Revista IBDFAM-Família e Sucessôes. \"Incidência da teoria dos vasos comunicantes na regulaçâo dos chamados <<novos modelos de família>> no Brasil: uma perspectiva europeia\"

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INCIDÊNCIA DA TEORIA DOS VASOS COMUNICANTES NA REGULAÇÃO DOS CHAMADOS "NOVOS MODELOS DE FAMÍLIA" NO BRASIL: UMA PERSPECTIVA EUROPEIA1 INCIDENCE OF THE THEORY OF COMMUNICATING VESSELS IN THE REGULATION OF THE SO-CALLED "NEW MODELS OF FAMILY" IN BRAZIL: AN EUROPEAN PERSPECTIVE JONATÁN CRUZ ÁNGELES2

SUMÁRIO: I. Introdução; II. Evolução da doutrina europeia: orientação sexual e a família homoparental; III. América Latina: que direitos?; IV. Brasil: evolução ou revolução?; VI. Conclusões; ANEXO I. Estado da matéria no sistema europeu. ANEXO II. Dados do poder público federal “violência homofóbica no Brasil (2011/2012)”

RESUMO: O direito de família brasileiro, constantemente alterado nos últimos anos por mutações impostas pelo comportamento da sociedade, atualmente está enfrentando uma grande questão que pretendemos abordar através deste artigo: que considerações devem levar em conta, o legislador para regular a família homoparental? Para fazer isso, vamos fazer uma análise da questão na doutrina Europeia e sua influência nas principais escolas latino-americanas. PALAVRAS-CHAVE: Brasil, direitos, família, regulamento, (r)evolução

ABSTRACT: Brazilian family law has been constantly altered in recent years, by mutations imposed by the behaviour of the society and currently is facing a big question (that) we intend to adress through this article: what considerations must be taken into account by the legislator to regulate the so-called LGBT family? To do this, we will make an analysis of the issue in the European doctrine and its influence in the main Latin American schools. KEY WORDS: Brazil, rights, family, regulation, (r)evolution 1

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Escola de Doutorado da Universidade de Jaén (Espanha) 2 Advogado pelo Colégio de Advogados de Jaén (Espanha). Mestre em diplomacia e relações internacionais, com especialização em estudos ibero-americanos (Escola Diplomática do Ministério de Assuntos Estrangeiros da Espanha). Doutorando em direito internacional pela Universidade de Jaén (Espanha), em co-tutela com a Universidade de Paris X, Ouest-Nanterre (La Défense). Contato: [email protected]

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I. Introdução A sociedade internacional sofreu grandes mudanças nas últimas décadas em sua configuração. Vivemos em uma sociedade inter-relacionada, caracterizada pela superação das barreiras tradicionais de tempo e espaço3, uma sociedade cuja política renasce e sinaliza cada vez mais para a proteção daqueles que, de homossexuais “doentes” ou “pecadores”, passam a ser tratados como cidadãos. É a chamada "sociedade da informação"4, que obviamente exerceu um grande impacto na esfera do direito internacional. Desta forma, podemos entender que a doutrina já começou a tratar de questões tais como o fórum shopping5, que consiste na prática de advogados que demandam a solução de litígios internacionais dentre vários tribunais que podem ser relevantes para, nos termos da legislação aplicável, dar uma resposta jurídica mais favorável aos seus interesses. Assim, se o advogado de uma determinada nacionalidade pode apelar a uma entidade ou organização supranacional, escolherá aquela que lhe proporcione uma resposta mais favorável. O resultado deste iter será a mutação da prática nacional, a qual será claramente influenciada por essa prática progressiva. Isso cria uma certa harmonia na prática dos membros desta organização supranacional dos Estados. Para compreender tal fenômeno, aprofundemonos na hipótese da teoria do consenso e margem de apreciação dos Estados-Membros. Este fenômeno de interconexão levou ao desenvolvimento da chamada teoria dos vasos comunicantes, ou seja, um estudo que procura analisar até que ponto um sistema jurídico é influenciado ou interligado com aqueles que o rodeiam. Há um padrão mínimo de reconhecimento de direitos para o homossexual individual que deve ser coberto pelo Estado, enquanto guardião da segurança e do respeito pelos seus cidadãos? Podemos falar da criação de um Jus Commune em questões de orientação sexual? Trata-se de um processo de globalização do direito de família? Para responder a essas perguntas, entre outras, realizaremos uma análise da estratégia europeia para o reconhecimento do direito à orientação sexual e a suas influências sobre o reconhecimento das “famílias homo parentais”, bem como realizaremos uma análise paralela do fenômeno no continente americano a fim de fazer uma (des)construção 6 das diferentes estratégias realizadas em sistemas regionais de direitos humanos as quais podem nos ser extremamente úteis no momento em que o ordenamento jurídico brasileiro está imerso em um processo de reconhecimento legal de indivíduos homossexuais, casais e famílias.

