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June 19, 2017 | Autor: S. Bellini-Leite | Categoria: Cognitive Science, Philosophy of Mind, Filosofia da Mente, Consciência, Mente, Ciencias Cognitivas
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SUMÁRIO Editorial Artigo Alvo: O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto – Alfredo Pereira Júnior (UNESP/Botucatu) …....................................................................................................................... 01 Comentários: 1. Quão ontológico é o Monismo de Triplo Aspecto? – Vinicius Romanini (USP) …................... 25 2. Reflexões sobre o Monismo de Triplo Aspecto – Sérgio Roclaw Basbaum (PUCSP) .............. 31 3. O sentimento no Monismo de Triplo Aspecto: problemas e incertezas – Saulo de Freitas Araujo (UFJF) ........................................................................................................................................ 38 4. Comentário sobre “O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto” de Alfredo Pereira Jr. – Cláudia Passos-Ferreira (UFRJ) ............................................................................. 44 5. Provocações ao artigo “O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto” – João de Fernandes Teixeira (UFSCar) …................................................................................................. 50 6. Explicação metafísica, causação e interações neuro-astrocitárias: uma réplica a “O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto” – Samuel de Castro Bellini-Leite (UFMG) ......... 52 7. Notas sobre o Monismo De Triplo Aspecto – Vinicius Jonas de Aguiar (UNESP/Marília) ...... 62 8. Alfredo Pereira Jr. entre Damásio e Prinz: revisitando o Monismo de Triplo Aspecto – Nythamar de Oliveira (PUCRS) .................................................................................................................. 68 9. Uma visão alternativa ao Monismo de Triplo Aspecto para os conceitos de sentimento e consciência – Ricardo Ribeiro Gudwin (UNICAMP) …........................................................... 81 10. Consciência como atributo cerebral: uma réplica a “O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto” – Armando Freitas da Rocha (USP) …............................................................. 88 Réplica: Réplica aos comentários – Alfredo Pereira Júnior (UNESP/Botucatu) …........................................ 95

EDITORIAL

É com satisfação que apresentamos mais uma Edição da Kínesis - Revista de Estudos dos Pós-Graduandos em Filosofia. A presente Edição, que constitui o v. 7(14), inaugura um novo modelo de publicações da Kínesis, denominado Edição Especial Debate. A presente Edição Especial - Debate foi planejada para contribuir com o desenvolvimento do diálogo filosófico-interdisciplinar. Por vezes, somos apresentados com ideias interessantes de professores, às vezes inovadoras, que acabam por não encontrar espaço para debate especializado (e.g.: os eventos acadêmicos, normalmente, possuem um tempo muito limitado para o debate, dada a quantidade de profissionais que desejam apresentar suas ideias). No que diz respeito à produção de conhecimento escrito não é diferente; encontramos artigos que dialogam com outros trabalhos, mas o fazem de forma indireta, não constituindo um debate minucioso sobre um tema específico. Com o objetivo de contribuir para a constituição de tal espaço de debate a Kínesis apresenta a atual Edição Especial, promovendo o debate em torno do Artigo Alvo “O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto”, escrito pelo Prof. Dr. Alfredo Pereira Jr.. A partir desse artigo, diversos pesquisadores especializados no tema foram convidados para elaborar comentários críticos acerca da proposta do professor Pereira Jr.. Em tais comentários os pesquisadores buscaram identificar dificuldades, elaborar sugestões e/ou fazer relações com outras áreas de conhecimento. A partir dos comentários, o Prof. Pereira Jr. elaborou uma Réplica a cada um dos pontos levantados pelos pesquisadores. Esse modelo de debate é conhecido como “comentário aberto” (open peer commentary) e é utilizado por revistas internacionais que visam mostrar como diversos profissionais pensam em detalhe sobre um tópico particular. Apesar de recebermos propostas em inglês, optamos por apresentar todos os comentários em língua portuguesa. Isso, principalmente, no intuito de contribuir com estudantes de Graduação e Pós-graduação que desejam se aprofundar em um debate minucioso e não possuem o domínio de língua estrangeira, bem como de fomentar a discussão em âmbito nacional colaborando para que o Brasil se insira no debate. Neste caso, se estabeleceu um debate de alto nível sobre Filosofia da Mente e Ciência Cognitiva. Um tópico que se destaca nessas áreas de investigação é o problema da consciência (i.e., de se explicar qual é a natureza da consciência e dos processos

subjacentes a ela), o qual apresenta caráter multifacetado, exigindo um debate intenso e de cunho interdisciplinar. Diante da complexidade do estudo do problema da consciência, a atual Edição apresenta uma das propostas para se lidar com tal problema: o Monismo de TriploAspecto. Esta proposta foi elaborada pelo filósofo brasileiro Alfredo Pereira Jr., atualmente Professor Adjunto do Departamento de Educação do IBB/UNESP/Botucatu e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da FFC/UNESP/Marília. Tal proposta foi desenvolvida em etapas, por meio da publicação em diversos periódicos importantes como o Journal of Integrative Neuroscience, Progress in Neurobiology, Nature Precedings, e em livros como Consciousness: States, Mechanisms and Disorders (1ed., New York: Nova Science Publishers) e The Unity of Mind, Brain and World: Current Perspectives on a Science of Consciousness (1. ed., Cambridge - UK: Cambridge University Press). Como apresentado no Artigo Alvo e revisitado nos Comentários, o Monismo de Triplo Aspecto propõe que a consciência possui três aspectos fundamentais que se relacionam entre si formando um todo. Esses aspectos são o físico-biológico, o informacional e o experiencial. Com essa proposta, Pereira Jr. pretende explicar como nossos pensamentos, sentimentos, emoções e toda nossa vida mental emerge a partir da nossa estrutura corporal e cerebral. No Artigo Alvo, Pereira Jr. pretende esclarecer um ponto que não havia sido desenvolvido em detalhe em seus trabalhos anteriores: o papel do sentimento na formação de episódios conscientes. Logo, com a atual Edição buscamos apresentar não apenas uma revisão do Monismo de Triplo Aspecto, mas um trabalho original do desenvolvimento dessa Teoria, de modo a propiciar um debate com potencial para moldá-lo e aprimorá-lo. Em seu processo de elaboração a Edição Especial - Debate teve como Responsável Samuel de Castro Bellini-Leite, e atuaram como Revisores dos Comentários os pesquisadores Leonardo Ferreira Almada, João Antonio de Moraes e Jonas Gonçalves Coelho.

Desejamos boa leitura a todos! Comissão Editorial

O CONCEITO DE SENTIMENTO NO MONISMO DE TRIPLO ASPECTO THE CONCEPT OF FEELING IN TRIPLE-ASPECT MONISM

Alfredo Pereira Júnior1 Resumo: Enquanto a tradição filosófica ocidental concebeu a consciência como processo de pensamento, no qual se configura um sujeito cognitivo, pesquisas nas neurociências possibilitam novas elaborações filosóficas sobre os conceitos de consciência e sujeito consciente, apontando no sentido de uma revalorização do componente afetivo. A partir da interpretação que faço de resultados de pesquisas empíricas, proponho que a marca da consciência seja o sentir. Somos conscientes quando sentimos o significado da informação que nos atinge e circula em nosso cérebro (e eventualmente em outros subsistemas do corpo). Seria o sentimento um fenômeno puramente subjetivo, inacessível ao método científico ocidental moderno, ou um aspecto fundamental da realidade, já presente em estado potencial no mundo físico? Para o Monismo de Triplo Aspecto, posição filosófica em que se procura construir um cenário ontológico compatível com uma abordagem científica interdisciplinar, a Natureza (ou totalidade do real) se constitui de três aspectos potenciais: a matéria/energia, a forma/informação e o sentimento/consciência. Estes três aspectos se atualizam progressivamente: inicialmente, em elementos de matéria/energia no espaço-tempo, formando sistemas progressivamente mais complexos; quando há transmissão de formas entre sistemas, emerge a informação, e quando a informação afeta a estrutura material de um sistema, emerge o sentimento. Com base neste arcabouço teórico, procuro neste ensaio conceituar e discutir o sentimento como um fenômeno natural que se atualiza em sistemas que dispõem de condições apropriadas, e sugerir quais seriam estas condições, no contexto da neurociência contemporânea. Palavras-chave: Sentimento. Consciência. Monismo. Cognição. Informação. Abstract: While the Western philosophical tradition conceived consciousness as a thought process executed by a cognitive subject, research in neuroscience allows new philosophical elaborations on the concepts of consciousness and conscious subject, pointing towards a revaluation of the affective component. From an interpretation of empirical research findings, I propose that the mark of consciousness is the feeling. We are conscious when we feel the significance of the information that reaches us and circulates in our brains (and possibly other body subsystems). Is feeling a purely subjective phenomenon, inaccessible to the Modern scientific method, or a fundamental aspect of reality, already present in potential states in the physical world? For Triple Aspect Monism, a philosophical position that seeks to build an ontological scenario consistent with an interdisciplinary scientific approach, Nature (or totality of reality) is composed of three potential aspects: matter/energy, form/information and feeling/ consciousness. These three aspects are progressively updated: initially, on elements of matter/energy in space-time, progressively generating more and more complex systems; when there is systematic transmission of form between systems, information emerges; and when information affects the material structure of systems, feeling emerges. Based on this theoretical framework, I attempt to conceptualize and discuss feeling as a natural phenomenon actualized by systems that satisfy appropriate conditions, and suggest what would be these conditions in the context of contemporary neuroscience. Keywords: Feeling. Consciousness. Monism. Cognition. Information. 1

Professor Adjunto do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Botucatu, e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília. E-mail: [email protected]

O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto

1. Introdução

O estudo dos sistemas vivos, em particular do ser humano, em sua integralidade, requer uma abordagem biopsicossocial, como defendido, por exemplo, por Engel (1977). O componente psicológico do triângulo biopsicossocial, por sua vez, se desdobra no triângulo agir-conhecer-sentir, em referência a três tipos de análise por meio das quais se pode abordar os fenômenos mentais: a análise do comportamento, dos processos cognitivos e dos processos afetivos. Após o período de predomínio do behaviorismo, muitos cientistas e filósofos reconheceram a realidade dos processos cognitivos, mas poucos reconheceram os processos afetivos enquanto afetivos (ou seja, sem os reduzir aos cognitivos ou aos comportamentais;

vide

discussão

em

Harnad,

2011

e

vídeo:

http://www.youtube.com/watch?v=_jK_-vrwt7Y). Tal preferência dos cientistas e filósofos pelas atividades comportamentais e cognitivas, em detrimento das afetivas, deixa de lado aquela que talvez seja a experiência mais importante para a maioria das pessoas: o sentir. Os sentimentos são, por outro lado, bastante enfatizados e valorizados em outras práticas sociais, como as relações pessoais (presenciais ou virtuais), a arte, a religião e o esporte. Como a filosofia é uma prática linguística de análise de conceitos, e como os sentimentos são experiências vividas de primeira pessoa para as quais muitas vezes não há uma linguagem que possibilite falar a seu respeito, pode-se facilmente compreender a dificuldade dos filósofos e psicólogos frente a este tema. Harnad (2011) chega a conjecturar sobre a impossibilidade de uma ciência dos sentimentos, o que constituiria, em sua análise, o cerne do “Problema Difícil” formulado por Chalmers (1995). Faço aqui uma discussão com o intuito de mostrar que pesquisas na área de Neurociência Afetiva (ALMADA et al., 2013), juntamente com descobertas relevantes para a Psiquiatria, particularmente a descoberta da participação de células gliais em funções mentais (levando à formulação de novos modelos da atividade cerebral), possibilitam novas elaborações filosóficas sobre o conceito de consciência. Enquanto a tradição filosófica ocidental concebeu a consciência como processo de pensamento (concepção que tem sua expressão máxima na substância pensante de Descartes), no qual se configura um Eu cognitivo (como, tipicamente, o Eu transcendental de Kant), abordagens biológicas e médicas apontam no sentido da

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primazia do sentir, caracterizando um Eu sentiente. Por exemplo, na área de anestesiologia, um critério central utilizado para se aferir a abolição temporária da consciência é não se sentir dor. Contudo, a tese da construção da identidade do Eu por sua história sentimental (PEREIRA JR., 2013) não exclui a relevância dos processos cognitivos na vida mental de um sistema consciente. Para o Monismo de Triplo Aspecto (MTA), posição filosófica aqui defendida, há uma ordem de atualização de potencialidades da Natureza (entendida como totalidade de possibilidades do real), que se inicia no domínio físicoquímico-biológico, com os processos de matéria/energia no espaço-tempo, e prossegue no plano formal-informacional, no qual são caracterizados os processos cognitivos, ou seja, aqueles em que os objetos e processos são mapeados ou representados por meio de signos. Estes processos, incluindo suas dimensões sintática e semântica formal, podem ocorrer de modo inteiramente inconsciente, como na operação de um computador digital. Os sentimentos emergem a partir de processos cognitivos, quando os conteúdos da informação são sentidos, e se tornam conscientes. Há uma continuidade entre a recepção da informação pelos sistemas cognitivos, a atribuição de significados experienciais e a instanciação de sentimentos, os quais, segundo o MTA, corresponderiam a um “feedback” da informação (considerada em suas dimensões sintática e semântica) sobre a estrutura material do sistema. Neste sentido, haveria uma identificação dos sentimentos com processos afetivos, no sentido literal da expressão. Máquinas incapazes de serem afetadas em suas operações materiais/energéticas pela informação que processam não poderiam ser consideradas como sendo conscientes (PEREIRA JR., 2013).

2. Sentimentos e Filosofia

Apesar da dificuldade de conceituação dos sentimentos, não se pode dizer que o tema esteja ausente da história da filosofia ocidental. Já na clássica definição de “conhecimento” por Platão, um dos três pilares seria a “crença”, a qual pode ser entendida como um sentimento mental (isto é, não como uma sensação corporal) a respeito de uma ideia ou grupo de ideias. Aqui já se manifesta o reconhecimento de uma subjetividade, desde que amparada pela razão – o que fica evidente nos dois outros pilares do conhecimento, a verdade (entendida como referência às ideias em si mesmas, 3

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e não a suas aparências enganosas) e a justificabilidade (entendida como a capacidade de defesa argumentativa das proposições enunciadas). Em Aristóteles, o traço de subjetividade se desloca da dimensão lógicoepistêmica para a dimensão ética. É na Ética que o valor dos sentimentos é reconhecido, desde que temperado pela virtude da moderação. Com os epicuristas, no período helênico, os sentimentos corporais são valorizados, sem os limites da virtude aristotélica, o que aparentemente os levou a uma orientação existencial avessa à própria elaboração filosófica. Atesta a filosofia de Espinosa que a valorização dos sentimentos corporais não seria contraditória com a construção de uma filosofia capaz de dar conta da totalidade da realidade (LIMA e PEREIRA JR., 2008). Sua Ética pode ser interpretada como uma demonstração de que os sentimentos não seriam fenômenos puramente aparentes, mas poderiam ser ancorados na realidade fundamental – que, para ele, seria divina. A filosofia moderna se constrói na contramão de Espinosa, procurando enfocar – tanto nas correntes empiristas quanto nas racionalistas – o processo de construção do conhecimento do tipo científico. O sentimento “subjetivo” é considerado como obstáculo ao método científico, devendo ser substituído, como guia da vida humana, pelos métodos lógicos e experimentais “objetivos”, o que vai naturalmente conduzir ao Empirismo Lógico do início do Séc. XX. Enquanto Kant se limitou, na Crítica da Razão Pura, a uma abordagem cognitivista do Eu consciente, Hegel introduz, na Fenomenologia do Espírito, o conceito contemporâneo de consciência, que ultrapassa o plano do entendimento abstrato e se norteia por um “desejo” voltado para a vida social. Essa seria a origem do conceito de consciência utilizado por Marx e Engels (2007), e posteriormente elaborado como “consciência de classe” por Gyorgy Lukács. Curiosamente, ao ressaltar a dimensão social da consciência, todos estes autores deixam os sentimentos em segundo plano, como se fossem epifenômenos puramente subjetivos. Para Hegel, a filosofia, como porta-voz da Razão, teria ascendência sobre as práticas culturais que lidam com os sentimentos, como a arte e a religião (vide discussão em PEREIRA JR., 1986). Em Marx, a posição de classe relativamente ao modo de produção da existência social seria determinante da consciência individual. As reações ao cognitivismo dominante no período moderno são esporádicas, podendo-se mencionar Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche como exemplos de filósofos descontentes com aquela tendência. O primeiro procurou elaborar uma teoria 4

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dos sentimentos no âmbito da religião (resgatando a primazia da fé sobre a razão, como preconizado por Santo Agostinho), enquanto os dois últimos sugerem que seus antecessores racionalistas não teriam compreendido os motivos mais profundos que ancoram a vida humana. Este movimento culmina com Freud, que resgata as emoções como constituintes da mente inconsciente, a qual muitas vezes predominaria sobre a mente consciente na condução da vida. Ainda no início do Séc. XX, podemos encontrar uma valorização dos sentimentos em pensadores que tinham em comum a perspectiva evolucionista de Charles Darwin, possibilitando um entendimento do papel das emoções no comportamento animal e suas possíveis influências no processo evolutivo. Peirce, em uma perspectiva idealista objetiva, considera o sentimento (feeling) como primeiridade dada na natureza, a partir da qual se elaboram os processos cognitivos (isto é, processos de semeiosis). Em Baldwin (1986), a partir dos estudos de Darwin sobre as emoções nos animais, encontramos uma concepção hedonista e pragmática da consciência, a qual, segundo este autor, teria surgido e se desenvolvido como guia para a ação adaptativa, a partir das sensações de prazer e dor. Em Whitehead (1929) encontramos uma extensa teorização sobre os sentimentos (feelings), em que se procura – assim como Espinosa – inseri-los no plano ontológico, culminando em uma filosofia de cunho panpsiquista. Segundo Holmgren (2015), o Princípio de Subjetividade enunciado por Whitehead traria consigo as seguintes implicações: Mesmo se refinarmos enrememente nossos meios de observação e cálculo, e construirmos os experimentos mais geniais, tudo ainda será permeado pelos limites fundamentais para a nossa discriminação: os eventos mínimos discerníveis, resultantes da evolução natural, os “sentimentos atômicos” de Whitehead. Esses eventos certamente não são pontos nulos no espaço-tempo; eles devem ter algum tipo de tamanho e duração a ser sentida. Então, tudo, desde os dados sensoriais, bem como a cognição, consiste em sentimento.... A evolução natural nos forneceu instrumentos extremamente bons para detecções e manipulações, mas os instrumentos não são perfeitos, e sua imperfeição final, sua granulação, não pode ser completamente superada por meios cognitivos e técnicos [...] Os sentimentos têm características distintas, adquiridas e herdadas em um espectro perfeitamente ordenado, de acordo com seu uso e utilidade na ação e para a conservação da vida. Eles são formados e permanecem como potenciais em nossos cérebros, podendo ser atualizados ou não em

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O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto experiências conscientes” 2 . (HOLMGREN, JCS-Online, 9 de abril de 2015).

Whitehead e Peirce são idealistas objetivos de linhagem platônica; entretanto, pode-se combinar a parte de verdade do realismo materialista (ou fisicalista) com a parte de verdade do idealismo objetivo, postulando-se diferentes aspectos de uma mesma realidade; este é o raciocínio que conduz aos monismos de múltiplo aspecto. Esta estratégia havia sido antecipada por Aristóteles, para quem "o ser se diz de diferentes maneiras", incluindo em sua predicação tanto a parte de verdade dos materialistas pré-socráticos (a existência da matéria) quanto a parte de verdade dos platônicos (a existência da Ideia, entendida como forma). Assim como, em Aristóteles, tanto a matéria como a forma são princípios do ser, para o MTA os três aspectos são igualmente reais e irredutíveis entre si. Este quadro ontológico é ilustrado pela figura de um “bolo de três camadas” (Figura 1):

Figura 1 – A Ontologia do MTA representada como “Bolo de Três Camadas”. Nesta figura, procura-se ilustrar de modo simplificado e didático, a estrutura da realidade (Natureza), que se encontra (também) no âmbito da atividade cerebral. O retângulo maior representa a

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Even if we refine means of observation and calculation enormously, and construct the most genial experiments, everything will always be permeated by the fundamental limits for our discrimination: the smallest discernable events as evolved in natural evolution, Whitehead’s atomic feels. Those events certainly are not zero points in space-time; they must have some kind of size and duration to be felt. So, it all, sense data as well as cognition, consist of feels […] Natural evolution has provided us with extremely good instruments for detections and manipulations, but the instruments are not perfect, and their ultimate imperfection, their graininess, cannot be completely overcome by cognitive and technical means...The feels have distinct characteristics, acquired and inherited in perfectly ordered rich spectra in accordance with their use and usefulness in performances and conservation of life. They are formed and rest as potentials in our brains and can be actualized or not in a conscious experience.

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O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto Natureza, entendida como espaço de possibilidades. A camada azul representa as atividades cerebrais envolvendo matéria e energia (por exemplo, atividades elétricas e interações moleculares). Os processos físicos podem ocorrer sem continuidade com os demais processos; essa possibilidade é representada pelas linhas azuis que não se prolongam em linhas verdes (por exemplo, processos que ocorrem em sistemas em estado de equilíbrio termodinâmico). Em continuidade com os processos físico-químicos se desenvolvem processos informacionais (como transmissão de sinais intra- e inter-celulares, e respectivos padrões de informação), representados pelas linhas verdes. Os processos informacionais se enraízam nos processos físico-químicos, mas se estendem além destes. Podem ocorrer sem continuidade com processos conscientes; essa possibilidade é representada pelas linhas verdes que não se prolongam em linhas vermelhas (por exemplo, o processamento de informação em máquinas de calcular e computadores digitais). Em continuidade com os processos informacionais se desenvolvem processos conscientes, representados pelas linhas vermelhas. Os processos conscientes se enraízam nos processos informacionais e físico-químicos, mas se estendem além deles, gerando os conteúdos vivenciados na perspectiva de primeira pessoa.

3. Os conceitos de sentimento e emoção A expressão “what it is like to be” usada por Nagel (1974) possivelmente seria a mais apropriada para se referir ao domínio próprio à consciência, a chamada “perspectiva de primeira pessoa”. Entretanto, esta expressão não é usada na linguagem popular, enquanto os termos “sentir” e “sentimento” são frequentemente usados. Sugiro, portanto, o uso de “sentimento” como abreviação para “what it is like to be”. Quando Nagel pergunta “what it is like to be a bat?”, ele quer saber como os morcegos se sentem - e como sentem o seu mundo percebido. Tradicionalmente, e mesmo no âmbito neurocientífico, o conceito de sentimento (feeling) está intimamente relacionado com o conceito de emoção. Uma distinção entre ambos foi feita por Damasio (2000). Segundo Scaruffi (2000), para o neurocientista português: Um sentimento é uma representação mental do estado do corpo do sujeito consciente, a percepção do estado do corpo, ao passo que a emoção é uma reação a um estímulo e o respectivo comportamento associado (por exemplo, uma expressão facial). Assim, o sentimento é o reconhecimento de que um evento está acontecendo, enquanto que a emoção é o efeito visível da mesma. As emoções são corporais, enquanto os sentimentos são mentais. As emoções são uma resposta automática. Eles não precisam de qualquer pensamento. Eles são o mecanismo fundamental para a regulação da vida. Emoções precedem sentimentos, e são as bases para os sentimentos.3 (SCARUFFI, 2000).

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A feeling is a mental representation of the state of the organism's body, the perception of body state, whereas an emotion is the reaction to a stimulus and the associated behavior (e.g., a facial expression). So the feeling is the recognition that an event is taking place, whereas the emotion is the visible effect of it. Emotions are bodily things, while feelings are mental things. Emotions are an automatic response. They

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No contexto do MTA, o conceito de sentimento é mais amplo que em Damásio, ainda que este autor tenha sido uma fonte original de inspiração (seu influente livro sobre as bases neurocientíficas da consciência se intitulava “The Feeling of What Happens”; vide DAMASIO, 2000). Damásio afirma que os sentimentos podem ser inconscientes,

mas

não



suporte

fenomenológico

para

esta

suposição.

Conceitualmente, se os sentimentos são as experiências subjetivas a partir da perspectiva de primeira pessoa, eles não podem ser inconscientes, porque esta perspectiva é própria à experiência consciente. Podemos ser inconscientemente conduzidos por nossas emoções, quando nosso comportamento contradiz nossa vontade. Neste caso, seria melhor dizer que nossas emoções inconscientes nos conduziram contra a nossa vontade consciente, mas não que os nossos sentimentos inconscientes o fizeram. Se os mesmos sentimentos são evocados para explicar ambas as forças que guiam o comportamento, haveria uma contradição: o (suposto) lado inconsciente do sentimento nos impulsionaria a um determinado comportamento, enquanto o lado consciente do mesmo sentimento nos levaria a um comportamento diferente. No MTA, o sentimento não seria uma representação mental, e sim uma experiência vivida. “Aquilo que acontece” (o “what happens” do título do livro), ou seja, um evento, é transportado para nosso cérebro por meio de sinais informacionais, e nosso cérebro (juntamente com a totalidade de nosso corpo, em interação com o ambiente físico e social) interpreta o significado da informação e reage ao conteúdo da mesma com um sentimento. O agregado de informações que é “iluminado” pelo sentimento se torna consciente, enquanto os sinais restantes que perambulam pelo cérebro permanecem inconscientes. Deste modo, os processos conscientes abarcam apenas uma parte da informação inconsciente, ou seja, aquela parte que cujo conteúdo é sentido (Figura 2).

don't require any thinking. They are the fundamental mechanism for the regulation of life. Emotions precede feelings, and are the foundations for feelings

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Figura 2: Processos Cognitivos e Conscientes: Os processos conscientes consistem na fração (iluminada em amarelo) de processos cognitivos que são acompanhados de sentimentos. Esse diagrama deve ser interpretado em três dimensões. O subconjunto em amarelo ressalta do plano formado pelo conjunto maior.

Uma visualização mais completa da extensão dos conceitos de sentimento, emoção, cognição e processos físicos pode ser obtida pelo novo diagrama abaixo (Figura 3). Embora o diagrama esteja representado em duas dimensões, sua intepretação correta seria em três dimensões, pois todos os subconjuntos do conjunto maior (processos físicos) ressaltam ortogonalmente do plano, uma vez que seus respectivos conceitos não se reduzem ao plano físico. Da mesma forma, o subconjunto de processos conscientes ressalta do subconjunto de processos informacionais, devido à presença de sentimentos, os quais tornam os padrões de informação processada conscientes. O diagrama constitui na verdade uma “visão de cima” da estrutura conceitual representada.

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Figura 3: “Visão de Cima” da Estrutura da Realidade Conforme o MTA: Neste diagrama, diferentemente dos anteriores, é incluído o conceito de Emoção, que perpassa os três aspectos, Físico, Informacional e Consciente. A emoção tem aspectos puramente fisiológicos, e também aspectos que se superpõem ao fisiológico, a saber o informacional (sinalização biológica), e consciente (quando os padrões carregados pela sinalização das alterações fisiológicas emocionais se tornam conscientes, sendo então chamados “Sentimentos Emocionais”.

Se todos os conteúdos conscientes são sentidos, então as modalidades de sentimento são variadas; para cada tipo de estado consciente, há um sentimento correspondente, mesmo que nas linguagens popular e científica ainda não disponhamos de termos específicos para cada um. Podemos discernir os seguintes tipos de sentimentos, alguns já reconhecidos como tais, e outros comumente concebidos de modo diverso:

1) Sensações Básicas, como: sentir fome, sede, calor, frio, etc.; 2) Sentimentos Emocionais, como: alegria, tristeza, raiva, medo, coragem, etc. Muitos destes sentimentos tem uma dimensão social. Uma listagem bastante abrangente dos sentimentos emocionais pode ser elaborada a partir do livro Ética de Espinosa, como se pode visualizar no diagrama feito por Derman (2010; vide a Figura 4). Para Espinosa, a dor, o prazer e o desejo seriam os componentes fundamentais de todos os sentimentos emocionais, que ele chamava de afetos; 3) Sentimentos Cognitivos, ou crenças: é o tipo de sentimento que temos quando acreditamos ter um determinado conhecimento, ou quando acreditamos não tê-

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lo. É um sentimento amodal, no sentido em que não se vincula a nenhuma modalidade sensorial; 4) Sentimentos Perceptivos, ou “qualia”: estes sentimentos são típicos das modalidades sensoriais (p. ex., cor na visão; som na audição; odor no olfato, etc.). Na literatura filosófica, são referidos como qualidades sensoriais, e na física moderna ficaram conhecidos como “qualidades secundárias” (as quais não existiriam na natureza, mas apenas na mente e/ou no corpo do observador). Entretanto, o termo ‘quale’ é ambíguo, pois engloba tanto um sentimento subjetivo quanto um padrão informacional objetivo (p. ex., comprimento de onda fotônica, no caso das cores). Já a expressão “qualidade secundária” denota mais uma convenção feita à época da consolidação da ciência moderna que um conceito

filosoficamente

consistente.

Embora

referir-se

às

qualidades

perceptivas como sentimentos não constitua uma prática linguística comum, pode-se argumentar que seria apropriada, pois possibilita fazer referencia inequívoca ao aspecto subjetivo dos ‘qualia’; 5) Sentimentos de Acontecimentos, ou sentido existencial: esse é o tipo de sentimento que nos ocorre quando apreciamos o significado de uma notícia (p. ex., quando sentimos a morte de uma pessoa querida), ou ainda quando avaliamos o sentido de um evento para nossa existência pessoal.

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Figura 4: Diagrama da Rede de Sentimentos em Espinosa. Figura elaborada por Derman (2010). Espinosa se refere a afetos, mas Derman se refere a emoções. Apesar desta confusão terminológica, o diagrama é uma ótima ilustração dos sentimentos emocionais (Derman gentilmente permitiu uma única utilização desse diagrama).

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4. O sujeito psicológico no MTA

Para o MTA, o Eu consciente não seria uma substância pensante de tipo cartesiana, ou um Eu Transcendental de tipo kantiano, mas um ser situado e corpóreo. Os três aspectos fundamentais da natureza se atualizam de modo irredutível e interligado no Eu consciente. Os três aspectos constituintes do Eu são:

a) Aspecto Físico: Se constitui do corpo vivo - que pode ser abordado tanto na perspectiva da primeira pessoa (experiência vivida do corpo, pelo próprio sujeito), quanto por terceiras pessoas (p.ex., profissionais da área de saúde) - e o ambiente físico-químico-biológico-social com o qual o corpo vivo interage; b) Aspecto Informacional: Se constitui dos conteúdos informacionais que se associaram ao sujeito em sua história de vida - suas memórias (que ficam no plano inconsciente, podendo eventualmente ser trazidas para a consciência) – e das formas que são processadas em seu corpo, p. ex. as formas sensoriais que são processadas p.ex. no córtex primário, ou as formas matemáticas que são processadas p.ex. no córtex pré-frontal. Também este aspecto pode ser abordado tanto na perspectiva da primeira pessoa quanto na perspectiva da terceira pessoa (p. ex., por meio do eletroencefalograma pode-se detectar padrões de informação presentes no cérebro); c) Aspecto Consciente: Este aspecto depende da presença de sentimentos. Apenas quando o conteúdo informacional dos processos cognitivos é sentido ocorre a consciência. Os sentimentos são exclusivos à perspectiva da primeira pessoa, porém - como se trata de um sistema uno, no qual os três aspectos estão ligados - pode-se inferir (indutivamente) a presença de determinados sentimentos a partir do aspecto físico (comportamento, processos fisiológicos) ou informacional (p. ex. determinados tipos de ondas eletroencefalográficas).

De acordo com essa tríplice constituição do Eu, podemos conceber sua interação com o mundo em termos de um ciclo funcional expandido. A ideia original do ciclo funcional remonta a Jakob von Uexkull. Para este autor, um “mundo interno” ou “mundo próprio” – presumivelmente, o aspecto consciente do ser vivo – se constituiria a partir das interações com o ambiente por meio de efetores – responsáveis pelas ações 13

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adaptativas do ser vivo – e de receptores – responsáveis pela detecção de eventos ambientais de interesse do ser vivo. Para o MTA, as interações entre o Eu consciente e o ambiente perpassam os três aspectos, como mostrado no diagrama abaixo (Figura 5).

Figura 5: O Ciclo Funcional do Eu Consciente: O Eu Natural (que inclui os três aspectos da natureza) atualiza a cada episódio consciente um autoconceito, o conceito que ele forma de si mesmo. Nesta perspectiva, ele realiza operações cognitivas, significando (por meio de imagens, mapas, representações, ou, em termos peirceanos, por meio de ícones, índices ou símbolos) objetos ou processos distintos de si. Estes objetos ou processos constituem o referente da operação cognitiva, e são intencionalmente projetados no mundo da experiência. Por meio da ação do corpo vivo no espaço-tempo físico-químico-biológico-social, o referente dispara um processo perceptivo do Eu Natural, que é mediado por um processo interpretativo, no qual são atribuídos significados aos sinais recebidos. O significado atribuído vai possibilitar a formação de um sentimento a respeito do conteúdo da informação recebida e interpretada. A cada episódio consciente, o sentimento que é formado afeta o Eu, atualizando o seu autoconceito. No diagrama, os termos em cor verde dizem respeito ao Eu Natural, com seus três aspectos; os termos em cor vermelha dizem respeito às mediações informacionais entre o Eu e o mundo, e os termos em lilás dizem respeito ao mundo, que é acessível ao Eu apenas no primeiro e segundo aspectos (ele não tem acesso cognitivo direto aos sentimentos de outros seres conscientes que fazem parte de seu mundo).

Ao longo de sua história de vida, o Eu consciente passa por uma sequência de ciclos, nos quais vivencia variados conteúdos informacionais, que por sua vez despertam sentimentos que o afetam. Deste modo, são formados hábitos sentimentais que determinam sua identidade, ou seja, sua personalidade. A partir da personalidade formada, o Eu projeta experiências desejáveis para o seu futuro. Ao contrastar estes desejos com o estado de coisas vigente no presente, se forma uma tensão entre o desejo e aquilo que se mostra como sendo o real. Desta tensão

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resulta um compromisso ético, seja com a aceitação do estado de coisas existente e consequente renúncia ao desejo, seja com a continuidade do desejo, o que implica na realização de ações que propiciem uma mediação entre o estado de coisas atual e o estado de coisas desejado. No segundo caso, o compromisso ético se traduz na virtude da magnanimidade, ou seja, na renúncia a uma satisfação imediata que possa significar renúncia ao desejo, em prol de esforços no sentido da efetivação da mediação.

5. Interações neuro-astrocitárias e consciência Enquanto no âmbito da “doutrina neuronal” de Ramon y Cajal (vide BULLOCK et al., 2005; DOUGLAS FIELDS, 2009) os neurônios eram considerados as unidades funcionais da mente, com a descoberta de novas funções das células gliais, trabalha-se atualmente com duas redes – neuronal e astroglial – para se explicar o funcionamento cerebral. Neste novo modelo, as interações neuroastrocitárias compõem a unidade funcional, constituindo a base fisiológica dos processos psíquicos (uma ilustração morfológica destas interações é apresentada na Figura 6). Como importante consequência para as pesquisas nas ciências do cérebro, sugere-se que as funções mentais

devem

ser

experimentalmente

correlacionadas

com

processos

neuroastrocitários, e não apenas com atividades neuronais.

Figura 6: Visão Morfológica das Interações Neuro-Astrocitárias: Redes de neurônios (marcados em verde) e astrócitos (marcados em vermelho) no tecido hipocampal. O DNA de ambas as células está marcado em azul. As atividade cerebrais envolvem processamento de informação nas duas redes, neuronal e astrocitária, que se entrelaçam no plano morfológico, propiciando retroações energéticas e informacionais. Fonte: New Scientist - Cell Image Competition.

