Revista Nonada, 2014 - As novas coordenadas de Ítaca: Ruth Rocha conta a Odisseia

June 24, 2017 | Autor: Charlene Miotti | Categoria: Homeric Reception
Share Embed


Descrição do Produto

AS NOVAS COORDENADAS DE ÍTACA: RUTH ROCHA CONTA A ODISSEIA NEW COORDINATES OF ITHACA: RUTH ROCHA CONTA A ODISSEIA Charlene Martins Miotti1 Flávia Amaral Figueiredo2 RESUMO: Este trabalho apresenta alguns resultados do projeto de iniciação científica “novos feácios: a odisseia como literatura infantojuvenil”, cuja primeira etapa destina-se ao cotejo entre a recente adaptação de ruth rocha (2011) e as traduções poéticas disponíveis em língua portuguesa. A pesquisa identificou estratégias específicas através das quais a autora emula características do estilo homérico para introduzir a história de ulisses ao público infantojuvenil. PALAVRAS-CHAVE: Literatura infanto-juvenil; Odisseia; Ruth Rocha. ABSTRACT: This paper presents some results from the scientific initiation project “New Phaiakians: the Odyssey as children’s literature”, whose first stage concerns the comparison between Ruth Rocha’s recent adaptation (2011) and poetic translations available in Portuguese. The research identified specific strategies through which the author emulates features of Homeric style to introduce the story of Odysseus to children and teenagers. KEYWORDS: Children’s literature; Odyssey; Ruth Rocha.

A clássica narrativa sobre a longa viagem de retorno a Ítaca, terra natal de Ulisses, ganhou, no início do século XXI, adaptação da escritora brasileira Ruth Rocha. A Ilíada e a Odisseia, tradicionalmente situadas no século VIII a.C., são consideradas pedras fundamentais da literatura no Ocidente, ainda que precedam à escrita (sabe-se que os poemas, neste período da história, eram transmitidos oralmente). Mas esta constatação, por si só, poderia justificar o interesse atual na difusão dos épicos de Homero e sua permanência entre as obras que receberam mais adaptações para o público infantojuvenil (cf., por ex., as versões de Chianca, 2000; McCaughrean, com tradução de Marcos Bagno, 2003; Salerno, 2008, Barbosa, 2013)? Este trabalho apresentará algumas impressões sobre a nova edição (2011) de Ruth Rocha conta a Odisseia, uma das adaptações mais premiadas do clássico homérico. No primeiro século antes de Cristo, Horácio postulou que “tem todos os votos quem misturou o útil ao agradável, deleitando e, ao mesmo tempo, instruindo o leitor”3. Desde então, a história literária ocidental não pôde escapar a uma possível leitura utilitarista, que investiga o texto à procura de um objetivo didático, para além do simples entretenimento ou da fruição estética. No caso das adaptações de clássicos da literatura, a dupla função é quase imperativa. Qual é a lição da Odisseia para os leitores iniciantes, então? Ulisses é um herói eloquente, um líder da guerra de Troia e dos aqueus, em geral. Desgraçado e ajudado pelos deuses (o plural, aliás, deve fazer com que as crianças mais atentas questionem alguns 1

Professora Adjunta de Língua e Literatura Latinas na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: [email protected] 2 Aluna de graduação em Letras e bolsista de Iniciação Científica PROVOQUE (Propesq/UFJF). 3 Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci, lectorem delectando pariterque monendo (Ars Poetica, 344).