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C. DEL ARENAL, “La nueva sociedad mundial y las nuevas realidades internacionales: un reto para la teoría y para la práctica”. Cursos de Derecho Internacional y Relaciones Internacionales de VitoriaGasteiz, Bilbao: Universidad del País Vasco, 2001, pp. 17-85. 4 M. CASTELLS. A sociedade em Rede. 7º ed, vol. 1, São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 71 5 RED DE JUSTICIA EUROPEA en materia civil y mercantil, “Glosario”. Disponível em: . Acesso em 25 ago. 2014. 6 C. FONSECA HERNANDEZ e M.L.QUINTERO SOTO. La teoría Queer: la de-construcción de las sexualidades periféricas. Revista Sociológica, 2004, n. 69, pp. 43-60.

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II. Evolução da doutrina europeia: orientação sexual e família homoparental O sistema de defesa regional europeu dos direitos humanos, pertencente ao Conselho da Europa, é composto por 47 Estados-Membros. Obviamente, é um sistema amplo que apresenta suas particularidades regionais em termos de reconhecimento de direitos relativos à orientação sexual. Assim, entendemos que um cidadão de um Estado-membro do Conselho da Europa não tem o mesmo reconhecimento de direitos, por exemplo, em sistemas jurídicos tão distintos sobre o assunto, como a Espanha ou a Rússia. No entanto, é caracterizada pela noção de "standard mínimo de proteção", ou seja, uma ferramenta de diagnóstico que trata de respeitar o poder discricionário do Estado soberano (ou margem de apreciação nacional) e tenta determinar esse reconhecimento mínimo intangível a que um indivíduo tem direito por ser um cidadão ou simplesmente por encontrar-se sob a jurisdição de um Estado pertencente a este sistema. Mas, como é definido o standard mínimo de proteção no campo da orientação sexual no sistema europeu? Para responder a essa pergunta, é necessário efetuar uma análise, em termos muito gerais, dentro da jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH)7 – cujo trabalho se fundamenta na interpretação da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH) –, como a mais alta autoridade judicial para a garantia dos direitos do homem e das liberdades fundamentais do sistema europeu. -

Reconhecimento do direito à orientação sexual na esfera privada e individual da pessoa

O primeiro processo judicial arquivado pelo TEDH foi apresentado por um cidadão alemão em 1954. Mesmo depois de onze tentativas, a Comissão rejeitou as demandas considerando que o direito alemão não era contrário à Convenção. Finalmente, foi o governo alemão que revogou o artigo 175 do Código Penal por sua própria vontade. Assim, há 26 anos, os juízes europeus consideraram que, por razões de moralidade pública e proteção dos menores, homossexualidade poderia constituir uma infração penal às leis democráticas do continente. Assim, será no julgamento revolucionário do caso Dudgeon contra o Reino Unido e a Irlanda do Norte8, de 22 de outubro de 1981, em que vemos como o TEDH considera as relações homossexuais sob a proteção do artigo 8º da Convenção 9 (direito 7

D.A. BORRILLO. De la penalización de la homosexualidad a la criminalización de la homofobia. Revista de Estudios Jurídicos, n. 11/2011, Segunda Época, pp. 1-19 8 STEDH, Caso Dudgeon contra o Reino Unido e a Irlanda do Norte (7525/76) de 22 de outubro de 1981 9 Artigo 8º. (Direito ao respeito pela vida privada e familiar): 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.2. Não pode haver inge-rência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.