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Historicamente, a ideia de Camillo Golgi de que o sistema nervoso seria um reticulado no qual sinais elétricos e químicos percorreriam de modo contínuo o tecido cerebral antecede a “Doutrina Neuronal” de Ramón y Cajal, que situou as funções mentais em redes neuronais consideradas como composta de unidades discretas (neurônios), devido à separação existente entre estas células (a fenda sináptica). A doutrina de Cajal permanece hegemônica até os dias atuais, porém nos anos 1990 foram visualizadas ‘in vitro’ as ondas de cálcio que percorrem a rede astrocitária (células ligadas por ‘gap junctions’, possibilitando um fluxo contínuo de íons; vide PEREIRA JR e FURLAN, 2010). O debate recente tem enfocado as possíveis funções das ondas de cálcio ‘in vivo’. Utilizando-se da microscopia multifóton, alguns laboratórios têm realizado experimentos com diversos tipos de estimulação do sistema nervoso, para observar em que condições as ondas de cálcio ocorrem. Diversas linhas de evidência relacionam estas funções astrogliais com processos conscientes. Embora o nosso objetivo aqui não seja avaliar este literatura, fazemos um breve resumo dos estudos mais impactantes, muitos deles discutidos em publicações anteriores (PEREIRA JR. e FURLAN, 2009, 2010; PEREIRA JR, 2013, 2014). Como alguns destes estudos infelizmente envolvem técnicas invasivas, recomenda-se aos críticos da experimentação animal que pulem os próximos três parágrafos. Estes resultados vêm de vários laboratórios respeitados independentes. Schummers et al (2009), em um trabalho realizado no laboratório de Mriganka Sur no MIT, concluiu que os astrócitos do córtex visual são mais sensíveis a estímulos externos do que os neurônios. Thrane et al. (2012), do laboratório de Maiken Nedergaard em Rochester, descobriram que os astrócitos são mais sensíveis que os neurônios a três anestésicos gerais comumente usados. Sfera et al. (2015) argumentam que o delírio consciente deriva de uma combinação de processos inflamatórios colinérgicos e consequente insuficiência da função astroglial. Um resumo de uma conferência a respeito de resultados empíricos indicando o envolvimento de células gliais em atividades mentais apareceu em Douglas Fields et al. (2014). Os astrócitos podem mediar processos de aprendizagem, formação e resgate de memória, e comportamento (para uma revisão recente, ver ROBERTSON, 2013). Takata et al. (2011) descobriram que os astrócitos mediam a neuromodulação colinérgica, possibilitando a plasticidade cortical. Han et al. (2013) inseriram 16

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precursores de astrócitos humanos no cérebro do rato e observaram uma melhora de desempenho cognitivo destes animais. Lee et al. (2014) do laboratório de Terry Sejnowski no Instituto Salk, descobriram que a desativação tóxica de funções astrogliais prejudica a memória de reconhecimento, uma tarefa que envolve detecção consciente de novidades. Uma nova fronteira na Psiquiatria se abre com a consideração das funções mentais dos astrócitos (ANONE et al., 2015; GOLDMAN et al., 2015; MÉNARD et al., 2015; YAMAMURO et al., 2015). Um dos resultados mais impactantes é a alteração astrocitária em sujeitos depressivos suicidas (TORRES-PLATAS et al., 2015). Os astrócitos também parecem estar envolvidos na instanciação de sentimentos e de respostas emocionais psicossomáticas, como no caso de dor crônica (ver CHEN et al., 2012, 2014; JI et al., 2013). Como a mediação entre neurónios e o sangue é feita por astrócitos através da barreira hemato-encefálica, os astrócitos constituem a parte efetora do hipotálamo (PANATIER et al., 2006; GORDON et al., 2009) e no núcleo acumbente (BULI et al., 2014 ), controlando a liberação de neuropeptídeos e seus efeitos sobre o humor e respectivos sentimentos (por exemplo, a fome; ver YANG et al. 2015; WANG et al., 2015) bem como respostas somáticas, como o aumento da regulação do estresse (ZHAO et al., 2008). Mais recentemente, Orstroff et al. (2014) do laboratório de Joseph LeDoux na Universidade de Nova York, descobriu que os processos astrogliais se retraem de sinapses com os neurônios que mediam a sinalização de medo na amígdala, e Will et al. (2015) relacionou o número de astrócitos no hipotálamo com a capacidade dependente da experiência - de se atingir o orgasmo masculino. Na perspectiva sugerida por estes resultados, os correlatos da consciência devem ser identificados no domínio das interações neuroastrocitárias. As atividades neuronais por si só não seriam conscientes, mas na medida em que as representações cognitivas instanciadas nos neurônios são associadas com sentimentos instanciados na rede astrocitárias, os “focos” formados por representações e respectivos sentimentos constituem episódios conscientes. Há aqui implícito um conceito de atenção consciente como sendo uma superposição de processos cognitivos e afetivos, como representado no diagrama da Figura 7.

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Figura 7: O Losango da Atenção Consciente (adaptado de PEREIRA JR., 2013)

Há em princípio três maneiras de um sistema consciente interagir com o meio ambiente. Uma primeira maneira é puramente física, correspondendo à ideia de um “arco reflexo”, pelo qual os estímulos ambientais iniciam um processo causal físico que resulta em uma resposta motora ou endócrina. Uma segunda maneira é por meio de um processamento de informação inconsciente, que consiste em um processo informacional do tipo “feed-forward”, no qual estímulos ambientais são detectados por neurônios especializados (“feature detectors”), gerando um sinal que é associado com padrões já memorizados (ou seja, “interpretado” conforme seu significado para o sistema), gerando uma ativação distribuída da rede neuronal (um processo de transdução de sinais, que podem ser bioelétricos – os potenciais de ação - ou bioquímicos – liberação de neurotransmissores ou neuromoduladores), que converge para uma resposta comportamental. A terceira modalidade, que está ilustrada na Figura 8, inclui um “feedback” endógeno (CARRARA-AUGUSTENBORG e PEREIRA JR., 2012), pelo qual as ondas iônicas, instanciadas na rede astrocitária, retroagem sobre o processamento da informação na rede neuronal, o que corresponderia ao processamento consciente, no qual há modulação recíproca dos componentes cognitivos e sentimentais, como mencionado anteriormente.

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Figura 8: Interação de um Sistema Consciente com o Ambiente. No diagrama está ilustrada a sequência de operações que se inicia com a informação ambiental, detectada por um corpo vivo, seguindo-se o reconhecimento de padrões, atribuição de significado e despertar de um sentimento, que modula o modo como o padrão de informação vem a ser processado (aqui intervindo também mecanismos de memória sistêmica, não referidos no diagrama). Ao se estabelecer o feedback endógeno do sentimento sobre a informação, é gerada a consciência. Com base no sentimento, se estabelece um controle parcial sobre as ações, as quais podem ser também executadas de modo automático (ou seja, por um acionamento dos efetores pelos receptores, sem uma apreciação consciente do conteúdo da informação).

O modelo de feedback endógeno, acima ilustrado, possibilita uma abordagem do problema da causação mental. A relação das ondas iônicas, que instanciam os sentimentos, com as experiências sentimentais, estaria em conformidade com o conceito aristotélico de causa formal, ou seja, as formas dos sentimentos seriam semelhantes às formas das ondas iônicas. Esta hipótese pode ser cientificamente formulada e testada, por meio do tripé metodológico utilizado na neurociência cognitiva e afetiva, que consiste na apresentação de estímulo específico, registro da atividade cerebral e comparação dos padrões de atividade cerebral com os estados conscientes (evocados pelo estímulo) reportados pelo sujeito. Enquanto o sujeito é apresentado a um estímulo que dispara uma reação emocional consciente, gerando um tipo de sentimento padronizado (por exemplo, apresentação de uma figura de um animal peçonhento, e sentimento de medo). Enquanto o sujeito experimenta e reporta sentir medo, sua atividade cerebral é medida por meio de uma tecnologia adequada, revelando não só a localização dos correlatos cerebrais do medo como também (e mais importante para nossos propósitos) uma forma de onda que ocorre simultaneamente àquele sentimento. A partir desta comparação, pode-se encontrar uma correlação estatisticamente

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significativa entre a ocorrência do medo e um determinado tipo de forma de onda que caracteriza a atividade cerebral durante a experiência do medo. Note-se que para visualização das ondas de cálcio seria preciso uma técnica invasiva, a microscopia de fótons, o que só se justifica em sujeitos que estejam em processo cirúrgico por razões médicas.

6. Considerações finais

Contrastando com as teorias do conhecimento tradicionais, que enfocam as operações cognitivas da mente humana, a teoria da consciência proposta no MTA considera o sentir como o aspecto fundamental da mente consciente, o que tem profundas implicações antropológicas. Enquanto no Iluminismo e séculos passados, assim como no cientificismo e no racionalismo contemporâneos, se procura entender (ou compreender) e aperfeiçoar a pessoa humana em seu componente cognitivo, no MTA a ênfase se desloca para o componente afetivo. Para se entender (ou compreender) e aperfeiçoar a pessoa humana, se torna necessário prestar atenção no Eu consciente e seus hábitos sentimentais. O processo educacional, por exemplo, deveria valorizar a educação sentimental das pessoas, ao invés do foco quase exclusivo na formação cognitiva. A avaliação do desempenho dos países não se restringiria à produção econômica ou à qualidade de vida medida em termos puramente materiais, mas também se levaria em conta os índices de satisfação das pessoas com seu modo de vida (os chamados “índices de felicidade”). Decerto a dimensão racional continua sendo de capital importância para a ética, pois, como bem pensava Aristóteles, a virtude da moderação requer o exercício da razão. O componente cognitivo - que na espécie humana tem como correlato cerebral o córtex frontal e suas conexões com os demais sistemas cerebrais - seria necessário para regular o componente afetivo. Entretanto, com a adoção dos conceitos do MTA haveria uma “revolução copernicana” no entendimento das operações que possibilitam o comportamento ético. Ao invés de constituir mera ferramenta auxiliar de um “marcador somático” (Damásio) que regula uma mente cognitiva (ou seja, que opera por meio de imagens, mapas e representações linguísticas), os sentimentos passam a ser o estofo do Eu consciente, e os hábitos sentimentais vêm a ser reconhecidos como os principais fatores que constituem a identidade pessoal. As operações cognitivas é que seriam,

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então, ferramentas de moderação e direcionamento ético do Eu consciente, como no caso da conduta pautada pela magnanimidade. As consequências desta “virada sentimental”, para uma análise da cultura contemporânea, são imensas, e ainda estão por ser levantadas. Por exemplo, pode-se atualmente notar uma crise no sistema educacional na maioria dos países, pois os jovens valorizam mais as atividades nas quais podem expressar e compartilhar seus sentimentos (como, tipicamente, as redes sociais via Internet), em detrimento da educação científica. Aqueles que são bem sucedidos no sistema educacional cientificista muitas vezes se tornam proficientes em atividades cognitivas, mas deficientes em termos de vivências sentimentais satisfatórias. Diversas atividades humanas e respectivas instituições, como as práticas religiosas, artísticas e esportivas, poderiam ser enfocadas sobre o prisma antropológico do MTA. Em uma perspectiva cognitivista, o ganho dos participantes nestas práticas é na maior parte das vezes nulo; por exemplo, qual o ganho cognitivo das práticas religiosas? Por outro lado, o ganho afetivo é alto, pois, ao exercer a fé religiosa, o crente encontra um meio de compartilhar e fortalecer seus sentimentos, principalmente no plano da sociabilidade. Termino, assim, o presente ensaio sugerindo que para a filosofia retomar seu papel humanista na contemporaneidade, participando do diálogo interdisciplinar com as ciências e outras práticas sociais não científicas, seria importante enfocar a dimensão sentimental da pessoa humana, repensando possibilidades concretas de conduta ética por meio da moderação racional dos sentimentos constitutivos do Eu consciente – ao invés da moderação sentimental de um suposto Eu cognitivo.

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Agradecimentos: FAPESP, pelo apoio à pesquisa; Samuel Bellini-Leite, pela proposta deste número especial da Kínesis; Dr. Jonas Coelho, pelo incentivo à melhor elaboração e discussão do MTA, e a todos que contribuíram com sua atenção e/ou comentários.

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QUÃO ONTOLÓGICO É O MONISMO DE TRIPLO ASPECTO? Vinicius Romanini1 Em “O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto”, o professor Alfredo Pereira Junior faz uma instrutiva apresentação de sua principal hipótese de trabalho, o Monismo de Triplo Aspecto (MTA), e seus desdobramentos diante do problema que muitos filósofos da mente e neurocientistas ainda consideram a barreira intransponível no caminho para uma teoria completa e coerente da mente: o problema da consciência. O MTA postula que as diversas formas de dualismo (corpo e espírito, mente e cérebro, matéria e forma, sujeito e objeto, etc.) que se desenvolveram no campo da filosofia e da ciência em geral podem ser substituídas por um monismo tripartido nos aspectos matéria/energia, forma/informação e sentimentos/consciência. Assim como o par matéria/energia é considerado pela ciência a dimensão puramente física da realidade, o MTA propõe o par forma/informação como a dimensão que rege as transformações dos sistemas no tempo (processos dinâmicos), e o par sentimentos/consciência como a dimensão que permite a emergência da experiência subjetiva nas espécies vivas em geral, e da consciência autocontrolada nas formas de vida mais complexas. No MTA, essas três dimensões seriam indissociáveis e comporiam a o fundamento do real. O conceito de sentimento é assim apresentado numa perspectiva conjugada, em que processos físicos e informacionais participam pari passu e sem que haja a possibilidade de uma observação isolada ou uma descrição separada da totalidade monista. O corolário dessa hipótese é que a consciência pode ser definida como o resultado do sentir da informação trocada entre os sistemas físicos abertos e complexos, e esta seria a característica principal dos sistemas vivos capazes de consciência sobre suas experiências. A fundamentação empírica para a hipótese do MTA é apresentada a partir dos resultados alcançados na pesquisa com células cerebrais chamadas astrócitos, neutrotransmissores químicos capazes de transmissões contínuas e analógicas dos sinais e estreitamente vinculados à capacidade de sentir e de se emocionar – e, portanto, desempenhando um papel central na emergência da subjetividade e da consciência. Professor da Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo São Paulo, USP. E-mail: [email protected] 1

Quão ontológico é o Monismo de Triplo Aspecto?

A exposição do professor Alfredo Pereira Junior neste artigo “alvo” é bastante clara e bem fundamentada, mas algumas questões permanecem abertas ou precisam ser aprofundadas. O primeiro ponto que gostaria de levantar diz respeito ao tipo de monismo que o MTA postula. Afirmações sobre a natureza da realidade são obviamente metafísicas, pertencentes ao domínio da filosofia. Por filosofia não queremos ficar restritos à filosofia analítica que dominou o século 20 e que, como bem define o professor Pereira Jr., “é uma prática linguística de análise de conceitos” (p. 2) e, portanto, teria pouco a contribuir para a questão dos sentimentos numa abordagem metafísica. Vamos procurar aqui restituir à filosofia seu papel originário de debater os problemas em torno da estética (a percepção e imaginação criativa), da ética (as normas do agir situado) e da lógica (as representações compartilhadas sobre os objetos percebidos e imaginados). No caso específico do MTA, pretende-se uma metafísica científica em diálogo com a filosofia da ciência. Isso implica um monismo que fosse capaz de cobrir ao mesmo tempo os domínios ontológicos e epistemológicos, o que exige uma formulação muito mais completa (e complexa) do que a apresentada neste e em outros artigos que já li sobre o MTA. Uma formulação monista puramente ontológica tende cair num realismo ingênuo que esconde as nossas limitações cognitivas intrínsecas. Afinal, o que autoriza os seres humanos a proferir teoremas sobre a realidade “em si mesma”? Uma formulação apenas epistemológica do monismo escapa dessa armadilha, mas é obrigada a ceder aos princípios do transcendentalismo kantiano: o mundo é o que nos parece porque nossas categorias a priori da sensibilidade criam os fenômenos que se submetem ao entendimento e à razão. Em alguns trechos do artigo “alvo”, assume-se uma postura claramente ontológica, como quando Pereira Jr. apresenta o “Bolo das Três Camadas” (p. 6 e ss), mas sem discutir o antropocentrismo e os paradigmas historicamente constituídos que subjazem nessa posição. Em seguida, ao adotar a perspectiva de Nagel e Uexkull sobre como se sentem as espécies que experimentam o mundo a partir de seus aparelhos perceptivos, assume-se uma perspectiva mais fenomenológica e epistemológica. Enfim, o MTA precisa apresentar suas credenciais metafísicas mais claramente para que possamos inclusive entender o que são, afinal de contas, os três “aspectos” que o compõem: categorias ontológicas ou fenomenológicas? Essa primeira questão vai se desdobrar numa outra que considero especialmente importante: a distinção, definição e explicação do que entendemos por sentimentos e 26

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emoções, e a ordem de determinação entre eles. O professor Pereira Jr., e por conseguinte o MTA, parecem estar alinhados com a corrente da neurociência liderada por Damásio, e que coloca a emoção como a expressão corpórea do processamento de informação que ocorre no cérebro, e o sentimento como um estado mental que nada mais é do que um subproduto das emoções. “As emoções são corporais, os sentimentos são mentais”, cita o professor Pereira Jr. a partir de Scaruffi (p. 7). A meu ver, nesta máxima está embutida o materialismo típico do realismo ingênuo: a de que os processos físicos (matéria/energia) são a base do real e, portanto, que a descrição completa das redes de conexão físicas do cérebro podem solucionar o problema dos qualia. Eu discordo desta posição porque para mim, como um pensador próximo à filosofia e à semiótica de Peirce, a ordem de determinação é inversa: os sentimentos estariam na base a atividade mental em geral, e da consciência em particular. Para Peirce, as qualidades de sentimentos são imediatamente percebidas por mentes particulares, mas jamais conscientemente conhecidas. Na metafísica peirceana, os sentimentos teriam uma realidade independente de uma ou de qualquer aglomerado finito de mentes particulares, mas não da mentalidade em geral que se espraia pelos processos inteligíveis do universo. Afinal, explica Peirce, o universo é inteligível justamente porque uma mentalidade geral garante regularidades contínuas (as leis da natureza) que exercem sua força numa processo de causação final. Como os tons de uma sinfonia que é composta de improviso enquanto é interpretada, os sentimentos são as qualidades que possuem intensidade infinita em instantes infinitesimais, mas que são generalizados em hábitos de sentimentos em qualquer duração perceptível. As sensações experimentadas pelos seres vivos seriam o resultado desse processo lógico de síntese do múltiplo dos sentimentos caóticos dados na experiência num estado mental com duração. Ou seja: as sensações são predicados lógicos gerais que trazem à consciência a qualidade comum dos inúmeros e intensos sentimentos que compõem a nossa percepção. As emoções, por sua vez, seriam as interpretações que fazemos das sensações geradas nesse processo lógico – e, portanto, semiótico. Por fim, as cognições seriam os resultantes lógicos que subsumiriam sensações (compostas, como vimos, por sentimentos) e emoções (compostas, como vimos, por reações corpóreas, químicas e físicas) num predicado ainda mais geral e, portanto, necessariamente de ordem simbólica. Por ser um símbolo, pode ser compartilhado entre os intérpretes de uma comunidade formada por seres cognoscentes capazes de fruir dos mesmos sentimentos e 27

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sensações. Mais importante ainda: por um ser um símbolo (ou seja, um hábito mental), pode ser compartilhado no tempo, comunicando sensações e emoções experimentadas em novos interpretantes. E aqui está a definição semiótica de consciência: a criação de um sujeito (self) por um processo lógico e autocontrolado de síntese de predicados regido por propósitos (ou causas finais). Estamos aqui no fundamento do chamado “sentimentalismo lógico” de Peirce. Faço esta pequena excursão - e talvez imprecisa devido à rapidez da formulação – pela teoria peirceana do sentimentalismo lógico para mais uma vez chamar a atenção para as consequências da adoção de um ou outro tipo de monismo. A filosofia de Peirce é monista partindo de uma metafísica ontológica e assumindo um realismo extremo. No entanto, Peirce a complementa com as doutrinas do falibilismo e do evolucionismo: nossas crenças são falíveis e sujeitas ao desenvolvimento. A dúvida epistemológica é assumida como parte de sua filosofia, e inclusive dá origem ao seu pragmatismo. A informação, para Peirce, é justamente o crescimento dos símbolos que compõem nossas consciências. A informação surge quando sentimentos são sintetizados em sensações, dando origem ao processo semiótico. Por outro lado, a matéria é aquilo que dizemos de todo o que não evolui, não pensa, não cresce e, portanto, se mantém sob as leis chamadas naturais. O monismo de Peirce tem a mente como fundamento, e tudo o mais como decorrência. Parece-me que o MTA tenta articular a teoria dos sentimentos e emoções de Damásio, a teoria da informação de Shannon e as teorias físicas dos sistemas termodinâmicos integrando-os num mesmo paradigma, mas eu não estou convencido que esses três componentes podem ser equacionados. Embora Pereira Jr. dê um importante passo para sair da concepção reducionista de “marcador somático” que Damásio atribui ao sentimento, colocando-o como estofo da consciência, não me parece que esse passo seja o início de uma caminhada que coloque o sentimento como um componente fundamental da realidade e, portanto, presente inclusive em processos que atualmente não são considerados inteligentes, vivos ou conscientes pela ciência. Como seria, enfim, “sentir-se” como uma rocha ou um curso d’água, se é que o MTA nos permite formular uma tal questão? Gostaria que o professor Pereira Jr. explicitasse, portanto, qual a narrativa “cosmogônica” (se há alguma) que sustenta seu monismo ontológico. A última parte do artigo “alvo” expõe uma série de descobertas recentes sobre o papel das redes neuro-astrocitárias em processos de retroalimentação de informação e, 28

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talvez, produção de epifenômenos como sentimentos e consciência. Esta é uma parte em que aprendi bastante e que tenho pouco a questionar para além de algumas dúvidas motivadas pela minha ignorância. A principal delas é sobre o quanto se pode generalizar a partir dessas descobertas. Poderíamos dizer que a presença de um cérebro com redes neuro-astrocitária é pressuposto para a emergência de sentimentos e consciência? Se a resposta a esta primeira pergunta for afirmativa (como parece ser em decorrência dos pressupostos apresentados), então onde se pode traçar, na escala evolutiva e na taxonomia dos seres vivos, a linha divisória entre aqueles capazes de sentir e de desenvolver consciência? Plantas e fungos estariam descartados a priori? Afinal, se sentimentos podem ser definidos, grosso modo, a partir da fórmula de Nagel (“How-isit-like-to-be”), nada nos impede de imaginar como seria “sentir-se como” um vegetal – e há fitólogos que sugerem que plantas são capazes de sentir. Outro ponto difícil para mim é a relação praticamente direta que Pereira Jr. parece fazer entre “ondas iônicas” propagadas no cérebro e o aspecto do sentimento/consciência. Essa formulação permite vislumbrar a possibilidade de simular o sentimento e a consciência pela produção artificial de ondas iônicas em certos sistemas de processamento de informação. Estaria aí a chave para a verdadeira inteligência artificial? Seria possível que o projeto conexionista de reproduzir a mente humana a partir em processadores de informação (algo que hoje parece menos promissor do que há 20 anos) possa ser recondicionado para um projeto que una a simulação de ondas analógicas semelhantes às produzidas na interação entre neurônios e astrócitos? Chegando às conclusões, posso apenas elogiar e me congratular com as consequências de uma “virada sentimental” apresentadas por APJ, principalmente aquelas que trazem implicações para a pedagogia e O conceito de “inteligência emocional” já está razoavelmente consolidado, mas a maior parte dos psicólogos e educadores ai da coloca essa inteligência ao lado da racional, como se fossem dois lados de uma moeda. Na verdade, os sentimentos são mais fundamentais do que as ideias que habitam nossas mentes e circulam pelos símbolos que compartilhamos. Uma pedagogia do sentimento deveria ser parte obrigatória da formação educacional e, certamente, poderia mitigar ou mesmo evitar muitos dos problemas éticos e lógicos que contaminam as sociedades contemporâneas.

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Quão ontológico é o Monismo de Triplo Aspecto?

Referências PEREIRA JR., A. O Conceito de Sentimento no Monismo de Triplo Aspecto. Kínesis, Edição Especial – Debate, v. 7, n. 15, p. 1-24, 2015. PEIRCE, C.S. Collected Papers (Vols. I a VIII). Ed. Eletrônica. Charlotterville e Cambridege: Intelex Co. & Harvard Univ. Press, 1992.

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REFLEXÕES SOBRE O MONISMO DE TRIPLO ASPECTO Sérgio Roclaw Basbaum1

Na introdução ao seu hoje consagrado ensaio sobre a fotografia, em que apresenta a sua própria tradução para o português de seu texto original em alemão, Vilém Flusser (1998) observa que envia a obra ao Brasil, na esperança de que “me leiam, e não me poupem”. No parágrafo seguinte, porém, é com ceticismo que afirma duvidar que isso se dê no contexto brasileiro. Assim, é digna de grande elogio a iniciativa da Kínesis de promover a discussão do trabalho de Alfredo Pereira Jr.. Com intensa e constante produtividade ao longo de mais de uma década, com reputação internacional e trabalho inovador, Pereira Jr. é um pesquisador modelo no difícil contexto brasileiro, e certamente uma referência na “difícil questão da consciência”, para citar a expressão consagrada por Chalmers (1996). Acolho como um desafio e uma honra comentar seu trabalho, e agradeço tanto ao autor como à editoria pelo convite. Além disso, trata-se também de pesquisador aberto ao trabalho dos colegas e uma pessoa de espírito agregador, com quem se pode sempre discutir ideias e com quem sempre se aprende. O artigo que é objeto desta publicação é mais um esforço em formalizar e sintetizar sua teoria da consciência, principal objeto de sua pesquisa, relacionando a filosofia da mente à ciência empírica, notadamente à neurociência, da qual Pereira Jr. tem conhecimento inquestionável, algo que não é comum em filósofos – mais afeitos, em geral à especulação teórica e conceitual, e tendentes a depositar o problema sobre a questão da linguagem e/ou da percepção. Propor um modelo para a compreensão do fenômeno da consciência que satisfaça tanto a filósofos como cientistas não é tarefa fácil, menos ainda a proposição de uma teoria original num campo hoje ainda aberto, mas intensamente disputado. Já se disse, trata-se da “última fronteira” da ciência, e pode-se facilmente vislumbrar o que pode representar, em termos dos jogos de força da sociedade, a conquista de um modelo efetivo da emergência da consciência, bem como os riscos fáusticos aí embutidos. Assim, também deve-se reconhecer que é tema merecedor de cuidados: é verdadeira caixa-de-pandora, da qual não se sabe bem o que poderá sair. Pode-se separar o saber científico das práticas sociais? 1

Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. E-mail: [email protected]

Reflexões sobre o Monismo de Triplo Aspecto

Ao propor sua teoria do Monismo de Triplo Aspecto (MTA), Pereira Jr. não se furta à busca pela contrapartida biológica de seu modelo, os “correlatos neurais da consciência”, o que lhe confere o lastro empírico; antes, o faz em sintonia com o que há de mais recente nas pesquisas sobre a neurofisiologia do cérebro, insistindo, já há anos, num movimento que está na vanguarda da pesquisa em termos globais: a importância das células gliais, especialmente os astrócitos, e a intensa corrente de íons cálcio que estes conduzem. Para se ter uma ideia do que representa tal passo, basta notar que um livro bastante ousado em termos de sua modelagem do cérebro, que é Rhythms of the Brain, de Gyorgy Buzsaky (2011) – este mesmo desafiando muitos pressupostos frequentes da neurociência ainda vigente em 2015 –, não menciona as glias mais do que três vezes. Assim, as pesquisas que sustentam o MTA, são aquelas que vêm desafiando um paradigma neurossináptico que domina, desde Ramón y Cajal, pelo menos, as pesquisas sobre o cérebro, e que resulta ainda, no mais das vezes, em investigações de caráter localizacionista e funcionalista que Maira Fróes – outra pesquisadora que vem trabalhando nos limites do paradigma presente – chamaria de neo-frenologismo. Além disso, o modelo de consciência sustentado em seu artigo coloca em relevo aquilo que, parafraseando Kant, chama mesmo de “revolução copernicana”, que é a primazia da emoção na determinação das operações da consciência (PEREIRA JR., 2015, p. 20). Tal virada inverte de maneira decisiva o movimento bottom-up, dos répteis ao homo sapiens sapiens – grosso modo –,

numa linha evolutiva que vai do sistema límbico ao

neocórtex, constituindo a razão como ponto mais alto da cadeia cognitiva ao menos desde Platão. Afilhada da crise da razão e dos limites dos modelos computacionais da mente, essa virada vem sendo realizada há duas décadas, ao menos: antes mesmo do famoso livro de Damásio, publicado nos anos 1994, o neurologista Richard Cytowic, num livro que trata da questão da sinestesia, cita um certo Dr. Ayub Ommaya, para afirmar que “a consciência é um tipo de emoção” (CYTOWIC, 1998, p. 195, tradução nossa)2. Mais ainda, Cytowic faz uma síntese surpreendente, que não desenvolverá mais – uma vez que não é seu tema principal de pesquisa: “Talvez devêssemos parar de tentar tocar com o dedo a consciência. Talvez não seja uma coisa, mas uma relação entre um si mesmo e o mundo externo. Talvez, do mesmo modo que 'gravidade' descreve as relações entre massas, talvez ‘mente’, ‘consciência’ e termos similares se refiram às

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Consciousness is a kind of emotion.

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Reflexões sobre o Monismo de Triplo Aspecto

relações entre organismo e seu ambiente”3 (CYTOWIC, 1998, p. 196, tradução nossa e grifo do autor). Os insights surpreendentes de Cytowic servem aqui de veículo àquelas que considero as virtudes e – em meu modo de construir meu pensamento sobre estes temas – as dúvidas que tenho sobre o MTA. Quanto às virtudes, estas são evidentes, e já foram apontadas acima: ousadia conceitual, virada copernicana pela primazia da emoção; modelo consistente, suportado tanto por um conhecimento amplo da história da discussão na filosofia, como por um volume grande de dados empíricos publicados em artigos recentes, do ano de 2015, inclusive. Tudo isso dá ao trabalho de Pereira Jr. um pé na história e um pé na contemporaneidade, o que mostra o caráter abrangente da pesquisa. Sua revisão histórica, que vai de Platão a Whitehead e Damásio é exemplar, enfatizando o caráter “cognitivista” e os privilégios concedidos à razão durante a maior parte do percurso do pensamento ocidental, à exceção de Spinoza, e do trio Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche – esses dois últimos incluídos na linhagem dos filósofos românticos alemães, quem em geral desconfiaram do Iluminismo. Nessa revisão, didática, gostaria de notar, porém, o uso do conceito de "ser humano", que parece datado, um tanto iluminista, e não reflete a coragem da construção teórica em jogo. Nesse comentário, ousarei substituí-lo por uma definição distinta: somos Entes Bioculturais Capazes de Linguagem (EBCL). Como tais, somos definidos inescapavelmente como entes nos quais biologia e cultura se entrelaçam, de tal modo que, como diria Merleau-Ponty (1994, 250): “o mundo linguístico e intersubjetivo não nos espanta mais, nós não o distinguimos do próprio mundo”; já no perceber o EBCL é cultura e biologia (BASBAUM, 2006), e a palavra cultura, deve-se notar é bem pouco cortejada pelo MTA. Há outra questão, entretanto: a revisão histórica deliberadamente ignora a Fenomenologia de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, bem como as contribuições de Maturana, Varela e, mais recentemente – dando continuidade às direções de pesquisa deste último – Evan Thompson, e até mesmo Alva Noe. Não se entende as razões desta recusa, já que, se o MTA entende o “Eu consciente” como “um ser situado e corpóreo” (PEREIRA JR., 2015, p. 13), seria preciso reconhecer que, nestes autores, as relações entre o EBCL e a sua circunstância encontra sua formulação mais ampla e radical, como

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Maybe we should stop trying to put a finger on consciousness. Maybe it is not a thing, but a relationship between oneself and the external world. Just as gravity describes a relationship between masses, perhaps 'mind', 'consciousness' and similar terms refer to relationships between an organism and its environment.

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Reflexões sobre o Monismo de Triplo Aspecto

um ser-aí, ou como ente corporificado e situado. O leitor se pergunta pelo porquê dessa recusa ou dessa escolha, que assume os pressupostos destes autores sem reconhecer seu legado. Entretanto, a questão que, em meu entender, é mais perturbadora no MTA, é sua ambição totalizante. Pode-se, claro, compreender que a abrangência de uma teoria seja resultado natural do amplo trajeto de pesquisa a que ela responde, como síntese e como proposição. Mas o EBCL é objeto rico demais, e, como diria Latour (2009), não há objetos puros, inequívocos na ciência. Me parece que, ao formular, pressupostos para uma interpretação do problema da consciência, há pelo menos quatro questões de caráter restritivo em relação a qualquer ambição totalizante. A primeira delas diz respeito aos próprios limites cognitivos do EBCL: tal como um tigre tem seus limites, certamente temos os nossos, e há certamente aspectos do real que sequer podemos conceber; a segunda, diz respeito aos limites sócio-históricos – ou hermenêuticos, ou epistemológicos ou paradigmáticos, como se queira –, as perguntas que não somos capazes sequer de fazer no contexto de conhecimento de certa época, tal como não seria possível que se pensasse num quadro cubista no século XVI (já tive essa discussão com Pereira Jr.: não se deve supor uma pertença a um quadro de possíveis, antes que tal possibilidade de fato exista – no caso do cubismo, no início do século XX); em terceiro lugar, há os limites determinados ao pensamento pela própria linguagem, e o real sempre será maior do que aquilo que a linguagem consegue dizer ou representar – em termos estritos, o real não é computável e qualquer modelo deve assumir um reducionismo necessário que é também o custo da metodologia científica; finalmente, desde Gödel pelo menos, deve-se assumir que não é possível, em termos lógicos, formalizar e comprovar a totalidade dos elementos do sistema. Dado, ainda, o caráter transitório da verdade científica e sua inevitável pertença a um contexto paradigmático, é preciso guardar um cuidado cético em relação a teorias totalizantes – mais ainda pelas consequências sociopolíticas das verdades parciais da ciência (como notado ao início). Entretanto, posso compreender e respeitar a ambição do MTA como consequência necessária do projeto abraçado por Pereira Jr., que é de um diálogo estrito entre filosofia da mente e neurociência visando a produção de um modelo da consciência. Para minhas próprias direções, entretanto, entendo como virtude a proposição de estratégias interpretativas mais abertas, capazes de descrever as miríades de sentidos da existência dos EBCLs (essa fórmula mesmo é parte e exemplo de tal empenho). E dessa miríade de sentidos, acredito, há de emergir um retrato mais fiel da potência e da riqueza 34

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Reflexões sobre o Monismo de Triplo Aspecto

inesgotável do ECBL. E só é possível de alguma forma ter a consciência como objeto a partir de um tal retrato. Essa é a dimensão própria do desafio, que não pode ser menor do que isso. Avançando um pouco mais nas entranhas do MTA, o aspecto que me parece mais difícil de acolher é que a emoção seja, adotando a terminologia peirceana, um primeiro. A ideia de uma hierarquia em que a emoção deva anteceder e determinar as demais operações da consciência. Se, por um lado, numa chave fenomenológica é preciso assumir a consciência como acontecimento, como um aí [corpo-mente-mundo], é somente em tal acontecência que há existência consciente, e nesse acontecer brota o mundo para mim, onde se mesclam emoção, percepção, linguagem, cultura, as pulsões e as intenções do EBCL co-implicando-se em complexa rede de feedbacks. Pereira JR., 2015, p. 8) diz que:

[...] aquilo que acontece [...] é transportado para nosso cérebro por meio de sinais informacionais, e nosso cérebro (juntamente com a totalidade de nosso corpo em interação com o ambiente físico e social) interpreta o significado o significado da informação e reage ao conteúdo da mesma com um sentimento.

Tal concepção, própria da MTA, implica render-se à cognição incorporada e situada, ou supor uma cadeia causal que não pode ser real dada a complexidade do fenômeno. A percepção, por exemplo, é ativa, e busca no mundo as informações que lhe interessam (por exemplo, ENGEL & KONIG, 1998), a partir de um contexto em que a emoção já dada é um dos fatores, que entretanto se atualiza no acontecer. Num entendimento desse tipo, só existe horizontalidade e co-pertença de funções dificilmente distinguíveis com a precisão dos objetos conceituais. Buzsaki (2011, p. 20-21) observa – e creio que Pereira Jr. não discordaria – que as funções herdadas da psicologia jamesiana para a descrição da mente muito possivelmente são ingênuas. E, embora não trabalhe com a relevância fisiológica dos astrócitos, em termos da descrição da complexidade sistêmica do cérebro, Buzsaki assume a impossibilidade de definir uma hierarquia de fluxos de informação bottom-up ou top-down – complexidade que, se li adequadamente o artigo de Pereira Jr., cairia bem ao MTA cortejar. Pereira Jr., aliás, conhece bem Walter Freeman e outros autores que examinaram modelos sistêmicos complexos para a unidade corpo-mente-mundo, de tal modo que me surpreende que o artigo proponha, de algum modo, certas hierarquias, sobretudo ao desenhar a primazia da emoção: não há, afinal, momentos em que somos capazes de observar nossas 35

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Reflexões sobre o Monismo de Triplo Aspecto

emoções, de estabelecer ainda um outro observador consciente que se instala na circunstância por sobre uma certa configuração de sentido? Porém, ainda que não me pareça factível no modo de configurar o objetoconsciência como acontecimento, conceber um estado inicial que configura as operações seguintes – e que segundo o MTA, seria a emoção –, não há como não aceitar que as emoções revestem, banham, inundam – quimicamente, inclusive, de modo menos ou mais explícito – toda e qualquer situação-consciência, toda e qualquer experiência no mundo. E, de todo modo, aceitando a condição primeira das emoções no desenho do MTA, uma conclusão interessante emerge, como relação à doutrina peirceana e suas categorias fenomenológicas: ou muito me engano, ou um entendimento adequado das operações de figura-fundo que estruturam a experiência perceptiva exige que, me parece óbvio, a primeiridade peirceana corresponda ao domínio dos qualia emocionais, ao passo que a percepção seria do domínio da segundidade – cabendo ao domínio da representação a terceiridade. Não me parece que todos os peirceanos compreendam isso. Contudo, sem deixar de ler com admiração, e certamente aprendendo a cada novo artigo, o professor Alfredo Pereira Jr., não posso deixar de sentir-me (!) ainda mais próximo daquilo que Polanyi, a partir de Merleau-Ponty, Uexkull, Rotschild, Goldstein (um pioneiro do holismo sistêmico no organismo situado) e outros, enunciou já na década de 1960, que “a consciência é o significado do corpo”. A partir do que se pode avançar, e, guardando a noção de significação para o domínio da representação, enunciar que a consciência é o sentido do EBCL. Aqui, creio, os caminhos afinal se cruzam.

Referências BUZSAKI, G. Rhythms of the brain. Oxford: Oxford University Press, 2011. CHALMERS, D. J. The Conscious Mind. In Search of a Fundamental Theory, New York: Oxford University Press, 1996. CYTOWIC, R. E. The man who tasted shapes. Cambridge, MIT Press, 1998. (primeira edição, New York: G.B. Putnam's Sons, 1993) ENGEL, A.; KÖNIG, P. Paradigm shifts in the neurobiology of perception. In: RATSCH, V.; RICHTER, M.; STAMATESCU, I. Intelligence and artificial intelligence: an interdisciplinary debate. Berlin: Springer, 1998. FLUSSER, Vilém: Ensaio sobre a fotografia - para uma filosofia da técnica. Lisboa: Relógio D´água,1998. LATOUR, B. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 2009.

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Reflexões sobre o Monismo de Triplo Aspecto

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994. PEREIRA JR., A. O Conceito de Sentimento no Monismo de Triplo Aspecto. Kínesis, Edição Especial – Debate, v. 7, n. 15, p. 1-24, 2015. BASBAUM, S. Consciousness and Perception: The Point of Experience and the Meaning of the World We Inhabit. Revista Eletrônica Informação e Cognição, v.5, n.1, p. 181-203, 2006. POLANYI, M. The structure of consciousness. Brain, Vol. LXXXVIII, p. 799-810, 1965. Disponível em: .

