Revogação do Contrato de Doação por Ingratidão do Donatário

September 3, 2017 | Autor: Ítalo Alves | Categoria: Civil Law, Contract Law, Brazilian Law
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REVOGAÇÃO DO CONTRATO DE DOAÇÃO POR INGRATIDÃO DO DONATÁRIO* Alice Faé 1; Betina Karnikowski Vier 1; Ítalo da Silva Alves 1; Osmar Antônio Belusso 1.

RESUMO: O artigo pretende investigar o instituto da revogação da doação ensejada por ingratidão do donatário, dentro do sistema jurídico brasileiro. Serão expostos seu desenvolvimento histórico, sua fundamentação teórica e suas formas de recepção pelas cortes, bem como serão explicitadas as hipóteses de cabimento e discutida a questão da exemplificatividade ou taxatividade do rol disposto no artigo 557 do Código Civil de 2002, concluindo-se por uma interpretação aberta do dispositivo. PALAVRAS-CHAVE: doação; revogação; ingratidão; artigo 557; taxatividade. SUMÁRIO: Introdução; 1. Breve Histórico; 2. Conceito e Fundamento; 3. Natureza Jurídica; 4. Hipóteses; 4.1 Atentado contra a vida e homicídio doloso; 4.2 Ofensa física ou psíquica; 4.3 Injúria grave ou calúnia; 4.4 Recusa de alimentos; 5. Exemplificatividade ou Taxatividade do Rol; 6. Impossibilidades; Conclusão.

ABSTRACT: In this paper we intend to investigate the legal possibility of revoking a donation due to ingratitude on the part of the donee within the Brazilian legal system. We will expose the historical development of the concept, its theoretical foundations, and its reception by the courts, as well as we will explicate the hypotheses of its application and discuss the controversy regarding the nature of the list provided in article 557 of Brazil’s 2002 Civil Code – exhaustive or non-exhaustive. Finally, we conclude that the referred article should be read as an open list. KEYWORDS: donation; revocation; ingratitude; article 557; exhaustive list. INDEX: Introduction; 1. Brief History; 2. Concept and Foundation; 3. Legal Nature; 4. Hypotheses; 4.1 Atack against life and murder; 4.2 Physical or mental offense; 4.3 Serious injury or slander; 4.4 Refusal of maintenance obligation; 5. Exhaustion or Non-Exhaustion of Article 557; 6. Impossibilities; Conclusion.

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Este trabalho, em sua versão expandida, foi originalmente apresentado na disciplina de Contratos do curso de Direito da PUCRS, ministrada pelo Prof. Dr. Daniel Ustárroz. 1 Graduandos em Direito pela PUCRS.

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Introdução O manancial teórico que é o contrato de doação nos propicia um sem-número de oportunidades para aplicar seu estudo e dele extrair situações para exame jurídico detalhado. Uma delas, a qual nos ateremos neste trabalho de pesquisa, é o instituto da revogação do contrato de doação por motivo de ingratidão do donatário. Através de pesquisa bibliográfica legal, doutrinária e jurisprudencial, traçaremos as bases sobre as quais se sustenta o instituto, sua explicitação na lei e na doutrina específica, bem como sua recepção pelos tribunais brasileiros. Investigaremos a evolução do instituto até o direito civil brasileiro contemporâneo, as causas que ensejam a revogação por doação, seu fundamento, natureza jurídica e as questões que se discutem doutrinária e jurisprudencialmente. Assim, é objetivo desta pesquisa propiciar uma base segura para a compreensão do instituto, bem como nos situar diante de suas principais controvérsias. Ademais, o presente artigo tem por sua principal finalidade a abordagem da problemática que reside no artigo 557 do Código Civil de 2002, que estabelece as hipóteses de cabimento da revogação da doação por ato de ingratidão. Examinaremos como tal artigo pode ser interpretado de maneira fechada, excluindo de sua aplicação qualquer outra possibilidade não positivada, ou de maneira aberta, servindo como rol exemplificativo. Contudo, apresentaremos diversas posições que consideram importante a comparação do referido artigo com o dispositivo 1.183 do Código Civil de 1916, que trata da mesma matéria. A alteração legislativa de 2002 suprimiu o termo “só” do seu caput, dando abertura, assim, a uma interpretação exemplificativa de seu rol, inviável na redação de 1916. É nessa linha que seguiremos nosso estudo, respeitando e abordando as manifestações contrárias. Deste modo, ao final da pesquisa acreditamos que será possível, com alguma margem de segurança, sustentar o argumento pela não-taxatividade de suas hipóteses de cabimento.