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ao respeito pela vida privada e familiar), que representa o primeiro passo para a descriminalização das relações homossexuais e o reconhecimento do estatuto jurídico da pessoa homossexual. Neste caso, questões diversas que permanecem abertas, tais como a diferença da maioridade sexual entre relações heterossexuais e homossexuais, bem como a diferenciação para o Direito do Reino Unido entre as relações homossexuais masculinas e femininas. Vale ressaltar, durante tal reconhecimento inicial do cidadão homossexual, a exposição de motivos dos juízes em seus votos particulares, motivados pela falta de regulamento ou casos de referência; usam a religião ou filosofia para tentar justificar a sua concordância ou discordância. No caso Norris conta a Irlanda10, de 26 de outubro de 1988, é apresentada a questão da consideração do demandante como "vítima", como exigência sine qua non para a admissibilidade da denúncia ante o TEDH. Embora o ator não tenha sido objeto de qualquer ação, sanção ou outra medida pelas autoridades estatais, como resultado de atos homossexuais alegadamente cometidos, entendemos que o Tribunal considera que a mera existência do regulamento irlandês é contrária ao respeito pela vida privada e familiar do demandante. Já o caso Modinos contra o Chipre11, de 22 de abril de 1993, segue a mesma linha argumentativa, como os casos Dudgeon e Norris, que servem como precedentes para modificar a legislação cipriota. Mostra que o processo de reconhecimento do direito à orientação sexual (relações consentidas e voluntárias) já constitui uma linha jurisprudencial assentada. -

O direito da tutela do menor do pai homossexual

No caso Salgueiro da Silva Mouta contra Portugal12, de 23 de março de 2000, o requerente é um cidadão português nascido em 1961, que vive em Queluz (Portugal). Em 1983, ele se casou com C.D.S. e, em 2 de novembro de 1987, tiveram uma filha. Decidiram, no entanto, separar-se em abril de 1990. O requerente tem vivido desde então com um homem adulto, seu atual parceiro. Seu divórcio foi concedido em 30 de setembro de 1993 pela corte da família de Lisboa. Em 7 de fevereiro de 1991, a custódia foi atribuída a C.D.S., o que pressuporia que o requerente gozava do direito de visitação. No entanto, o demandante não goza do seu direito de visita uma vez que C.D.S. não cumpre o acordado. C.D.S. alega que o demandante é uma pessoa instável psicologicamente, afirma que a homossexualidade (doença) de seu ex-cônjuge é prejudicial para a criança. Nessa ocasião, por unanimidade, os membros do Tribunal de Justiça determinaram que a homossexualidade do requerente foi decisiva para a sentença ditada pelo juiz português e que a mesma violava o artigo 8º (direito ao respeito pela vida 10

STEDH, caso Norris conta a Irlanda (10581/83), de 26 de outubro de 1988 STEDH, caso Modinos contra o Chipre (15070/89), de 22 de abril de 1993 12 STEDH, caso Salgueiro da Silva Mouta contra Portugal (33290/96), de 23 de março de 2000 11

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privada e familiar) e o artigo 1413(proibição da discriminação). Dessa forma, os juízes declaram sua posição em favor da guarda compartilhada, em que um dos pais é gay, sem envolver qualquer tipo de lesão ao menor. -

O direito de filiação por adoção

No caso Fretté contra a França 14, de 26 de fevereiro de 2002, o demandante começa com o trâmite de um processo de adoção, em outubro de 1991. O Departamento dos Serviços Sociais e da Infância de Paris inicia então uma "investigação social", elaborando um dossiê sobre o caso. Em 18 de dezembro de 1991, é realizada uma entrevista inicial com um psicólogo, revelando a sua homossexualidade. Ele é então convidado a não prosseguir com o processo. Em 3 de maio de 1993, o requerente recebe a negação de seu pedido, cuja decisão baseia-se na "ausência de referência materna". A maioria da Sala do TEDH descartou que o presente caso estaria sujeito à aplicação do artigo 8º da convenção europeia (direito ao respeito pela vida privada e familiar), mas que poderia ser enquadrado dentro do artigo 14 (proibição de discriminação), embora esse não pudesse ser aplicado de forma independente. Desse modo, o caso demonstra-nos que, nesse momento, a Convenção não estaria protegendo o "desejo de formar uma família". Como consequência, o Estado foi punido dentro do artigo 6º (direito a um julgamento justo). Dessa forma, mostra-se como um procedimento de adoção por uma pessoa gay goza de uma ampla margem de discricionariedade nacional. A doutrina Fretté foi, no entanto, derrubada pela sentença E.B. contra a França15, de 22 de janeiro de 2008, na qual a recorrente, uma professora do ensino básico, declara que mantém uma relação estável com outra mulher, a psicóloga Ms. R.. Em 26 de fevereiro de 1998, a requerente foi até o Departamento de Serviços Sociais para obter uma autorização de adoção na Ásia, América do Sul e Madagascar, mencionando sua orientação sexual e seu relacionamento. Recusa-se a autorização, entre outros motivos, porque "as chances de identificação com uma figura parental não são claras. As crianças precisam de uma figura parental (...)" Finalmente, o TEDH reitera a sua doutrina na orientação sexual como discriminação proibida pelo artigo 14 da convenção, mas conclui que as decisões do Estado sobre a adoção por uma pessoa gay desfrutam de uma ampla margem de apreciação, mas que não podem constituir uma discriminação direta, isto é, o casal homossexual, se tem o direito de acesso ao casamento (como é o caso da França), deve ter o direito de acesso à adoção, nos mesmos termos de um casal heterossexual.

