Revitalização Urbana em Niterói: trajetória e conflitos

May 26, 2017 | Autor: André Amud Botelho | Categoria: Antropologia Urbana, Etnografia Urbana
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Revitalização Urbana em Niterói: trajetória e conflitos André Amud Botelho UFF, RJ, Brasil

Introdução O artigo que se segue é um esforço por apontar as principais conclusões de uma pesquisa de mestrado realizada entre março de 2004 e fevereiro de 2006. Tal pesquisa teve como resultado a dissertação “Revitalização Urbana em Niterói: uma visão antropológica”, defendida por mim no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. A etnografia que ofereceu subsídios à citada pesquisa teve em seu cerne duas dimensões básicas: de um lado, a tentativa de discernir o ideário “revitalizador” que cercava os discursos a respeito do Centro de Niterói proferidos pelo Poder Público e por alguns segmentos sociais niteroienses; por outro lado, a tentativa de apontar que tipo de “vitalidade” era específica a tal bairro, ou seja, que tipos de usos e ocupações se podia observar nele. Uma terceira dimensão, que marcou sua presença diante dos caminhos que a pesquisa tomou, trata de como as duas dimensões citadas acima se cruzam, como se dão os principais conflitos entre um bairro que se quer “revitalizado”, mundo novo que se quer instaurar, e a dinâmica social de uma realidade moralmente rechaçada por aqueles que propõem a necessidade de “revitalizar”.

Pequena história urbana de Niterói

Niterói se localiza à margem leste da Baía de Guanabara, se posicionando diante da cidade do Rio de Janeiro. Até 1975, ano da fusão do antigo Estado do Rio de Janeiro ao Estado da Guanabara, com algumas interrupções, foi capital de Estado. Desde 1834, ano em que Niterói é designada capital da província do Rio de Janeiro, o seu Centro manteve grande importância enquanto lugar onde se acumulavam prédios públicos com grande parte da estrutura burocrático-administrativa da província, depois Estado do Rio de Janeiro. Para compreender o alcance dos discursos atuais a respeito da necessidade de reconfiguração urbana do Centro de Niterói, é primordial a referência ao momento ao que me referi acima, em que Niterói perde sua condição de sede política do Rio de Janeiro. Já a partir do final da década de 70, se verificam as primeiras tentativas por parte do Poder Público municipal de reestruturação urbana do Centro de Niterói. Antes das idéias revitalizadoras estarem em voga, o Centro já fora alvo de tentativas de construções e reconstruções urbanas desde a sua constituição como sítio citadino, que data de 1819, ela própria (tal constituição) fruto do planejamento urbano. Como diz Marlice de Azevedo no artigo “Niterói urbano: a construção do espaço da cidade”, “o Plano da Vila Real da Praia Grande” (o primeiro plano de urbanização de Niterói, com a abertura de ruas cortando as propriedades rurais que constituíam o espaço hoje ocupado pelos prédios do Centro da cidade), “pela sua abrangência e pela sua implementação, merece ser visto como um dos documentos mais significativos do urbanismo brasileiro no final do Período Colonial” (Martins e Knauss (orgs.), 1997: 33). A partir dessa primeira idealização e efetivação de um plano urbano, pode-se notar que há um padrão quanto às reformas urbanas: o que se buscou foi mesmo a consolidação de um lugar (Niterói) como cidade ao longo de diferentes fases e em busca de distintos modelos. Desde o século XIX, vê-se o constante paralelismo entre as ambições políticas, econômicas da cidade de Niterói (talvez mais claramente de suas elites), e as intervenções e planejamentos urbanos levados a cabo na cidade. Foi assim quando da elevação da cidade à categoria de capital da Província do Rio de Janeiro em 1835; e por ocasião do fim do período monárquico e concomitante início da República em 1889. Diante da proclamação da República, e a passagem da cidade à categoria de capital republicana, muitas obras foram realizadas no sentido da

