anúncio da primeira página. ESTRANHO. Que quer dizer: ela se casou novamente, e meus filhos têm um padrasto. Quem é ele? MENDIGO. Seja quem for, não o mate; ele não deve ser censurado por ter se casado com uma mulher separada. ESTRANHO. Meus filhos! Oh Deus, meus filhos! MENDIGO. Eu notei que você não anteviu o que aconteceu; mas por que não olha para a frente, se você é um homem do mundo tão iluminado e tão velho. ESTRANHO. (de lado, para si mesmo) Oh Deus! Meus filhos! MENDIGO. Iluminados homens do mundo não choram! Para com isso, meu filho. Quando tais desastres acontecem, os homens do mundo... hmmm... bom, me diga... ESTRANHO. Eles se matam! MENDIGO. Ou?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

MENDIGO. Sim. Mas tem uma coisa...

August Strindberg

ESTRANHO. Não, isso não! MENDIGO. Sim, meu filho, exatamente isso! Ele está jogando fora uma âncora de salvação como um experimento. ESTRANHO. Isso é definitivo. Irrevogável! MENDIGO. Sim, é completamente definitivo. E você pode viver uma outra vida para contemplar sua própria patifaria em paz. ESTRANHO. Você deveria estar envergonhado por falar assim. MENDIGO. E você? ESTRANHO. Você já viu um destino humano como o meu? MENDIGO. Bem, olhe para o meu! ESTRANHO. Não sei nada sobre o seu.

Tradução

326

MENDIGO. Nunca lhe ocorreu, durante todo o tempo em que nos conhecemos, perguntar sobre minhas coisas. Uma vez você escarneceu da amizade que lhe ofereci, e se atirou direto nos braços de companheiros de mais proveito. Espero que se sinta bem. E adeus, até a próxima vez. ESTRANHO. Não vá. MENDIGO. Talvez você queira companhia quando sair da prisão. ESTRANHO. Por que não? MENDIGO. Não lhe havia ocorrido que eu não quisesse ser visto em sua companhia? ESTRANHO. Certamente não. MENDIGO. Mas é verdade. Pensa que eu gostaria de ser suspeito de ter participado daquele imortal banquete em honra do alquimista, de quem qual há um artigo no jornal da manhã? ESTRANHO. Ele não gostaria de ser visto comigo! MENDIGO. Até mesmo um mendigo tem seu orgulho e tem medo do ridículo. ESTRANHO. Ele não desejaria ser visto comigo. Tenho então que cair nessa miséria? MENDIGO. Você precisa perguntar isso a si mesmo, e responder, também. (Ouve-se à distância uma melancólica canção de ninar.) ESTRANHO. O que é isso? MENDIGO. Uma canção cantada por uma mãe ao lado do berço de seu filho. ESTRANHO. Por que eu deveria ser lembrado disso justamente agora?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MENDIGO. Provavelmente para que você possa sentir de modo realmente agudo o que deixou por uma quimera. ESTRANHO. É possível que eu estivesse errado? Se estiver, então isso foi obra do diabo, e me rendo. MENDIGO. Devia fazer isso o mais rápido que pudesse... ESTRANHO. Ainda não! (Ouve-se um rosário sendo rezado à distância.) O que é isso? (Ouve-se uma longa nota tocada num corno de caça.) É o caçador de homens desconhecido! (Ouve-se o coral da Marcha Fúnebre) Onde estou? (Fica onde está como se estivesse hipnotizado.) MENDIGO. Curve-se ou fuja! ESTRANHO. Não consigo me curvar! MENDIGO. Então fuja. (O ESTRANHO cai ao chão. O mesmo medley confuso de cenas de antes.) Cortina.

327

O QUARTO “ROSA” [O mesmo cenário do Ato I. As Irmãs de Misericórdia, ajoelhadas, agora estão lendo seus livros de orações - ... exules filii Evae; Ad te suspiramus et flentes, In hac lacrymarum valle – A MÃE está perto da porta do fundo; o PAI perto da porta à direita.] MÃE. (caminhando na direção dele) Então você veio outra vez? PAI (humildemente). Sim. MÃE. Sua queridinha deixou você? PAI. Não seja cruel mais que o necessário! MÃE. Você diz isso a mim, você que deu meus presentes de casamento para sua amante. Você, que foi tão desprezível ao querer que eu, sua esposa, escolhesse presentes para ela. Você, que quis meu conselho a respeito de cor e modelo, para educar o gosto dela quanto a vestidos! O que quer aqui? PAI. Ouvi que minha filha... MÃE. Sua filha está internada aqui, entre a vida e a morte, e você sabe que os sentimentos dela por você se tornaram hostilidade. É por isso que lhe peço para ir embora, antes que ela suspeite de sua presença. PAI. Você está certa, e não posso reagir a você. Mas permita que me sente na cozinha,

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

CENA III

August Strindberg

estou cansado. Muito cansado. MÃE. Onde esteve na noite passada? PAI. No clube. Mas eu queria lhe perguntar se seu marido não está aqui? MÃE. Sou eu que vou ter que desvelar essa miséria toda? Você não sabe do trágico destino de sua filha? PAI. Sim... Eu sei. E que marido! MÃE. Que homens! Desça as escadas agora e vomite o álcool que bebeu. PAI. Os pecados dos pais... MÃE. Não diga bobagem. PAI. É claro que não quis dizer os meus pecados... mas os de nossos pais. E agora dizem que o lago tem que ser drenado para que o rio suba...

Tradução

328

MÃE. (empurrando-o porta a fora) Silêncio. A desgraça logo tomará conta de nós, com você chamando assim por ela. CRIADA. (do quarto ao fundo) A senhora está chamando pelo seu senhor. MÃE. Ela quis dizer o marido dela. CRIADA. Sim. O senhor da casa, o marido dela. MÃE. Ele saiu daqui faz pouco tempo. (O ESTRANHO entra.) ESTRANHO. A criança já nasceu? MÃE. Não. Ainda não. ESTRANHO. (pondo a mão na testa) O quê? Pode durar tanto tempo assim? MÃE. Tanto tempo? O que quer dizer? ESTRANHO. (olhando em redor) Não sei o que quis dizer. Como está a mãe? MÃE. Ela está na mesma. ESTRANHO. Na mesma? MÃE. Você não quer voltar ao seu ofício de fazer ouro? ESTRANHO. O que diz não tem pé nem cabeça! Mas ainda existe a esperança de que meu pior sonho não fosse apenas um sonho. MÃE. Você realmente parece que estava caminhando em seu sono. ESTRANHO. Pareço? Oh, quem me dera! A única coisa que eu temia já não me apavora mais.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MÃE. Aquele que guia seu destino parece conhecer seus pontos mais fracos. ESTRANHO. E quando só restar um, ele o descobrirá também, felizmente para mim apenas num sonho! Poderes cegos! Poderes impotentes! CRIADA. (voltando) A Senhora lhe pede para lhe fazer um favor. ESTRANHO. Lá está ela como uma enguia, dando choques à distância. Que tipo de favor poderia ser? CRIADA. Há uma carta no bolso do casaco verde dela. ESTRANHO. Coisa boa não há de sair daí. (Ele tira a carta do bolso do casaco verde, que estava dependurado perto da lareira.) Eu devo estar morto. Eu sonhei isso, e agora está acontecendo. Meus filhos têm um padrasto! MÃE. Quem você está censurando agora? ESTRANHO. A mim mesmo! Não tenho que censurar ninguém. Eu perdi meus filhos. MÃE. Você está prestes a ganhar um novo filho agora. 329

ESTRANHO. Ele poderia ser cruel com eles... ESTRANHO. Suponhamos que estamos aqui para afastar esses sofrimentos... MÃE. Sabe o que eu faria no seu lugar? ESTRANHO. Sim, sei o que você faria; mas não sei o que eu faria. MÃE. (para as Irmãs de Misericórdia) Rezem por esse homem! ESTRANHO. Não, não. Isso não! Isso não me faria bem, e eu não acredito em orações. MÃE. Mas você acredita no seu ouro? ESTRANHO. Nem mesmo nisso. Está acabado. Tudo acabado! (A PARTEIRA sai do quarto de dormir.) PARTEIRA. A criança nasceu. Louvado seja o Senhor! MÃE. Louvado seja o Senhor! IRMÃS. Louvado seja o Senhor! PARTEIRA. (para o ESTRANHO) Sua esposa lhe deu uma filha. MÃE. (para o ESTRANHO) Não quer ver sua filha? ESTRANHO. Não. Não quero me ligar a mais nada nesta terra. Tenho medo de chegar a amá-la, e depois você arrancaria meu coração do meu peito. Quero sair da atmosfera deste lugar, que é muito puro para mim. Não deixem essa criança inocente chegar perto

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

MÃE. Então os sofrimentos deles vão pesar em sua consciência, se você tiver uma.

August Strindberg

de mim, porque sou um homem já maldito, já sentenciado, e para mim não existe felicidade, nem paz, nem... perdão! MÃE. Meu filho, agora está dizendo palavras cheias de sabedoria! De verdade e sem maldade: saúdo sua decisão. Não há lugar para você aqui, e entre nós, mulheres, você seria condenado à morte. Então vai em paz. ESTRANHO. Não existirá mais paz, mas eu vou. Adeus! MÃE. Exules filii Evae; sobre a terra você será um fugitivo e vagabundo. ESTRANHO. Porque eu matei meu irmão. Cortina.

ATO IV CENA I SALÃO DO BANQUETE

Tradução

330

[O salão em que ocorreu o banquete no Ato III. Está sujo, e mobiliado com mesas de madeira sem pintura. Mendigos, varredores de rua e mulheres perdidas. Aleijados estão sentados aqui e ali bebendo à luz de velas de sebo.] [O ESTRANHO e a SEGUNDA MULHER estão sentados juntos bebendo conhaque, que está na mesa numa garrafa à frente deles. O ESTRANHO está bebendo pesado.] MULHER. Não beba tanto! ESTRANHO. Veja. Você tem escrúpulos, também! MULHER. Não. Mas não gosto de ver um homem que respeito caindo tanto assim. ESTRANHO. Mas eu vim aqui especialmente para isso; tomar um banho de lama que poderia endurecer minha pele contra os golpes da vida. Buscar apoio em meio à escória. E escolhi sua companhia, porque você é a mais desprezível, embora ainda possua uma centelha de humanidade. Você se sentiu penalizada por mim, quando ninguém mais se importou comigo. Nem eu mesmo. Por quê? MULHER. Eu não sei. Realmente, não sei. ESTRANHO. Mas você deve saber que há momentos em que a gente se parece muito bonito. MULHER. Oh, ora, ouçam só! ESTRANHO. Sim. E depois você se parece com uma mulher que me foi muito querida.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MULHER. Obrigada! GARÇONETE. Não falem tão alto, tem um homem doente aqui. ESTRANHO. Diga, você já se apaixonou? MULHER. Nós não usamos essa palavra, mas eu sei o que você quer dizer. Sim. Já tive um amor e tivemos um filho. ESTRANHO. Que coisa maluca! MULHER. Eu pensava assim, também, mas ele disse que os dias da liberação haviam chegado, quando todas as correntes seriam quebradas, todas as barreiras cairiam, e... ESTRANHO. (torturado) E depois..? MULHER. Depois ele me deixou. ESTRANHO. Ele era um cafajeste. (Bebe.) MULHER. (olhando para ele) Você acha isso? ESTRANHO. Sim. Ele deve ter sido.

331

ESTRANHO. (bebendo) Fiquei? MULHER. Não beba tanto assim; quero ver você muito acima de mim, caso contrário não poderá me levantar. ESTRANHO. Que ilusões você deve ter! Sua infantil! Eu levanto você! Eu que estou tão por baixo. Ainda que não esteja, não sou eu que estou aqui, porque estou morto. Eu sei que minha alma está muito distante, distante, muito distante... (Ele para, imóvel, com um ar distraído)... onde um grande lago repousa na luz do sol como ouro líquido; onde rosas florescem nos muros entre as vinhas; onde uma casinha branca se esconde sob as acácias. Mas a criança está adormecida e a mãe está sentada ao lado da casinha fazendo crochê .Há uma longa, longa faixa que sai de sua boca e nessa faixa está escrito... espere...”Abençoado seja o melancólico, pois ele será confortado”. Mas isso não é assim, de verdade. Eu nunca serei confortado. Diga-me, há um trovão no ar, vem se aproximando, tão quente? MULHER. (olhando para fora pela janela) Não. Não vejo nenhuma nuvem de chuva lá fora... ESTRANHO. Estranho... houve um raio. MULHER. Não. Você está enganado. ESTRANHO. Um, dois, três, quatro, cinco... agora o trovão deve chegar! Mas não veio. Nunca fiquei amedrontado com uma tempestade até este dia, quer dizer, esta noite. Mas é dia ou noite?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

MULHER. Agora você ficou tão intolerante.

August Strindberg

MULHER. Meu caro, é noite. ESTRANHO. Sim. É noite. (O MÉDICO entrou durante esta cena e se sentou atrás do ESTRANHO, sem ser visto por ele.) GARÇONETE. Não fale tão alto, tem uma pessoa doente aqui. ESTRANHO. (para a MULHER) Dê-me sua mão. MULHER. (enxugando-a em seu avental) Oh, por quê? ESTRANHO. Você tem uma mão branca delicada… Olhe a minha… É escura. Está vendo, é bem escura! MULHER. Sim, bem escura!

Tradução

332

ESTRANHO. Já escurecida, talvez apodrecendo? Preciso ver se meu coração parou. (Coloca a mão no coração.) Sim. Parou! Então estou morto, e sei quando morri. Estranho, estar morto e ainda estar caminhando. Mas onde estou? Todas essas pessoas estão mortas também? Parece que saíram todas dos esgotos da cidade, ou que vieram da prisão, de um asilo ou de um hospital de terminais. São trabalhadores da noite, sofrendo, gemendo, amaldiçoando, brigando, torturando uns aos outros, desonrando uns aos outros, invejando uns aos outros, como se possuíssem alguma coisa digna de inveja! O fogo do sono corre em suas veias, suas línguas se colam em seus palatos, crescidas com suas pragas; e depois cospem o ardor com água, com aguardente, que engendra sede fresca. Com aguardente, que queima com uma chama azul e consome a alma como fogo na mata seca, que nada deixa atrás de si senão terra vermelha. (Ele bebe.) Coloque fogo nisso. Cuspa de novo. Coloque fogo nisso. Cuspa de novo! Mas o que não se pode queimar – infelizmente – é a memória do que é passado. Como pode essa memória ser transformada em cinzas? GARÇONETE. Por favor, não fale tão alto, tem um homem doente aqui. Tão doente, que já pediu que lhe dessem a extrema unção. ESTRANHO. Que ele vá logo para o inferno! (Os presentes murmuram, ressentidos.) GARÇONETE. Tome cuidado! Tome cuidado! MULHER. (para o ESTRANHO) Você conhece esse homem que está sentado atrás de você, olhando para você todo o tempo? ESTRANHO. (virando-se. Ele e o MÉDICO se olham por um momento, sem se falarem) Sim. Houve um tempo em que nos conhecemos. MULHER. Ele olha como se quisesse lhe dar uma mordida nas costas. (O MÉDICO se senta em oposição ao ESTRANHO e o contempla.) ESTRANHO. Está olhando o quê? MÉDICO. Seu cabelo grisalho. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. (para a MULHER) Meu cabelo está grisalho? MULHER. Sim. Sem dúvida! MÉDICO. E agora estou olhando para sua simpática companheira. Às vezes você tem bom gosto. Às vezes não. ESTRANHO. E às vezes você tem o azar de ter o mesmo gosto que eu. MÉDICO. Essa não é uma observação delicada! Mas você já me matou duas vezes em sua vida; então, vamos em frente. ESTRANHO. (para a MULHER) Vamos sair daqui. MÉDICO. Você sabe quando estou perto. Você sente minha presença de longe. E vou alcançar você, como o som do trovão, até se se esconder de mim nas profundezas da terra ou do mar... Tente escapar de mim, se puder. ESTRANHO. (para a MULHER) Vem comigo. Guie-me... Não consigo ver nada... MULHER. Não, ainda não quero ir. Não quero me aborrecer.

ESTRANHO. Mas o que é isso? Espere! Ela prestou um falso testemunho de violação da paz e tentativa de assassinato! MÉDICO. Agora ele está pondo a culpa nela! ESTRANHO. (descansando a cabeça nas mãos e deixando-a mergulhar na mesa. Ao longe um violino e um violão tocam uma melodia) MÉDICO. (para a MULHER) Ele está doente? MULHER. Deve estar louco; diz que está morto. (Ao longe tambores batem o toque da alvorada e clarins acompanham, muito suavemente.) ESTRANHO. Já é de manhã? A noite está terminando, o sol nascendo e os fantasmas vão dormir novamente em seus túmulos. Agora posso ir. Venha! MULHER. (indo para perto do MÉDICO) Não. Eu disse não. ESTRANHO. Até você, o último de todos os meus amigos! Sou um sujeito tão desgraçado, que nem mesmo uma prostituta me fará companhia por dinheiro? MÉDICO. Deve ser. ESTRANHO. Não acredito nisso, embora todos me digam que sim. Não acredito em mais nada, pois toda vez que acreditei, fui enganado. Mas me diga uma coisa: o sol já saiu?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

333

Tradução

MÉDICO. Você está bem aí, filha da alegria! A vida é muito dura sem descarregar as tristezas que os outros colocaram em seus próprios ombros. Esse homem não quer carregar suas próprias tristezas, mas faz a mulher dele levar a carga dele.

August Strindberg

Há pouco ouvi um galo cantar e um cachorro latir e agora estão cantando o Angelus... Apagaram as luzes, por isso está tão escuro? MÉDICO. (para a MULHER) Ele deve estar cego. MULHER. Sim. Acho que está. ESTRANHO. Não. Posso ser você, mas não consigo ver as luzes. MÉDICO. Para você está ficando escuro... Você brincou com a iluminação. E olhou muito tempo para o sol. Isso é proibido para os homens. ESTRANHO. Nascemos com o desejo de fazer isso, mas não podemos. Isso é... Inveja... MÉDICO. O que você possui que seja digno de inveja? ESTRANHO. Alguma coisa que você nunca vai entender e à qual só eu posso dar valor. MÉDICO. Você quer dizer, a criança?

Tradução

334

ESTRANHO. Você sabe que não quis dizer isso. Se eu tivesse dito que possuo alguma coisa você jamais permitiria. MÉDICO. De volta ao mesmo assunto! Vou lhe falar bem claro: você levou o que eu faria. MULHER Oh! Eu jamais ficaria na companhia de um sujeito tão nojento! (Ela se levanta e caminha para outro banco.) ESTRANHO. Eu sei que afundamos muito; mas acredito que quanto mais baixo eu caio mais perto fico do meu objetivo: o fim! GARÇONETE. Não fale tão alto: tem um homem morrendo aqui! ESTRANHO. Acredito em você. Todo o tempo senti cheiro de cadáveres aqui. MÉDICO. Seriam talvez os nossos? ESTRANHO. Pode alguém estar morto sem suspeitar disso? MÉDICO. Os mortos afirmam que não conhecem qualquer diferença. ESTRANHO. Você me assusta. Isso é possível? E todas essas figuras obscuras, cujas faces penso reconhecer como memórias de minha juventude na escola, na piscina, na quadra de esportes... (Aperta o coração.) Oh! Agora ele está chegando: o Terrível, que arranca o coração para fora do peito. O Terrível, que está me seguindo há anos. Ele está aqui! (Fora de si. As portas se abrem; um garoto do coro da igreja entra com uma lanterna de vidro azul que lança uma luz azulada nos convidados; ele toca o sino de prata. Todos os presentes começam a uivar como feras selvagens. O DOMINICANO então entra com a extrema unção. A GARÇONETE e a mulher se ajoelham, os outros gritam .O DOMINICANO levanta o sacrário; todos caem de joelhos. O menino do coro e o DOMINICANO entram no quarto à esquerda.) D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MENDIGO. (entrando e caminhando na direção do ESTRANHO) Saia daqui. Você está doente. E oficial de justiça tem uma citação para você. ESTRANHO. Uma citação? Quem a solicitou? MENDIGO. Sua esposa. MÉDICO. A enguia elétrica ataca a grande distância. Uma vez ela quis me processar por calúnia, porque não podia ficar fora à noite. ESTRANHO. Não podia ficar fora à noite? MÉDICO. Sim. Você não conhecia com quem estava casado? ESTRANHO. Ouvi que ela tinha estado noiva antes de… se casar com você. MÉDICO. Sim. È assim que se chamava, mas na realidade ela era amante de um homem casado, que ela denunciou por estupro, depois de a ter forçado no estúdio dele e de ela ter posado nua para ele como modelo. ESTRANHO. E essa era a mulher com quem você se casou?

ESTRANHO. Eu o fiz porque logo vi que não seria bom escolher entre iguais. MENDIGO. Saia daqui. Vai se arrepender se não sair. ESTRANHO. (para o MÉDICO) Ela sempre foi religiosa? MÉDICO. Sempre. ESTRANHO. E terna, de bom coração, abnegada? MÉDICO. Com certeza! ESTRANHO. Alguém conseguiria entendê-la? MÉDICO. Não. Mas você vai ficar louco se continuar pensando nela. É por isso que se tinha de aceitá-la como ela era. Fascinante, inebriante! ESTRANHO. Sim, eu sei. Mas ninguém pode contra a piedade. È por isso que não quero lutar essa luta. Não posso me defender sem a atacar, e não quero fazer isso. MÉDICO. Você era casado antes. Como era? ESTRANHO. A mesma coisa. MÉDICO. Esse amor age como alucinógeno: você vê sóis onde não há nenhum, e estrelas onde elas não existem! Mas é uma sensação agradável, enquanto dura!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

335

Tradução

MÉDICO. Sim. Depois que me seduziu, ela me denunciou por quebra de promessas, então tive que me casar. Contratou dois detetives para impedirem que eu fosse embora. E essa era a mulher com quem você se casou!

August Strindberg

ESTRANHO. E na manhã seguinte? Oh, na manhã seguinte! MENDIGO. Vamos, homem infeliz! Ele está envenenando você, e você não percebeu. Vamos! ESTRANHO. (levantando-se) Me envenenando? Acha que está mentindo para mim MENDIGO. Toda palavra que ele disse era mentira. ESTRANHO. Não acredito nisso. MENDIGO. Não. Você só acredita em mentiras. Mas isso te faz bem. ESTRANHO. Ele estava mentindo? Estava? MENDIGO. Como você pode acreditar em seus inimigos? ESTRANHO. Mas ele é meu amigo, porque me disse a verdade mais amarga. MENDIGO. Poderes Eternos, salvem a razão desse homem! Pois ele acredita que todo o mal é verdadeiro, e todo bem é o mal. Vamos, ou você estará perdido!

Tradução

336

MÉDICO. Ele já está perdido! E agora vai ser transformado em espuma, esmigalhado em átomos, e usado como ingrediente numa grande panqueca. Vão pro inferno! (Aos presentes.) Uivem como vítimas numa cova. (Todos os convidados uivam.) E nunca mais piedade para as mulheres. Uive, mulher! (A MULHER faz um gesto de recusa com a mão.) ESTRANHO. (para o MENDIGO) Esse homem não estava mentindo. Cortina.

CENA II NUMA RAVINA [Uma ravina com um riacho no centro, que é cruzado por uma pinguela. Nas cercanias, uma ferraria e um moinho, ambos em ruínas. Árvores caídas impedem a corrente. No fundo, um céu estrelado acima de um bosque de pinheiros. A constelação de Orion é claramente visível.] [O ESTRANHO e o MENDIGO entram. Neve nas redondezas; ao fundo o verde do verão.] ESTRANHO. Estou com medo! Nesta noite as estrelas parecem dependuradas tão baixo, que eu temo que caiam sobre mim como gotas de prata derretida. Onde estamos? MENDIGO. Na ravina, perto da corrente. Você deve conhecer o lugar. ESTRANHO. Se eu o conheço? Como se pudesse tê-lo esquecido! Ele me lembra de minha lua de mel. Mas onde estão a ferraria e o moinho? MENDIGO. Tudo em ruínas! O lago de lágrimas foi drenado faz uma semana. A corrente D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

brotou, depois o rio, até que tudo foi devastado, campos e jardins. ESTRANHO. E aquela casa quieta? MENDIGO. O velho pecado foi varrido, mas as paredes ficaram de pé. ESTRANHO. E as pessoas que moravam ali? MENDIGO. Foram embora para as colônias, de modo que a história chegou ao fim. ESTRANHO. Então minha história chegou ao fim também. Tão definitivamente no fim, que não sobrou nenhuma memória feliz. A última foi enlouquecida pelo envenenador... MENDIGO. Cujo veneno você preparou. Pode declarar sua falência. ESTRANHO. Sim. Agora vou ter de desistir. MENDIGO. Então o dia do juízo está prestes a chegar. ESTRANHO. Acho que podemos dizer que estamos quites; porque, se eu pequei, eu fui punido. MENDIGO. Mas outras pessoas certamente não pensam assim.

337

MENDIGO. Libertar os homens de seus deveres, ou os criminosos de seus sentimentos de culpa, de modo que pudessem se tornar realmente inescrupulosos! Você não foi o primeiro, nem será o último, a se dedicar à obra do diabo. Lucifer a non lucendo! Mas quando Reynard ficar velho, ele vai se tornar monge - -tão sabiamente ele foi ordenado – e então vai ser forçado a se dividir em dois e afastar Belzebu com seu saco de dores. ESTRANHO. Eu posso ser forçado a isso? MENDIGO. Sim. Embora você não o queira! Você será forçado a rezar contra si mesmo do alto dos telhados das casas. A esfiapar suas roupas centímetro por centímetro. A se esfolar vivo em toda esquina, e mostrar o que você realmente é. Mas para isso é preciso coragem. Ainda assim, um homem que brincou com o trovão não poderá tremer! Entretanto, às vezes, quando a noite cai e os Invisíveis, que só podem ser vistos na escuridão, cavalgam em seu peito, então ele sentirá medo – até mesmo das estrelas, e dentre elas o Moinho de Pecados, que tritura o passado, e o tritura, e o tritura!... Um dos setecentos e dezessete Sábios disse que a maior vitória que ele conseguiu foi contra si mesmo; mas homens loucos não acreditam nisso, e por isso estão enganados; porque só dão crédito ao que novecentos e dezenove loucos disseram mais de mil vezes. ESTRANHO. Chega! Diga; é neve isso que está no chão?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

ESTRANHO. Parei de me preocupar com os outros, desde que vi que os Poderes que guiam os destinos da humanidade não aceitam cúmplices. O crime que eu cometi nesta vida foi o de querer libertar os seres humanos...

August Strindberg

MENDIGO. Sim. É inverno aqui. ESTRANHO. Mas lá para cima está tudo verde. MENDIGO. É verão lá. ESTRANHO. E luz crescente! (Um claro raio de luz cai sobre a pinguela.) MENDIGO. Sim. Tem luz lá, e escuro aqui. ESTRANHO. E quem são aqueles? (Três crianças, usando roupas de verão, duas meninas e um menino, chegam à ponte vindo da direita.) Ho! Meus filhos! (As crianças param para ouvir, e então olham para o ESTRANHO sem parecer tê-lo reconhecido. O ESTRANHO chama.) Gerda! Erik! Thyra! É seu pai! (As crianças parecem tê-lo reconhecido; viram-se para a esquerda.) Não me conhecem. Não querem me conhecer (Um homem e uma mulher entram pela direita. As crianças dançam para a direita e desaparecem. O ESTRANHO cai ao chão, olhando para o solo.) MENDIGO. Alguma coisa parecida com isso era de se esperar. Essas coisas acontecem. Levante-se!

Tradução

338

ESTRANHO. (erguendo-se) Onde estou? Onde estive? È primavera, inverno ou verão? Em que século estou vivendo, em que hemisfério? Sou uma criança ou um velho, homem ou mulher, um deus ou o diabo? E quem é você? Você é você, ou você é eu? São as minhas entranhas que sinto em cima de mim? Isso no meu olho é estrelas ou feixes de nervos; aquilo ali é água, ou lágrimas? Espere! Agora estou me movendo mil anos para a frente no tempo, e começando a afundar, a ficar mais pesado e a cristalizar! Logo vou ser recriado e vai emergir das águas escuras do Caos a flor de Lótus que vai estreitar a cabeça dela ao sol e dizer: devo ter dormido por alguns milhares de anos e sonhado que explodi e me tornei éter, e não pude mais sentir, não pude mais sofrer, não pude mais ser feliz; mas entrei num estado de paz e equilíbrio. Mas agora! Agora! Sofro tanto quanto se eu fosse toda a humanidade. Sofro e não tenho o direito de me lamentar... MENDIGO. Então sofra, e quanto mais sofrer mais as dores antigas vão deixar você. ESTRANHO. Não. Meus sofrimentos são eternos... MENDIGO. E só transcorreu um minuto. ESTRANHO. Não posso suportar isso. MENDIGO. Então você precisa de ajuda. ESTRANHO. O que mais vai acontecer? Ainda não é o fim? (A luz aumenta sobre a ponte. CÉSAR entra e se lança do parapeito; então o MÉDICO aparece à direita, com a cabeça sem cabelos e com um olhar selvagem. Comporta-se como se tivesse se atirado à corrente também.) ESTRANHO. Ele se vingou tão completamente, que não desperta nenhum remorso de

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

consciência! (O MÉDICO sai, pela esquerda. A IRMÃ entra, pela direita, como se estivesse procurando alguém.) Quem é? MENDIGO. A irmã dele não casada, que não pode se sustentar, e não tem um lar para onde ir. Ficou desesperada desde que o irmão perdeu o juízo de tristeza e se quebrou em pedaços. ESTRANHO. É um destino dos mais tristes. Pobre criatura, o que se pode fazer? Mesmo que eu sentisse seus sofrimentos, isso não a ajudaria. MENDIGO. Não. Não adiantaria de nada. ESTRANHO. Por que remorsos de consciência vêm depois, e não antes? Pode me ajudar com isso MENDIGO. Não. Ninguém pode. Vamos embora. ESTRANHO. Para onde? MENDIGO. Vem comigo. Cortina.