12

conceitos dominantes em nossa sociedade), Ulisses sobrevive aos terríveis obstáculos em seu caminho – ele é um pouco homem, um pouco mito. O herói persevera, mesmo quando todas as esperanças parecem perdidas: ele representa os valores mais sólidos da cultura grega antiga, alguns ainda válidos para nós (como a coragem, a sabedoria e valorização do lar). Um ensaio recente de Mário Sérgio Conti, publicado pela revista Piauí, parece resumir o que a Odisseia nos traz de mais fantástico e de mais humano: Logo que a aurora de dedos róseos surgiu matutina na literatura ocidental, Ulisses, o saqueador de cidades, estava lá. Mas lá onde? Estava num poema épico composto há 2.700 anos, no qual o herói astucioso faz a viagem de volta à terra onde nasceu e era rei, a ilha de Ítaca. Ele retornava de Troia, onde combatera na guerra de dez anos dos gregos para salvar a bela princesa Helena, sequestrada pelos inimigos. A viagem de Troia a Ítaca se alonga por outros dez anos, durante os quais Ulisses vive aventuras prodigiosas. Enfrenta ciclopes, canibais e monstros de muitas cabeças, ouve o canto malévolo das sereias e se safa, é ajudado pela deusa Atena e atacado por Posêidon, desce ao Inferno e conversa com almas penadas, ganha de presente um saco de ventos que o empurrarão mar adentro, seus marinheiros são transformados em porcos. Ulisses também vive o destino comum aos humanos entre a turba indistinta: enterra o amigo numa praia, deita-se com mulheres de tranças, toma vinho e come churrasco, trespassa inimigos com lâmina de bronze, naufraga em mar horrendo, é enganado, padece de frio, solidão, fome e medo, só quer ir para casa. Ulisses estava lá: na Odisseia. Tudo o mais é incerto. Não se sabe se o seu autor, Homero, existiu mesmo ou a epopeia é obra de um bando de bardos. Não se sabe se o poema foi primeiro escrito ou declamado por analfabetos. Não se sabe se houve um Ulisses, seu filho Telêmaco e Penélope, sua mulher. Não se sabe de onde vem a língua em que foi composto: ela só existe na Ilíada e na Odisseia. Não se sabe como os versos subsistiram até 1488, quando foi impressa a sua primeira edição, em Florença. (CONTI, 2012, p. 7)

No texto de Conti, discute-se também sobre o lugar de Ítaca na literatura, no imaginário coletivo e até na cartografia. Em 2005, Robert Bittlestone, no livro Odysseus unbound: the search for Homer’s Ithaca4, propôs uma nova localização geográfica para a terra natal de Ulisses, diferente da ilha atualmente chamada Ítaca (situada a oeste da Grécia, no mar jônico), cujas características do relevo não coincidem com as descrições de Homero. A possível existência física de mais uma Ítaca é o mote para a conclusão de Conti: “Enquanto houver entre nós aqueles que queiram retornar aonde tudo começou, os rivais matar, reaver a amada, rever o filho, ou tenham nostalgia da terra que ficou para trás, a Odisseia prosseguirá” (CONTI, 2012, p. 7). A reflexão sobre o tópos literário da “volta ao lar” direcionou nossa pesquisa para a seguinte questão: como se chega a Ítaca hoje em dia? Quais são as rotas pelas quais os leitores em formação podem passar, antes de chegar a uma tradução (poética ou não) de Homero? Neste contexto, ganha relevo o best-seller Ruth Rocha conta a Odisseia, que recebeu em 2000 o prêmio Figueiredo Pimentel (Melhor Livro de Reconto) e o selo “Altamente Recomendável”, ambos da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Até o ano de 2010, as primeira e segunda edições do livro tiveram notáveis 14 reimpressões e, em 2011, a editora Salamandra lançou novo exemplar, inteiramente reformulado. A reputação de Ruth Rocha na literatura infantojuvenil é resgatada já no título de sua adaptação, invocando o ofício pelo qual se tornou famosa: contar histórias. A escritora possui mais de 130 títulos publicados e traduções para 25 idiomas. Seus “O Reizinho 4

Com James Diggle e John Underhill. Cambridge University Press, 2005. 598 p.