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Artigo 14º. (Proibição de discriminação) O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação. 14 STEDH, caso Fretté contra a França (36515/97), de 26 de fevereiro de 2002 15 STEDH, caso E.B. contra a França (43546/02), de 22 de janeiro de 2008

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O direito ao reconhecimento da filiação para técnicas de reprodução assistida (TRA)

No caso de Valérie Gas e Natalie Dubois contra a França16, de 15 de março de 2012, as requerentes declararam viver como um casal e são registradas como tal (em regime de Pacto Civil de Solidariedade)17. Uma das requerentes deu à luz uma filha, em setembro de 2000, concebida a partir de inseminação de doador anônimo. Na realização do reconhecimento da outra requerente para adoção, seu pedido foi negado pelos tribunais nacionais, sob alegação de que isso, embora fossem atendidas as condições legais de adoção, atentaria contra os interesses da menor. O TEDH determina que o caso não incorre em uma violação do artigo 8º e do artigo 14 devido ao fato de que qualquer um dos membros de um casal heterossexual, nas mesmas condições (registrado e não casado), não pode efetivar a adoção do filho biológico de seu companheiro. Sem dúvida, diante dessas circunstâncias, casais homossexuais não podiam acessar o casamento, o que, no limite, sinaliza uma discriminação indireta. No entanto, entendemos que hoje, na sequência da aprovação da lei do "mariage pour tous", nos casos de casais casados homossexuais que desejam adotar, tratar-se-ia de uma discriminação direta (punida pela doutrina do TEDH). -

O casamento homoafetivo

Em 10 de setembro de 2002, os demandantes do caso Schalk e Kopf18 dariam entrada junto ao Registro Civil (Standesamt) nos trâmites necessários para o casamento. Seu pedido, no entanto, seria rejeitado por decisão da Secretaria Municipal em 20 de dezembro, com fundamento no artigo 44 do Código Civil, que estatui que só duas pessoas de sexo oposto podem se casar. De acordo com a jurisprudência nacional, um casamento celebrado por pessoas do mesmo sexo não tem nenhum valor. O demandante apresenta, então, recurso para o governador regional de Viena, sem, no entanto, obter sucesso. Ato seguido, o requerente registra queixa no Tribunal Constitucional alegando que a incapacidade de ser legalmente capaz de se casar constitui uma violação de seu direito ao respeito pela vida privada e familiar e de seu princípio da não discriminação. Em 12 de dezembro de 2003, o Tribunal Constitucional rejeita a queixa dos demandantes.

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STEDH, caso Gas e Dubois contra a França (25951/07), de 15 de março de 2012 PACS (em francês Pacte Civil de Solidarité) é, na França, uma forma de união civil. Trata-se de um contrato previsto pelo Direito francês. A lei que instituiu o PACS foi votada em 1999 no governo de Lionel Jospin. O PACS é uma parceria contratual entre duas pessoas maiores (os parceiros), independente do sexo, tendo como objetivo organizar a vida em comum. O pacto tem de ser subscrito por ambos os interessados num tribunal local. As duas pessoas que celebram o PaCS passam a ter direitos e deveres em termos de: descontos em impostos, direitos de habitação e segurança, assim como responsabilidade mútua no tocante a dívidas e contratos. A lei do PaCS não dá direitos de adoção ou custódia. Alguns dos direitos previstos na lei são válidos apenas três anos após o registo 18 STEDH, Caso Schalk y Kopf contra a Austria (30141/04) de 24 de junho de 2010 17