urbanização de Niterói como a instalação da energia elétrica, os bondes, e a inauguração do belo prédio-sede da Prefeitura numa das principais ruas do Centro da cidade. Marlice Soares de Azevedo vê nesses melhoramentos a “vinculação das intervenções urbanas com o momento político”. Segundo ela, “para um novo tempo novas formas de ocupação e de uso do espaço são exigidos.” (Martins e Knauss, 1997: 45) A autora se refere à época em que as idéias federalistas sobrepujaram o centralismo monárquico. A partir de então, cada federação deveria ter maior independência em relação ao poder central. Diante de tais circunstâncias do Estado do Rio de Janeiro é que se dão as construções da Praça da República (símbolo da instituição recém fundada) e do Porto de Niterói. Ambas visaram afirmar a autonomia do Estado frente o governo central, então situado na cidade do Rio de Janeiro. Se a construção do porto significava a tentativa de diminuir a dependência do Porto da cidade do Rio de Janeiro, fundar a Praça da República pretendia afirmar a independência política do Estado, bem como seu alinhamento aos ideais republicanos. Outro momento histórico de significativas alterações urbanas em Niterói se deu diante das reformas amplas que Pereira Passos implementava no Rio de Janeiro, e o conseqüente embelezamento da então capital republicana com a intervenção em amplas áreas da sua região central e abertura de uma “artéria” principal, a Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco). Nessa mesma época, Feliciano Sodré (à época, prefeito de Niterói) inicia grandes obras para o aterro do mangue de São Lourenço, lugar já há muito identificado como reservatório de impurezas, esgoto e lixeira. Assim como na reforma urbana carioca da época, tal intervenção não ocorreu sem conflitos: houve casos de desapropriação de residências dos moradores da área afetada. Nesse momento, a discussão mais relevante no campo do planejamento urbano dizia respeito à idéia de “higienizar” o espaço urbano. Vê-se que o planejamento urbano em Niterói sempre acompanha as mudanças do próprio estatuto político dessa cidade, e as acompanha “transformando” a cidade, e mais ainda seu Centro, lugar por excelência das intervenções verificadas ao longo da história. À medida que tomamos a discussão das “revitalizações” e mais especificamente a do Centro de Niterói como objeto de nosso trabalho, constatamos quanto o discurso da deterioração urbana desse bairro da cidade já é senso comum entre muitas parcelas da população da cidade, levando em conta inclusive a ampla veiculação dessa idéia nos principais meios de comunicação da cidade. O argumento principal que norteia a idéia de deterioração urbana do Centro é o fato de que, depois da fusão dos antigos estados

do Rio de Janeiro e Guanabara, com a construção da Ponte Rio-Niterói (em 1974), o Centro perdeu gradativamente para a população de “classe média” de Niterói, seus atrativos principais: “bom comércio”, os cinemas que outrora teve, serviços, além do fato de deixar de ser a sede do funcionalismo público do Estado fluminense. Com o crescimento e desenvolvimento da zona sul da cidade, formada por bairros à beiramar – Icaraí, adjacências e região oceânica – torna-se cada vez mais desnecessário para restritos segmentos sociais ir ao Centro da cidade. Referindo-se à realidade paulistana, o antropólogo Heitor Frúgoli nos apresenta a categoria “desdobramento de centralidades” (Frúgoli, 2000) para descrever processo semelhante de esvaziamento de regiões centrais da cidade de São Paulo.

Revitalização em Niterói A primeira “revitalização urbana” de que se tem notícia ocorreu na cidade portuária americana de Baltimore, mais especificamente em sua mais antiga região central. A época de suas primeiras idealizações coincide com um momento turbulento da história da cidade e dos Estados Unidos da América, um período de tempo que ficou marcado pela luta pelos direitos civis naquele país. Entre outras cidades, Baltimore foi palco de grandes batalhas entre as forças de repressão policial e de ativistas. O lugar mais sacudido pela revolta negra quando da morte de Martin Luther King, em abril de 68, foi sua região portuária. Tal lugar era ocupado na maioria por afro-descendentes. Diante dos fatos, o governo local e grandes empresários da cidade diagnosticaram a degradação daquela região da cidade, e que se faziam necessários investimentos para sua recuperação. David Harvey aponta que a intervenção urbana que se seguiu tinha como aspecto básico a intenção de apresentar ao mundo a visão de uma cidade sem conflitos. Assim, seguiu-se a construção do Harbor Place, uma grande feira no espaço do antigo cais do porto, que conta com um grande centro de convenções e outras atrações espetaculares (aquários, marina, hotéis). Rapidamente, o centro de Baltimore passou a ser exaltado tanto por setores da população da própria cidade quanto por grandes levas de turistas: “um desenvolvimento à beira-mar que hoje atrai mais pessoas do que a Disneylândia” (Harvey, 2005: 90)