13

Mandão” e “Marcelo, Marmelo, Martelo”, este com mais de um milhão de exemplares vendidos, tornaram-se clássicos da literatura infantil brasileira. Temos razões para acreditar que sua leitura do poema homérico tem papel fundamental na manutenção do apelo que esta história, contada originalmente há quase três mil anos, ainda possui para os jovens leitores modernos. Há, no meio acadêmico, acalorado debate sobre a existência histórica de Homero e a autoria da Ilíada e da Odisseia5 – questão à qual Ruth Rocha faz referência em sua adaptação. Segundo Foucault (2009, p. 273), a identificação do nome do autor serve “para caracterizar certo modo de ser do discurso”, cuja função seria garantir a existência, a circulação e o funcionamento deste mesmo discurso na sociedade. Ao analisar a questão da autoria na epopeia, Hansen (2008) sublinha que a noção de propriedade privada do texto é recente e, antes das invenções da imprensa e do livro como produto, “o poeta tem a posse dos meios técnicos de produção da poesia” (HANSEN, 2008, p. 20). Portanto, na transmissão oral dos versos, a marca do autor – sua identificação – era o estilo, a forma com a qual ornamentava um enredo que já fazia parte da tradição cultural de seu povo. Sabe-se que a era da revolução digital demanda mais atenção sobre como as histórias serão contadas, do que propriamente quais histórias serão ouvidas ou lidas. Sob este aspecto, Ruth Rocha pode ser vista como um moderno rapsodo (“costurador” [de poemas], em grego), ao assumir o desafio de transmitir e propagar uma narrativa que inaugura o próprio conceito de “clássico” (conforme Calvino o definiu em 1981). Temos razões para acreditar que o modus operandi de Ruth Rocha na reformulação do poema homérico tem papel fundamental na manutenção do apelo que esta história, contada originalmente há quase três mil anos, ainda possui para os jovens leitores modernos. Interessam-nos, sobretudo, as particularidades da recente edição (2011) em relação a outras propostas disponíveis no mercado editorial brasileiro. A título de exemplo, cabe observar que as seguintes adaptações da Odisseia suprimem completamente os primeiros cinco cantos da obra: Diane Stewart (publicada em inglês pela Raintree e em português pela Melhoramentos, ambas em 1981, ainda à venda atualmente com o mesmo layout), Geraldine McCaughrean (publicada em inglês pela Oxford University Press em 1993, com tradução de Marcos Bagno, apresentação de Ana Maria Machado e selo “Altamente Recomendável” da FNLIJ, 2003), Roberto Lacerda (publicada originalmente em 1997 pela editora Scipione, baseada em tradução francesa de Victor Bérard, 1955) e Leonardo Chianca (voltada ao público de até 9 anos de idade, também pela Scipione). Ruth Rocha opta por manter, em sua adaptação, não apenas o fluxo narrativo original, do qual os cinco primeiros cantos são parte fundamental, mas a clássica divisão em vinte e quatro cantos, adotada pelas modernas edições especializadas (em português, cf. Nunes, 2000 e Vieira, 2011). A editora Salamandra (na contracapa do livro) e as resenhas veiculadas na mídia ratificam, unanimemente, o respeito de Ruth Rocha pelo “espírito da narrativa original”. Sabe-se que, na Odisseia, há uma curiosa variação na linguagem que se tornou rubrica autoral para Homero: em seu poema, constata-se a mistura de dialetos gregos, formas contemporâneas e arcaicas e, ainda, neologismos peculiares que materializam o rompimento com a realidade cotidiana, evidenciando o desejo de elevar a epopeia em nobreza e caráter literário (ROMILLY, 2001 apud OLIVEIRA & SOUZA, p. 84). Apresentamos, a seguir, ancorados na edição poética de Carlos Alberto Nunes (2000), algumas estratégias às quais

“[...] ao se colocar como contadora, Ruth Rocha reforça a “Questão Homérica”, apontando para um texto que não tem autor definido, mas, por suas particularidades enquanto narrativa, pode ser recontado de forma que aquele que o faz deixe sua marca estilística sem, contudo, alterar o enredo original que historicamente ficou identificado como autoria de Homero. E, ainda, atualiza a relação original entre o indivíduo que declama (um co-autor) e o público, que mantém no texto a marca estilística do poeta que o criou”. (OLIVEIRA & SOUZA, 2011, p. 83) 5