339

Tradução

CENA III O QUARTO ROSA” [A DAMA, vestida de branco, está sentada perto do berço fazendo crochê. O vestido verde está dependurado perto da porta à direita. O ESTRANHO entra, e olha ao redor espantado.] DAMA. (simplesmente, docemente, sem qualquer traço de surpresa) Pise suavemente e venha aqui, se quiser ver algo adorável. ESTRANHO. Onde estou? DAMA. Quieto! Olhe para esse pequeno estranho que chegou quando você estava longe daqui. ESTRANHO. Disseram-me que o rio subiu e inundou tudo. DAMA. Por que você acredita em tudo que lhe contam? O rio subiu sim ,mas esta pequena criatura tem quem a proteja e aos seus. Você não gostaria de ver sua filha? (O ESTRANHO caminha na direção do berço. A DAMA levanta a cortina.) Ela é adorável! Não é? (O ESTRANHO olha sombriamente para a frente dele.) Não quer olhar? ESTRANHO. Tudo está envenenado. Tudo! DAMA. Bom, talvez!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

August Strindberg

ESTRANHO. Você sabe que ele perdeu o juízo e está perambulando pela vizinhança, seguido por sua irmã, que está procurando por ele? Ele está sem um tostão, e bebendo... DAMA. Oh, meu Deus! ESTRANHO. Por que você não me repreende? DAMA. Você vai se repreender suficientemente: prefiro lhe dar um bom conselho. Vá ao Convento de São Salvador, lá vai encontrar um homem que o pode libertar do mal que você teme. ESTRANHO. O quê? No convento, eles amaldiçoam e prendem? DAMA. E libertam também! ESTRANHO. Francamente, acho que você está tentando me enganar, não confio mais em você. DAMA. Nem eu, em você! Então veja isso como sua visita de adeus.

Tradução

340

ESTRANHO. Essa era minha intenção, mas antes queria descobrir se temos a mesma ideia... DAMA. Veja: não podemos construir qualquer felicidade sobre as tristezas de outros; então devemos nos separar. Esse é o único modo de diminuir os sofrimentos dele. Eu tenho minha criança, que vai preencher minha vida para mim; e você tem o grande objetivo de sua ambição... ESTRANHO. Ainda vai zombar de mim? DAMA. Não, por quê? Você resolveu o grande problema. ESTRANHO. Fique quieta! Não fale mais nisso, mesmo que acredite. DAMA. Mas se todo o resto das pessoas acredita também... ESTRANHO. Ninguém acredita naquilo agora. DAMA. Diz o jornal de hoje que se fez ouro na Inglaterra. Ficou provado que é possível. ESTRANHO. Você está enganada. DAMA. Não! Oh, céus, ele não quer acreditar na sua própria boa sorte. ESTRANHO. Eu não acredito em mais nada. DAMA. Pegue o jornal no bolso do meu vestido ali adiante. ESTRANHO. O vestido verde de bruxa, que jogou um feitiço em mim num sábado à tarde, entre a hospedaria e a porta da igreja! Aquilo não vai ser bom para mim. DAMA. (apanhando o jornal ela mesma e também um grande pacote que estava no bolso

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

do vestido) Veja você mesmo. ESTRANHO. (rasgando o jornal) Não preciso olhar nada! DAMA. Ele não quer acreditar. Ele não quer. Embora os químicos queiram dar um banquete em sua honra no próximo sábado. ESTRANHO. Isso está no jornal também? Sobre o banquete? DAMA. (dando-lhe o pacote) E aqui está o diploma de honra. Leia! ESTRANHO. (rasgando o pacote) Talvez haja também uma condecoração do Governo! DAMA. Aqueles a quem os deuses querem destruir primeiro ficam cegos! Você fez sua descoberta sem boas intenções, e, portanto, não lhe foi permitido ser o único a ter sucesso. ESTRANHO. Agora vou embora. Porque não quero ficar aqui e ver minha vergonha ser exibida! Eu me tornei motivo de chacota, então vou me esconder – me enterrar vivo por aí porque não quero morrer. DAMA. Então vá! Vamos partir para as colônias em poucos dias. ESTRANHO. Está sendo franca, finalmente! Talvez estejamos perto de uma solução.

Tradução

DAMA. Do enigma: por que nos encontramos? ESTRANHO. Por que tínhamos de fazê-lo? DAMA. Para nos torturarmos um ao outro. ESTRANHO. Isso seria tudo? DAMA. Você pensava que me salvaria de um lobisomem, que realmente não era isso, e então você se tornou um. E então eu tinha que salvá-lo do mal jogando todo o mal que havia em você em mim mesma, e eu o fiz, mas o resultado foi que você se tornou ainda pior. Meu pobre libertador! Agora você está de mãos e pés amarrados e nenhum mágico conseguirá deixar você livre. ESTRANHO. Adeus, e obrigado por tudo o que fez. DAMA. Adeus, e obrigado... por isto! (Ela aponta o berço.) ESTRANHO. (indo para o fundo) Primeiro talvez eu deva sair daqui. DAMA. Sim, meu caro. Saia! (O ESTRANHO sai pela porta do fundo. A DAMA caminha até a porta à direita e entra o DOMINICANO – que é também o MENDIGO.) CONFESSOR. Ele está pronto agora? DAMA. Só restou a esse homem infeliz abandonar o mundo e se enterrar num mosteiro. CONFESSOR. Então ele não acredita ser o grande inventor que ele sem dúvida é?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

341

D R A M AT U R G I A S

August Strindberg

DAMA. Não. Ele não acredita em nada de bom para ninguém, nem mesmo para si próprio. CONFESSOR. Essa é a punição que o Céu enviou a ele: acreditar em mentiras, porque não quis ouvir a verdade. DAMA. Torne leve essa carga de culpa para ele, se puder. CONFESSOR. Não. Se eu o fizesse, ele só se tornaria insolente e acusaria Deus de malevolência e injustiça. Esse homem é um demônio, que precisa ser mantido confinado. Ele pertence à perigosa raça dos rebeldes, ele faria mau uso de seus dons, se pudesse, para fazer o mal. E o poder dos homens para o mal é imensurável. DAMA. Por favor, pelo... apreço que você demonstra por mim, você poderia tornar só um pouquinho mais confortável esse peso, naquilo que ele tem de opressivo e censurável?

342

CONFESSOR. Você tem que fazer isso, de modo que ele possa deixar você na crença de que você tem um lado bom, e que você não é o que seu primeiro marido disse a ele que você era. Se ele acreditar em você, eu o libertarei depois, exatamente como o prendi quando me confessou, no convento de São Salvador, no período em que ficou doente.

Tradução

DAMA. (indo para o fundo e abrindo a porta) Como quiser! ESTRANHO. (voltando) Então aí está o Ser Terrível! Como ele veio aqui? Mas ele não é o mendigo, afinal de contas? CONFESSOR. Sim, eu sou seu terrível amigo, e estou aqui por sua causa. ESTRANHO. O quê? O que eu...? CONFESSOR. Sim. Uma vez você já me prometeu sua alma, sob juramento, quando ficou doente e se sentiu próximo da loucura. Foi quando você se ofereceu para servir os poderes do bem; mas quando ficou bom de novo quebrou seu juramento, e por isso foi amaldiçoado com inquietação, e perambulou perdido incapaz de encontrar paz - torturado por sua própria consciência. ESTRANHO. Quem é você realmente? Quem ousa meter a mão no meu destino? CONFESSOR. Tem que perguntar isso a ela. DAMA. Este é o homem com quem primeiro me casei, e que dedicou sua vida ao serviço de Deus, quando o deixei. ESTRANHO. Como se Ele existisse! DAMA. Então você não precisa pensar tão mal de si mesmo porque foi você quem puniu minha incredulidade e a falta de consciência da outra pessoa. ESTRANHO. O pecado dele não justifica os meus. Isso naturalmente é falso, como tudo

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

o mais; e você só diz isso para me consolar. CONFESSOR. Mas que alma infeliz ele é... ESTRANHO. E condenada também! CONFESSOR. Não! (para a DAMA.) Diga algo bom sobre ele DAMA. Ele não acreditaria, se eu disser; ele só acredita no mal! CONFESSOR. Então eu tenho que dizer uma coisa. Um mendigo chegou uma vez e pediu a ele um copo d’água, mas em vez disso ele me deu vinho e me fez me sentar à sua mesa. Você se lembra disso? ESTRANHO. Não. Não ocupo minha memória com tais ninharias. CONFESSOR. Orgulho! Orgulho! ESTRANHO. Chame de orgulho, se quiser. É o último vestígio de nossa origem divina. Vamos, antes que escureça.

DAMA. Não o machuque! ESTRANHO. (com paixão) Que bonitinho ela pode falar, embora seja o mal. Olhe para os olhos dela; eles não podem chorar, mas podem lisonjear, picar ou mentir! E no entanto ela diz: Não o machuque! Veja, agora ela teme que eu acorde a criança, o pequeno monstro que a roubou de mim ! Venha, padre, antes que eu mude de ideia. Cortina.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

343

Tradução

CONFESSOR. “Pois o mundo todo brilhou com clara luz e ninguém foi atrapalhado em seu trabalho. Sobre esses só se espalhou uma pesada noite, imagem de escuridão que deveria recebê-los mais tarde; mas eram em si mesmos mais angustiosos que a escuridão.”

August Strindberg

PARTE III. PERSONAGENS: O ESTRANHO A DAMA O CONFESSOR O MAGISTRADO O PRIOR O TENTADOR A FILHA Figuras menos importantes: RECEPCIONISTA PRIMEIRA VOZ SEGUNDA VOZ

Tradução

344

ADORADORES DE VÊNUS MAIA PEREGRINO PAI MULHER EVA PRIOR PADRE ISIDOR (O MÉDICO da parte I) PADRE CLEMENS PADRE MELKE CENAS: ATO I

Na margem do rio

ATO II

Encruzilhadas nas montanhas

ATO III

CENA I

Terraço

CENA II

Paisagem rochosa

CENA III

Casa pequena na montanha onde fica o mosteiro

CENA I

Casa do Capítulo

CENA II

Galeria de Pinturas

CENA III

Capela do mosteiro

ATO IV

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ATO I NA MARGEM DO RIO [O lugar representa a margem de um rio grande. À direita, uma língua de terra coberta de velhos salgueiros. Mais longe, acima do palco, pode-se ver um rio fluindo tranquilamente. O pano de fundo representa a margem distante, uma montanha escarpada coberta de floresta. Acima do topo das árvores da floresta pode ser visto o Mosteiro; é um enorme edifício de quatro cantos completamente branco, com duas fileiras de janelas pequenas. A fachada é quebrada pela Igreja pertencente ao Mosteiro, flanqueada por duas torres no estilo favorito dos Jesuítas. A Igreja está aberta, e num dado momento o ostensório sobre o altar fica visível à luz do sol. Na margem próxima, em primeiro plano, que é baixa e arenosa, crescem prímulas nas cores púrpura e amarelo. Um barco raso está atracado perto. À esquerda a cabana do barqueiro. É uma tardinha de começo de verão e o sol está baixo; no primeiro plano, o rio e a parte inferior do pano de fundo estão na sombra; e as árvores na margem distante sacodem suavemente com a brisa. Só o Mosteiro é iluminado pelo sol.]

ESTRANHO. Por que me trouxe por esse caminho cheio de curvas e elevações que nunca termina? CONFESSOR. Este é o caminho, meu amigo. Já estaremos lá. (Leva o ESTRANHO mais para o fundo. O ESTRANHO vê o Mosteiro e fica encantado com a visão; tira o chapéu e coloca no chão o bastão e a mochila.) E? ESTRANHO. Nunca vi nada tão branco nessa terra tão poluta Só nos meus sonhos! Sim, meu sonho de juventude de uma casa em que habitassem a paz e a pureza. Deus te abençoe, casarão branco! Agora eu cheguei em casa! CONFESSOR. Bom, bom! Mas primeiro temos que esperar os peregrinos nesta margem. Chamam-na de margem do adeus, por causa do costume de dizer adeus aqui, antes que o barqueiro leve os acompanhantes de volta. ESTRANHO. Será que eu já não disse adeuses em número suficiente? Não foi minha vida toda um espinhoso caminho de adeuses? Em correios, convés de vapores, estações de ferrovias – com o agitar de lenços molhados de lágrimas? CONFESSOR. Mas sua voz ainda treme com a dor do que perdeu. ESTRANHO. Não sinto que perdi nada. Não quero nada de volta. CONFESSOR. Nem mesmo sua juventude?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

345

Tradução

[O ESTRANHO e o CONFESSOR entram pela direita. O ESTRANHO está vestindo roupas alpinas: uma capa marrom com pelerine e capuz; tem um bastão e mochila. Está mancando levemente. O CONFESSOR usa o hábito preto e branco dos Dominicanos. Param num lugar em que um salgueiro impede a visão do Mosteiro.]

August Strindberg

ESTRANHO. Muito menos ela. O que eu faria com ela e sua capacidade de sofrer? CONFESSOR. E de se satisfazer? ESTRANHO. Eu nunca me satisfiz com nada porque nasci com um espinho na carne; toda vez que abri minha mão para agarrar um prazer, eu furei meu dedo e Satã me bateu no rosto. CONFESSOR. Porque seus prazeres eram básicos. ESTRANHO. Não tão básicos. Tive minha própria casa, uma esposa, filhos, deveres, obrigações para com os outros! Não, eu nasci em desvantagem, um filho adotado da vida, e fui perseguido, caçado, em uma palavra, amaldiçoado! CONFESSOR. Porque você não obedeceu aos mandamentos de Deus.

346

CONFESSOR. Você voltou a esse ponto, senhor rebelde?

Tradução

ESTRANHO. Mas ninguém pode, como o próprio São Paulo diz! Por que eu seria capaz de fazer o que ninguém mais pode fazer? Eu entre todos os homens? Porque se acha que eu sou um canalha. Porque se exige mais de mim do que dos outros... (Gritando.) Porque fui tratado com injustiça. ESTRANHO. Sim. Eu nunca saí dele. Agora vamos atravessar o rio. CONFESSOR. Você acha que se pode subir para aquele casarão branco sem preparação? ESTRANHO. Eu estou pronto. Pode me examinar. CONFESSOR. Muito bem! O primeiro voto monástico é: humildade. ESTRANHO. E o segundo: obediência! Nenhum deles era uma virtude especial em mim; é por essa razão que quero fazer a grande tentativa. CONFESSOR. E exibir seu orgulho através de sua humildade. ESTRANHO. Seja o que for, para mim é a mesma coisa. CONFESSOR. O quê, tudo? O mundo e seus melhores presente: a alegria das crianças inocentes, o calorzinho agradável do lar, a aprovação de seus amigos camaradas, a satisfação trazida pelo cumprimento do dever – você é indiferente a tudo isso? ESTRANHO. Sim! Porque eu nasci sem o poder de satisfação. Houve momentos em que fui objeto de inveja; mas nunca compreendi porque eu era invejado: meus sofrimentos de infortúnio, minha falta de paz no sucesso; ou o fato de que não ia viver muito. CONFESSOR. É verdade que a vida lhe deu tudo que você desejou; até mesmo um pouco de ouro no final. Porque ainda me lembro que um escultor foi contratado para fazer um busto seu. ESTRANHO. Oh sim! Fizeram um busto meu. D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

CONFESSOR. Você está, entre todos os homens, impressionado com essas coisas? ESTRANHO. Claro que não! Mas elas montam pelo menos apreciações sólidas, que nem a inveja nem a ausência de entendimento poderão sacudir. CONFESSOR. Você acha? Parece que a grandeza humana reside na boa opinião dos outros; e que, se essa opinião muda, a grandeza pode rapidamente escorrer pelo ralo. ESTRANHO. As opiniões dos outros nunca significaram muito para mim. CONFESSOR. Não? De verdade? ESTRANHO. Ninguém foi tão severo consigo mesmo como eu fui! E ninguém foi tão humilde! Todos exigiram meu respeito, enquanto me repeliam e me estapeavam. E quando finalmente descobri que tinha deveres para com a alma universal que me foi dada para guardar, comecei a exigir respeito para com essa alma imortal. Então fui taxado de o mais orgulhoso dentre os orgulhosos! E por quem? Pelos mais orgulhosos de todos entre os humildes e os submissos. CONFESSOR. Eu acho que você está se enrolando em contradições.

CONFESSOR. Bem, o que você procura, o quê? ESTRANHO. Aquilo que já lhe disse; mas vou acrescentar o seguinte: estou procurando a morte sem necessidade de morrer! CONFESSOR. A mortificação de sua carne, de seu próprio espírito! Bom! Agora, atenção: os peregrinos estão chegando em suas jangadas de madeira para celebrar a festa de Corpus Christi. ESTRANHO. (olhando para a direita, com surpresa) Quem são eles? CONFESSOR. Pessoas que acreditam em alguma coisa. ESTRANHO. Então ajude minha descrença! (Luz do sol cai novamente sobre o ostensório na igreja acima, de modo que ele brilha como um vidro de janela no por do sol.) O sol entrou na igreja, ou... CONFESSOR. Sim. O sol entrou... (A primeira jangada chega pela direita. Crianças vestidas de branco, com guirlandas nas cabeças e com lanternas acesas nas mãos, são vistas

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

347

Tradução

ESTRANHO. Eu também acho! Porque a vida não consiste de nada, só de contradições. Os ricos são os pobres de espírito; os muitos homens pequenos detêm o poder; e o grande só se serve dos homens pequenos. Nunca encontrei tanta gente orgulhosa como os humildes; nunca encontrei um homem educado que se acreditou capaz de criticar a educação. Encontrei os mais desagradáveis dos pecados mortais entre os Santos: estou falando de autocomplacência. Na minha juventude eu mesmo era um santo, mas nunca fui tão indigno quanto era então. Quanto melhor pensava de mim, pior eu me tornava.

August Strindberg

ao redor de um altar enfeitado de flores e sobre o qual foi plantada uma bandeira branca com um lírio dourado. Elas cantam, enquanto a jangada desliza lentamente.) Bendito seja o que teme o Senhor, / Beati omnes, qui timent Dominum, / e caminha os seus caminhos, / Qui ambulant in viis ejus. / terá seu alimento com a obra de suas mãos, / Labores manuum tuarum quia manducabis; / Bendito seja e a paz esteja com você / Beatus es et bene tibi erit. (Uma segunda jangada aparece com meninos de um lado e meninas do outro. Tem uma bandeira com uma rosa.) Sua esposa será como uma videira frutífera, / Uxor tua sicut vitis abundans, / Na sua casa dentro, / In lateribus domus tuae. (A Terceira jangada traz homens e mulheres. Tem uma bandeira com frutos desenhados: figos, uvas, romãs, melões, espigas de trigo, etc.) / Filii tui sicut novellae olivarum,/ Seus filhos serão como ramos de oliveira / ao redor de sua mesa / In circuitu mensae tuae. (A quarta jangada está cheia de velhos e velhas. A bandeira tem a representação de um abeto sob a neve.) Vê, como é bendito e homem / Ecce sic benedicetur homo/, Que teme o Senhor, / Qui timet Dominum! (A jangada desliza e passa.) ESTRANHO. O que estão cantando?

Tradução

348

CONFESSOR. Uma canção de peregrinos. ESTRANHO. Quem a escreveu? CONFESSOR. Alguém da corte. ESTRANHO. Aqui? Qual seu nome? Ele escreveu mais alguma coisa? CONFESSOR. Cerca de cinquenta canções; chamava-se Davi, o filho de Isaías! Mas ele nem sempre escreveu salmos. Quando era jovem, fez outras coisas. Sim. Essas coisas acontecem! ESTRANHO. Podemos ir agora? CONFESSOR. Num momento. Tenho algo a lhe dizer primeiro. ESTRANHO. Fale. CONFESSOR. Bem. Mas não fique triste ou zangado. ESTRANHO. Claro que não. CONFESSOR. Aqui, você vê, nesta margem, você é bem conhecido – digamos – famoso, mas fora daqui, na outra margem, você será um ilustre desconhecido para os irmãos. Nada mais, de fato, do que um ordinário homem comum. ESTRANHO. Oh! Eles não leem no Mosteiro? CONFESSOR. Nada leve, apenas livros sérios. ESTRANHO. Sobretudo artigos, eu suponho?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

CONFESSOR. Não do tipo que escrevem sobre você! ESTRANHO. Então do outro lado deste rio a obra que foi minha vida não existe? CONFESSOR. Que obra? ESTRANHO. Entendi. Muito bem. Podemos atravessar agora? CONFESSOR. Num minuto. Não há ninguém de quem quisesse se despedir? ESTRANHO. (após uma pausa) Sim. Mas está além dos limites do possível. CONFESSOR. Você alguma vez se deparou com alguma coisa impossível? ESTRANHO. Na verdade, não, desde que vi meu próprio destino. CONFESSOR. Bom, quem é que você gostaria de encontrar? ESTRANHO. Uma vez eu tive uma filha; eu a chamava de Sylvia, porque cantava o dia todo como uma corruíra. Faz alguns anos que não a vejo; deve ser agora uma garota de dezesseis anos. Mas tenho medo de que se me encontrasse com ela agora, a vida voltaria a ter valor para mim. CONFESSOR. Você não teme nada mais?

Tradução

ESTRANHO. O que quer dizer? CONFESSOR. Que ela pode ter mudado! ESTRANHO. Ela só pode ter mudado para melhor. CONFESSOR. Tem certeza disso? ESTRANHO. Sim. CONFESSOR. Ela virá até você. (Ele desce para a praia e acena para a direita.) ESTRANHO. Espere! Eu gostaria de saber se isso seria uma coisa sábia! CONFESSOR. Mal não vai fazer. (Ele acena mais uma vez. Um barco aparece no rio, uma jovem no remo. Ela usa roupa de verão, cabeça descoberta e cabelos loiros longos. Sai do barco atrás do salgueiro. O CONFESSOR caminha até chegar perto da cabana do barqueiro, mas continua à vista da plateia. O ESTRANHO acenou para a jovem e ela lhe respondeu. Ela agora adentra o palco, corre para os braços do ESTRANHO e o beija.) FILHA. Papai. Meu querido paizinho! ESTRANHO. Sylvia! Minha criança! FILHA. Como foi que você conseguiu chegar aqui em cima nessas montanhas? ESTRANHO. E você… como chegou aqui? Eu pensei que conseguiria me esconder tão bem.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

349

D R A M AT U R G I A S

August Strindberg

FILHA. Por que você queria se esconder? ESTRANHO. Pergunte-me o menos possível! Você se tornou uma moça linda. E eu fiquei de cabelos brancos. FILHA. Não. Você não está velho. Está tão jovem como quando nos separamos. ESTRANHO. Quando nos separamos! FILHA. Quando você nos deixou... (O ESTRANHO não responde.) Não está contente por nos encontrarmos outra vez? ESTRANHO. (emocionado) Sim! FILHA. Então mostre. ESTRANHO. Como posso estar contente, se hoje estamos nos separando para sempre? FILHA. Por quê? Onde você quer ir? ESTRANHO. (apontando para o mosteiro) Lá em cima!

Tradução

350

FILHA. (com um ar sofisticado) Para o mosteiro? Sim, agora que você falou, chego a pensar que seria mesmo melhor. ESTRANHO. Você acha mesmo? FILHA. (com pena, mas boa vontade) Quero dizer, se sua vida passada é um monte de ruínas... (adulando.) Agora você parece triste. Diga uma coisa. ESTRANHO. Diga uma coisa você, minha filha, isso está me preocupando mais que tudo. Você tem um padrasto? FILHA. Sim. ESTRANHO. E aí, como é? FILHA. Ele é muito bom e gentil. ESTRANHO. Com todas as virtudes que me faltam... FILHA. Você não está feliz que eu esteja em boas mãos? ESTRANHO. Boas, melhores, as melhores! Por que veio aqui com a cabeça descoberta? FILHA. Porque George está segurando meu chapéu. ESTRANHO. Quem é George? E onde está ele? FILHA. George é um amigo meu, e está esperando por mim ali acima na praia. ESTRANHO. Você está comprometida com ele? FILHA. Não. Claro que não!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Você quer se casar? FILHA. Nunca! ESTRANHO. Posso vê-lo por suas bochechas rosadas, como as de uma criança que acordou muito cedo; posso ouvi-lo por sua voz, que não é mais a de um passarinho gorjeador, mas a de um papagaio; posso senti-lo por seus beijos, que queima docemente como o sol de Maio; e pelos raios gelados de seu olhar, que me dizem que você está alimentando um segredo do qual está envergonhada, mas do qual você gostaria de se gabar. E seus irmãos e suas irmãs? FILHA. Estão muito bem, obrigada. ESTRANHO. Temos mais alguma coisa a nos dizer um ao outro? FILHA. (friamente) Talvez não. ESTRANHO. Agora você está parecida com sua mãe. FILHA. Como você sabe, se você nunca foi capaz de vê-la como ela era! ESTRANHO. Então você compreendeu isso, embora fosse tão nova?

351

ESTRANHO. Você tem mais alguma coisa para me ensinar? FILHA. Talvez! Mas no seu tempo não era considerado decente. ESTRANHO. Meu tempo já se foi e não existe mais, assim como Sylvia também não existe, mas é simplesmente um nome, uma lembrança. (Tira um guia turístico do bolso.) Veja este guia! Vê essas pequenas marcas feitas por dedos pequeninos, e outras por lábios um pouco úmidos? Você as fez quando tinha cinco anos; estava sentada no meu joelho no trem, e vimos os Alpes pela primeira vez. Você pensou que o que via era o Céu; e quando lhe expliquei que aquela montanha era o Jungfrau, você perguntou se podia beijar o nome no livro. FILHA. Não me lembro disso! ESTRANHO. As memórias deliciosas passam, mas as detestáveis permanecem! Você não se lembra de nada sobre mim? FILHA. Oh sim. ESTRANHO. Quieta! Sei o que quer dizer. Uma noite... uma noite assustadora, horrível... Sylvia, minha filha, quando eu fechei os olhos vi um pequeno anjo pálido, que dormia em meus braços quando estava doente; e que me agradeceu quando lhe dei um presente. Onde está ela que esperei tanto e que não existe mais, embora não esteja morta? Você, tal como é, parece uma estranha, a quem nunca conheci e que certamente não vou ver

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

FILHA. Aprendi a compreender com você. Se é que você pudesse se compreender.

August Strindberg

outra vez. Se Sylvia pelo menos estivesse morta e repousasse em seu túmulo, haveria uma capelinha onde eu poderia deixar minhas flores... Que estranho que é! Ela não está nem entre os vivos, nem entre os mortos. Talvez nunca tenha existido, e fosse apenas um sonho como tudo o mais. FILHA. (lisonjeira) Papai querido! ESTRANHO. É ela! Não, apenas a voz dela. (Pausa.) Então você pensa que minha vida é um monte de ruínas? FILHA. Sim. Mas por que falar dela agora? ESTRANHO. Porque me lembro que uma vez salvei sua vida. Você teve meningite por todo um mês e sofria uma enormidade. Sua mãe queria que o médico a livrasse de uma existência infeliz por meio de uma droga poderosa. Mas eu o impedi, e assim salvei você da morte e sua mãe da prisão. FILHA. Não acredito nisso! 352

FILHA. Você sonhou isso.

Tradução

ESTRANHO. Mas um fato pode ser real, mesmo que você não acredite nele. ESTRANHO. Quem pode saber se não sonhei tudo e não estou sonhando agora. Como gostaria que fosse assim! FILHA. Preciso ir, pai. ESTRANHO. Então adeus! FILHA. Posso escrever para você? ESTRANHO. O quê? Um dos mortos escrever para o outro? Cartas não vão me alcançar no futuro. E não posso receber visitas. Mas estou contente que tenhamos nos encontrado, pois agora não há nada mais no mundo a que eu possa me ligar. (Indo para a esquerda.) Adeus, garota ou mulher, como quer que eu a chame. Não é preciso chorar! FILHA. Não estava pensando em chorar, embora ouse dizer que a boa educação exija que eu chorasse um pouco. Bom, então, adeus! (Ela sai pela direita.) ESTRANHO. (para o CONFESSOR) Acho que me safei dessa! É uma dádiva nos separarmos ambos contentes. A humanidade, no fim das contas, faz progresso rápido, e o autocontrole aumenta enquanto o fluxo dos dutos de lágrimas diminui. Vi tantas lágrimas derramadas na minha vida, que me vi reduzido a esta secura. Ela era uma criança forte, justamente o tipo que uma vez eu quis ser. A coisa mais bonita que a vida pode oferecer! Ela repousa, como um anjo, envolta nos véus brancos de seu berço, com um cobertor azul que agasalhava seu sono. Azul e arqueado como o céu. Aquilo era o melhor: com o que se pareceria o pior?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

CONFESSOR. Não se alvoroce, mas mantenha o bom ânimo. Primeiro, jogue fora esse guia, já que está no fim da sua última viagem. ESTRANHO. Você fala desse aqui? Muito bem. (Abre o livro, beija uma das páginas e depois o lança no rio.) Alguma coisa mais? CONFESSOR. Se você tem alguma coisa de ouro ou prata, deve entregá-la para um pobre. ESTRANHO. Tenho um relógio de prata. Nunca tive um de ouro. CONFESSOR. Entregue-o para o ferreiro, e então você vai ganhar uma taça de vinho. ESTRANHO. Essa agora! Está parecendo uma execução! Talvez meus cabelos sejam cortados também CONFESSOR. Sim. Mais tarde. (Ele pega o relógio e vai para a porta da cabana do barqueiro, dizendo algumas palavras sussurradas com alguém que está lá dentro. Recebe uma garrafa de vinho em troca, que ele coloca na mesa.) ESTRANHO. (enche sua taça, mas não bebe nada) Nunca mais vou conseguir vinho quando subir para lá?