Em pouco tempo, outras cidades nos Estados Unidos e em outros países passaram a seguir o exemplo de Baltimore. Outras “revitalizações” se seguiram. Podemos tentar compreender essa rápida aceitação para o novo modelo de intervenção urbana, se visualizarmos o que já se configurava como um grande problema para as cidades: diante da mudança na forma de acumulação do capital que ocorre desde o início dos anos setenta, as cidades passam a ter sua porção industrial reduzida e são levadas a lidar com o conseqüente e grave problema do desemprego e dos vazios urbanos decorrentes do fechamento de grandes galpões industriais. A idéia da necessidade de “revitalização” de determinada região de uma cidade é geralmente referida a um quadro de deterioração, abandono. “Revitalizar” pode ser entendido como fazer florescer algo (no nosso caso, sítios urbanos) que não tem vitalidade. No extremo, afirmar a relevância de uma revitalização em determinada área ou bairro de cidade significa indicar sua decadência inequívoca. E é esse o tipo de discurso que se verifica tanto por parte do Poder Público, quanto por parte de parcelas da população e da mídia niteroiense. O que minha etnografia apontou, além disso, é que o principal vetor do discurso de decadência do Centro diz respeito ao aspecto comercial. As ações que vêm sendo realizadas para a revitalização do bairro são medidas que visam favorecer os comerciantes da região. Na verdade, antes de qualquer transformação de equipamentos urbanos do Centro, teve início um processo de “reordenamento” da atividade dos camelôs, que teve como resultado uma drástica diminuição do número de vendedores ambulantes licenciados em ação no Centro de Niterói. É realmente possível afirmar que para grande parte dos freqüentadores do Centro de Niterói, uma das características indicativas da degradação do bairro é a presença do intenso comércio informal em suas ruas. Foi interessante notar, ao longo do trabalho de observação, o quanto essa atividade incrementa os usos e ocupações daquela região da cidade, o quanto, dessa forma, oferece vitalidade aos lugares que ocupam. Foi paradoxal constatar que quanto mais ocupado, mais “usado” era um lugar, mesmo que por uma atividade moralmente rechaçada por uma parte da sociedade, mais decadente, sob o ponto de vista do discurso revitalizador, é a região. Sem dúvida, esse paradoxo foi o primeiro e principal impulso de meu estudo sobre o Centro de Niterói e os discursos e ações que cercavam sua “revitalização”. Alguns projetos de intervenção no Centro de Niterói eram apresentados pela Prefeitura de Niterói como componentes do plano de revitalizar o Centro da cidade.

Boa parte deles, entretanto, nunca havia saído do papel. Entre os projetos, três são propostas de centros culturais: Centro de Convenções, lugar com estrutura para grandes shows; Parque das Águas, lugar com caráter educativo em relação ao trato da água financiado pela concessionária de distribuição de água em Niterói; o Centro Cultural do Abrigo dos Bondes, no espaço de um antigo abrigo de bondes da cidade de Niterói. Outro viés do plano de revitalização dizia respeito à recuperação das fachadas dos prédios históricos do Centro de Niterói, com a reocupação residencial das quadras internas nessas áreas destinadas ao uso enquanto depósitos comerciais. Também esse foi um projeto não levado adiante. Havia ainda um plano de reorganização do trânsito nas ruas do Centro de Niterói. Tal plano, somente agora no ano de 2007, vem sendo posto em prática. Assim, o que a “investigação” (Feldman Bianco, 1987) vinha apontando era a não revitalização do Centro. Tudo que era planejado não era levado adiante. De modo que me encaminhava a fazer uma etnografia muito mais dos discursos a respeito da revitalização do Centro de Niterói, do que dela própria. Para tentar dar conta de tal investigação, foi necessária a presença intensiva nas Secretarias e Órgãos da Prefeitura Municipal de Niterói. Esse, por sinal, foi um exercício ao mesmo tempo novo e complicado para mim, pois me vi num meio (administração pública municipal) em que me pareceu sempre que as pessoas envolvidas estavam deslocadas e perdidas em sua atividade, à semelhança de um ciclista confuso entre o pedalar, o respirar, frear e dirigir. Assim como o hipotético e confuso menino ciclista, grande parte dos funcionários com quem me relacionei nessa pesquisa sobre “revitalização” no Centro de Niterói não sabia quem era responsável por isso no alto prédio da Prefeitura, nem quando estaria ali, muito menos o que fazia a respeito. Sem dúvida, essa foi a porção do trabalho de campo em que encontrei mais obstáculos. Em certo instante, me vi fazendo uma etnografia sobre toda a desorganização da máquina administrativa municipal, o que não era meu interesse principal. Esse cenário de incertezas da Prefeitura quanto à “revitalização” do Centro muda assim que se anuncia o plano de reordenar a atividade dos vendedores ambulantes (camelôs). Diante do noticiado, me encaminhei mais uma vez para a Prefeitura questionando sobre a revitalização, no que fui indicado para a Secretaria de Ciência, Desenvolvimento e Tecnologia, e posteriormente direcionado para uma de suas