14

Ruth Rocha (2011) recorre para manter certas características do estilo homérico que configuram, em última instância, a própria identidade do texto original. Canto II – NUNES, 2000, p. 41, v. 1-11:

Cap. II – ROCHA, 2011, p. 22:

“Logo que a Aurora, de dedos de rosa, surgiu matutina, alça-se o filho do divo Odisseu de seu leito lavrado; veste-se e no ombro, depois, deita a espada de gume cortante; calça, a seguir, as formosas sandálias nos pés delicados e sai do quarto, no aspecto semelhante a um dos deuses eternos. Manda aos arautos, de voz penetrante, que à praça convoquem, para a assembleia, os Aquivos de soltos cabelos nos ombros. Gritam, sem mora, o pregão; apressados aqueles concorrem. Quando ao chamado acudiram e todos se achavam reunidos, veio, também, para a praça, na mão tendo a lança em bronze, mas só ele não ia; dois rápidos cães acompanhavam-lhe os passos.”

“Ao raiar da Aurora, de dedos rosados, Telêmaco vestiu-se, calçou suas sandálias e pendurou sua espada no ombro. Mandou que os arautos avisassem a população de que todos os habitantes da ilha deveriam se dirigir à ágora6. E, levando seus cães, encaminhou-se à praça, onde a população estava reunida.”

Aqui, a comparação evidencia que a semelhança não ocorre apenas pelo uso do epíteto referente à Aurora (uma das marcas de Homero, recuperadas também no ensaio de Conti, 2012). A escritora, como se vê, está atenta a todos os detalhes da cena: o ato de se vestir, de calçar as sandálias, de pendurar a espada no ombro, de dar ordens aos arautos (o verbo “mandar” está presente nos dois textos) e, por fim, de Telêmaco estar acompanhado pelos cães. Na tradição da poesia oral, os epítetos desempenham um papel mnemônico vital: através deles o rapsodo relembra a seus ouvintes as particularidades de cada personagem no enredo. O amplo emprego de epítetos é a primeira das estratégias exploradas por Ruth Rocha para se aproximar, tanto quanto possível, da linguagem homérica. Eis três exemplos ilustrativos (acompanhados por notas de rodapé da autora): 1. “- Por que, ó Zeus, amontoador de nuvens, estás zangado com ele? (Os deuses falavam assim uns com os outros.) [...] Zeus não tinha nada contra Ulisses, então respondeu a Atena dizendo que concordava que ele era um bom sujeito, mas que Poseidon, o condutor da Terra, é que tinha raiva dele. E prometeu que ia fazer de tudo para que Ulisses conseguisse voltar para casa. [...] Palas Atena, então, mandou Hermes avisar Calipso, a ninfa de belas tranças, de que a ordem de Zeus era para libertar Ulisses. [...] Nota de rodapé: “Amontoador de nuvens.” Epíteto atribuído a Zeus. Epíteto é uma palavra ou frase que define uma pessoa. É muito característico de Homero atribuir vários epítetos aos deuses.” (ROCHA, 2011, p. 19) 2. “Enquanto isso, Atena, a deusa dos olhos glaucos, disfarçada como se fosse Telêmaco, já tinha arranjado um barco com remadores; levou o barco para o porto e preparou-o para a longa viagem. [...] Os companheiros desataram as amarras, tomaram seus lugares e Atena, de verdes olhos, fez soprar um vento favorável, o forte Zéfiro. [...] Nota de rodapé: Olhos glaucos. Olhos cor do mar, verde-azulados. Essa expressão é usada frequentemente com referência a Atena. (ROCHA, 2011, p. 26)

6

É de interesse notar que, por vezes, a adaptação de Ruth Rocha se utiliza de vocabulário mais rebuscado do que a própria versão poética.