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O TEDH admite, então, que houve uma violação do artigo 1219 da Convenção (direito ao casamento), devido ao fato de que o casamento homoafetivo não está coberto pela legislação nacional. Nas votações individuais, pode-se ler: (…) “a existência ou inexistência de um espaço/terreno comum nas leis dos Estados contratantes é irrelevante. Eles são apenas uma base subordinada à aplicação do conceito da margem de apreciação”.20 “(…) o simples fato de que alguns países, atualmente seis, preveem a possibilidade de que casais gays podem casar-se, não pode ser considerada uma ‘prática subsequente da implementação de um tratado’ no sentido que se propõe a concessão de demanda”21. Portanto, considera-se que aquele artigo 12 só pode ser interpretado como aplicável apenas entre pessoas de sexo diferente? Da leitura acima, extraímos que o direito ao casamento não pode ser pleiteado perante o TEDH, embora existam vários países membros do Conselho da Europa que o veem como um direito em seus ordenamentos jurídicos. Em sentença mais recente, no caso de Vallianatos e outros contra a Grécia, de 7 de novembro de 2013 22 , alega-se que as "uniões civis", introduzidas pela lei nº 3.719/2008, são concebidas unicamente para casais compostos por adultos de sexos diferentes, violando o direito ao respeito pela vida privada e familiar e implicando uma discriminação injustificada entre casais heterossexuais e homossexuais, em detrimento destes últimos. Nesse caso, trata-se de uma violação aos artigos 8º e 14 da Convenção, uma vez que na lei grega 3.719/2008 nega-se a possibilidade de reconhecimento jurídico aos casais homossexuais. Portanto, entendemos que nesse caso o juiz do TEDH tenha se influenciado pela teoria do consenso europeu. Em outras palavras, diante do fato de que em um grande número de países do Conselho da Europa tenha reconhecido o direito ao registro de casais homossexuais, tal direito forma parte do standard mínimo de direitos do cidadão homosexual.23

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Artigo 12º. (Direito ao casamento) A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de se casar e de constituir família, segundo as leis nacionais que regem o exercício deste direito. 20 Tradução nossa. No original: “given the existence of little common ground between the Contracting States, this was an area in which they still enjoyed a wide margin of appreciation (see Mata Estevez v. Spain (dec.), no. 56501/00, ECHR 2001-VI, with further references). In Karner (cited above, § 33), concerning the succession of a same-sex couple’s surviving partner to the deceased’s tenancy rights, which fell under the notion of “home”, the Court explicitly left open the question whether the case also concerned the applicant’s “private and family life” 21 Tradução nossa. No original: « The fact that a number of States, currently six, provide for the possibility for homosexual couples to marry cannot in my opinion be regarded as a “subsequent practice in the application of the treaty” within the meaning of the provision in question. Literal interpretation, which, according to the Vienna Convention, represents the “general rule of interpretation”, thus precludes Article from being construed as conferring the right to marry on persons of the same sex » 22 STEDH, caso de Vallianatos e outros contra a Grécia (29381/09, 32684/09), de 7 de novembro de 2013 23 Ver Anexo I. Estado da matéria no sistema europeu

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III. América Latina: que direitos? Na América Latina, o sistema regional de defesa dos direitos humanos é representado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), instituição pertencente à Organização dos Estados Americanos (OEA). A OEA apresenta-nos sua definição de orientação sexual, como se pode ler no estudo preparado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (ComIDH) em cumprimento da "resolução AGRES.2653 (XLI-O11) 24 : direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero", na qual orientação sexual é definida como: “(…) a capacidade de cada pessoa de sentir uma profunda atração emocional, afetiva e sexual por pessoas de gêneros diferentes ao seu, ou de seu mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como a capacidade de manter relações íntimas e sexuais com essas pessoas." No direito comparado, compreende-se que a orientação sexual é uma categoria suspeita de discriminação, para a qual se utilizam distintos critérios, que incluem a imutabilidade desta 'entendendo por imutabilidade uma característica difícil de controlar da qual uma pessoa pode separar-se sob o risco de sacrificar sua identidade'”.25 Assim, a definição latino-americana não estabelece a orientação sexual como um conceito estático (como é o caso da orientação sexual do mundo anglo-saxão, na qual podemos equiparar sexo a raça), ou como resultado de uma liberdade de escolha essencial (conceito europeu), mas como uma capacidade do indivíduo. Nesse sistema, o juiz americano não teme o não cumprimento de suas sentenças, motivo pelo qual não encontramos um desenvolvimento doutrinal do conceito da teoria do consenso e a margem de apreciação dos Estados-Membros em matéria de orientação sexual. Por esse motivo, temos uma demonstração da síntese da doutrina europeia expressa em seu maior expoente por meio do caso de Karen Atala Riffo26 e meninas contra o Chile, de 23 de julho de 2008. Nesse caso, derivado de um processo de divórcio entre a Sra. Karen Atala e seu ex-marido, o Tribunal de Menores de Villarrica adotou duas decisões: a primeira concentrou-se em decidir sobre a guarda provisória solicitada pelo pai. Em 2 de maio de 2003, o tribunal chileno concedeu ao pai a custódia provisória, embora tenha reconhecido que não existiam elementos para desabilitar legalmente a mãe. Em 29 de outubro de 2003, o Tribunal de Menores de Villarrica proferiu uma segunda decisão na qual rejeitou a demanda de guarda considerando que, 24