subsecretarias, a de Indústria e Comércio coordenado por um ex-dirigente de uma importante associação comercial, a Câmara dos Dirigentes Lojistas. Lá, num dos andares do alto prédio da prefeitura de Niterói, fui recebido por uma de suas assistentes que me viabilizou, enfim, um projeto para a “revitalização” no Centro. A principal proposta ali era a de “reordenar” a atividade dos camelôs. O jornal O Fluminense, em matéria publicada no dia 12 de maio de 2005, apontou: “Limpeza na Rua São Pedro”. Tratava-se da retirada das barracas de quarenta e oito vendedores ambulantes com licenças irregulares, segundo a Prefeitura. A atividade coordenada pela Secretaria de Segurança Pública de Niterói foi um das dimensões de um plano que diminuiu abruptamente a presença de “camelôs” no Centro de Niterói. O critério que fundamentou a remoção dos pontos de venda desses quarenta e oito vendedores foi a não comprovação, por parte deles, do endereço. Só permanecia regulamentado o vendedor que comprovasse residência na cidade de Niterói. O título da reportagem fazia referência a um tempo em que as idéias que norteavam as intervenções urbanísticas eram fundamentalmente as idéias higienizadoras. Tratava-se de higienizar a cidade, de limpá-la, inclusive, já naquela época, de grupos usuários do espaço público indesejáveis como os próprios vendedores ambulantes de então. É de Annateresa Fabris a observação que se refere ao momento de fundação da Avenida Central no Rio de Janeiro: “É em nome do progresso e do embelezamento que são proibidos o comércio ambulante, a circulação de cães sem coleira, fogueiras, fogos de artifício.” (Fabris, 2000: 23) O apontamento de Fabris sugere que os vendedores ambulantes são um problema para as modernizações urbanas pelo menos há cem anos. Evidente que, se proibido e fortemente combatido pelas ações estatais que visassem, por exemplo, a incorporação desses trabalhadores ao mercado formal de trabalho, já não veríamos em abundância camelôs pelas ruas das nossas cidades. Surge, assim, uma hipótese: a presença de vendedores ambulantes só é tida como problemática em alguns períodos da história. Segundo um de meus entrevistados mais regulares, dirigente da Associação de Vendedores Ambulantes de Niterói, os problemas dos camelôs são cíclicos. Ele, camelô há trinta anos, afirma que por distintos motivos, a idéia de remoção ou de diminuição da atividade dos camelôs no Centro de Niterói é recorrente. Entretanto, segundo ele, o atual “processo reordenador” é o que mais concebeu métodos e critérios para a diminuição massiva do número de novas concessões para esse tipo de

trabalho informal. Sem dúvida, é o processo que mais diminuiu o número de camelôs em Niterói. Tratemos então de descrever as fases desse processo. Em dezembro de 2004, havia no Centro de Niterói um número aproximado de 600 vendedores ambulantes licenciados, ou seja, com concessão cedida pela Prefeitura Municipal. Cada um desses era munido de uma “barraca”, que consiste basicamente numa frágil e desmontável estrutura metálica, coberta por uma lona preta ou azul e munida de uma tábua que possibilita a exibição das mercadorias à venda. Muitas vezes, diante do número elevado de vendedores em algumas ruas, essas barracas eram posicionadas lado a lado não só ao longo da rua, como também na direção transversal a ela, o que sem dúvida dificultava o trânsito dos pedestres pelas calçadas. Aliado a isso, nesse mesmo período, calculase que mil outros “camelôs” não licenciados, sem a concessão da Prefeitura, ocupavam os mais concorridos espaços do Centro da cidade. Ao contrário dos primeiros, esses não contavam com as barracas, apenas com pequenos tabuleiros que, ou eram dispostos diretamente ao chão, ou contavam com uma estrutura de madeira para lhe dar sustentação, além da possibilidade de essa estrutura se resumir a uma lona que é colocada ao chão e, em momentos de tensão, funciona como uma sacola, já que amarrada por uma corda a partir de seus quatro vértices, o que confere a esses “camelôs” uma maior mobilidade, um atributo muito bem vindo para quem busca novos espaços para vender ou quem foge do alcance da Guarda Municipal, órgão responsável pelo enfrentamento ao comércio informal. A partir de janeiro do ano seguinte, a Prefeitura iniciou uma série de ações em busca da diminuição, primeiramente, do número dos vendedores ambulantes não licenciados. Tornou-se maior a presença dos agentes da Guarda Municipal pelas ruas do Centro da cidade. Sua principal atribuição era o “combate” aos camelôs. Até esse momento, a atividade dos vendedores ambulantes licenciados não tinha sido posta em questão pela Prefeitura. Tal postura da municipalidade não impedia, entretanto, que no bojo da discussão sobre a necessidade de revitalização do Centro fosse citada por diversos autores, comerciantes, ou urbanistas a idéia de remoção ou drástica diminuição do número de camelôs pela cidade, especialmente no Centro. O que fazer se a presença dos não-licenciados já havia sido diminuída substancialmente? A solução surgiu em meados do mês de maio de 2005. A concessão dos vendedores ambulantes, de validade de três anos, havia de ser