15

3. “Logo que a Aurora surgiu no horizonte, Alcino, rei dos feácios, e Ulisses, saqueador de cidades, levantaram-se e dirigiram-se à ágora, que ficava perto do porto. [...] Nota de rodapé: Saqueador de cidades. Este epíteto ou apelido era elogioso, pois definia um grande soldado. Mostra como a sociedade grega primitiva era guerreira.” (ROCHA, 2011, p. 40)

Aos deuses e heróis são atribuídos vários epítetos ao longo da Odisseia. Ruth Rocha mantém a variação, chamando Ulisses “o mais esperto dos gregos” (p. 18), “o saqueador de cidades” (p. 40), “o mais astuto dos gregos” (p. 49), “o inventor de artimanhas” (p. 50), “o divino” (p. 92) etc., e Poseidon, por sua vez, “o condutor da Terra” (p. 19), “o sacudidor de terras” (p. 51), “portador da Terra” (p. 51), “deus dos cabelos anelados” (p. 51), “o estremecedor da Terra” (p. 71) etc. O excerto 3 é particularmente curioso pelo fato de manter o epíteto de Homero inalterado, apesar de, na modernidade, o “saque” ter perdido o valor heróico que possuía no século VIII a.C. A nota de rodapé vem em auxílio dos jovens leitores na primeira menção – o que não se repete na p. 78, quando epíteto semelhante é direcionado a Palas Atena: “- Foi Atena, deusa dos saques, quem me transformou dessa forma. É fácil para os deuses, moradores da imensidão do céu, transformar os mortais.”. Como se vê, Ruth Rocha não poupa seu público dos detalhes que, a princípio, poderiam causar estranheza – ela opta pela modalização ou pelo esclarecimento paratextual. Pode-se observar o mesmo procedimento quanto às referências aos costumes da antiga civilização grega: 1. “Era muito comum, antigamente, que as pessoas de várias religiões sacrificassem animais em honra dos deuses. Era uma espécie de churrasco, só que tinha regras, o jeito de matar os animais, os pedaços que deviam ser servidos antes, e tudo isso era dedicado aos deuses.” (ROCHA, 2011, p. 27) 2. “Ulisses adiantou-se e abraçou os joelhos da rainha, pois esse era um costume grego: quando alguém queria pedir ou suplicar alguma coisa a uma pessoa, abraçava-se aos joelhos dela. [...] “Todos se espantaram quando viram Ulisses na sala. Mas logo ele começou a falar com a rainha como os gregos costumavam fazer, dirigindo grandes elogios a ela e à sua família, e, ao mesmo tempo, falando de seus infortúnios e de seu desejo de chegar à própria casa. [...] Sentou-se então sobre as cinzas perto do fogo. [...] Alcino, como todos os gregos naquela época, sempre que via um estrangeiro, ficava imaginando se ele não seria um dos deuses, e por isso o tratava muito bem. [...] Nota de rodapé: Sentar-se sobre as cinzas. Este era um ato de humildade. Significava que o viajante desconhecido submetia-se à vontade do dono da casa.” (ROCHA, 2011, p. 39) 3. “O gigante bebeu rapidamente e pediu mais, dizendo que daria a Ulisses um presente de hospitalidade por causa do vinho, que era muito bom. Por três vezes o ciclope esvaziou a gamela. [...] Nota de rodapé: Presente de hospitalidade. A hospitalidade era muito importante entre os gregos. Eles acreditavam que, honrando um hóspede, estariam honrando os próprios deuses.” (ROCHA, 2011, p. 49) 4. “Não sabemos como foi que Ulisses percebeu isso. Mas, para os gregos, qualquer acontecimento podia servir como presságio. Por exemplo: se a fumaça da oferenda subisse diretamente ao céu, isso podia ser sinal de que Zeus tinha aceitado o sacrifício; um vento que desfizesse a fumaça podia ser um sinal contrário.” (ROCHA, 2011, p. 52) 5. “Os gregos acreditavam num inferno diferente do nosso. Para a morada de Hades iam todas as pessoas que morriam e não só as pessoas más.” (ROCHA, 2011, p. 57)