Fonte dos dados: Acesso em: 25 ago. 2014. 25 Tradução nossa. No original: “(…) la capacidad de cada persona de sentir una profunda atracción emocional, afectiva y sexual por personas de género diferente al suyo, o de su mismo género, o de más de un género, así como a la capacidad de mantener relaciones íntimas y sexuales con estas personas.” En el derecho comparado se ha entendido que la orientación sexual es una categoría sospechosa de discriminación, para lo cual se han utilizado distintos criterios, que incluyen la inmutabilidad de ésta “entendiendo por inmutabilidad una característica difícil de controlar de la cual una persona puede separarse a riesgo de sacrificar su identidad”. 26 SCIDH, caso de Karen Atala Riffo e meninas contra o Chile, de 23 de julho de 2008

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com base nas provas existentes, havia ficado estabelecido que a orientação sexual da demandada não representava um impedimento para desenvolver uma maternidade responsável, que não apresentava nenhuma patologia psiquiátrica que a impedia de exercer o "papel de mãe" e que não havia indicadores que permitiam presumir a existência de causas de incapacidade materna para assumir o cuidado pessoal das menores de idade. Tal decisão foi recorrida. Em 30 de março de 2004, a corte de Apelações de Temuco confirmou a sentença, embora posteriormente o pai das meninas tenha apresentado um recurso contra a Corte de Apelações de Temuco. Em 31 de maio de 2004, a 4ª Turma da Corte Suprema de Justiça do Chile pronunciou-se concedendo a guarda definitiva ao pai. Ao final, o Estado do Chile é condenado, dentro da Convenção Americana, por violação dos artigos 8º (garantias judiciais), 1127 (proteção da honra e da dignidade), 1728 (proteção para a família), 19 (direitos da criança), 24 (igualdade perante a lei) e 25 (proteção judicial).

IV. Brasil, evolução ou revolução? Nos últimos anos, temos visto o processo de abertura da OEA em direção ao reconhecimento dos direitos das pessoas LGBT, bem como o reconhecimento legislativo expresso de casamento igualitário nos países vizinhos Argentina e Uruguai. Porém, qual a repercussão desse fenômeno no Brasil? Hoje, com um número de 3084 ataques denunciados de "violência homoafetiva" no ano 201229, o Brasil ainda não para as representa um país seguro para pessoas LGBT. Seu sistema jurídico é caracterizado por uma paralisia no Parlamento em termos de reconhecimento de direitos por razão de orientação sexual, atribuída à falta de educação sexual, à influência excessiva da religião e a uma sociedade tradicional e conservadora.

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Artigo 11 – (Proteção da honra e da dignidade) 1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas. 28 Artigo 17 – (Proteção da família) 1. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado. 2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de constituírem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exigidas pelas leis internas, na medida em que não afetem estas o princípio da não-discriminação estabelecido nesta Convenção. 3. O casamento não pode ser celebrado sem o consentimento livre e pleno dos contraentes. 4. Os Estados-partes devem adotar as medidas apropriadas para assegurar a igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante o mesmo e por oca sião de sua dissolução. Em caso de dissolução, serão adotadas as disposições que assegurem a proteção necessária aos filhos, com base unicamente no interesse e conveniência dos mesmos. 5. A lei deve reco-nhecer iguais direitos tanto aos filhos nascidos fora do casamento, como aos nascidos dentro do casamen-to. 29 Ver Anexo II. Dados do poder público federal “violência homofónica no Brasil (2011/2012)”