renovada. Novos critérios foram estabelecidos pela municipalidade, o que redundou na diminuição da presença de tais vendedores. O primeiro passo do processo de reordenamento da atividade dos vendedores licenciados foi uma operação, amplamente noticiada pelos meios de comunicação da cidade, dirigida pela Secretaria de Segurança do município. Tal operação se constituiu como uma série de visitas de funcionários da Secretaria de Segurança (quase sempre com a presença austera do próprio Secretário de Segurança) aos “pontos” de vendedores licenciados. Tratava-se de conferir se o titular da concessão continuava em atividade. A intenção era remover possíveis “herdeiros” das licenças. Já que as concessões não são transferíveis, algumas barracas foram desmontadas sob esse argumento. Apesar de algumas remoções terem se dado em razão desse primeiro critério, um outro foi ainda mais impactante: passou-se a conferir os endereços dos titulares das concessões. Tal critério era inovador para a Prefeitura de Niterói. Nunca havia sido condição sine qua non para a concessão de licenças, ou para sua renovação. Para constituir a diferença entre a “eficácia” dos dois critérios, quero apontar que durante a passagem da Secretaria de Segurança pela Rua São Pedro, onde se aglomeravam quase cem vendedores, apenas cinco barracas de vendedores foram removidas tendo como causa a morte dos titulares. Em geral, os vendedores que assumiam irregularmente eram seus parentes. Enquanto isso, em razão de não comprovação do endereço em Niterói outros quarenta e três vendedores ambulantes perderam suas concessões e tiveram suas barracas removidas. A fase seguinte consistiu em idas de funcionários da Secretaria de Segurança de Niterói aos endereços apontados anteriormente pelos vendedores ambulantes durante a primeira fase das operações, sobre a qual me referi acima. O argumento da Prefeitura para essas novas visitas foi o de verificar a veracidade das informações outrora apontadas pelos ambulantes, e avaliar o “nível sócio-econômico” dos lares visitados. Tal análise sócio-econômica levou em conta a declaração dos rendimentos dos vendedores ambulantes. Também o camelô deveria ser o único trabalhador da casa: em casos de lares onde outro indivíduo estivesse integrado ao mercado de trabalho formal, a orientação da Secretaria de Segurança era não renovar a licença de trabalho.