16

6. “Vocês já perceberam que os gregos gostavam muito de histórias. As sereias se aproveitavam disso e tentavam atrair os marinheiros que passavam, prometendo contar o que eles mais gostariam de ouvir, ao mesmo tempo que entoavam seus cantos envolventes, que tinham levado tantos marinheiros à morte.” (ROCHA, 2011, p. 74)

Já apontamos anteriormente que, “na Odisseia, há uma curiosa variação na linguagem que se tornou rubrica autoral para Homero: em seu poema, constata-se a mistura de dialetos gregos, formas contemporâneas e arcaicas”. Atenta a esta peculiaridade, Ruth Rocha propõe uma solução semelhante, mas não idêntica: a mescla de registros eruditos e coloquiais da língua portuguesa. Eis mais uma estratégia da qual Ruth Rocha lança mão em sua adaptação: 1. “Mas as deusas dos gregos não eram todas igualmente poderosas. As que tinham menos força foram saindo da briga. Restaram apenas três deusas, que iriam disputar o troféu com todas as suas forças e quase todos os seus ARDIS.” (ROCHA, 2011, p. 11) 2. “Então, como uma gaivota que procura pelo peixe para se alimentar, Hermes planou sobre a superfície do mar até chegar à ilha de Calipso. A ninfa RECEBEUO muito bem, pois logo o reconheceu. E quis saber o que ele vinha fazer em sua ilha.” (ROCHA, 2011, p. 33) 3. “Para falar a verdade, os homens de Ulisses, que vinham da guerra, ainda tinham vontade de lutar e foram logo atacando as cidades dos cícones, que estavam se defesa. Só que depois de algumas vitórias e de terem saqueado algumas populações, a sorte mudou e eles foram derrotados; muitos soldados morreram e eles tiveram que fugir nos seus navios. [...] – Quem são vocês? – gritou com sua voz poderosa. – De onde vêm SULCANDO OS ÚMIDOS CAMINHOS?” (ROCHA, 2011, p. 46-48) 4. “- Ergue o mastro, DESFRALDA A VELA e o sopro dos ventos te levará até o fim do oceano, onde vais encontrar os bosques de Perséfone. DIRIGE-TE à morada de Hades. Vais encontrar dois rios que despencam das rochas. Nesse lugar cava um fosso quadrado, onde vais realizar uma cerimônia para chamar os mortos e, com eles, Tirésias, que vai prever o teu futuro. Em volta do fosso, despeja primeiro leite e mel, depois vinho saboroso e então água. Espalha por cima farinha de cevada. Sacrifica um cordeiro e uma ovelha negra, CUJO SANGUE deve correr para o fosso. As almas dos mortos virão, SEDENTAS DE SANGUE. Não CONSINTAS que os mortos bebam esse sangue antes que interrogues Tirésias.” (ROCHA, 2011, p. 58) 5. “Quando o vento parou e o mar se tornou liso como espelho, os homens recolheram a vela e começaram a remar, cada vez com mais força. O barco foi se aproximando da ilha e Ulisses começou a ouvir lindas vozes, que pareciam chama-lo. [...] Logo todos puderam ver, ATRAVÉS DA NÉVOA, ondas enormes que arrebentavam com TERRÍVEL FRAGOR.” (p. 74) 6. “Houve muitas despedidas, muita comida, muita bebida e Ulisses agradeceu muito por tudo, mas ele estava louco para ir embora.” (ROCHA, 2011, p. 70)

A vela que desfralda e (se) enfuna (p. 34, p. 59), o vento que amaina e paira (p. 66), os confins, o fragor, a bruma, a névoa, a nau. Ressaltamos em caixa alta vários exemplos de que a escritora não evita o uso de vocabulário erudito, pronomes oblíquos proclíticos e relativos (o “cujo”, por exemplo, já foi até declarado morto por renomados linguistas), verbos na segunda pessoa do singular (inclusive no imperativo, como no trecho 4). O coloquialismo de certos momentos (trechos apenas sublinhados), no entanto, tornam o texto leve e atrativo para seu público alvo, mimetizando em língua portuguesa um efeito semelhante à presença de formas contemporâneas e arcaicas da língua grega, bem como à mistura de dialetos.