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O SENTIMENTO NO MONISMO DE TRIPLO ASPECTO: PROBLEMAS E INCERTEZAS Saulo de Freitas Araujo1

O artigo de Alfredo Pereira Jr. é um texto realmente instigante, no sentido de obrigar o leitor a refletir sobre a noção mesma de sentimento e do seu estatuto na ciência contemporânea. De fato, o tópico do sentimento, incluindo seu papel na determinação das ações humanas, é fundamental para qualquer teoria sobre a natureza humana. Dada a impossibilidade, porém, de fazer um comentário detalhado de cada parágrafo do texto, vou me ater aqui a alguns aspectos que me parecem cruciais para a proposta do autor. Meu objetivo principal é apontar alguns problemas de natureza teórico-conceitual que representam desafios e podem se constituir como obstáculos à realização de tal proposta. Em primeiro lugar, há uma simplificação histórica excessiva, que pode induzir o leitor a uma compreensão equivocada das investigações anteriores sobre o tema. Ao longo de toda a história da psicologia, muitos autores têm criticado essa ênfase no aspecto puramente racional ou cognitivo da mente humana, defendendo claramente o sentimento como base para a vida mental. Wundt & James, por exemplo, foram defensores da base afetiva de toda a vida mental consciente (cf. JAMES, 1890/1981; WUNDT, 1911). Mesmo na tradição behaviorista, os processos afetivos nunca foram negligenciados. Por exemplo, Watson, Tolman e Skinner, cada um à sua maneira, estudaram

sistematicamente

as

emoções,

reconhecendo-as

como

fenômenos

psicológicos por excelência, que deveriam ser explicados de acordo com seus respectivos modelos teóricos (cf. SKINNER, 1953; TOLMAN, 1923; WATSON, 1924). Além disso, os relatos verbais sobre a experiência de primeira pessoa nunca foram completamente eliminados, mas, ao contrário, foram incorporados àqueles modelos como dados empíricos válidos. É bem verdade que a psicologia cognitiva, baseada no modelo do processamento de informação, teve enormes dificuldades para lidar com o problema dos processos afetivos e sua ligação com a consciência, como fica claro nos principais livros de referência geral da área (e.g., EYSENCK & KEANE, 2005; STERNBERG, 2010), mas isso não significa que as emoções tenham sido 1

Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]

O sentimento no monismo de triplo aspecto: problemas e incertezas

negligenciadas enquanto tais na psicologia como um todo, como é afirmado na introdução. No que diz respeito à história da filosofia, o problema reaparece. A afirmação de que: “a tradição filosófica ocidental concebeu a consciência como processo de pensamento [...] no qual se configura um Eu cognitivo [...]” (p. 2)2 é duplamente problemática. Primeiro, a valorização dos sentimentos como cerne da vida mental e como base das ações humanas não é algo raro na tradição filosófica ocidental. Antes e depois de Espinosa, muitos filósofos defenderam a autonomia da vida afetiva em relação à razão. Basta lembrar aqui a célebre frase de Hume, segundo a qual “a razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas” (HUME, 1739/2001, p. 451). Segundo, a referência ao cogito cartesiano e ao Eu transcendental de Kant como uma espécie de “Eu cognitivo” que se contrapõe a um “Eu sentiente” da biologia contemporânea me parece conceitualmente equivocada, pois confunde os planos lógico e psicológico. O sujeito epistêmico, tanto em Descartes quanto em Kant, não é o sujeito psicológico de carne e osso, mas apenas um sujeito formal, abstraído de todas as suas características empíricas, que condiciona todo o processo de conhecimento. Por outro lado, isso não significa que Descartes e Kant tenham desconsiderado a consciência empírica e sua relação com os sentimentos. Tanto As Paixões da Alma (DESCARTES, 1649/1953) quanto a Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático (KANT, 1798/2000) são exemplos claros da valorização e da influência dos afetos na vida mental e nas ações humanas. Desfeita, pois, a simplificação histórica e tomando em conjunto a história da psicologia e da filosofia, a proposta do monismo de triplo aspecto para o estudo dos sentimentos soa bem menos radical e inovadora do que parece à primeira vista. Ainda que seja possível afirmar que os problemas de natureza histórica acima levantados são periféricos e facilmente contornáveis em uma apresentação mais sistemática da proposta teórica em questão, o mesmo não pode ser dito sobre a segunda classe de problemas que passo agora a ressaltar. Trata-se agora de dificuldades conceituais trazidas pela inserção da consciência e do sentimento na natureza, que é parte essencial do Monismo de Triplo Aspecto (MTA), tal como concebido por Pereira Jr. (2013). De acordo com o autor, existe uma única realidade – a natureza – que se manifesta em três aspectos distintos: o físico, o informacional e o consciente. Desta 2

As referências que apresentam apenas a numeração de página dizem respeito ao artigo de Alfredo Pereira Jr. que é objeto de comentário nessa edição da Kínesis.

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forma, “a experiência consciente é um aspecto fundamental da realidade, que não pode ser nem separada nem reduzida aos outros dois aspectos” (PEREIRA JR., 2013, p. 300). É nesse contexto que Pereira Jr. insere o sentimento, relacionando-o com a consciência. Para ele, “os sentimentos emergem a partir de processos cognitivos, quando os conteúdos da informação são sentidos, e se tornam conscientes” (p. 3, itálico no original). Aqui, torna-se evidente que o MTA e sua teoria da consciência/afetividade dependem em algum grau da noção de emergência, já que, por princípio, ele postula a irredutibilidade dos três aspectos, sem abrir mão do naturalismo. No entanto, ao contrário do que era de se esperar, o texto não aborda o problema da emergência. Por exemplo, não fica claro se o emergentismo implícito no MTA é do tipo fraco ou forte, com todas as implicações decorrentes de tal escolha (STEPHAN, 1999). Tampouco fica claro como a questão da causalidade descendente (downward causation), fundamental para qualquer discussão sobre processos emergentes na filosofia da mente (cf. BEDAU, 2008; KIM, 1992), se aplicaria ao caso dos sentimentos. Afinal, se os sentimentos não tivessem nenhum poder causal, eles seriam meros epifenômenos, algo que contraria os princípios do MTA. Da mesma forma, não há qualquer indicação no texto de como a tese da emergência dos sentimentos (e da consciência) poderia satisfazer pelo menos alguns dos requisitos básicos para o uso adequado do conceito de emergência, tal como foram propostos por Hoyningen-Huene (2011). Na ausência de uma discussão pormenorizada e de exemplos mais concretos, a simples menção à noção de emergência transforma-se em um conceito muito vago e genérico, como eu observei anteriormente em relação ao caso de Searle (ARAUJO, 2013). A segunda dificuldade conceitual diz respeito à relação entre consciência sentimento. De acordo com Pereira Jr., ambos são idênticos, uma vez que um é definido pelo outro: “quando o conteúdo informacional dos processos cognitivos é sentido ocorre a consciência” (p. 13). Ou seja, não há sentimento sem consciência e nem consciência sem sentimento. Acontece que o autor restringe toda a discussão dos processos conscientes à consciência fenomenal (phenomenal awareness), incluindo aí a questão dos qualia, mas não há nenhuma menção a outros aspectos da consciência que vem sendo sistematicamente estudados na filosofia da mente e na ciência cognitiva, como a consciência de acesso (cf. BLOCK, 1995; GÜZELDERE, 1997). Desta forma, seria mais adequado dizer que o MTA apresenta uma teoria da consciência fenomenal, mas não uma teoria da consciência em geral. Mas não é só isso. Se o critério para atribuir sentimento a um sistema é a sua capacidade de ter a sua estrutura física/material afetada 40

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pela própria informação que ele processa, então fica difícil sustentar a tese de que todo sentimento é consciente, pelo menos no nível mais básico das sensações e do processamento de informação. A psicologia cognitiva experimental e a neurociência cognitiva têm mostrado evidências empíricas convincentes, através do método do priming, de que existe um nível inconsciente de processamento e interpretação da informação que afeta as operações materiais do sistema (OCHSNER, CHIU, & SCHACTER, 1994; FROUFE, 1997; SCHMIDT & VORBERG, 2006). Essas evidências empíricas colocam em dificuldade a tese da identidade entre sentimento e consciência, tal como estabelecida pelo MTA. Ainda em relação à definição de sentimento, há no texto um equívoco lógico, quando Pereira Jr. afirma que “um evento é transportado para nosso cérebro por meio de sinais informacionais, e nosso cérebro [...] interpreta o significado da informação e reage ao conteúdo da mesma com um sentimento” (p. 8). Ora, se levarmos em consideração a própria afirmação seguinte do autor, segundo a qual “os sentimentos são exclusivos à perspectiva de primeira pessoa” (p. 13), fica claro que na primeira passagem há uma confusão entre o cérebro e a pessoa. Afinal, é a pessoa que interpreta e sente as coisas, não o cérebro (ARAUJO, 2012). Em outras palavras, trata-se aqui de uma falácia mereológica, tal como definida por Bennett e Hacker (2003). Isso nos leva à terceira dificuldade conceitual: a ausência de uma discussão sobre o lugar dos processos volitivos no MTA. Se o sentimento é o elemento definidor da consciência, então seria de se esperar que os processos volitivos fossem tratados como derivações secundárias dos processos afetivos. No entanto, na classificação dos sentimentos apresentada no texto não há qualquer menção à dimensão volitiva da consciência. O leitor se vê, então, diante de uma incerteza: ou o MTA pretende deslocar os processos volitivos para a esfera do inconsciente ou ele aceita a existência de processos volitivos conscientes. No primeiro caso, ele terá que apresentar uma outra explicação para as evidências empíricas trazidas pela psicologia cognitiva contemporânea, como, p. ex., aquelas relativas aos estudos do raciocínio e da tomada de decisões (EYSENCK & KEANE, 2005; STERNBERG, 2010). No segundo, ele terá que reduzir os processos volitivos aos afetivos ou então abandonar a tese da identidade entre o sentimento e a consciência. Seja como for, será necessário abordar esse problema no futuro. O último aspecto que eu gostaria de ressaltar é o da relação da teoria dos sentimentos no MTA e os dados empíricos da neurociência contemporânea. Pereira Jr. 41

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cita uma série de evidências recentes sobre o papel das células gliais na atividade mental como um todo. Mais adiante, afirma que “na perspectiva sugerida por estes resultados, os correlatos da consciência devem ser identificados no domínio das interações neuroastrocitárias (p. 17, itálicos no original). Ora, se as células gliais estão envolvidas nas atividades mentais como um todo, não há motivo para buscar nelas os correlatos específicos da consciência. Além disso, não fica claro em que sentido o MTA depende dessas evidências neurocientíficas para se manter como teoria da mente, uma vez que em nenhum momento da caracterização dos sentimentos houve uma indicação de como essa teoria deveria se relacionar com os dados empíricos da neurociência. Em suma, eu penso que o MTA, no seu estado atual, é uma hipótese ousada, que pode impulsionar um programa de pesquisa. No entanto, para que os dados empíricos possam ter relevância teórica, é preciso que o MTA se desenvolva teoricamente, no sentido de apontar claramente suas implicações empíricas. As questões aqui levantadas são apenas alguns exemplos de problemas a serem enfrentados no futuro por uma teoria mais amadurecida no plano conceitual. Há outras, que certamente já estão no horizonte de Pereira Jr, mas que as limitações de espaço me impedem de desenvolver aqui. Seja como for, o futuro do MTA depende de seu sucesso nesse processo de amadurecimento enquanto uma teoria da mente.

Referências ARAUJO, S. F. Materialism’s eternal return: recurrent patterns of materialistic explanations of mental phenomena. In: MOREIRA-ALMEIDA, A.; SANTOS, F. S. (Eds.). Exploring frontiers of the mind-brain problem New York: Springer, p. 3-15, 2012. ______. Searle’s new mystery, or, how not to solve the problem of consciousness. Rivista Internazionale di Filosofia e Psicologia, v. 4, n. 1, p. 1-12, 2013. BEDAU, M. Downward causation and autonomy in weak emergence. In: BEDAU, M.; HUMPHREYS, P. (Eds.). Emergence: Contemporary readings in philosophy and science. Cambridge, MA: The MIT Press, p. 155-188, 2008. BENNETT, M. R.; HACKER, P. M. Philosophical foundations of neuroscience. Malden, MA: Blackwell, 2003. BLOCK, N. On a confusion about a function of consciousness. Behavioral and Brain Sciences, v. 18, n. 2, p.227-287, 1995. DESCARTES, R. Les passions de l’ame. In: BRIDOUX, A. (Ed.). Descartes: Oeuvres et lettres. Paris: Gallimard, p. 691-802, 1953. (Trabalho original publicado em 1649). EYSENCK, M.; KEANE, M. Manual de psicologia cognitiva. 5a ed. Porto Alegre: Artmed, 2005. FROUFE, M. El inconsciente cognitivo: la cara oculta de la mente. Madrid: Biblioteca Nueva, 1997.

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COMENTÁRIO SOBRE “O CONCEITO DE SENTIMENTO NO MONISMO DE TRIPLO ASPECTO” DE ALFREDO PEREIRA JR. Cláudia Passos-Ferreira1

Embora muito esforço já tenha sido dispendido na tentativa de resolver o problema da a consciência, a consciência ainda é um aspecto enigmático da nossa vida mental. Nesse sentido, qualquer tentativa de compreender a consciência é valiosa. A principal contribuição de Pereira nesse artigo é propor uma solução monista ao problema mentecorpo, que possa, ao mesmo tempo, explicar a consciência, e garantir um papel central aos estados afetivos na caracterização da consciência. Dois projetos são relevantes para qualquer teoria que almeje explicar a consciência. Primeiro, a teoria proposta deve explicar qual é o lugar da consciência na natureza; ou seja, deve oferecer uma explicação sobre como a consciência emerge a partir do mundo físico. Segundo, a teoria deve descrever o que é a consciência, e deve propor um modelo sobre os atributos relevantes da consciência. O artigo de Pereira é uma tentativa de elaborar suas próprias ideias sobre esses dois projetos da consciência. Abordarei ambos os projetos. Problema 1. Em relação ao tópico do problema mente-corpo, Pereira desenvolve sua própria versão de uma teoria monista não reducionista: o Monismo de Triplo Aspecto (MTA). Segundo Pereira, o monismo que ele defende evita os problemas de uma visão reducionista; permite acomodar os estados mentais da experiência em primeira pessoa; e é compatível com os recentes dados empíricos das neurociências. Segundo Pereira, a natureza (ou a totalidade da realidade) é composta de três aspectos: energia (matéria), informação (forma) e consciência (sentimentos), e cada um desses aspectos é irredutível ao outro. Essa estrutura tripla está presente também em nosso cérebro: processos físicoquímicos; processos informacionais; e processos conscientes (processos afetivos). Caracterizados aproximadamente na ontologia de Pereira, os processos cerebrais são processos físico-químicos que, eventualmente, são transformados em processos informacionais (com uma configuração semântica e formal), e, em contextos específicos, os

Professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. E-mail: [email protected] 1

Comentário sobre “O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto”

processos conscientes emergem desses processos informacionais. Isso significa que os processos informacionais específicos ocorrem na presença de experiências fenomenais – o que Pereira chama de ‘sentimentos’. De acordo com Pereira, a informação é um processo cognitivo que se inicia como um processo físico-químico, e, é transformado num sistema de sinais com uma configuração sintática e semântica. A principal motivação de Pereira para propor o monismo de triplo aspecto é a compatibilidade deste com um lugar para a consciência na natureza, e com os recentes achados científicos que corroboram o papel das emoções e dos sentimentos no cérebro e nos processos conscientes. No entanto, Pereira não esclarece em que sentido sua teoria poderia explicar as correlações entre experiências conscientes e processos físicos (cerebrais) de um modo melhor que outras já conhecidas posições em filosofia da mente, em particular as posições que defendem o dualismo de propriedades ou a teoria de duplo aspecto. As teorias de duplo aspecto – como o monismo neutro defendido por Nagel (1986) ou o dualismo naturalista de Chalmers (1996) – são comprometidas com a visão de que existem certas entidades neutras que podem se apresentar sob o aspecto do mental ou sob o aspecto do físico. Nessa visão, os dois aspectos – propriedades mentais e propriedades físicas – são fundamentais e não redutíveis um ao outro. É claro que mesmo o dualismo de aspectos é controverso porque está em conflito com o principio logico da navalha de Ockham; segundo o qual, as entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade. Em filosofia, acreditamos que, outras coisas mantidas iguais, uma teoria ontologicamente mais parcimoniosa é melhor. Mas os dualistas, ao menos, apresentam argumentos de que somente dois aspectos são necessários. Nesse sentido, a teoria de triplo aspecto de Pereira corre o risco de promover uma violação ainda maior da navalha de Ockham. Uma teoria de triplo de aspecto multiplica ainda mais as propriedades fundamentais do que as teorias de duplo aspecto. Mais importante ainda, não está claro que Pereira tenha mostrado que todos os três aspectos propostos sejam necessários. Aparentemente, uma teoria de duplo aspecto pode explicar o fenômeno em questão. Uma vez que temos o físico e o mental, não parece claro porque precisaríamos postular um terceiro aspecto fundamental que corresponderia à informação. Chalmers (1996), por exemplo, também oferece um papel central à informação, mas ele não postula um terceiro aspecto fundamental em sua ontologia. Segundo Chalmers, estados

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informacionais são estados abstratos que podem ser realizados fisicamente ou fenomenalmente. A realização física é o modo mais comum da informação encontrada no mundo, mas também podemos encontrar a informação realizada por estados experienciais. Na perspectiva de Chalmers (1996, p. 267, tradução nossa), a informação é o link que conecta processos físicos a processos conscientes, como ele afirma: “sempre que encontramos um espaço informacional realizado fenomenalmente, encontramos o mesmo espaço informacional realizado fisicamente”. A teoria de Chalmers postula dois aspectos fundamentais, um para o físico e outro para a consciência, sem exigir um terceiro aspecto. Pereira não esclarece porque seria necessário introduzir a informação como uma terceira entidade fundamental. Na ausência de razões convincentes, esse terceiro aspecto parece não exercer papel explicativo. A informação pode ser importante para a teoria da consciência, mas seu papel parece ser o de conectar dois aspectos fundamentais: a consciência e o físico. Problema 2. Em relação ao tópico das propriedades da consciência, Pereira propõe uma teoria afetiva baseada na definição de consciência proposta por Nagel (1984), formulada em termos da expressão ‘what-it-is-like’2. Pereira oferece uma definição naturalista da expressão ‘what-it-is-like’ em termos de ‘sentir’ ou ‘sentimentos’. Ele afirma que aquilo que caracteriza a consciência são processos afetivos que podem ser capturados pelas palavras ‘sentir’ ou ‘sentimentos’; em suas palavras: ‘o sentir é a marca da consciência’. Pereira sugere que as expressões ‘what-it-is-like’ – no sentido proposto por Nagel (1974) – estão intrinsecamente relacionadas a natureza da consciência e devem ser associadas com a noção de ‘sentimentos’. Contrário à tradição racionalista, Pereira considera os ‘sentimentos’ como um aspecto subjetivo crucial da consciência. A noção de consciência (ou de estados conscientes), como muitos filósofos atualmente concebem, cobre uma variedade de fenômenos mentais e pode ser conceitualizada de modos distintos, que variam desde ‘estados qualitativos (qualia), ‘estados fenomenais’, ‘estados what-it-is-like’, até a ‘consciência de acesso’, introspecção’ e ‘consciência narrativa’. A teoria afetiva defendida por Pereira é uma tentativa de definir a consciência de um modo mais restrito, em termos dos ‘estados ‘what-it-is-like’.

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Como a tradução para o português (ver nota 2) dessa expressão é problemática, optei por manter a expressão no original.)

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Eu gostaria de levantar algumas questões em relação a teoria afetiva de Pereira. A primeira questão é em relação ao uso terminológico que Pereira faz das expressões ‘whatit-is-like’, e seu conceito abrangente de sentimento. A segunda é relação à naturalização que Pereira propõe das expressões ‘what-it-is-like’ em termos de ‘sentimentos’ como uma teoria passível de explicar toda e qualquer experiência consciente. Recentemente, alguns filósofos têm defendido (contrário ao que Pereira afirma) que ‘what-it-is-like’ não é uma expressão técnica em filosofia da mente (SNOWDON, 2010; STOLJAR, 2015; FARRELL, 2015). O discurso do ‘what-it-is-like’ faz parte do discurso ordinário de língua inglesa. Algumas vezes, esse discurso aparece em contextos em que o seu uso não está associado com o discurso sobre a consciência (SNOWDON, 2010). Porém, o discurso do ‘what-it-is-like’ é rotineiramente usado pelos falantes de língua inglesa para expressar proposições sobre experiências, e sobre as experiências dos sujeitos psicológicos3 Em filosofia da mente, o discurso do ‘what-it-is-like’ tem sido usado para definir a consciência. Há uma tendência em caracterizar os estados conscientes como estados de ‘what-it-is-like’. Embora o termo tivesse sido inicialmente usado para associar experiência e consciência, Nagel (1974) foi o primeiro a definir a consciência nos termos da expressão ‘what-it-is-like’ e, desde então, sua definição tem sido bastante influente na filosofia da mente. Nas palavras de Nagel (1974, p. 519): “um organismo tem estados conscientes se e somente se existe algo que é como ser esse organismo – algum coisa que é como ser para esse organismo”. Inspirado pela teoria afetiva da consciência de Damásio (2000), Pereira identifica as expressões ‘what-it-is-like’ com ‘sentimentos’. Como ele mesmo admite, essa associação pode ser problemática. ‘Sentimento’ é um termo vago, e no uso ordinário, o termo se refere a um subconjunto de experiências conscientes. Tipicamente, o termo é usado para se referir a sensações corporais (quente, frio, fome, sonolência), sensações tácteis, emoções e estados hedônicos (prazer e dor). Pereira adota um sentido mais abrangente de ‘sentimento’; e distingue cinco tipos de sentimentos, incluindo sensações, estados hedônicos, percepções,

A expressão é ‘what-it-is-like’ particularmente dominante em inglês, contudo, sua tradução para o português – como Pereira chama atenção – e mesmo para outras línguas, não é tão simples. A tradução para o português é problemática. Usualmente, traduzimos as frases ‘what-it-is-like’ em outras expressões como, por exemplo, 3

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emoções, certos tipos de pensamentos (crenças) e sentimentos existências. O sentido abrangente está muito longe do significado ordinário do termo, levantando questões sobre o quão útil pode ser apelar para a noção de ‘sentimento’ na caracterização da consciência. Recentemente, Stoljar (2015) apresentou uma visão similar. Stoljar defende uma teoria afetiva naturalista, segundo a qual as sentenças com expressões ‘what-it-is-like’ expressam relações afetivas entre indivíduos e eventos. Em certos contextos (em particular aqueles em que a consciência está envolvida), essas relações afetivas são relações experienciais, definidas em termos de ‘sentimentos’ (‘feelings’). Como afirma Stoljar (2015, no prelo), “uma relação experiencial ocorre entre um individuo e um evento somente no caso em que o individuo se sente de um certo modo em virtude do evento”. Assim como Pereira, Stoljar adota uma noção abrangente de ‘sentimento’, mas sua teoria conta com uma estrutura adicional. Na visão de Stoljar (2015, no prelo): “estar num estado consciente é uma propriedade complexa que consiste num relação entre um estado e um sujeito, a qual implica que o sujeito se sinta de um certo modo em virtude de estar nesse estado”. Nesse sentido, a perspectiva de Stoljar parece oferecer um elemento relacional que não está presente na perspectiva de Pereira: uma relação entre um estado consciente e o sujeito desse estado. Qualquer teoria afetiva da consciência deve fazer frente ao problema de acomodar vários tipos de experiências da consciência que não se assemelham a ‘sentimentos’, no sentido ordinário do termo. Muitos filósofos, por exemplo, aceitam que existe uma fenomenologia cognitiva: experiências fenomenais associadas a pensamentos conscientes. Essas experiências não parecem envolver sentimentos no sentido ordinário do termo. No entanto, a definição proposta por Pereira explicitamente inclui certos tipos de pensamentos (como o sentimento de acreditar). Pereira considera essas experiências como sentimentos no sentido amplo do termo. Mas existem experiências associadas a outros estados conscientes, como a introspecção, os sonhos vividos, a imaginação, a fenomenologia do agir e a fenomenologia moral (KRIEGEL, 2015), que não parecem estar associadas a ‘sentimentos’, no sentido usual do termo. Diferentemente da fenomenologia cognitiva, estas experiências não se adequam naturalmente em qualquer das cinco categorias

‘como é ser’ ou ‘como é se sentir’. Essas expressões em português estão intimamente relacionadas a frases em que figuram o adverbio interrogativo ‘como’ (‘how’) em inglês, tal como ‘como se sente’ (‘how does it feel’).

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sugeridas por Pereira; elas permanecem, portanto, não explicadas pela teoria de Pereira. Alguns outros aspectos também permanecem não esclarecidos na teoria de Pereira. Não está claro como uma teoria afetiva pode ser combinada com o Monismo de Triplo Aspecto (MTA). Pereira afirma que estar consciente é ‘sentir o significado da informação’, e que ‘os conteúdos da informação são conscientes quando são sentidos’. Mas o que é ‘o significado da informação’? Seria uma representação mental? Também não está claro o que significa ‘sentir o significado’. Significaria que um estado informacional é consciente quando um sentimento é associado a ele? Seria a informação um processo consciente quando ela tem um significado particular associado a ela em contextos específicos? Estas ideias ainda carecem de esclarecimentos futuros. Referências CHALMERS, D. J. The Conscious Mind. In Search of a Fundamental Theory, New York: Oxford University Press, 1996. DAMÁSIO, A. The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the Making of Consciousness. New York: Harcourt., 2000. FARRELL, J. What it is like’ talk is not technical talk, 2015. Disponível em: . Acesso em 10 ago. 2015. KRIEGEL, U. The Varieties of Consciousness, New York: Oxford University Press, 2015. NAGEL, T. “What Is It Like to Be a Bat?”, Philosophical Review, LXXXIII, 1974. ______.The View from Nowhere, Oxford: Oxford University Press, 1986. PEREIRA JR., A. Triple-Aspect Monism: A Conceptual Framework for the Science of Human Consciousness. In: PEREIRA JR. A.; LEHMANN, D. (Eds.), The Unity of Mind, Brain and World: Current Perspectives on a Science of Consciousness. Cambridge, UK: Cambridge University Press, p. 299-337, 2013. ______. O Conceito de Sentimento no Monismo de Triplo Aspecto. Kínesis, Edição Especial – Debate, v. 7, n. 15, p. 1-24, 2015. SNOWDON, P. ‘The What-it-is-Like-ness of Experience’. Southern Journal of Philosophy, v. 48, n. 1, p. 8-27, 2010. STOLJAR, D. ‘The Semantics of ‘What it’s like’ and the Nature of Consciousness’, 2015. (no prelo in Mind). VAN GULICK, R. 2014, "Consciousness", The Stanford Encyclopedia of Philosophy Edward N. Zalta (ed.), 2014. Disponível em: . Acesso em 1 ago. 2015.

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PROVOCAÇÕES AO ARTIGO “O CONCEITO DE SENTIMENTO NO MONISMO DE TRIPLO ASPECTO” João de Fernandes Teixeira1

Depois de ler o artigo de meu colega e amigo Alfredo Pereira Jr não poderia deixar de ter algumas dúvidas. Afinal, é um texto muito instigante e com um estilo muito elegante. Não tenho questões a formular, mas apenas algumas provocações. Minha questão é saber até que ponto a ideia de sentir e de sentimento realmente resolve o problema da consciência. A questão das relações mente-corpo foi reformulada e reeditada na Filosofia da Mente contemporânea e passou a ser chamada de problema do hiato explicativo. Ele é a última versão do problema que nos foi herdado de Descartes: como reunir o mundo subjetivo e o objetivo depois de tê-los separado tão radicalmente? A expressão hiato explicativo foi criada pelo filósofo americano Joseph Levine, em 1983. O hiato explicativo enuncia que entre os neurônios e a consciência subjetiva há um abismo intransponível, gerado pela incapacidade da neurociência de representar a passagem entre o físico e o mental. Os neurônios podem ser canais para muitos fenômenos eletroquímicos, mas eles próprios não são elementos que compõem o pensamento. Não há como representar a fronteira entre a subjetividade, sempre descrita em primeira pessoa, e o mundo objetivo da neurociência, sempre em terceira pessoa. Será que a ideia de sentir cumpre essa tarefa? Ou será que ela fica reservada ao sentir consciente? Como sentir sem ter consciência do que está sendo sentido? Neste caso, estaríamos andando em círculos, não apenas em relação ao problema do hiato explicativo como também do hard problem de Chalmers (1996). Penso que o hard problem é apenas uma charada filosófica. Você concordaria com isso?

Referências CHALMERS, D. J. The Conscious Mind. In Search of a Fundamental Theory, New York: Oxford University Press, 1996. LEVINE, J. Materialism and Qualia: The Explanatory Gap. Pacific Philosophical Quarterly, v. 64, n. 4, October, p. 354–361, 1983.

Professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Email: [email protected] 1

Provocações ao artigo “O conceito de sentimento no Monismo de Triplo Aspecto”

PEREIRA, JR. A. O Conceito de Sentimento no Monismo de Triplo Aspecto. Kínesis, Edição Especial – Debate, v. 7, n. 15, p. 1-24, 2015.

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EXPLICAÇÃO METAFÍSICA, CAUSAÇÃO E INTERAÇÕES NEUROASTROCITÁRIAS: UMA RÉPLICA A “O CONCEITO DE SENTIMENTO NO MONISMO DE TRIPLO ASPECTO” Samuel de Castro Bellini-Leite1

O Monismo de Triplo-Aspecto (MTA) pretende propor uma metafísica da mente com um lugar explicativo para a consciência. Ao mesmo tempo em que está atento à multiplicidade de níveis ontológicos necessários para promover uma descrição completa da mente, o MTA tenta propor uma unidade. Tenho certeza que essa empreitada aparentemente paradoxal será alvo de críticas de outros comentaristas, mas, este para mim não está dentre os problemas principais da teoria. Acredito que existem três problemas principais com o MTA e o objetivo desse comentário é focar nesses problemas para possivelmente ajudar Alfredo Pereira Jr. a aprimorar o MTA. O primeiro problema não é exclusivo ao MTA, ele perpassa por todas as teorias “não redutivas” contemporâneas (das quais já tive contato), mas a forma como ele surge no MTA chega a ser esclarecedora, de tal maneira que eu apenas tenha o notado pelo estudo do mesmo. Trata-se da descrição do nível da consciência de uma forma não redutiva; não acredito que o MTA tenha conseguido atingir essa descrição e a primeira seção é dedicada a explicar a razão. Um segundo problema essencial para mencionar é o da causação. Um dos principais objetivos explicativos de uma metafísica da mente é lidar com a forma como aspectos conscientes se relacionam de uma forma causal com aspectos físicos e informacionais. Nesse caso acredito que o MTA se complica muito mais do que necessário e tento mostrar como há um modelo de causação simplificado, mas com o mesmo poder explicativo para o MTA. Por fim, um problema que o MTA vem carregando como exclusivamente seu é a relação dos conceitos relacionados à afetividade com a forma com que a consciência é mapeada na atividade de redes neuroastrocitárias. Mantive-me esperançoso de que o artigo alvo pudesse conter a solução para essa relação, mas como veremos na última seção, encontramos complicações. 1

Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

– UFMG. E-mail:

Explicação metafísica, causação e interações neuro-astrocitárias

1. Monismo (não?) redutivo

A tarefa mais difícil para qualquer metafísica da mente contemporânea é propor uma descrição completa da consciência sem cair num reducionismo absoluto. Muitos filósofos que trabalham na área já estão convencidos de que um fisicalismo completo, como o de identidade (token ou type) ou eliminativismo, apesar de atraentes a primeira vista, são pouco explicativos. Queremos poder dizer mais sobre a consciência e o monismo não redutivo tem sido uma das propostas mais elegantes para atingir esse objetivo. Mas iremos utilizar o MTA para mostrar como há uma inegável assimetria de explicação entre os três níveis propostos. Seguindo a Figura 1 do artigo alvo temos a camada física (azul), a camada informacional (verde) e a camada da consciência (vermelha). A camada física é a mais segura, todos (os filósofos sérios) concordam que ela existe e concordam que existem leis físicas e químicas para descrevê-la, ela pode ser descrita de forma independente das outras. Não é atoa que os fisicalistas gostariam de manter apenas essa camada. A camada azul já não é tão consensual, mas vem se tornando cada vez mais necessária em descrições da mente. Muito interessantemente, e assim eu notei o problema, a camada informacional pode ser descrita tanto em si mesma, digamos por meio da teoria matemática da comunicação de Shannon e Weaver (1949), quanto em referência à camada física. Podemos completamente retirar os neurônios e áreas cerebrais da discussão e teremos uma linguagem para descrever processos informacionais em si (se seguirmos Shannon e Weaver). Podemos, com a teoria da informação, por exemplo, identificar ruídos num canal de uma comunicação específico entre cérebro e ambiente (HILBERT, 2012). Isso torna a camada azul um excelente acréscimo para uma metafísica da mente que ao mesmo tempo pode ser descrita em si e em relação à camada de baixo. Entretanto, a mesma simetria deveria ser encontrada para o nível da consciência, mas isso o MTA e nem nenhuma teoria contemporânea conseguiu estabelecer. No artigo alvo não há uma explicação do nível consciente em si, como pode ser feito para os outros dois níveis, a explicação do último nível ou é remetida para os outros dois ou se mantem na fenomenologia. Mas a fenomenologia não pode ser o explanans de uma metafísica da mente, pois ela já é o explanandum.

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O objetivo de uma metafísica da mente é precisamente promover uma metafísica para a fenomenologia, não o de reproduzir os conceitos fenomenológicos. O que falta ao MTA é uma linguagem para descrever a consciência da mesma forma que há uma linguagem para descrever a camada informacional e outra própria para descrever a camada física, e não é nem mesmo necessário que esta seja formal como a física ou a teoria da comunicação, só precisa existir! Podemos utilizar as palavras do autor como exemplo. Pereira Jr. (2015, p. 1) afirma: “[...] quando a informação afeta a estrutura material de um sistema, emerge o sentimento”. Nesse caso o sentimento é explicado em termos da informação e da matéria. A definição de consciência está ligada ao sentir, mas qual é a metafísica do sentir? A descrição dos tipos de sentimento (sensações básicas, sentimentos cognitivos, perceptivos, emocionais e de acontecimento) é pura fenomenologia. A pergunta ‘o que é a consciência?’ é transferida para a pergunta ‘o que é o sentimento?’, mas não temos uma resposta metafísica para a segunda. Esse paragrafo resume como tudo que Pereira Jr. pode nos oferecer é uma resposta redutiva ou uma resposta fenomenológica. Em Itálico o que considero fenomenológico e em negrito redutivo.

No MTA, o sentimento não seria uma representação mental, e sim uma experiência vivida. “Aquilo que acontece” (o “what happens” do título do livro), ou seja, um evento, é transportado para nosso cérebro por meio de sinais informacionais, e nosso cérebro (juntamente com a totalidade de nosso corpo, em interação com o ambiente físico e social) interpreta o significado da informação e reage ao conteúdo da mesma com um sentimento. (PEREIRA JR., 2015, p. 8)

A única metafísica da consciência que temos nesse paragrafo é “um evento”, mas evidentemente essa expressão sozinha não tem o menor poder explicativo. Na verdade, apesar do modelo de dualismo de substância ser falso, ele é um dos poucos que realmente têm poder explicativo para a camada da consciência. Consciência é entendida como alma, uma substância a qual tem propriedades como a de ser sem extensão, individual, indivisível, dentre outras. Essa é uma descrição não redutiva, entretanto, ela também propõe uma nova substância. Acredito que a camada da consciência deva ter a mesma simetria que a camada informacional tem em relação à física. A informacional é ao

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mesmo tempo explicada em termos da física, como é em si mesma. O primeiro passo falta ao dualismo e o segundo passo falta ao MTA.

2. Causação simplificada

Uma teoria que lide com o problema mente-corpo necessariamente precisa esclarecer seu modelo de causação. No artigo alvo PEREIRA JR., na Figura 8, resume um modelo de causação. O modelo é bastante interessante, mas neste não fica claro como ocorre a interação entre os três aspectos. Não fica claro se Pereira Jr. abandona o modelo de causação proposto em Pereira Jr. (2013) (reapresentado pela Figura A). Como este último se dedica à interação entre os três aspectos, focarei nele.

Figura A – Figura representativa do modelo de causação elaborado em Pereira Jr. (2013). As setas laranjas representam “affective feelings” e “sensitive feelings”.

Pereira Jr. (2013) propõe que entre cada nível, no mesmo estado, não há causação, justificando assim um dos elementos que tornam esta proposta um monismo. Se cada camada é um aspecto de si própria não faz sentido falar em causação entre elas em um mesmo momento. Entretanto, um elemento físico em tempo 1 pode causar outro elemento

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em tempo 2. A explicação poderia parar por aí e já teríamos como abordar todo o explanandum exigido por um modelo causal do problema mente-corpo. Apesar disso, Pereira Jr. prossegue, afirmando que pode haver uma interação (chamada de “affective feelings”) entre um elemento na camada consciente em tempo 1 com um elemento na camada física em tempo 2 (e também uma oposta chamada de “sensitive feelings”). Essas teriam o papel de explicar como mudanças no corpo em tempo 1 podem afetar a consciência em tempo 2 – como a detecção de falta de alimento gerar o sentimento de fome. De fato afetam, mas essa consciência em tempo 2 também tem uma base física, ela não existe solta sozinha em tempo algum. Isso significa que o elemento que detectou a falta de alimento causou na camada física o estado físico relacionado ao sentimento de fome. Pereira Jr. também acrescenta uma ligação entre as camadas informacionais (ou mentais) em tempo 1 e tempo 2 chamada de causação informacional e uma ligação entre o nível consciente em dois tempos como uma relação simbólica. Mas da margem para entenderem o MTA como um “trialismo” e não um monismo, sem contar que acrescenta-se termos inúteis e mal compreendidos. Não basta simplesmente dizer que uma teoria é monista, isso precisa seguir de suas teses mais específicas. Pereira Jr. poderia simplesmente resumir esse modelo de causação como blocos monistas, como exposto na Figura B. Neste, temos que o bloco monista composto de três aspectos, causa outro bloco monista. Quando Não há os três aspectos envolvidos, o estado de um ou dois aspectos causa outro estado de três aspectos, por exemplo. Podemos assim falar em monismo e ficamos com apenas um termo apenas para falar das interações: causa.