O resultado desses esforços da Secretaria de Segurança foi que o número anterior de seiscentos vendedores ambulantes licenciados foi reduzido para cento e noventa, uma abrupta diminuição. Antes de descrever as fases do “processo de reordenamento” da atividade dos camelôs, fiz referência a certa característica da condição dos camelôs em Niterói: há uma espécie de ciclo entre as relações desse grupo e a sociedade niteroiense, em especial sua classe política dirigente. O atual processo de “reordenamento” dos camelôs se insere no ideário revitalizador que cerca, há anos, o Centro de Niterói. Segundo um de meus principais informantes, o ciclo ao qual me refiro tem por base a proximidade das eleições municipais. Segundo sua experiência de dirigente da Associação de Vendedores Ambulantes Licenciados de Niterói, o período posterior às eleições é o mais delicado para os vendedores ambulantes, já que a Prefeitura termina por atender a algumas reivindicações de variados grupos interessados na transformação da dinâmica do Centro. É interessante que, nesses períodos de crise, a relação entre os vendedores ambulantes e sua associação se altera. Os vendedores passam a recorrer mais ativamente ao auxílio da associação, inclusive voltando a pagar a pequena mensalidade cobrada pela Associação aos associados. Tal quadro de coisas me fez pensar no que Victor Turner, em seu “O processo ritual”, de “dialética do ciclo de desenvolvimento” (Turner, 1974: 120). Segundo ele: “a experiência de cada indivíduo o faz estar exposto alternadamente à “estrutura” e à “communitas”*, a estados e a transições.” (Turner, 1974: 120) É possível pensar que em determinados períodos, os camelôs são integrados à “estrutura” da sociedade niteroiense, enquanto que em outros, notadamente nos períodos de amplas intenções por mudança no panorama do Centro da cidade, são postos sob tensão em relação aos segmentos usuários e interessados no bairro. Assim como na “dialética do ciclo do desenvolvimento” de Turner, nos ciclos relacionais aos quais são submetidos os camelôs em Niterói, há uma alternância entre a integração à estrutura (estado que aponta um quadro definido com regras e códigos estabelecidos) e a “marginalidade” em relação a ela, momento propício à formação de uma “communitas”. Para Turner, “a communitas surge onde não existe estrutura social.” (Turner, 1974: 154) Ou seja, num momento em que novos critérios e regras *

Turner usa a categoria “communitas”, tentando evitar a confusão diante das mais variadas definições do conceito de “comunidade”, sobre o qual tantos outros autores se dedicam.

são instituídos, e um grupo (no nosso caso, o dos camelôs) é submetido a um processo de “reordenamento”, isto é, a uma reinserção à estrutura; que Turner define como “uma combinação superorgânica de partes ou de posições, a qual persiste, com modificações mais ou menos gradativas, através do tempo.” (Turner, 1974: 153); os indivíduos que compõem essa categoria passam pela experiência da “communitas”. Assim, nos momentos críticos de transição de um quadro de regras para outro, nos interstícios dos “processos de reordenamento”, os camelôs voltam a se reunir em torno de sua associação, onde as pessoas estão “umas com as outras (...) na direção de um objetivo (...) o enfrentamento dinâmico com os outros.” (Turner, 1974: 154) Depois da experiência da “communitas”, da passagem pelo momento crítico e a superação do drama, com a reabsorção do grupo pela sociedade e pela readaptação das novas regras pelo coletivo dos camelôs, ocorre uma reintegração dialética do grupo à sociedade. O debruçar sobre o processo de reordenamento da atividade dos camelôs, além de proporcionar a reflexão sobre os caminhos e descaminhos da relação entre os vendedores ambulantes e a municipalidade niteroiense, permite apontar a relevância atribuída pela Prefeitura de Niterói (através de suas secretarias, e órgãos como o Departamento de Fiscalização do Comércio Ambulante) à recuperação do comércio formal do Centro da cidade. Diante da “investigação” sobre a revitalização em Niterói, permito-me afirmar que o projeto que mais contou com a dedicação da Prefeitura foi o tal “reordenamento”. Durante o ano de 2005, não foram poucas as reuniões entre representantes da Prefeitura, e as associações empresariais niteroienses, principalmente a Câmara de Dirigentes Lojistas.

Revitalizar: um ato entre a vida e a morte de um lugar É importante atentar para uma dimensão reflexiva a respeito da idéia de “revitalização”. A transposição de termos que têm como referência o organismo para aplicação às realidades sócio-culturais surge como um problema a ser examinado. A palavra “revitalização”, metaforicamente, faz referência ao todo orgânico. Afirmar a relevância de “revitalizar” determinado espaço urbano traz à mente um quadro de morte ou de quase morte de um “organismo urbano”. A própria essência da realidade urbana, a variedade, da qual tratamos há pouco, é abandonada em nome da

caracterização homogeneizadora de um sítio urbano. Ou melhor, determinada característica de uma realidade urbana é reforçada por certos grupos, enquanto outros caracteres (componentes de uma realidade heterogênea) que, nesse caso, podem demonstrar