ESTRANHO. Já tive mulheres suficientes, elas não me tentam mais. CONFESSOR. Tem certeza? ESTRANHO. Total... Mas me diga uma coisa: o que você pensa das mulheres, que nunca põem os pés dentro de suas muralhas consagradas? CONFESSOR. Você ainda está fazendo perguntas? ESTRANHO. E por que uma abadessa jamais pode ouvir em confissão, nunca reza uma missa e não prega? CONFESSOR. Não sei responder isso. ESTRANHO. Porque a resposta poderia concordar com minhas ideias sobre esse tema. CONFESSOR. Seria um desastre se começássemos a concordar. ESTRANHO. De modo algum! CONFESSOR. Agora beba seu vinho. ESTRANHO. Não. Quero olhar para ele pela última vez. É bonito... CONFESSOR. Não se perca em meditações, as memórias repousam no fundo da taça.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

CONFESSOR. Vinho nenhum, e também não vai ver mulher alguma. Pode ouvir alguém cantando, mas não o tipo de canção que combina com mulheres e vinho.

353

August Strindberg

ESTRANHO. E o esquecimento, e as canções, e o poder – poder imaginário, mas por isso mesmo o maior poder. CONFESSOR. Espere aqui um momento. Vou chamar o barqueiro. ESTRANHO. Sh! Estou ouvindo alguém cantar, e posso ver... eu posso ver... Por um momento vi uma bandeira desfraldando num sopro de vento, e depois abaixando e colando ao mastro e ficando ali molemente como se fosse um mero pano de prato. Testemunhei minha vida inteira passando num segundo, com suas alegrias e tristezas, sua beleza e sua miséria! Mas agora não vejo mais nada. CONFESSOR. (indo para a esquerda) Espere aqui um momento, vou procurar o barqueiro. (O ESTRANHO se move no palco de modo que os raios do sol poente, que se projetam da direita através das árvores, lancem sua sombra através da margem e do rio. A DAMA entra, vindo da direita, em luto profundo. Sua sombra se aproxima lentamente da do ESTRANHO.)

Tradução

354

ESTRANHO. (que, para começar, olha apenas para sua própria sombra) Ah! O sol! Ele faz de mim uma forma sem sangue, um gigante, que pode caminhar sobre a água do rio, subir a montanha, deslizar sobre o teto da igreja do mosteiro, e subir, como faz agora, para o firmamento – direto para as estrelas. Ah, agora estou aqui com as estrelas... (Ele percebe a sombra da DAMA.) Mas quem está me seguindo? Quem está interrompendo minha ascensão? Tentando subir nos meus ombros? (Virando-se.) Você! DAMA. Sim. Eu! ESTRANHO. Tão escura! Tão escura e tão a cara do mal. DAMA. Longe de ser o mal. Estou de luto... ESTRANHO. Por quem? DAMA. Por nossa Mizzi. ESTRANHO. Minha filha! (A DAMA abre os braços, para se atirar ao peito dele, mas ele a evita.) Felicito a criança morta. Sinto muito por você. Eu me sinto fora de tudo isso. DAMA. Conforte-me, também. ESTRANHO. Uma ótima ideia! Tenho de confortar minha fúria, chorar meu carrasco, divertir meu torturador. DAMA. Você não tem sentimentos? ESTRANHO. Nenhum! Desperdicei os sentimentos que costumava possuir por você e pelos outros. DAMA. Você está certo. Pode me censurar. ESTRANHO. Não tenho tempo nem vontade de fazer isso. Para onde está indo?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

DAMA. Quero atravessar com o barco. ESTRANHO. Então estou mesmo sem sorte, pois queria fazer a mesma coisa. (A DAMA chora em seu lenço. O ESTRANHO toma-o dela e seca seus olhos.) Seque seus olhos, criança, e volte a si! Tão dura, e insensível, como você realmente é! (A DAMA tenta colocar um braço em torno do pescoço dele. O ESTRANHO bate no braço dela suavemente com os dedos.) Você não deve tocar em mim. Quando suas palavras e seus olhares não eram suficientes, você sempre queria me tocar. Você vai me desculpar uma pergunta trivial: você está com fome? DAMA. Não. Obrigado. ESTRANHO. Mas você está cansada. Sente-se. (A DAMA senta-se à mesa. O ESTRANHO atira a garrafa e a taça no rio.) Bom, o que vai fazer para viver agora? DAMA. (com tristeza) Não sei. ESTRANHO. Para onde vai? DAMA. (soluçante) Não sei.

DAMA. Você quer dizer?... ESTRANHO. Seu primeiro marido. DAMA. Parece que ele nunca vai morrer. ESTRANHO. Como um certo verme, um caruncho! (Pausa.) E agora que estamos longe do mundo e sua animalidade, me conte uma coisa: Por que você o abandonou naquela ocasião e ficou comigo? DAMA. Porque eu amava você. ESTRANHO. E quanto tempo isso durou? DAMA. Até que li seu livro, e a criança nasceu. ESTRANHO. E depois? DAMA. Eu odiei você! Quer dizer, eu queria me livrar de todo o mal que você me fazia, mas não podia. ESTRANHO. Então era assim que era! Mas nunca soubemos realmente a verdade. DAMA. Você percebeu como era impossível descobrir coisas? Você pode viver com uma pessoa e suas relações durante vinte anos, e nunca saber nada sobre elas.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

355

Tradução

ESTRANHO. E então, bateu o desespero? Não vê qualquer razão para viver e nenhum ponto final para sua miséria! Como você é tão igual a mim! Que pena que não existam mosteiros para ambos os sexos, se não poderíamos formar um casal. O lobisomem ainda está vivo?

August Strindberg

ESTRANHO. Então você descobriu isso? Como você consegue ver tanta coisa, me conte outra coisa: como foi que você chegou a me amar? DAMA. Eu não sei, mas vou tentar me lembrar. (Pausa.) Bem, você tinha a coragem masculina de ser rude para com uma senhora. Em mim você encontrou o companheirismo de um ser humano e não apenas a companhia de uma mulher. Isso me deixou muito honrada; e, imaginei, você também. ESTRANHO. Diga-me também se você achou que eu fosse misógino. DAMA. Um sujeito que odeia mulheres? Todo homem saudável é um misógino, nos recantos secretos de seu coração; e todos os homens pervertidos são admiradores das mulheres. ESTRANHO. Você não está tentando me adular, está? DAMA. Uma mulher que tenta adular um homem não é normal. ESTRANHO. Vejo que você pensou nisso com firmeza!

Tradução

356

DAMA. Pensar foi o mínimo que fiz, pois quanto menos eu pensava, mais eu compreendia. Além disso, o que eu disse talvez seja apenas improviso, como você diria, e não é verdade alguma. ESTRANHO. Mas, se isso concorda com muitas das minhas observações, torna-se muito mais provável. (A DAMA chora em seu lenço.) Está chorando de novo? DAMA. Eu estava pensando em Mizzi. A coisa mais adorável que tive na vida. ESTRANHO. Não. Você foi a coisa mais adorável, quando ficava a noite toda sentada em vigília por nossa filha, que estava deitada em sua cama porque o berço dela era muito frio! (Ouvem-se três pancadas fortes na porta do barqueiro.) Sh! DAMA. O que é isso? ESTRANHO. Meu companheiro, que está esperando por mim DAMA. (continuando a conversa) Nunca pensei que a vida me desse alguma coisa tão doce quanto um filho. ESTRANHO. E ao mesmo tempo alguma coisa tão amarga. DAMA. Por que amarga? ESTRANHO. Você tem sido uma criança também, e você deve se lembrar como nós, quando nos casamos, chegamos à casa de sua mãe em farrapos, sujos e sem dinheiro. Quase me lembro que ela não nos achou lá muito simpáticos. DAMA. É verdade mesmo. ESTRANHO. E eu, bem... ainda agora encontrei Sylvia. E eu esperava que tudo de bom e D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

bonito que havia na garotinha tivesse desabrochado na mocinha que vi... DAMA. E? ESTRANHO. Encontrei uma rosa fanada, que parecia ter desabrochado cedo demais. Seus seios estavam caídos, seus cabelos desalinhados como os de uma criança mal cuidada, e seus dentes deteriorados. DAMA. Oh! ESTRANHO. Você não deve se magoar. Não por causa da criança! Talvez você deva se magoar por aquilo em que a criança se transformou, como eu fiz. DAMA. Então, é isso que a vida é? ESTRANHO. Sim. Isso é a vida. E é por isso que estou indo me enterrar vivo. DAMA. Onde? ESTRANHO. (apontando para o mosteiro) Lá em cima!

ESTRANHO. Você sofreu tudo isso por minha causa! DAMA. Não por sua causa! Você nunca me fez mal algum, mas eu atormentei você até você abandonar seu lar e sua filha! ESTRANHO. Eu havia esquecido isso; mas se você diz... Então você ainda me ama? DAMA. Provavelmente. Eu não sei. ESTRANHO. E você gostaria de começar tudo de novo outra vez? DAMA. Tudo de novo outra vez? Aquelas brigas? Não, nós não queremos aquilo. ESTRANHO. Você tem razão. As brigas logo começariam de novo outra vez. E de novo ia ficar difícil uma separação. DAMA. Separação. A palavra em si mesma é bastante terrível. ESTRANHO. Então o que vamos fazer? DAMA. Eu não sei.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

357

Tradução

DAMA. No mosteiro? Não, não me deixe. Faça companhia para mim. Estou tão sozinha no mundo e tão pobre, tão pobre! Quando a criança morreu, minha mãe me mandou embora, e desde então tenho vivido num porão com uma costureira. No começo era ela era gentil e agradável, mas depois as noites solitárias ficaram muito longas para ela e ela saiu à procura de companhia – e então nos separamos. Agora estou na estrada, e nada tenho além das roupas que estou vestindo, nada além do meu desgosto. Como e bebo dele, ele me alimenta e me põe para dormir. Não tenho nada a perder neste mundo a não ser meu desgosto! (O ESTRANHO chora.) Você está chorando! Você! Vou beijar seus olhos.

August Strindberg

ESTRANHO. Não, não se sabe nada, especialmente quando um não sabe nada, e é por isso que, veja você, eu fui tão longe quanto podia acreditar. DAMA. Como você sabe que pode acreditar, se acreditar é um dom? ESTRANHO. A gente pode receber um dom, se pedir. DAMA. Oh sim, se a gente pedir, mas nunca fui capaz de fazer isso. ESTRANHO. Eu tive de aprender a fazê-lo. Por que você não pode? DAMA. Porque a pessoa tem que se degradar primeiro. ESTRANHO. A vida faz isso com a gente muito bem.

Tradução

358

DAMA. Mizzi, Mizzi, Mizzi!... (Ela pegou um xale que estava usando sobre os braços e o enrolou e colocou no colo como uma criança envolta em roupas.) Dorme! Dorme! Dorme! Pense nisso! Posso vê-la aqui! Está sorrindo para mim; mas está de roupas pretas; parece estar de luto também! Que tonta que eu sou! Sua mãe está de luto! Ela perdeu dois dentes, que caíram, branquinhos – dentes de leite. Oh, não consegue vê-la, como eu vejo? Não é nenhuma visão. É ela! CONFESSOR. (na porta da cabana do barqueiro; rispidamente para o ESTRANHO) Venha. Já está tudo pronto! ESTRANHO. Não. Ainda não. Primeiro tenho que colocar minha casa em ordem, e cuidar dessa mulher, que já foi minha esposa. CONFESSOR. Oh, estão está querendo ficar! ESTRANHO. Não. Não quero ficar, mas não posso deixar para trás tarefas não cumpridas. Esta mulher está na estrada, abandonada, sem lar, sem dinheiro! CONFESSOR. O que isso tem a ver conosco? Que os mortos enterrem os mortos! ESTRANHO. É esse seu ensinamento? CONFESSOR. Não, o seu... O meu, por outro lado, me instrui a enviar uma Irmã de Misericórdia para cá, para cuidar dessa infeliz, que... que... A Irmã logo estará aqui! ESTRANHO. Vou esperar por isso. CONFESSOR (pegando o ESTRANHO pela mão e o levando para fora.) Então vem! ESTRANHO (em desespero). Oh, Deus do Céu! Ajude cada um de nós! CONFESSOR. Amém! (A DAMA, que não estava olhando para o CONFESSOR nem para o ESTRANHO, agora levanta os olhos e olha para o ESTRANHO como se quisesse saltar e trazê-lo de volta; mas é impedida pela criança imaginária que tem no colo.) Cortina.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ATO II ENCRUZILHADA NAS MONTANHAS [Uma encruzilhada no alto das montanhas. À direita, cabanas. À esquerda, um pequeno lago, ao redor do qual estão sentados alguns inválidos. Suas roupas são azuis, as mãos pintadas de cinábrio vermelho. Do lago saem a cada momento chamas azul claro e vapor azul. Toda vez que isso acontece os inválidos levam as mãos à boca e tossem. O pano de fundo é formado por uma montanha coberta por uma floresta de pinhos, que é obscurecida por uma nuvem estacionária de névoa.] [O ESTRANHO está sentado a uma mesa do lado de fora de uma das cabanas. O CONFESSOR entra pela direita.] ESTRANHO. Finalmente! CONFESSOR. O que quer dizer: finalmente? ESTRANHO. Você me deixou aqui uma semana atrás e me disse para esperar até que voltasse.

ESTRANHO. Não nego isso. Quão longe viemos? CONFESSOR. Quinhentas jardas. Ainda temos mil e quinhentas. ESTRANHO. Mas onde está o sol? CONFESSOR. Lá em cima, acima das nuvens... ESTRANHO. Então vamos ter que passar por elas? CONFESSOR. Sim. Com certeza. ESTRANHO. O que são aqueles cães pacientes lá adiante? Que companhia vamos ter! E por que as patas deles estão tão vermelhas? CONFESSOR. Por mim e por você quero evitar usar palavras impuras, então vou falar por enigmas agradáveis, que você, como escritor, vai entender. ESTRANHO. Sim. Fale lindamente. Já há muita coisa feia por aqui. CONFESSOR. Você deve ter percebido que os símbolos dados aos planetas correspondem aos de certos metais? Muito bem! Então você deve ter visto que Vênus é representado por um espelho. Esse espelho era originalmente feito de cobre, de modo que o cobre era chamado Vênus e levava a efígie dela. Mas agora o reverso do espelho de Vênus é coberto de estanhar ou mercúrio! ESTRANHO. O reverso de Vênus... é Mercúrio. Oh!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

359

Tradução

CONFESSOR. Não tivesse eu alertado você para o fato de que o caminho para o casarão branco seria longo e cheio de dificuldades...

August Strindberg

CONFESSOR. Estanhar é, portanto, o lado reverso de Vênus. O estanhar é em si mesmo brilhante como o mar calmo, como um lago no auge do verão; mas quando o mercúrio se encontra com a pedra-de-fogo e queima, ele ruboriza e se torna vermelho como sangue recém-derramado, como os lábios de cinábrio das prostitutas! Você compreende agora, ou não? ESTRANHO. Espere um momento! Cinábrio é estanhar e súlfura. CONFESSOR. Sim. Mercúrio deve ser queimado, se chegar muito perto de Vênus! Já dissemos o suficiente agora, não? ESTRANHO. Então estas são fontes de súlfura? CONFESSOR. Sim. E a chamas de súlfura purificam ou queimam tudo que apodreceu! Então, quando a fonte da vida fica contaminada, diz-se que a pessoa foi enviada às fontes de súlfura... ESTRANHO. Como a fonte da vida fica contaminada?

Tradução

360

CONFESSOR. Quando Afrodite, nascida da espuma do mar, chafurda no pântano… Quando Afrodite Urânia, a nascida do céu, se degenera em Pandemos, a Vênus das ruas. ESTRANHO. Por que esse desejo desabrocha? CONFESSOR. Desejo puro, para ser satisfeito; impuro, para ser sufocado. ESTRANHO. O que é puro, o que é impuro? CONFESSOR. Vamos voltar a esse assunto agora? ESTRANHO. Pergunte a esses homens aí... CONFESSOR. Tome cuidado! (Ele olha para o ESTRANHO, que é incapaz de suportar esse olhar.) ESTRANHO. Você está me sufocando… Meu peito... CONFESSOR. Sim, vou roubar o ar que você usa para formas palavras rebeldes e fazer perguntas ultrajantes. Sente-se aí, vou voltar – quando você tiver aprendido a ter paciência e a aguentar sua provação. Mas não esqueça que eu posso ouvir e ver você, e estou esperto com você, onde quer que esteja! ESTRANHO. Então vou ser testado! Fico contente em saber! CONFESSOR. Mas você não deve falar aos adoradores de Vênus. (MAIA, uma velha, surge no fundo.) ESTRANHO. (levantando-se, com horror) Quem estou encontrando aqui depois de todo esse tempo? Quem é aquela figura? CONFESSOR. De quem está falando? D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Daquela velha ali atrás. CONFESSOR. Quem é? ESTRANHO. (chamando) Maia! Ouça! (A Velha Maia desapareceu. O ESTRANHO corre atrás dela.) Maia, minha amiga, ouve! Ela se foi! CONFESSOR. Quem era? ESTRANHO. (sentando-se) Oh Deus! Agora, quando finalmente eu a encontro de novo, ela some... Eu a procurei por sete longos anos, escrevi cartas, perguntei em toda parte... CONFESSOR. Por quê?

CONFESSOR. Loucura insana! Renda-se ao que parece inexplicável; você vai ver que a explicação virá mais tarde. Adeus! ESTRANHO. Mais tarde, mais tarde. Tudo vem mais tarde. CONFESSOR. Sim. Se não vier de repente! (Ele sai. A DAMA entra pesarosa e se senta à mesa, oposta ao ESTRANHO.) ESTRANHO. O quê? Você de volta outra vez? A mesma e não mais a mesma? Que bonita você ficou; tão bonita como na primeira vez que a vi, quando lhe perguntei se eu podia ser seu amigo, seu cachorro. DAMA. O fato de você ver uma beleza que eu não possuo mostra que uma vez mais você tem um espelho da beleza imaginado em seu olhar. O lobisomem nunca me achou bonita, porque ele não conhecia nada bonito com que me ver.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

361

Tradução

ESTRANHO. Vou lhe contar como o destino dela estava ligado ao meu! (Pausa.) Maia era enfermeira na minha primeira família... durante aqueles anos duros... em que eu estava combatendo os Invisíveis, que não queriam abençoar minha obra! Escrevi até meu cérebro e meus nervos se dissolverem como gordura em álcool... mas não era o suficiente! Eu era um daqueles que nunca ganhavam o bastante. E chegou o dia em que não pude pagar os salários das criadas – era terrível – e me tornei criado da minha criada, e ela se tornou minha patroa. No fim... para, pelo menos, salvar minha alma, fugi daquilo que era poderoso demais para mim. Fugi para o ermo, onde rejuntei meu espírito na solidão e recobrei minha força! Meu primeiro pensamento foi, então – meus débitos! Durante sete anos procurei por Maia, mas em vão! Durante sete anos eu a vi na sombra, sua silhueta nas janelas de trens, no convés de vapores, em cidades estranhas, em terras distantes, mas sem ser capaz de a encontrar. Sonhei com ela durante sete anos, e toda vez que bebia uma taça de vinho eu enrubescia só de pensar na velha Maia, que talvez estivesse bebendo água em algum asilo! Tentei dar aos pobres o dinheiro que lhe devia; mas de nada adiantou. E agora –achada e perdida no mesmo momento! (Ele se levanta e vai para o fundo, como se a procurasse.) Explique-me isso, se puder! Quero pagar minha conta; posso pagá-la agora, mas não consigo.

August Strindberg

ESTRANHO. Por que você me beijou naquele dia? O que fez você fazer aquilo? DAMA. Você muitas vezes me perguntou isso, e nunca fui capaz de encontrar a resposta, porque eu não sei. Mas justamente agora, quando estava longe de você, aqui nas montanhas, onde o ar é mais puro e o sol mais próximo.... Shshshsh! Agora consigo ver aquele domingo à tarde, quando você se sentou naquele banco como uma criança perdida e desamparada, com um olhar prostrado, e olhou fundo em seu próprio destino... Um sentimento maternal que eu nunca havia sentido antes brotou em mim então, e fui dominada pela piedade, piedade por uma alma humana – de modo que esqueci de mim mesma. ESTRANHO. Estou envergonhado. Agora acredito que foi assim. DAMA. Mas você compreendeu de outro modo. Pensou... ESTRANHO. Não me diga. Estou envergonhado. DAMA. Por que pensou tão mal de mim? Não viu que abaixei meu véu; que ficou entre nós como a espada do cavalheiro no leito nupcial... 362

Você era feita de matéria melhor que a minha. Estou envergonhado!

Tradução

ESTRANHO. Estou envergonhado, atribuí a você, Ingeborg, meus maus pensamentos, DAMA. Agora você parece bonito. Muito bonito! ESTRANHO. Oh não. Não eu. Você! DAMA. (extaticamente) Não, você! Sim, agora vi através da máscara e da falsa barba. Agora posso ver o homem que você escondeu de mim, o homem que eu pensei ter encontrado em você... o homem que eu sempre estive procurando. Muitas vezes pensei que você era um hipócrita, mas não fomos hipócritas. Não, não, não podemos fingir. ESTRANHO. Ingeborg, agora estamos no outro lado do rio, e a vida à nossa frente, atrás de nós... como tudo parece diferente. Agora, agora, posso ver sua alma; o ideal, o anjo, que estava aprisionado na carne por causa do pecado. Então há um Acima e uma Época Anterior. Quando começamos não era o começo, e não vai ser o fim quando tivermos terminado. A vida é um fragmento, sem começo nem fim! Eis porque é tão difícil avançar ou recuar. DAMA. (gentilmente) Tão difícil. Tão difícil. Diga-me, por exemplo – agora estamos além da culpa ou da inocência – como foi que chegou a odiar as mulheres? ESTRANHO. Deixe-me pensar! Odiar as mulheres? Odiá-las? Eu nunca as odiei. Ao contrário! Desde que eu tinha oito anos sempre tive um caso de amor, de preferência um caso inocente. E amei como um vulcão três vezes! Mas espere – eu sempre senti que as mulheres me odiavam… e elas sempre me torturaram. DAMA. Que estranho!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Deixe-me pensar um pouco... Talvez eu tenha ciúme de minha própria personalidade; e medo de ser muito influenciado. Meu primeiro amor se transformou numa espécie de governante e babá para mim. Mas, naturalmente, há homens que detestam crianças, e que detestam mulheres também, se elas são superiores a eles, não é! DAMA. (amavelmente) Mas você chamou as mulheres de inimigas da humanidade. Foi isso mesmo que quis dizer? ESTRANHO. Claro que foi, eu escrevi isso! E foi por experiência própria, não só por teoria... Na mulher procurei um anjo, que pudesse me dar asas, e caí nos braços de um espírito de argila que me sufocou com travesseiros cheios das penas de suas asas! Procurei um Ariel e encontrei um Caliban; quando quis me levantar, ela me puxou para baixo; e continuamente me lembrava de minha queda... DAMA. (gentilmente) Salomão sabia muito sobre as mulheres; sabe o que ele disse? “Mais amarga que a morte é a mulher, cujo coração é armadilhas e redes e suas mãos são como algemas; quem quer que se agrade de Deus pode escapar dela; mas o pecador será presa dela.”

DAMA. Você as ouviu. Mas quando as pessoas falaram bem de você, você se recusou a ouvir, como se elas machucassem você. ESTRANHO. Isso é verdade, agora você me lembrou. Mas você pode explicar isso? DAMA. Explicar? Você está sempre pedindo explicações sobre o inexplicável. “Quando dediquei meu coração a conhecer a sabedoria… eu contemplei toda a obra de Deus, que um homem não consegue descobrir que está feita sob o sol. Porque, embora um homem se esforce para descobri-la, ele não a encontrará; sim, e mais, embora um homem sábio pense conhecê-la, ele também não será capaz de a encontrar!” ESTRANHO. Quem afirma isso? DAMA. O Profeta Eclesiastes. (Ela tira uma boneca de seu bolso.) Esta é a boneca de Mizzi. Veja, ela tem saudade de sua pequena dona! Que pálida ela ficou. E parece saber onde Mizzi está, porque está sempre olhando para o céu, seja qual for o modo que eu a segure. Olhe! Seus olhos seguem as estrelas como o compasso. Ela é meu compasso e sempre me mostra onde o céu está. Ela poderia, é claro, estar vestida de preto, porque está de luto, mas somos tão pobres... Sabe por que nunca tivemos dinheiro? Porque Deus estava zangado conosco por causa de nossos pecados. “O virtuoso não passa fome.” ESTRANHO. Onde você aprendeu isso?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

363

Tradução

ESTRANHO. Eu nunca fui aceitável aos olhos de Deus. Foi aquilo uma punição? Talvez. Mas eu nunca fui aceitável para ninguém, e nunca tive uma boa palavra dirigida a mim! Será que nunca pratiquei uma ação boa? É possível para um homem nunca ter feito uma ação boa? (Pausa.) É terrível nunca ouvir uma palavra boa sequer sobre alguém!

August Strindberg

DAMA. Num livro em que está escrito tudo. Todas as coisas! (Ela enrola a boneca em sua capa.) Veja, ela está ficando com frio – é por causa daquela nuvem lá em cima... ESTRANHO. Como você ousa caminhar aqui em cima nas montanhas? DAMA. Deus está comigo; então, o que devo temer dos seres humanos? ESTRANHO. Você não é perturbada por aquelas pessoas do lago? DAMA. (virando-se para elas) Não consigo vê-las. Não consigo ver nada horrível agora. ESTRANHO. Ingeborg! Eu lhe fiz mal, embora você só pudesse me fazer bem! Era meu sonho, você sabe, buscar redenção através de uma mulher. Você não acredita! Mas é verdade. Naqueles tempos nada tinha valor para mim se não pudesse ser colocado aos pés de uma mulher. Não como um tributo a uma dona de casa reprimida... mas como um ritual ao bom e ao belo. Era meu prazer oferecer, mas ela queria tomar e não receber: é por isso que ela me odiava! Quando eu estava desamparado e pensava que o fim estava próximo, cresceu em mim um desejo de dormir no colo de uma mãe, num peito formidável onde pudesse afundar minha cabeça e beber na ternura de que fora privado.

Tradução

364

DAMA. Você não tinha mãe? ESTRANHO. Dificilmente! E nunca senti qualquer laço entre mim e meu pai ou meus irmãos e irmãs... Ingeborg, eu era filho de uma criada sobre a qual se escreveu “Expulse a criada com o filho, pois esse filho não herdará com o filho legítimo.” DAMA. Você sabe por que Ismael foi expulso? Diz-se que ele era um sujeito zombeteiro. E por aí vai: “Ele será um homem selvagem, sua mão se erguerá contra todo homem. E as mãos de todos os homens serão contra ele; e também todos os seus irmãos.” ESTRANHO. Isso também está escrito? DAMA. Oh sim, minha criança, está tudo lá! ESTRANHO. Tudo? DAMA. Tudo. Lá você vai encontrar respostas para todas as suas perguntas, mesmo as mais intrometidas! ESTRANHO. Chame-me de sua criança, e vou amar você… E se eu amar outras pessoas, quero servi-las, obedecê-las, deixar-me ser maltratado, sofrer e suportar tudo isso. DAMA. Você não deveria me amar, mas a seu Criador. ESTRANHO. Ele é inamistoso – como meu pai! DAMA. Ele é o próprio Amor; e você é o Ódio. ESTRANHO. Você é filha dele; mas eu sou o filho dele desclassificado. DAMA. (insinuantemente) Quieto! Fique calmo! D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Se pelo menos você soubesse o que eu sofri na semana passada. Eu não sei onde estou. DAMA. Onde você imagina estar? ESTRANHO. Há uma mulher naquela cabana que olha para mim como se eu fosse roubar suas últimas migalhas. Ela não diz nada – eis o problema. Mas eu acho que são preces o que ela murmura quando me vê. DAMA. Que tipo de preces? ESTRANHO. Do tipo que alguém murmura nas costas de quem tem olho gordo ou dá azar. DAMA. Que estranho! Você não sabe que o olho de alguém pode ser cegado? ESTRANHO. Sim, naturalmente. Mas quem pode fazê-lo? RECEPCIONISTA. (entrando, direto para a mesa) Bem, olhe para isso! Suponho que ela seja sua irmã? ESTRANHO. Sim. Podemos dizer isso agora.