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Figura B – Simplificação do modelo causal do MTA. Cada estado pode ser entendido como um bloco monista composto dos três aspectos que causam outros blocos monistas.

Figura C – Mesmo se um estado não tiver os três aspectos esse será causal, pois o físico sempre está presente. A Figura representa como abordar de forma simples o explanandum dos “sensitive feelings”. O mesmo poderia ser feito para os “affective feelings” apenas trocando os estados de lado.

3. Afetividade e redes neuroastrocitárias

No artigo alvo, há uma clara incompatibilidade em como as definições de emoções, sentimentos e consciência são mapeadas nas funções das redes neuronais e astrocitárias. Pereira Jr. entende que as redes neuronais são responsáveis por processos cognitivos e as redes astrocitárias são responsáveis por processos afetivos (os quais correspondem aos

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sentimentos). A consciência, para o autor, é entendida como o momento de interação entre as duas redes. Entretanto, o autor também afirma que não pode haver sentimento sem consciência. Então, a qual estado mental a instanciação de sentimentos se refere quando a rede astrocitária não interage com redes neuronais? Pereira Jr. não pode postular que redes astrocitárias instanciam sentimentos – os quais são condição suficiente para consciência por definição prévia – e posteriormente adicionar outra condição (necessária) para a consciência, a saber, a interação com os processos cognitivos (ou com a rede neuronal). É possível identificar esse detalhe nas palavras do autor2: “[...] na medida em que as representações cognitivas instanciadas nos neurônios são associadas com sentimentos instanciados na rede astrocitária, os “focos” formados por representações e respectivos sentimentos constituem episódios conscientes” (PEREIRA JR., 2015, p.17). Mas como, podemos ver, o que é dito sobre os sentimentos não permite que os sentimentos sejam instanciados sem que haja consciência. “Conceitualmente, se os sentimentos são as experiências subjetivas a partir da perspectiva de primeira pessoa, eles não podem ser inconscientes, porque esta perspectiva é própria à experiência consciente” (PEREIRA JR., 2015, p.8). Esse equívoco também aparece quando PEREIRA JR. fala sobre ondas iônicas como instanciando sentimentos: “A relação das ondas iônicas, que instanciam os sentimentos, com as experiências sentimentais, estaria em conformidade com o conceito aristotélico de causa formal, ou seja, as formas dos sentimentos seriam semelhantes às formas das ondas iônicas” (PEREIRA JR., 2015, p.19). Ondas iônicas percorrem apenas as redes astrocitárias, como estas, sem interagir com processos cognitivos (ou rede neuronais) poderiam ser conscientes? E se não são conscientes como poderia haver sentimentos inconscientes? Não há como negar que as atuais definições do MTA não permitem um mapeamento compatível dos conceitos nas redes astrocitárias e neuronais. Esse uso está presente constantemente no discurso e na escrita de Pereira Jr.. Há, entretanto, uma forma de solucionar esse equívoco. Seguindo, a proposta elaborada em Bellini-Leite & Pereira Jr. (2013, p. 351, tradução nossa), temos que as redes astrocitárias são responsáveis por emoções, não sentimentos: “estados afetivos podem ser entendidos como emocionais, mas também como qualitativos, como 'o sentimento' de

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Toda marcação em negrito significa ênfase de minha autoria.

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algo”3. Pereira Jr. concordou com esses termos na época possivelmente pela passagem ser pouco clara. O artigo alvo seria ideal para Pereira Jr. aprimorar os conceitos relacionados à afetividade. Entretanto, como mostrei, a atual elaboração não está satisfatória. A citação acima está pouco clara, mas a compreendi como afirmando que estados afetivos podem ser estados emocionais – quando inconscientes – e estados de sentimento – quando conscientes. A rede astrocitária, portanto, se trata de uma rede afetiva, quando sozinha, instancia emoções, não sentimentos. Os sentimentos e a consciência são instanciados no momento em que ocorrem interações entre redes neuronais e rede astrocitárias. Podemos notar que essas sugestões não atrapalhariam outras definições, por exemplo, a de sentimentos emocionais. Esses ocorreriam quando o conteúdo do processo cognitivo está focado na emoção e esta é consciente. Novamente visando a verdadeira interação das redes, nesses casos de sentimentos emocionais os processos cognitivos podem ser entendidos como sendo sobre os eventos da rede astrocitária. Ainda, mesmo no artigo alvo, o próprio exemplo da relação com ondas é de um estado emotivo: “pode-se encontrar uma correlação estatisticamente significativa entre a ocorrência do medo e um determinado tipo de forma de onda que caracteriza a atividade cerebral durante a experiência do medo” (PEREIRA JR., 2015, p.19-20). Em contraste, que tipo de onda estaria relacionada com Sentimentos perceptivos? e Sentimentos cognitivos? É difícil imaginar. Se é que existe relação entre ondas e estados afetivos, essa parece estar entre ondas e estados emocionais. Nessa reformulação, portanto, o sentimento não seria instanciado por redes astrocitárias, mas pode ser concebido como um produto emergente da interação entre redes neuronais – as quais realizam processos cognitivos – e redes astrocitárias – as quais realizam processos emotivos.

Affective states can be understood here as emotional, but also as qualitative ones, expressed as ‘the feeling’ of something. 3

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Figura D – simplificação da Figura 3 do artigo alvo como resultado da reformulação proposta.

4. Considerações Finais

Não apresentei solução para o problema da primeira seção como fiz para os das seções seguintes. Isso porque não há resposta simples, clara ou mesmo filosoficamente formulada para tal. Mas acredito que a metafísica da consciência precise lidar com a metafísica da virtualidade. Algo como a descrição de um espaço virtual seria a metafísica adequada para a consciência. A linguagem para descrever essa camada pode ser a de um universo emulado, com propriedades específicas, seu próprio espaço, próprio tempo, qualidades como cor, sons, aromas. Algumas propriedades desse universo emulado já são descritas (em minha ótica) por teorias da psicologia cognitiva e da psicofísica, como o tempo que leva para uma imagem sumir deste universo, a quantidade de itens que ele suporta, como funciona o foco da atenção sobre esses objetos, o grau de rotação possível de um objeto nesse universo (em Miller, 1956; Kosslyn, Thompson & Ganis, 2006, Sternberg, 2008). Também já existem projetos na direção da virtualidade (Revonsuo, 1995, Metzinger, 2003, 2009), entretanto, Metzinger adota a postura de que a virtualidade não é real, na linha de Dennett (1991) e Revonsuo não é claro sobre a ambiguidade do virtual. Uma metafísica da virtualidade ainda é necessária, mas desconheço projetos que trilham afundo nesse caminho.

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Referências BELLINI-LEITE, S; PEREIRA JR. A. Is Global Workspace a Cartesian Theater? How the Neuro-Astroglial Interaction Model Solves Conceptual Issues. Journal of Cognitive Science, v.14, p. 335-360, 2013. DENNETT, D. Consciousness explained. New York: Black Bay Books, 1991. HILBERT, M. Toward a Synthesis of Cognitive Biases: How Noisy Information Processing Can Bias Human Decision Making. Psychological Bulletin, v. 138, n. 2, p. 211237, 2012. KOSSLYN, S; THOMPSON, W.; GANIS, G. The Case for Mental Imagery. Oxford: Oxford University Press, 2006. METZINGER, T. Being No One: The self-model theory of subjectivity. Cambridge: MIT Press., 2003. METZINGER, T. The Ego Tunnel: The Science of the Mind and the Myth of the Self. Basic Books, 2009. MILLER, G. The magical number seven, plus or minus two: some limits on our capacity for processing information. Psychological Review, v. 63, p.81-97, 1956. PEREIRA JR., A. Triple-aspect monism: a conceptual framework for the science of human consciousness. In: PEREIRA JR., A.; & LEHMANN, D. (Eds.). The Unity of Mind, Brain and World: Current perspectives on a science of consciousness. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. ______. O Conceito de Sentimento no Monismo de Triplo Aspecto. Kínesis, Edição Especial – Debate”, v. 7, n. 15, p. 1-24, 2015. REVONSUO, A. Consciousness, dreams and virtual realities. Philosophical Psychology. v.8, n.1, p.35-58, 1995. SHANNON, C.; WEAVER, W. The mathematical theory of communication. Urbana: University of Illinois Press, 1998. (primeira edição: 1949). STERNBERG, R. Psicologia Cognitva. 4ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.

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NOTAS SOBRE O MONISMO DE TRIPLO ASPECTO Vinícius Jonas de Aguiar1

Tendo já escrito um trabalho que discute, em parte, o Monismo de Triplo Aspecto (MTA) (AGUIAR, 2015), aproveito o espaço deste comentário crítico para levantar alguns pontos que não tive a oportunidade de tratar em minha pesquisa e que Pereira Jr. também não enfatiza no artigo “O Conceito de Sentimento no Monismo de Triplo Aspecto”. Portanto, no texto que se segue o leitor encontrará exemplos que podem reforçar algumas teses do MTA, e questões que podem contribuir para esclarecer alguns pontos daquela teoria, abrindo, assim, novas possibilidades de aplicação desta ontologia. Entendemos que o MTA apresenta, logo de partida, uma vantagem que é estar ancorado em conceitos filosóficos e científicos contemporâneos, o que permite acomodar diferentes explicações sobre um mesmo fenômeno sem perder o rigor conceitual e, assim, correr o risco de trivializar as explicações. Apesar da versatilidade dessa proposta, no que diz respeito à consciência o MTA privilegia explicitamente o papel do sentimento. Segundo Pereira Jr., por conta da dificuldade em tratar dos sentimentos utilizando a linguagem filosófica, a relevância dos sentimentos para nossa vida mental ficou relegada principalmente às artes e à religião que, de forma geral, enfatizam exatamente o sentimento em detrimento da cognição e do discurso lógico. Contudo, o autor encontra em dados recentes da Neurociência Afetiva e na Psiquiatria (por exemplo, ALMADA et al., 2013; DAMÁSIO, 2000) em particular na ideia de Eu sentiente, a possibilidade de reformularmos nossa compreensão da vida mental, em especial da vida mental consciente, de modo a devolver ao sentimento o espaço que lhe é de direito. Mais do que uma retomada de uma postura filosófica que enfatiza o papel dos sentimentos, como em Kierkegaard (2010), Schopenhauer

(2004) e Nietzsche

(2005), Pereira Jr. argumenta que, por esse caminho, podemos ultrapassar pela tangente o conhecido hard problem da consciência (CHALMERS, 1996). Antes de adentrarmos o problema da consciência de fato, vejamos uma importante distinção adotada no MTA, qual seja: a distinção entre matéria/energia e forma/informação, ou entre 1º e 2º aspectos, se preferirem. Se tomarmos, por exemplo, Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília. E-mail: [email protected] 1

Notas sobre o Monismo de Triplo Aspecto

como referência o problema da relação entre uma obra de arte e o material que a constitui – problema comum na filosofia da arte – poderemos notar claramente a precisão dos conceitos do MTA em explicar um dado objeto de forma abrangente e sem reduzir parte da sua composição a um só elemento. Uma estátua grega, como a Vênus de Milo, é composta obviamente por uma base material muito bem delimitada: o mármore. Além disso, ela possui traços específicos que a identificam como a Vênus de Milo ao invés de outra estátua qualquer; ou seja, Vênus de Milo é não só matéria (mármore), mas também uma forma (seus traços). O mesmo é facilmente notável na música: O Réquiem de Brahms é, sem dúvida, composto por certos tipos de sons (sons da orquestra); mas não só isso, pois tais sons estão organizados de maneira a soarem como o Réquiem de Brahms e não como o Réquiem de Mozart. O que esses exemplos apresentam é a relação de não necessidade que existe entre certos elementos, como os sons ou o mármore, e a organização que eles irão assumir, como música X ou Y, escultura X ou Y, etc.. É nesse sentido que o MTA propõe os primeiros dois componentes ontológicos da Natureza que, em sua essência, são irredutíveis um ao outro. Quanto à irredutibilidade do segundo aspecto ao primeiro é no mínimo difícil encontrar exemplos que mostrem o contrário. Resta saber se o aspecto da forma é atualizado a partir de processos envolvendo a auto-organização de elementos materiais essenciais da realidade, o que dá origem à informação quando os padrões formais são transmitidos de um meio material para outro, ou se as formas possuem uma realidade ideal, como queria Platão (2005). Dado o interesse em andar lado a lado com conceitos filosóficos e científicos atuais, o MTA opta por entender e explicar as formas e trocas de informação à luz das teorias de Boltzmann (1964, 1965) e Shannon e Weaver (1949). Slavoj Žižek (2013) coloca a teoria de Platão como central na história da filosofia ocidental pelo fato de boa parte das teorias posteriores tentarem corroborar ou invalidar a tese das ideias platônica. Nesse contexto, o MTA assume uma posição intermediária que diverge da teoria do mundo das ideias ainda que seja simpática a parte daquela teoria. A distinção entre o mundo das ideias platônico e a realidade das ideias no MTA reside no caráter de “ideia atualizada em outro plano”, correspondente à tese de Platão, e a “ideia existente em estado potencial na Natureza”, presente no MTA. Como exemplo imediato de aplicação dessa constatação, podemos citar a superação da dicotomia entre criação e descoberta, que ocorre se adotarmos a noção de “atualizar formas potenciais” (sobre a relação entre os conceitos de informação e forma adotados 63

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por Pereira Jr., ver ALEKSANDER, MORTON, 2011), o que não é só criação, nem só descoberta. Ainda sem incluir a descrição do terceiro aspecto, é válido destacar o embasamento que o MTA proporciona à noção de interdisciplinaridade. Assumindo a distinção entre a constituição material e a formal de qualquer objeto ou fenômeno, torna-se necessário o uso abordagens e terminologias diferentes para descrever um mesmo objeto de estudo. Pela descrição proposta no MTA, investigando, por exemplo, somente a constituição dos sons e fazendo descrições cada vez mais precisas das suas características, não poderíamos entender o conceito de acorde maior, e muito menos o que é um quarteto de cordas ou uma sinfonia. Para tal, devemos passar do plano do som para as relações entre os sons. Aliás, falar sobre como percebemos uma música ou qualquer fenômeno/objeto externo a nós passa não só por descrever uma constituição material e formal, mas também descrever como essa informação atinge nosso sistema cerebral (e outros subsistemas do corpo) e, finalmente, é experienciada em primeira pessoa. E é aqui que entramos no domínio do terceiro aspecto. O que justifica, de acordo com Pereira Jr., postular a existência de um aspecto nem material, nem formal, mas sim da ordem do sentimento, típico das experiências fenomenológicas que temos, é a impossibilidade de derivar daqueles dois aspectos o feeling, característico do terceiro aspecto. Esse ponto pode ser ilustrado, mais uma vez, com a música. Os dois primeiros aspectos constituintes daquele fenômeno podem, e são hoje em dia, facilmente transferidos de um meio para outro – os padrões de ondas sonoras executados por uma orquestra podem ser captados por microfones e transformados em bits no HD de um computador ou de um pen-drive. Essa transmissão da informação musical, contudo, não envolve em momento algum a experiência fenomenológica por parte do microfone ou do aparato digital para o qual a informação musical é transferida. Na interpretação de Pereira Jr., o cérebro funciona da mesma forma: padrões de informação externos e internos são transmitidos para o cérebro que os codifica em padrões de disparo neuronal. Disso o autor conclui que, se o mesmo processo ocorre em outros meios sem incluir a consciência, deve haver no sistema cerebral algo a mais, algo que não seja da ordem da matéria e da informação, já que tais aspectos não trazem, necessariamente, a experiência do sentimento. Logo, o sentimento, característico das experiências conscientes, deve ser mais um aspecto da Natureza que é atualizado no sistema cerebral.

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Sem discordar da característica afetiva dos processos conscientes, cabe ainda questionar a necessidade de postular um terceiro aspecto ontológico para justificar a presença dos sentimentos nos processos cerebrais conscientes. De acordo com a hipótese das interações neuroastrocitárias apresentada no artigo de Pereira Jr., existem os padrões de informação codificados no cérebro através do funcionamento neural, e correlatos cerebrais dos sentimentos que estariam instanciados em redes de astrócitos. Nesse sentido, o estudo da consciência permite uma abordagem científica em terceira pessoa para investigar os tipos de onda relacionados aos sentimentos, e também outras abordagens que foquem na perspectiva em primeira pessoa, restrita àquele que experiencia dada informação conscientemente. A questão aqui colocada é: por que assumir que esse sentimento é parte ontológica da Natureza e está instanciado no cérebro em vez de abordá-lo como produto do funcionamento cerebral, mais especificamente do funcionamento material/informacional dos astrócitos junto aos padrões neurais? Ou devemos entender a exigência de um terceiro aspecto justamente por conta da existência dos sentimentos em nossa experiência, o que leva, necessariamente, à existência dos mesmos em estado potencial na Natureza? Com relação à terminologia utilizada, Pereira Jr. associa em sua tese os termos consciência e sentimento sem, contudo, delimitar exatamente qual a relação entre ambos. Ainda que isso não invalide nenhum dos pontos apresentados em seu texto, pode ser de interesse do autor delimitar com mais ênfase cada um desses conceitos, visto que a consciência é o objeto central da sua pesquisa. Ficam em aberto questões como: consciência é o sentimento? E, nesse sentido, consciência é o terceiro aspecto? Ou consciência é um processo envolvendo matéria, informação e o sentimento? E, nesse sentido, apenas o sentimento, que aparece em processos conscientes, é considerado o terceiro aspecto? Por fim, vale a pena mencionar a relação entre a construção do sujeito no MTA, pautada nos três aspectos, e a ética. De acordo com Pereira Jr., a partir das experiências vivenciadas, o sujeito desenvolve hábitos sentimentais formados pelos sentimentos atrelados às experiências conscientes que o mesmo experiencia a respeito de certos padrões de informação. Podemos assumir, portanto, que aqueles sentimentos que passam a compor a vida consciente do indivíduo resultam em certas preferências a certas informações em detrimento de outras. Nesse sentido, devemos investigar se a repetição de certa informação gera hábitos de sentimentos bons, se a relação entre os tipos de sentimentos e a informação é não causal, ou se há alguma relação de 65

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necessidade entre certos padrões de informação e certos sentimentos. A última possibilidade não parece ser o caso, visto que é relativamente comum mudarmos nossa opinião ou gosto a respeito de algumas informações (a não ser que a relação seja de necessidade em um primeiro momento, mas permita ser alterada pelo contato com a informação). As outras duas possibilidades não são excludentes, pois podemos experienciar um sentimento ruim X sobre um objeto A, e após maior contado com o objeto A, passamos a experienciar um sentimento bom Y. Entendendo melhor a relação entre sentimento e informação, podemos pensar não só em contribuições para a educação, como propõe Pereira Jr., mas mais especificamente para uma estetização da ética, não no sentido de validar quaisquer atitudes feitas com base em sentimentos agradáveis, mas de buscar meios para atrelar os sentimentos bons a atitudes éticas. Por se tratar de uma teoria filosófica recente podemos encontrar nas principais teses do MTA diversos campos a serem explorados, desenvolvidos, esclarecidos e também aplicados, tudo isso com o intuito de por à prova aquelas ideias e, caso sejam bem sucedidas, superar problemas antigos e formular novas questões. Para atingir tal objetivo é imprescindível o diálogo sincero entre autor e seus leitores. Sendo assim, espero ter contribuído para esse diálogo através deste comentário crítico que, se não completamente pertinente em suas questões e sugestões, guarda ao menos a sinceridade quanto meu ao interesse no tema.

Referências AGUIAR, V.J. A escuta musical no Monismo de Triplo Aspecto. 2015. 86 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília, 2015. ALEKSANDER, I., MORTON, H. B. Informational minds: from Aristotle to laptops (book extract). Em: International Journal of Machine Consciousness, v. 3, p. 383-397, 2011. ALMADA, L., PEREIRA Jr., A, CARRARA-AUGUSTENBOG, C. What Affective Neuroscience Means for a Science of Consciousness. Mens Sana Monographs, v.11, p. 253-273, 2013. BOLTZMANN, L. Further studies in the thermal equilibrium of gas molecules. Em: Brush S. (ed.) Kinetic Theory, Vol. 1. Oxford/London: Pergamon Press, p. 88-175, 1965. ______. Lectures on Gas Theory. Trad. & Ed. Brush S., Berkeley, LA: University of California Press, 1964. CHALMERS, D. J. The Conscious Mind. In Search of a Fundamental Theory, New York: Oxford University Press, 1996. DAMÁSIO, A. The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the Making of Consciousness. New York: Harcourt.

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Notas sobre o Monismo de Triplo Aspecto

KIERKEGAARD, S. O Conceito de Angústia. Ed.: Vozes, 2010. NIETSZCHE, F. Humano, Demasiado Humano, um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia de bolso, 2005. PEREIRA JR., A. O Conceito de Sentimento no Monismo de Triplo Aspecto. Kínesis, Edição Especial – Debate”, v. 7, n. 15, p. 1-24, 2015. PLATÃO. Parmênides. Tradução, apresentação e notas: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro: PUC Rio, 2005. SCHOPENHAUER, A. O Mundo Como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. WEAVER, W.; SHANNON, C. E. The Mathematical Theory of Communication. Urbana, Illinois: University of Illinois Press, 1949. ŽIŽEK, S. The Event: Politics, Art, Ontology. Palestra na Universidade de Londres, 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WL1uurn7TFY

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ALFREDO PEREIRA JR. ENTRE DAMÁSIO E PRINZ: REVISITANDO O MONISMO DE TRIPLO ASPECTO Nythamar de Oliveira1 Segundo Alfredo Pereira Jr., o conceito damasiano de “sentimento” é criticamente reapropriado pelo Monismo de Triplo Aspecto de forma a distinguir o que seria “uma experiência vivida” de uma mera “representação mental” e reformular “o sentir como o aspecto fundamental da mente consciente”, para além de “seu componente cognitivo”, deslocando a ênfase “para o componente afetivo” (p. 202) De acordo com o Autor, trata-se de evitar o descompasso entre o evento “transportado para nosso cérebro por meio de sinais informacionais” e “nosso cérebro (juntamente com a totalidade de nosso corpo, em interação com o ambiente físico e social)”, quando “interpreta o significado da informação e reage ao conteúdo da mesma com um sentimento” (p. 8). Assim, a chamada consciência fenomenal emergiria no nível dos sentimentos, evitando a redução de processos cognitivos a processos conscientes. Segundo Pereira Jr., o Monismo de Triplo Aspecto é uma “posição filosófica que procura construir um cenário ontológico compatível com uma abordagem científica interdisciplinar”, de acordo com a qual “a Natureza (ou totalidade do real) se constitui de três aspectos potenciais: a matéria/energia, a forma/informação e o sentimento/consciência” (p. 1). Gostaria de ater-me apenas ao fenômeno natural do sentimento em sua configuração evolutiva e relevância para a pesquisa neurocientífica, na medida em que tem sido tematizado por autores contemporâneos como Damásio e Prinz. O neurocientista português António Damásio contribuiu de maneira decisiva para as pesquisas interdisciplinares em ciências cognitivas, neurofilosofia, neurobiologia da mente e do comportamento, sobretudo nas áreas da emoção, tomada de decisão, memória, comunicação, criatividade e consciência. Com efeito, a publicação do livro mais conhecido de Damásio, O Erro de Descartes, em 1994, iniciou uma verdadeira guinada neurocientífica não apenas em neurologia, psiquiatria e psicologia cognitiva, mas também

1

Pesquisador do CNPq e Professor de Ética e Filosofia Política na PUCRS, onde coordena um Grupo de Pesquisa em Neurofilosofia no Instituto do Cérebro (InsCer), juntamente com o Prof. Dr. Jaderson da Costa. 2 As referências indicadas apenas com número refere-se ao artigo de Alfredo Pereira Jr. foco do comentário.

Alfredo Pereira Jr. entre Damásio e Prinz

em filosofia da mente e da linguagem, linguística, ciência da computação e antropologia, ao empreender uma crítica radical ao dualismo cartesiano, em suas dicotomias contrapondo alma e corpo, mente e cérebro, razão e emoção. Desde os anos 1950 e 60, pesquisas em neurociências já evidenciavam problemas incontornáveis em modelos variantes do dualismo substancialista (isto é, de uma substância pensante, racional, em oposição a uma substância corpórea, material, animada pela alma) e vários outros surgiram nas décadas seguintes, com propostas alternativas, mas que apenas reformulavam o dualismo ou reduziam os processos mentais a padrões de comportamento condicionado (behaviorismo), a uma teoria da identidade (entre mente e cérebro), aos estados físicos do cérebro (fisicalismo) ou aos papéis causais e funcionais numa economia complexa de estados internos,

mediando

entradas

(inputs)

de

dados

sensoriais

e

saídas

(outputs)

comportamentais (fucionalismo), assim como os reducionismos materialistas que propunham eliminar as explicações que aludem aos estados psicológicos (materialismo eliminacionista). A obra de Damásio suscitou uma profícua interlocução da neurociência com a filosofia da mente, sobretudo com a neurofilosofia, após a publicação da obra seminal de Patricia Churchland em 1986, Neurophilosophy, definida como o estudo filosófico das neurociências, correlato ao estudo neurocientífico da filosofia da mente e da linguagem. Assim, desde uma perspectiva neurofilosófica, as neurociências e ciências cognitivas se prestam ao estudo interdisciplinar dos processos mentais, ou, em termos neurocientíficos, dos processos cerebrais e redes neurais nas complexas dimensões interativas do cérebro e da mente com o meio físico, social e cultural. Os problemas metafísicos do dualismo e do self (“eu”) são destarte explorados e revisitados à luz das ciências cognitivas e neurociências, delimitando o estado da arte relativo ao problema da normatividade como uma de suas principais linhas de pesquisa, contrapondo modelos naturalistas e culturalistas, na medida em que lidam com questões de neurociência, biologia evolucionista, evolução social e progresso moral. Pela sua original e audaciosa articulação entre neurobiologia e evolução social, Damásio contribuiu também para a consolidação da neuroética, em seus dois campos principais: (1) enquanto reflexão bioética e ético-normativa sobre as novas técnicas e inovações tecnológicas produzidas pela neurociência e (2) numa abordagem moral de

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problemas da chamada filosofia da mente, psicologia moral e, mais recentemente, da psicologia social e da epistemologia social. Com efeito, as pesquisas multidisciplinares e transdisciplinares da neurociência e da neurofilosofia nessas décadas acabariam por favorecer a convergência em sua dimensão social e pluralista, para além dos reducionismos naturalistas e fisicalistas das primeiras décadas, com a investigação interdisciplinar de processos decisórios à luz da correlação neurocognitiva entre razão, emoção e consciência. De acordo com Damásio (2005, p. 282):

[...] a compreensão cabal da mente humana requer a adoção de uma perspectiva do organismo [...] não só a mente tem de passar de um cogitum não físico para o domínio do tecido biológico, como deve também ser relacionada com todo o organismo que possui cérebro e corpo integrados e que se encontra plenamente interativo com um meio ambiente físico e social.

De resto, Damásio assume que as bases filosóficas e cognitivas das decisões morais estão no centro das discussões sobre a natureza humana, na medida em que a moralidade evolui como um dos elementos que diferenciam os seres humanos dos outros animais, como tem sido argumentado por autores com propostas tão diferenciadas quanto Aristóteles, Hume e Kant. As decisões morais têm, afinal, um papel central na definição do ser humano; ela está no cerne de tomadas de decisão que nos definem em relação a questões culturais, questões de relacionamento pessoal e de escolhas políticas e cotidianas que, por fim, ajudam a definir o self em relação aos outros e dentro de um milieu específico. Assim como estabelece a correlação entre razão prática e emoção, Damásio associa a consciência à noção de tomada de decisão, bem como ao planejamento em diferentes escalas de tempo, criação de possibilidades de interação com o meio e seleção de cursos de ação – sendo todas as etapas do processo interligadas. Damásio logra, assim, articular processos sociais, intersubjetivos, e processos neurobiológicos, que explicam a evolução do cérebro humano e a emergência da consciência, do “eu”, da memória, da linguagem, da subjetividade e suas representações e construções criativas e portadoras de significado: “Se a consciência não se desenvolvesse no decorrer da evolução e não se expandisse em sua versão humana, a humanidade que hoje conhecemos, com todas as suas fragilidades e forças, nunca teria se desenvolvido também” (DAMÁSIO, 2011, p. 17). Trata-se de evitar, por um lado, as idealizações a priori do dualismo cartesiano que persistem em modelos 70

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tradicionais da teoria da escolha racional (rational choice), e por outro lado, o relativismo, o niilismo e o decisionismo morais de posturas culturalistas que rechaçam qualquer possibilidade de embasamento racional ou normativo em processos decisórios. Segundo Damásio, a observância de convenções sociais e regras éticas previamente adquiridas poderia ser perdida como resultado de uma lesão cerebral, mesmo quando nem o intelecto de base nem a linguagem mostravam estar comprometidos, como era o caso de Phineas Gage, em quem apenas o comportamento social parecia ter sido afetado (DAMÁSIO, 1994, p. 31). Ainda de acordo com os experimentos de Damásio, a escolha de uma decisão qualquer ou de um curso de ação referente a um problema pessoal em que o sujeito está devidamente inserido em seu meio social (complexo, mutável e incerto), requer dois elementos: 1) amplo conhecimento de generalidades e 2) estratégias de raciocínio que operem sobre este conhecimento. Assim, não podemos reduzir os processos decisórios a uma suposta racionalidade pura, sem levar em conta as emoções, os sentimentos e o contexto sociocultural. Quando identifica uma base emotiva natural para os sentimentos e juízos morais, o naturalismo inerente a abordagens analíticas e hermenêuticas da filosofia da mente não poderia destarte excluir nenhum nível axiológico ou normativo de autocompreensão. Tal abordagem naturalista ainda prescindiria, neste caso, de uma justificativa para a sobreposição valorativa da normatividade com relação a estados de coisas encontrados ou até mesmo socialmente construídos da realidade. A persistência de uma crítica ao naturalismo consiste precisamente em reconhecer que mesmo que admitamos a “sobreveniência” (supervenience) de valores morais com relação a fatos, eventos ou propriedades naturais, físicas ou biológicas, ainda assim não seria possível reduzir propriedades morais a tais estados de coisas. Segundo a concepção integrada de emoções e valores normativos em Damásio, um naturalismo mitigado equivale a reconhecer que, embora sejam socialmente construídos, valores morais, práticas, dispositivos e instituições como família, dinheiro, sociedade e governo, não podem ser reduzidos a propriedades físicas ou naturais, mas também, por outro lado, prescindem das mesmas na própria constituição de seus elementos intersubjetivos de autocompreensão – daí o adjetivo “mitigado” (weak) para diferenciá-lo de um naturalismo reducionista (fisicalismo) e de um construcionismo subjetivista, relativista ou pós-moderno. Assim como Damásio o mostrou,

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uma teoria emocionalista-sentimentalista da moral logra articular razão, emoção e processos de tomada de decisão em termos empírico-filosóficos, na medida em que sentimentos cognitivos prescindem de um nível reflexivo, que nem sempre se encontra nas emoções, particularmente, nas “emoções primárias” (DAMÁSIO, 1999). Segundo Damásio, o sentimento emocional é a percepção, no neocórtex, das respostas corporais aos estímulos imediatos, através dos centros cerebrais inferiores. As emoções têm função social e papel decisivo no processo de interação e integração sociais. As emoções são adaptações singulares que integram o mecanismo com o qual os organismos regulam sua sobrevivência orgânica e social. Damásio faz uma distinção entre sentimento (experiência mental da emoção) e emoção (conjunto de reações orgânicas), de forma a estabelecer os fundamentos biológicos que ligam sentimento e consciência. Em um nível básico, as emoções são parte da regulação homeostática e constituem-se como um poderoso mecanismo de aprendizagem. Ao longo do desenvolvimento, “as emoções acabam por ajudar a ligar a regulação homeostática e os ‘valores’ de sobrevivência a muitos eventos e objetos de nossa experiência autobiográfica” (DAMÁSIO, 2000, p. 80). As emoções fornecem aos indivíduos comportamentos voltados para a sobrevivência e são inseparáveis de nossas ideias e sentimentos relacionados com a recompensa ou punição, prazer ou dor, aproximação ou afastamento, vantagem ou desvantagem pessoal etc. na medida em que a base neural desses eventos nos permite distinguir três etapas de processamento que fazem parte de um contínuo: “Um estado de emoção, que pode ser desencadeado e executado inconscientemente; um estado de sentimento, que pode ser representado inconscientemente, e um estado de sentimento tornado consciente, isto é, que é conhecido pelo organismo que está tendo emoção e sentimento” (DAMÁSIO, 2000, p. 57). A emoção desencadeada por determinado estímulo dá origem a “um programa de ações”, diferentes conforme o tipo de emoção, que provocam alterações no rosto, no corpo ou no sistema endócrino (estratégias ativas). O corar de um rosto, a tensão muscular, o aumento do ritmo cardíaco, ou o aumento da secreção de determinado hormônio são exemplos dessas alterações fisiológicas. Damásio destaca o valor adaptativo das emoções e de sua função na interação social, e propõe uma classificação em termos de três tipos de emoções: de fundo (emoções mais vagas, como o entusiasmo e o desencorajamento)

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primárias (mais pontuais, como a tristeza, o medo, a raiva ou a alegria) e sociais (resultantes de um contexto sociocultural, como a empatia, a compaixão, a vergonha ou o orgulho). As emoções básicas (alegria, tristeza, medo, raiva, surpresa, repugnância) são consideradas universais pelo reconhecimento através da expressão facial e são geradas por situações extremas, sendo o seu contágio entre os membros de um grupo social um potencial catalizador de comportamentos coletivos, como atestam os protestos e as manifestações que sacudiram todo o Brasil recentemente. Num de seus mais fascinantes e polêmicos livros, Damásio evoca o exemplo instigante de Espinosa que, numa época de grande intolerância e obscurantismo no século XVII, ousou defender a liberdade da mente humana, integrada aos seus contextos naturais e sociais, de forma a suplantar, numa democracia, “o lado escuro das emoções sociais que se exprimem no tribalismo, racismo, tirania e fanatismo religioso” (DAMÁSIO, 2003, p. 289). Prinz retoma a teoria damasiana das emoções e dos sentimentos para reformular a articulação naturalista de inspiração humeana entre conceitos e intuições, processos mentais e correlatos neurais, processos decisórios e efeitos da força de hábito. Com efeito, como insinuara Damásio a propósito dos experimentos de Libet, a maioria das decisões importantes para a nossa vida não são feitas da mesma forma que decidimos mover um dedo, de forma a antever a sequência tríplice postulada por Pereira Jr. entre sistemas progressivamente cada vez mais complexos, a emergência da informação através da transmissão de formas entre sistemas, e finalmente a afeição da estrutura material de um sistema pela informação, resultando na ocorrência de sentimentos. Como se passa em processos deliberativos (por exemplo, para as decisões mais importantes por longos períodos de tempo), tais decisões não poderiam ser reduzidas ao instante de sua ocorrência no momento da execução da ação, mesmo que as emoções possam ser induzidas de uma forma não consciente, aparecendo como aparentemente desmotivadas. Tanto Damásio quanto Prinz identificam a consciência com estados mentais dotados de subjetividade, reflexividade e atencionalidade, mesmo que estes sejam apenas latentes ou potenciais. A consciência encerra um conhecimento da existência de quem experiencia um estado emotivo e seu próprio ambiente, podendo fazê-lo através de sentimentos, que podem ser narrados, relatados ou experienciados na primeira pessoa (o famoso feeling do what-is-itlikeness). Segundo Prinz (2004, p. 240):

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As emoções podem até mesmo entrar na consciência antes de nós conscientemente acessar os sinais sutis que as desencadearam. É por isso que descrevemos as emoções como reações viscerais (gut reactions). Elas são como detectores de radar corporais que nos alertam para preocupações ou reações que devemos ter. Quando ouvimos as nossas emoções, não estamos sendo seduzidos por sentimentos sem sentido. Tampouco estamos ouvindo os frios ditames de juízos complexos. Nós estamos usando nossos corpos para perceber a nossa posição no mundo.

A original reformulação prinziana dos problemas humeanos sobre a natureza humana (em sua releitura crítica da trilogia do filósofo escocês em torno do entendimento, paixões e moral) desemboca numa teoria híbrida da consciência, que em vários particulares nos lembra o Monismo de Triplo Aspecto, notadamente os três níveis de representação mental confluindo na própria emergência da consciência. De acordo com a teoria AIR (Attended Intermediate-level Representation) da consciência de Jesse Prinz, algumas revisões e reformulações de concepções e questões tradicionais em estudos sobre a consciência devem ser concatenadas de forma interdisciplinar para dar conta de uma teoria que se beneficia dos mais recentes experimentos, resultados empíricos e dados extraídos de estudos neurocientíficos com animais e seres humanos. De acordo com a teoria AIR, há uma variedade de microeventos concordantes para a aplicação no cérebro das funções cognitivas particulares ou determinados tipos de representação. A sua hipótese central consiste em constatar que a consciência atende, tenciona e está atenta a certos tipos de representações mentais, justamente as chamadas representações de nível intermediário (Attended Intermediate-level Representations), seguindo uma terminologia e reconstrução sugerida por Jackendoff. A hipótese de trabalho limita-se a reconstruir e desenvolver tais representações de nível intermediário e o mecanismo pelo qual nós terminamos por atentar para elas, tencionando-as, enfocando-as. Embora este relato se dê tanto num nível cognitivo quanto neuronal de descrição, podemos nos limitar a representações de nível intermediário como um dos três tipos de representação dos sistemas sensoriais, organizados em uma hierarquia de processamento (PRINZ, 2012, p. 1109). Assim, focando na visão, Prinz (2012, p. 1132) sugere que o nível baixo é análogo a uma matriz de pixel. No nível baixo, os objetos não são representados, mas apenas as características desses objetos o são. Aqui temos representações de coisas como bordas e blobs de luminância. Representações de alto

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nível também representam objetos, mas de uma forma independente de ponto de vista. É a representação de nível intermediário que, de acordo com a hipótese AIR, seria a representação consciente. Embora nem todas as representações de nível intermediário sejam conscientes, é através delas que alguém pode se tornar consciente (PRINZ, 2012, p. 1145). Com efeito, em seu primeiro livro, Furnishing the Mind, Prinz (2002, p. 149) argumenta que:

[...] conceitos são tipos de procuradores (proxytypes), i.e. tipos (types, em oposição a tokens) autorizados para agir no lugar de outros, ou construções perceptualmente derivadas e altamente variáveis na memória ativa, derivadas de redes de memória de longo-prazo que servem como detectores de instâncias de categorias.