determinado

tipo

de

vitalidade

dessa

realidade

urbana,

são

subdimensionados. A propalação de tal categoria (revitalização) em nossa realidade, o Centro de Niterói, aponta ao desavisado visitante um quadro de terrível e total deterioração. Mesmo que essa deterioração não faça parte das opiniões de todos os freqüentadores e usuários do Centro de Niterói, o interessante é que ela aponta para o fato de que para uma parte da população de Niterói e, o que é muito importante para as intenções de transformação urbana, para o Poder Público municipal, o “mundo” que o Centro representa não é mais adequado. A dimensão de homogeneidade que o uso de metáforas orgânicas lança mão é boa para pensar que a “revitalização” é uma maneira de criar um novo mundo às custas, sem dúvida, de boa parte ou da integridade de um outro real. A questão que se impôs à análise é: que mundo é esse visto como objeto de atuação para os planos revitalizadores? Para responder à questão que propus acima, devia descrever a vida no Centro de Niterói, o movimento de suas ruas e calçadas. E foi isso que tentei fazer. A tarefa não era fácil, como também não é a de aproximar o leitor, nessas poucas linhas, à experiência de estar num lugar extremamente ocupado, longe da condição quase moribunda que lhe era imputada. Como fazê-lo se a multidão é uma massa amorfa? Como descrever as ações de errantes multidões que se esgueiram por centenas de espaços, escritórios, bares, esquinas e calçadas? Urgia, assim, definir um lugar para aprofundar essa observação direta, uma base para o estudo. Tive que trabalhar nos termos de uma etnografia para poder vislumbrar uma amostra significativa da vida urbana do Centro niteroiense. Parti do pressuposto que, apesar de desagradável e mal vista por alguns, a vida do Centro de Niterói pulsa em suas ruas e becos, e é assinada por atores próprios. Segundo Jane Jacobs, “há um aspecto ainda mais vil que a feiúra ou a desordem patentes, que é a máscara ignóbil da pretensa ordem, estabelecida por meio do menosprezo ou da supressão da ordem verdadeira que luta para existir e ser atendida.” (Jacobs, 2003: 14) O lugar eleito para a observação direta, e para servir ao propósito de representar uma porção da dinâmica do bairro do qual venho tratando, foi a Praça Jardim São João. Tal

praça se caracteriza como um importante espaço do Centro de Niterói. É situada muito próximo ao terminal rodoviário João Goulart, à estação das barcas (meio de transporte centenário entre o Rio de Janeiro e Niterói), e a ruas importantes do Centro. Descrever o que se desenrola dentro e nas imediações dos limites gradeados da Praça Jardim São João é apontar a diversidade das apropriações dos seus usuários sobre aquele não tão extenso espaço. Em relação ao contato com os usuários da praça, as entrevistas sempre tiveram um caráter informal. Tais entrevistas nunca tiveram um roteiro rígido, o que certamente permitiu apreender as vicissitudes dos variados usos que se impõem na praça. Sem dúvida, esse método me pareceu o mais conveniente para grande parte das situações em que me encontrava “etnografando” a praça. Como apontou Foote-Whyte (2005) no célebre “Sociedade de esquina”, meu interesse era observar como os indivíduos agiam em circunstâncias normais. Outra grande influência de Foote-Whyte nessa dimensão do trabalho foi minha preocupação em ter aproximação com algum dos atores da praça, o suficiente para ter legitimada minha presença ali, e ao mesmo tempo um canal de comunicação com outros atores da praça. O que Foote-Whyte (2005) chama de “broker”, eu consegui tendo contato com um indivíduo-chave, um fotógrafo “lambe-lambe” que circulava entre boa parte dos usuários e freqüentadores dali. Além da interação que ele mantinha com outros indivíduos e grupos da praça, o que me ajudou foi o fato de ele permanecer na praça trabalhando, fazendo fotos “três por quatro” ou “cinco por sete”, das oito horas da manhã até cinco horas da tarde, o que me possibilitou ficar ao lado dele durante boa parte das horas de funcionamento da praça. Interessante saber que, enquanto para alguns a praça é lugar de repouso, para outros é de trabalho ou mesmo de moradia. Mais que isso, constata-se que mesmo entre os indivíduos que se dirigem à praça, por exemplo, para descansar e repousar, há distinções em seu modo de agir e interagir com os outros ali. Alguns “atores” da praça estabelecem vínculos com o espaço que os rodeia, que se assemelham ao de jogadores de futebol com os campos de grama, ou de advogados e seus escritórios. Ora, a relação que estabelecem com o espaço da praça é a de um trabalhador com o seu lugar de trabalho. Incluo entre os trabalhadores da praça os fotógrafos “lambe-lambe”; as prostitutas que passam boa parte de seus dias ali, desde a manhã até a noite (a praça só fica aberta até as 22 horas, quando elas passam a ocupar as imediações da praça); os vendedores ambulantes que se aproveitam dos equipamentos da praça (seus bancos e árvores) e dos passantes que a cruzam