365

ESTRANHO. (levantando-se, entusiasmado) Silêncio, mulher. Isso é blasfêmia! DAMA. Ele não vai acreditar. Oh Deus! Ele não vai acreditar. Olhe para mim! ESTRANHO. Quando eu olho para você, eu acredito. Ela está me dando sua bênção! E eu, que estou condenado, trouxe para ela uma bênção! Como posso acreditar nisso? Eu, dentre todos os homens! (Cai sobre a mesa e chora entre as mãos.) DAMA. Ele está chorando! Lágrimas, chuva que vem do céu, que pode quebrar rochas, estão caindo de seu coração de pedra... Ele está chorando! RECEPCIONISTA. Ele? Que tem um coração de ouro! De mão tão aberta e tão bom para meus filhos! DAMA. Você ouve o que ela diz!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

RECEPCIONISTA. (para a DAMA) Engraçado encontrar alguém com quem eu posso finalmente falar! Este cavalheiro está tão silencioso, veja, que se pode sentir bem depressa que se deve respeitá-lo; especialmente porque parece ter tido problemas. Mas posso dizer isso à irmã dele, e ele poderá ouvir: que, a partir do momento em que ele entrou nesta casa eu senti que fui abençoada. Fui tratada como um cão pelo infortúnio; não tenho inquilino, minha única vaca morreu, meu marido estava num lar para alcoólatras e meus filhos não tinham nada para comer. Pedi a Deus para me enviar alguma ajuda do céu, porque eu não esperava mais nada da terra. Então este cavalheiro chegou. E, à parte o fato de me ter dado o dobro do que pedi, ele me trouxe boa sorte - minha casa foi abençoada. Deus o abençoe, bom senhor!

August Strindberg

RECEPCIONISTA. Tem apenas uma coisa sobre ele que não compreendo; mas eu não quero dizer nada desagradável... DAMA. O que é? RECEPCIONISTA. Só uma bobagem; só isso... DAMA. E o que é? RECEPCIONISTA. Ele não gosta dos meus cachorros. DAMA. Não posso censurá-lo por não se importar com uma besta impura. Eu odeio qualquer coisa animal, em mim e nos outros. Não odeio animais por causa disso, porque não odeio nada que foi criado... ESTRANHO. Obrigado, Ingeborg! DAMA. Veja só! Tenho um olho para seus méritos, mesmo que você não acredite nisso... Aí vem o Confessor. (O CONFESSOR entra.) RECEPCIONISTA. Então eu vou sair, o Confessor não tem amor por mim.

Tradução

366

DAMA. O Confessor ama toda a humanidade. CONFESSOR. (vindo para a frente e falando para a DAMA) A você, mais que tudo, minha filha; porque você é a bondade em pessoa. Se você é bonita de se ver, não consigo ver, mas eu sei que deve ser, porque você é boa. Sim, você foi a noiva da minha juventude, e minha cônjuge espiritual; e será assim para sempre, porque você me deu o que nunca foi capaz de dar aos outros. Eu vivi sua vida em meu espírito, sofri suas dores, gozei seus prazeres – ou melhor, seu prazer, pois você não teve outros a não ser aquele que seu filho lhe deu. Só eu vi sua alma – meu amigo aqui adivinhou isso; eis porque ele se sente atraído por você – mas o mal que havia nele era muito forte; você teria que transferi-lo dele para você para o libertar. Então, sendo o mal, você teria de sofrer as piores dores do inferno por causa dele, para trazer expiação. Seu trabalho terminou. Você já pode ir em paz! DAMA. Onde? CONFESSOR. Lá em cima. Onde o sol está sempre brilhando. DAMA. (levantando-se) Lá existe um lar para mim também? CONFESSOR. Há lar para todo mundo! Vou lhe mostrar o caminho. (Sai com ela na direção do fundo. O ESTRANHO faz um movimento.) Está impaciente? Relaxe! (Ele sai. O ESTRANHO continua sentado sozinho. Os ADORADORES DE VÊNUS se levantam. Cercam-no e formam um círculo ao redor dele.) ESTRANHO. O que querem comigo? ADORADORES. Salve! Pai.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. (muito perturbado) Por que me chamam assim? PRIMEIRA VOZ. Porque somos seus filhos. Os seus filhos diletos! ESTRANHO. (tenta escapar, mas é cercado e não consegue) Deixem-me ir. Deixem-me ir! SEGUNDA VOZ. (a de um jovem pálido) Não me reconhece, Pai? TENTADOR. (surgindo no fundo no ramal esquerdo da trilha) Ha! ESTRANHO. (para a SEGUNDA VOZ) Quem é você? Parece que conheço seu rosto. SEGUNDA VOZ. Sou Erik – seu filho! ESTRANHO. Erik! Você aqui? SEGUNDA VOZ. Sim. Estou aqui. ESTRANHO. Deus tenha misericórdia! E você, meu rapaz, perdoe-me! SEGUNDA VOZ. Nunca! Você nos mostrou o caminho para as fontes de súlfura! É longe daqui o lago? (O ESTRANHO cai ao chão.) TENTADOR. Ha! Jubilate, temptatores!

367

TENTADOR. (vindo para a frente e tocando o ESTRANHO com o pé) O verme! Você pode fazê-lo acreditar no que você quiser. Isso por causa de seu inacreditável orgulho. Ele pensa que é a fonte principal do universo, o originador de todo mal? Esse homem louco acredita que ensinou a juventude a sair em busca de Vênus; como se a juventude não tivesse feito isso antes de ele ter nascido! Seu orgulho é insuportável, e ele foi precipitado em tentar remendar minha obra para mim. Faça-lhe outro cumprimento, mentiroso Erik! (A SEGUNDA VOZ – a da juventude – se inclina sobre o ESTRANHO e sussurra em seus ouvidos.) Existiam sete pecados mortais; mas agora eles são oito. O oitavo, eu o descobri! Chama-se desespero. Pois desesperar do que é bom, e não esperar pelo perdão, é chamar... (Ele hesita antes de pronunciar a palavra Deus, como se ela lhe queimasse os lábios) Deus de perverso. Isso é calúnia, renegação, blasfêmia... Vejam como ele estremece! ESTRANHO. (levantando-se rapidamente, e olhando o TENTADOR nos olhos) Quem é você? TENTADOR. Seu irmão. Não nos parecemos um com o outro? Alguns dos seus traços me fazem lembrar meu retrato. ESTRANHO. Onde foi que o vi? TENTADOR. Quase em toda parte! Sou frequentemente encontrado em igrejas, embora não entre os santos. ESTRANHO. Não consigo me lembrar...

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

ADORADORES DE VÊNUS. Súlfura! Súlfura! Súlfura! Mercúrio!

August Strindberg

Tradução

368

TENTADOR. Já faz muito tempo que não vai à igreja, não é? Sou costumeiramente representado com São Jorge (O ESTRANHO cambaleia e gostaria de voar, mas não pode.) Miguel e eu somos às vezes vistos em grupo. No qual, para dizer a verdade, não apareço com a luz mais favorável; mas isso pode ser modificado. Tudo pode ser alterado, e um dia o ultimo será o primeiro. É a mesma coisa no seu caso. No momento, as coisas estão indo mal para você, mas isso pode ser modificado também. Se você tiver inteligência suficiente para mudar suas companhias. Você teve que se virar muito com saias, meu filho. Saias levantam poeira, e poeira cai nos olhos e no peito... Venha e se sente. Vamos conversar um pouco... (Pega o ESTRANHO divertidamente pela orelha e o leva para a mesa.) Sente-se e trema, jovem! (Eles se sentam.) Bem? O que fazemos? Pedimos vinho – e mulher? Não! Esse é um artifício muito antigo, tão velho quanto o Doutor Fausto! Bom! Nós modernos estamos em busca de dissipação mental... Então você está a pique de escolher aqueles santos homens lá em cima, que pensam que porque dormem escapam do pecado; aqueles covardes, que desistiram da batalha da vida, porque foram vencidos uma vez ou duas; aqueles que aprisionam suas almas em vez de deixá-las livres... E por falar nisso! Algum santo homem qualquer libertou você de sua carga de pecados? Não! Você sabe por que o pecado tanto tem oprimido você? Por renúncia e abstinência, você cresceu tão fraco que ninguém pode tomar sua alma e se apossar dela. Porque eles podem fazer isso mesmo a distância! Você tanto destruiu sua personalidade, que você vê com olhos estranhos, ouve com ouvidos estranhos e pensa pensamentos estranhos. Numa palavra, você assassinou sua própria alma. Justamente agora, você não falou bem dos inimigos da humanidade, da Mulher, que fez do paraíso um inferno? Não precisa me responder; posso ler sua resposta em seus olhos e em seus lábios. Você fala do amor puro por uma mulher! É desejo, jovem, desejo por uma mulher, que temos de pagar tão caro. Você diz que não a deseja. Então por que quer estar perto dela? Você gostaria de ter uma amizade? Encontre um amigo homem, muitos deles! Deixe que eles convençam você que você não odeia mulheres. Mas as mulheres lhe deram a resposta certa; todo homem saudável odeia mulheres, mas não consegue viver sem se ligar ao seu inimigo, e assim precisa combatê-lo! Todos os homens perversos e grosseiros são admiradores das mulheres! O que se passa com você agora? Você viu aqueles inválidos e se imaginou responsável pela miséria deles? São sujeitos duros, pode acreditar em mim; poderão partir daqui em alguns dias e voltar às suas ocupações. Oh claro, o mentiroso do Erik é um farsante! Mas as coisas foram tão longe com você, que você não consegue distinguir entre seus filhos e os filhos dos outros. Não seria uma grande coisa fugir disso tudo? O que pode dizer? Oh, eu poderia libertar você... mas não sou santo. Agora podemos chamar a velha Maia. (Ele assobia entre os dedos: MAIA aparece.) Ah, você está aí! Bem, o que está fazendo aqui? Tem algum negócio com esse sujeito aqui? MAIA. Não. Ele é bom e sempre foi assim, mas teve uma esposa terrível. TENTADOR. (para o ESTRANHO) Ouça isso! Nunca tinha ouvido isso, não é? Justa-

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

mente o oposto. Ela foi o anjo bom que você arruinou... já nos disseram isso! Agora, velha Maia, que tipo de história é essa que ele sussurra por aí? Ele diz que foi amaldiçoado com um remorso de sete anos porque você emprestou dinheiro a ele. MAIA. Eu lhe emprestei uma pequena quantia certa vez, mas ele a devolveu bem depressa e o banco me pagou juros muito bons. Foi muito correto e bom da parte dele – muito gentil. ESTRANHO. (levantando-se) O que foi que disse? É possível que eu tenha esquecido alguma coisa? TENTADOR. Você tem o recibo, Maia? Se tiver, entregue-o a mim. MAIA. O cavalheiro deve ter o recibo do valor do empréstimo, mas eu tenho a caderneta do banco aqui com a anotação dos juros. Ele depositou o dinheiro no banco em meu nome. (Ela mostra uma caderneta de banco, e a entrega ao ESTRANHO, que olha para ela.) ESTRANHO. Sim, ela tem toda razão. Agora me lembro. Então por que esses sete anos de tormento, vergonha e desgraça? Aquelas reprovações durante noites sem dormir? Por quê? Por quê? Por quê?

ESTRANHO. (para MAIA) Quieta, não lhe responda nada! (Tapa as orelhas com as mãos.) TENTADOR. E então, Maia? MAIA. Sei bastante bem o que dizem sobre ele, mas isso se refere ao que ele escreve – e eu não li essas coisas porque não sei ler. Além do mais, ninguém precisa ler se não quiser ler. De qualquer modo, o cavalheiro tem sido muito gentil. Agora está tapando os ouvidos. Não sei como elogiar, mas posso fazer isso num sussurro... (Ela murmura algo para o TENTADOR.) TENTADOR. Sim. Todos os seres humanos facilmente comovidos são acossados como bestas selvagens! Essa é a regra. Adeus, velha Maia! MAIA. Adeus, gentis cavalheiros. (Ela sai.) ESTRANHO. Por que eu sofri inocentemente durante sete anos? TENTADOR. (apontando para cima com um dedo) Pergunte lá em cima! ESTRANHO. Onde eu jamais vou conseguir uma resposta! TENTADOR. Bom, isso pode acontecer. (Pausa.) Você acha boa minha aparência?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

TENTADOR. Velha Maia, você pode ir agora. Mas primeiro diga alguma coisa delicada sobre este autotormentador. Você consegue se lembrar de alguma qualidade humana nesta besta selvagem, que os seres humanos acossaram por anos?

369

August Strindberg

ESTRANHO. Não sei muito bem o que dizer. TENTADOR. Você parece extremamente fatigado, também! Sabe por que estamos com essa cara? ESTRANHO. Não. TENTADOR. O ódio e a malícia de nossos camaradas humanos se abateram sobre nós. Lá em cima, você sabe, existem santos reais, que nunca fizeram nada de perverso, mas que sofrem pelos outros, por relações, que cometeram pecados não expiados. Esses anjos, que assumiram para si a depravação dos outros, realmente parecem bandidos. O que você diz sobre isso? ESTRANHO. Não sei quem você é; mas é o primeiro a responder perguntas que podem me reconciliar com a vida. Você é... TENTADOR. Bom, diga! ESTRANHO. O libertador!

Tradução

370

TENTADOR. E depois...? ESTRANHO. Portanto, deram a você a forma de um abutre... Mas ouça, você pensou alguma vez que existe uma boa razão para isso como para tudo o mais? Dado que a terra é uma prisão, na qual são confinados os prisioneiros perigosos, seria uma boa coisa deixá-los livres? Seria correto? TENTADOR. Que pergunta! Realmente nunca pensei sobre isso. Hm! ESTRANHO. E nisso você já pensou alguma vez: nascemos culpados ou inocentes? TENTADOR. Isso não tem nada a ver comigo. Eu me preocupo é com o presente. ESTRANHO. Bom! Você acha que às vezes somos punidos erradamente, e então falhamos em ver a relação lógica, embora ela exista? TENTADOR. Não está faltando lógica, mas a vida inteira é um tecido de ofensas, confusões, erros, que são relativamente inatacáveis devido à fraqueza humana, mas que são punidos pela mais consistente vingança. Tudo é vingado, mesmo nossas ações menos judiciosas. Quem perdoa? Um homem magnânimo – às vezes; a justiça celestial, nunca! (Um PEREGRINO aparece no fundo.) Veja! Um penitente! Eu gostaria de saber o que ele fez de errado. Vamos lhe perguntar. Bem-vindo aos nossos prados tranquilos, pacífico andarilho! Tome seu lugar nesta mesa simples de ascetas, para os quais não existem mais tentações. PEREGRINO. Obrigado, camarada viajante no vale da aflição TENTADOR. Qual o tipo de sua aflição?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

PEREGRINO. Nenhuma em particular; ao contrário, a hora da libertação chegou, e estou indo lá em cima para receber absolvição. ESTRANHO. Ouça, já não nos encontramos antes? PEREGRINO. Acho que sim, certamente. ESTRANHO. César! Você é César! PEREGRINO. Eu costumava ser, mas não sou mais. TENTADOR. Ha ha! Convivência imperial. Realmente! Mas conte-nos, conte tudo!

ESTRANHO. Por que você não publicou a carta de seu amigo que teria explicado tudo? PEREGRINO. Quando o desastre aconteceu, eu senti de repente que era o dedo de Deus, e que eu devia sofrer por minha ingratidão.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

371

Tradução

PEREGRINO. Você vai ouvir. Agora eu tenho o direito de falar, porque meu castigo está no fim. Quando nos encontramos na casa de um certo médico, fui trancado lá como louco e declarado sofrer supostamente da ilusão de que eu era César. Agora o Estranho vai ouvir a verdade sobre a questão: eu nunca acreditei, mas fui forçado por escrúpulos de consciência a ter um olhar favorável... Um amigo meu, um péssimo amigo, tinha prova escrita de que eu era vítima de um equívoco; mas ele não falou quando deveria tê-lo feito, e eu tomei seu silêncio como um pedido para não falar – e para sofrer. Por que o fiz? Bem, na minha juventude estive em certa ocasião em grande necessidade. Fui recebido como hóspede numa casa numa ilha distante no mar por um homem que, a despeito de dons incomuns, havia sido preterido numa promoção por causa de seu orgulho insensato. Esse homem, que vivia em solidão cheia de cismas, chegara a adquirir opiniões extraordinárias sobre si mesmo. Eu o notei, mas não disse nada. Um dia a mulher desse homem me disse que às vezes ele se desequilibrava mentalmente; e então pensava que era Júlio César. Durante muitos anos guardei esse segredo conscienciosamente, porque por natureza não sou mal-agradecido. Mas a vida é ardilosa. Aconteceu poucos anos depois que esse César colocou suas mãos ásperas sobre minha sorte mais íntima. Com raiva disso, traí o segredo de sua mania de César e tornei meu benfeitor temporário em motivo de tanta chacota, que sua vida se tornou insuportável para ele. E agora ouça como Nêmesis nos surpreendeu. Um ano depois eu escrevi um livro – eu sou, como você deve saber, um autor ainda sem notoriedade... E nesse livro descrevi incidentes da vida familiar: como brincava com minha filha – ela se chamava Júlia, como a filha de César – e com minha esposa, a quem chamávamos “a esposa de César” porque ninguém falava mal dela... Bem, essa brincadeira, que minha sogra também apoiava, me custou caro. Quando eu estava examinando as provas tipográficas de meu livro, vi o perigo e disse a mim mesmo: nessa você se deu mal. Quis eliminar o erro, mas, se você acredita em mim, a pena se recusou, e uma voz interior me disse: deixe como está. E assim ficou. E assim me ferrei.

August Strindberg

ESTRANHO. E você sofreu? PEREGRINO. De modo algum! Eu sorri para mim mesmo e não me deixaria ser posto de lado. E porque aceitei minha punição com tranquilidade e humildade, Deus aliviou meu fardo e não me senti ridículo. TENTADOR. É uma história estranha, mas essas coisas acontecem. Podemos ir agora? Vamos sair para uma excursão, agora acalmamos as tempestades. Arranque suas raízes e vamos subir a montanha. ESTRANHO. O Confessor me disse para esperar por ele. TENTADOR. Ele vai encontrar você, de qualquer maneira! E aqui na aldeia o tribunal está reunido hoje. Um caso particularmente interessante deve ser julgado; e eu sei que vou ser chamado como testemunha. Vamos! ESTRANHO. Bom, eu me sentar aqui, ou me sentar ali, para mim é a mesma coisa. PEREGRINO. (para o ESTRANHO) Quem vem ali?

Tradução

372

ESTRANHO. Não sei. Parece um anarquista PEREGRINO. Interessante, de todo modo! ESTRANHO. É um cavalheiro cético, que já viu muito da vida. TENTADOR. Vamos, crianças; Tenho histórias para lhes contar no caminho. Vamos. Vamos! (Saem em direção ao fundo.) Cortina.

ATO III CENA I TERRAÇO NA MONTANHA [Um terraço na montanha na qual está o Mosteiro. À direita, um rochedo e um similar à esquerda. No fundo ao longe uma panorâmica de uma paisagem de rio, com cidades, aldeias, campos arados e florestas; muito mais longe ainda, pode-se ver o mar. Na frente do palco uma macieira carregada de frutos. Sob ela uma mesa longa com uma cadeira numa ponta e bancos dos lados. Na frente do palco, à direita, a esquina da prefeitura da aldeia. Uma nuvem parece estar suspensa sobre a aldeia.] [O MAGISTRADO senta-se ao fim da mesa na qualidade de juiz; seus assessores, nos bancos. O ACUSADO está em pé à direita do MAGISTRADO; a testemunha à esquerda, entre eles o TENTADOR. Membros do povo, com o PEREGRINO e o ESTRANHO, estão em pé aí, não muito longe do assento do juiz.] D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MAGISTRADO. O acusado está presente? ACUSADO. Sim. Presente. MAGISTRADO. Esta é uma história muito triste, que trouxe problemas e vergonha para toda nossa pequena comunidade. Florian Reicher, trinta e três anos de idade, é acusado de atirar na mulher que foi prometida como esposa a Fritz Schlipitska, com a clara intenção de matá-la. Trata-se de um caso de crime premeditado, e as providências da lei são perfeitamente claras. Tem o acusado alguma coisa a declarar em sua defesa ou pode alegar circunstâncias atenuantes? ACUSADO. Não. TENTADOR. Hei, quero falar! MAGISTRADO. Quem é você? TENTADOR. Um advogado para o acusado. MAGISTRADO. O acusado certamente tem o direito aos serviços de um advogado de defesa, mas no presente caso julgo que os fatos são tão claros que o povo já chegou a uma conclusão, e o assassino dificilmente reconquistará a simpatia das pessoas. Não é assim?

Tradução

POVO. Ele já está condenado! TENTADOR. Por quem? POVO. Pela Lei e por seu próprio malfeito. TENTADOR. Ouçam-me! Como advogado para o acusado eu o represento e assumo a acusação para mim mesmo. Peço permissão para me dirigir à corte. MAGISTRADO. Não posso recusar. POVO. Florian já foi condenado. TENTADOR. O caso tem que ser exposto e ouvido por todos. (Pausa.) Cheguei ao meu décimo-oitavo ano – é Florian falando – e meus pensamentos, enquanto cresci sob o olhar cuidadoso de minha mãe, eram puros; e meu coração sem falsidade, porque eu nunca vira ou ouvira qualquer coisa perniciosa. Então eu –, quer dizer, Florian – conheci uma garota que me pareceu a mais bela criatura que meus olhos já haviam visto neste mundo pecaminoso, pois ela era a bondade em pessoa. Eu lhe ofereci minha mão, meu coração e meu futuro. Ela aceitou tudo e jurou que seria verdadeira. Cabia-me servir durante cinco anos minha Rachel – e eu a servi, juntando uma palhinha com outra para o pequeno ninho que íamos construir. Toda minha vida foi focada no amor por aquela mulher! Como eu fosse verdadeiro para ela, nunca lhe menti ou a traí. Por volta do quinto ano eu já havia construído uma casinha e comprado nossos móveis quando descobri que ela estava brincando comigo e me enganara com pelo menos três homens...

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

373

D R A M AT U R G I A S

August Strindberg

MAGISTRADO. Você tem testemunhas? MEIRINHO. Três testemunhas válidas, eu sou uma delas. MAGISTRADO. Só o meirinho já será suficiente. TENTADOR. Então eu a matei, não como vingança, mas para me libertar dos pensamentos malsãos que sua infidelidade forçou em mim; porque, quando tentei arrancar sua figura do meu coração, imagens de seus amantes brotavam e nadavam no meu sangue, de modo que no fim me parecia estar vivendo uma relação ilegal com três homens – com uma mulher como ligação entre nós! MAGISTRADO. Bem, isso era ciúme! ACUSADO. Sim, era ciúme.

Tradução

374

TENTADOR. Sim, ciúme, aquele desejo de limpeza, que procura preservar os pensamentos da poluição por estranhos. Se eu me contentasse em não fazer nada, se eu não fosse ciumento, eu teria mergulhado em companhias viciosas e eu não queria fazer isso. É por isso que ela tinha que morrer para que meus pensamentos fossem limpos do pecado mortal, que, esse sim, deve ser condenado. Já terminei. POVO. A mulher morta é culpada! O sangue dela caiu sobre sua própria cabeça. MAGISTRADO. Ela é culpada, pois ela foi a causa do crime. (O PAI da mulher morta avança um passo.) PAI. Meritíssimo, juiz de minha criança morta, e vocês, gente minha, deixem-me falar! MAGISTRADO. O pai da garota morta pode falar. PAI. Estão acusando uma garota morta; e vou responder. Maria, minha filha, sem dúvida foi culpada de um crime e deve ser condenada pelos malfeitos desse homem. Não há dúvida disso! POVO. Nenhuma dúvida! É ela que é culpada! PAI. Permitam ao pai dela acrescentar uma palavra como explicação, se não como defesa. (Pausa.) Quando tinha quinze anos, Maria caiu nas mãos de um homem que parecia ter como negócio na vida apanhar em armadilha garotas, do jeito que um caçador de pássaros apanha aves pequeninas. Não era um sedutor, no sentido comum, pois se contentava em constranger os sentidos dela e embaraçar seus sentimentos apenas para mandá-la embora e ver como ela sofria com asas feridas e coração despedaçado – torturada pela agonia do amor, que é pior que qualquer outra agonia. Durante três anos Maria foi tratada numa instituição para pessoas desarranjadas mentalmente. E quando saiu de lá, quebrada em incontáveis pedaços – podia-se dizer que ela era incontáveis pessoas. Era um anjo e temia Deus com um lado de seu espírito; mas com o outro era um demônio, e insultava tudo o que era sagrado. Eu a vi ir direto da dança e do frenesi para seu amado Florian, e D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

a ouvi, na presença dele, falar de modo tão diferente e alterar tanto sua expressão, que eu podia jurar que ela era outra pessoa. Mas ela me parecia igualmente sincera em ambas as formas. Ela é condenável, ou seu sedutor? POVO. Não, ela não. Onde está seu sedutor? PAI. Ali! TENTADOR. Sim. Era eu. POVO. Pedras nele! MAGISTRADO. A lei deve seguir seu curso. Ele deve ser ouvido.

MAGISTRADO. (seriamente) Ele está confundindo seus ouvintes. TENTADOR. Depois foi grande a possibilidade de me envergonhar de mim mesmo (Pausa.) Ele se tornou um jovem – este humilde servo de vocês – e se sentiu cair numa série de armadilhas que foram armadas por sua inocência. Sou um velho pecador, mas me ruborizo neste momento... (Pega o chapéu.) Sim, olhem para mim agora – quando penso no vislumbre que esse jovem homem teve no mundo das esposas de Putifar que o rodeavam! Não havia uma única mulher... Realmente, estou envergonhado em nome da humanidade e do sexo feminino – desculpem-me, por favor... Houve momentos em que não acreditei no que meus olhos viam, mas pensei que um demônio havia cegado minha visão. Os vínculos mais sagrados... (Ele se morde a língua.) Não, quietos! A humanidade se sentirá caluniada! Muito bem, até meus vinte e cinco anos combati o bom combate; e caí porque... Bem, eu me chamava Joseph, e eu era Joseph! Cresci ciumento de minha virtude, e me senti injuriado pelos olhares de uma mulher luxuriosa... E por fim, astutamente seduzido, caí. Então me tornei escravo de minhas paixões, até que mergulhei na mais profunda degradação e sofri, sofri, sofri! Mas na realidade era apenas meu corpo que se degradava; minha alma vivia sua própria vida – sua própria vida pura, posso dizer – por sua própria conta. E eu delirei em desejos inocentemente por jovenzinhas puras, que, parece, sentiram o que tanto nos ligava. Porque, sem me vangloriar, posso dizer que elas

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

375

Tradução

TENTADOR. Bom! Então ouçam, Argivos! Foi assim. Seu humilde servo, nascido de pais pobres mas extremamente honrados, foi desde o começo um daqueles estranhos pássaros que, em sua juventude, saíram em busca de seu Criador – mas sem jamais o encontrar, naturalmente! È mais frequente que velhos cucos o procurem em sua senilidade – e por boas razões! A insistência nessa busca juvenil foi acompanhada por uma pureza de coração e uma tal modéstia, que até fez suas governantas sorrirem- sim, podemos rir agora que ouvimos que aquele garoto só conseguia trocar sua roupa de baixo se estivesse no escuro! Mas mesmo se estivéssemos corrompidos pelas cruezas da vida, ainda seríamos obrigados a encontrar alguma beleza nisso; e, se fôssemos mais velhos, até mesmo alguma coisa tocante! E então podemos nos permitir hoje rir dessa inocência infantil. Riso desdenhoso, senhores ouvintes, por favor.

August Strindberg

se sentiam atraídas por mim. Eu não podia avançar o sinal, mas elas o fizeram! E quando me afastava do perigo, seus corações se partiam, como elas diziam. Numa palavra, nunca seduzi uma garota inocente. Eu juro! Mereço ser condenado pela tristeza emocional dessa jovem mulher, que escapou de sua mente? Ao contrário, não mereço ter reconhecida a virtude de ter fugido com horror do passo que causou sua queda? Quem vai atirar a primeira pedra em mim? Ninguém! Então cometo aqui um erro, caros ouvintes. Na verdade, eu acreditava que poderia ser objeto de escárnio, se implorasse aqui por minha inocência masculina! Agora, entretanto, sinto-me jovem novamente, e há uma coisa pela qual gostaria de pedir o perdão da humanidade. Se não tivesse acontecido de eu ver um sorriso cínico nos lábios da mulher que me seduziu quando eu era jovem. Venha aqui, mulher, e veja sua obra de destruição. Observe como a semente cresceu! MULHER. (adiantando-se com dignidade e modéstia) Fui eu! Permitam que eu fale, e lhes conte a história pura e simples de minha sedução. (Pausa.) Felizmente meu sedutor está aqui também...