1. Breve histórico As origens históricas da revogação da doação por ingratidão remontam à lei romana, que previa cinco fatos que resultariam na ingratidão do donatário, conforme nos ensinam Colladon (1830, p. 15) e Pothier (BUGNET, 1861, p. 413): a) Injurias atroces in donatorem effundere: Injúria grave ao doador; b) Si manus impias inferat: Agressão física ao doador (exceto se em auto-defesa);

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c) Si jacturae molem ex insidiis suis ingerat: Atentado grave à fortuna do doador; d) Si vitae periculum aliquod ei intulerit: Causar ao doador perigo de vida, p. ex. através de preparação de emboscada ou veneno; e) Si quasdam conventiones sive in scriptis donationi impositas, sive sine scriptis habitas, quas fonationis acceptor spopondit, minime implere voluerit: Inexecução das condições da doação. O Código Napoleônico, por sua vez, estipulava três causas para que pudesse operarse a revogação por ingratidão, quais sejam (FRANÇA, 1804): a) Atentado à vida do doador; b) Delito ou injúria grave contra o doador; c) Recusa de alimentos ao doador. O Código Civil brasileiro de 1916, sob grande influência dos ideais iluministas franceses, estabeleceu, em seu artigo 1.183, praticamente as mesmas causas: “Art. 1.183. Só se podem revogar por ingratidão as doações: I - Se o donatario attentou contra a vida do doador. II - Se commetteu contra elle offensa physica. III - Se o injuriou gravamente, ou o calumniou. IV - Se, podendo ministrar-lh'os, recusou ao doador dos alimentos, de que este necessitava”. (BRASIL, 1916)

O Código Civil de 2002 contemplou substancialmente as mesmas hipóteses já previstas pelo código anterior, sendo a mudança mais profunda a exclusão do advérbio “só” encontrado no caput desse artigo, o que deu lugar a maior discussão sobre a taxatividade ou não do rol disposto, o que será explorado no decorrer do trabalho.

2. Conceito e fundamento Podemos entender ingratidão como a “falta de gratidão por um benefício recebido de outrem”2, definição que se aplica à ideia do instituto da revogação por ingratidão. Esse ato torna-se relevante no campo jurídico na circunstância de ser praticado pelo donatário contra o doador, uma vez que significaria uma irreverência imoral com aquele que, através de um ato de liberalidade, o presenteou. Como bem nos adverte Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, o contrato de doação se extinguirá, normalmente, por meio do correto adimplemento da obrigação contraída pelo doador, assim como pelo devido cumprimento do encargo estipulado para o donatário, quando 2

INGRATIDÃO. In: HOUAISS. [s.l.]: Editora Objetiva, 2009. Software.

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for o caso da doação modal (VIEIRA SANSEVERINO, 2005, p. 152). Entretanto, tal contrato pode se extinguir por diversas causas com incidência em todos os três planos por que passa o negócio jurídico. No plano da existência, por exemplo, a dissimulação da doação para frustrar o crédito de terceiros é suficiente para que ocorra a inexistência desta espécie de contrato. Quanto ao plano da validade, é possível que a doação se extinga em decorrência da inobservância das restrições específicas desta liberalidade, como o contrato que tem por objeto a totalidade dos bens do doador (caso da doação universal) (Ibidem, p. 152-153). Já no plano de eficácia, a extinção se acarreta por fatos supervenientes ao momento da conclusão do contrato, quando o mesmo já está a produzir seus efeitos. A boa-fé deve ser observada não só até o fechamento do contrato, mas também após a celebração daquele, o que traduz-se pela boa-fé objetiva pós-contratual. Tal instituto implica a necessária observância do dever de respeito entre as partes contratantes, inclusive depois da conclusão do contrato. Poderá ocorrer o desfazimento pela destruição da coisa em virtude de vício redibitório, inexecução do encargo a que o donatário se comprometeu ou, enfim, pelo objeto deste trabalho, o ato de ingratidão do donatário (Ibidem, p. 153). Nos casos de revogação da doação por ingratidão do donatário, ressalta Pontes de Miranda, “a doação existia, era válida e eficaz; a ingratidão, fato posterior (ou somente conhecido posteriormente), não a faz inválida: a retirada da voz, com o fundamento, faz dever o donatário a restituição” (PONTES DE MIRANDA, 1972, p. 68). Em se tratando das espécies de contratos, se admite que a vontade de revogar das partes é legítima e idônea para a extinção dos negócios jurídicos, desde que, de modo geral, não infira prejuízos a outra parte nem seja oriunda de má-fé. Tal premissa é ainda mais notável nos contratos gratuitos, nos quais, via de regra, não pressupõe-se uma especial fundamentação para o ato de revogar. Neste sentido encontram-se, como exemplifica Sanseverino, “a revogação do mandato pelo mandante (art. 682, I); do testamento pelo testador (arts. 1.857 e 1.969); da oferta pelo solicitante ou da aceitação pelo oblato (arts. 428, IV, e 433 do CC/2002)” (VIEIRA SANSEVERINO, op. cit. p. 153). Contudo, essa regra geral encontra sua exceção no contrato de doação, onde se exige a presença de um fato gerador específico – no caso que nos interessa, o ato de ingratidão. A legislação codificada busca delimitar suas hipóteses de incidência a um âmbito restrito3, 3

Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações: I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; se cometeu contra ele ofensa física; III - se o injuriou gravemente ou o caluniou; IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava.