17

O projeto “Novos Feácios: A Odisseia como literatura infantojuvenil” busca, em suma, investigar as características das adaptações de textos clássicos com fins pedagógicos, tentando responder às seguintes questões: 1. O que se mantém da obra original na adaptação que permitiria considerá-la uma “versão” da epopeia de Homero? O que se suprime? O que se modaliza? 2. Como se estrutura o livro adaptado para crianças e adolescentes em relação à edição poética integral, voltada para leitores especializados? Como e com quais objetivos se configuram glossários, ilustrações e design gráfico externo e interno? 3. Quais são as inovações da proposta de Ruth Rocha nesta nova edição reformulada de 2011, quando cotejada à clássica adaptação da Odisseia feita pela editora “Melhoramentos” nos anos 80? De modo geral, as questões levantadas permitem avaliar o progresso e os rumos do mercado editorial brasileiro no tocante à produção de livros paradidáticos que recuperam mitos e narrativas da cultura clássica. No âmbito específico, estudos desta natureza poderão facilitar a integração dos saberes acadêmicos no cenário escolar, promovendo a divulgação e a apreciação de uma das maiores obras que a humanidade já conheceu para um público muito especial, sempre exigente e ávido por novidades: os leitores do futuro.

Referências BARBOSA, T. V. R. Odisseia. Ilustrações de Piero Bagnariol. São Paulo: Peirópolis, 2013. CALVINO, I. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011 [1981]. CHIANCA, L. A Odisséia. Ilustrações de Cecília Iwashita. Série Reencontro Infantil. São Paulo: Scipione, 2000. CONTI, M. S. “Tua sina te assina este destino”. In: Piauí. São Paulo, edição 67, p. 7, abr. 2012. Disponível em: . Acesso em: 18/12/2013. FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de janeiro: Forense, 2009. HANSEN, J. A. “Notas sobre o gênero épico”. In: TEIXEIRA, Ivan (org.). Épicos: Prosopopéia, O Uruguai, Caramuru, Vila Rica, A Confederação dos Tamoios, I-Juca Pirama. Série Multiclássicos. São Paulo: Edusp/ Imprensa Oficial, 2008. pp.17-91. HOMERO. Odisséia. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. ________. Odisseia. Trad. Trajano Vieira. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. LACERDA, R. Odisseia. Ilustrações de Thais Linhares. Série Reencontro literatura. São Paulo: Scipione, 2008. 18

McCAUGHREAN, G. A Odisséia. Ilustrações de Victor G. Ambrus. Apresentação de Ana Maria Machado e tradução de Marcos Bagno. Coleção “O tesouro dos clássicos juvenil”. São Paulo: Ática, 2003. OLIVEIRA, M. R. & SOUZA, J. B. “A Ilíada para crianças: a adaptação como configuração do épico na modernidade”. Revista Signo. Santa Cruz do Sul (RS), v. 36, n.60, p. 75-90, jan.-jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: 18 dez. 2013. ROCHA, R. Ruth Rocha conta a Odisseia. Ilustrações de Eduardo Rocha. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2000. _________. Ruth Rocha conta a Odisseia. Ilustrações de Eduardo Rocha. São Paulo: Salamandra, 2011. SALERNO, S. A Odisseia. Ilustrações de Maurício Paraguassu e Dave Santana. Série Correndo o Mundo. São Paulo: Difusão Cultural do Livro, 2008. STEWART, D. A Odisséia. Ilustrações de Konrad Hack. Tradução de Gilberto Domingos do Nascimento. São Paulo: Melhoramentos, 1981.

19

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.