O papel e a função de conceitos que, por procuração (proxy), dão conta de complexos processos de percepção e cognição não incorrem em nativismo ou inatismo (ao contrário do que afirmam autores como Chomsky, Fodor e Pinker). Assim como Hume o afirmou no primeiro livro de seu Treatise of Human Nature (“On Understanding”), Prinz se propõe a revisitar a conjectura sobre a origem de nossas ideias como cópias de impressões, através de um “empirismo de conceito” (concept empiricism), cuja tese central consiste em afirmar precisamente que “todos os conceitos são cópias ou combinações de cópias de representações perceptuais”3 (PRINZ, 2002, p. 108). Num outro registro, Prinz parte de uma teoria empirista das emoções –também inspirada no Treatise de Hume— para reconstruir o que seria uma teoria sentimentalista da moral: “A psicologia moral acarreta em fatos acerca da ontologia moral, e uma psicologia sentimental pode implicar uma ontologia subjetivista” (PRINZ, 2004, p. 8). Assim como Damásio e Pereira Jr., Prinz rejeita versões metafísicas, reducionistas e metodológicas do naturalismo forte (ou fisicalismo) para reabilitar um naturalismo de transformação (transformation naturalism, i.e. “a view about how we change our views”) que pode ser sistematicamente revisado à luz de descobertas científicas e de resultados das ciências empíricas do comportamento, segundo um holismo quineano.

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[…] all (human) concepts are copies or combinations of copies of perceptual representations.

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Ora, se quisermos explorar dois problemas que unem a concepção moderna de liberdade (e seus correlatos iluministas de autonomia, emancipação e progresso moral) a formulações empíricas, analíticas e continentais das ciências sociais e do naturalismo de forma a evitar o dualismo de substâncias, propriedades e eventos), devemos investigar a articulação entre normatividade epistêmico-teórica e prático-moral e o problema do monismo em filosofia da mente, na medida em que somente assim não incorreríamos na identificação simplista entre uma normatividade mental contraposta a descrições naturalistas de processos cerebrais. Prinz logra revisitar concepções clássicas, modernas e contemporâneas de filosofia moral, para propor um construcionismo moral emotivista no terceiro volume de sua trilogia (The Emotional Construction of Morals. Oxford University Press, 2004). Nesse sentido, o utilitarismo e o emotivismo podem ser chamados de teorias emocionistas fracas, porque elas implicam uma tese emocionista e não a outra. Uma teoria emocionista forte implicaria ambas. A teoria da sensibilidade é o exemplo mais saliente. Segundo Prinz, podemos formular duas teses diretrizes:

(S1) Tese Metafísica: Uma ação tem a propriedade de ser moralmente certa (errada) apenas no caso que provoca sentimentos de aprovação (desaprovação) em observadores normais sob certas condições. (S2) Tese Epistêmica: A disposição para sentir as emoções mencionadas no S1 é uma condição de posse sobre o conceito normal de CERTO (ERRADO).

Trata-se, portanto, de construir uma teoria moral que preserva o princípio humeano de que não podemos derivar o que deve ser (ought) do que é (is) endossando um naturalismo moral. Podemos usar premissas descritivas para derivar fatos prescritivos (como sugeriu, de forma provocativa, John Searle). Fatos prescritivos relacionados a conceitos como “bem e mal”, “moralmente certo e errado”, devem necessariamente envolver sentimentos e são essencialmente subjetivos. A análise de nossos conceitos morais está fortemente conectada a nossas respostas subjetivas. A psicologia moral acarreta fatos sobre a ontologia moral. A moralidade depende de nossos sentimentos e varia no tempo e no espaço, ou seja, varia histórica e culturalmente. Segundo o emocionismo forte de Prinz, as emoções são a base da moralidade, pois os sentimentos criam os sistemas morais.

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Destarte, seria possível reexaminar problemas de normatividade e naturalismo na interface entre abordagens metaéticas e de filosofia da mente de forma a tornar relevante para uma releitura teórico-crítica da filosofia social (esp. em autores como Habermas e Honneth) abordagens da filosofia analítica, particularmente em epistemologia social e neurociências. Para tanto, podemos servir-nos da instigante contribuição de Prinz sobre o inatismo e a origem biológica das emoções e dos sentimentos morais. A nossa hipótese de trabalho é que o intuicionismo ético, assim como o realismo moral e o quaisquer versões de absolutismo ético, se mostram hoje insustentáveis quando abandonamos uma abordagem meramente metaética e procuramos dar conta de todas as variáveis exigidas para uma reformulação satisfatória do problema da normatividade ético-moral, em particular na sua concepção de natureza humana e do problema do livre arbítrio ou da liberdade (compatibilismo versus determinismo). Somos obrigados a abandonar uma abordagem meramente metaética ou qualquer forma de solipsismo metodológico se quisermos levar o problema ético-normativo a sério e evitarmos formas sutis de autismo acadêmico ou de patologias sociais. De resto, a liberdade pode ser entendida não apenas como uma ideia (no sentido kantiano ou hegeliano do termo) mas como uma experiência histórica social complexa, cuja negatividade e reflexividade teriam sido decerto exploradas por filósofos modernos e contemporâneos (de Hobbes a Habermas), mas cuja normatividade jurídicopolítica deve ser reconstruída a partir da gramática moral de nossas lutas pelo reconhecimento (Honneth). Prinz chega, assim, a enunciar as três metas programáticas de sua pesquisa interdisciplinar em ciências cognitivas e neurofilosofia, viabilizando um construcionismo social mitigado que evita tanto o normativismo ético-moral quanto o naturalismo reducionista:

A primeira meta é fornecer um suporte empírico para uma teoria que foi inicialmente desenvolvida a partir de uma poltrona. O segundo objetivo é adicionar alguns detalhes para a teoria de Hume, incluindo um relato dos sentimentos que sustentam nossos juízos morais, e uma conta da ontologia que resulta de levar uma visão sentimentalista a sério. O meu terceiro objetivo é mostrar que esta abordagem conduz ao relativismo moral. Hume resistiu ao relativismo, e eu argumento que ele não deveria. Eu também investigo a origem dos nossos sentimentos morais, e sugiro que a abordagem genealógica de Nietzsche à moral tem muito a contribuir aqui. A história resultante é metade humeana e metade nietzschiana, mas eu faço a parte nietzschiana se encaixar naturalmente na parte de Hume. (PRINZ, 2004, p. 2) 77

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Assim, o Monismo de Triplo Aspecto permite uma articulação profícua entre uma tese naturalista de realismo científico e uma tese neurofenomenológica sobre a irredutibilidade de instâncias da primeira pessoa, dada a co-constituição de mundo e subjetividade em processos cognitivos reflexivos. Como em John Searle, o problema mente-cérebro teria destarte uma solução simples, compreendendo um naturalismo consistente com uma concepção do senso comum sobre os estados mentais, na medida em que tais estados são características do cérebro causados por processos neurofisiológicos, mas cuja experiência de primeira pessoa e seu caráter qualitativo-fenomenal na consciência não poderiam ser redutíveis a algoritmos, assim como a própria semântica seria irredutível a uma sintaxe. Assim como o problema da ontologia poderia ser articulado em termos naturalistas, por exemplo, de um fisicalismo mitigado, não-reducionista, evitando teses behavioristas e intelectualistas, o problema da consciência poderia nos remeter aos sentimentos e processos de se tornarem conscientes quando seus conteúdos disposicionais – que, segundo Damásio, são sempre inconscientes e existem de forma dormente – são apropriados pela narrativa, rememoração ou simples pensamento de quem pode “falar” na primeira pessoa (DAMÁSIO, 2002, p. 401). Interessantemente, o ponto de desacordo entre Pereira Jr. e Damásio consiste precisamente na distinção entre sentimento e emoção, sendo que o segundo favorece uma leitura mecanicista de fenômenos de retroativação com sincronização temporal [time-locked retroactivation] para captar um mecanismo capaz de dar coerência no espaço e no tempo às atividades necessariamente fragmentadas de nosso cérebro, permitindo falar de sentimentos inconscientes como formas possíveis de representações mentais. Com efeito, Damásio reconheceu os limites da sua terminologia, tanto no que diz respeito às imagens e representações como na própria concepção de um mapeamento cerebral, que não apenas reflete o ambiente que o circunda mas “constrói mapas desse ambiente usando seus próprios parâmetros e sua própria estrutura interna” (DAMÁSIO, 2002, p. 403). O que caracteriza a experiência fenomenal ou dos qualia é que seja própria de um único mapeamento criativo de tais fenômenos, de quem os experiencia e está consciente de tais e tais sentimentos e emoções. Segundo Damásio (2002, p. 398):

[a] aparência da emoção pode ser simulada, mas o modo como os sentimentos são sentidos não pode ser copiado em uma peça de silício. Os

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Alfredo Pereira Jr. entre Damásio e Prinz sentimentos não podem ser reproduzidos em silício, a menos que a carne e as ações do cérebro sobre ela sejam copiadas, a menos que se copie a percepção que o cérebro tem da carne depois de ter agido sobre ela.

Assim como Pereira Jr., Damásio adota uma leitura fenomenológica ao insistir sobre a instância irredutível de primeira pessoa de quem percebe, experiencia ou sente algo. É simplesmente impossível ter a mesma experiência de consciência de outra pessoa. Em última análise, o diferencial da consciência provém da “ligação eficaz que ela estabelece entre o mecanismo biológico de regulação da vida do indivíduo e o mecanismo biológico do pensamento” (DAMÁSIO, 2002, 385). Assim como Prinz, Pereira Jr. evita o mecanicismo damasiano e procura explicitar em que consiste a linha divisória entre sentimentos e emoções, apontando para a emergência da consciência em correlatos neurais das experiências perceptuais e de primeira pessoa, que são precedidas de processos cognitivos

inconscientes.

Tais

processos

informacionais

contendo

mapeamentos,

representações e signos, assim como “suas dimensões sintática e semântica formal, podem ocorrer de modo inteiramente inconsciente, como na operação de um computador digital” (p. 3). A visualização concêntrica dos três aspectos em pauta favorece, ademais, a leitura espinosista adotada por Damásio e vários neurocientistas em busca de alternativas naturalistas ao dualismo de substância e suas variações funcionalistas. A “virada sentimental” proposta por Pereira Jr. parece muito próxima da concepção prinziana de revisitar pelo relativismo cultural concepções tradicionais da ética (teleológicas, utilitaristas e deontológicas) de forma a revisitar nossos hábitos sentimentais e os fatores culturais que constituem a nossa identidade pessoal.

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UMA VISÃO ALTERNATIVA AO MONISMO DE TRIPLO ASPECTO PARA OS CONCEITOS DE SENTIMENTO E CONSCIÊNCIA Ricardo Ribeiro Gudwin1

1. Introdução Em seu artigo “O Conceito de Sentimento no Monismo de Triplo Aspecto”, publicado nesta edição especial da Kínesis, o Prof. Alfredo Pereira Jr. nos apresenta sua visão de como o sentimento seria o aspecto fundamental na determinação da consciência. Para a construção de seu argumento, o Prof. Pereira Jr. se serve de evidências da neurociência que sugerem que as células gliais do cérebro (principalmente os astrócitos), formariam uma rede paralela à rede formado pelos neurônios, por onde fluiriam ondas de cálcio, que o Prof. Pereira Jr. relaciona diretamente à noção de sentimento. Essas ondas de cálcio (instanciando os sentimentos), seriam responsáveis por apontar os neurônios, na rede neuronal do cérebro, que carregariam informação cognitiva, e que, em sendo apontados, trariam essa informação cognitiva à consciência. Dessa maneira, os sentimentos (na forma das ondas de cálcio fluindo pelas células gliais) fariam o papel de direcionadores do foco de atenção sobre o universo de informações cognitivas fluindo nos neurônios cerebrais, selecionando parte dessa informação cognitiva que seria então promovida à consciência. Utilizando essa ideia como base, o Prof. Pereira Jr. desenvolve uma posição filosófica que denomina Monismo de Triplo Aspecto (MTA daqui em diante), pela qual defende que a realidade se constituiria de três aspectos independentes e mutuamente irredutíveis: matéria/energia, forma/informação e sentimento/consciência. Na sequência deste trabalho, faremos inicialmente uma análise crítica das ideias do Prof. Pereira Jr., tentando desvendar as origens da ideia do MTA, a partir (i) das ideias de monismo de duplo aspecto, (ii) das evidências sobre o papel das células gliais no cérebro, e (iii) da teoria de consciência de Bernard Baars. Isto para então propor uma visão alternativa à apresentada pelo Prof. Pereira Jr., utilizando como base a Teoria da Significância de Charles Morris, e proceder a uma comparação entre o MTA e nossa abordagem alternativa, finalizando com nossas conclusões.

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Professor Associado da Faculdade de Engenharia Elétrica e Computação da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. E-mail: [email protected]

Uma visão alternativa ao monismo de triplo aspecto

2. Do monismo de duplo aspecto ao monismo de triplo aspecto Na Ciência Cognitiva, o assim chamado “problema corpo-mente” gerou posições contrárias na História da Filosofia da Mente: o dualismo, propondo que corpo e mente seriam duas partes distintas da realidade; e o monismo, propondo que corpo e mente seriam de fato uma única realidade. Diferentes posições monistas poderiam ser derivadas daí. A posição mais popular é a posição fisicalista, que entende que toda a realidade é física, e que a mente emergiria a partir de interações específicas entre elementos da realidade física. Dessa forma, a consciência (como parte da mente) seria somente um epifenômeno de um processo físico. Entretanto, essa não é a única visão monista. A posição idealista (que também é monista) sugere o contrário: que a realidade é somente ideia, ou seja, que a mente é a única realidade e que mundo físico seria um epifenômeno da mente. Entre essas duas visões surgiram diversas propostas de monismos de duplo aspecto, onde o mental e o físico seriam dois aspectos distintos de uma mesma e única realidade. Observe-se que a posição monista de duplo aspecto, apesar de se dizer monista, suscita uma série de possíveis críticas. Não seria o monismo de duplo aspecto uma espécie de dualismo disfarçado? Afinal de contas, se o contínuum corpo-mente é maior do que somente o corpo, então haveria algo mais além do físico. O que seria esse algo a mais, que faz com que o corpo-mente seja maior do que simplesmente uma realidade puramente física? Qual seria a natureza desse algo-a-mais? Infelizmente, os proponentes das diversas versões de monismo de duplo aspecto não nos dão uma resposta definitiva sobre essas questões. Apesar disso, a ideia de um monismo de duplo aspecto se mantém como uma hipótese filosófica a ser considerada, apesar das dificuldades que apresenta para uma comprovação científica. Uma das propostas de monismo de duplo aspecto é a de Panksepp (2005), uma variação do monismo de duplo aspecto de Espinosa, que exorta a importância dos sentimentos na determinação da consciência, como no MTA. Talvez, venham daí dois dos aspectos apontados no MTA: o aspecto matéria/energia e o aspecto sentimento/consciência. E de onde veio o terceiro aspecto? Para entendermos melhor esse terceiro aspecto, temos que nos reportar à Teoria de Consciência de Bernard Baars (1988). A teoria de consciência de Baars é uma teoria completamente fisicalista da mente, que explica a consciência como sendo a emergência de um processo serial 82

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coordenado a partir da interação de múltiplos agentes interagindo em paralelo, segundo um processo coordenativo que resulta no compartilhamento global de um grupo de informações selecionadas competitivamente, como em um processo evolutivo. A melhor maneira de compreender a teoria de Baars é empregando a metáfora da mídia de massa (por exemplo, a Internet), na geração da consciência da nação. Imaginemos a nação, como um grupo de pessoas que vivem e interagem em uma determinada região. Essas pessoas interagem entre si, de uma maneira totalmente localizada e em paralelo. Coisas acontecem o tempo todo ao longo do país, mas sem a mídia de massa, só teríamos a informação que nos é passada diretamente pelas outras pessoas com quem interagimos. Entretanto, com o surgimento da mídia de massa, a informação pode ser propagada em “broadcast”, ou seja, em massa para toda a nação simultaneamente. Mas qual a informação que é propagada em broadcast? Aquela que por um processo competitivo se mostrou mais relevante naquele momento, ou mais importante. Essa informação é portanto propagada na mídia de massa e toda a nação fica consciente de que isso ou aquilo está acontecendo na nação. Da mesma maneira, Baars explica que isso acontece no cérebro. Diferentes neurônios do cérebro se comunicam localizadamente com outros neurônios, processando informação. Essa informação é dita inconsciente. Entretanto, segundo Baars, um processo competitivo se instaura que levará à seleção da informação mais importante ou mais relevante dentre esse universo de processos inconscientes, e os processos selecionados serão em seguida disponibilizados em broadcast para todos os outros neurônios do cérebro, gerando a consciência. Para Baars, portanto, a consciência é o stream de informações que é propagado a cada instante em broadcast para todo o resto do cérebro. A teoria de Baars foi recebida com certo cuidado pela comunidade de estudos de consciência. Dentre os aspectos positivos da teoria, estavam que a mesma possuía um nível de descrição que permitia a síntese de processos artificiais em dispositivos físicos, até mesmo na forma de simulações computacionais. Dentre os aspectos negativos estavam a dificuldade em abarcar certos aspectos do fenômeno da consciência, que não eram facilmente explicáveis. Dentre estes, a questão da consciência fenomenal (ou “qualia”), e a questão da formação do “self”, ou seja, a unidade subjetiva a que costumamos atribuir uma identidade e que para alguns seria o cerne do fenômeno da consciência. Estão presentes ainda questões implementacionais: como seria feito esse “broadcast” no cérebro, e como seria o mecanismo de geração de atenção responsável por selecionar quais as informações que sofreriam o broadcast? 83

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É aí que entra a evidência neurocientífica das redes de células gliais e sua influência na rede de neurônios do cérebro. Para o Prof. Pereira Jr., estava claro que as ondas de cálcio, até pelas suas características temporais, fariam o papel de selecionadoras da atenção sobre quais as informações contidas nos neurônios seriam propagadas via broadcast para o resto do cérebro. O passo seguinte seria associar essas ondas de cálcio à formação do sentimento, na mecânica cerebral, segundo a proposta de Panksepp. A partir disso, veio o surgimento do terceiro aspecto no MTA. A informação processada pelos neurônios seria a informação cognitiva. O sentimento seria instanciado pelas ondas de cálcio, cumprindo seu papel de indicar quais as informações cognitivas que deveriam sofrer o broadcast. Para isso, era necessário que o monismo de duplo aspecto fosse estendido de um aspecto a mais, e aí então o monismo de duplo aspecto dá origem ao monismo de triplo aspecto, como apregoado pelo Prof. Pereira Jr. Entretanto, algumas questões ainda resultam não respondidas. Se a teoria de Baars, que é completamente fisicalista, poderia dar conta de explicar a consciência, por que propor uma teoria não fisicalista como o MTA, com a consequente responsabilidade de lidar com os aspectos não físicos da realidade? Talvez para dar espaço para uma explicação da formação do “self”, que ainda não está claro na teoria de Baars? Não seria mais fácil simplesmente apontar as ondas de cálcio como o mecanismo de foco de atenção e pronto? E, em segundo lugar, por quê associar as ondas de cálcio ao “sentimento”? E, por quê esse sentimento não poderia ser considerado como “informação”? Somente por não estar codificado nos neurônios, e sim nas células gliais? Em nossa visão, apesar do substrato distinto (neurônios versus células gliais), tanto os neurônios como as células gliais carregam sim informação. A única diferença é que há sistemas separados para processar essa informação. Enquanto a informação cognitiva é processada nas redes de neurônios, a informação de sentimento seria processada nas redes de células gliais. A proposta de dois aspectos distintos forma/informação e sentimento/consciência no MTA fica aqui um pouco comprometida, em virtude de considerarmos o sentimento como elemento formador da consciência e também uma característica de informação. Não seriam, portanto, aspectos irredutíveis entre si.

3. Uma visão alternativa utilizando a Semiótica de Morris como base

Para dar sequência à análise crítica aqui preconizada, vamos elaborar uma 84

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proposta alternativa, que prescinde do recurso de um monismo de múltiplos aspectos (e sua proposta de uma parte da realidade extrafísica), utilizando como base a Semiótica de Morris. Em seu livro “Signification and Significance”, Charles Morris (1964) faz uma análise bastante significativa, em nossa visão, do processo de semiose. Semiose, ou processo sígnico, é o processo por meio do qual um signo, que mantém uma relação com um determinado objeto, dando origem a um interpretante. O interpretante, ou “efeito” do signo, é tudo aquilo que pode decorrer da interpretação do signo. Normalmente, esse interpretante é outro signo, que mantém um relacionamento (do mesmo ou de outro tipo) com o mesmo objeto com que o signo mantinha um relacionamento. Com isso, dizemos que o signo “representa” seu objeto, uma vez que tem o poder de gerar um efeito, onde esse objeto também está envolvido de alguma maneira. Segundo Morris analisa em seu livro de 1964, esse interpretante possui três diferentes dimensões: as dimensões designativa, apraisiva e prescritiva. Essas dimensões estão relacionadas, além do significado, à significância de um signo. A dimensão designativa está associada normalmente ao conceito original de significado. Entretanto, as dimensões apraisiva e prescritiva estão associados ao aspecto pragmático do signo, como um gerador de uma ação. A dimensão prescritiva diz respeito a uma determinada ação (ou um impulso a uma ação) que pode ser o efeito da interpretação do signo, e a dimensão apraisiva diz respeito a um valor, uma avaliação da conveniência ou relevância dessa ação como uma possível ação a ser gerada pelo agente semiótico (ou pela mente, se assim o quisermos dizer). Voltemos, então, ao triângulo sentir-conhecer-agir que caracteriza uma mente (ou agir-conhecer-sentir, como o Prof. Pereira Jr. sugere em seu artigo). Vemos aqui uma ligação estreita entre o agir e o aspecto comportamental – ou ainda, a dimensão prescritiva do interpretante de Morris. Vemos ainda uma ligação estreita entre o sentir/sentimento – e a dimensão apraisiva do interpretante, segundo Morris. Por fim, fica a ligação entre o conhecer/informação cognitiva, e a dimensão designativa do interpretante segundo Morris. Utilizando o interpretante multidimensional de Morris, podemos conseguir diferentes tipos de categorias e entidades cognitivas. Signos informativos, ou que meramente detectam objetos e situações representadas da realidade teriam uma predominância em sua dimensão designativa. Valores, ou outras entidades axiológicas teriam uma predominância em sua dimensão apraisiva. E ações, ou impulsos a ações teriam uma predominância em sua dimensão prescritiva. Nessa visão alternativa, os sentimentos nada mais seriam do que informações que servem como 85

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avaliações em processos de seleção de ação desenvolvidos no interior da mente. Ações essas, que seriam indicadas exatamente pela dimensão prescritiva dos interpretantes. Vamos comparar a visão proposta pelo MTA com essa visão alternativa segundo a semiótica de Morris. Na visão do MTA, o sentimento é um aspecto independente e irredutível da realidade, que possui alguma parte extrafísica ainda não evidenciada. Segundo a Figura 1 do artigo de Pereira Jr., poderiam haver características de processos conscientes que se estenderiam aos processos físicos e informacionais. Já argumentamos anteriormente que essa questão da irredutibilidade não está bem evidenciada, que o sentimento, na forma de uma onda de cálcio veiculada pelas redes de células gliais não deixaria de ser informação, porém veiculada por uma rede independente no cérebro. Na visão alternativa, segundo a semiótica de Morris, um sentimento, ao contrário, seria um signo cujo interpretante tem predominância em sua dimensão apraisiva, ou seja, uma visão completamente fisicalista (bem determinada e funcional) de sentimento. Observe-se que: enquanto no MTA o sentimento é vendido como uma entidade categorialmente distinta da realidade, sem uma explicação mais aprofundada sobre como deveria ser essa realidade estendida, em nossa proposta alternativa o sentimento se diferencia também de uma informação puramente designativa, mas de uma maneira mais concreta e palpável. Nesta visão, um sentimento é um tipo de signo que deverá ser utilizado posteriormente pela mente para ponderar sobre a seleção de ação que essa mente irá perpetrar. Em nossa visão, aquilo que parece ainda “misterioso” no MTA se transforma em uma proposta compreensível e funcional no modelo alternativo. Além disso, o modelo alternativo ainda permite que as ondas de cálcio sejam utilizadas para explicar o mecanismo de geração de foco de atenção no processo coordenativo gerador de consciência. A diferença é que em nosso modelo alternativo, essas ondas de cálcio não necessariamente estão atreladas a sentimentos (embora possam o ser, pois avaliações internas são necessárias para distinguir o que deve ir ou não para a consciência), e certamente veiculam informação, da mesma maneira que signos puramente designativos.

4. Conclusão

O MTA, apesar de propor uma hipótese interessante para explicar o sentimento e seu papel na formação da consciência, ainda possui diversos pontos que precisariam ser melhor elaborados, de forma a constituir uma proposta aceitável àquilo que se propõe a 86

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modelar. Em primeiro lugar, seria necessário justificar o apelo a uma parte da realidade que se estenderia além do físico, pois uma proposta puramente fisicalista, apresentada aqui na forma de uma hipótese alternativa baseada na semiótica de Morris, aparentemente possui um poder explanatório similar ao MTA, sem ter que apelar para um monismo de múltiplos aspectos e suas dificuldades metafísicas (lembremos da navalha de Ockham). Em segundo lugar, seria importante trazer maiores evidências da associação da onda de cálcio nas células gliais com a noção de sentimento. Reduzir uma à outra talvez seja uma hipótese forte demais. Precisamos lembrar que outras coisas ganham acesso à consciência, além da percepção, tais como episódios oriundos da memória episódica, ou imaginações ou planos para o futuro. É importante ressaltar aqui que qualquer critério que seja utilizado para selecionar o que vai para a consciência envolve uma avaliação (e, portanto, um valor ou signo apraisivo), o que seria um sentimento em nossa visão alternativa. Talvez existam de fato implicações entre as ondas de cálcio e sentimentos, implicações essas que a visão alternativa da semiótica de Morris possa até ajudar a esclarecer. E, finalmente, talvez esclarecer melhor a questão da constituição e operação do “self”, que nem o MTA, nem a proposta de Baars, e nem a visão alternativa baseada na semiótica de Morris dão conta ainda de explicar. Referências BAARS, B. A Cognitive Theory of Consciousness. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. MORRIS, C. Signification and Significance: A Study of the Relations of Signs and Values. Cambridge: MIT Press, 1964. PANKSEPP, J. Affective Consciousness: Core Emotional Feelings in Animals and Humans. Consciousness and Cognition, v. 14, p. 30-80, 2005. PEREIRA JR., A. O Conceito de Sentimento no Monismo de Triplo Aspecto. Kínesis, Edição Especial – Debate”, v. 7, n. 15, p. 1-24, 2015.

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CONSCIÊNCIA COMO ATRIBUTO CEREBRAL: UMA RÉPLICA A “O CONCEITO DE SENTIMENTO NO MONISMO DE TRIPLO ASPECTO” Armando Freitas da Rocha1

1. Introdução

A necessidade ou não da crença na sobrevivência do Eu após a morte inspira o dualismo ou monismo, respectivamente. A imortalidade do Eu não é passível de observação empírica e, portanto fica restrita ao campo das crenças. Nesse contexto, a imortalidade é plausível e suportada por uma coerência sintática de qualquer raciocínio lógico ou linguístico, mas não por uma coerência semântica. A aparente dualidade mente (alma) e corpo gerada pela enorme distinção entre matéria (substância) e energia (movimento) também colabora para manter viva a discussão monismo versus dualismo. Mas a ciência moderna, principalmente a física, tem contribuído para mostrar que essa distinção não se deve a existência de duas entidades distintas, mas apenas a manifestações modais da mesma entidade. A matéria como estudada pela física clássica obedece a leis distintas daquelas que influenciam a dinâmica das partículas como estudada pela física quântica. Mas nesse contexto, corpo e mente interagem da mesma maneira pela qual partículas interagem na constituição da matéria. Não há dualismo. No início desse milênio a ciência começou a discutir a possibilidade do desenvolvimento de computadores quânticos (BENNET & DIVINCENZO, 2000; BOUWMEESTER & ZEILIGNER, 2000; CIRAC & ZOLLER, 2000; ROCHA et al, 2002, 2004 e 2005; ROCHA & ROCHA, 2010). Os computadores atuais o processamento da informação depende de alterações de estados binários de máxima ou mínima energia do processador. A unidade de informação é o bit que mede a máxima incerteza na determinação desses estados. A indeterminação de estados na física quântica gera a possibilidade da criação de processadores de múltiplos estados ao incluir também os estados intermediários entre os estados de máxima e mínima energia. A unidade de informação é o qbit cujo valor depende do número de estados intermediários (Figura1). 1

Pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Diretor Científico da EINA Estudos em Inteligência Artificial e Natural. E-mail: [email protected]

Consciência como atributo cerebral

Figura 1 – Processadores clássicos e quânticos

Estudos com sequestros de íons em ambientes controlados (Figura 2) mostraram a plausibilidade dessas ideias (BENNET & DIVINCENZO, 2000; BOUWMEESTER & ZEILIGNER, 2000). Rocha e colaboradores (ROCHA et al, 2001, 2004a,b) estudaram a viabilidade da existência de computadores neurais quânticos e mostraram que processadores cerebrais quânticos poderiam se criados a partir do sequestro controlado de íons cálcio em organelas celulares em neurônios e ou células da glia.

Figura 2 – Implementando processadores quânticos artificiais (A) e biológicos (B). Em A: um íon é sequestrado em um campo magnético e pulsos laser são usados para controlar o processamento quântico, determinado pelo estado o íon após a decoerência e que é registrado por sensores. Em B: o íon Ca2 é sequestrado em uma organela e energia metabólica controla seu estado quântico,enquanto que o processos enzimáticos controlados pelo Ca2 sofrem a influência do Ca2 liberado na decoerência.

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O controle do sequestro de cálcio envolve circuitos iônicos e vias metabólicas controladas por canais de NMDA (Figura 3). A ativação correta dessas duas vias coloca os íons de Cálcio (Ca2) em estado de coerência quântica em vários locais do cérebro inicializando o ciclo de processamento, e a decoerência que ocorra em qualquer desses locais provoca a decoerência em todos os outros, finalizando o ciclo de processamento quântico que afeta a dinâmica cerebral em todos os locais, gerando então o processo de unificação do processamento.

Figura 3 – Controlando o sequestro de íons Ca2 para implementar processadores neurais quânticos. O Ca2 que entra na célula através do canal NMDA controla um cadeia de transdução de sinais que envolve vária enzimas que controla a atividade da CaMKII que por sua vez controla a energia disponibilizada para modular o estado quântico do Ca2 sequestrado. A quantidade de Ca2 que entra pelo canal NMDA é controlada pela atividade do canal iônico, o que permite detectar a coerência da circularidade da informação.

A coerência de estados do Ca2 é obtida através da circularidade da ativação cerebral (Figura 4) que deve ocorrer em vários ciclos bem definidos (ROCHA et al, 2015). Mais detalhes sobre o processo podem ser obtidos em Rocha et al (2004b) e Rocha & Rocha (2010). A proposta central feita por Rocha et al (2002) é a de que a consciência é um atributo do processamento quântico criado quando do processo de decoerência dos estados do Ca2. É dentro desta visão teórica que se colocam os comentários a seguir.

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Figura 4 – Criando a coerência quântica através da circularidade da distribuição da atividade neuronal. Representação esquemática da circularidade da informação entre diversas áreas corticais.

2. O sentimento e o Monismo de Triplo Aspecto

Segundo Pereira Jr (2015, p. 3):

[...] há uma ordem na atualização de potencialidades da Natureza [...] que se inicia no domínio físico-químico-biológico, com os processos de matéria/energia no espaço-tempo, e prossegue no plano formalinformacional, no qual são caracterizados os processos cognitivos, ou seja, aqueles em que os objetos e processos são mapeados ou representados por meio de signos. Os sentimentos emergem a partir de processos cognitivos, quando os conteúdos da informação são sentidos, e se tornam conscientes. Há uma continuidade entre a recepção da informação pelos sistemas cognitivos, a atribuição de significados experienciais e a instanciação de sentimentos, os quais, segundo o MTA, corresponderiam a um “feedback” da informação (considerada em suas dimensões sintática e semântica) sobre a estrutura material do sistema. Neste sentido, haveria uma identificação dos sentimentos com processos afetivos, no sentido literal da expressão. Máquinas incapazes de serem afetadas em suas operações materiais/energéticas pela informação que processam não poderiam ser consideradas como sendo conscientes.

A seguir, o autor (2015, p. 10-11) enumera 5 tipos básicos de sentimentos:

1) Sensações Básicas, como: sentir fome, sede, calor, frio, etc.; 2) Sentimentos Emocionais, como: alegria, tristeza, raiva, medo, coragem, etc.

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Consciência como atributo cerebral 3) Sentimentos Cognitivos, ou crenças: é o tipo de sentimento que temos quando acreditamos ter um determinado conhecimento, ou quando acreditamos não tê-lo 4) Sentimentos Perceptivos, ou “qualia”: estes sentimentos são típicos das modalidades sensoriais (p. ex., cor na visão; som na audição; odor no olfato, etc.). 5) Sentimentos de Acontecimentos, ou sentido existencial: esse é o tipo de sentimento que nos ocorre quando apreciamos o significado de uma notícia (p. ex., quando sentimos a morte de uma pessoa querida), ou ainda quando avaliamos o sentido de um evento para nossa existência pessoal.

Nessa visão, o autor assume que o sentimento não é uma representação mental, mas sim uma experiência vivida interpretada como o significado da informação gerada por um evento e combinada com a totalidade de nosso corpo. Nesse contexto, assume que “focos” formados por representações e respectivos sentimentos constituem episódios conscientes. Ao se estabelecer o feedback endógeno do sentimento sobre a informação, é gerada a consciência.

3. Os comentários

A primeira observação a ser feita se refere ao fato do autor não ter feito nenhuma referencia a trabalhos anteriores (ROCHA et al, 2001, 2005), no qual foi co-autor, nos quais se correlacionou processamento quântico, Ca2 e processo consciente. A consequência é que Pereira Jr (2015) acaba enfrentando algumas dificuldades desnecessárias como a definição extremamente abstrata de episódios conscientes, acima ressaltada. Outra dificuldade se refere a exigir que apenas processos cognitivos que afetam o corpo possam ser conscientes. Essa exigência leva, por exemplo, a problema do tipo discutido a seguir. O controle da frequência cardíaca é feito o partir de informações colhidas por sensores de pressão e pulsação e manipulação do simpático e parassimpático. É um processo cognitivo? Ou é como qualquer outro processo de controle por retroalimentação, que pode ser instalado, inclusive por meios hidráulicos. Além disso, é um processo inconsciente durante a maior parte da vida do indivíduo, embora afete o corpo continuamente. Mas pode ser “conscientisável” como palpitações em condições patológicas ou emocionais. Nem todos os processamentos cerebrais são conscientes. O controle neurovegetativo, por exemplo, é fundamentalmente realizado a nível inconsciente.

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Alguém por justificar, mas eles são fundamentalmente processamentos subcorticais. Mas vários processamentos, por exemplo, visuais envolvendo neurônios corticais são realizados inconscientemente, como quando por exemplo, em função da visão lateral desviamos a trajetória do carro que estamos dirigindo. A distinção dos processos conscientes e inconscientes, dentro da visão de que os primeiros exigem uma computação quântica e os segundos não, começa a ser definida a partir da quantidade de informação a ser processada. Se for baixa, um processamento clássico pode ser capaz de manejá-la, se aumentar, será necessário recorrer à maior capacidade dos processadores quânticos. Outro fator determinante do uso do processamento quântico é a necessidade de unificação de processamentos de distintas informações, como por exemplo, a necessidade de integrar processamento visual e auditivo, para identifica que é aquela pessoa localizada naquela posição que está falando. Além disso, o cérebro é capaz de realizar processamentos concorrentes, pois opera como um Sistema Inteligente de Processamento Distribuído (ROCHA et al, 2005). Por isso, o conflito entre soluções oferecidas para a mesma tarefa por diferentes circuitos neurais é frequentemente alto. Nessas condições, é necessária uma distribuição ampla de informação para todos os circuitos envolvidos, para que se possa obter uma solução de compromisso ou definida por outras regras. Essa distribuição ampla de informação está garantida pela independência dos fenômenos quânticos à restrições espaciais. A proposta de Pereira Jr (2015) de incluir as células gliais como processadores quânticos amplia em muito a proposta original de Rocha et al (2001, 2004, 2005), assim como aumentar radicalmente a capacidade computacional dos cérebros. Dentro dessa visão mais ampla, pode-se admitir que esse tipo de processamento possa existir mesmo em animais de estrutura neural mais simples. Entretanto, ela não equivale a trivializar o processo consciente, pois como discutido acima, há a necessidade de um processo circular de controle da coerência dos íons Ca2 para que possa implementar um processador quântico.