Tradução

376

MAGISTRADO. Amigos! Tenho que interromper esses depoimentos, se não vamos retroceder até Eva no Paraíso. TENTADOR. Quem foi que seduziu Adão? Eis porque temos que retroceder até Eva! Adiante-se, Eva. Eva! (Sacode sua capa no ar. O tronco da árvore se torna transparente e EVA aparece, envolta em seu cabelo e com uma guirlanda nos quadris.) Agora, Mãe Eva, foi você que seduziu nosso pai. Você é a acusada: tem alguma coisa a dizer em sua defesa? EVA. (simplesmente e com dignidade) A serpente me tentou! TENTADOR. Boa resposta! Eva provou sua inocência. A serpente! Que a serpente venha e fale. (EVA desaparece.) A serpente! (A serpente surge no tronco da árvore.) Aqui se pode ver o sedutor de todos nós. Agora, serpente, quem foi que enganou você? TODOS. (horrorizados) Silêncio! Blasfemador! TENTADOR. Responde, serpente! (Raio e trovão; todos fogem, exceto o TENTADOR, que caiu ao chão, o PEREGRINO, o ESTRANHO e a DAMA. O TENTADOR recobra os sentidos, levanta-se e se senta em pose que lembra a estátua clássica “O Polido” ou “O Escravo”.) Causa finalis. Ou a causa primordial – não se pode descobrir quem foi! Porque se a serpente for condenada, então somos todos relativamente inocentes – mas não foi isso o que se disse à humanidade! O Acusado, entretanto, parece ter desistido desse negócio! E a Corte de justiça se dissolveu como fumaça! Não julguem. Não julguem, Juízes! DAMA. (para o ESTRANHO) Venha comigo. ESTRANHO. Mas eu quero ouvir esse homem. DAMA. Por quê? Ele é como uma criança pequena, fazendo todas aquelas perguntas que não podem ser respondidas. Você sabe como as crianças pequenas perguntam sobre

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

tudo. ‘Pai, por que o sol nasce no leste?” Você sabe a resposta? ESTRANHO. Hm! DAMA. Ou: “Mãe, quem fez Deus?” Você mesmo pensa em algo tão profundo? Bem, vem comigo. ESTRANHO. (combatendo sua admiração pelo TENTADOR) Mas aquilo sobre Eva era novidade... DAMA. Não de todo. Eu aprendi na minha história da Bíblia, quando tinha oito anos. E que herdar as dívidas de nossos pais faz parte das leis da terra. Vem, meu filho. TENTADOR. (erguendo-se, chacoalhando os braços e subindo o muro rochoso à direita com dificuldade) Vem, vou lhe mostrar o mundo que você pensa que conhece, mas não imagina. DAMA. (subindo o muro rochoso à esquerda) Vem comigo, meu filho, e vou lhe mostrar como o mundo é maravilhoso, tal como eu o conheci, depois das lágrimas de tristeza caídas dos meus olhos. Vem comigo! (O ESTRANHO fica sem se resolver entre os dois.)

DAMA. O que você sabe das coisas, meu filho? Você nunca viu a coisa em si, só sua pintura; e a pintura é ilusão e não a coisa; melhor se informar sobre pinturas e ilusões. TENTADOR. Ouçam essa mulher! Uma pequena filósofa de saias. Por Júpiter Cronos, essa discussão neste anfiteatro gigante das montanhas exige uma plateia mais adequada. Olá! DAMA. Tenho aqui minha plateia: meu amigo, meu marido, meu filho! Se ele me ouvir, bem, tudo vai ficar bem comigo, e com ele. Vem comigo, meu amigo, pois este é o caminho. Este é o monte Gerizim, onde são dadas as bênçãos. E aquele é o Ebal, onde fazem as maldições. TENTADOR. Sim, o Ebal, onde são feitas as maldições. “Maldita seja a terra, mulher, por sua causa, em dores deverá parir seus filhos; e seu desejo será para seu marido, e ele governará sobre você.” E para o homem, o seguinte: “Maldito seja o solo, por sua causa, e com o suor de sua testa fará seu trabalho!” Assim falou o Senhor, não eu! DAMA. “E abençoado o primeiro casal; e Ele abençoou o sétimo dia, no qual completou Sua obra – e a obra era boa.” Mas tu, e nós, a tornamos parte do mal. E é por isso que... Mas quem obedece aos mandamentos do Senhor habita o Gerizim, onde são dadas bên-

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

377

Tradução

TENTADOR. (para a DAMA) E como foi que viu o mundo através de suas lágrimas? Como moitas de capim refletidas em água agitada! Um caos de linhas curvas em que as árvores pareciam de cabeça para baixo. (Para o ESTRANHO.) Não, meu filho, com meus binóculos, polidos no fogo do ódio – com meu telescópio posso ver tudo como tudo é. Claro e distinto, precisamente como tudo é.

August Strindberg

çãos. Assim disse o Senhor: “ Abençoado o que vive na cidade, e abençoado o que vive no campo. Abençoadas sejam tuas cestas e tuas despensas. Abençoados quando vêm e abençoados quando vão. E o Senhor dará chuva em tuas terras para aumentar tua colheita, e teus filhos crescerão. E o Senhor te fará rico em bens, para fornecer às pessoas, e nunca para emprestar. E o Senhor abençoará todo o trabalho de tuas mãos, se guardares os mandamentos do Senhor teu Deus!” (Pausa.) Então venha, meu amigo, e coloque sua mão na minha. (Ela cai de joelhos com as mãos juntas.) Eu lhe peço pelo amor que um dia nos uniu, pela memória do filho que um dia nos aproximou; pela força do amor de uma mãe – de uma mãe -, por eu ter amado você, criança pecadora, a quem procurei nos recantos escuros da floresta e que finalmente encontrei, faminta e definhada pela vontade de amor! Volta para mim, pródigo, e enterra sua cabeça cansada em meu coração, onde você descansou antes que visse a luz do sol. (Uma mudança acontece durante esta fala; suas roupas caem e ela se transforma numa mulher vestida de branco, cabelos soltos e um peito totalmente maternal.) ESTRANHO. Mãe!

Tradução

378

DAMA. Sim, meu filho, sua mãe! Em vida nunca pude acariciar você – a vontade de altos poderes negava isso para mim. Eu nunca ousei perguntar por quê. ESTRANHO. Mas minha mãe está morta? DAMA. Ela estava, mas os mortos não estão mortos, e o amor materno pode vencer a morte. Não sabia disso? Vem, meu filho, vou devolver os motivos de minha censura. Vou acalentar você no meu colo. Vou limpar você de... (omite alguma coisa que sente não poder dizer) do ódio e do pecado. Vou pentear seu cabelo, molhado do suor do medo; e arejar um lençol branco limpo para você na lareira de um lar – um lar que você nunca teve, você que não conheceu a paz, tão sem lar, filho de Hagar, a criada, nascido de uma escrava, contra a qual se ergueram as mãos de todos os homens. Os arados sulcaram suas costas e fizeram buracos profundos nela. Vem, vou curar suas feridas, e sofrer suas tristezas. Vem! ESTRANHO. (que estava chorando tão violentamente que seu corpo está tremendo, agora se dirige para o rochedo da esquerda, onde a mãe está de braços abertos) Estou indo! TENTADOR. Não posso fazer nada agora. Mas um dia vamos nos encontrar de novo! (Ele desaparece atrás do rochedo.) Cortina.

CENA II PAISAGEM ROCHOSA NA MONTANHA [Muito alto na montanha; entre as nuvens, uma paisagem rochosa com um pântano ao redor. A MÃE numa rocha, subindo até desaparecer na nuvem. O ESTRANHO para, confuso.] D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Oh, Mãe, Mãe! Por que está me abandonando? Justamente no momento em que meu sonho mais amado estava a ponto de se cumprir! TENTADOR. (vindo para a frente) No que estava sonhando? Conte-me! ESTRANHO. Com minha esperança mais amada, meu desejo mais secreto e minha última prece! Reconciliação com a humanidade, através de uma mulher. TENTADOR. Através de uma mulher que ensinou você a odiar. ESTRANHO. Sim, porque ela me prendeu à terra – como uma bola de ferro nos pés de um escravo para ele não escapar. TENTADOR. Você fala em mulher. Sempre mulher. ESTRANHO. Sim. Mulher. O começo e o fim – para nós, homens. Na relação com um outro, elas viram nada. TENTADOR. É isso aí; nada em si mesmas; mas tudo para nós, através de nós! Nossa honra e nossa vergonha; nossa maior alegria, nossa dor mais profunda; nossa redenção e nossa queda; nossos prêmios e nossa punição; nossa força e nossa fraqueza.

TENTADOR. Você sentia vergonha? Não sei por quê. ESTRANHO. Não consegue responder? De você, de todos os homens? TENTADOR. Não, não consigo. Mas eu também sofria toda vez que estava com minha esposa, porque sentia que ela estava sendo sujada pelos olhares dos homens, e eu por ela. ESTRANHO. E quando ela realizou a façanha vergonhosa, você foi desonrado. Por quê? TENTADOR. A Eva dos gregos se chamava Pandora, e Zeus a criou a partir da imoralidade, para torturar os homens e os dominar. Como presente de casamento ela recebeu uma caixa, que continha toda a infelicidade do mundo. Talvez o enigma dessa esfinge possa ser mais facilmente solucionado se ele for visto do ponto de vista do Olimpo, e não do agradável jardim do Paraíso. Seu sentido completo nunca será sabido por nós. Embora eu seja tão capaz quanto você. (Pausa.) E, por falar nisso, ainda posso gozar o maior prazer que a criação jamais ofereceu! Vá e faça a mesma coisa! ESTRANHO. Você quer dizer a maior ilusão de Satã! Pois a mulher que parece a mais bela para mim pode ser horrível para outros! Mesmo para mim, quando está zangada, ela pode ser mais feia que qualquer outra mulher. Então, o que é a beleza? TENTADOR. Uma parecença, um reflexo de sua própria bondade! (Coloca a mão sobre a

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

379

Tradução

ESTRANHO. Nossa vergonha! Você disse isso. Explique esse enigma para mim, você que é sábio. Toda vez que eu aparecia em público de braço dado com uma mulher, minha esposa, que era bela e quem eu adorava, eu sentia vergonha de minha própria fraqueza. Explique esse enigma para mim.

August Strindberg

boca.) Maldita beleza! Eu a abandonei naquele tempo. E agora o diabo está solto... ESTRANHO. Diabo? Sim. Mas se ela é um diabo, como pode um diabo me fazer desejar virtude e bondade? Pois o que me aconteceu quando primeiro vi sua beleza foi ser apanhado por uma vontade de ser como ela, e assim ser digno dela. Para começar, tentei algumas experiências, tomando banhos, usando cosméticos e vestindo boas roupas, mas o que consegui foi só me tornar ridículo. Depois, comecei do interior, acostumei-me a pensar bons pensamentos, falando bem das pessoas e agindo nobremente! E um dia, quando minha forma externa se havia moldado na alma interna, eu me tornei sua semelhança, como ela disse. E foi ela que primeiro pronunciou aquelas palavras maravilhosas: eu te amo! Como pode um diabo nos enobrecer; como pode um espírito do inferno nos encher de bondade; como...? Não, ela era um anjo! Um anjo caído, naturalmente, e seu amor um raio quebrado daquela grande luz – aquela grande luz eterna – que aquece e ama... Que ama... TENTADOR. O quê, velho amigo; devemos ficar aqui parados como dois jovens e soletrar os enigmas do amor?

Tradução

380

CONFESSOR. (chegando) O que esse tagarela está dizendo? Ele tem dito baboseiras a vida inteira, e nunca fez nada. TENTADOR. Eu queria ser padre, mas não tinha vocação. CONFESSOR. Enquanto fica esperando por ela, ajude-me a encontrar um bêbado que se afogou no pântano. Deve estar perto daqui, porque estive seguindo seus rastros até agora. TENTADOR. Então deve ser o homem deitado embaixo daqueles arbustos ali adiante. CONFESSOR. (levantando alguns galhos e descobrindo um cadáver completamente vestido, com o rosto jovem muito pálido) Sim, é ele! (Torna-se pensativo enquanto olha para o homem morto.) TENTADOR. Quem era? CONFESSOR. É extraordinário! TENTADOR. Deve ter sido um homem muito atraente. E bastante jovem. CONFESSOR. Oh não. Tinha cinquenta e quatro anos. E quando o vi há uma semana, ele parecia já ter sessenta e quatro. Seus olhos eram tão amarelos como o visco de uma lesma de jardim ou o vômito de um bêbado; mas também porque havia chorado lágrimas de sangue por seus vícios e sua miséria. Seu rosto estava marrom e inchado como um pedaço de fígado na tábua de um açougueiro, e ele se escondeu dos olhos dos homens por vergonha – até o fim parecia estar envergonhado do espelho quebrado de sua alma, pois cobriu sua face com galhos. Eu o vi combatendo seus vícios, eu o vi pedindo a Deus de joelhos por sua libertação, depois de ter sido demitido de seu posto de professor... Mas... Bem, agora foi libertado. E olhem, agora o mal foi tirado dele, o bem e a beleza que D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

existiam nele se tornaram tão aparentes, que parece ter só dezenove anos! (Pausa.) Isto é pecado – imposto como punição. Por quê? Isso não sabemos. “Quem odeia o correto será culpado” Assim está escrito, como advertência. Eu o conheci quando ele era jovem! E agora me lembro... estava sempre muito zangado com os que nunca bebiam. Criticou e condenou, e sempre colocou seu culto ao vinho no altar das alegrias terrenas! Agora foi libertado. Está livre do pecado, da vergonha, da feiura. Sim, na morte parece bonito. A morte é a libertação! (para o ESTRANHO.) Está ouvindo isso, Libertador, você que não conseguiu nem libertar um bêbado de suas paixões malignas! TENTADOR. Crime como punição? Não é tão ruim assim. Muito comovente! CONFESSOR. Também acho. Você não teria melhor argumento. TENTADOR. Agora vou deixar os cavalheiros por algum tempo. Mas logo nos veremos novamente. (Sai.) CONFESSOR. Vi você ainda há pouco com uma mulher! Então ainda existem tentações? ESTRANHO. Não do modo como está pensando. CONFESSOR. De que tipo, então?

381

CONFESSOR. Mas o quê? ESTRANHO. A experiência ensina; quanto mais próximo, mais distante: quanto mais distante um do outro, tanto mais perto se está. CONFESSOR. Eu sempre soube disso – e também o sabia Dante, que em toda a sua vida possuiu a alma de Beatriz; e também Beethoven, que se uniu à distância com Tereza de Brunswick, conheceu-a, embora ela fosse esposa de um outro! ESTRANHO. E então! Felicidade é apenas estar na companhia dela. CONFESSOR. Então fique com ela. ESTRANHO. Está se esquecendo de uma coisa: estamos divorciados. CONFESSOR. Bom! Então vocês podem contrair novo casamento. Que pode lhes prometer tudo de melhor, porque vocês são novas pessoas. ESTRANHO. Você acha que alguém nos casaria? CONFESSOR. Eu, por exemplo? Está pedindo demais. ESTRANHO. Sim, me esqueci! Mas ouso dizer que se poderia encontrar. É uma outra

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

ESTRANHO. Eu poderia ainda imaginar uma reconciliação entre a humanidade e a mulher – através da própria mulher! E, de fato, através daquela mulher que foi minha esposa e que se tornou agora aquilo que um dia a levou a ser purificada e livrada da tristeza e das dificuldades. Mas...

August Strindberg

coisa construir um lar juntos.... CONFESSOR. Às vezes você é feliz, mesmo quando não a vê. Há uma casinha rio abaixo, bastante nova e o proprietário nunca a viu. Era um inglês que queria casar, mas no último momento rompeu o noivado. A casa foi construída por seu secretário e nem mesmo o casal de noivos jamais a viu. Está quase intacta, você pode ver! ESTRANHO. Está para alugar? CONFESSOR. Sim. ESTRANHO. Então vou arriscar. E tentar recomeçar minha vida novamente. CONFESSOR. Então vai descer? ESTRANHO. Para baixo das nuvens. Lá o sol está brilhando e aqui o ar é um pouco pesado. CONFESSOR. Muito bom! Então vamos nos separar – por algum tempo. STRANGER. Para onde vai?

Tradução

382

CONFESSOR. Subir. ESTRANHO. E eu descer; para a terra, a mãe de peito macio e colo quentinho... CONFESSOR. Até que você sinta saudade outra vez do que é duro como pedra, tão frio e tão branco... Adeus! Saudações ao povo lá de baixo! (Cada um deles sai na direção escolhida) Cortina.

CENA III UMA CASINHA NA MONTANHA [Uma sala de jantar agradável, apainelada, com um fogão revestido de azulejos. Sobre a mesa, que está no centro do aposento, há vasos com flores; também dois candelabros com muitas velas acesas. Um grande aparador entalhado à esquerda. À direita, duas janelas. No fundo, duas portas; a da esquerda está aberta e dá para uma sala de visitas, pertencente à DAMA da casa, mobiliada em verde claro e mogno, com um abajur padrão com cúpula verde-limão, que está apagado. A porta da direita está fechada. À esquerda, atrás do aparador, a entrada do hall.] [O ESTRANHO entra pela esquerda, vestido como noivo, com a DAMA, vestida de noiva; ambos radiantes de juventude e beleza.] ESTRANHO. Bem-vinda à minha casa, minha amada; ao seu lar e ao meu, minha esposa; à nossa casa, minha mulher!

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

DAMA. Estou muito grata, meu querido amigo! É como um conto de fadas! ESTRANHO. Sim, é. Todo um livro de contos de fadas, minha querida, escrito por mim. (Sentam-se, um em cada lado da mesa.) DAMA. Isto é real? Parece muito amável para mim. ESTRANHO. Nunca vi você tão jovem, tão bonita. DAMA. São seus olhos... ESTRANHO. Sim, meus olhos aprenderam a ver. E sua bondade os ensinou… DAMA. Que, por sua vez, foi ensinada pela tristeza. ESTRANHO. Ingeborg! DAMA. É a primeira vez que sou chamada por esse nome. ESTRANHO. A primeira? Eu nunca encontrei Ingeborg; nunca conheci você, como você é, sentada aqui em sua casa! Lar! Uma palavra encantadora. Uma coisa encantadora que eu ainda não possuí. Um lar e uma esposa! Você foi minha primeira, você foi a única; porque aquilo que aconteceu não existe mais – nunca mais a não ser como a hora que passou! ESTRANHO. Eurídice, que eu resgatei do mundo subterrâneo. Vou trazer você à vida de novo; revivificá-la com minha imaginação. Agora a felicidade vai chegar para nós, pois conhecemos os perigos a evitar. DAMA. Os perigos, sim! É agradável esta casa. Parece que os cômodos estão cheios de hóspedes invisíveis, que vieram nos dar boas-vindas. Espíritos gentis, que nos abençoarão e ao nosso lar. ESTRANHO. As velas estão quietas, como se orassem. As flores estão pensativas… e no entanto! DAMA. Shsh! É noite de verão do lado de fora, quente e escura. E as estrelas estão suspensas no céu; grandes e chorosas nos abetos, como velas de Natal. Isso é felicidade. Agarre-a rápido! ESTRANHO. (ainda pensando) E no entanto! DAMA. Shsh! ESTRANHO. (levantando-se) Um poema está chegando: posso ouvi-lo. É para você. DAMA. Não o diga. Eu posso vê-lo – em seus olhos. ESTRANHO. Pois eu o li nos seus! Bom, não posso repeti-lo, porque não tem palavras. Apenas perfume e cor. Se eu pudesse, eu o destruiria. O que ainda não nasceu é sempre

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

DAMA. Orfeu! Sua canção fez viverem estas pedras mortas. Faz a vida cantar em mim!

383

August Strindberg

mais bonito. O que não é vencido é mais amado! DAMA. Quieto. Ou nossos hóspedes vão nos deixar. (Eles não falam.) ESTRANHO. Isto é felicidade – mas não consigo agarrá-la. DAMA. Veja-a e respire-a, porque ela não pode ser agarrada. (Eles não falam) ESTRANHO. Você está olhando para seu quartinho. DAMA. É de um verde tão brilhante quanto uma campina no verão. Tem alguém lá. Muitas pessoas! ESTRANHO. São apenas meus pensamentos. DAMA. Seus bons, seus belos pensamentos... ESTRANHO. Que me foram dados por você. DAMA. Eu tinha alguma coisa para lhe dar?

Tradução

384

ESTRANHO. Você? Tudo! Mas até agora minhas mãos não estavam livres para pegar. Não estavam limpas o suficiente para tocar seu coração... DAMA. Meu amado! A hora da reconciliação está chegando. ESTRANHO. Com a humanidade, e com a mulher – através de uma mulher? Sim, essa hora chegou; e bendita seja você entre as mulheres. (As velas e os abajures se apagam; a sala fica às escuras, mas um fraco raio de luz pode ser visto, vindo de uma lâmpada comum do quarto da DAMA.) DAMA. Por que tudo ficou escuro? Oh! ESTRANHO. Onde você está, minha amada? Me dê sua mão. Estou com medo! DAMA. Aqui, meu querido. ESTRANHO. Sua mão pequena, estendida para mim na escuridão, me guiou sobre pedras e espinhos. Essa mão pequena, macia, tão cara a mim. Leve-me para a luz, para seu quarto brilhante e quente, verde-claro como a esperança. DAMA. (levando-o na direção do quarto verde-pálido) Você está com medo? ESTRANHO. Você é uma pombinha branca, em quem a águia assustada encontra santuário, quando as nuvens de trovão e chuva ficam negras, porque a pomba não tem medo. Ela não provocou os trovões do céu! (Eles alcançaram a porta que leva ao outro quarto, quando a cortina cai.) ************* [O mesmo cômodo, mas a mesa foi esvaziada. A DAMA está ali sentada, fazendo nada. Parece aborrecida. À direita, na frente do palco, uma janela aberta. Tudo calmo. O D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO entra, com uma folha de papel na mão.] ESTRANHO. Agora ouça isto. DAMA. (aquiescendo, a mente longe) Já terminou? ESTRANHO. Já? Está falando sério? Levei sete dias para escrever esse poeminha (Silêncio.) Talvez ele te aborreça se o ouvir? DAMA. (secamente) Não. Certamente que não. (O ESTRANHO se senta à mesa e olha para a DAMA.) Por que está olhando para mim? ESTRANHO. Gostaria de ver seus pensamentos. DAMA. Mas você os ouviu.

DAMA. Não nego nada disso, mas meu ego não era exatamente meu. ESTRANHO. Não era seu? Era o quê, então? Alguma coisa que pertence a outros? DAMA. É sua uma coisa que pertence aos outros também? ESTRANHO. Não. O que experimentei é meu, meu e de ninguém mais. O que li às vezes é meu, porque eu o quebrei em dois como vidro, misturei e dessa substância nasceu um novo vidro em formas novas. DAMA. Mas eu posso nunca ser sua. ESTRANHO. Eu me tornei seu. DAMA. O que você recebeu de mim? ESTRANHO. Como você pode me perguntar isso? DAMA. Sempre o mesmo: não tenho certeza de que pense isso, embora sinta que é isso o que você sente – você me quer bem longe. ESTRANHO. Preciso guardar uma certa distância de você, se devo ver você. Agora você está no foco, e sua imagem não está muito clara. DAMA. Quanto mais perto, mais longe!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

385

Tradução

ESTRANHO. Ouvir não é nada; eu quero ver! (Pausa.) O que alguém diz é muito menos digno de atenção. (Pausa.) Posso ouvi-los? Não, vejo que não posso. Você não quer nada de mim. (A DAMA faz um gesto de como se fosse falar.) Sua cara me diz o suficiente. Agora que você me sugou tudo, comeu meu fígado, matou meu ego, minha personalidade. A isso eu respondo: como, minha amada? Eu matei seu ego quando quis dar a você tudo de mim, quando deixei você escumar o creme de minha tigela, que eu enchi com a experiência de uma vida inteira, com incursões nos desertos e cavernas do conhecimento e da arte?

August Strindberg

ESTRANHO. Sim. Quando nos separamos, um sentiu a falta do outro, e quando nos encontramos de novo, logo quisemos nos separar. DAMA. Você realmente pensa que nos amamos? ESTRANHO. Sim. Não como a gente comum, mas pessoas incomuns. Nós parecemos duas gotas de água, que têm medo de se aproximar para não correrem o risco de se tornarem uma só gota. DAMA. Desta vez sabemos quais os perigos e queremos evitá-los. Mas parece que eles não podem ser evitados. ESTRANHO. Talvez não fossem perigos, mas necessidades rudes; leis inscritas nos concílios dos imortais. (Silêncio.) Seu amor sempre pareceu ter o efeito de ódio. Quando você me fez feliz, invejou a felicidade que me deu. E quando viu que eu estava infeliz, você me amou. DAMA. Você quer que eu o deixe? 386

DAMA. E se eu ficar, sou eu que vou morrer.

Tradução

ESTRANHO. Se você se for, eu vou morrer. ESTRANHO. Então vamos morrer juntos e viver nosso amor numa vida superior, que não parece ser deste mundo. Vamos vivê-lo em outro planeta, onde não exista proximidade nem distância, onde dois são um, onde número, tempo e espaço não são mais o que são aqui. DAMA. Eu gostaria de morrer, embora não queira. Acho que já devo estar morta. ESTRANHO. O ar aqui está muito forte. DAMA. Você não pode me amar se falar desse modo. ESTRANHO. Para ser franco, há momentos em que você não existe para mim. Mas em outros sinto seu ódio como fumaça sufocante. DAMA. E eu sinto meu coração saindo do meu peito quando você está zangado comigo. ESTRANHO. Então devemos nos odiar um ao outro. DAMA. E amar um ao outro também. ESTRANHO. E odiar porque amamos. Nós odiamos um ao outro porque fomos unidos um ao outro. Nós odiamos a ligação, nós odiamos nosso amor, nós odiamos o que é mais amável, o que é mais amargo, o melhor que a vida pode oferecer. Chegamos ao fim! DAMA. Sim. ESTRANHO. Que piada é a vida, se você a viver seriamente. E como ela é séria, se a viver como uma piada! Você quis me levar pela mão na direção da luz; sua tarefa mais D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

fácil foi fazer a minha mais fácil também. Eu queria elevar você acima do pântano e da areia movediça, mas você ansiava pelas regiões mais baixas, e queria me convencer de que elas eram as mais superiores. Eu me perguntei se seria possível que você tomasse o que era abjeto de mim, quando fui libertado disso; e o que era bom em você entrasse em mim... Se a fiz abjeta peço seu perdão, e beijo sua mão pequenina que me acariciou e me arranhou... essa mãozinha que me levou para a escuridão... e para essa longa jornada para Damasco.... DAMA. Para uma separação? (Silêncio.) Sim, uma separação (A DAMA segue seu caminho. O ESTRANHO cai sobre uma cadeira perto da mesa. O TENTADOR coloca a cabeça na janela, e descansa sobre os cotovelos enquanto fuma um cigarro.) TENTADOR. Ah, sim! C’est l’amour! O mais misterioso de todos os mistérios, o mais inexplicável de tudo que pode ser explicado, o mais precário de tudo que pode ser inseguro. ESTRANHO. Então você está aí, é? TENTADOR. Estou sempre em toda parte, onde haja cheiro de disputas. E em casos de amor sempre há contendas. ESTRANHO. Sempre?

ESTRANHO. Mas muito pequena. TENTADOR. Pode ser pequena, mas é boa! (Pausa.) Diga-me, por que sua madonna tomou seu caminho e se foi? Sem resposta, porque ele não sabe! Agora temos de deixar o hotel novamente. Pegue esse esqui. Vamos descer já. “Um vem, outro vai!” C’est la vie, quoi? Quartos para viajantes! ESTRANHO. Você já foi casado? TENTADOR. Oh sim. Claro. ESTRANHO. Então por que se separou? TENTADOR. Principalmente – talvez por uma peculiaridade minha – principalmente porque, sabe – bem, um homem se casa para ter um lar, para entrar num lar quando chega; e a mulher para se livrar de um. Ela queria sair, e eu queria entrar! Isso para mim era tão sério que não consegui mais tê-la em minha companhia, porque senti como se ela

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

TENTADOR. Sempre! Fui convidado para bodas de prata ontem... Vinte e cinco anos não são uma insignificância – e durante vinte e cinco anos eles querelaram. Todo o caso de amor foi uma longa gritaria, com muitas gritarias no meio! E no entanto se amavam um ao outro, e foram gratos por todo o bem que lhes acontecera; o mal foi esquecido, varrido para fora – pela felicidade de um momento o que são dez dias de vendaval e alfinetadas? Oh sim! Aqueles que não aceitarem o mal nunca conseguirão o bem. A casca é muito amarga, mas a amêndoa é bem doce.

387

August Strindberg

tivesse sido sujada pelos olhares dos homens. E em minha companhia, minha esplêndida esposa se transformou num macaquinho careteiro cuja visão eu não conseguia suportar. Então, fiquei em casa e, depois, ela foi embora. E quando a encontrei de novo, ela havia se transformado em outra pessoa. Ela, meu puro papel de anotações branquinho, estava toda rabiscada; suas características claras e adoráveis mudadas em imitação dos olhares libidinosos de homens estranhos. Podia ver miniaturas de fotografias de toureiros e oficiais da guarda em seus olhos, e ouvir os sotaques de homens estranhos em sua voz. No nosso piano de cauda, no qual apenas as harmonias dos grandes mestres costumavam ser tocadas, ela agora tocava canções de cabaré de homens estranhos, e na nossa mesa agora só pousavam as leituras favoritas de homens estranhos. Numa palavra, toda minha existência estava a caminho de se tornar um concubinato intelectual com homens estranhos – e que eram contrários à minha natureza, que sempre havia desejado mulheres! E – eu preciso desesperadamente dizer isso – os gostos desses homens estranhos eram sempre o contrário dos meus. Ela desenvolvera um gênio real em descobrir coisas que eu detestava! Era o que ela chamava de “salvar sua personalidade”. Pode entender isso? ESTRANHO. Eu posso, mas não quero tentar explicar.