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porém, como se verá adiante, diversos fatores contribuem para que cada vez mais se consolide a tendência a aceitar outros casos além dos expressos no Código Civil Brasileiro. Diante disto, podemos conceber que a revogação é causal, isto é, ela pressupõe uma razão para existir e gerar seus efeitos, quais sejam, os de restituir ao doador a coisa doada. Daqui partimos para a análise detida da motivação particular de que se trata a ingratidão e, para isto, antes de estudarmos casuisticamente suas hipóteses, necessário é que se compreenda os liames que compõem a ingratidão propriamente dita. Para melhor compormos o quadro no qual se insere o fundamento, nos valeremos da lição de Paulo Lôbo, ao conceber que o fundamento lógico-jurídico do instituto da revogação da doação vem definido pela doutrina prevalecente na tutela dos interesses superiores de ordem ética, mediante a atribuição ao doador do poder de reavaliar a oportunidade do ato de liberalidade em relação à circunstância superveniente à conclusão do contrato (PALAZZO, 2000, p. 492).

Contudo, ainda que a liberalidade própria deste contrato, tipicamente generoso, crie expectativas de gratidão moral e ética, não são estes os critérios balizadores do ato ingrato capaz de extinguir a relação contratual. Todo o contrário, é necessário que o fato seja relevante para a seara jurídica. Nesse sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça: Desapego afetivo e atitudes desrespeitosas não resultam em deserdamento. É necessária a demonstração de uma das hipóteses previstas pelo Código Civil de 1916 para que seja possível a anulação de doação de imóveis. [...] Assim, o ministro [Humberto Gomes de Barros] reconheceu a taxatividade das hipóteses previstas no artigo 1.183 do Código Civil de 1916 (Código Beviláqua), segundo o qual só se podem revogar por ingratidão nas seguintes situações: se o donatário atentou contra a vida do doador, se cometeu contra ele ofensa física, se o injuriou gravemente, ou o caluniou, ou se, podendo/ministrar-lhos, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava. ‘Não é, portanto, qualquer ingratidão suficiente para autorizar a revogação da doação. [...]’, observou o ministro Gomes de Barros, [...] (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2006). (grifo nosso)

Entendemos que, apesar do viés genuinamente caridoso da doação, trata-se de um contrato que tem consequências jurídicas e que por isso deve ser protegido pelo véu da segurança jurídica, de maneira que não possa ser desfeito por simples ato de ingratidão em termos morais ou éticos, senão quando por um ato de ingratidão tão grave que até mesmo a esfera jurídica, atuando conforme tutela de ultima ratio, tenha de repreender – isto posto, é possível compreender esta modalidade de doação como uma forma de sanção ao donatário ingrato (VIEIRA SANSEVERINO, op. cit., p. 177).

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Neste sentido, nos valemos dos ensinamentos de Sanseverino para delimitarmos um nível mínimo de ingratidão capaz de revogar a doação: “O conceito jurídico, insculpido pelo art. 557 do CC/2002, é bem mais restrito, considerando ingratidão apenas a manifestação concreta do donatário de desapreço pelo doador consubstanciada através de fatos graves e objetivos” (Ibidem, p. 158). Mesmo que nítido, é necessário que façamos uma ressalva importante: esta nova situação – a ingratidão – acarreta um direito de revogação por parte do doador que, todavia, pode optar por dele não se valer, uma vez que a legislação concede ao doador que sofre com ingratidão a possibilidade de verificar se deseja ou não, em face dos atos cometidos pelo donatário, manter a eficácia do negócio jurídico (LÔBO, 2011, p. 308). Assim sendo, sempre será possível que o ofendido não volte atrás com sua manifestação de vontade que originou o contrato. Há divergência teórica e jurisprudencial no tocante às pessoas cuja ofensa legitima a ação de revogação por motivo de ingratidão. Pothier (BUGNET, op. cit., p. 414) entende que a ofensa que enseja a tal instituto só pode ser cometida pelo donatário. Assim, conforme o autor, não há lugar para revogação caso o ofensor tenha sido o pai ou mãe, guardião, esposo, filhos etc. As injúrias cometidas pelo(a) esposo(a) ou, por exemplo, pelo titular de uma igreja donatária, devem ser resolvidas pela via ordinária, não pela revogação da doação. Neste debate, a posição do autor mencionado, entendendo que o ato de ingratidão só pode ser proferido estritamente pelo donatário, deve ser lida de forma relativizada. Existem casos em que o direito deve compreender a possível relevância de ações de parentes ou pessoas próximas ao doador na análise da revogação. Nesse sentido se põe parte da jurisprudência, como no seguinte caso, onde o esposo da donatária tem seus atos de ingratidão concebidos como uma “extensão” da própria: AÇÃO DE REVOGAÇÃO DE DOAÇÃO POR INGRATIDÃO DA DONATÁRIA. CARÁTER NÃO MAIS TAXATIVO DO ROL DAS CAUSAS CONFIGURADORAS DE INGRATIDÃO. PROVA SUFICIENTE DE INGRATIDÃO DA DONATÁRIA. FATOS IMPUTÁVEIS AO MARIDO DA DONATÁRIA QUE EXCEPCIONAMENTE PODEM REVELAR INGRATIDÃO TAMBÉM DA DONATÁRIA. [...] 3. Como regra, para efeitos de revogação de doação por ingratidão, somente os atos imputáveis diretamente ao donatário são relevantes. Todavia, excepcionalmente, atitudes do cônjuge do donatário, desde que compartilhadas, aceitas ou incentivadas pelo próprio donatário, podem ser levadas em consideração para a configuração de ingratidão.4 4

Apelação Cível Nº 70049412000, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eugênio Facchini Neto, Julgado em 23/10/2012). [Disponível em: ].