Referências BENNETT, C. H.; DIVINCENZO, D. P. Quantum information and computation. Nature, v. 404, p. 247–255, 2000.

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BOUWMEESTER, D.; EKERT, A.; ZEILINGER, A. The physics of quantum information. Berlin: Springer, 2000. CIRAC, J. I.; ZOLLER, P. A scalable quantum computer with ions in an array of microtraps. Nature, v. 404, p. 579–581, 2000. PEREIRA JR., A. O Conceito de Sentimento no Monismo de Triplo Aspecto. Kínesis, Edição Especial – Debate”, v. 7, n. 15, p. 1-24, 2015. ROCHA, A. F.; PEREIRA JR., A.; COUTINHO, F. A. B. NMDA Channel and Consciousness: from Signal Coincidence Detection to Quantum Computing. Progress in Neurobiology, v. 64, p. 555-573, 2001. ROCHA, A. F.; MASSAD, E.; COUTINHO, F.A.B. Can the human brain do quantum computing. Medical Hypotheses, v. 63, n. 63, p. 895-899, 2004. ROCHA, A. F.; ROCHA, F. T. Neuroeconomia e o Processo Decisório. São Paulo: LTC, 2011. ROCHA, A. F.; MASSAD, E.; PEREIRA JR., A. The Brain: From Fuzzy Arithmetic To Quantum Computing. Springer Verlag, 2004b. ROCHA, A. F.; FOZ, F.B.; PEREIRA JR., A. Combining different tools for EEG analysis to study the distributed character of language processing. Computacional Neuroscience, to appear in 2015.

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RÉPLICA AOS COMENTÁRIOS Alfredo Pereira Júnior1

Agradeço imensamente aos colegas e amigos pela atenção ao meu trabalho, pelos questionamentos, críticas e – como bônus – frutíferas comparações com abordagens de outros autores, possivelmente mais qualificados, e certamente mais influentes no cenário contemporâneo da Filosofia da Mente (e/ou da emergente área de Teoria da Consciência). Como o artigo alvo da discussão não contém uma plena exposição da proposta do Monismo de Triplo Aspecto (MTA), antes de replicar a cada comentador farei uma breve exposição do arcabouço filosófico adotado. Assumo, como Velmans (2009), uma postura realista crítica, para a qual a experiência fenomênica nos revela traços da estrutura do mundo. Teorias científicas e filosóficas são elaborações desta experiência, com o uso da linguagem para representar características atribuídas à realidade. Mesmo quando corretamente direcionadas (conforme avaliações dos próprios pesquisadores), as teorias não deixaram de ser falíveis, contendo erros e equívocos, que podem ser evidenciados e eventualmente corrigidos, a partir de debates como o aqui travado. Estamos deflagrando um processo intersubjetivo intencionalmente voltado para uma aproximação àqueles que julgamos ser os princípios constituintes da realidade. Não podemos conhecer todos os detalhes do real, mas podemos oferecer conjecturas a respeito de seus princípios fundamentais; podemos ainda relacionar tais conjecturas com ações práticas bem sucedidas, que nos sugerem a utilidade dos princípios para se orientar a própria experiência. Enfim, a construção do conhecimento filosófico e científico pode ser considerada como um processo de auto-organização da experiência fenomênica. Não há, portanto, a possibilidade de se situar em perspectiva superior à experiência e analisá-la tomando um referencial absoluto; a construção do conhecimento filosófico e científico se faz por ciclos reflexivos no domínio da experiência. O conceito de consciência aqui defendido implica, novamente com Velmans (2009), uma reflexividade do real, pela qual sistemas conscientes percebem e reelaboram os elementos dos quais são constituídos. Podemos (talvez trivialmente) 1

Professor Adjunto do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista - UNESP – Campus de Botucatu. E-mail: [email protected]

Réplica aos comentários afirmar que tudo o que existe é possível; todo aspecto da realidade vivenciada aqui e agora (por exemplo, aparelhos sem fio propiciando “informação à distância”, de modo semelhante à “ação à distância” atribuída à força gravitacional) deve ser considerado como possível desdobramento dos princípios fundamentais da realidade. Embora não tenhamos condições de conhecer todas as possíveis combinações, podemos inferir, a partir da realidade vivenciada, quais seriam os princípios mínimos necessários para que estas vivências ocorram (parafraseando Kant, podemos investigar as “condições de possibilidade” da realidade vivenciada). É nesta perspectiva que – contrariando um uso indiscriminado da “navalha de Ockham” – são postulados três aspectos fundamentais da realidade. O que se está sustentando é que sem um destes três aspectos a nossa existência não seria possível do modo como ela acontece. Feita esta afirmação, cabe provar, ou argumentar de modo convincente, em prol da necessidade destes aspectos, na composição da realidade vivenciada (e seu respectivo conceito) na contemporaneidade. No capítulo de livro em que o MTA foi originalmente apresentado, elaborei um argumento para sustentar esta tese, com base no que podemos chamar de “método filosófico-interdisciplinar”. Não se trata de um argumento metafísico, mas pragmático (na linha de BROWNING, 1990; este autor distingue três acepções da Teoria do Ser: a metafísica convencional, que busca por princípios não-físicos da realidade; a “ciência universal” dos positivistas, e a ontologia de orientação pragmática, por ele defendida). Na elaboração do conceito de realidade, além de se usar com bom senso o senso comum, assumo a necessidade de se levar em conta os resultados de testes empíricos e demonstrações teóricas considerados adequados pela comunidade científica, assim como as terminologias científicas especializadas e os conceitos a ela subjacentes. Nesta perspectiva, os argumentos filosóficos sobre a realidade devem estar aterrados em modelos científicos. Não devemos elaborar hipóteses sobre a realidade apenas por meio de princípios ‘a priori’ – nem mesmo sobre nossas próprias capacidades cognitivas: a Teoria do Conhecimento filosófica deveria, nesta abordagem, estabelecer diálogo com as Ciências da Cognição. No que tange aos três aspectos, procurei naquele capítulo argumentar que os conceitos fundamentais das ciências físicas, químicas e biológicas não possibilitam - no presente ou como perspectiva futura – reduzir, ou mesmo explicar de modo satisfatório, os

fenômenos

do

segundo

aspecto

(forma/informação)

ou

do

terceiro

(sentimento/consciência). Para entender os segundos, precisamos da Teoria da 96

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Réplica aos comentários Informação, das ciências formais (Matemática, Geometria, Estatística, Computação, Lógica, etc.). Para entender os terceiros, precisamos de introspecção, de elaborações filosóficas a respeito da mente consciente, de relatos de experiências de primeira pessoa (como nas pesquisas qualitativas), de relatos utilizados na metodologia da Neurociência Cognitiva e da Neurociência Afetiva, e/ou de manifestações sócio-culturais (artes, religião, política, etc.) nas quais os sentimentos se expressam. Também me parece evidente que o segundo aspecto não explica o terceiro, uma vez que máquinas com alta capacidade de processamento de informação não apresentam sinais de que teriam algum grau de consciência - mesmo se dotadas de algoritmos que as permitissem aprender por meio da convivência com sistemas conscientes (como no caso do robô Cog, do grupo de Rodney Brooks, do MIT; vide o site: http://www.ai.mit.edu/projects/humanoidrobotics-group/cog/cog.html) ou reconhecerem-se a si mesmas (como - por exemplo no teste do espelho: auto-reconhecimento não é auto-consciência; vide TAKENO et al., 2006). Tendo feito a importante ressalva de que o MTA é uma teoria ontológica interdisciplinar de cunho pragmático, posso agora tentar responder aos interessantes e pertinentes questionamentos feitos pelos colegas. Não tenho a pretensão de ser bem sucedido ao me contrapor a bem elaborados argumentos metafísicos em favor de posições prevalentes (materialismo reducionista, dualismo interacionista, etc.) no contexto da Filosofia da Mente contemporânea, pois não disponho de ferramentas filosóficas para tanto. Meu objetivo principal é mostrar que o MTA possibilita enfocar o problema mente-corpo clássico, ou sua reformulação no “problema difícil da consciência” de Chalmers em uma nova perspectiva, que oferece alternativas inéditas de abordagem conceitual e empírica. Para me municiar com uma terminologia adequada para elaborar as respostas mais difíceis, descrevo aqui uma versão simplificada do modelo da evolução do real exposto em Pereira Jr., Vimal e Pregnolato (2016). Os elementos constituintes da realidade seriam “ondas de energia”, que existem eternamente e instanciam, nos seus padrões dinâmicos (como variações de amplitude, frequência e fase) todas as possibilidades de evolução da realidade. Da interação entre estas ondas se atualizam determinados padrões, ficando os demais recessivos (ou em estado potencial); como exemplo, cito os planetas do sistema solar – em cada um deles se atualizou um padrão, sendo que todos derivam dos mesmos elementos constitutivos do real. Quando as ondas interferem de modo destrutivo, muitas das possibilidades que encarnam não podem ser 97

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Réplica aos comentários atualizadas; é o que ocorre, tipicamente, no estado de equilíbrio termodinâmico, ou em sua proximidade (quando a entropia termodinâmica do sistema é alta). No processo de evolução do real, as interações primárias entre tais elementos conduzem à formação de sistemas materiais, ou seja, aqueles compostos de partículas que se agregam, formando os tipos de átomo classificados pela ciência da Química em sua Tabela Periódica. A formação de tais agregados é acompanhada da estruturação do espaço-tempo físico, de modo que não se pode de fato separar o espaço-tempo da dinâmica da energia/matéria (pode-se, é claro, separar analiticamente). Este seria o primeiro aspecto da realidade, que nos é apresentado em sua riqueza de detalhes pelas ciências físico-químicas. A partir da emergência dos sistemas vivos, uma nova forma de interação entre sistemas materiais se desenvolve, por meio da transmissão de informação no sentido de Shannon-Weaver (ou seja, transmissão da forma instanciada em um sistema material – a fonte - para outro sistema material – o receptor). Este é o segundo aspecto da realidade, tratado pelas ciências formais, que descrevem de modo quantitativo a transmissão das formas e indicam quando ocorre sua transformação qualitativa, que é efetuada por processos dinâmicos que afetam as estruturas envolvidas. Sistemas que processam a informação podem fazê-lo sem apresentar uma atividade reflexiva pela qual a mensagem carregada venha a afetar sua estrutura material. É o que ocorre nas máquinas digitais atuais, que lidam com grande quantidade de informação sem, entretanto, sentir o que as formas por elas representadas e processadas significam. Para que tal reflexividade seja possível, é preciso dispor de sistemas que contenham dois subsistemas, correspondendo à estrutura da consciência proposta por Edmund Husserl. Um destes subsistemas processa a informação e constrói representações (ou mapas, ou símbolos) aptas a se tornarem conteúdos conscientes. O outro subsistema é aquele que vai sentir o que tais representações significam para si mesmo, completando desta forma o ciclo reflexivo necessário para a existência da consciência. Para se completar o diálogo essencial entre os dois polos da estrutura da consciência, o segundo subsistema não pode ser apenas mais um módulo representacional, ainda que dotado de um algoritmo que lhe possibilite se autorepresentar. Ele precisa ser um sistema afetivo, ou seja, que tenha a capacidade de afetar sua própria estrutura material conforme as formas às quais é exposto. Esta propriedade essencial da consciência foi notada no contexto da Filosofia da 98

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Réplica aos comentários Neurociência por Francis Crick e Cristof Koch, quando formularam o “problema da tela e do espectador” e adotarem como solução provisória o “homúnculo metodológico” (CRICK e KOCH, 2003). Em que consiste tal problema? Não bastaria, para a neurociência, explicar como se formam os conteúdos mentais no cérebro (a “imagem” projetada na “tela mental”), pois para haver consciência seria ainda necessário considerar a atividade de um receptor destes conteúdos (o “espectador”). Entretanto, dentro do cérebro do espectador seria necessário existir um espectador ainda menor, e assim teríamos a indesejável progressão a um infinito de homúnculos (a qual os medievais possivelmente conceberiam em termos de uma progressão de anjos até Deus, que seria o receptor final do processo consciente). Apesar de recusarem assumir uma postura filosófica, e de desconhecerem a história desse problema, Crick e Koch tiveram que enfrentá-lo, assumindo a hipótese do “homúnculo metodológico”, que seria uma ficção provisória à espera de progressos da neurociência que possibilitassem uma abordagem científica do problema. De fato, algum progresso neste sentido aconteceu nos últimos 20 anos. O leitor já deve ter antecipado que minha proposta de duas redes biológicas que dialogam entre si na dinâmica consciente (a rede neuronal e a rede astrocitária) tem como alvo a estrutura dialógica da consciência de Husserl (vide também MITTERAUER, 2013). Tendo articulado as ferramentas conceituais acima, posso agora ter alguma chance de responder satisfatoriamente à rica gama de questionamentos e críticas apresentadas pelos colegas que se dispuseram a comentar a proposta. Vou citar e numerar os comentários que requerem resposta, e tratar todos os colegas como “Prof.”, independentemente de suas titulações.

Vinicius Romanini

Começando com os comentários do Prof. Vinícius Romanini, acredito que as considerações acima me permitem responder a suas indagações. Ele aponta: -“Uma formulação monista puramente ontológica tende cair num realismo ingênuo que esconde as nossas limitações cognitivas intrínsecas”. Trata-se efetivamente de uma proposta realista, porém não ingênua. No plano epistemológico, ao se elaborar um modelo com pretensão ontológica, acredito ser

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Réplica aos comentários preciso questionar a dicotomia entre realismo ingênuo e idealismo transcendental. Porque não admitir que nossa experiência fenomênica nos desvela características da realidade, ao menos parcialmente? Ao adotar o método filosófico-interdisciplinar, evitamos as ilusões pueris do realismo ingênuo, pois já partimos de conceitos consagrados pela prática científica e tecnológica. A falibilidade é insuperável, mas não devemos sofrer crises de ansiedade pelo fato de nossas crenças poderem ser falsas (no sentido de pragmaticamente inadequadas). -“Ao adotar a perspectiva de Nagel e Uexkull sobre como se sentem as espécies que experimentam o mundo a partir de seus aparelhos perceptivos, assume-se uma perspectiva mais fenomenológica e epistemológica”. Como mencionado acima, não considero o realismo incompatível com uma postura crítica. Vou além disso, afirmando (sem discutir nesse momento) que toda epistemologia sistemática implica uma ontologia, e vice-versa. Quanto à perspectiva fenomenológica, sabe-se que historicamente foi associada a posicionamentos idealistas platônicos e berkleyanos, mas na contemporaneidade diversos autores têm se esforçado por sua naturalização, como é o caso da corrente “neurofenomenólogica”. Concordo que uma fenomenologia naturalizada é bastante problemática, mas não posso negar que o projeto do MTA implique na construção de uma ponte entre as experiências subjetivas na “perspectiva da primeira pessoa”, e o mundo aparentemente objetivo que é descrito e explicado pelas ciências empíricas, na assim chamada “perspectiva de terceira pessoa”. Vou retornar a essa questão quando discutir o “Problema Difícil” formulado por Chalmers. -“O professor Pereira Jr., e por conseguinte o MTA, parecem estar alinhados com a corrente da neurociência liderada por Damásio, e que coloca a emoção como a expressão corpórea do processamento de informação que ocorre no cérebro, e o sentimento como um estado mental que nada mais é do que um subproduto das emoções [...] Eu discordo desta posição porque para mim, como um pensador próximo à filosofia e à semiótica de Peirce, a ordem de determinação é inversa [...] A informação surge quando sentimentos são sintetizados em sensações, dando origem ao processo semiótico. Por outro lado, a matéria é aquilo que dizemos de todo o que não evolui, não pensa, não cresce e, portanto, se mantém sob as leis chamadas naturais. O monismo de Peirce tem a mente como fundamento, e tudo o mais como decorrência”.

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Réplica aos comentários Os trechos acima mostram com clareza a diferença entre o MTA e a filosofia peirceana; ambas são monistas, mas a ordem de atualizações proposta é inversa. No MTA o processo evolutivo do cosmos é gerado por elementos que existem eternamente, se auto-organizam sem finalidades previamente determinadas e, deste modo, progressivamente atualizam (ou não) os três aspectos. Encontro na filosofia peirceana dificuldades semelhantes às encontradas no idealismo hegeliano: como a Idéia se torna Natureza? Se formos levar a sério as leis físicas de conservação da energia e da matéria, esta transformação do não físico em físico, assumida nas filosofias idealistas, seria impossível.

-“Embora Pereira Jr. dê um importante passo para sair da concepção reducionista de “marcador somático” que Damásio atribui ao sentimento, colocando-o como estofo da consciência, não me parece que esse passo seja o início de uma caminhada que coloque o sentimento como um componente fundamental da realidade e, portanto, presente inclusive em processos que atualmente não são considerados inteligentes, vivos ou conscientes pela ciência. Como seria, enfim, “sentir-se” como uma rocha ou um curso d’água, se é que o MTA nos permite formular uma tal questão?”. Para o MTA, a atualização da forma/informação e do sentimento/consciência são possíveis em qualquer sistema natural, desde que as condições propícias sejam satisfeitas. Uma pedra não pode ser consciente, pois está na proximidade do estado de equilíbrio e nesta condição nenhum dinamismo é possível. Para existir consciência (terceiro aspecto), é preciso que o sistema esteja em estado de baixa entropia, para que seja sensível ao significado da informação que o atinge. Contrariando a bela poesia de William Blake, o defensor do MTA afirma ser impossível para um grão de areia conter informação a respeito de todo o universo, pois a complexidade algorítmica do grão de areia não lhe possibilita instanciar tal processo informacional (segundo aspecto). -“Poderíamos dizer que a presença de um cérebro com redes neuro-astrocitárias é pressuposto para a emergência de sentimentos e consciência? Se a resposta a esta primeira pergunta for afirmativa (como parece ser em decorrência dos pressupostos apresentados), então onde se pode traçar, na escala evolutiva e na taxonomia dos seres vivos, a linha divisória entre aqueles capazes de sentir e de desenvolver consciência?”. Para existir consciência é preciso que haja sistemas com uma estrutura equivalente à proposta por Husserl, ou seja, contendo um sub-sistema cognitivo que

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Réplica aos comentários elabore os conteúdos da consciência, e um sub-sistema que possibilite sentir o significado de tais conteúdos. Ao se atualizar o sentimento, este sistema está resgatando um elemento fundamental da realidade (uma “onda de energia” que estava em estado potencial). Qualquer sistema que satisfaça a estes requisitos seria consciente. Como todos os sistemas vivos se mantêm em estados de baixa entropia, podem desenvolver atividades cognitivas e afetivas. As plantas aparentemente possuem um sub-sistema sentiente (o seu sincício celular é semelhante ao sincício astrocitário), porém possuem capacidades cognitivas reduzidas, comparativamente aos animais multicelulares, que possuem mecanismos mais especializados de processamento distribuído da informação. Deste modo, as plantas poderiam ser consideradas como dotadas de um grau mínimo de consciência. Todas as espécies animais poderiam instanciar uma maior variedade de sentimentos, pois possuem recursos de processamento de informação e resposta aos estímulos ambientais aparentemente mais sofisticados que as plantas. -“Outro ponto difícil para mim é a relação praticamente direta que Pereira Jr. parece fazer entre “ondas iônicas” propagadas no cérebro e o aspecto do sentimento/consciência. Essa formulação permite vislumbrar a possibilidade de simular o sentimento e a consciência pela produção artificial de ondas iônicas em certos sistemas de processamento de informação. Estaria aí a chave para a verdadeira inteligência artificial? Seria possível que o projeto conexionista de reproduzir a mente humana a partir em processadores de informação (algo que hoje parece menos promissor do que há 20 anos) possa ser recondicionado para um projeto que una a simulação de ondas analógicas semelhantes às produzidas na interação entre neurônios e astrócitos?”. O Prof. Vinícius “captou a mensagem” com perfeição: as ondas iônicas – que, na verdade, são hidro-iônicas e dependem da ação de proteínas ou mecanismos semelhantes para serem geradas – são um veículo adequado para a atualização de sentimentos, que subsistem em estados potenciais nas “ondas de energia” constituintes do real. Resta avaliar a conveniência de tal projeto, com base na Bioética.

Sérgio Roclaw Basbaum

Passo agora às considerações críticas do Prof. Sérgio Basbaum, as quais, embora precedidas de elogios gratificantes, são difíceis de se responder.

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Réplica aos comentários -“Somos definidos inescapavelmente como entes nos quais biologia e cultura se entrelaçam, de tal modo que, como diria Merleau-Ponty (1994, 250): ‘o mundo linguístico e intersubjetivo não nos espanta mais, nós não o distinguimos do próprio mundo’; [...] a palavra cultura, deve-se notar é bem pouco cortejada pelo MTA”. De fato, o conceito de consciência no MTA não é dependente dos conceitos de linguagem e da cultura, o que não significa uma desconsideração destes conceitos em respeito à consciência humana. Quanto à linguagem, seria uma forma de codificar a informação, que opera majoritariamente de modo inconsciente, devendo portanto ser enfocada no âmbito do segundo aspecto. Quanto à cultura, me lembro de um comentário pessoal do saudoso Prof. Cesar Ades, no sentido de que a consciência poderia ser um fenômeno social, ao que lhe retruquei: “então os animais associais não seriam conscientes?”. Me parece que tanto a linguagem quanto a cultura operam na consciência e a ampliam, mas não seriam necessariamente constituintes dela. Por exemplo, muitos de nossos sentimentos só são atualizados no convívio social, porém disso não se poderia concluir que são engendrados por determinados contextos, pois não existe uma relação legiforme entre tais contextos e tais sentimentos. Em lugares em que falta água, as pessoas ficam alegres quando chove; onde são danosas as enchentes, as pessoas ficam tristes quando chove.

-Há outra questão, entretanto: a revisão histórica deliberadamente ignora a Fenomenologia de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, bem como as contribuições de Maturana, Varela e, mais recentemente – dando continuidade às direções de pesquisa deste último – Evan Thompson, e até mesmo Alva Noe. Não se entende as razões desta recusa, já que, se o MTA entende o “Eu consciente” como “um ser situado e corpóreo”, seria preciso reconhecer que, nestes autores, as relações entre o EBCL e a sua circunstância encontra sua formulação mais ampla e radical, como um ser-aí, ou como ente corporificado e situado”. O MTA tem estreita afinidade com a fenomenologia, como já explicitado em outras publicações sobre o tema. Neste texto sobre o conceito de sentimento, os trabalhos dos autores acima não são citados na breve revisão histórica porque – até onde sei – eles não trabalharam o conceito de sentimento ou correlatos. Podemos dizer, sob o risco da excessiva simplificação, que a fenomenologia de Husserl se baseia na imaginação (que engendra as variações eidéticas); a de Heidegger se baseia no misterioso “desvelamento” (alethea) do ser, e a de Merleau-Ponty na fenomenologia da

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Réplica aos comentários percepção. Abordagens mais recentes da cognição corpórea e situada se baseiam na motricidade, ou melhor, nas implicações cognitivas da motricidade. Qual seria o estatuto dos sentimentos para estes autores? -“Entretanto, a questão que, em meu entender, é mais perturbadora no MTA, é sua ambição totalizante. Pode-se, claro, compreender que a abrangência de uma teoria seja resultado natural do amplo trajeto de pesquisa a que ela responde, como síntese e como proposição”. Não concordo que o MTA tenha ambição totalizante no sentido de Hegel. Sua ambição é sistemática no sentido de Aristóteles, quando este formulou a Teoria das Quatro Causas. O conhecimento destas causas possibilitaria explicar filosoficamente todo fenômeno natural, no sentido de se identificar os fatores (causas eficiente, formal, material e/ou final) que concorreram para sua geração. Entretanto, estas explicações não seriam totalizantes, como no determinismo laplaciano ou nos atuais esforços no sentido da elaboração de uma “Teoria de Tudo”. As últimas se baseiam no modelo da física moderna, no qual o conhecimento das leis da natureza juntamente com o que os físicos chamam de “condições iniciais e de contorno” possibilitaria prever com precisão qualquer evento futuro ou retroceder a qualquer evento passado. -“Há pelo menos quatro questões de caráter restritivo em relação a qualquer ambição totalizante. A primeira delas diz respeito aos próprios limites cognitivos [...] há certamente aspectos do real que sequer podemos conceber”. O MTA pode ser considerado como um brevíssimo inventário dos aspectos do real que não apenas podemos conceber, como também podemos estudar cientificamente. Se há outros aspectos concebíveis e cognoscíveis, seria o caso de se ampliar o monismo para englobar maior número de aspectos. Isso pode acontecer, caso haja evidências que suportem tal ampliação; caso contrário, o princípio da parcimônia (em sua versão moderada) requer que nos limitemos ao que seja estritamente necessário. -“A segunda, diz respeito aos limites sócio-históricos – ou hermenêuticos, ou epistemológicos ou paradigmáticos, como se queira –, as perguntas que não somos capazes sequer de fazer no contexto de conhecimento de certa época, tal como não seria possível que se pensasse num quadro cubista no século XVI (não se deve supor uma pertença a um quadro de possíveis, antes que tal possibilidade de fato exista – no caso do cubismo, no início do século XX)”.

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Réplica aos comentários A condição sócio-histórica do conhecimento não só coloca limites – que são assumidos em nossa adoção de um método filosófico-interdisciplinar, ao invés de métodos apriorísticos ou especulativos – como também abriga oportunidades de inovação conceitual. Entretanto, as inovações não se fazem no vácuo; consistem em recombinações dos elementos que constituem o real e que existem eternamente como possibilidades. Há decerto aqui uma divergência a respeito do conceito de possibilidade. Eu defino as possibilidades em referência aos elementos constituintes do real; neste sentido, o cubismo é uma possibilidade para qualquer expressão artística, mesmo que atualizada em uma outra galáxia que não a nossa. Seria como o caso do laser (feixe ordenado de fótons), que existe como possibilidade em qualquer recanto do universo, embora no Planeta Terra só tenha sido atualizado no ano de 1960 do nosso calendário. -“Em terceiro lugar, há os limites determinados ao pensamento pela própria linguagem, e o real sempre será maior do que aquilo que a linguagem consegue dizer ou representar – em termos estritos, o real não é computável e qualquer modelo deve assumir um reducionismo necessário que é também o custo da metodologia científica; finalmente, desde Gödel pelo menos, deve-se assumir que não é possível, em termos lógicos, formalizar e comprovar a totalidade dos elementos do sistema”. Sem dúvida o MTA, assim como toda teoria filosófica e científica, está constrangido pelos limites da linguagem. Entretanto, como se sabe, a linguagem natural (felizmente) não é tão precisa a ponto de só podermos nos referir àquilo para que temos um termo único. No caso dos sentimentos, por exemplo, com o termo “alegria” podermos nos referir a um vasto espectro de sentimentos. Deste modo, os limites da linguagem não são impeditivos de uma rica elaboração ontológica, ou são impeditivos apenas para aqueles (como o primeiro Wittgenstein) que só pretendiam falar daquilo para o que dispunham de termos unívocos. Quanto à não-computabilidade (e/ou incompletude) do MTA, não identifico nisso problema algum, pois não se trata de um modelo computacional ou de uma teoria formal da qual se pretendesse deduzir teoremas. -“O aspecto que me parece mais difícil de acolher é que a emoção seja, adotando a terminologia peirceana, um primeiro [...] Se, por um lado, numa chave fenomenológica é preciso assumir a consciência como acontecimento, como um aí [corpo-mente-mundo], é somente em tal acontecência que há existência consciente, e nesse acontecer brota o mundo para mim, onde se mesclam emoção, percepção, linguagem, cultura, as pulsões e as intenções”. 105

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Réplica aos comentários

Como discutido com o Prof. Romanini, para o MTA a ordem dos eventos é a inversa da estabelecida por Peirce. Isso significa que para o MTA o sentimento não é o primeiro, e sim o último evento de processos que começam no plano físico, e avançam no plano informacional. Este tipo de processo poderia ser considerado compatível com a fenomenologia existencial de Merleau-Ponty, pois o sentimento emerge quando já acontece uma relação pré-reflexiva entre o corpo e o mundo.

-“A impossibilidade de definir uma hierarquia de fluxos de informação bottomup ou top-down – complexidade que, se li adequadamente o artigo de Pereira Jr., cairia bem ao MTA cortejar [...] me surpreende que o artigo proponha, de algum modo, certas hierarquias, sobretudo ao desenhar a primazia da emoção”. Não há primazia da emoção ou do sentimento no MTA (e talvez nem mesmo em Damásio, uma vez que, para o neurocientista português, o sentimento é um mapa cognitivo). Porque o Prof. Basbaum teria chegado a tal conclusão? Possivelmente, por ter lido meu texto com base em pressupostos peirceanos. Na ordem dos fatores proposta pelo MTA, primeiramente ocorrem processos físico-químico-biológicos, que tornam possíveis processos informacionais inconscientes, e só então acontecem processos sentimentais, que caracterizam a consciência. Estamos, portanto, em processos de interação com o mundo, desde a escala quântica até a astronômica (para não dizer astrológica), trocando sinais de diversos tipos com tudo o que nos cerca (e internamente entre os subsistemas que constituem nosso corpo), e só então – no meio da travessia - se atualizam os sentimentos. Estes nos tornam conscientes de uma pequena fração do que já está em curso no mundo físico e informacional no qual estamos inseridos.

Saulo de Freitas Araújo

Em réplica ao Prof. Saulo Araújo, tenho a oportunidade de fazer as seguinte considerações:

-“Há uma simplificação histórica excessiva, que pode induzir o leitor a uma compreensão equivocada das investigações anteriores sobre o tema [...] Por exemplo, Watson, Tolman e Skinner, cada um à sua maneira, estudaram sistematicamente as emoções [...] É bem verdade que a psicologia cognitiva, baseada no modelo do processamento de informação, teve enormes dificuldades para lidar com o problema dos processos afetivos e sua ligação com a 106

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Réplica aos comentários consciência [...] mas isso não significa que as emoções tenham sido negligenciadas enquanto tais na psicologia como um todo”. Eu bem sei que estes autores estudaram as emoções, porém o artigo discutido enfoca o conceito de sentimento, que é proposto como sendo radicalmente diferente do conceito de emoção que encontramos na história da psicologia. Este último conceito é referido a estados somáticos e comportamentais, enquanto o proposto conceito de sentimento seria um fenômeno instanciado no cérebro/mente, independente de manifestações

somáticas

ou

comportamentais

(podendo

ser

relacionado

ao

“comportamento coberto”; neste sentido, talvez o Skinner maduro e os colegas que deram continuidade a seu “behaviorismo radical” tivessem algo a acrescentar ao conceito de sentimento). Relativamente às correntes psicológicas tal como são classificadas nos livros introdutórios, pode-se dizer que o conceito de sentimento que proponho seria mentalista, porém compatível com uma concepção de realidade que abranja este tipo de fenômeno como decorrente de seus princípios elementares. Atualmente esta concepção tem sido chamada de Pan-Proto-Psiquista; a Natureza teria potencialidade para a emergência de mentes conscientes, dependendo da satisfação de determinadas condições. Esta concepção se distingue do Pan-Psiquismo, posição que sustenta que já existiria algum grau de atualização da consciência em qualquer sistema natural. -“A valorização dos sentimentos como cerne da vida mental e como base das ações humanas não é algo raro na tradição filosófica ocidental. Antes e depois de Espinosa, muitos filósofos defenderam a autonomia da vida afetiva em relação à razão. Basta lembrar aqui a célebre frase de Hume, segundo a qual ‘a razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas’”. Novamente temos aqui um desencontro conceitual. Decerto o conceito de paixão está presente em toda a filosofia moderna, e temos até um clássico brasileiro sobre o tema (o livro “Os Sentidos da Paixão”, que consultei para verificar se tinha conteúdo pertinente ao artigo). Entretanto, tal conceito de paixão também é radicalmente diferente do conceito de sentimento proposto. Como a seção do artigo com a referida revisão histórica é declaradamente brevíssima, julguei não ser conveniente discutir as semelhanças e diferenças entre o conceito de sentimento e outros termos correlatos.

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Réplica aos comentários -“A referência ao cogito cartesiano e ao Eu transcendental de Kant como uma espécie de “Eu cognitivo” que se contrapõe a um “Eu sentiente” da biologia contemporânea me parece conceitualmente equivocada, pois confunde os planos lógico e psicológico. O sujeito epistêmico, tanto em Descartes quanto em Kant, não é o sujeito psicológico de carne e osso, mas apenas um sujeito formal, abstraído de todas as suas características empíricas, que condiciona todo o processo de conhecimento”. A separação estanque entre os planos lógico e psicológico, frequente na filosofia pós-kantiana e em livros de introdução à filosofia, não me parece se justificar no quadro da filosofia da ciência contemporânea. Os sujeitos que fazem ciência (aqueles que desempenham o papel social dos “sujeitos formais”) são de carne e osso, e os sujeitos que não fazem ciência profissionalmente (aqueles “sujeitos psicológicos” dotados “apenas” do “senso comum”) também têm capacidades cognitivas consideráveis. Tal separação estanque estende uma cortina de fumaça que leva o estudante da mente a se enredar em uma especialização precoce na filosofia ou na psicologia, ou seja, na “Lógica e Teoria do Conhecimento” ou na “Psicologia Cognitiva”, que deveriam ser duas irmãs siamesas nas pesquisas sobre os fenômenos da consciência e do respectivo “Eu” consciente. -“Não fica claro se o emergentismo implícito no MTA é do tipo fraco ou forte, com todas as implicações decorrentes de tal escolha”. Realmente não discuti o emergentismo neste artigo, mas o fiz em outro lugar (projeto de pesquisa financiado pela FAPESP, sobre o MTA, cujo produto deverá sair na forma de livro). Eis aqui o parágrafo que, se não convenceu o arguto parecerista do projeto, deve tê-lo vencido pelo cansaço: O conceito de emergência adotado no MTA é ‘forte’, estrutural e diacrônico no sentido de Stephan. Entretanto, não me parece ser conveniente adotar todos os pressupostos filosóficos utilizados na abordagem deste autor. Ao caracterizar o Monismo, ele entende que a natureza seria constituída por sistemas compostos de “partes materiais”. Neste caso, a informação e a consciência derivariam de uma evolução diacrônica, cujos produtos seriam imprevisíveis com base no conhecimento de tais partes e a elas irredutíveis, uma vez que propriedades mentais e conscientes, por pertencerem a diferentes categorias conceituais, não poderiam se derivar de propriedades materiais. Entretanto, se partirmos de uma ontologia de matiz aristotélica, para a qual a realidade é constituída não só de matéria como de formas (atuais e potenciais), os aspectos emergentes (a saber, o aspecto informacional e o 108

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Réplica aos comentários aspecto consciente), seriam previsíveis a partir do conhecimento das relações que se estabelecem entre as partes materiais contando também as formas nelas incorporadas. Há, contudo, uma importante ressalva a ser feita quanto à possível previsibilidade e/ou redutibilidade de tais aspectos emergentes. Este tipo de previsão seria de natureza aproximativa ou probabilística, e não de natureza estritamente dedutiva, como estabelecido por Ernest Nagel em sua teoria da explicação científica. Na interação de muitos subsistemas, gerando a dinâmica global de um determinado sistema complexo, o espaço de estados resultante corresponde ao produto (e não à soma) dos estados dos sistemas considerados individualmente, o que enseja uma explosão combinatorial semelhante ao problema dos três corpos na física clássica e a outros problemas discutidos atualmente na teoria dos sistemas dinâmicos caóticos. Pequenas variações no cômputo do estado inicial dos subsistemas interagentes, e/ou nas condições de contorno, podem gerar grandes variações nos resultados possíveis. Conclui-se que, embora tais emergências fossem em princípio calculáveis com exatidão, dadas as limitações dos processos computacionais, e considerando as dificuldades intrínsecas aos processos combinatoriais em sistemas com muitos graus de liberdade, para efeitos práticos as propriedades de tais fenômenos emergentes seriam de fato imprevisíveis, e mesmo irredutíveis ‘a posteriori’ às propriedades das partes interagentes, uma vez que a conexão dedutiva não é propriamente estabelecida. Deste modo, justifica-se a classificação dos processos informacionais e conscientes como sendo emergentes no sentido forte. -“Tampouco fica claro como a questão da causalidade descendente (downward causation), fundamental para qualquer discussão sobre processos emergentes na filosofia da mente, se aplicaria ao caso dos sentimentos. Afinal, se os sentimentos não tivessem nenhum poder causal, eles seriam meros epifenômenos, algo que contraria os princípios do MTA.” Esta questão, que é sem dúvida importante para a viabilidade da proposta, foi discutida em outras publicações, voltadas para uma apresentação geral do MTA. Resumo abaixo a posição por mim adotada, para tal utilizando a teoria das quatro causas aristotélica. Sustento que os conceitos de causa eficiente e material só se aplicam a relações temporais “horizontais” no âmbito do primeiro aspecto (físico), ou seja, relações temporais entre eventos físicos. No âmbito das relações temporais informacionais “horizontais” (entre eventos informacionais) opera a causação formal.