Tradução

388

TENTADOR. Entretanto essa mulher continuava afirmando que me amava, e que eu não a amava. Mas eu a amava tanto que não queria contar para qualquer outro ser humano porque temia ser mentiroso para ela se encontrasse prazer na companhia de outras pessoas, mesmo que fossem homens. Eu me havia casado para uma sociedade feminina; e para apreciá-la abandonei meus amigos. Eu me havia casado para encontrar companhia, mas o que eu conseguira era a solidão completa! E eu estava sustentando casa e lar para manter homens estranhos com companhia feminina. C’est l’amour, meu amigo! ESTRANHO. Você nunca deveria falar de sua esposa. TENTADOR. Não! Pois se você falar bem dela, as pessoas vão rir; e se você falar mal, toda a simpatia delas irá para ela; e se, no primeiro caso, você perguntar por que elas riem, não receberá resposta. ESTRANHO. Não. Você nunca vai descobrir com quem você se casou. Nunca segure uma mulher – vai parecer que ela é ninguém. Me diga – o que é mulher? TENTADOR. Eu não sei! Talvez uma larva ou uma crisálida, de cuja vida ou transe o homem um dia será criado. Ela parece uma criança, mas não é uma criança; é uma espécie de criança, mas ainda não é uma. Puxa para baixo, quando o homem empurra para cima. Puxa para cima, quando o homem empurra para baixo. ESTRANHO. Ela sempre quer discordar de seu marido; sempre tem muita simpatia pelo que ele desgosta; é a mais grosseira diante dos maiores refinamentos superficiais; a mais abjeta diante dos melhores. E entretanto, toda vez que me apaixonei, sempre me tornei mais sensível aos refinamentos da civilização.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

TENTADOR. Você, me atrevo a dizer, o que pensa dela? ESTRANHO. Oh, enquanto nosso amor crescia, ela estava sempre retrocedendo e se tornando mais crua e mais abjeta. TENTADOR. Pode explicar isso? ESTRANHO. Tentando encontrar a solução para o enigma discordando de mim mesmo, imaginei que ela havia absorvido meu mal e eu o seu bem. TENTADOR. Você acha que a mulher é particularmente falsa? ESTRANHO. Sim e não. Ela parece esconder sua fraqueza, mas isso só significa que é ambiciosa e tem senso de vergonha. Só as putas são honestas, e, portanto, cínicas. TENTADOR. Diga-me algo mais sobre ela que seja bom.

TENTADOR. Bem pensado; e, como opinião, pode ser defendida. Ela quis fazer você melhor do que ela própria, mais elevada e mais pura, de modo que pudesse cuidar de você! Mas você pode encontrar outra explicação igualmente boa para isso. Uma mulher está sempre zangada e mal-humorada com o marido; e o marido é sempre gentil e grato para com sua esposa. Ele faz tudo que pode para tornar as coisas fáceis para ela, e ela faz tudo que pode para o torturar. ESTRANHO. Não é verdade. É claro que às vezes pode parecer que é assim. Tive uma vez uma amiga que listou para mim todos os defeitos que possuía. Por exemplo, ela era muito amorosa de si mesma, e portanto me chamava de o mais egoísta dos homens. Ela bebeu, e me chamou de bêbado; ela raramente trocava sua roupa íntima e eu disse que eu estava sujo; ela era ciumenta, mesmo dos meus amigos homens e me chamava de Otelo. Era imperiosa e me chamava de Nero. Sovina, e me chamava de Harpagão. TENTADOR. Por que você não lhe respondeu? ESTRANHO. Você sabe muito bem! Se eu deixasse claro aquilo que realmente era, eu perderia seus favores naquele momento – e era precisamente seu favor que eu queria manter. TENTADOR. A tout prix! Sim, aí está a fonte da degradação! Você cresceu acostumado a segurar a língua, e no fim se viu apanhado numa malha de falsidades.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

389

Tradução

ESTRANHO. Uma vez tive uma amiga mulher. Ela logo notou que quando eu bebia ficava mais feio que o usual; então ela me pediu para parar. Eu me lembro que uma noite ficamos conversando num café durante muitas horas. Perto das dez horas, ela me pediu para ir para casa e não beber mais. Nós nos separamos, depois de nos dizer boa noite. Alguns dias depois, ouvi que ela me deixara apenas para ir a uma grande festa, onde bebeu até de manhã. Bom, eu disse, como naquela época eu dava a todos a impressão de que não era bom em mulheres, ela foi significativa para mim, mas teve que se sujar por questões de trabalho.

August Strindberg

ESTRANHO. Espere! Você não concorda que pessoas casadas misturam tanto suas personalidades que não conseguem mais distinguir entre o meum e o tuum, não mais ficam separados um do outro, ou não diferenciam mais suas fraquezas das do outro? Meu amigo ciumento, que me chamou de Otelo, tomou-me por ela, identificou-me com ela. TENTADOR. Isso soa perfeitamente possível. ESTRANHO. Você veja! Você pode frequentemente explicar muito se não perguntar quem deve ser censurado. Pois quando pessoas casadas começam a se diferenciar, é como um reino dividido contra si mesmo, e esse é o pior tipo de desarmonia. TENTADOR. Há momentos em que penso que uma mulher não pode amar um homem. ESTRANHO. Talvez não. Amar é um verbo ativo e mulher é um substantivo passivo. Ele ama e ela é amada; ele faz perguntas e ela simplesmente responde. TENTADOR. Então, o que é o amor de uma mulher? ESTRANHO. O do homem.

Tradução

390

TENTADOR. Muito bem dito. E portanto quando o homem deixa de amá-la, ela se separa dele! ESTRANHO. E depois? TENTADOR. Sh! Vem vindo alguém. Talvez para ocupar a casa! ESTRANHO. Mulher ou homem? TENTADOR. Uma mulher! E um homem. Mas ele ficou esperando do lado de fora Agora ele se virou e está indo na direção da floresta. Interessante! ESTRANHO. O que é aquilo? TENTADOR. Veja você mesmo. ESTRANHO. (olhando pela janela) É ela! Minha primeira esposa! Meu primeiro amor! TENTADOR. Parece que ela abandonou seu segundo marido recentemente… e chegou aqui com o número três; que, a julgar por certos movimentos de suas costas e panturrilhas, está fugindo de alguma tempestade. Oh, bem! Mas ela não notou as intenções malevolentes dele. Muito interessante! Vou sair e ouvir (Ele desaparece. A MULHER bate à porta.) ESTRANHO. Entre! (A MULHER entra. Silêncio.) MULHER. (excitadamente) Só vim aqui porque a casa estava para alugar. ESTRANHO. Oh! MULHER. (lentamente) Se eu tivesse sabido quem queria alugá-la, não teria vindo aqui. ESTRANHO. O que isso importa? D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

MULHER. Posso me sentar por um momento? Estou cansada. ESTRANHO. Por favor, sente-se. (Sentam-se à mesa, um em oposição ao outro, nos lugares ocupados pelo ESTRANHO e pela DAMA na primeira cena.) Faz tempo que não vemos um ao outro assim desta maneira. MULHER. Com flores e luzes sobre a mesa. Uma noite... ESTRANHO. Quando eu estava vestido de noivo e você de noiva... MULHER. E as chamas das velas estavam quietas em prece e as flores pensativas... ESTRANHO. Seu marido está lá fora? MULHER. Não. ESTRANHO. Você ainda está procurando... o que não existe? MULHER. Não existe? ESTRANHO. Não. Eu sempre lhe disse, mas você não quis acreditar; queria descobrir por si mesma. Já descobriu? MULHER. Ainda não.

MULHER. Sim. ESTRANHO. Como ele foi se esquecer tanto de si mesmo? MULHER. Ele estava zangado. ESTRANHO. Por causa de? MULHER. Nada. ESTRANHO. Por que ele estava zangado por causa de nada? MULHER. (levantando-se) Não, obrigada! Não quero me sentar aqui e ser cortada em pedaços. Onde está sua esposa? ESTRANHO. Ela acabou de me deixar. MULHER. Por quê? ESTRANHO. Por que você me deixou? MULHER. Eu senti que você queria me deixar, então, para não ser abandonada, eu própria fui embora. ESTRANHO. Tenho que reconhecer que é verdade. Mas como você conseguiu ler meus pensamentos?

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

ESTRANHO. Por que você deixou seu marido? (A MULHER não responde.) Ele expulsou você?

391

August Strindberg

MULHER. (sentando-se novamente) O quê? Não precisamos falar para saber dos pensamentos de outra pessoa. ESTRANHO. Cometemos um erro quando vivemos juntos, porque nos acusamos um ao outro de pensamentos abjetos antes que eles se transformassem em ações; e vivemos em reservas mentais em vez de realidades. Por exemplo, uma vez eu notei como você apreciou o olhar profanador de um homem estranho; e eu a acusei de infidelidade. MULHER. Você estava errado, mas também certo. Porque meus pensamentos eram pecaminosos. ESTRANHO. Não acha que meu hábito de “antecipar você” evitou que suas más intenções fossem postas em prática? MULHER. Deixe-me pensar! Sim, talvez. Mas eu fiquei constrangida de ter sempre um espião ao meu lado, observando meu espírito mais interno, que era meu eu próprio. ESTRANHO. Mas não era o seu eu: era o nosso!

Tradução

392

MULHER. Sim, mas eu o considerava meu, e acreditava que você não tinha o direito de forçar sua entrada. Quando você o fez, eu o odiei, disse que você era anormalmente suspeito de autodefesa. Agora posso admitir que suas suspeitas não estavam erradas; que elas eram, de fato, a mais pura sabedoria. ESTRANHO. Oh! Você sabe que, à noite, quando dizíamos boa noite como amigos e íamos dormir, eu costumava caminhar e sentir seu ódio me envenenando, e pensava em sair da cama para não ser sufocado. Numa noite eu acordei e senti um aperto no alto de minha cabeça. Vi que você estava acordada e havia colocado sua mão perto de minha boca. Pensei que estivesse me fazendo inalar veneno de um frasco; e, para me certificar, peguei na sua mão. MULHER. Eu me lembro. ESTRANHO. O que você fez naquele momento? MULHER. Nada. Apenas odiei você. ESTRANHO. Por quê? MULHER. Porque você era meu marido. Porque eu comia do seu pão. ESTRANHO. Você acha que sempre foi assim? MULHER. Não sei. Suspeito que sim. ESTRANHO. Mas algumas vezes você me desprezou? MULHER. Sim, quando você se tornava ridículo. Um homem apaixonado é sempre ridículo. Sabe o que é um barrete de bufão? É aquilo que um enamorado é.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Mas se qualquer homem que ama você é ridículo, como consegue corresponder ao seu amor? MULHER. Nós não correspondemos! Nós nos submetemos a ele, e procuramos outro homem que não nos ame. ESTRANHO. Mas se ele, por sua vez, começa a amar você, você procura um terceiro? MULHER. Talvez seja assim. ESTRANHO. Muito estranho. (Silêncio.) Eu me lembro que você estava sempre sonhando com alguém que chamava de seu “Toreador”, que eu traduzia como “matador a cavalo”. Algumas vezes você o conseguiu, mas ele não te deu filhos, nem pão, apenas surras! Um toreador está sempre combatendo. (Silêncio.) Certa vez eu me deixei tentar por competir com o toreador. Comecei a andar de bicicleta e a praticar esgrima e outras coisas do tipo. Mas você só começou a me detestar por isso. O que significa que o marido não pode fazer o que o amante pode. Mais tarde você desenvolveu uma paixão por rapazes de recados. Um deles costumava se sentar no tapete belga e ler para você seus versos ruins... Os meus versos bons não serviam para você. Você conseguiu seu rapaz de recados? MULHER. Sim. Mas os versos dele não eram realmente ruins.

MULHER. (levantando-se e indo para a porta) Você devia ter vergonha de si mesmo. (O TENTADOR entra, com uma carta na mão.) TENTADOR. Tenho aqui uma carta. É para você. (A MULHER pega-a e a lê e cai numa cadeira.) Um bilhete de adeus! Oh, bem! Todos os começos são difíceis – em casos de amor. E aqueles a quem falta paciência para vencer as dificuldades iniciais – perdem o fruto dourado. Rapazes de recado são sempre impacientes. Juventude desconhecida, já não teve o suficiente? ESTRANHO. (levantando-se e pegando seu chapéu) Minha pobre Anna! MULHER. Não me deixe. ESTRANHO. Eu devo deixá-la. MULHER. Não vá. Você foi o melhor de todos eles. TENTADOR. Você quer começar novamente desde o começo? Esse seria um caminho seguro para colocar um fim nisso. Pois se amantes só encontram um outro amante, eles perdem um outro! O que é amor? Digam alguma coisa espirituosa, cada um de vocês, antes de nos separarmos. MULHER. Eu não sei o que é. A mais elevada e a mais adorável das coisas, que tem que

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

ESTRANHO. Oh sim, eles eram, minha querida. Eu o conheço! Ele roubou meus ritmos e os colocou naqueles poeminhas de algibeira.

393

August Strindberg

penetrar a mais feia e a mais inferior delas. ESTRANHO. Uma caricatura do divino amor. TENTADOR. Uma planta anual, que floresce durante o namoro, dá sementes no casamento e depois mergulha na terra para definhar e morrer. MULHER. As flores mais adoráveis não possuem semente. A rosa é a flor do amor. ESTRANHO. E o lírio a da inocência. Pode dar sementes, mas só abre sua copa branca para beijos. TENTADOR. E propaga sua espécie com brotos, dos quais surgem frescos lírios, como a casta Minerva que desabrochou completamente armada da cabeça de Zeus, e não de seus reais lombos. Oh sim, crianças, eu compreendi muito, mas nunca isto: o que o amado da minha alma tem a ver com... (Hesita.) ESTRANHO. Bem, vamos!

Tradução

394

TENTADOR. O que o todo-poderoso amor, que é o casamento das almas, tem a ver com a propagação das espécies! ESTRANHO e MULHER. Agora ele chegou ao ponto! TENTADOR. Nunca fui capaz entender como um beijo, uma palavra não nascida, uma linguagem silenciosa da alma, pode ser trocado, por meio de um procedimento santificado, por uma operação cirúrgica, que sempre termina em lágrimas e estalejar de dentes. Nunca compreendi como aquela noite sagrada , a primeira em que duas almas se abraçam em amor, pode terminar num derramamento de sangue, em discussão, ódio, desprezo mútuo – fiapos de tecido! (Conserva a boca fechada.) ESTRANHO. Suponha que a história da queda fosse real? “Em dor parirás teus filhos.” TENTADOR. Nesse caso qualquer um entenderia. MULHER. Quem é o homem que diz essas coisas? TENTADOR. Apenas um andarilho na areia movediça desta vida. (A MULHER se levanta.) Então está pronto para ir. Quem vai primeiro? ESTRANHO. Eu vou. TENTADOR. Onde? ESTRANHO. Lá para cima. E você? TENTADOR. Vou ficar aqui, entre... Cortina.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ATO IV CENA I CAPÍTULO DO MOSTEIRO [Um capítulo gótico. No fundo arcadas levam aos claustros e ao jardim do mosteiro. No centro do jardim há uma fonte com a estátua da Virgem Maria, cercada por pés de rosas brancas. As paredes do capítulo estão cheias das vozes do coro que canta no velho estábulo revestido de carvalho. A cela do PRIOR está no centro à direita e um pouco mais acima das outras celas. No meio do capítulo um crucifixo enorme. O sol está brilhando sobre a estátua da Virgem no jardim. O ESTRANHO entra, vindo do fundo. Está vestindo um grosseiro capuz de monge, com uma corda ao redor da cintura e sandálias nos pés. Ele para no umbral da porta e olha para o capítulo, depois caminha na direção do crucifixo e para diante dele. A última estrofe do serviço do coral pode ser ouvida pelo jardim. O CONFESSOR entra, vindo do fundo; está vestido em branco e preto, cabelos longos, barba por fazer, pequena tonsura que mal pode ser vista.] 395

CONFESSOR. A paz esteja contigo!

Tradução

ESTRANHO. E contigo também. CONFESSOR. Como você gosta desse casarão branco? ESTRANHO. Só vejo escuridão. CONFESSOR. Você ainda está preto, mas vai ficar branco, muito branco! Dormiu bem a noite passada? ESTRANHO. Sem sonhos, como uma criança cansada. Mas me diga: por que tantas portas fechadas? CONFESSOR. Gradualmente você vai aprender a abri-las. ESTRANHO. É uma construção grande? CONFESSOR. Interminável! Data do tempo de Carlos Magno e tem sido aumentado continuamente graças a doações piedosas. Não foi tocado pelas revoluções espirituais de diferentes épocas, permanece nas suas alturas rochosas como um monumento da cultura universal. Quer dizer: a fé cristã se casou com o conhecimento de Grécia e de Roma. ESTRANHO. Então não é meramente um edifício religioso? CONFESSOR. Não. Ele abrange todas as artes e ciências. Há uma biblioteca, um museu, um observatório e um laboratório – como vai ver depois. Agricultura e horticultura também são estudadas aqui, e um hospital para leigos, com suas próprias fontes de sulfura, está ligado ao mosteiro.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

August Strindberg

ESTRANHO. Uma palavra ainda, antes que o capítulo se reúna. Que tipo de homem é o Prior? CONFESSOR. (sorrindo) Ele é o Prior! À distância, sem par, morando no cimo do conhecimento humano, e... bem, vai vê-lo logo. ESTRANHO. É verdade que é muito velho? CONFESSOR. Ele chegou a uma idade incomum. Nasceu no começo do século que agora está terminando. ESTRANHO. Sempre esteve no mosteiro? CONFESSOR. Não. Nem sempre foi monge, embora sempre tenha sido sacerdote. Foi ministro uma vez, mas isso foi há setenta anos. Por duas vezes foi reitor de universidade. Arcebispo... Sh! A missa terminou. ESTRANHO. Imagino que ele não seja o tipo de sacerdote sem preconceitos que finge ter vícios quando não os tem.

Tradução

396

CONFESSOR. De modo algum. Mas ele viu a vida e a humanidade, e é mais humano que sacerdotal. ESTRANHO. E os padres? CONFESSOR. Homens sábios, com histórias estranhas, e nenhuma delas igual ESTRANHO. Quem pode nunca ter conhecido a vida como deve ser vivida... CONFESSOR. Todos viveram suas vidas, mais de uma vez; sofreram naufrágios, começaram outra vez, reduzidos a pedaços e se ergueram novamente. Você tem que esperar. ESTRANHO. É certeza que o Prior vai me fazer perguntas. Não creio que possa concordar com tudo. CONFESSOR. Ao contrário, você deve se mostrar como você é; e defender suas opiniões até a última peça do tabuleiro. ESTRANHO. A contradição será permitida aqui? CONFESSOR. Aqui? Você é uma criança, que viveu num mundo infantil, onde brincava com pensamentos e palavras. Cresceu na crença errônea de que a linguagem, uma coisa material, pode ser um veículo para algo tão sutil como pensamentos e sentimentos. Percebemos esse erro e, portanto, falamos o menos possível; pois estamos conscientes dos pensamentos mais interiores de nosso vizinho, e podemos adivinhá-los. Desenvolvemos tanto nossas faculdades perceptivas por meio de exercícios espirituais que estão ligados numa cadeia única; e podemos detectar um sentimento de prazer e harmonia, quando existe acordo completo. O Prior, que treinou a si mesmo com o maior rigor, pode sentir se os pensamentos de alguém trilharam caminhos errados. Em alguns aspectos, ele é como D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

– apenas como, eu digo – o galvanômetro de um engenheiro de telefone, que mostra quando e onde a corrente foi interrompida. Portanto, não podemos ter segredos um para o outro, e assim não precisamos do confessionário. Pense em tudo isso quando confrontar o olhar inquiridor do Prior! ESTRANHO. Há alguma intenção em me examinar? CONFESSOR. Oh não. Existem umas poucas questões para responder sem qualquer sentido profundo antes dos exames práticos. Quieto! Aqui estão eles. (Sai para um lado. O PRIOR entra do fundo. Está vestido completamente de branco, com capuz na cabeça. É um homem alto de longos cabelos brancos e barba branca comprida – sua cabeça se parece à de Júpiter. Sua face é pálida, mas cheia e sem rugas. Seus olhos são grandes, rodeados de sombras e sobrancelhas fortemente marcadas. Uma calma quieta, majestática reina sobre toda sua personalidade. O PRIOR é seguido por doze Padres, vestidos de preto e branco, com capuzes pretos, também levantados. Todos se inclinam diante do crucifixo e vão para seus lugares.)

ESTRANHO. (com a voz fraca) Sim. PRIOR. Você foi lesado, tratado injustamente? E essa injustiça começou tão cedo para você que você, uma criança inocente, não podia imaginar que cometeria qualquer crime que merecesse punição. Bem, certa vez foi injustamente acusado de roubar uma fruta, atormentado por tomar a culpa para si; torturado para contar mentiras sobre si mesmo e forçado a pedir perdão por uma falta que não havia cometido. Não foi assim? ESTRANHO. (com certeza) Sim. Foi. PRIOR. Foi, e você nunca conseguiu esquecer. Nunca, agora ouça, você tem uma boa memória; consegue se lembrar da Família Robinson? ESTRANHO. (encolhendo-se) A Família Robinson? PRIOR. Sim. Aqueles eventos que causaram em você aquela tortura mental aconteceram em 1857, mas no Natal de 1856, isto é, um ano antes de você ter rasgado uma cópia daquele livro e com medo de castigo o escondeu embaixo de um armário na cozinha. (O ESTRANHO tem um sobressalto.) O armário estava pintado de verde oliva, e algumas roupas estavam dependuradas na parte superior, enquanto sapatos estavam amontoados na parte inferior. Esse armário parecia enorme demais para você, pois ainda era uma

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

397

Tradução

PRIOR. (depois de olhar para o ESTRANHO por um momento) O que você procura aqui? (O ESTRANHO fica confuso e tenta encontrar uma resposta, mas não consegue. O PRIOR continua, calmamente, firmemente, mas indulgentemente.) Paz? Não é assim? (O ESTRANHO faz um sinal de assentimento com a cabeça e a boca.) Mas se o todo da vida é batalha, como pode você encontrar paz entre os vivos? (O ESTRANHO não é capaz de responder.) Você quer dar as costas para a vida porque sente que foi injuriado, ofendido?

August Strindberg

criança pequena, e não podia imaginar que ele pudesse ser movido dali; mas durante a primavera, a limpeza da Páscoa trouxe à luz o que estava escondido. O medo tomou conta de você e o levou a colocar a culpa num colega da escola. E então ele teve que sofrer castigo, porque todas as aparências apontavam contra ele, porque você era tido como absolutamente digno de confiança. A história de seus tormentos data desse acontecimento e é sua conclusão lógica. Você aceita essa lógica? ESTRANHO. Sim. Castigue-me! PRIOR. Não. Eu não puno; quando eu era criança eu fiz coisas semelhantes. Mas você promete agora esquecer essa história de seus próprios sofrimentos para todo o sempre e nunca a contar novamente? ESTRANHO. Eu prometo! Só se ele, sobre quem levei vantagem, me perdoar. PRIOR. Ele já o perdoou. Não é mesmo, Pater Isidor? ISIDOR. (que era o MÉDICO na parte I, levantando-se) De todo o meu coração! 398

ISIDOR. Sim. Eu.

Tradução

ESTRANHO. É você! PRIOR. (para o Padre ISIDOR) Pater Isidor, diga uma palavra, apenas uma. ISIDOR. Foi no ano de 1856 que eu sofri meu castigo. Mas ainda em 1854 um de meus irmãos sofreu do mesmo modo, devido a uma falsa acusação de minha parte. (Para o ESTRANHO.) Assim, somos todos culpados e nenhum de nós está isento de censura, e acredito que minha vítima ainda não tinha clara consciência. (Senta-se.) PRIOR. Se pudéssemos parar de nos acusar um ao outro e particularmente a Justiça Eterna! Mas nascemos em pecado e todos nos assemelhamos a Adão! (Para o ESTRANHO.) Havia alguma coisa que você queria saber, não havia? ESTRANHO. Eu queria saber qual o sentido mais profundo da vida. PRIOR. O sentido mais profundo! Então você quer saber o que jamais foi permitido a um homem. Pater Uriel! (PADRE URIEL, que é cego, se levanta. O PRIOR fala para o ESTRANHO.) Olhe para este padre cego! Nós o chamamos de Uriel em memória de Uriel Acosta, de quem você talvez tenha ouvido falar. (O ESTRANHO faz um sinal negativo.) Não ouviu? Todos os jovens devem ter ouvido sobre ele. Uriel Acosta foi um português de origem judia, que, entretanto, foi criado na fé cristã. Quando ainda era muito jovem para perguntar – compreende – questionar se Cristo era realmente Deus, com o resultado de ele se voltar para a fé judaica. E depois começou a pesquisar nos escritos mosaicos e sobre a imortalidade da alma, com o resultado de os rabinos o levarem para o sacerdote cristão como castigo. Longo tempo depois voltou à fé judaica. Mas sua sede pelo conhecimento não tinha limites e ele continuou suas pesquisas até descobrir que o que havia encontra-

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

ESTRANHO. Uma coisa apenas. PRIOR. Fale. ESTRANHO. Se o Padre Uriel tivesse se mantido em sua primeira fé em 1810, os homens o chamariam conservador ou antiquado; mas agora, como ele seguiu os desenvolvimentos de sua época e, portanto, descartou sua fé juvenil, os homens o chamam renegado, isto é, faça o que faça, a humanidade o vai censurar. PRIOR. Você faz caso do que os homens dizem? Padre Clemens, posso contar a ele agora que você se preocupou com o que os homens diziam? (PADRE CLEMENS se levanta e faz um gesto de assentimento.) Padre Clemens é nosso maior pintor de figuras. No mundo lá fora, é conhecido por outro nome, um nome muito famoso. Padre Clemens era um jovem em 1830. Sentiu que tinha um talento para pintura e se dedicou a isso com toda a alma. Quando tinha vinte anos exibiu obras numa exposição. O público, os críticos, seus professores e seus pais foram todos da opinião de que ele cometera um erro na escolha de

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

399

Tradução

do era nulidade absoluta; e, em desespero por não poder aprender o segredo final, tirou a própria vida com um tiro de pistola. (Pausa.) Agora olhe para nosso bom padre Uriel aqui. Ele também esteve certa vez quando jovem muito ansioso para saber; ele sempre quis estar na frente de qualquer movimento moderno, e descobriu novas filosofias. Posso acrescentar, por falar nisso, que ele é um amigo da minha infância e tão velho quanto eu. Por volta de 1820 aproximou-se da chamada filosofia racional, que já estava enterrada havia vinte anos. Com esse sistema de pensamento, que se supunha ser uma chave, todas as fechaduras tinham que ser acionadas, todas as questões respondidas e todos os oponentes refutados – com ele tudo era claro e simples. Naquela época Uriel foi um forte oponente de todas as religiões e em particular seguiu os mesmeristas, como os hipnotizadores da época eram conhecidos. Em 1830 nosso amigo encontrou um hegeliano, embora já estivesse um pouco atrasado. Então redescobriu Deus, um Deus imanente na natureza e no homem, e considerou que era um pequeno deus ele próprio. Então, com toda sua falta de sorte, viu que havia dois Hegel, assim como dois Voltaire; e o mais antigo, ou mais conservador Hegel, desenvolveu sua Omni-divindade até que tivesse um compromisso com a visão cristã. E então padre Uriel, que nunca quis ficar atrás no tempo, se tornou um cristão racionalista, que se atribuiu a tarefa ingrata de enfrentar o racionalismo e a si mesmo. (Pausa.) Vou encurtar toda essa triste história. Em 1850 ele se converteu novamente num materialista e inimigo da cristandade. Em 1870 se tornou um hipnotizador, em 1880 um teósofo e, em 1890, quis se matar! Eu o encontrei justamente nessa época. Estava sentado num banco na Unter den Linden em Berlin, e estava cego. Esse Uriel estava cego – e Uriel significa “Deus é minha luz” – aquele que por um século havia marchado com a tocha do liberalismo na cabeça de todo movimento moderno! (Para o ESTRANHO.) Você veja, ele quis conhecer, mas falhou! E agora ele acredita. Há mais alguma coisa que você gostaria de saber?

August Strindberg

sua profissão. O jovem Clemens se preocupava com o que os homens estavam dizendo, então ele abandonou o pincel e se tornou livreiro. Quando tinha cinquenta anos de idade, e uma vida atrás dele, as pinturas de seus anos jovens foram descobertas por algum estrangeiro, e foram então reconhecidas como obras-primas pelo público, pelos críticos, por seus professores e pelas pessoas de suas relações! Mas era tarde demais. E quando Padre Clemens lamentou a iniquidade do mundo, o mundo respondeu arreganhando os dentes de um modo sem coração: “Por que você se deixou possuir?” Padre Clemens ficou tão desgostoso com isso, que nos procurou. Mas ele não se aflige mais. Ou se incomoda, Padre Clemens? CLEMENS. Não! Mas esse não é o fim da história. As pinturas que fiz em 1830 foram admiradas e penduradas num museu até 1880. O gosto mudou muito rapidamente, e um dia um jornal importante anunciou que a presença delas era um ultraje. Então foram banidas para o porão. PRIOR. (para o ESTRANHO) É uma boa história!

Tradução

400

CLEMENS. Mas ela ainda não terminou. Por volta de 1890 o gosto mudou novamente, e tanto, que um professor de História da Arte escreveu que era um escândalo nacional que minhas obras fossem dependuradas num porão. Então os quadros foram trazidos para cima de novo, e, pela primeira vez, são clássicos. Mas por quanto tempo? Disso tudo você pode ver, meu jovem, em que consiste a fama mundana: Vanitas vanitatum vanitas! ESTRANHO. Então, a vida merece ser vivida? PRIOR. Pergunte ao Padre Melcher, que é experiente não só no mundo da decepção e do erro, mas também no das mentiras e contradições. Siga-o: ele vai lhe mostrar a galeria de quadros, e lhe contar histórias. ESTRANHO. Eu seguirei alegremente todo aquele que puder me ensinar alguma coisa. (PATER MELCHER pega o ESTRANHO pela mão e o leva para for a do Capítulo.) Cortina.