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Importante salientar que no caso supra descrito o relator do processo observa que, mesmo a postura cônjuge da donatária, examinada de maneira individualizada, se configurar como capaz para revogar a doação por ingratidão – pois composta por atos graves –, no caso concreto bastou a conduta da própria donatária de aceitação das ofensas de seu esposo para que fosse possível a desconstituição da doação, restando à conduta do seu marido apenas o reforço da fundamentação.

3. Natureza jurídica É necessário questionar qual é o fundamento da revogação da doação por ingratidão. Agostinho Alvim considera que, apesar de possuir função semelhante a de uma pena, o referido instituto não possui tal fundamento: A revogação da doação vista como pena não teria nenhum objetivo de educar, ou recuperar o indivíduo decaído, nem qualquer outra finalidade das que os criminalistas assinalam à pena. Só poderia ser interpretada como vingança, uma vez que lhe demos o caráter de pena da injúria vindictam inspirans (ALVIM, 1980, p. 278)

Gagliano, em contrapartida, afirma que, inegavelmente, o exercício do direito da revogação da doação constitui uma conduta punitiva, a qual deve ser analisada à luz da chamada repersonalização do Direito Civil, ou seja, da mudança de foco do patrimônio para a pessoa. A partir disso, considera que o instituto configura um ponto de equilíbrio, uma vez que concilia o interesse do doador – e a livre iniciativa e a autonomia privada – e o interesse social (GAGLIANO, op. cit., p. 161).

4. Hipóteses Tradicionalmente, as hipóteses de configuração da ingratidão que podem dar ensejo à revogação da doação são as estabelecidas expressamente pelo artigo 557 do Código Civil de 2002. Entretanto, o advento do novo código, que alterou a redação do referido dispositivo com a retirada do advérbio “só” de seu caput, deu margem à maior discussão acerca da taxatividade ou não de seus incisos (NERY; NERY, 2005, p. 430). Faremos uma análise individualizada das possibilidades apresentadas pelo diploma legal em questão, reservando para o momento seguinte o exame da discussão doutrinária e jurisprudencial.

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4.1. Atentado contra a vida e homicídio doloso A primeira hipótese diz respeito à situação mais grave – e também a de aspecto mais nítido quanto à incidência da possibilidade de revogação. Pelo inciso I é possível que se revogue o contrato de doação pelo homicídio doloso praticado pelo donatário em face do doador – ou de alguma das pessoas elencadas no artigo seguinte, o 558 do Código Civil5 –, bem como a sua mera tentativa. Aqui reside outra alteração significante da lei: a adição da hipótese de homicídio doloso consumado frente ao doador. Situação essa que era omissa no Código de 1916, ainda que não fizesse sentido algum revogar a doação pela tentativa de homicídio, mas mantê-la quando consumado (LÔBO, op. cit., p. 309). Para tanto, flexibiliza-se a faceta personalíssima da ação revocatória (art. 560 do CC/2002) 6, de acordo com o novo enunciado do artigo 5617, caso em que será possível que os herdeiros dêem início à demanda – e não somente continuando-a, conforme artigo precedente. Além disto, a segunda parte do referido artigo estabelece uma ressalva: não é permitida a revogação se o doador houver perdoado o homicida. Tal redação causa certa confusão, visto que faz transparecer a ideia da possibilidade de perdão posterior ao homicídio, ou seja, à morte do doador. Para solucionarmos essa questão nos valemos da lição de Pablo Stolze Gagliano: Descartada a hipótese de o legislador haver previsto uma reaparição espiritual do falecido, talvez se houvesse pretendido considerar que, na eventualidade de a morte não ser instantânea, o doador, antes do seu passamento, houvesse revelado a agressão e perdoado o donatário. Exemplo: o donatário atira no doador, este é internado, e, no hospital, pouco antes de morrer, perdoa o seu agressor (GAGLIANO, op. cit., p. 164).

Destarte, Gagliano entende que o perdão deveria se dar neste espaço temporal que compreende os atos executórios do homicídio e momento da consumação propriamente dita, quando o doador vem a falecer. Aqui o autor é enfático: para que se configure o perdão é imperativo que este se dê por via expressa – ainda que não escrita. Por isso, inclina-se de maneira veementemente contrária a Carlos Alberto Gonçalves, que defende a existência do

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“Art. 558. Pode ocorrer também a revogação quando o ofendido, nos casos do artigo anterior, for o cônjuge, ascendente, descendente, ainda que adotivo, ou irmão do doador.” 6 “Art. 560. O direito de revogar a doação não se transmite aos herdeiros do doador, nem prejudica os do donatário. Mas aqueles podem prosseguir na ação iniciada pelo doador, continuando-a contra os herdeiros do donatário, se este falecer depois de ajuizada a lide.” 7 “Art. 561. No caso de homicídio doloso do doador, a ação caberá aos seus herdeiros, exceto se aquele houver perdoado.”