incessantemente ao longo do dia; e mesmo a respeito do grupo de mendigos moradores da praça e suas imediações, é possível perceber, além do viés residencial do uso que fazem da praça, uma apropriação da praça para o trabalho, visto que, em alguns momentos, alguns desses indivíduos revendem mercadorias de baixíssimo custo como amendoins ou barras de chocolate. Entre os usuários que se dirigem à praça para repousar em um de seus vários bancos, há os freqüentadores habituais, figuras constantes na praça (principalmente idosos), e os visitantes ocasionais (ou trabalhadores das imediações que aproveitam as sombras das árvores da praça, principalmente em seu horário de almoço, ou visitantes bissextos do próprio Centro de Niterói que buscam a praça como um retiro da agitação das ruas do Centro). A idéia da praça como um retiro em relação à dinâmica do Centro que saltou aos meus olhos quando da observação da fuga dos camelôs da esquina da Rua São Pedro e Visconde de Uruguai para o interior da praça, ganhou corpo com outras dimensões da etnografia na praça. O discurso dos idosos freqüentadores da praça é paradigmático quanto a esse aspecto: a idéia de estar na praça para “sair” da sala de casa, tomar um ar e se afastar do calor abafado dos dias quentes niteroienses, ou mesmo para “ver o movimento” (interessante categoria que se opõe à inércia do cotidiano doméstico) da praça, dizia respeito ao entendimento da praça como um refúgio à vida do dia-a-dia. Diante da consolidação do significado de refúgio da praça (seja para os idosos ou para os vendedores ambulantes das esquinas), o que se deu durante a realização do trabalho de campo, me vi diante do desafio de contrapor à pré-noção de que a praça, parte do Centro da cidade, pudesse ser mesmo uma mostra da realidade do bairro. Entretanto, o fato de que, ao final do trabalho de observação, eu tenha sido obrigado a refletir sobre a questão de uma determinada dinâmica particular ao Jardim São João fortalece ainda mais as possibilidades de compreensão da realidade urbana do Centro de Niterói como sendo repleta de particularidades e diversidades. E se há algo que defina a cidade fundada pelos tempos modernos, isto é a diversidade dos usos e ocupações pelos mais diversos habitantes. Ora, a Praça Jardim São João nunca ficava vazia desde que aberta. Sempre se pode verificar a ocupação quase integral de seus bancos ou de seus cantos, bem como é constante o trânsito de pessoas a cruzando.

Conclusão A dimensão etnográfica em tal trabalho, a idéia de descrever a “vida” do Centro de Niterói, nasce não como uma trincheira de resistência ao discurso da “revitalização”, mas como um necessário elemento de uma oposição. Tal relativização não exclui ou diminui as possibilidades de reflexão sobre os processos que dizem respeito a uma “revitalização”. Pelo contrário, a perspectiva etnográfica se mantém viva na medida em que onde se aponte a “morte”, “decadência”, ou mesmo a rica efervescência de um lugar, o etnógrafo possa indicar as vozes de onde partem as representações, os discursos e ações, e elucidar as dissonâncias e conflitos surgidos numa determinada realidade. Tal perspectiva permite ter em vista a diversidade dos significados possíveis de serem estabelecidos a um lugar por seus usuários, ou mesmo por não-usuários, e entender com um pouco mais de clareza, por exemplo, as veredas que levam à difusão por uma cidade da suposta importância de “revitalizar” um lugar.

Referências bibliográficas Azevedo, Marlice. “Niterói urbano: a construção do espaço da cidade” in: Martins, Ismênia e Knauss, Paulo. Cidade múltipla: temas de história de Niterói. Niterói, Niterói Livros, 1997. Fabris, Annateresa. Fragmentos urbanos: representações culturais. São Paulo, Edições Studio Nobel, 2000. Feldman Bianco, Bela (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas: métodos. São Paulo, Editora Global Universitária, 1987. Frúgoli, Heitor. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole. São Paulo, Edusp, 2000. Foote-Whyte, William. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005. Harvey, David. Condição pós-moderna. São Paulo, Edições Loyola, 2005. Jacobs, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2003.

Turner, Victor. O processo ritual. Petrópolis, Editora Vozes, 1974.

Matéria jornalística citada .Vianna, Valéria. “Limpeza na Rua São Pedro”. Jornal O FLUMINENSE, Niteerói, 12 de maio de 2005.

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