CENA II GALERIA DE QUADROS DO MOSTEIRO [Galeria de Quadros do Mosteiro. Há principalmente retratos de pessoas com duas cabeças.] MELCHER. Bem, primeiro temos aqui uma pequena paisagem, de um mestre desconhecido, chamada “Os dois poderes”. Talvez você tenha visto o original na Suíça se esteve lá. ESTRANHO. Sim, estive na Suíça! MELCHER. Exatamente. Então, perto da estação de Amsteg na ferrovia do monte Gotthard, você deve ter visto uma torre, chamada Zwing-Uri, cantada por Schiller no seu D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

Guilherme Tell. Foi erigida como monumento à cruel opressão que os habitantes de Uri sofreram nas mãos dos imperadores germânicos. Bom! No lado italiano do monte Gotthard fica Bellinzona, como você sabe. Há muitas torres para se ver ali, mas a mais curiosa é chamada Castel d’Uri. É o monumento que recorda a cruel opressão que os cantões italianos sofreram nas mãos daqueles habitantes de Uri! Agora você compreende? ESTRANHO. Então liberdade significa: liberdade para oprimir outros. Isso é novo para mim. MELCHER. Então vamos adiante sem mais comentários à coleção de retratos. Número um no catálogo. Boccaccio, com duas cabeças – todos os nossos retratos têm pelo menos duas cabeças. Sua história é bem conhecida. O grande homem começou sua carreira escrevendo contos dissolutos e irreligiosos, que dedicou à Rainha Joana de Nápoles, que havia seduzido o filho de Santa Brigitta. Boccaccio terminou como santo num mosteiro onde fez preleções sobre o Inferno de Dante e os demônios que, em sua juventude, ele pensava ter dominado do modo mais original. Você pode notar agora como as duas faces se encontram no olhar uma da outra! ESTRANHO. Sim. Mas todo traço de humor está ausente; e o humor deve ser esperado num homem que se conhecia tão bem como nosso amigo Boccaccio.

401

MELCHER. Número dois no catálogo. Ah, sim; é o bicéfalo Doutor Lutero. O juvenil campeão da tolerância e o defensor idoso da intolerância. Falei o suficiente?

Tradução

ESTRANHO. O bastante para entender. MELCHER. Número três no catálogo. O grande Gustavo Adolfo aceitando fundos católicos do Cardeal Richelieu a fim de lutar contra o protestantismo, enquanto permanecia neutro diante da Liga Católica. ESTRANHO. Como os protestantes explicam essa tríplice contradição? MELCHER. Apenas dizem que não é verdade. Número quatro no catálogo. Schiller, o autor de “Os bandoleiros”, que se deparou com a liberdade da cidade de Paris pelos líderes da Revolução Francesa em 1792, mas que foi feito Conselheiro Estatal em Meiningen em 1790 e Estipendário Dinamarquês régio em 1791. A cena representa o Conselheiro Estatal – e amigo de Sua Excelência Goethe – recebendo o Diploma de Honra dos líderes da Revolução Francesa em 1798. Pense nisso, o diploma do Reino do Terror no ano de 1798, quando a Revolução atingiu todo o país sob o Diretório! Eu gostaria de ter visto o Conselheiro e seu amigo, Sua Excelência! Mas isso não importa, pois dois anos depois ele devolveu sua indicação escrevendo a “Canção do Sino”, na qual expressa seus agradecimentos e pediu aos revolucionários para ficarem calados! Bem, assim é a vida. Nós somos inteligentes e amamos tanto “Os bandoleiros” quanto a “Canção do Sino”; tanto Schiller quanto Goethe!

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

August Strindberg

ESTRANHO. A obra fica, o mestre morre. MELCHER. Goethe, sim! Número cinco no catálogo. Começa com a catedral de Estrasburgo e Götz von Berlichingen, dois hurras para a arte gótica germânica contra a arte da Grécia e de Roma. Depois ele lutou contra o germanismo e a favor do classicismo. Goethe contra Goethe! Ali você vê a calma, a harmonia etc. olímpica tradicional na maior desarmonia consigo mesma. Mas a depressão se transforma em desconforto quando a jovem escola romântica surge e combate o Goethe de Iphigenia com teorias extraídas do Goetz de Goethe. O fato de o “grande pagão” terminar por converter Fausto na Segunda Parte, e lhe permitir ser salvo pela Virgem Maria e pelos anjos, frequentemente passa batido sob o silêncio de seus admiradores. Também o fato de que um homem de tão clara visão pudesse, no fim de sua vida, ter considerado tudo tão “estranho” e ‘curioso”, mesmo o mais simples fato que tivesse visto anteriormente. Seu último desejo foi por “mais luz”! Sim, mas isso não importa. Somos pessoas inteligentes e amamos nosso Goethe do mesmo modo. ESTRANHO. E corretamente.

Tradução

402

MELCHER. Número seis no catálogo. Voltaire! Ele tem mais de duas caras. O Infiel, que passou a vida defendendo Deus. O Gozador, que era motivo de pilhéria porque “acreditava em Deus feito uma criança”. O autor do cínico Candide, que escreveu: ”Na juventude, fui a fundo em prazeres / Dos sentidos, mas aprendia / Que sua doçura era ilusão / Que em amargor se convertia. / Na velhice percebi de verdade / Que a vida é nada, só vaidade.” Dr. Sabe-tudo, que pensava que podia apreender tudo que existe entre o céu e a terra por meio da razão e da ciência, diz o seguinte, quando chega ao fim da vida: “Pensei ter visto no conhecimento / Uma luz que me guiava o caminhar; / Mas ainda perambulo no escuro / Todo o conhecido logo deve desabar. / Ignorância, a ti meu cumprimento! / É só vaidade o conhecimento.” Mas não importa! Voltaire pode ser usado de vários modos. Os judeus o usam contra os cristãos, e os cristãos o usam contra os judeus, porque ele será antissemita, como Lutero. Chateaubriand o usou para defender o catolicismo, e os protestantes o usam para atacar o catolicismo. Ele foi um bom camarada! ESTRANHO. Então, essa é sua visão? MELCHER. Não temos visões aqui, temos fé; como já lhe disse. E é por isso que só temos uma cabeça – colocada exatamente sobre o coração. (Pausa.) Mas veja agora o número sete no catálogo. Ah, Napoleão! A criação da própria Revolução! O Imperador do Povo, o Nero da Liberdade, o supressor da Igualdade e o ‘grande irmão” da Fraternidade. É o mais esperto de todos esses seres bicéfalos, pois podia rir de si mesmo, erguer-se acima de suas próprias contradições, mudar sua pele e sua alma, e ainda ser perfeitamente explicável para si mesmo em toda transformação – convicto e autojustificado. Há apenas um outro homem que pode ser comparado a ele, Kierkegaard, o dinamarquês. Desde o começo esteve consciente da partenogênese de sua alma, cuja capacidade de multiplicação com a assunção de recortes era equivalente a um novo nascimento nesta vida sem concepção.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

E por essa razão, e para não ficar louco, escreveu sob vários pseudônimos, cada um dos quais constituiu uma fase de seu trem de vida. Mas você compreende isso? O Senhor da Vida, a despeito de todas as precauções, fazer de si mesmo um louco no fim das contas. Kierkegaard, que lutou toda a vida contra o sacerdócio e os pregadores profissionais da Santa Igreja, foi finalmente forçado pela necessidade a se tornar pregador profissional! Oh sim! Essas coisas acontecem. ESTRANHO. Os Poderes que traçam trapaças...

ESTRANHO. Ambas as coisas! MELCHER. Sim, as duas. Ele tinha duas metades que faziam um inteiro – um homem íntegro. Número onze. Bismarck. Um paradoxo. O diplomata honesto, que afirmava que dizer a verdade era o maior dos estratagemas. E depois foi compelido – pelos Poderes, suponho – a gastar os últimos seis anos de sua vida como mentiroso consciente. Você está cansado. Então vou parar agora. ESTRANHO. Sim, se alguém se apega às mesmas ideias durante toda a vida, e manifesta as mesmas opiniões, então fica velho de acordo com as leis da natureza, e é chamado de conservador, antiquado, fora de moda. Mas se se desenvolve, caminha a passo com sua idade, renovando-se com os eternamente jovens impulsos do pensamento contemporâneo, então é chamado de vacilante e renegado. MELCHER. Isso é tão velho como o mundo! Mas um homem inteligente se preocupa com o modo como é chamado? Cada um é aquilo em que se torna. ESTRANHO. Mas quem revisa as visões periodicamente mutáveis da opinião contemporânea? MELCHER. Você devia responder isso você mesmo, e na seguinte direção. São os próprios Poderes que promulgam a opinião contemporânea, tal como se desenvolvem em círculos aparentes. Hegel, o filósofo do presente, ele mesmo bimorfo, pois sempre se pode citar um Hegel de mão esquerda e outro de mão direita, é quem melhor explicou as contradições da

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

403

Tradução

MELCHER. Os Poderes traçam trapaças nos trapaceiros, e iludem os arrogantes, particularmente os que acreditam que só eles possuem a verdade e o conhecimento! Número oito no catálogo. Victor Hugo. Ele se quebrou em partes sem conta. Era um par de França, um Grande de Espanha, amigo de reis, e o autor socialista de Os Miseráveis. Os pares naturalmente o tacharam de renegado, e os socialistas de reformador. Número nove. Conde Friedrich Leopold von Stollberg. Escreveu um livro fanático para os protestantes e depois repentinamente se tornou católico! Inexplicável num homem de sensibilidade. Um milagre, eh? Uma pequena viagem a Damasco, talvez? Número dez. Lafayette. O heróico defensor da liberdade, o revolucionário, que foi forçado a deixar a França como um suspeito reacionário, porque quis ajudar Louis XVI; e depois foi capturado pelos austríacos e levado para Olmütz como revolucionário! O que ele era na realidade?

August Strindberg

vida, da história e do espírito com sua própria fórmula mágica. Tese: afirmação; Antítese: negação; Síntese: compreensão! Homem jovem, ou antes, relativamente jovem homem! Você começou sua vida aceitando tudo, depois continuou negando tudo por princípio. Agora termina sua vida compreendendo tudo. Ser exclusivo – nunca mais. Não diga: ou – ou não só – mas também! Numa palavra, ou antes duas: Humanidade e Resignação! Cortina.

CENA III CAPELA DO MOSTEIRO [Coro da capela do mosteiro. Um ataúde aberto com um manto de esquife e duas velas acesas. O CONFESSOR traz pela mão o ESTRANHO, que está vestido com camisa branca de noviço.] CONFESSOR. Você considerou cuidadosamente o passo que quer dar? ESTRANHO. Muito cuidadosamente.

Tradução

404

CONFESSOR. Não tem mais perguntas a fazer? ESTRANHO. Perguntas? Não. CONFESSOR. Então fique aqui, enquanto vou buscar o capítulo e os padres e os irmãos, para que o ato solene possa começar. ESTRANHO. Sim. Vou esperar. (O CONFESSOR sai. O ESTRANHO, sozinho, mergulha em pensamentos.) TENTADOR. (vindo para a frente) Está pronto? ESTRANHO. Tão pronto, que não tenho nenhuma pergunta a lhe fazer. TENTADOR. Na beira do túmulo, eu entendo! Você tem que se deitar em seu caixão e parecer que está morto; o velho Adão será coberto com três punhados de terra e um De Profundis será cantado. Depois você vai se erguer novamente dos mortos, tendo abandonado seu antigo nome, e será batizado outra vez como uma criança renascida. Como você quer ser chamado? (O ESTRANHO não responde.) Está escrito: João, irmão João, porque ele pregou no deserto e... ESTRANHO. Não me perturbe. TENTADOR. Fale comigo um pouco, antes de partir para o longo silêncio. Não lhe será permitido falar por um ano inteiro. ESTRANHO. Melhor assim. No fim das contas falar se torna um vício, como beber. E por que falamos, se as palavras não vestem pensamentos?

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Estrada para Damasco

TENTADOR. Você na beira do túmulo... A vida foi tão amarga? ESTRANHO. Sim. Minha vida foi. TENTADOR. Você nunca conheceu nenhum prazer? ESTRANHO. Sim, muitos prazeres; mas eles foram muito breves e pareciam apenas existir a fim de a dor de sua perda se tornar mais aguda. TENTADOR. Poderia dizer isso de outra maneira: a dor existe para fazer a alegria mais aguda? ESTRANHO. Pode ser dito de qualquer maneira. (Uma mulher entra com uma criança para ser batizada.) TENTADOR. Olhe! Um pequeno mortal, que está para ser consagrado ao sofrimento. ESTRANHO. Pobre criança! TENTADOR. Uma história humana, que está para começar. (Um casal de noivos atravessa o palco.) E ali – o que há de mais amável e mais amargo. Adão e Eva no Paraíso, que em uma semana vai ser o Inferno, e na noite seguinte novamente o Paraíso.

TENTADOR. De onde? ESTRANHO. Da própria luz. Não sei mais. TENTADOR. Só podia ter sido uma sombra, pois a luz é necessária para se fazer sombras, mas para a se fazer a escuridão não se precisa de luz. ESTRANHO. Pare! Ou então nunca vamos chegar ao fim. (O CONFESSOR e o CAPÍTULO surgem em procissão.) TENTADOR. (desaparecendo) Adeus! CONFESSOR. (avançando com um grande manto de esquife) Senhor! Dê a ele a paz eterna! CORO. Possa ele ser iluminado pela luz perpétua! CONFESSOR. (envolvendo o ESTRANHO com o manto) Repouse em paz! CORO. Amém! Cortina. FIM

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Tradução

ESTRANHO. O que é mais amável, mais brilhante! O primeiro, o único, o último que sempre deu sentido para a vida! Eu, também, me sentei numa varanda ao por do sol na primavera perto da primeira árvore a mostrar os novos brotos verdes e uma pequena coroa coroou uma cabeça, e um véu branco como a neblina da manhã sobre um rosto... que não era o de um ser humano. Então veio a escuridão!

405

D R A M AT U R G I A S

Tradução

Strindberg: um capítulo esclarecedor da dramaturgia moderna Iná Camargo Costa Tradução

406

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Strindberg: um capítulo esclarecedor da dramaturgia moderna Iná Camargo Costa Universidade de São Paulo [email protected]

Resumo: Quem tem interesse pela dialética das formas literárias pode ver como Strindberg lutou contra as limitações do drama em peças como Senhorita Júlia e depois encontrou uma solução para as dificuldades que enfrentava ao adotar o drama de estações e um narrador que ele mesmo não identificou como tal em peças como O sonho e Estrada para Damasco. Palavras-chave: dramaturgia; crise do drama; Strindberg

Keywords: dramaturgy; drama crisis; Strindberg Ainda não existem os estudos necessários ao conhecimento adequado do movimento naturalista nem mesmo nos principais centros onde ele se desenvolveu – Paris, Berlim, Londres, Dublin e Moscou. As razões para este desastre cultural podem ser resumidas em uma só proposição: as derrotas que os trabalhadores sofreram ao longo do século XX, começando imediatamente após a Revolução de Outubro, respondem pela progressiva incapacidade destes mesmos trabalhadores defenderem os seus interesses também no plano da cultura. O naturalismo na literatura e no teatro é um deles. É possível conceituar o naturalismo como a experiência teatral na qual pela primeira vez os trabalhadores se viram nos palcos como classe. Os tecelões é apenas uma dentre as inúmeras peças escritas e encenadas ou censuradas no período. Para dar um exemplo não muito distante, o romance Germinal de Émile Zola teve censurada uma adaptação para teatro na mesma época. Do ponto de vista da dramaturgia, o naturalismo explicitou as razões de classe das incompatibilidades entre o drama como forma e as lutas dos trabalhadores como assunto. Até os dramaturgos que não estavam minimamente envolvidos com as lutas dos trabalhadores, caso de Strindberg, tinham preocupações que, levadas ao teatro, também se mostravam incompatíveis com a forma do drama. Por isso mesmo a sua obra só encontrou o caminho do palco pelas mãos de encenadores naturalistas como Antoine ou de

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

407

Tradução

Abstract: Those who are concerned to the dialectics of literary forms can see how in plays like Miss Julie Strindberg fought the formal limitations imposed by the dramatic conventions. Later this dramatist found a solution for his difficulties in the plays The Dream and To Damascus by adopting the station drama form and a narrator that he himself has not acknowledged as such.

Iná Camargo Costa

Tradução

408

empreendimentos desde logo inspirados na luta contra teatro livre, como foi o caso do L’Oeuvre de Lugné-Poe. Senhorita Júlia (1888), encenada por Antoine, faz parte da família naturalista e ainda está muito próxima da peça-bem-feita, mas tem duas qualidades que interessam aqui. A primeira lhe é extrínseca, pois se trata do prefácio (publicado por Antoine no programa do espetáculo) no qual Strindberg mostra o grau de consciência dos artistas de então sobre a necessidade de se inventar novas formas. A segunda, paradoxalmente inspirada na paranóia misógina de Strindberg, acrescenta uma nova explicitação do caráter machista e de classe da idéia de liberdade, ou livre iniciativa, que nesta peça aparece sob a temática do assédio sexual (no bom sentido). Como não é o caso de reconstituir aqui a iluminadora análise que o dramaturgo faz de sua própria peça, nem suas críticas bem humoradas aos costumes e convenções teatrais ainda em vigor, vale a pena ao menos referir a metáfora bíblica que sintetiza o maior problema do teatro de seu tempo e que alguns anos depois ele mesmo contribuiu para solucionar: “não temos ainda novas formas para os novos conteúdos, e o novo vinho fez explodir as garrafas velhas”(STRINDBERG, s/d). Strindberg seria apenas mais um dos dramaturgos naturalistas, talvez nem tivesse entrado para a história, se não tivesse ultrapassado seus próprios feitos presentes em Senhorita Júlia. Seu lugar na história do teatro moderno se deve antes às experiências mais radicais que realizou no plano da forma na última fase de sua vida: coerente com a metáfora do vinho que explodiu a garrafa velha, no ano de 1898, após outras experiências bem e mal sucedidas, Strindberg finalmente deu com a forma que pavimentou o caminho por onde passou o teatro do século XX, em particular o expressionista e o épico. Entre as convenções do drama, uma em especial se lhe apresentava como obstáculo: a objetividade da forma, ou a impossibilidade de tratar da interioridade dos personagens, como faz o romance, na medida em que a forma do drama só reconhece como legítimo aquilo que se passa na esfera das relações inter-humanas, cujo veículo é o diálogo. Na peça A mais forte Strindberg já experimentara a forma do monólogo encenado como falso diálogo (só um personagem fala, como fará Cocteau muito mais tarde em O belo indiferente), mas não era isso o que procurava. O pai, anterior à Senhorita Júlia, foi uma tentativa inteiramente incompreendida de introduzir o foco narrativo no drama. Mas em 1898, em Estrada para Damasco, os dois problemas foram resolvidos através do resgate de uma das formas do teatro medieval, o drama de estações. Como indica o conceito, a matriz desta forma é o teatro processional ou, mais simplesmente, a procissão em que se rememora a Via Sacra, na qual cada estação reconstitui um episódio do último dia do Cristo, do palácio de Pilatos ao Calvário. Estrada para Damasco é uma trilogia cujas duas primeiras partes ficaram prontas em 1898 e a terceira em 1904. O título remete à história da conversão de Saulo de Tarso e é de conversão mesmo que a obra trata. Limitando-nos à primeira etapa deste tríptico monumental (que estreou em Estocolmo em 1900 e na França só em 1949), a primeira coisa

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Strindberg: um capítulo esclarecedor da dramaturgia moderna

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

409

Tradução

que salta aos olhos é a combinação da estrutura em estações (quadros) com a divisão em cinco atos (inteiramente desnecessária, como se pode imaginar: a peça em quadros está nos antípodas da tragédia neoclássica). Os quadros se sucedem num movimento de ida-e-volta perfeitamente simétrico. A ida começa numa esquina, passa pela casa de um médico, um quarto de hotel, praia, estrada, desfiladeiro, cozinha de uma casa na montanha, quarto nessa mesma casa e culmina num sanatório. Esta é a nona estação, a partir da qual dois (por assim dizer) personagens, Desconhecido e Mulher, retornam até chegar novamente à esquina inicial, num total de dezessete estações (três a mais que a Via Crucis original). Desconhecido e Mulher desenvolvem uma problemática relação amorosa, marcada por infidelidades, problemas econômicos, psicológicos e rejeição social (estão impedidos de legalizar a união). Ao mesmo tempo ambos são reciprocamente estímulo e obstáculo, conhecimento e ignorância, desdobramento psicológico e espelhamento, identificação e estranhamento. O clímax, se assim se puder chamar (pois do ponto de vista do assunto está mais para nadir), é um colapso nervoso do Desconhecido que recebe tratamento num sanatório. O caminho de volta é uma peripécia para os que acreditaram na alusão à conversão de São Paulo: aqui o auto-conhecimento, ou a descoberta da “verdade”, ou cura, na opinião dos médicos, não resulta em mudança de comportamento, até porque os problemas objetivos (falta de dinheiro, principalmente) continuam irresolvidos. Só na cena final do último quadro teremos uma espécie de promessa de conversão, quando a Mulher convence o Desconhecido a entrar numa igreja. O exame de todas as questões discutidas pela peça nos levaria longe demais. Mas, para que se tenha uma idéia, basta enumerar as seguintes: problemas de um escritor em crise com seus editores que se recusam a lhe fazer adiantamentos, discussão dos métodos de educação dos filhos, busca de identidade jamais encontrada, blasfêmia explícita inspirada em textos do Deuteronômio (especificamente: as maldições de Moisés), métodos convencionais e heterodoxos de tratamento psiquiátrico e assim por diante. O que realmente interessa nesta peça de Strindberg, e já foi destacado nas análises de Peter Szondi (SZONDI, 2001), é a descoberta (ou redescoberta) de uma forma teatral épica em condições de permitir a encenação daquilo que mais tarde veio a ser referido como “dramaturgia do ego”, na qual não se tem mais diálogos, pois não há mais personagens. O que se tem é o sonho (ou pesadelo) de um único personagem (neste caso, o Desconhecido) no qual todos os demais são suas próprias emanações, ou projeções. Para dizer o mesmo em outras palavras: a partir de Estrada para Damasco, tudo em Strindberg passa a ser função de um eu central, ou seja, um narrador. O texto passa a ser na verdade monólogo (com discurso indireto livre, apenas convencionalmente distribuído entre personagens que só aparentemente dialogam) no qual se assiste à encenação de episódios (quadros) da vida psíquica encoberta (ou revestida) por acontecimentos da esfera das relações inter-humanas. Este processo de revelação é ilimitado: não respeita as convenções de tempo, espaço, verossimilhança, valores consagrados, nada – exatamente como no

Iná Camargo Costa

Tradução

410

inconsciente a que se refere Freud em sua Interpretação dos sonhos, que tem praticamente a mesma idade desta peça, e não por coincidência. Como resultado desta estratégia (monólogo, estações), desapareceram as três unidades (ação, tempo e lugar) do drama tradicional e elas foram substituídas pela “unidade de personagem”, que entretanto nem ao menos tem identidade. A lei da causalidade, determinante da unidade de ação, é substituída pela sequência solta, por fragmentos cujas conexões deverão ser identificadas por meio de categorias do repertório da crítica literária como os expostos por Freud no livro citado: condensação, fusão, metáfora, metonímia e assim por diante. Sem exagero, pode-se dizer que com Strindberg está tecnicamente consumada, também na dramaturgia, a liberdade de trânsito por todos os gêneros. Em 1902 Strindberg escreveu O sonho que já explicita no título a referência ao modo como estruturou a peça. A novidade aqui, em relação ao drama de estações, é a materialização de um narrador (cuja ausência até hoje confunde intérpretes de Estrada para Damasco), que o próprio dramaturgo não reconheceu como tal, embora não lhe faltem antecedentes na figura dos compadres do teatro de revista ou dos raisonneurs do teatro realista francês. A prova técnica do não reconhecimento do narrador (responsável pela consistência do foco narrativo e da própria narrativa como um todo), por parte do dramaturgo, é a sua morte no terceiro ato, uma vez que ele apareceu sob a máscara de personagem dramática e esta morte compromete a consistência da peça como um todo. Avaliando este resultado, Peter Szondi observa que, enquanto em Ibsen a personagem dramática tinha que morrer porque faltava às peças um narrador épico, o primeiro narrador de Strindberg morreu por não ter sido reconhecido como tal. É por isso que, mesmo tendo encontrado a forma épica no drama de estações ou na estrutura do sonho para a temática épica que o século XIX já vinha apresentando havia tempo, Strindberg permanece no limiar do teatro moderno. Mas, por ter encontrado a forma épica da “dramaturgia do ego”, ele é o elo objetivo entre o naturalismo e o teatro expressionista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS STRINDBERG, August. Senhorita Júlia. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 18. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. Trad. Luiz Sérgio Repa.

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Crítica

Aspectos e funções da crítica teatral Marco Vasques e Rubens da Cunha 411

Crítica

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

ASPECTOS E FUNÇÕES DA CRÍTICA TEATRAL Marco Vasques1 e Rubens da Cunha2

Resumo: Neste artigo traçaremos um breve paralelo entre a visão da função e dos aspectos da crítica teatral a partir de três livros: Apelos, coletânea de textos do pensador, diretor e dramaturgo francês Jacques Copeau, que revelam a cobrança por um crítico que não se submeta ao jogo comercial do teatro; A função da crítica, que traz três ensaios dos críticos teatrais brasileiros Barbara Heliodora, Jefferson Del Rios e Sábato Magaldi, que discutem tanto o fazer quanto o lugar do crítico no cenário teatral; O crítico ignorante, da pesquisadora Daniele Avila Small, que propõe uma discussão da atividade crítica a partir dos estudos do filósofo francês Jacques Rancière. Palavras-chave: Crítica Teatral; A função da crítica; O crítico ignorante

Crítica

412

Abstract: In this article, we will draw a brief comparison between the function and aspects of theater critics based on three books: Apelos, which is a collection of texts written by the French thinker, director and playwright Jacques Copeau. The collection shows the search for a kind of theather critic who does not submit himself/herself for the commercial theater; Another book that we analyze is A função da Crítica, which brings three essays of the Brazilian theater critics Barbara Heliodora, Jefferson Del Rios and Sabato Magaldi. These three essays are discussions about the work and the place of theater critic; Written by Daniele Avila Small, O crítico ignorante is the last book that we present to this article and it proposes a discussion about the critical activity based on studies of the French philosopher Jacques Rancière Key Words: Theater Criticism; A função de crítica; O crítico ignorante. Num texto intitulado “Sobre a crítica no teatro”, escrito em 1911, Jacques Copeau (2013: p. 55), já na primeira frase, pontua que se trata de “um trabalho duro e ingrato”; além disso, Copeau atribui mais dois predicados ao trabalho crítico: “monótono” e “perigoso”. A crítica teatral, no decorrer de sua historiografia, causou inúmeros debates e celeumas. Talvez o mais problemático dos aspectos e o recorrente fundo de diatribes, ao menos do século XVIII a meados do século XX, tenha sido pelo fato de a crítica teatral, em sua grande maioria, ser exercida por jornalistas e escritores. Não por acaso, depois de 1 Poeta, crítico teatral e doutorando em teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro, da Universidade do Estado de Santa Catarina. É editor do Caixa de Pont[o] - jornal brasileiro de teatro. 2 Poeta, crítico teatral e doutor em literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano e editor do Caixa de Pont[o] - jornal brasileiro de teatro D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Aspectos e funções da crítica teatral

qualificar o trabalho crítico por um viés quase pessimista, Copeau (2013, p.55) ainda nos diz que “é concebível que, com o passar do tempo, um talento de escritor nele se deforme, que nele se consuma a virtude de um espírito reto”. A partir dessa constatação inicial, Copeau analisará as causas da dureza, da ingratidão, da monotonia e do perigo em ser crítico dramático. A primeira dessas causas é o fato de que os críticos, em sua maioria, têm a característica de se submeter e de se interessar constantemente pela mediocridade. Copeau defende a ideia de que os críticos se submeteriam ao medíocre, ora por cansaço, ora por pudor ou por malícia, e seriam também responsáveis pela “indigência dos criadores”. Assertivo e irônico, Copeau se pergunta: Em que círculo estamos enredados! Pois, se o nosso teatro se tornou o lugar das mais baixas cobiças, se os seus costumes degeneraram, se a cultura, a direção, a consciência e energia estão ainda menos presente neles do que o talento, não teremos necessidade, sobretudo, de um rude censor, de um homem honesto e esclarecido, que sem trégua denuncie a fraqueza e a desordem, desmascare a mentira, reúna os desgarrados em torno de ambições mais puras, menos efêmeras, propondo a eles os grandes exemplos e os modelos perfeitos? (COPEAU, 2013, p. 56)