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perdão tácito, quando o doador possuía oportunidade de revogar a doação, mas não o fez. Segundo Gagliano, tal posição deve ser afastada tendo em vista que a gravidade da ofensa não permite que se presuma o perdão, ainda mais considerando a situação de debilidade em que se encontra o doador (Ibidem, p. 165). Entende-se, dessa forma, que em se tratando de ato tão reprovável que até mesmo a esfera penal (a ultima ratio do Ordenamento Jurídico) se debruce para sancioná-lo, abre-se a discussão para a necessidade ou não da sentença condenatória transitada em julgado daquela seara jurídica. Para Paulo Lôbo, em atenção ao princípio da presunção de inocência insculpido na Constituição Federal no seu artigo 5º, inciso LVII8, não cabe ao juízo cível a valoração da tentativa ou da consumação, devendo aguardar a apreciação do juízo competente, evitando assim possível decisão conflitante (LÔBO, op. cit., p. 309). No sentido contrário se põe Paulo de Tarso Sanseverino, afirmando ser desnecessária a condenação penal, tendo em vista a independência das esferas cível e criminal (BEVILÁQUA, 1953. p. 350). Porém, não olvida o autor que, conforme estatui o art. 65 do Código de Processo Penal9, não será possível a rediscussão do fato em caso de absolvição a incidência de excludente de ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito). Todavia, a absolvição por falta de provas ou por outra razão que não exclua a ilicitude, a existência do fato ou da autoria do donatário não impedirá a sua análise na área cível (VIEIRA SANSEVERINO, op. cit., p. 164). Rizzardo, citando Alvim, ressalta a problemática da possibilidade de acontecer a ordem inversa dos fatos: havendo a condenação no cível e, após tal julgamento, na esfera criminal, a pessoa ré do ato atentatório contra a vida do doador é absolvida por uma das causas já anteriormente citadas que tornam a decisão definitiva no cível. Procurando a resposta em outros autores, o doutrinador indica como a única solução passível a ação rescisória (RIZZARDO, 2004. p. 473). Por fim, é necessário que estes atos sejam cometidos dentro dos liames subjetivos do dolo. Caio Mário da Silva Pereira elucida com bastante clareza que “somente a tentativa, ou a consumação, de homicídio doloso o caracteriza, porque a ausência da intenção no delito culposo exclui aquela deplorável insensibilidade moral que a lei civil quer punir” (PEREIRA, 2004, p. 266). Contudo, em sentido diverso se posiciona Paulo Lôbo, que entende que ainda que culposo, o homicídio não perde seu status de crime, mesmo que com grau menor de 8

“LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;” “Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.” 9

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ofensividade, não se justificando então a exclusão desta hipótese que também culmina com a morte do doador (LÔBO, op. cit., p. 309).

4.2. Ofensa física ou psíquica Neste inciso, se visa possibilitar a revogação da doação quando o donatário atenta contra a integridade física ou psíquica do doador, ainda que não contra sua vida. Na realidade, a ofensa pode ser leve de tal modo que se encontre excluída do juízo criminal em decorrência do princípio da insignificância, mas ainda assim será apto a revogar o contrato de doação, pois o importante nessa hipótese é a intenção de ofender independente da intensidade da suposta lesão (Ibidem, p. 309.; PONTES DE MIRANDA, op cit. p. 272). Ainda nesse sentido, há uma corrente que entende pela impossibilidade do enquadramento desse inciso nos casos de meras ameaças, tentativas de agressão ou ainda injúrias (VENOSA, 2004, passim; RIZZARDO, op. cit. p. 474).

4.3. Injúria grave ou calúnia Autoriza-se expressamente a revogação da doação em virtude da ofensa moral através das hipóteses de injúria ou calúnia, as quais podem ter suas respectivas definições encontradas no direito penal. Paulo Lôbo, ao tratar da injúria, elabora um conceito preciso. Segundo o autor, injúria é a ofensa à dignidade ou ao decoro da pessoa, sem imputação de qualquer fato determinado, lesando gravemente seu patrimônio moral, valorada em relação ao ambiente e as condições sociais dos protagonistas. Considera-se grave a injúria quando repercute no meio social em que vive o doador, atingindo sua honra, sua respeitabilidade, mediante palavras ou atos deles deprimentes. Manifesta-se, normalmente, por expressões ultrajantes ou insultuosas, ou por insinuações maldosas, que expõem o ofendido à desconsideração pública (LÔBO, op. cit., p. 309).

Já a calúnia se compreende como a falsa e maliciosa imputação a um fato considerado criminoso. Ambas as condutas encontram-se tipificadas no Código Penal, em seus artigos 140 e 138, respectivamente.10 Nítido é que o que se busca proteger é a honra (GAGLIANO, op. cit., p. 166), objetiva e subjetiva, do doador que sofre com agressões morais oriundas de injúria ou calúnia. Contudo, a ocorrência de difamação, por não estar legalmente prevista, pode ser considerada como ponto obscuro. Em referência a essa 10

“Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime.(...)” “Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro.(...)”