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Réplica aos comentários Nas relações temporais conscientes, opera um outro tipo de relação, que não se encaixa na teoria aristotélica, mas bem pode servir para se reinterpretar seu conceito de causa final (como feito, em parte, por AUBENQUE, 1960); é uma relação de busca de satisfação (ou maior perfeição), que poderia se aproximar do conceito de “desejo” em Hegel, ou melhor, de G. Deleuze e F. Guattari no livro “O Anti-Édipo”. Esse é um assunto que demanda um esforço concentrado, ao qual ainda não consegui me dedicar; seria interessante discutir uma possível relação entre a ousada interpretação de Aubenque e os rumos da filosofia da psicanálise que conduzem de Freud a Deleuze/Guattari. Respondendo finalmente à pergunta, é preciso especificar como seriam as relações temporais “verticais” entre o primeiro aspecto (físico) e o terceiro aspecto (consciente). Esse tipo de relação não pode ser senão por meio da causação formal, pois é o segundo aspecto que media o primeiro e o terceiro, em ambos os sentidos. Vou fornecer um exemplo para cada: (a) Para a causação formal entre um estado consciente e um estado físico: recebo uma notícia cujo significado me induz um sentimento de tristeza (estado consciente), e então choro (estado físico). Como ocorre a causação formal? O sentimento de tristeza é instanciado em uma onda iônica que modula sinapses com neurônios que controlam glândulas endócrinas. A forma do sentimento (tristeza) induz uma padrão de modulação (reforço de determinadas sinapses, inibição de outras) que ativa neurônios que geram potenciais de ação por meio de axônios que estão conectados com tais glândulas, ao invés de ativar, por exemplo, movimentos faciais do riso; (b) Para a causação formal entre um estado físico e um estado consciente: piso em um prego que perfura a palma do meu pé. Os axônios dos neurônios nociceptivos periféricos enviam um sinal ao meu cérebro cuja forma ativa uma assembleia neuronal que induz uma onda iônica que instancia um sentimento de dor (ao invés de, por exemplo, cócegas). -“O autor restringe toda a discussão dos processos conscientes à consciência fenomenal (phenomenal awareness), incluindo aí a questão dos qualia, mas não há nenhuma menção a outros aspectos da consciência que vem sendo sistematicamente estudados na filosofia da mente e na ciência cognitiva, como a consciência de acesso. Desta forma, seria mais adequado dizer que o MTA apresenta uma teoria da consciência fenomenal, mas não uma teoria da consciência em geral”. De fato, sustento que se um estado mental não for consciente no sentido fenomenal, não pode sê-lo no sentido de consciência de acesso (ou qualquer outro

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Réplica aos comentários variante do termo que os filósofos da mente inventarem). Isso não significa que o MTA não seja uma teoria geral da consciência. É importante notar que os sentimentos não ocorrem no vácuo, mas como respostas a padrões informacionais resultantes de processos cognitivos do sistema. Na figura 7 do artigo em discussão é exposta a ideia de que a atenção consciente advém de uma conjunção de processos cognitivos e sentimentais. Como a consciência de acesso nada mais parece ser que um segundo nome para a atenção consciente que propicia a realização de determinadas ações, ela seria, portanto, um tipo de consciência fenomenal, e não uma categoria de consciência adicional. -“Se o critério para atribuir sentimento a um sistema é a sua capacidade de ter a sua estrutura física/material afetada pela própria informação que ele processa, então fica difícil sustentar a tese de que todo sentimento é consciente, pelo menos no nível mais básico das sensações e do processamento de informação. A psicologia cognitiva experimental e a neurociência cognitiva têm mostrado evidências empíricas convincentes, através do método do priming, de que existe um nível inconsciente de processamento e interpretação da informação que afeta as operações materiais do sistema”. A objeção procede, mas é preciso lembrar que tais processos afetivos inconscientes são extremamente limitados, pois a informação processada deste modo não tem o “alcance global” que os processos conscientes podem ter. Na constituição do “Eu”, apenas os eventos vivenciados conscientemente constituem o processo que Damásio chamou de “autobiográfico”. Decerto os efeitos dos estímulos subliminares e a memória de procedimentos também contribuem para a personalidade de uma pessoa, mas estas contribuições, em condições comuns, se encontram sob o controle da consciência. Apenas em situações excepcionais, como na amnésia aguda, a memória de procedimentos “assume o controle” das ações de uma pessoa. Uma resposta completa à objeção demandaria uma discussão das teorias de “espaço de trabalho global” (“Global Workspace”), que procuram ressaltar justamente este aspecto de maior alcance do processamento consciente no controle dos processos corporais e da ação. No artigo em que originalmente apresentei o MTA (PEREIRA JR., 2013) tratei deste assunto, propondo a existência de duas redes de processamento cerebral com alcance global. Na literatura a respeito de efeitos psicossomáticos também pode-se encontrar a ideia de que as emoções vivenciadas conscientemente (sentimentos) e outros processos guiados conscientemente (como nos diversos usos terapêuticos da meditação) têm impacto nos

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Réplica aos comentários processos de saúde-doença. Parece-me implausível que processos completamente inconscientes possam desencadear efeitos psicossomáticos relevantes; decerto fenômenos como o estresse têm componentes inconscientes (como todos os demais processos conscientes, que se baseiam em processamentos físicos e informacionais inconscientes), mas é a “tensão psicológica” consciente que dispara os efeitos nocivos do estresse, como a liberação frequente e excessiva de cortisol, que causa danos em diversos tecidos do corpo. Sem o sofrimento psíquico (que corresponde a uma classe de sentimentos conscientes) não há a liberação dos sinais químicos que, acumulados indevidamente no corpo, causam os efeitos somáticos do estresse. A breve apresentação de um estímulo aversivo, produzindo um estado informacional cerebral subliminar inconsciente, pode até gerar uma resposta de alteração de condutância da pele (e.g., aumento da transpiração na palma das mãos), mas para se contestar o MTA seria preciso provar que também pode gerar alterações somáticas persistentes. -“Há no texto um equívoco lógico, quando Pereira Jr. afirma que “um evento é transportado para nosso cérebro por meio de sinais informacionais, e nosso cérebro [...] interpreta o significado da informação e reage ao conteúdo da mesma com um sentimento”. Ora, se levarmos em consideração a própria afirmação seguinte do autor, segundo a qual ‘os sentimentos são exclusivos à perspectiva de primeira pessoa’, fica claro que na primeira passagem há uma confusão entre o cérebro e a pessoa”. Não concordo com a suposta existência do problema, pois entendo que o cérebro é o subsistema da pessoa onde os sentimentos são instanciados em ondas iônicas de alcance global. Este subsistema satisfaz às condições de conectividade para propagar os efeitos do sentir para todo o corpo. Um músculo também pode gerar tais ondas (utilizando o mesmo íon de cálcio), mas estas ficam restritas a sua estrutura, tendo a função de coordenação da contração das fibras musculares que geram os movimentos corporais. Para que as ondas iônicas musculares participem dos episódios conscientes, é preciso que seus eventos sejam transmitidos ao cérebro. Caso haja uma lesão muscular, mas os nervos (que comunicariam este evento ao cérebro) estejam anestesiados, não se sente a dor muscular. Hoje sabemos que existem outros sistemas nervosos além do cerebral, isto é, o cardíaco e o gástrico. Entretanto, não há evidências de que eventos nestes sistemas gerem sentimentos independentemente de sinalização para o sistema nervoso central; se eventualmente a possibilidade de gerarem sentimentos

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Réplica aos comentários autonomamente for comprovada, será o caso de se expandir o conceito de sistema nervoso sentiente, sem necessariamente alterar as bases conceituais do MTA. -“O leitor se vê, então, diante de uma incerteza: ou o MTA pretende deslocar os processos volitivos para a esfera do inconsciente ou ele aceita a existência de processos volitivos conscientes”. Há de fato uma lacuna a este respeito no artigo, porém minha posição (a ser melhor desenvolvida no futuro) é compatibilista. Na neurociência, é relevante o trabalho de Benjamin Libet, mostrando que a experiência consciente envolvida no ato volitivo ocorre 500 milissegundos após o potencial neuronal de prontidão, o qual corresponde ao processamento inconsciente da decisão. Pode-se generalizar este achado na proposição de que todos os processo conscientes começam como processos inconscientes, mas não se esgotam neles. No caso da volição, quando se forma o sentimento é possível vetar ou reforçar os processos inconscientes em curso, conforme a valência do sentimento (se nos sentimos bem reforçamos o processo inconsciente em curso, se nos sentimos mal o inibimos). Fisiologicamente, isso ocorre por meio da modulação das sinapses tripartites. O sentimento se forma como onda iônica na rede astroglial; em cerca 2 segundos, esta onda modula as sinapses, reforçando ou inibindo os padrões de excitação neuronal que a induziram. -“Se as células gliais estão envolvidas nas atividades mentais como um todo, não há motivo para buscar nelas os correlatos específicos da consciência.” Há inúmeros processos inconscientes ocorrendo nas células gliais. O que se propõe é que as ondas de cálcio astrocitárias de alcance global instanciam os sentimentos. O correlato específico da consciência proposto é composto do padrão informacional integrado instanciado na rede neuronal juntamente com a onda iônica instanciada na rede astrocitária. A informação por si só não é consciente; por outro lado, a formação da onda iônica e o respectivo sentimento não ocorrem sem ativação neuronal (esse ciclo é descrito como um “efeito carrossel” em Pereira Jr e Furlan [2010] e descrito como “feedback endógeno” em minhas colaborações com Claudia CarraraAugustenborg e no artigo em discussão). -“Não fica claro em que sentido o MTA depende dessas evidências neurocientíficas para se manter como teoria da mente, uma vez que em nenhum 113

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Réplica aos comentários momento da caracterização dos sentimentos houve uma indicação de como essa teoria deveria se relacionar com os dados empíricos da neurociência”. Talvez essa relação não esteja clara no artigo, mas está bem desenvolvida em outras publicações, inclusive com previsões empíricas. A gênese do MTA se insere em uma linha de pesquisa de 20 anos a respeito das bases cerebrais da consciência, que culminou na série de artigos (publicados em periódicos científicos da área neurobiológica) e capítulos de livros em coautoria com o biólogo Fábio Furlan (então orientando de pós-doutorado), sobre o papel dos astrócitos em nossa vida mental. Por exemplo, em Pereira Jr. e Furlan (2010) previmos que o bloqueio das ondas de cálcio astrocitárias geraria perda da consciência, o que foi confirmado pelo artigo de Thrane et al. (2012), citado no artigo em foco.

Cláudia Passos-Ferreira

Passo agora a replicar aos simpáticos comentários da Profa. Cláudia Passos: -“Pereira não esclarece em que sentido sua teoria poderia explicar as correlações entre experiências conscientes e processos físicos (cerebrais) de um modo melhor que outras já conhecidas posições em filosofia da mente, em particular as posições que defendem o dualismo de propriedades ou a teoria de duplo aspecto”. O MTA advém de uma extensão do monismo dual de Max Velmans, fazendo uma clivagem no interior do aspecto mental, e propondo o sentir como critério de demarcação da atividade consciente frente à inconsciente. Ambos (MTA e Monismo Dual de Velmans) se distinguem do dualismo de propriedades de Chalmers, pois neste último as propriedades físicas e mentais são concebidas como logicamente opostas (daí a preferência pelo termo “Dualismo”), enquanto nos primeiros a ênfase é na complementaridade (daí a preferência pelo termo “Monismo”). Entretanto, Chalmers (1995, 1996), em seus trabalhos clássicos sobre o Hard Problem, não explicita com precisão em que consiste seu dualismo de propriedades, preferindo discorrer sobre o duplo aspecto da informação, o que sugere uma visão monista sobre a diversidade de propriedades do real – que se afina com seu monismo substancial.

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Réplica aos comentários -“É claro que mesmo o dualismo de aspectos é controverso porque está em conflito com o principio lógico da navalha de Ockham; segundo o qual, as entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade”. A questão então seria: há ou não há necessidade de manter dois, ou três, ou mais aspectos? Se a principal meta da filosofia for a economia conceitual, não deveríamos adotar a ontologia de Parmênides, para quem “o ser é e não pode não ser”? Ou será que a virtude filosófica estaria em buscar o máximo de detalhes, como na estética rococó? Acredito, com Aristóteles, que a virtude está no meio-termo: adotar quantos aspectos forem necessários para abarcar a complexidade do real, mas nada além do necessário. Por exemplo, se o comportamento religioso comum à grande maioria das pessoas e sociedades é explicável por meio dos sentimentos de fé (terceiro aspecto), então não é necessário postular a existência de um Deus transcendente (que seria um quarto aspecto). -“Uma teoria de triplo de aspecto multiplica ainda mais as propriedades fundamentais do que as teorias de duplo aspecto. Mais importante ainda, não está claro que Pereira tenha mostrado que todos os três aspectos propostos sejam necessários. Aparentemente, uma teoria de duplo aspecto pode explicar o fenômeno em questão. Uma vez que temos o físico e o mental, não parece claro porque precisaríamos postular um terceiro aspecto fundamental que corresponderia à informação”. A prezada colega cometeu um erro de leitura, pois o terceiro aspecto é a mente consciente; a informação inconsciente corresponde ao segundo aspecto. -“Na perspectiva de Chalmers (1996), a informação é o link que conecta processos físicos a processos conscientes, como ele afirma: ‘sempre que encontramos um espaço informacional realizado fenomenalmente, encontramos o mesmo espaço informacional realizado fisicamente’. A teoria de Chalmers postula dois aspectos fundamentais, um para o físico e outro para a consciência, sem exigir um terceiro aspecto”. Há uma série de problemas no parágrafo acima. Primeiro, se “a informação é o link que conecta processos físicos a processos conscientes”, então temos, como no MTA, três momentos dialéticos: o físico, o informacional (inconsciente) e o consciente – e neste caso o dualismo de propriedades se dissolveria. Segundo, o que seria um “espaço informacional realizado fenomenalmente?”. Após 20 anos de publicação deste texto clássico de Chalmers, será que alguém explicou o que isso significa? Se algo é

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Réplica aos comentários “realizado fenomenalmente”, então esse algo é consciente, mas não por força de si mesmo. A informação por si só não é consciente, como atestam os computadores e robôs que nos cercam. “Ser realizado” supõe uma ação que torne a informação consciente. No caso do MTA, está bem claro o que é que torna a informação (ou representação, ou mapa mental, etc.) consciente: o sentir. Quando a mensagem é sentida, temos uma atualização do terceiro aspecto, a consciência. Terceiro, é incorreto dizer que “Chalmers postula dois aspectos fundamentais, um para o físico e outro para a consciência”. Chalmers postula dois aspectos da informação, um físico e o outro consciente. Em outras palavras, Chalmers não constrói uma ontologia, nela definindo o que entende por “físico”, “informacional” ou “consciente”; ele apenas argumenta que a consciência não é suscetível de redução científica ao físico (seu “Hard Problem”), e especula que a informação seria o elo entre os dois polos indefinidos, físico e mental. -“Recentemente, alguns filósofos têm defendido (contrário ao que Pereira afirma) que ‘what-it-is-like’ não é uma expressão técnica em filosofia da mente. O discurso do ‘what-it-is-like’ faz parte do discurso ordinário de língua inglesa”. Não vejo porque os dois usos seriam incompatíveis. Com seu artigo clássico, em um “ato de escrita”, Nagel tornou a expressão coloquial um termo técnico da filosofia da mente. Na verdade, estava cobrindo um terreno já ocupado pela fenomenologia européia. Permitam-me formular uma proposição contrafactual: se Nagel e Chalmers tivessem um conhecimento da história da filosofia da psicologia comparável ao de Velmans (2009), nossa vida de filósofos da consciência seria menos difícil (mas talvez algumas carreiras acadêmicas, neste ínterim, não tivessem decolado). -“Assim como Pereira, Stoljar adota uma noção abrangente de ‘sentimento’, mas sua teoria conta com uma estrutura adicional. Na visão de Stoljar (2015): ‘estar num estado consciente é uma propriedade complexa que consiste num relação entre um estado e um sujeito, a qual implica que o sujeito se sinta de um certo modo em virtude de estar nesse estado’. Nesse sentido, a perspectiva de Stoljar parece oferecer um elemento relacional que não está presente na perspectiva de Pereira: uma relação entre um estado consciente e o sujeito desse estado”. Não sei como a Profa. Passos chegou à afirmação de que não há um elemento relacional deste tipo no MTA! Como explicitado em várias publicações, e resumido na introdução a este texto de réplicas, adoto a concepção husserliana de uma estrutura dialogal da consciência. Fiquei interessado em ler o artigo de Stoljar que está no prelo

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Réplica aos comentários para conferir se cita meus trabalhos, pois a estrutura relacional do MTA foi publicada em 2013 (a partir de um texto escrito em 2010, e submetido em 2011 à Cambridge University Press como amostra do livro que veio a público em 2013). -“Qualquer teoria afetiva da consciência deve fazer frente ao problema de acomodar vários tipos de experiências da consciência que não se assemelham a ‘sentimentos’, no sentido ordinário do termo. Muitos filósofos, por exemplo, aceitam que existe uma fenomenologia cognitiva: experiências fenomenais associadas a pensamentos conscientes. Essas experiências não parecem envolver sentimentos no sentido ordinário do termo”. Assim pode parecer, mas desde a definição platônica de conhecimento como crença verdadeira justificada já há um elemento de sentimento, considerado como sendo essencial aos processos cognitivos. O que seria uma crença senão um sentimento cognitivo? Quanto à “fenomenologia cognitiva”, pergunto: o que faz com que a experiência de pensar seja consciente? O próprio pensamento seria suficiente? Neste caso, o componente sentimental seria supérfluo. Se é o sentimento que torna o pensamento consciente, então recaímos no MTA, o qual se pretendia criticar. “Existem experiências associadas a outros estados conscientes, como a introspecção, os sonhos vividos, a imaginação, a fenomenologia do agir e a fenomenologia moral que não parecem estar associadas a ‘sentimentos’, no sentido usual do termo. Diferentemente da fenomenologia cognitiva, estas experiências não se adequam naturalmente em qualquer das cinco categorias sugeridas por Pereira; elas permanecem, portanto, não explicadas pela teoria de Pereira”. Da constatação de que estados conscientes não estariam associados a sentimentos no sentido usual não se pode passar à conclusão de que “não se adequam naturalmente em qualquer das cinco categorias sugeridas por Pereira”. Ora, se as categorias são apresentadas justamente para ampliar os sentidos usuais do termo, como se poderia esperar que abarcassem apenas os sentidos usuais? Além deste problema, o argumento peca por não especificar as razões pelas quais estes estados não incluiriam sentimentos. Por acaso nada sentimos durante a experiência da introspecção? Não sentimos medo, alegria, raiva, desespero, etc. em nossos sonhos? E nossa imaginação, não desperta estados afetivos? Seria a imaginação uma operação como a geometria analítica que estudamos no ensino médio? Esta disciplina, quando menino em Minas a estudei, despertava entre meus colegas sentimentos bem nítidos de amor e ódio; será

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Réplica aos comentários que hoje não provoca mais tais sentimentos? E a fenomenologia do agir, será que hoje se tornou um cálculo de logística? Não temos mais jogadores de futebol que sentem alegria no contato com a bola? E na ação ética, não temos mais sentimentos de justiça, de culpa, de responsabilidade, etc.? Tudo se tornou cálculo para ganhar o máximo de dinheiro? “Pereira afirma que estar consciente é ‘sentir o significado da informação’, e que ‘os conteúdos da informação são conscientes quando são sentidos’. Mas o que é ‘o significado da informação’? Seria uma representação mental? Também não está claro o que significa ‘sentir o significado’. Significaria que um estado informacional é consciente quando um sentimento é associado a ele? Seria a informação um processo consciente quando ela tem um significado particular associado a ela em contextos específicos?”. Há grandes discussões a respeito destes conceitos. Eis algumas respostas: (a) O significado da informação diz respeito à forma como o receptor da informação interpreta os sinais, relativamente a seu contexto. Nos padrões informacionais transmitidos entre uma fonte e um receptor pode-se distinguir um conteúdo informacional ou mensagem, que é um invariante intrínseco à forma dos sinais transmitidos, e um processo interpretativo, que depende do receptor. Tal processo interpretativo não está restrito à linguagem humana; pode ocorrer em linguagem biológica (e.g., como o sistema imune reage a um antígeno, gerando um anticorpo); (b) As representações mentais seriam estruturas formais que apresentam isomorfismo parcial com aquilo que representam. Em um sistema biológico (tipicamente, o sistema nervoso) as representações mentais seriam os resultados do processamento da informação, que inclui a transmissão da mensagem e sua interpretação pelo sistema. Todo este processo pode acontecer de modo inconsciente, como, por exemplo, se acredita acontecer no sistema nervoso autônomo ou no cerebelo; (c) As representações mentais não são intrinsecamente conscientes; para se tornarem conscientes, precisam ser sentidas. No MTA, “ser sentido” significa afetar a estrutura material do sistema de modo persistente; (d) Sim, “um estado mental se torna consciente quando há um sentimento associado a ele”, e, além disso, os processos físicos/biológicos/informacionais subjacentes ao sentimento afetam a estrutura do sistema;

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Réplica aos comentários (e) A associação de significados particulares a padrões de informação processados no sistema não torna estes padrões conscientes, pois a atividade semântica pertence ao segundo aspecto (formal/informacional), embora não tenha sido tratada na teoria da informação de Shannon-Weaver. Para haver consciência é preciso atribuir significado e sentir o significado atribuído.

João de Fernandes Teixeira

O breve comentário do Prof. João Teixeira requer uma longa resposta, pois remete à boa parte da história e filosofia da ciência ocidental.

-“Minha questão é saber até que ponto a ideia de sentir e de sentimento realmente resolve o problema da consciência. A questão das relações mentecorpo foi reformulada e reeditada na Filosofia da Mente contemporânea e passou a ser chamada de problema do hiato explicativo [...] Como sentir sem ter consciência do que está sendo sentido? Neste caso, estaríamos andando em círculos, não apenas em relação ao problema do hiato explicativo como também do hard problem de Chalmers (1996). Penso que o hard problem é apenas uma charada filosófica. Você concordaria com isso?”. As partes desta resposta serão numeradas: (1) Vou começar com um breve esclarecimento. Segundo a proposta aqui elaborada, o sentimento seria sempre consciente; entretanto, como a consciência é o coroamento de um processo que se inicia nos planos físico e informacional inconsciente, o isomorfismo parcial (ou homeomorfismo) entre a forma do sentimento e a forma dinâmica (em termos de amplitude, frequência e fase) das ondas iônicas que instanciam o sentimento seria a ponte que selaria a “explanatory gap”. Esta seria, em suma, a solução proposta. (2) Quanto ao Hard Problem (abreviado em HP), vou ter que fazer uma digressão histórica, pois sua formulação por Chalmers reedita um problema secular da filosofia e história da ciência ocidental. Se o problema é ontologicamente consistente, ou apenas uma charada, depende dos referenciais filosóficos de quem o aprecia. Para o materialista reducionista ou para o idealista absoluto o problema não existe, pois este tem dois chifres, enquanto aquelas posições filosóficas são “unicornianas” (no sentido de que concebem o real com apenas um chifre, ou material ou ideal).

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Réplica aos comentários (3) O HP diz respeito à dificuldade de se explicar as experiências conscientes (ou fenomenais) que ocorrem na perspectiva de primeira pessoa, a partir de conceitos e teorias científicas que foram elaborados na perspectiva de terceira pessoa. Para se discutir o problema, é preciso ter uma abordagem histórica do que se entende atualmente (a partir do artigo de Nagel de 1974) como perspectivas de primeira e terceira pessoas. (4) Em nosso contexto histórico, a perspectiva de primeira pessoa não diz respeito apenas à abordagem introspectiva na psicologia, ou mesmo às experiências consciente comuns a todos indivíduos (humanos e possivelmente também de outras espécies), mas, no âmbito da filosofia ocidental, deve remeter às descrições fenomenológicas da experiência, que têm como precursores o dualismo interacionista cartesiano (as Meditações Metafísicas seriam o primeiro texto de fenomenologia) e o idealismo transcendental kantiano. Com este DNA, compreende-se a hoje famosa dificuldade de se compatibilizar a fenomenologia pós-husserliana com as abordagens neurocientíficas e com as filosofias naturalistas, apesar de todo o esforço dos “neurofenomenólogos”. Esta dificuldade não apareceu explicitamente em Chalmers (2005, 2006), provavelmente porque este autor partiu de Nagel (1974) como se este texto tivesse sido a origem da distinção entre a primeira e terceira pessoas, talvez ignorando as raízes históricas da mesma. Dentre estas raízes, não podemos ainda deixar de mencionar o “problema mente-corpo” da psicofísica do Sec. XIX, que foi parcialmente endereçado pelas Leis de Fechner, Stevens e Weber, mostrando que mensurações físicas e psíquicas (por meio de relatos), embora apresentem diferenças, apresentam certa proporcionalidade (para melhor cobertura da questão, vide Velmans [2009]). (5) A perspectiva de terceira pessoa é um construto da ciência moderna que se dá a partir de acordos intersubjetivos (esse ponto central também é bem tratado em Velmans [2009]). O que nos interessa muito, a este respeito, é a famosa distinção entre qualidades primárias e secundárias, que se superpôs ao dualismo cartesiano na epistemologia da filosofia e da ciência modernas. Como se sabe, para considerável parte dos filósofos e cientistas da época, as qualidades secundárias (qualidades conscientes ou qualia) teriam existência exclusivamente mental, sem correspondência no mundo físico. Uma exceção foi Galileu, para quem as qualidades existiriam “nel corpo sensitivo” (no corpo sensível) dos 120

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Réplica aos comentários observadores (PEREIRA JR., VIMAL & PREGNOLATO, 2016). Deste modo, para Galileu os qualia seriam ao mesmo tempo dependentes do ato de observação (pois se atualizam no corpo do observador) e físicos, pois o corpo dos animais é físico. Entretanto, não foi a interpretação de Galileu que se tornou hegemônica no background dualista ou idealista da época; até a psicofísica do Sec. XIX, imperava uma solução de conveniência de se tratar das qualidades primárias e secundárias em disciplinas diferentes; a física se ocupava das primárias apenas, e deixava para a filosofia (e depois psicologia) o estudo das secundárias. Esta divisão só e tornou um problema ao final do Séc. XIX; logo depois, foi reassumida, em parte devido à hegemonia de correntes materialistas (behaviorismo) e idealistas (dentre elas, a própria fenomenologia husserliana, que desconsiderou a descrição física da natureza como ontologicamente pertinente e propôs o “retorno às coisas mesmas” pela descrição fenomenológica de cunho cartesiano). (6) Ao final de sua carreira, Husserl se depara com os limites do cartesianismo (e de seus resquícios platônicos), e alternativamente enfatiza o lebenswelt (“mundo da vida”), abrindo espaço para a fenomenologia existencial. Na vertente merleau-pontyana, busca-se uma aproximação com a psicologia empírica (gestaltista e até mesmo algo da behaviorista) e com a biologia, o que vem desembocar na atual proposta da “neurofenomenologia”, que traz dentro de si o HP e a promessa de superá-lo. Se consegue ou não realizar a promessa, é uma questão que demanda extensa investigação de pesquisas em curso. (7) O que vale ressaltar aqui é a tomada de um falso atalho para a solução do HP, pelos defensores da cognição situada e corpórea. Este atalho é o recurso à motricidade como meio de ser explicar a formação dos qualia. Não vou poder discutir essa questão a fundo aqui, pois esta literatura não é suficientemente familiar para mim. É comum se citar Jakob von Uexkull nas abordagens enativistas dos qualia; para aquele biólogo, que era vitalista, os qualia se formariam por meio de trocas de sinais em ciclos percepção-ação. Até onde posso acompanhar estes esforços dos enativistas, o quadro conceitual em que colocam tais operações continua sendo cognitivista, como – prioritariamente – as redes neurais conexionistas implementadas em computadores digitais. (8) Embora sempre tenha sido favorável às abordagens enativistas, me parece que lhes falta o conceito essencial para superar o HP e a lacuna epistemológica a 121

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Réplica aos comentários ele subjacente. No MTA, tal conceito é justamente o que é discutido no artigo alvo. O sentimento, entendido como um processo que perpassa os três aspectos (ou seja, contendo uma base física – ondas iônicas, informacional – forma da onda e consciente – forma sentida) seria a ponte que liga o físico ao mental consciente. Não se trata apenas do sentimento como experiência de primeira pessoa – esta nos possibilitaria apenas uma abordagem introspectiva. Todo o esforço de construção do MTA tem como objetivo relacionar o sentimento vivido com as bases físicas e informacionais que o tornam possível. Apenas neste quadro ontológico pode-se clamar que o sentimento seria a ponte que sela a lacuna explicativa e se candidata a resolver o HP. Mas ainda há um probleminha. (9) Na ontologia implícita na física moderna, os qualia não teriam base física. Para que o MTA seja consistente, é preciso que haja alguma base física para os qualia. Podemos encontrá-la na física contemporânea, embora não haja consenso a respeito de onde (ou seja, em que parte da física e segundo qual interpretação) fazer tal busca. A Teoria das Cordas, por exemplo, parece sugerir que os elementos básicos constituintes da realidade – as cordas vibrantes subatômicas – teriam estados qualitativos, conferidos pelos padrões vibratórios (PEREIRA JR., VIMAL & PREGNOLATO, 2016). Também se pressupõe no MTA que a informação tenha uma semântica que não consta da teoria de Shannon-Weaver. Infelizmente, tal semântica não se esgotaria na teoria do conhecimento proposta por Dretske, pois esta supõe um realismo epistemológico extremo. Convém balanceá-la com o modelo ecológico mais informal de Bateson, ou com o realismo direto de Gibson, que elaborou uma teoria a respeito dos invariantes dinâmicos presentes no ambiente. Também é preciso uma abordagem dos caminhos de transdução de sinais internos ao organismo vivo, para o que podemos recorrer à Semiótica ou Biossemiótica, ou mesmo à biologia molecular convencional, que se desdobra em abordagens genômicas, proteômicas, metabolômicas e outros “ômicas”, acumulando grande quantidade de dados a respeito destes processos biológicos.

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Réplica aos comentários Samuel de Castro Bellini-Leite

Respondo agora ao Prof. Samuel Bellini-Leite, a quem agradeço a ideia deste debate e sua contribuição valiosa. -“No artigo alvo não há uma explicação do nível consciente em si, como pode ser feito para os outros dois níveis, a explicação do último nível ou é remetida para os outros dois ou se mantem na fenomenologia. Mas a fenomenologia não pode ser o explanans de uma metafísica da mente, pois ela já é o explanandum”. De fato, não foi proposta uma explicação específica para a existência da consciência; porém, se a explicação da estrutura do real do MTA for aceita, a existência da consciência se torna perfeitamente compatível com nossos conhecimentos sobre os demais aspectos da realidade. -“A definição de consciência está ligada ao sentir, mas qual é a metafísica do sentir? A descrição dos tipos de sentimento (sensações básicas, sentimentos cognitivos, perceptivos, emocionais e de acontecimento) é pura fenomenologia. A pergunta ‘o que é a consciência?’ é transferida para a pergunta ‘o que é o sentimento?’, mas não temos uma resposta metafísica para a segunda.” As constatações do Prof. Samuel procedem, mas é bom lembrar que o autor do MTA não prometeu explicações metafísicas da consciência. O que tenho procurado fazer é acertar a fenomenologia, para que seja compatível com nosso conhecimento científico relativo aos demais aspectos. Será que nossas vivências precisam ser explicadas? O método filosófico-interdisciplinar adotado não seria apropriado para esta tarefa. -“Não fica claro se APJ abandona o modelo de causação proposto em Pereira Jr. (2013) [...] (que) dá margem para entenderem o MTA como um “trialismo” e não um monismo, sem contar que acrescenta termos inúteis e mal compreendidos [...] APJ poderia simplesmente resumir esse modelo de causação como blocos monistas”. Nesta objeção o Prof. Samuel certamente se inspira no famoso argumento de Jaegwon Kim contra o fisicalismo não redutivo, em que - em resumo – o filósofo coreano alega que se há causação física entre os eventos físicos e também entre os eventos físicos e mentais, então a noção de “causação mental” (ou seja, causação de

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Réplica aos comentários eventos físicos por eventos mentais) seria supérflua e dispensável, pois seria possível reduzir as explicações a séries de eventos físicos. O Prof. Samuel concede um pouco mais que Kim, sugerindo a possibilidade de relações causais entre blocos psicofísicos. O problema de sua crítica é que ele não distingue entre tipos de relação causal, pois esta distinção é essencial para se fazer sentido do diagrama proposto em Pereira Jr. (2013), e que ele reproduz fielmente em seu comentário. Enquanto as relações temporais do tipo causa eficiente e causa material se aplicam a séries de eventos físicos, seria possivelmente um erro categorial as aplicar a séries de eventos informacionais e/ou conscientes. Como discutido anteriormente nestas réplicas, as séries informacionais operam com a causa formal (uma forma presente na fonte é transportada para o receptor, ou seja, em um processo informacional a forma presente na fonte “causa” a forma que se forma no receptor). Séries de eventos conscientes seguiriam a ordem dos motivos, que seria a ordem dos desejos, conforme mencionado anteriormente. Portanto, se diferentes aspectos apresentam diferentes tipos de relações temporais, fundi-los em blocos poderia induzir erros categoriais, como atribuir motivos e finalidades a processos físicos (aliás, esse foi o erro clássico do vitalismo), ou atribuir causação eficiente a séries de eventos conscientes (o que poderia, por exemplo, implicar na negação da liberdade humana. Defendo a existência de liberdade genuína, pois a consciência pode manter o controle das ações por meio de reforços e vetos dos processos iniciados inconscientemente). -“No artigo alvo, há uma clara incompatibilidade em como as definições de emoções, sentimentos e consciência são mapeadas nas funções das redes neuronais e astrocitárias. Pereira Jr. entende que as redes neuronais são responsáveis por processos cognitivos e as redes astrocitárias são responsáveis por processos afetivos (os quais correspondem aos sentimentos). A consciência, para o autor, é entendida como o momento de interação entre as duas redes. Entretanto, o autor também afirma que não pode haver sentimento sem consciência. Então, a qual estado mental a instanciação de sentimentos se refere quando a rede astrocitária não interage com redes neuronais? Pereira Jr. não pode postular que redes astrocitárias instanciam sentimentos – os quais são condição suficiente para consciência por definição prévia – e posteriormente adicionar outra condição (necessária) para a consciência, a saber, a interação com os processos cognitivos (ou com a rede neuronal)”. Se é que entendi a objeção, ela se resolve por meio da consideração da realidade biológica. É impossível as duas redes não interagirem, pois é o astrócito que nutre o neurônio e é o neurônio que gera as ondas de cálcio astrocitária. O que se está

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Réplica aos comentários postulando, do ponto de vista da fisiologia cerebral, é que as duas redes interagem, e como resultado desta interação os neurônios instanciam os estados cognitivos (representações, mapas, símbolos) por meio de seus padrões de conexão e respectivos padrões dinâmicos de disparo axonal; e os astrócitos instanciam sentimentos por meio de ondas iônicas. Na Figura 8 do artigo alvo se levanta a possibilidade do cérebro responder aos estímulos ambientais com base em processos inconscientes, mas isto não significa que a consciência esteja inteiramente ausente naquele momento. A consciência é reduzida ou abolida temporariamente em estados nos quais as interações neuroastrocitárias são alteradas globalmente, seja pela dominância de ondas lentas (Delta = 3 Hz) no sono sem sonhos, seja pelo aumento da concentração de transmissor inibitórios ou substâncias que desempenham o mesmo papel, na anestesia, seja pelo aumento de amplitude das ondas elétricas acima do suportável pelo sistema, na epilepsia de ausência.

-“Ondas iônicas percorrem apenas as redes astrocitárias, como estas, sem interagir com processos cognitivos (ou rede neuronais) poderiam ser conscientes?” A resposta é que as ondas iônicas globais não são biologicamente possíveis sem a ativação da rede astrocitária por extensas assembléias neuronais sincronizadas, conforme proposto no “efeito carrousel” (PEREIRA JR. & FURLAN, 2010). Deste modo, as pequenas ondas geradas em cada elemento da rede astrocitária não se cancelam, mas apresentam interferências construtivas, pois estão enquadradas na mesma fase. Pode-se mesmo dizer que as ondas iônicas são respostas ao processo cognitivo já realizado na rede neuronal, isto é, o sentimento é sentimento do significado atribuído à informação (pelo processamento neuronal). Assim como, na cadeia interpretativa, o significado é elicitado pelo significante, pode-se afirmar que o sentimento é elicitado pelo significado. Não faz sentido se pensar na atualização de sentimentos de modo arbitrário; as atualizações via de regra ocorrem em contextos nos quais os sentimentos fazem sentido para o sistema (ou seja, compõem a cadeia de desejos que se estabelece no plano consciente). -“Há, entretanto, uma forma de solucionar esse equivoco. Seguindo, a proposta elaborada em Bellini-Leite & Pereira Jr. (2013, p. 351), temos que as redes astrocitárias são responsáveis por emoções, não sentimentos: ‘estados afetivos

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Réplica aos comentários podem ser entendidos como emocionais, mas também como qualitativos, como 'o sentimento' de algo’”. Não me parece que a sentença acima citada implique que “as redes astrocitárias são responsáveis por emoções, não sentimentos”. Sim, as redes são responsáveis por emoções, pois vários tipos de sentimento são emocionais. É apenas isso que é implicado pela citação. Não se pode – a partir da citação – concluir que (eu teria concordado que) as redes astrocitárias não seriam responsáveis por sentimentos. -“Estados afetivos podem ser estados emocionais – quando inconscientes – e estados de sentimento – quando conscientes. A rede astrocitária, portanto, se trata de uma rede afetiva, quando sozinha, instancia emoções, não sentimentos. Os sentimentos e a consciência são instanciados no momento em que ocorrem interações entre redes neuronais e rede astrocitárias”. Levando-se em conta o fato de que a rede astrocitária não forma sozinha as ondas globais que instanciam sentimentos, eu não teria dificuldade em concordar com a proposta acima.

-“A metafísica da consciência precisa lidar com a metafísica da virtualidade. Algo como a descrição de um espaço virtual seria a metafísica adequada para a consciência. A linguagem para descrever essa camada pode ser a de um universo emulado, com propriedades específicas, seu próprio espaço, próprio tempo, qualidades como cor, sons, aromas. Algumas propriedades desse universo emulado já são descritas (em minha ótica) por teorias da psicologia cognitiva e da psicofísica, como o tempo que leva para uma imagem sumir deste universo, a quantidade de itens que ele suporta, como funciona o foco da atenção sobre esses objetos, o grau de rotação possível de um objeto nesse universo... Também já existem projetos na direção da virtualidade (Revonsuo, Metzinger), entretanto Metzinger adota a postura de que a virtualidade não é real, na linha de Dennett, e Revonsuo não é claro sobre a ambiguidade do virtual”. A virtualidade atualmente existente, simulada por computadores, nada mais é que um espaço informacional, pertencendo ao segundo aspecto. Máquinas que geram realidades virtuais não são conscientes; seus conteúdos informacionais podem ser apreendidos por sistemas conscientes, só se tornando conscientes quando sentidos pelos últimos. Os estudos de psicologia cognitiva acima citados são estudos feitos com pessoas conscientes. Além disso, postular um espaço-tempo descolado do espaço-tempo físico remete ao dualismo substancial. Para o MTA, dimensões informacionais do real estão superpostas ao espaço-tempo físico, e as dimensões da consciência estão

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Réplica aos comentários superpostas às dimensões informacionais, como na figura do hipercubo, que ilustra a capa desta edição especial da Kínesis (agradeço ao Prof. Enidio Ilario pela sugestão desta figura como ilustrativa do MTA, e à Ana Carvalho pela elaboração da figura).