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Perante este panorama, a sociedade brasileira teve que empreender outros procedimentos alternativos ao reconhecimento legislativo para fazer valer os direitos das famílias homoafetivas. Depois da recusa do Legislativo de aprovar uma lei que dote de direitos os casais homoafetivos, a situação teve de ser resolvida por meio da intervenção do Poder Judiciário, com base no princípio da "ausência de lei não significa a ausência de direitos", pois qualquer violação dos direitos merece ser levada a juízo. E quando a jurisprudência se consolida, o legislador é forçado a transformá-la em uma norma legal, sob a pena de perder poder. Assim, o Judiciário dá um passo à frente, cobrindo essa série de vazios legais e configurando o chamado "direito brasileiro homoafetivo", que é configurado da seguinte forma30: i. Tradicionalmente no país não encontramos um regulamento sobre a convivência do casal além do casamento. As relações homoafetivas estavam limitadas pela esfera (patrimonial) do direito das obrigações. Até o reconhecimento do casamento homoafetivo, aprovado por via judicial, mediante a resolução 175/2013, do Conselho Nacional de Justiça, de 14 de maio de 2013. ii. É reconhecida a adoção homoparental conjunta, com a decisão pioneira do estado do Rio Grande do Sul. Por deliberação conjunta de um casal de lésbicas, uma delas adotou dois filhos, pleiteando a outra mais tarde pela adoção de ambos. iii. É regulada a filiação resultante de técnicas de reprodução assistida pela primeira vez em 2008, autorizada em Porto Alegre (RS), aprovando a alteração do registo do nascimento de dois filhos, concebidos por reprodução assistida, para a inclusão dos nomes das duas mães: a biológica e a afetiva. iv. Assim como o caso de gravidez por substituição, em fevereiro de 2012, em Pernambuco, quando é reconhecido o direito ao registro em nome de dois pais de um filho concebido por inseminação artificial e gerado no útero de substituição, com o uso de material genético de um deles. Como resultado desse processo, temos atualmente inúmeras decisões dispersas no cenário nacional31, o que nos leva à seguinte pergunta: quando o legislador brasileiro terá de enfrentar esta “nova realidade”?

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M. BERENICE DIAS. Homoafetividade e os direitos LGBTI. São Paulo: Revista dos tribunais, 2014, pp. 185-226 31 O site www.direitohomoafetivo.com.br traz exaustivo levantamento da jurisprudência nacional

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V. Conclusões No continente europeu, há um standard mínimo de direitos, configurado da seguinte forma: I. Diante das acusações, por alguns setores da doutrina, da existência de uma "indeterminação" do conceito genérico de família, uma vez realizado nosso trabalho de pesquisa, definimos tal conceito aberto como "vida familiar". O mesmo pode ser concebido como resultado da união de uma relação interpessoal e a aparência de família, ou, se não, como resultado de parentesco e a vontade de estabelecer uma relação. Na verdade, não adotamos uma postura “originalista”, mas "ativista" no sentido da proteção da vida familiar. II. O interesse do menor representa o elemento mais importante e busca a integração do mesmo em sua família, desde o momento do nascimento. Tal conceito é bastante polêmico uma vez que tem sido usado no passado na jurisprudência do TEDH como uma ferramenta para impedir o avanço dos direitos das pessoas LGBT e atualmente tem sua utilidade questionada por vários especialistas.32 III. Dependerá da legislação interna que o casamento de uniões do mesmo sexo seja ou não reconhecido. Sem dúvida, o Estado é obrigado a estabelecer um procedimento de registro do casal homoafetivo não casado (contanto que o sistema jurídico preveja essa opção para casais heterossexuais). IV. Para um pai e um filho passarem tempo juntos representa um elemento fundamental da vida familiar. Por essa razão, além da orientação sexual dos pais, ambos têm direito à visitação após o divórcio. V. O sistema europeu atualmente não garante a adoção ou filiação por técnicas de reprodução assistida, exceto nos casos que representam uma discriminação direta, ou seja, quando um casal heteroafetivo nas mesmas circunstâncias pode acessar a adoção e um casal homoafetivo não conta com o mesmo direito. O TEDH tem restringido seu poder de decisão por uma margem de apreciação (poder soberano) dos Estados-Membros. Sem dúvida, com o avanço do reconhecimento dos direitos das pessoas LGBT, discute-se o seu iter jurisprudencial e, dessa forma, evolui-se progressivamente. Quanto maior é o número de Estados que reconhecem o direito específico, maior será o avanço da doutrina do TEDH. Nesse sentido, o TEDH deve ser cauteloso e buscar o consenso em suas sentenças para assegurar que os Estados respeitem suas decisões, evitando o desacato por parte desses. 32

D. BORRILLO. Sexual Orientation and Human Rights in Europe, Peace, Justice and Freedom. Human Rights Callenges for the New Millenium, CanadáThe University of Alberta Press, 2000, pp. 303-311