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possibilidade, houve duas tentativas de alteração legal que não obtiveram aprovação legislativa. Primeiramente com o projeto de lei 6.960/2002 (BRASIL, 2002), que propunha nova redação a vários artigos do Código Civil – à época recém aprovado –, entre as quais encontrava-se o inciso em questão, através da seguinte proposta de redação: “III - se o difamou ou o injuriou gravemente ou se o caluniou”, porém tal projeto de lei não foi aprovado. Em 2011 o projeto de lei de número 699 (BRASIL, 2011) resgatou a redação do projeto de 2002, com a mesma mudança para o inciso em questão, e mais uma vez não obteve aprovação. Mesmo na vigência do Código precedente, quando o rol das hipóteses de revogação por ingratidão era eminentemente taxativo, já se aceitava que a difamação deveria ser compreendida como causa apta a revogar o contrato de doação. A doutrina da época argumentava que, em decorrência da edição do Código Penal, ser posterior (1940) ao Código Civil de 1916, o legislador cível não se preocupou com a distinção de termos que não lhe cabiam, de modo a não incluir a difamação (VIEIRA SANSEVERINO, op. cit., p. 166). Contudo, com a quase total transcrição do artigo 1.183 do CC/1916 para o 557 do CC/2002, reiterou-se a referida omissão incompreensivelmente, uma vez que a difamação configura ofensa moral ainda mais grave que a injúria. Porém, de qualquer maneira, a doutrina e a jurisprudência se amoldaram no sentido de permitir a revogação do contrato de doação em sua decorrência, argumentando que, por ter o mesmo potencial gravoso, deve ser tida com incluída (Ibidem, p. 166). Pontes de Miranda ainda vem a acrescentar a situação ilustrada pelo jurista irlandês Leo Herbert Lehmann na importância de que “se [o donatário] injuriou ou caluniou antes de conhecer a doação, não há revogabilidade por ingratidão” (PONTES DE MIRANDA, op. cit., p. 273).

4.4. Recusa de alimentos Primeiramente, é mister não confundir esta hipótese com a doação com o encargo de prestar alimentos ao doador, em que o inadimplemento também acabará afetando a eficácia do contrato, mas por razão diversa do disposto neste inciso. Aqui, o donatário, que até então não possuía a obrigação de prestar alimentos, adquire-a por determinada circunstância (VIEIRA SANSEVERINO, op cit., p. 168).

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A razão de ser desta causa de revogação se dá pela recusa injustificada do donatário de prestar ajuda a quem anteriormente havia tido um ato generoso de liberalidade em seu favor, caracterizando nitidamente uma situação de ingratidão (Ibidem, p. 167). Caio Mário da Silva Pereira elenca alguns requisitos para que se configure esta hipótese, sendo tais: i) a capacidade do donatário de ministrar os alimentos em face do doador sem prejuízo ao seu sustento próprio e de seus familiares; ii) um ato de recusa de prestação de alimentos por parte do donatário, o que significa que primeiramente deve haver uma solicitação do doador e; iii) a inexistência de parente próximo capaz de suprir as necessidades alimentícias do doador (PEREIRA, op. cit, p. 267; RIZZARDO, op. cit., p. 474). No que diz respeito a este último critério, conforme nos mostra Sanseverino, existe certo debate doutrinário. A discussão gira em torno da imprescindibilidade ou não do dever de prestar alimentos decorrer de vínculo jurídico ou moral, pois em se tratando de dever jurídico, o donatário só poderia ser responsabilizado quando da ausência de outros parentes próximos capazes de prover as necessidades alimentícias do doador (VIEIRA SANSEVERINO, op. cit., p. 168). Pontes de Miranda também traz o seu parecer ao salientar que não se trata de mero dever jurídico, senão de dever moral para com o doador. Destaca ainda a ocasião de quando há mais de um donatário, entendendo que o dever se aplica a todos: “cada um só se libera se o outro prestou o necessário” (PONTES DE MIRANDA, op. cit., p. 274). Em se tratando de obrigação moral, Paulo Lôbo mostra que, o dever do donatário se daria pelo simples fato de estar em necessidade uma pessoa que outrora se dispôs deliberadamente de um bem seu em favor do mesmo. Reforçando essa tese, o autor ainda afirma que, para os fins do direito de revogar a doação, considera-se o doador credor de alimentos, independentemente de relação familiar ou de parentesco com o donatário. Razões de ordem ética impuseram esse dever, pois é inadmissível que o donatário, tendo enriquecido em virtude da liberalidade do doador, não o assista quando estiver necessitado (LÔBO, op. cit., p. 310).

5. Exemplificatividade ou taxatividade do rol O artigo 557 do Código Civil, como já vimos, pode, numa leitura incauta, representar com clareza que o legislador desejou que os atos de ingratidão capazes de revogar uma doação sejam apenas os que estabeleceu. Entretanto, a complexidade deste assunto requer que tenhamos presente a alteração legislativa que se deu da passagem do Código antigo, de 1916, para o atual.