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Crítica

É possível perceber nesse questionamento de Copeau a defesa de uma arte teatral verdadeira, superior, que deveria ser contraponto à produção vigente, bastante apegada a uma estética comercial, ligeira, que produzia conforme as demandas exigidas por um público necessitado de entretenimento e nenhuma reflexão. A impaciência de Copeau com o teatro comercial é notória e atingiu também os críticos que eram coniventes com esse tipo de teatro. Copeau (2011, p. 412) propunha um teatro livre dos aparatos, dos excessos. Ele pedia “um palco nu e verdadeiros atores”, pois essa “solução arquitectural” estaria “em função de uma forma dramática que não podemos esperar senão do criador dramático completo, quer dizer do poeta, nascido sobre a cena e para a cena, e cujo pensamento construirá para a sua expressão autêntica o instrumento de que terá necessidade”. Copeau buscou limpar o teatro e retirar de sobre o texto todo o pó das convenções e das verdades estabelecidas pela tradição. Sua teoria não preconiza que a literatura mataria o drama, mas sim o contrário: aquilo que emana da literatura dramática seria a essência do teatro, sobretudo em relação à dicção exata e o gesto expressivo. Para que isso apareça, Copeau pediu o palco nu e uma iluminação fixa, o fim do espetáculo cheio de pirotecnias e do decorativismo que marcavam a produção teatral no século XIX. A encenação, para Copeau, não seria o cenário, mas a palavra, o gesto, o movimento e o silêncio (ROUBINE, 1998, p. 53). É a busca de uma arte mais leve e sutil capaz de iluminar o texto, de desdobrar todos os recursos sensoriais, emocionais e intelectuais de um texto, e também de propor uma relação mais igualitária entre o autor e o realizador teatral. Para ele, tanto a forma do poema engendrava a forma do teatro quanto a forma do teatro poderia comandar esteticamente o poeta e sua inspiração. (COPEAU, 1974, p. 257). Tratava-se, portanto, de um

413

Marco Vasques e Rubens da Cunha

processo de renovação e não de renascimento do teatro. E qual seria o papel dos críticos nessa empreitada? O primeiro deles seria não aceitar a chantagem emocional dos autores, não incensá-los em sua mediocridade, nem deixar de se “preocupar com aquela soma anônima de beleza que toda e qualquer época está incumbida de produzir.” (COPEAU, 2013, p. 57) Categórico, Copeau (2013, p, 57) afirma: “sustento que a missão do crítico não é poupar os nervos de seus contemporâneos”. Fundamentado numa premissa de Goethe, de que não se deve estimular a produção de obras supérfluas, pois existiriam tantas necessárias que não são produzidas, Copeau, num lance ousado, destrói a hierarquia e coloca o crítico no mesmo patamar que o poeta: Quero, por fim, que ele seja sincero, grave, profundo, sabedor de que está investido, como o poeta, de uma função criadora, digno de colaborar para a mesma obra que ele e de carregar, como ele, a responsabilidade da cultura. (COPEAU, 2013, p. 57)

Crítica

414

Essa responsabilidade não poderia ser, de forma nenhuma, preterida pela sociabilidade, pela polidez, pelo elogio interesseiro. O crítico, para Copeau, não poderia sucumbir ao jogo político do sistema teatral, não poderia ceder às “contingências que o regem”. Mesmo inserido no complexo cenário da arte teatral, o crítico deveria manter sua independência, seu discernimento e sua responsabilidade de carregar a cultura. Copeau sabia da dificuldade que é estar inserido numa comunidade, fazer parte efetiva dela, e não ceder a um olhar complacente, empático com o dramaturgo ou o ator, mesmo quando esses são medíocres. Seria nesse impasse que estaria o crítico. Seria esse jogo excruciante entre pertencer à sociedade artística, estar no meio de iguais, mas ao mesmo tempo apontar-lhes as falhas, os vícios, dizer-lhes que estão sucumbindo à superficialidade, ao raso da arte. Em outro texto, desta vez escrito em 1932 e cujo título, “Conselho”, transita entre a ironia e a singeleza, Copeau inicialmente volta-se para os artistas que dizem não prestar atenção à crítica. Mantendo sua voz assertiva, ainda no primeiro parágrafo, após chamar tais artistas de covardes, ele diz: “é necessário ter medo de escrever, caso se tenha medo de ser julgado”. (COPEAU, 2013, p. 60) Porém, mesmo fazendo essa introdução focando nos criadores, em seguida Copeau volta-se para os críticos e afirma que apenas três ou quatro honravam a profissão naqueles inícios dos anos de 1930. Assim, na tentativa de melhorar a crítica, Copeau aconselha aos críticos não frequentar ensaios gerais; ir ao teatro com o público; analisar também a reação do público e não só a dele, crítico; aprender a ver realmente a peça, ou seja, entrar na peça, e, se a peça for digna, assisti-la mais vezes; e, sobretudo, dizer o que pensa. Copeau também aconselha o crítico a não se colocar num pedestal como se fosse o dono da verdade. Se, no texto citado anteriormente, ele igualava o crítico ao poeta, nesse, Copeau coloca o crítico como um trabalhador do teatro: “a sua função é nos ajudar e nos convencer, mais do que a de nos ferir ou nos prejudicar; e que, por fim, exercemos – você e nós – juntos, o mesmo ofício”. (COPEAU, 2013, p. 61) Nesse período, Copeau pedia aos críticos equilíbrio, que não se tornassem pretensio-

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Aspectos e funções da crítica teatral

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

415

Crítica

sos e nem escravos de suas verdades. Seria útil ter uma posição e mantê-la; no entanto, não se deveria abusar dela. O crítico poderia se levar pela surpresa e pelo entusiasmo, eventualmente. Copeau cobrava, por outro lado, que o crítico estudasse e conhecesse muito bem a arte teatral. Era preciso conhecer as obras-primas clássicas, para não se deixar enganar pelas paródias e pelas encenações enganosas. Com esse conselho, ele mantém sua coerência de buscar sempre um teatro anticomercial, capaz de satisfazer seus conceitos de arte verdadeira e transformadora. Tais conselhos, escritos por um Copeau maduro, mantêm-se bastante coerentes com as ideias do jovem Copeau, que, em outro texto, agora escrito 1905, atacava os lugares comuns: “à vista dos costumes atuais, as pessoas se perguntam qual pode ser a função da crítica dramática – se ela não for complacente nem venal”, pergunta-se um irritado Copeau (2013, p. 65). Aqui, a acidez copeauana se debruça sobre os meios de comunicação, especificamente os jornais, que só abriam espaço para anedotas, fofocas, superficialidades, e que criaram um termo chamado “movimento dramático”, que seria “cômodo para certos comerciantes, para elogiar a excelência de uma mercadoria”, porém seria algo que não corresponderia “a nenhuma realidade contemporânea.” (COPEAU, 2013, p. 65) Copeau traça nesse texto uma crítica pesada a todo o sistema comercial, (ou industrial) a que estava submetido o teatro naquele início de século. O que movimentava o teatro era o dinheiro, e isso causava indignação ao jovem Copeau, movido que era pelo ideal de uma arte teatral mais pura, mais transformadora, uma arte que se afastasse da cultura de massa que dava seus primeiros passos no século XX. Nesse bojo entrava também uma crítica contra a especialização do teatro, ou a adjetivação inócua. Teatro poético, realista, psicológico, de ideias, comédia de costumes, seriam “classificações inventadas segundo a indigência das escolas e dos temperamentos.” (COPEAU, 2013, p 66) A especialização seria o fracasso e não a finalidade do espírito. Reverbera nessa ideia a premissa moderna de uma arte total, capaz de suplantar o adjetivo e estabelecer-se substantiva sobre a vida. Tudo deveria ser drama, a imagem sintética da humanidade. Copeau lutava contra a fragmentação, os pedaços superficiais que a arte comercial ofertava aos consumidores ávidos de entretenimento. Desde muito jovem, ele criticou, não apenas os produtores e os consumidores desse tipo de arte, mas também os críticos que, por indulgência, covardia, interesses outros, asseveravam e ratificavam esse modelo de teatro, esse drama que não sintetizava a humanidade, que evitava que o homem moderno tivesse a sua experiência trágica. Copeau lamentava que o teatro não havia ainda captado as transformações filosóficas, estéticas, culturais pelas quais estava passando a Europa daqueles 1900: “o teatro, mesmo aquele que se intitula sério, caiu para a última fila das ocupações frívolas.” (COPEAU, 2013, p. 67). Copeau manteve-se coerente a seus princípios durante toda a sua longa vida em atividade. Assertivo, direto, exigia não apenas dos fazedores de teatro e do público, mas, sobretudo, dos críticos, uma sinceridade, uma verdade que pudesse ultrapassar as convenções, as amizades, os interesses. Uma verdade que desse espaço e totalidade à arte de

Marco Vasques e Rubens da Cunha

teatro, mesmo que isso fosse uma utopia num tempo em que o fragmento e a superfície tomaram as rédeas. O próprio Copeau, como já apontamos, embora ainda atribua uma função especial ao crítico, espelha imagem do crítico a de um trabalhador como qualquer outro da cadeia produtiva do espetáculo. Por outro lado, Barbara Heliodora, em seu ensaio no livro A função da crítica, sabedora que um dos piores destinos a uma obra de arte é o silêncio e que há, por parte do artista, a necessidade de um retorno acerca do seu trabalho, um retorno que ultrapasse ao sucesso de bilheteria, ou, mais comum em nossos tempos, avais de editais públicos, está, em certa medida, na mesma balada de Copeau, ao dizer que uma das principais razões para a existência da crítica é exatamente a necessidade que tem o artista de ter sua obra analisada e apreciada por alguém que, para merecer o título de crítico, teve de estudar e ficar informado na área de arte em que ele trabalha. (ELIODORA, 2014, p. 19).

Crítica

416

Percebe-se aqui um subtexto em que a figura do crítico ainda se mantém sob o manto de alguém que sabe mais, que pesquisa mais para ter autoridade para se expressar sobre um determinado trabalho; além disso, a noção já apresentada por Copeau, de que o crítico de teatro é mais um trabalhador do teatro, também é mantida. Heliodora defende a noção de que o crítico de teatro é um espectador e leitor mais informado; no entanto, com isso, não despreza nenhum olhar, pois “todos os espectadores, sejam eles informados ou não, passam a sua experiência do espetáculo pelo filtro de tudo aquilo que eles viram e sabem a respeito de teatro”. (2014, p. 20) Daí que, para a autora, o bom crítico, o crítico sério é aquele que procura entender o espetáculo teatral dentro de sua proposta, dentro dos ritmos e parâmetros estéticos prometidos pelo encenador e seus atores. A fuga dessa perspectiva, insiste ela, não sem ironia, pode gerar avaliações criminosas e comparações estapafúrdias. Conforme dito nas primeiras linhas, a suspeição de que a crítica esteve, por muitos anos, relacionada à atividade jornalística, a colocou, por muito tempo, mais no campo da impressão pessoal propriamente dita que numa reflexão estética estabelecida a partir tanto das propostas estéticas apresentadas nos espetáculos quanto se tendo por base a historiografia teatral propriamente dita. Nesse sentido, Barbara Heliodora é categórica: Há dois aspectos a serem a serem ressaltados aí: o primeiro é a confusão bastante feita sobre a atividade crítica com o colunismo de assuntos gerais ou de fofocas que se permite escrever estritamente na base do gosto ou não e, pior, se permite muitas vezes atacar individualmente atores, autores ou diretores, por motivos fora de suas atuações. Esses não são críticos e, se efetivamente, usarem o rótulo, o título não lhes cabe. (HELIODORA, 2014, p. 27.)

Usando praticamente as mesmas palavras de Copeau, Barbara Heliodora vai concluir sua análise sobre a função da crítica dizendo que “o trabalho do crítico não é fácil, porque

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Aspectos e funções da crítica teatral

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

417

Crítica

ele precisa observar cada detalhe e — se quiser ao menos tentar exercer corretamente a sua profissão — não perder a capacidade para se entregar ao espetáculo, com a mesma disponibilidade imaginativa que devemos exigir de todo espectador.” Aqui ressurge, mais uma vez, a importância do espectador, para quem o espetáculo é feito, e, sobretudo, está posto que qualquer crítico, antes de ser um analista, é um espectador, digamos, “apaixonado”. Na mesma esteira, segue o crítico Jefferson Del Rios (2014, p. 49), ao se manifestar sobre o que deve fundamentar a análise crítica, para ele, “o crítico não vai ditar o que o artista deve fazer, mas expor sua opinião, concordar ou discordar com as referências e invenções colocadas no palco”. Tal qual Heliodora pontuou, Del Rios pensa que o crítico não pode e não deve exigir o que não está proposto no trabalho, ou, o que é menos admissível ainda, solicitar do espetáculo uma mirada pessoalíssima, isto é, detonar numa peça teatral os elementos que o crítico imagina que deva ser o correto sem levar em consideração os ditames e o arcabouço do que está em cena pelo viés de uma estética previamente pensada por quem a produziu e que não esteja em conformidade com o gosto do analista. Ainda que Del Rios admita que há um certo grau de subjetividade ao enfrentar uma encenação, em sua perspectiva, este elemento subjetivo deve ser permeado por aquilo que Machado de Assis sugeriu como ponto principal da crítica: um balanço entre a ciência a consciência. Sábato Magaldi (2014, p. 68) segue na mesma linha de Barbara Heliodora e Jefferson Del Rios, ao dizer que “a primeira função da crítica é detectar a proposta do espetáculo, esclarecendo-a, se preciso, pelo veículo da comunicação — jornal, revista, rádio, tevê. Em seguida, cabe-lhe julgar a qualidade da oferta e de sua transmissão ao público.” Magaldi também apresenta um elemento importante, que é a questão da recepção do trabalho por parte do público, já apontada por Copeau. A maneira como o público recebe e reage diante de uma peça de teatro é, em alguma medida, também um critério de avaliação do resultado da obra. Sábato Magaldi (2014, p. 90) amplia essa mirada, ao dizer que julga “o amor pelo teatro e a boa fé as qualidades primeiras da função de um crítico”. Os quatro autores aqui abordados apresentam algumas posições assemelhadas em relação à função da crítica e qual o lugar do crítico na cadeia teatral. Todos, ainda que de modo diferente, tentam aproximar ao máximo o crítico como mais uma peça de um todo da engrenagem teatral, propondo quase que uma ausência e diferença entre o trabalho do crítico em relação ao do diretor, do ator e do autor; no entanto, é perceptível que ainda subjaz um discurso hierarquizante em que o crítico aparece mais como um farol, um norteador, um professor que detém mais conhecimento teórico e quase nenhum prático, sobre a arte teatral e, por isso, posiciona-se em um lugar de iluminação, de um educador-superior e não somente apenas mais um integrante partícipe do processo da cena. Existe uma evocação de autoridade, que nem sempre é revestida de empáfia autoritária; no entanto, sempre persiste um grau de distanciamento pelo saber mais. Aqui, há de se problematizar outro aspecto que enleia o crítico neste manto de referência privilegiada, que é o espaço ocupado pelo escriba teatral na imprensa, que sempre teve e, ainda hoje,

Marco Vasques e Rubens da Cunha

Crítica

418

tem, um lugar de poder no lugar em que fala (jornal, revista, rádio, televisão) e que lhe confere a tal aura especial. Em oposição ao crítico que ensina, que ilumina e que fala verticalmente, a pesquisadora Daniele Avila Small, acaba de publicar o livro O crítico ignorante, em que propõe uma discussão mais horizontal da atividade crítica a partir dos estudos de Jacques Rancière, sobretudo as desenvolvidas nos livros A partilha do sensível, O mestre ignorante e O espectador emancipado. E que proposição seria essa? Quais implicações ela causaria na escritura crítica? Primeiro se faz necessário elucidar que o termo “crítico ignorante” é um posicionamento conceitual e que não está conectado com a noção comum de um ser destituído de conhecimento e saber. Este conceito se fundamenta mais no que abandona, do que exatamente naquilo que poderia erigir e propor. O que Small investiga e procura é criar uma perspectiva e um ambiente em que o crítico explicador, o crítico juiz, o crítico hermeneuta ceda espaço a uma nova relação do crítico com o objeto analisado. Small está trabalhando com o conceito de igualdade de inteligência, termo que Rancière herdou das investigações pedagógicas de Joseph Jacotot. O crítico ignorante não precisa se destituir dos seus saberes; no entanto, necessita acompanhar as transformações que vigoram nas artes cênicas. A crise da crítica explicativa não se dá tão e simplesmente porque a crítica quer rever sua própria função. Talvez a crítica esteja apenas se adequando às novas práticas e aos novos conceitos das artes cênicas, tais como, novos conceitos de dramaturgia, de presença, de atuação, de performatividade, de teatralidade, e da fragmentação infinita da arte cênica e seus experimentos. Soma-se a isso, também, o advento da internet como espaço alternativo para diálogos entre atores, diretores, autores e críticos. Small não se arrisca a atribuir uma tarefa específica ao crítico ignorante, posto que se o fizesse estaria apenas trocando um crítico explicador por um novo juiz hermeneuta, com outras tintas. Ela mesma afirma de arrancada: Mas a proposta de um crítico ignorante não é um programa a ser implantado, é apenas um quadro de possibilidades, um conjunto de apontamentos para o exercício da crítica de teatro na atualidade, uma negociação teórica que quer encontrar uma via prática, mas que não se pretende uma nova norma. (SMALL, 2015, p.16)

No entanto, é preciso ressaltar que mesmo sem propor uma nova mirada crítica, porque o crítico ignorante não é mais o porta-voz que se dirige a um coletivo-aprendiz e nem mais se porta como se estivesse acima do espectador, do ator e do espetáculo, mas sim se posiciona em igualdade no tatame teatral. E quem é o crítico ignorante? Para além do exposto, ele é, segundo Small, apenas mais “uma voz individual” (2015, p. 79). No livro O crítico ignorante, o que está posto é a necessidade de se criar uma fissura, uma senda para que o crítico ignorante possa, aos poucos, repensar a função da existência da crítica, que deve, no mínimo, rivalizar com a crítica explicativa espalhada nos cadernos de cultura Brasil afora. Small não apresenta e não quer criar um método para o crítico ignorante,

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Aspectos e funções da crítica teatral

mas sugere, no final da obra, uma saída para a fuga do que nomeia de “crítico explicativo”. Essa saída, segundo a autora, é que os próprios artistas passem a escrever sobre suas experiências no teatro. E assinala: O crítico ignorante é aquele que não permite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito; ele não escreve para um determinado leitor, muito menos para um leitor médio, ele escreve para qualquer um. Também é possível encontrar entre a atividade do crítico ignorante e a forma de ensaio no que diz respeito à rejeição da pretensão científica, de alcançar o objeto de um modo que demanda uma comprovação dos argumentos, um discurso validado que verifique a correção do objeto, e explique o seu significado. O crítico ignorante não pretende explicar nem dar conta dos seus objetos de uma maneira determinada. (SMALL, 2015, p. 103)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBARA, H., DEL RIOS, J. MAGALDI, S. A função da crítica. São Paulo: Giostri, 2014 COPEAU, J. Apelos. Tradução José Ronaldo Faleiro. São Paulo: Perspectiva, 2013 COPEAU, J. Registres I Appels. Paris: Gallimard, 1974 (Pratique du théâtre). Disponível

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

419

Crítica

O crítico ignorante se posiciona na zona de fronteira, não na zona das certezas e das dissecações. Muito menos ele substitui o “crítico explicador”, que está embrutecido, para usar um termo do livro, pelas certezas e pelo papel de um orientador inconteste. Na máquina teatral, com toda a sua comercialização, com toda a importância que a imprensa ocupa na exposição da arte, o uso de uma nova perspectiva crítica e de novos espaços, afirma Small, é uma alternativa à abertura de novas sendas ao conceito e à prática da crítica teatral. Por fim, o que ecoa das cinco vozes aqui analisadas, ainda que de maneira breve, é que tanto a função da crítica quanto a figura do crítico precisam ser redimensionadas. Mesmo Barbara Heliodora, Jefferson Del Rios e Sábato Magaldi, que podem apresentar uma aparente contradição entre a noção de crítico expressa por Daniele Small, mesmo Copeau e a própria Small parecem concordar, em linha geral, que o crítico é portador de uma voz, de um olhar, de uma experiência sensível e não um porta-voz da verdade, de uma ciência dissecadora da arte teatral. Aparece, de forma igualmente diferente, uma questão não assumida, mas subjacente em todos os discursos: a possibilidade de elevar o crítico não apenas mais à condição um trabalhador do teatro, não apenas à condição de um mediador que dialoga com atores e público, mas a possibilidade de uma escritura poética na crítica. Parece existir uma força, um desejo que a crítica teatral respire o ato vital da arte teatral e abandone o teatro dócil, de entretenimento, de interesse comercial e pasteurizado. A função da crítica, nesse contexto, é a de se apropriar da poesia da cena e redimensioná-la, de forma diferentemente poética, gerando, assim, novas possibilidades para se entrar na “floresta de signos”, para lembrarmos o poeta francês Charles Baudelaire.

Marco Vasques e Rubens da Cunha

em http://jacquescopeau.com/?page_id=8 ___________, “Registros I (Textos de 1917 a 1930). in: BORIE, Monique. Et al. Estética Teatral – textos de Platão a Brecht. Tradução de Helena Barbas. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011 SMALL, D. S. O crítico ignorante. Rio de Janeiro: 7letras, 2015 ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Tradução Yan Michalski. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998

Crítica

420

D R A M AT U R G I A S

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

Normas da Revista

Apresentação A revista Dramaturgias surge, inicialmente, a partir de uma demanda pontual das atividades do Laboratório de Dramaturgia (LADI), criado na Universidade de Brasília em 1998. A partir desse laboratório foram realizadas pesquisas, processos criativos, publicações e orientações diversas, formando não apenas um acervo de materiais em contínua expansão (textos, vídeos, fotos, áudios), como estabelecendo diálogos com pesquisadores no Brasil e no exterior, em temas como Escritura Criativa, Teoria do Teatro, História do Teatro, Recepção da Cultura Clássica, Dramaturgia Musical, entre outros. Nesse ponto, toda essa trajetória do LADI é atravessada pelas modificações do conceito e experiência de ‘dramaturgia’. A pluralidade de aplicações do conceito tem produzido uma série de reflexões e debates que se espraiam entre pesquisadores e artistas dos mais diversos campos de conhecimento e expressão artística. Nesse sentido, Dramaturgias procura tanto consolidar a produção intelectual e artística do LADI como também estabelecer contatos entre aqueles que se encontram envolvidos com as mais diversas atualizações do conceito de ‘dramaturgia, independentemente de suas orientações metodológicas e ideológicas. É em torno de um pluralismo estético e filosófico que a revista Dramaturgias se efetiva, tanto em sua proposta, quanto em sua funcionalidade, ao não estar vinculada a um programa de pós-graduação específico e, com isso, submetida, às premências desses contextos e de seus protocolos. Tal opção é uma abertura e experimento para outros modos de se articular uma revista, incorporando práticas de antigos e quase extintos Suplementos de Cultura aos padrões de tratamento de informações acadêmicos.

Foco e escopo A revista Dramaturgias é uma publicação quadrimestral do Laboratório de Dramaturgia (LADI) da Universidade de Brasília, com foco na discussão e produção de eventos cenicamente orientados a partir da ampliação do conceito de dramaturgia. Nesse sentido, publicam-se artigos originais, foto-ensaios, processos criativos, entrevistas, traduções, textos dramatúrgicos, documentos de pesquisas ou de realizações do LADI e de outras instituições assemelhadas, dossiês temáticos, materiais de encontros nacionais e internacionais sobre dramaturgia, resenhas, redigidos em português, inglês, espanhol, francês, italiano e alemão.

Seções A revista se divide nas seguintes seções: A- apresentação, em que se introduz o leitor no material de cada número da revista;

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

421

Normas da Revista

B- artigos originais, que podem ser agrupados em forma de um dossiê ou simplesmente se suceder em ordem na revista; C- Work in progress, que apresenta textos e imagens a partir de um processo criativo em andamento ou já finalizado ou livros/ensaios seriados; D- Fotoensaio, em que se temos um predomínio de imagens sobre pequenos textos a partir de uma montagem ou processo criativo; E- Em sala de aula, seção que se destina a apresentar experiências didáticas de dramaturgia, como análise de textos, ou discussão de conceitos operacionais fundamentais em análise dramatúrgica; F- Face a face, na qual temos um jogo de perguntas e repostas a partir de ideias ou processos criativos de pesquisadores e artistas envolvidos com as diversas utilizações do conceito de dramaturgia; G- Textos e versões, publicação de textos originais de teatro ou de traduções de textos cênicos de outras línguas para o português; H- Documenta, disponibilização comentada de fontes textuais e materiais de montagens e processos criativos especialmente do LADI. I- Resenhas, comentários de livros relacionados ao escopo temático da revista.

Público alvo A revista se destina a artistas e pesquisadores nacionais e internacionais que trabalham não apenas nas diversas tradições de produção e recepção de eventos cênicos como teatro, cinema, música, pintura, como também nas diversas outras tradições expressivas e intelectuais em que tais eventos foram debatidos, apropriado e transformados, como na Filosofia, nos Estudos Literários, nas Ciências Sociais.

Política de avaliação pelos pares Os materiais serão recebidos na plataforma e passam por uma avaliação inicial quanto às normas de publicação da revista e ao escopo da revista por parte dos editores e membros do Conselho Editorial. Em seguida, são enviadas a dois pareceristas, que vão emitir seus julgamentos favoráveis ou não à publicação do texto. A escolha dos pareceristas ser relaciona com o campo de referências do texto submetido à avaliação. O processo é realizado na plataforma e o solicitante pode acompanhar online todo o processo.

Tipos de Trabalhos aceitos São os que se ajustam no foco da revista e em suas seções.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

422

Normas da Revista

Critérios para seleção de manuscritos. Como diretrizes para avaliação, temos: conexão do material às diversas implicações e experiência do conceito de dramaturgia e seus múltiplos usos, redefinições e discussões; ajustar-se às seções da revista; estar de acordo com as normas editoriais da revista; ser um material relevante quanto à problemática escolhida para ser desenvolvida no texto e nas imagens. A diagramação do artigo está a cargo da revista.

Diretrizes para autores O texto deve ser submetido em arquivo Word na página web da revista, com fonte Times New Roman 12. O formato do texto segue as seguintes informações: 1-Título/subtítulo na língua do autor do texto e entre as aceitas para esta publicação. 2- Título/subtítulo em inglês; 3-Nome do autor, 4-Instituição;

423

5- Email de contato; 6-Resumo e palavras-chave na língua original; 7- Abstract e Keywords. Em seguida, vem o corpo do texto, com as divisões de subseções não numeradas e em negrito e não em caixa alta. Ao fim, a Bibliografia. As notas de rodapé se resumem a complementar informações do corpo do texto e indicar referências bibliográficas. As citações de obras se fazem no corpo do texto, no sistema autor/data e entre parêntesis. Exemplo: H. G. Gadamer tem nos alertado para a abstração em arte. Segundo o autor, “a abstração da consciência estética produz algo que é, para si mesmo, positivo. Permite ver e existir por si mesmo aquilo que é a pura obra de arte. Chamo a esse seu produto de ‘distinção estética’(GADAMER 1997:30)”. Sobre os materiais citados na bibliografia temos: a- Livros GADAMER, H.G. Verdade e Método. Petrópolis: Editora Vozes, 1997. a1- Livros de editoras universitárias internacionais ou casa editorias com muitas sedes prescindem da indicação da cidade. THALMANN,W. Dramatic Art in Aeschylus’s Seven Against Thebes. Yale University Press,1978.

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Normas da Revista

a2- Traduções publicadas. GARCIA LORCA, F. Assim que passarem cinco anos. Trad. Marcus Mota. Brasíla: Editora UnB,2000. b- capítulos de livros MOTA, M. “Teatro grego: Novas perspectivas” In: Sandra Rocha (Org.). Cinco Ensaios sobre a Antiguidade. São Paulo: Annablume, 2011, pp. 45-66. c-artigos em periódicos GONSTASKY, S. “Revising Himself: Performance as Text in Samuel Beckett’s Theatre. “ In: Journal of Modern Literature 22.1(1998):131-155. Link: http://www.samuel-beckett. net/GontarskiRevising.html. d- Monografias, teses, dissertações. DUARTE, M. Quando a dança e jogo e o intérprete é jogador: Do corpo ao jogo, do jogo à cena. Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, 2009. Link: https://repositorio. ufba.br/ri/bitstream/ri/9622/1/MarciaComSeg.pdf . Informações sobre as imagens (fotos, tabelas, gráficos, etc.) seguem imediatamente após a imagem ou em nota de rodapé.

Editores Principais Marcus Mota ( Editor-in-Chief) Laboratório de Dramaturgia/Universidade de Brasília, Brasil Geraldo Martins (Assistant Editor) Laboratório de Dramaturgia, Brasil

Comissão Editorial Adriana Fernandes, Universidade Federal da Paraíba, Brasil Carlos Alberto Fonseca, Universidade de São Paulo, Brasil Fernando Matos Oliveira, Universidade de Coimbra, Lisboa Hugo Rodas, Universidade de Brasília, Brasil Luiz Fernando Ramos, Universidade de São Paulo, Brasil. Márcia Duarte, Universidade de Brasília, Brasil Márcio Meirelles, Universidade Livre, Brasil Maria João Brilhante, Universidade de Lisboa, Portugal

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

424

Normas da Revista

Paulo Berton, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Philippe Brunet, Université de Rouen, França Robson Corrêa de Camargo Universidade de Goiás, Brasil Stanley Gontarsky, Florida State University, USA

Comissão Científica A.P. David, Pesquisador Independente, USA Fernando Brandão dos Santos, Universidade Estadual Paulista, Brasil Gabriele Cornelli, Universidade de Brasília, Brasil Ricardo Dourado Freire, Universidade de Brasília, Brasil Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa. Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Email de contato da revista: [email protected] 425

Email de contato do Editor: [email protected]

Revista do Laboratório de Dramaturgia - LADI - UnB - V. 1, Ano 1

D R A M AT U R G I A S

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.