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Esta doutrina é citada e usada atualmente na OEA, que não procura um consenso entre seus membros, mas simplesmente serve-se dos progressos do TEDH e o cita, usando seu trabalho, no momento de proferir a sentença (teoria dos vasos comunicantes), o que tem impulsionado que suas últimas decisões tenham sido realmente revolucionárias em termos de reconhecimento dos direitos das pessoas LGBT. Essa comunicação entre os sistemas regionais configura o quadro de um Jus Commune em termos de orientação sexual, o que resultou em um progresso dos países da América Latina, incluindo Argentina e Uruguai, com a aprovação das leis do casamento homoafetivo nos últimos anos. No caso do Brasil, apesar da falta de vontade do Legislativo de aprovar uma lei que reconheça os direitos das pessoas LGBT, pensamos que essa revolução, que está sendo realizada pelo Poder Judiciário, configura a criação dispersa de um estatuto jurídico da pessoa homossexual, que geralmente segue um padrão muito semelhante ao europeu.

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ANEXO I. ESTADO DA MATÉRIA NO SISTEMA EUROPEU33 European Union (first 15 member states) plus Norway, Iceland, Russia (year law

equal age of legisconsent to lation sexual against activity (no discrimexceptions) ination: employ-

passed)

same-sex couples:

same-sex couples:

same-sex couples:

register + some

register + equal

adoption (child of partner)

ment34 or services

rights

rights35

same-sex couples:

same-sex couples: register joint adoption + (child not equal rights Related to + either partner)

same name (marriage)

Netherlands

1971

1991

1997

1997

2000

2000 (2008)36

2000

Belgium

1985

2003

1998

2003

2006

2006

2003

Spain

1988

1995

1998-0337

2005

2005

2005

2005

Norway

1972

1981

1993

1993

2001

2008

2008

Sweden

1978

1987

1994

1994

2002

2002

2009

Iceland

1992

1996

1996

1996

2000

2006

2010

Denmark

1976

1987

1989

1989

1999

2010

2012

UK

2000

2003

2004

2004

2002

2002

2013(E&W)

France

1982

1985

1999

2013

201338

2013

2013

Portugal

2006

2003

2010

2010

-----

-----

2010

Finland

1998

1995

2001

2001

2009

Proposed

proposed

Germany

1994

2003

2001

2004(?)

2004

Proposed

-----

Austria

2002

2003

2009

2009

2013

-----

-----

Ireland

?

1993

2010

2010

-----

-----

-----

Luxembourg

1992

1997

2004

Proposed

Proposed

Proposed

proposed

Greece

?

2003

-----39

-----

-----

-----

-----

Italy

1889

2003

-----

-----

-----

-----

-----

Russia

1997

-----

-----

-----

-----

-----

-----

33

Realised by: Professor Robert Wintemute, King´s College London. National legislation or, for the public sector, Directive 2000/78/EC (in force 2 Dec. 2003). 35 Perhaps excluding certain parental rights (adoption, medically assisted procreation). 36 International joint adoption. 37 Laws in the comunidades autónomas (regions). 38 No access to donor insemination for lesbian couples, unlike unmarried or married different-sex couples. 39 See Law No. 3719/2008 ("common life pact") for unmarried different-sex couples; challenged in Vallianatos & Others v. Greece (Grand Chamber judgment on 7 Nov. 2013). 34

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ANEXO II. DADOS DO PODER PÚBLICO FEDERAL “VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA NO BRASIL (2011/2012)”40 Comparativo 2011/2012, aumento do nº denuncias por estado UF AC AL AM AP BA CE DF ES GO MA MG MS MT PA PB PE PI PR RJ RN RO RR RS SC SE SP TO TOTAL

40

2011 2 17 13 0 94 63 45 24 26 67 98 13 7 36 28 52 107 68 81 22 2 0 58 25 7 197 7 1159

2012 11 65 57 6 201 143 239 74 111 105 255 46 123 101 94 115 68 182 271 73 13 7 202 58 31 409 17 3084

% de aumento 450.00% 202.35% 338.46% NA 113.83% 126.98% 431.11% 208.33% 326.92% 56.72% 160.20% 253.85% 1657.14% 180.56% 235.71% 121.15% -36.45% 167.65% 234.57% 231.82% 550.00% NA 248.28% 132.00% 342.86% 107.61% 142.86% 166.09%

SEDH. Introdução in SEDH. Relatório sobre violência homofóbica no Brasil, Brasília, 2012, pp.9-12

14

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