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É nítido que a atualização do Código Civil trouxe poucas modificações, uma vez que o artigo atual é quase uma total reprodução do anterior. Entretanto, as mínimas alterações importam de maneira relevante no enfrentamento deste tema. Ora, logo a primeira diferença visível – e mais importante – se dá no início do artigo, onde se pode constatar a supressão terminológica que sugeria o fechamento das possibilidades de revogação (a expressão “só”). Tendo em vista os termos empregados pelo legislador de 1916, era pacificamente aceito que se tratava de um rol taxativo, ainda que se discordasse desta escolha, uma vez que acabava por ignorar uma série de causas tão graves – ou até mais – quanto as que apareciam dispostas no artigo 1.183 (VIEIRA SANSEVERINO, op. cit., p. 158). Contudo, em razão da supressão deliberada da lei de 2002, se concebeu que o legislador estava atendendo as reclamações da doutrina e da jurisprudência ao modificar a natureza do rol das hipóteses. Neste sentido, verificamos que foi parcialmente abandonada a técnica legislativa de método casuístico – quando, para se afastar a incidência de generalizações demasiadamente amplas, se apresenta uma hipótese legal para um grupo de casos determinados (MARTINSCOSTA, 1999, p. 297) – para que fosse complementada pela técnica das cláusulas gerais, onde expõe-se casos em termos imprecisos, cujas características específicas serão formadas por via jurisprudencial e doutrinária (Ibidem, p. 299). Aqui, importa salientar a observação de Sanseverino, afirmando que “com isso, apesar de não o ter feito com a recomendável clareza, o Código Civil de 2002, com a decisiva participação de Miguel Reale e Agostinho Alvim, culminou por promover as alterações reivindicadas, tornando o rol exemplificativo e ampliando as hipóteses caracterizadoras da ingratidão (VIEIRA SANSEVERINO, op. cit., p. 161)”. Com o intuito de reforçar o desejo de ampliação do rol, Sanseverino argumenta que a intenção do legislador de ampliar as hipóteses de ingratidão fica bem clara no exame de outras alterações procedidas nesta seção. De um lado, passou a admitir a revogação da doação por fatos ofensivos a parentes próximos do doador (art. 558 do CC/2002), enquanto, de outro lado, estendeu a legitimidade ativa aos seus herdeiros na hipótese de homicídio do doador (art. 561) (Ibidem, p. 160).

Em contrapartida, parte da doutrina contemporânea, da qual faz parte Caio Mário da Silva Pereira, compreende que, apesar desta alteração legislativa o rol permanece sendo fechado. Segundo o autor “[a revogação por ingratidão] somente cabe nos expressos termos da definição legal (Código Civil, arts. 557 e 558), não obstante o Código de 2002 ter substituído a expressão ‘Só se pode revogar... ’ do de 1916 por ‘podem ser revogadas… ’” (PEREIRA, op. cit., p. 266).

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Na mesma linha, Paulo Lôbo acredita que não é possível que sejam consideradas novas situações para se revogar um contrato de doação através da ingratidão, visto se tratar o artigo 557 de numerus clausus (LÔBO, op. cit., p. 308). Contudo, não podemos deixar de mencionar a ressalva que o próprio autor faz ao afirmar que “sem embargo da tipicidade fechada, a finalidade ética das hipóteses de ingratidão recomenda ao aplicador do direito que a interpretação se faça sempre em benefício de sua realização, vale dizer, na dúvida da incidência ou não de cada hipótese deve ser interpretada no sentido favorável ao doador, salvo quando depender de decisão judicial” (Ibidem, p. 308). Da mesma forma, grande parte da jurisprudência aplica o art. 557 de forma taxativa: AÇÃO DE CANCELAMENTO DE USUFRUTO. Causa de pedir na alegação de ingratidão por parte da usufrutuária. Dúvida se as causas extintivas do usufruto, previstas no art. 1.410 do CC , admitem a ingratidão. Ainda que se admita a instituição gratuita do usufruto, estendendo-se ao instituto as causas previstas para a revogação da doação, inclusive a ingratidão, não se encontram configuradas as hipóteses do rol do artigo 557 do Código Civil . Suposta apropriação indébita da usufrutuária não demonstrada com a força que exige a tipificação da ingratidão.Ação improcedente. Sentença mantida. Apelo não provido (SÃO PAULO, 2009). APELAÇÃO CÍVEL. REVOGAÇÃO DE DOAÇÃO. INGRATIDÃO. DESCABIMENTO. 1. Doação é um contrato no qual, por liberalidade, o doador transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para beneficiar outrem. Art. 538 do CCB. 2. A doação somente se revoga por ingratidão se o donatário atentar contra a vida do doador, cometer contra ele ofensa física, o injuriar gravemente, caluniá-lo, ou recusar-lhe os alimentos de que necessitar. Inteligência do art. 557 do CCB. 3. Se não ficou comprovada a ocorrência de nenhuma das causas exigidas previstas na lei para a revogação da doação, mantém-se hígido o contrato. Recurso desprovido (RIO GRANDE DO SUL, 2011). DOAÇÃO DE IMÓVEL. RESERVA DE USUFRUTO VITALÍCIO SOBRE O BEM DOADO. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. ART. 548 DO CÓDIGO CIVIL. REVOGAÇÃO. INGRATIDÃO DAS DONATÁRIAS NÃO COMPROVADA. AUSÊNCIA DE ALGUMA DAS HIPÓTESES DO ART.557 DO CÓDIGO CIVIL. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE. RECURSO DESPROVIDO. Não restando presente nenhuma das hipóteses legais que autorizariam a nulidade ou a revogação da doação, previstas nos artigos 548 e 557 docCódigo Civil, respectivamente, a improcedência do pedido é medida que se impõe (PARANÁ, 2006).