Vinicius Jonas de Aguiar

O Prof. Vinícius Jonas fez ótimas considerações sobre a aplicabilidade do MTA à filosofia da arte, e sobre o papel do platonismo na história da filosofia ocidental. Não tenho muito o que replicar: -“A questão aqui colocada é: por que assumir que esse sentimento é parte ontológica da Natureza e está instanciado no cérebro em vez de abordá-lo como produto do funcionamento cerebral, mais especificamente do funcionamento material/informacional dos astrócitos junto aos padrões neurais? Ou devemos entender a exigência de um terceiro aspecto justamente por conta da existência dos sentimentos em nossa experiência, o que leva, necessariamente, à existência dos mesmos em estado potencial na Natureza?”. Se negarmos que o sentimento seja uma possibilidade da Natureza e o creditarmos ao funcionamento cerebral, estaremos praticando a “estratégia do avestruz” que observamos nos desenhos animados, ou seja, o ato de se enterrar a cabeça para não presenciar algo perturbador. Ora, se o cérebro é um sistema natural, resultado de milhões de anos de evolução biológica operando sobre substratos exclusivamente físicos e informacionais, como esperar que disso resulte algo que não seja também natural? Portanto, a segunda alternativa seria mais adequada, fazendo-se apenas a ressalva de que o único modo que atualmente conhecemos pelo qual a Natureza atualiza suas potencialidades sentimentais é aquele que estudamos em sistemas vivos. “Ficam em aberto questões como: consciência é o sentimento? E, nesse sentido, consciência é o terceiro aspecto? Ou consciência é um processo envolvendo matéria, informação e o sentimento? E, nesse sentido, apenas o sentimento, que aparece em processos conscientes, é considerado o terceiro aspecto?”. Respondendo: (a) A consciência é o “sentimento de...”, ou seja, um sentimento a respeito de um produto do processamento cognitivo; (b) O terceiro aspecto é a consciência, que depende da existência de sentimento, que pressupõe processos no âmbito do primeiro e segundo aspectos; (c) Sim, a consciência envolve os três aspectos,

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Réplica aos comentários pois a própria atualização dos sentimentos pressupõe a atualização de entidades físicas e informacionais; (d) Apenas o sentimento é típico do, ou exclusivo ao terceiro aspecto, mas como o MTA considera a evolução do real progressiva, cada aspecto carrega consigo os anteriores, que são condições necessárias para sua atualização. Não haveria forma/informação sem matéria/energia. Consequentemente, não devemos considerar os aspectos como sendo separados de modo estanque. São aspectos superpostos, o que pode ser visualizado tanto na figura do “bolo de três camadas” como na figura do hipercubo. No bolo, podemos notar que a camada laranja (terceiro aspecto) está encrustada nas duas camadas precedentes (verde e azul). O sentimento, sendo exclusivo ao terceiro aspecto, é a parte superior da camada laranja, se situando fora das camadas verde e azul. Entretanto, a presença do sentimento afeta eventos nas camadas anteriores, o que constituiria um efeito por “causa formal”, correspondendo ao tipo de processo que na Filosofia da Mente é chamado de causação mental e na Filosofia da Ciência é chamado de ‘downward causation’. -“Vale a pena mencionar a relação entre a construção do sujeito no MTA, pautada nos três aspectos, e a ética. De acordo com Pereira Jr., a partir das experiências vivenciadas, o sujeito desenvolve hábitos sentimentais formados pelos sentimentos atrelados às experiências conscientes que o mesmo experiencia a respeito de certos padrões de informação. Podemos assumir, portanto, que aqueles sentimentos que passam a compor a vida consciente do indivíduo resultam em certas preferências a certas informações em detrimento de outras”. De fato, os valores pelos quais guiamos nossas ações éticas poderiam ser considerados as “preferências do sistema” (em analogia com o uso do termo nos sistemas operacionais dos computadores pessoais). Entretanto, tais preferências não se referem a padrões de informação (segundo aspecto), pois se situam no âmbito do terceiro aspecto. Podemos chamar tais preferências de meta-sentimentos, pois seriam critérios de discriminação entre sentimentos, decorrentes de processos autoorganizativos do Eu sentiente, que se desenvolvem como resultantes da dinâmica dos hábitos sentimentais em sua história de vida. Esse é um tema de grande importância, a ser melhor elaborado no MTA; agradeço a oportunidade de mencionar minhas ideias a respeito de como a dimensão normativa se constitui no âmbito do terceiro aspecto. -“Devemos investigar se a repetição de certa informação gera hábitos de sentimentos bons, se a relação entre os tipos de sentimentos e a informação é 128

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Réplica aos comentários não-causal, ou se há alguma relação de necessidade entre certos padrões de informação e certos sentimentos”. Não pode existir no MTA uma relação rígida entre padrões de informação e sentimentos, pois estes pertencem a dois aspectos distintos e irredutíveis. Um padrão musical pode nos despertar sentimentos “bons” em determinado contexto e sentimentos “ruins” em outro. O que pode ocorrer é justamente a operação da “causa formal”, pela qual a forma de uma música em determinado contexto nos desperta determinado sentimento, e a forma de um sentimento em determinado contexto nos faz relembrar uma determinada música. -“Entendendo melhor a relação entre sentimento e informação, podemos pensar não só em contribuições para a educação, como propõe Pereira Jr., mas mais especificamente para uma estetização da ética, não no sentido de validar quaisquer atitudes feitas com base em sentimentos agradáveis, mas de buscar meios para atrelar os sentimentos bons a atitudes éticas”. No MTA, a ação ética se situa no âmbito do terceiro aspecto, e, portanto, seria impróprio falar de ética no âmbito do segundo aspecto (como na expressão “Ética Informacional”). O que é ético ou não é o Eu consciente, e não a informação. Quanto à “estetização da ética”, me parece que seria uma implicação do MTA, uma vez que se propõe que os valores éticos se constituem a partir de uma dinâmica de experiências sentimentais. Estas experiências têm uma dimensão estética intrínseca, pois a formação dos sentimentos requer a integração multimodal da informação processada no cérebro.

Nythamar de Oliveira

O Prof. Nythamar de Oliveira, após um eficiente resumo da proposta do MTA, aborda o estatuto dos sentimentos em Damásio e formula de modo adequado o problema da relação entre sentimentos e normatividade ética, procurando evitar os extremos do naturalismo e absolutismo éticos tradicionais; cabe a mim argumentar que o MTA seria uma forma expandida de naturalismo que – seguindo as diretrizes apontadas na minha resposta ao Prof. Jonas - não reduziria o “dever-ser” ao “ser”. -“De acordo com os experimentos de Damásio, a escolha de uma decisão qualquer ou de um curso de ação referente a um problema pessoal em que o sujeito está devidamente inserido em seu meio social (complexo, mutável e 129

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Réplica aos comentários incerto), requer dois elementos: 1) amplo conhecimento de generalidades e 2) estratégias de raciocínio que operem sobre este conhecimento. Assim, não podemos reduzir os processos decisórios a uma suposta racionalidade pura, sem levar em conta as emoções, os sentimentos e o contexto sociocultural”. O Prof. Nythamar fez um excelente resgate da abordagem de Damásio, mas no parágrafo acima os dois elementos são puramente cognitivos; faltou mencionar como as emoções e sentimentos participam dos processos decisórios. -“Quando identifica uma base emotiva natural para os sentimentos e juízos morais, o naturalismo inerente a abordagens analíticas e hermenêuticas da filosofia da mente não poderia destarte excluir nenhum nível axiológico ou normativo de autocompreensão. Tal abordagem naturalista ainda prescindiria, neste caso, de uma justificativa para a sobreposição valorativa da normatividade com relação a estados de coisas encontrados ou até mesmo socialmente construídos da realidade. A persistência de uma crítica ao naturalismo consiste precisamente em reconhecer que mesmo que admitamos a “sobreveniência” (supervenience) de valores morais com relação a fatos, eventos ou propriedades naturais, físicas ou biológicas, ainda assim não seria possível reduzir propriedades morais a tais estados de coisas”. O MTA não procura reduzir propriedades morais a propriedades naturais (no sentido da física clássica, que pressupõe uma natureza determinística), pois tal redução seria falaciosa, como já apontado por Moore. O que ocorre no MTA é que o conceito de natureza é expandido, de modo a incluir também o terceiro aspecto (consciência). Sendo assim, os produtos da atividade consciente (ação ética, cultura, tecnologia, etc.) podem ser concebidos em continuidade com os demais processos naturais (físicos e informacionais). Vale a pena notar que as propriedades morais, assim como os sentimentos que de algum modo as suportam, não sobrevêm dos aspectos físicos ou informacionais da natureza, mas constituem atualizações de potencialidades naturais distintas. A questão que se coloca é: como o “dever ser” ético se constitui a partir dos sentimentos vivenciados por alguém? Para respondê-la, preciso desenvolver um argumento que não consta explicitamente do artigo em discussão:

(a) Os valores pertencem ao terceiro aspecto da natureza; (b) Valores não são sentimentos, mas “meta-sentimentos”, ou seja, padrões de regulação da economia sentimental; (c) Estes padrões se constituem a partir da história de formação de hábitos sentimentais da pessoa, mas não se reduzem aos hábitos; 130

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Réplica aos comentários (d) Os padrões também incluem a intencionalidade própria da consciência, que seria a busca de satisfação. O componente cognitivo da consciência possibilita que ocorra a inibição de determinados hábitos sentimentais estabelecidos, para que haja uma maior satisfação futura (essa atitude corresponderia à virtude aristotélica da magnanimidade); (e) A constituição do Eu sentiente implica na formação de valores a ele intrínsecos, que podem ser comparados às “preferências do sistema”; (f) A ação ética é dependente do contexto social; (g) Em cada contexto, os valores se efetivam por meio dos sentimentos, isto é, os valores possibilitam a seleção dos sentimentos dominantes para cada contexto, e são os sentimentos efetivos que modulam a ação ética. -“Segundo a concepção integrada de emoções e valores normativos em Damásio, um naturalismo mitigado equivale a reconhecer que, embora sejam socialmente construídos, valores morais, práticas, dispositivos e instituições como família, dinheiro, sociedade e governo, não podem ser reduzidos a propriedades físicas ou naturais, mas também, por outro lado, prescindem das mesmas na própria constituição de seus elementos intersubjetivos de autocompreensão”. Entendo que se Damásio não discute o conceito de natureza, vindo implicitamente a adotar o conceito mecanicista vigente, então sua teoria não poderia ser considerada naturalista, pois os processos naturais mecânicos não são relevantes para tais construções sociais, muito menos para a autocompreensão intersubjetiva. Entretanto, dada a simpatia de Damásio por Espinosa, talvez o neurocientista português implicitamente conceba a natureza de modo mais amplo. Não sei se isso acontece com outros proponentes da neuroética, como a citada Churchland; se concebermos o cérebro como um sistema mecanicista, me parece ser implausível que as propriedades morais (valores) sobrevenham da atividade de tal sistema, mesmo em contextos de interação social. -“Segundo Damásio, o sentimento emocional é a percepção, no neocórtex, das respostas corporais aos estímulos imediatos, através dos centros cerebrais inferiores”.

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Réplica aos comentários Vale ressaltar que para esta autor a percepção não é concebida em termos fenomenológicos (como vivências), e sim em termos cognitivistas, como a formação de mapas de primeira e segunda ordem. -“A original reformulação prinziana dos problemas humeanos sobre a natureza humana (em sua releitura crítica da trilogia do filósofo escocês em torno do entendimento, paixões e moral) desemboca numa teoria híbrida da consciência, que em vários particulares nos lembra o Monismo de Triplo Aspecto, notadamente os três níveis de representação mental confluindo na própria emergência da consciência. De acordo com a teoria AIR (Attended Intermediatelevel Representation) da consciência de Jesse Prinz [...] há uma variedade de microeventos concordantes para a aplicação no cérebro das funções cognitivas particulares ou determinados tipos de representação. A sua hipótese central consiste em constatar que a consciência atende, tenciona e está atenta a certos tipos de representações mentais, justamente as chamadas representações de nível intermediário (Attended Intermediate-level Representations), seguindo uma terminologia e reconstrução sugerida por Jackendoff”. Tanto Jackendoff quanto Prinz me parecem ser cognitivistas muito inteligentes, que tentam expandir o representacionismo para dar conta de aspectos da fenomenologia da experiência consciente. Qual seria para Prinz o papel dos sentimentos na condução da atenção? Ele considera os sentimentos como sendo um tipo de representação mental? -“Segundo Prinz, podemos formular duas teses diretrizes: (S1) Tese Metafísica: Uma ação tem a propriedade de ser moralmente certa (errada) apenas no caso que provoca sentimentos de aprovação (desaprovação) em observadores normais sob certas condições. (S2) Tese Epistêmica: A disposição para sentir as emoções mencionadas no S1 é uma condição de posse sobre o conceito normal de CERTO (ERRADO). Trata-se, portanto, de construir uma teoria moral que preserva o princípio humeano de que não podemos derivar o que deve ser (ought) do que é (is) endossando um naturalismo moral.” A tese é engenhosa, mas me pergunto em que medida o apelo aos sentimentos e à posse de tais conceitos efetivamente supera o desafio de Hume. Se os sentimentos e conceitos, embora não sendo redutíveis ao aspecto físico, são considerados reais (correspondendo ao segundo e terceiro aspectos do MTA), então a ação ética operaria no plano do ser, ou melhor, o dever ser seria parte de um ser dinâmico. Me pergunto se não seria melhor passar de uma ontologia ao estilo de Parmênides e Sartre, em que o ser é estático e o dever ser só pode se exercer por uma superação do ser, para uma ontologia processual ao estilo de Heráclito, Aristóteles e Whitehead, na qual o dever ser está em continuidade com o ser (pois o ser é dinâmico). No caso de uma ontologia processual, 132

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Réplica aos comentários não se trata de reduzir o dever ser ao ser, mas de conceber o ser de tal modo que tenha o dever ser como um momento necessário e constituinte do processo da realidade. -“A visualização concêntrica dos três aspectos em pauta favorece, ademais, a leitura espinosista adotada por Damásio e vários neurocientistas em busca de alternativas naturalistas ao dualismo de substância e suas variações funcionalistas. A “virada sentimental” proposta por Pereira parece muito próxima da concepção prinziana de revisitar pelo relativismo cultural concepções tradicionais da ética (teleológicas, utilitaristas e deontológicas) de forma a revisitar nossos hábitos sentimentais e os fatores culturais que constituem a nossa identidade pessoal”. Estou em pleno acordo com a convergência de ideias identificada pelo Prof. Nythamar. Nos comentários anteriores procurei ressaltar as possíveis diferenças e divergências, mas tendo a acreditar que dizem respeito a detalhes que talvez não sejam de grande importância.

Ricardo Ribeiro Gudwin

Em seu bem estruturado comentário, o Prof. Ricardo Gudwin faz uma eficiente revisão crítica do MTA, para ao final apresentar uma proposta alternativa. Ele começa questionando os monismos de duplo aspecto:

-“Observe-se que a posição monista de duplo aspecto, apesar de se dizer monista, suscita uma série de possíveis críticas. Não seria o monismo de duplo aspecto uma espécie de dualismo disfarçado? Afinal de contas, se o contínuum corpo-mente é maior do que somente o corpo, então haveria algo mais além do físico”. No dualismo, as propriedades físicas e mentais são consideradas como logicamente opostas; se um evento ou entidade é físico(a), então não seria mental, e vice-versa. Não se coloca a possibilidade de que uma evento ou entidade físico(a), como os(as) que encontramos nos processos da fisiologia cerebral, também sejam ao mesmo tempo, mentais. Como nota Velmans (2009), o dualismo também entende que as experiências mentais não teriam propriedades físicas, como se situar no espaço (ou seja, possuir uma extensão). No monismo de duplo aspecto, predicados físicos e mentais são considerados complementares; o potencial de ação neuronal, por exemplo, seria simultaneamente físico (quando enfocado na perspectiva de terceira pessoa, pelo

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Réplica aos comentários neurocientista) e mental (quando vivenciado na perspectiva de primeira pessoa, pelo portador do cérebro). As percepções são consideradas como localizadas no espaço, por meio de uma operação de “projeção” (VELMANS, 2009), enquanto para os dualistas cartesianos não teriam extensão. -“O que seria esse algo a mais, que faz com que o corpo-mente seja maior do que simplesmente uma realidade puramente física? Qual seria a natureza desse algo-a-mais? Infelizmente, os proponentes das diversas versões de monismo de duplo aspecto não nos dão uma resposta definitiva sobre essas questões”. De fato, não ofereci uma resposta metafísica a tais questões, mas respostas possíveis dentro dos limites do método filosófico-interdisciplinar adotado. -“A teoria de consciência de Baars é uma teoria completamente fisicalista da mente, que explica a consciência como sendo a emergência de um processo serial coordenado a partir da interação de múltiplos agentes interagindo em paralelo, segundo um processo coordenativo que resulta no compartilhamento global de um grupo de informações selecionadas competitivamente, como em um processo evolutivo”. A teoria de Baars foi apresentada como sendo cognitiva, e não contém nenhuma referência a processos físicos propriamente ditos. Inclusive, é notória a repulsa de Baars a abordagens físicas da consciência, chegando recentemente a publicar um artigo em que nega a pertinência da principal teoria física (teoria quântica) para a abordagem científica da consciência (BAARS e EDELMAN, 2012). Na versão “biológica” de Stanislas Dehaene, o Espaço de Trabalho Global (ETG) é relacionado com um sistema cerebral, o córtex pré-frontal, porém este neurocientista não apresentou quaisquer explicações físicas dos processos que ocorrem nesta parte do cérebro, possibilitando a ocorrência da atividade consciente. Também é famosa a implementação computacional da teoria de Baars por Stan Franklin, na qual são especificados módulos de processamento de informação que expressariam as principais propriedades do ETG, porém sem qualquer explanação física do funcionamento das máquinas que implementariam o modelo e dos processos físicos da máquina envolvidos na atividade consciente.

-“Para o Prof. Pereira Jr., estava claro que as ondas de cálcio, até pelas suas características temporais, fariam o papel de selecionadoras da atenção sobre quais as informações contidas nos neurônios seriam propagadas via broadcast 134

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Réplica aos comentários para o resto do cérebro. O passo seguinte seria associar essas ondas de cálcio à formação do sentimento, na mecânica cerebral, segundo a proposta de Panksepp. A partir disso, veio o surgimento do terceiro aspecto no MTA. A informação processada pelos neurônios seria a informação cognitiva. O sentimento seria instanciado pelas ondas de cálcio, cumprindo seu papel de indicar quais as informações cognitivas que deveriam sofrer o broadcast. Para isso, era necessário que o monismo de duplo aspecto fosse estendido de um aspecto a mais, e aí então o monismo de duplo aspecto dá origem ao monismo de triplo aspecto, como apregoado pelo Prof. Pereira Jr”. Esta foi uma boa e breve reconstrução de uma das origens do MTA.

-“Se a teoria de Baars, que é completamente fisicalista, poderia dar conta de explicar a consciência, por que propor uma teoria não fisicalista como o MTA, com a consequente responsabilidade de lidar com os aspectos não físicos da realidade? Talvez para dar espaço para uma explicação da formação do “self”, que ainda não está claro na teoria de Baars?”. Entendo que a teoria de Baars não é fisicalista, mas funcionalista (o funcionalismo é ontologicamente indeterminado; pode se basear tanto no fisicalismo não-reducionista quanto em um idealismo de tipo platônico, ou em qualquer outra posição intermediária). Sempre me incomodou a relutância de Baars em relacionar o ETG com mecanismos cerebrais descritos em termos biofísicos. O MTA é uma teoria naturalista que procura expandir o conceito de natureza para além dos pressupostos ontológicos da física clássica. Inicialmente, pensei o MTA como proposta fisicalista não redutiva; entretanto, frente à dificuldade de se abordar de modo apropriado os sentimentos no contexto da física, química ou mesmo da biologia contemporânea – e para não depender de promessas a respeito dos achados da ciência no futuro longínquo – optei por elaborar uma teoria que, no contexto contemporâneo da Filosofia da Ciência, pudesse abarcar os três aspectos essenciais para a existência da consciência (os sentimentos, os processos físicos e os processos informacionais que constituem suas “condições de possibilidade”). Ao mesmo tempo em que me incomodava o funcionalismo de Baars, também atentei para a possivelmente esclarecedora relação entre os processos sentimentais e a constituição do Eu consciente (e me parece que outros autores contemporâneos também têm percebido esta conexão). Talvez a ausência dos sentimentos na teoria “cognitivista” de Baars tenha sido um dos fatores limitantes da mesma frente a questões essenciais da psicologia, como o conceito de Eu e as teorias da personalidade; neste sentido, o Prof. Ricardo parece ter razão em seu comentário,

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Réplica aos comentários embora para mim esta constatação não tenha sido feita na época em que eu interagia frequentemente com Baars, em fóruns de discussão na Internet e em seus cursos ‘online’ sobre Teoria da Consciência. -“Não seria mais fácil simplesmente apontar as ondas de cálcio como o mecanismo de foco de atenção e pronto? E, em segundo lugar, porque associar as ondas de cálcio ao “sentimento”? E, porque esse sentimento não poderia ser considerado como “informação”?”. Em uma teoria puramente fisiológica da atenção – que não deixa de ser interessante para os neurocientistas – bastaria relacionar as ondas de cálcio com o foco da atenção; entretanto, esta não seria uma Teoria da Consciência. Eu associei as ondas de cálcio com os sentimentos quando assisti a vídeos (que começaram a ser feitos a partir de 1990, mas só se tornaram amplamente acessíveis uma década depois, no Youtube) sobre ondas de cálcio in vitro e in vivo (feitos com microscopia de fluorescência). Me pareceu evidente que tais ondas seriam por demais nebulosas para instanciarem processos cognitivos; além do mais, seu timing – na escala de segundos corresponderia a processos afetivos, enquanto a atividade neuronal – muito mais rápida, na escala de milissegundos – seria apropriada para processos cognitivos. Quanto à distinção entre sentimento e informação, além dos limites da abordagem científica da informação, na qual esta é na maior parte das vezes apresentada como unidades binárias discretas (bits) desprovidas de semântica (e, portanto, insuficientes para instanciarem sentimentos) há uma questão de fundo: a informação é – contrariamente ao que pensam alguns não especialistas no assunto – perfeitamente tratável na perspectiva da terceira pessoa, por meio de métodos quantitativos, ao passo que o sentimento é acessível apenas na perspectiva da primeira pessoa e não diretamente quantificável (sua intensidade pode ser indiretamente medida por meio de escalas analógicas, mas esta operação depende de relatos de primeira pessoa). -“Em nossa visão, apesar do substrato distinto (neurônios versus células gliais), tanto os neurônios como as células gliais carregam sim informação. A única diferença é que há sistemas separados para processar essa informação. Enquanto a informação cognitiva é processada nas redes de neurônios, a informação de sentimento seria processada nas redes de células gliais. A proposta de dois aspectos distintos forma/informação e sentimento/consciência no MTA fica aqui um pouco comprometida, em virtude de considerarmos o sentimento como elemento formador da consciência e também uma característica de informação. Não seriam, portanto, aspectos irredutíveis entre si”. 136

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Réplica aos comentários

Na proposta do MTA, não se pode afirmar – como faz o Prof. Ricardo - que a função da rede glial seria “processar informação”. Há aqui um problema terminológico. A rede glial processa “formas de onda” que instanciam sentimentos, porém tais “formas de onda” não seriam unidades binárias discretas como os bits processados por neurônios e computadores digitais; embora não possa aqui oferecer uma réplica detalhada, lembro que em várias publicações tenho sugerido que as ondas de cálcio astrocitárias seriam quantum-like, ou seja, um fenômeno macroscópico que resgata um grau de superposição e emaranhamento quânticos, que são destruídos no processo de “decoerência” (transição da escala quântica para a macroscópica) mas seriam “resgatados” por meio de processos de redução de entropia e construção de estados coerentes no cérebro. Estes últimos processos geram um sistema metaestável que obedece ao princípio de “ordem por flutuações” formulado por Nicolis e Prigogine (1977). É esse regime metaestável que possibilita que a variação de amplitude no tempo (a forma temporal) da onda de cálcio, um fenômeno de baixa energia, tenha um efeito sobre a estrutura material do organismo vivo, influenciando a atividade fisiológica e o comportamento. Portanto, mais do que meramente processar a informação sem dar conta das formas que estão sendo processadas, a função maior da rede astrocitária seria afetar a rede neuronal e o restante do corpo de acordo com a valência atribuída ao conteúdo da informação; reforçando o padrão informacional processado, se for sentido como bom; e o deprimindo, se for sentido como ruim. -“Para dar sequência à análise crítica aqui preconizada, vamos elaborar uma proposta alternativa, que prescinde do recurso de um monismo de múltiplos aspectos (e sua proposta de uma parte da realidade extrafísica) [...] O interpretante, ou “efeito” do signo, é tudo aquilo que pode decorrer da interpretação do signo. Normalmente, esse interpretante é outro signo, que mantém um relacionamento (do mesmo ou de outro tipo) com o mesmo objeto com que o signo mantinha um relacionamento. Com isso, dizemos que o signo “representa” seu objeto, uma vez que tem o poder de gerar um efeito, onde esse objeto também está envolvido de alguma maneira. Segundo Morris analisa em seu livro de 1964, esse interpretante possui três diferentes dimensões: as dimensões designativa, apraisiva e prescritiva [...] Na visão alternativa, segundo a semiótica de Morris, um sentimento, ao contrário, seria um signo cujo interpretante tem predominância em sua dimensão apraisiva, ou seja, uma visão completamente fisicalista (bem determinada e funcional) de sentimento”.

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Réplica aos comentários Prof. Ricardo, por favor não tente passar o idealismo peirceano como se fosse fisicalismo! O fisicalismo é uma proposta filosófica que procura estabelecer uma ontologia da mente com base nas ciências físicas, por exemplo, utilizando as quatro forças consideradas fundamentais, e processos causais que tais forças possibilitam explicar. Para Peirce (e, imagino, também para seus discípulos, como Morris), a realidade fundamental é mental; processos semióticos são processos mentais. No MTA, processos semióticos pertencem ao segundo aspecto.

-“Observe-se que: enquanto no MTA o sentimento é vendido como uma entidade categorialmente distinta da realidade, sem uma explicação mais aprofundada sobre como deveria ser essa realidade estendida, em nossa proposta alternativa o sentimento se diferencia também de uma informação puramente designativa, mas de uma maneira mais concreta e palpável. Nesta visão, um sentimento é um tipo de signo que deverá ser utilizado posteriormente pela mente para ponderar sobre a seleção de ação que essa mente irá perpetrar”. Quanto ao estatuto dos sentimentos em Peirce, os comentários do Prof. Vinícius Romanini foram muitos esclarecedores: sentimentos se situam no plano da primeiridade, e não poderiam ser reduzidos à dimensão apraisiva dos interpretantes, que se situa no âmbito da terceiridade peirceana (ou seja, para que tal dimensão apraisiva seja possível, é necessário que os sentimentos já existam como potencialidade, no plano da primeiridade). Ironicamente, destas considerações resulta que para a semiótica os sentimentos seriam entidades mais primitivas que para o MTA! -“Uma proposta puramente fisicalista, apresentada aqui na forma de uma hipótese alternativa baseada na semiótica de Morris, aparentemente possui um poder explanatório similar ao MTA, sem ter que apelar para um monismo de múltiplos aspectos e suas dificuldades metafísicas (lembremos da navalha de Ockham).” Tal proposta nada tem de fisicalista. É na verdade um Monismo Idealista, no qual a realidade é constituída de entidades mentais dinâmicas, que também perpassam três aspectos (primeiridade, segundidade e terceiridade), porém em ordem inversa ao MTA (vide discussão com o Prof. Romanini). A tríade dos interpretantes possivelmente estaria no plano da terceiridade, pressupondo a potencialidade dos sentimentos (primeiridade) e sua expressão sígnica (segundidade).

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Réplica aos comentários -“Seria importante trazer maiores evidências da associação da onda de cálcio nas células gliais com a noção de sentimento. Reduzir uma à outra talvez seja uma hipótese forte demais. Precisamos lembrar que outras coisas ganham acesso à consciência, além da percepção, tais como episódios oriundos da memória episódica, ou imaginações ou planos para o futuro. É importante ressaltar aqui que qualquer critério que seja utilizado para selecionar o que vai para a consciência envolve uma avaliação (e, portanto, um valor ou signo apraisivo), o que seria um sentimento em nossa visão alternativa”. Não se propõe tal redução. O sentimento seria instanciado nas ondas de cálcio, mas não reduzido a ela. O sentimento não é um processo meramente físico, ou informacional, mas uma vivência subjetiva que se superpõe àqueles aspectos. Quanto às memórias (enquanto resgatadas conscientemente), à imaginação e planos para o futuro, todas estas vivências contém sentimentos (conforme argumentei em resposta à Profa. Cláudia Passos). -“(É preciso) esclarecer melhor a questão da constituição e operação do “self”, que nem o MTA, nem a proposta de Baars, e nem a visão alternativa baseada na semiótica de Morris dão conta ainda de explicar”. O MTA propõe que o Eu consciente seria um Eu sentiente, construído pelos hábitos sentimentais que se estabelecem na história da vida pessoal, e instanciado na rede astrocitária. Sua operação poderia ser abordada por meio das interações neuroastrocitárias, pelas quais os astrócitos reforçam ou deprimem – por meio das sinapses tripartites - os padrões informacionais processados pela rede neuronal, conforme a valência a eles atribuída (positiva se induzem estado de satisfação; negativa se induzem estado de sofrimento).

Armando Freitas da Rocha

Termino as réplicas com os gentis comentários do Prof. Armando Rocha, com quem escrevi diversos trabalhos relacionando consciência, neurociência e teoria quântica. -“O controle do sequestro de cálcio envolve circuitos iônicos e vias metabólicas controladas por canais de NMDA. A ativação correta dessas duas vias coloca os íons de Cálcio (Ca2) em estado de coerência quântica em vários locais do cérebro inicializando o ciclo de processamento, e a decoerência que ocorra em qualquer desses locais provoca a decoerência em todos os outros, finalizando o 139

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Réplica aos comentários ciclo de processamento quântico que afeta a dinâmica cerebral em todos os locais, gerando então o processo de unificação do processamento. A coerência de estados do Ca2 é obtida através da circularidade da ativação cerebral que deve ocorrer em vários ciclos bem definidos”. No trabalho de 2001 e no livro de 2005 que co-autorei com o Prof. Armando, nós efetivamente relacionamos a função de detecção de coincidência do receptor NMDA com a formação de estados coerentes nas populações de íons de cálcio. Entretanto, mais tarde notei que seria preciso que os íons também interagissem entre si, o que não ocorre de modo adequado nos neurônios, e sim na glia. A partir de 2007, em meus trabalhos com Fábio Furlan, passamos para uma abordagem alternativa, propondo que os estados coerentes ocorreriam na rede astrocitária. -“A proposta central feita por Rocha et al (2002) é a de que a consciência é um atributo do processamento quântico criado quando do processo de decoerência dos estados do Ca2”. Eu tenho discordado do Prof. Armando a este respeito. Entendo que a atividade consciente envolve uma diversidade de processos, não podendo ser caracterizada apenas em termos quânticos. Mais importante, entendo (PEREIRA JR, VIMAL & PREGNOLATO, 2016) que a fase do processo físico em que se atualiza uma experiência consciente não seria a decoerência, mas a “recoerência” (quando a coerência quântica microscópica é parcialmente resgatada em um estado macroscópico do cérebro). Desde 1999 tenho criticado a abordagem de Penrose e Hameroff por relacionarem consciência com decoerência, pois este termo descreve uma transição para estados clássicos (os quais, na ontologia da física clássica, não contêm “qualidades secundárias”); para o MTA, a fase de decoerência formaria apenas estados informacionais inconscientes, pertencendo, portanto, ao segundo aspecto. -“Pereira Jr. acaba enfrentando algumas dificuldades desnecessárias como a definição extremamente abstrata de episódios conscientes”. Se fosse possível uma definição puramente física da consciência, eu a teria adotado há tempos. Entretanto, como temos comentado em diversas oportunidades, a própria física moderna se constituiu pela exclusão da consciência do âmbito de processos que estuda, e a física quântica não seria uma exceção a este respeito. Como ressalta Velmans (2009), a consciência é referida pelos físicos idealistas e dualistas 140

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Réplica aos comentários (e.g., a Escola de Copenhagen) para se tentar resolver um problema teórico da própria teoria quântica, que é explicar a causa do “colapso” da função de onda. -“Outra dificuldade se refere a exigir que apenas processos cognitivos que afetam o corpo possam ser conscientes. Essa exigência leva, por exemplo, a problema do tipo discutido a seguir. O controle da frequência cardíaca é feito partir de informações colhidas por sensores de pressão e pulsação e manipulação do simpático e parassimpático. É um processo cognitivo? Ou é como qualquer outro processo de controle por retroalimentação, que pode ser instalado, inclusive por meios hidráulicos. Além disso, é um processo inconsciente durante a maior parte da vida do indivíduo, embora afete o corpo continuamente. Mas pode ser “conscientisável” como palpitações em condições patológicas ou emocionais”. O Prof. Armando implicitamente respondeu a sua própria questão. Em condições rotineiras, ou seja, lidando com situações habituais, processos cognitivos ocorrem de modo automático, sem despertar sentimentos, e, portanto, são inconscientes. Apenas quando o processo cognitivo lida com “diferenças que fazem diferença” (usando a expressão atribuída a Bateson) ocorre o sentimento, e o respectivo evento (p.ex. aumento de amplitude do batimento cardíaco) é incluído em um episódio consciente. O que talvez tenha faltado no artigo em discussão seria uma melhor discussão a respeito deste dinamismo da consciência, que remete à noção de atenção consciente, cuja composição foi ilustrada na Figura 7 do artigo. Este dinamismo é encontrado em livros-texto de neurociência quando se aborda a teoria da habituação, que foi desenvolvida a partir dos experimentos clássicos da escola russa de Pavlov, pelo grupo de Sokolov. É interessante notar que o conceito de informação atribuído a Bateson seria semelhante ao “reflexo de orientação” (orienting reflex) de E. Sokolov. Recordo que, ao chegar ao Department of Brain and Cognitive Sciences do MIT para fazer pós-doutorado em 1996, meu supervisor, Prof. Stephan Lewis Chorover que havia estudado com Sokolov, me sugeriu estudar o reflexo de orientação como base para uma Teoria da Consciência (aproveito a oportunidade para expressar minha gratidão ao Prof. Chorover – que faleceu neste ano de 2015 - por esta e muitas outras sugestões que se revelaram profícuas na minha trajetória de mais de 20 anos de investigação deste tema). -“A distinção dos processos conscientes e inconscientes, dentro da visão de que os primeiros exigem uma computação quântica e os segundos não, começa a ser definida a partir da quantidade de informação a ser processada. Se for baixa, um

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Réplica aos comentários processamento clássico pode ser capaz de manejá-la, se aumentar, será necessário recorrer à maior capacidade dos processadores quânticos”. Não acredito que se possa caracterizar a atividade consciente exclusivamente pela computação quântica, por duas razões básicas: (a) Há, por todo lado que se queira investigar, computação quântica inconsciente; (b) A computação quântica não provê uma conexão com a fenomenologia. Segundo o Prof. Armando, ela seria necessária quando há conflito sistêmico que não possa ser resolvido por mecanismos clássicos; entretanto, nós não sentimos tais conflitos. Segundo a hipótese do Prof. Armando, durante todo o tempo em que estamos conscientes haveria conflitos que demandam computação quântica, porém tais conflitos e computações não apresentam conexão alguma com nossas experiências conscientes. No MTA, essa conexão é explícita, pois os sentimentos são vivenciados conscientemente e também podem ser estudados em seus correlatos informacionais (formas de onda) e físicos (movimentos de íons em solução, controlados por proteínas). -“Outro fator determinante do uso do processamento quântico é a necessidade de unificação de processamentos de distintas informações, como por exemplo, a necessidade de integrar processamento visual e auditivo, para identifica que é aquela pessoa localizada naquela posição que está falando”. Neste quesito, tenho o prazer de concordar com o Prof. Armando. Seria esta a função da coerência quântica para a formação de episódios conscientes multimodais integrados: prover o ‘binding’ dos padrões de informação processados de modo distribuído no cérebro, e possivelmente também em outras partes do corpo (por exemplo, os músculos também apresentam movimentos coerentes de populações de íons de cálcio). Desse modo, considero meus trabalhos em coautoria com o Prof. Armando como teorias de integração cognitiva; os processos cerebrais de tipo quântico seriam responsáveis pela formação dos conteúdos “objetivos” da consciência, que são vivenciados pelo Eu sentiente durante cada episódio consciente. Entretanto, este Eu não seria instanciado pela mesma rede (neuronal) que processa tais conteúdos, e sim pela rede astrocitária, cujas ondas de cálcio instanciariam os sentimentos relativos a cada conteúdo.

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Réplica aos comentários Termino estas réplicas agradecendo aos editores da revista Kinesis pela oportunidade de discutir o MTA com caros colegas, que levantaram questões decisivas para a viabilidade da proposta. A elaboração das respostas foi uma atividade muito gratificante para mim, mesmo que os resultados não sejam suficientes para que o leitor, ao término deste percurso, tenha atualizado sentimentos favoráveis ao MTA.

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