Entendemos que para a configuração de causa de revogação do contrato de doação por ato de ingratidão do donatário é necessário que se apresente um fato grave e que represente a ingratidão enquanto termo jurídico complexo, e não na acepção corriqueira que normalmente se atribui à tal expressão. Deste modo, alcançamos uma maior abrangência do

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âmbito de incidência deste instituto, mas sem alterar a sua natureza excepcional (VIEIRA SANSEVERINO, op. cit., p. 163). O mero convencimento na adoção do rol taxativo com base no caráter excepcional que tal instituto porta – que por sinal, saliente-se, não o negamos – pode resultar na inobservância de circunstâncias tão graves quanto as positivadas, de modo que apenas uma exposição exemplificativa poderia abarcar as mais diversas e complexas situações que a realidade social exige para a resolução de seus conflitos. Ora, com razão se dá a preocupação de manter a faceta excepcional da revogação do contrato de doação por ato de ingratidão, uma vez que a regra geral é a irrevogabilidade das doações, mas o fechamento de suas hipóteses não parece ser a melhor maneira de se assegurar isto. Desta maneira, casos como a difamação e a ameaça grave, que não encontram correspondência legal, não se veriam aptos a desconstituir uma doação.

6. Impossibilidades O artigo 564 do Código Civil de 200211 deve ser entendido junto com a compreensão de que a revogação da doação é sempre situação excepcional, sendo a irrevogabilidade dos contratos de doação a regra geral, flexibilizada apenas no caso de descumprimento do encargo estipulado ou devido a ato de ingratidão do donatário. Assim, o referido diploma legal não passa de uma confirmação da regra geral, de modo a excluir a revogação nos casos elencados, ainda que em virtude de atos de ingratidão pelo donatário (VIEIRA SANSEVERINO, op. cit., p. 186.). Assim sendo, a revogação da doação não poderá se dar quando não se tratar de uma liberalidade completamente pura, como vêm entendendo os tribunais desde a vigência do antigo Código Civil. Nesse sentido se posiciona o STF: “Ementa: Código Civil, art. 1180 e 1183, n. III, combinados com os arts. 1175 e 1176. Revogação de doação por ingratidão do donatário só é possível nas liberalidades puras. [...]” (BRASIL, 1950). Por tal razão, entendemos que as doações remuneratórias, uma vez que se presume a existência de um serviço recebido pelo doador anteriormente, não são passíveis de revogação por ingratidão, sendo a doação uma espécie de recompensa (PEREIRA, op. cit., p. 268). Exceção ocorre no caso da doação remuneratória exceder o valor do serviço (ou do encargo, no caso das 11

“Art. 564. Não se revogam por ingratidão: I - as doações puramente remuneratórias; II - as oneradas com encargo já cumprido; III - as que se fizerem em cumprimento de obrigação natural; IV - as feitas para determinado casamento.”

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onerosas), ocasião em que se entende que a revogação poderia ser operada, mas somente no tanto que excedem o valor do serviço ou do encargo (BUGNET, op. cit., p. 415). As doações com encargo já cumprido, por lógica, não podem ser revogadas por ingratidão, sendo possível revogá-las, entretanto, enquanto o encargo ainda não tiver sido cumprido, tendo em vista que até então guardam equivalência com a liberalidade pura (VIEIRA SANSEVERINO, op. cit., p. 187). Também não há revogação por ingratidão a doação que se dá em face de retribuição a obrigação natural, posto que deixa de caracterizar um ato de liberalidade. Por fim, também não se revoga a doação propter nuptias, em razão de possuir um fim especial e por se equiparar a doação modal (Ibidem, p. 188). Diante deste quadro, entendemos que, em suma, as espécies de doações que podem ser revogadas pela ingratidão são as seguintes: i) as doações puras ou simples; ii) as oneradas com encargo que ainda não foi cumprido ou remuneratórias que excedem o valor do serviço; e iii) as realizadas em contemplação de merecimento. Assim, a interpretação contrario sensu do artigo 564 nos indica que, para manter o caráter excepcional da revogação por ingratidão, deve se limitar o seu âmbito de abrangência às doações puras e incondicionadas, que criem um vínculo duradouro e permanente de gratidão do donatário para com o doador.

Conclusão Do exposto resulta nítido que o objetivo da supressão do advérbio “só” do caput do art. 557 do Código Civil, foi precisamente tornar o rol, que pela redação de 1916 era taxativo, exemplificativo. A inovação legislativa representa importante avanço, posto que a ampliação de possibilidades que a exposição exemplificativa dá ensejo possibilita maior proximidade entre a realidade social e o direito, o qual jamais seria capaz de apreender toda a complexidade da primeira em numerus clausus. A nova redação, entretanto, não afasta o caráter excepcional do instituto da revogação de doação por ingratidão. A medida jurídica somente é admitida diante de fato grave, sendo indispensável a compreensão do termo “ingratidão” pela complexidade jurídica que apresenta. A alteração não sugere a banalização da medida, mas uma aplicação coerente com a realidade posta ao Judiciário.

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