(R)Evolução científica no século XVII: um legado europeu para o mundo

June 5, 2017 | Autor: J. Fonseca e Trin... | Categoria: History of Science, Historia da Ciência
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Revista electrónica Thélos ISSN 0718-3259 UNIVERSIDAD TECNOLÓGICA METROPOLITANA del Estado de Chile Facultad de Humanidades y Tecnologías de la Comunicación Social EDICIÓN ACTUAL Ediciones Anteriores Normas de Publicación ESTAMOS EN LATINDEX Busque aquí

(R)Evolução científica no século XVII: um legado europeu para o mundo Diciembre de 2013 Dr. Jorge Fonseca e Trindade Centro de Física Computacional, Universidade de Coimbra, Portugal.

Resumen Una revolución marca una ruptura con las profundas transformaciones de orden establecidos. En cualquier área, todas las revoluciones son inevitables debido a la permanente necesidad del hombre para crear y perfeccionar. Pero, no todas las revoluciones tienen el mismo alcance. Entre las que se han producido a lo largo de los siglos, ninguna se iguala a la revolución científica del siglo XVII en cuanto a sus efectos. En su origen se destaca un profesor universitario sencillo con una particularidad: la indignación contra la aceptación Palabras clave: Galileo, revolución, ciencia.

Abstract A revolution marks a rupture with the established order with profound transformations. In any area, all revolutions are inevitable for permanent human need to create and perfect. But not all revolutions have the same scope. Among those that have occurred over the centuries, none resembled the disruption caused by the scientific revolution of the seventeenth century. In its genesis was a simple college professor with a particularity: outrage against acceptance. Keywords: Galileu, revolution, science.

Introdução Uma revolução é, em regra, uma mudança ou transformação radical relativamente ao passado imediato, que thelos.utem.cl/2013/12/revolucao-cientifica-no-seculo-xvii-um-legado-europeu-para-o-mundo/

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pode ter lugar em distintos âmbitos (social, económico, cultural, religioso, científico, etc.) e ocorrer em simultâneo. Resultam como consequência de processos históricos e de construções coletivas, marcam uma rutura da ordem estabelecida com transformações de consequências profundas e costumam ser consideradas súbitas e violentas. Seja em que área for, todas as revoluções têm uma particularidade em comum: são inevitáveis! Porque inevitável é também a insaciabilidade humana pela mudança, pela perseverante procura por melhores condições materiais (por exemplo, revoluções sociais), por alimentar o espírito (por exemplo, revoluções culturais) e pela procura de conhecimento (por exemplo, revoluções científicas). Desta forma, as revoluções tendem a ser cíclicas e representam uma resposta, voluntária ou condicionada, a uma mudança de estado social, cultural e intelectual. O fenómeno social mais recente que encaixa nesta descrição ficou conhecido por Primavera Árabe, nome pelo qual foi designada a onda de manifestações que eclodiram no médio oriente e no norte de áfrica, nos países árabes, a partir de 2010 e que ainda hoje se fazem sentir por exemplo na Síria e no Egito. Como uma espécie de efeito borboleta, potenciado pelo fenómeno das redes sociais, essas convulsões sociais alargaram-se a outros países. Em 2011, nascia em Espanha o movimento social mais importante desde o final do franquismo, “os indignados”. Qual fenómeno ondulatório, estas manifestações rapidamente se alastraram a outros países da Europa (como Grécia e Portugal), mas também, mais recentemente, no Brasil. Tratam-se de convulsões sociais, motivadas por causas económicas e sociais e conotados pelo inconformismo das pessoas, por assimetrias sociais marcantes, mas também pela luta por mais direitos de oportunidades e de melhoria de condições de vida, nomeadamente no acesso à educação, como é o caso no Brasil. Se quisermos encontrar um paralelo histórico a estas contestações sociais, teremos de recuar à Europa do século XVII, também palco de uma série de revoluções com profundas implicações na vida das pessoas e da sociedade futura. Muitas destas revoluções tiveram subjacentes motivações idênticas às anteriormente referidas, agravadas pela conjuntura económica do século. Por um lado, a Europa vivia um período de instabilidade monetária devido à falta de prata, o material cunhável mais corrente, o que conduziu a uma alta de preços. Por outro lado, os preços também subiam devido a sucessivos maus anos agrícolas provocados por profundas alterações climáticas. Ao mesmo tempo, os grandes impérios, francês e espanhol, envolveram-se em confrontos, levando a um aumento de impostos e agravando ainda mais a situação das classes empobrecidas e famintas. O meio rural europeu foi assolado por uma vaga de tumultos, com os camponeses a insurgiram-se contra as imposições fiscais, cada vez mais opressoras, uma vez que a conjuntura económica assim os obrigava em muitos locais, embora em Inglaterra, o problema não estivesse tão ligado à crise de subsistência, mas às reformas na agricultura. Em Espanha, ocorria outro grande foco de revoltas motivado pelo descontentamento, por toda a parte, contra a política do duque de Olivares, ministro de Filipe IV. Na Catalunha, em 1640, a revolta deu-se devido ao comportamento do exército enviado de Madrid. Os camponeses avançaram sobre Barcelona, mataram o vice-rei e ofereceram a Luís XIII, de França, o título de conde de Barcelona, pedindo-lhe apenas a autonomia, o que ainda hoje ocorre. Em Portugal, quase simultaneamente, deu-se a revolta que se insurge contra a fusão administrativa pretendida pelo duque de Olivares. Os revoltosos proclamaram rei D. João IV, duque de Bragança, e expulsaram do seu território a vice-rainha, Margarida de Saboia, muito embora a contenda ainda se tenha prolongado por mais 25 anos [1] até à aceitação da independência por parte de Castela (1665). Não raras vezes (e tal como nos nossos dias, embora facilitado pela Internet), estas convulsões sociais encontram expressão na divulgação escrita, que serve igualmente o propósito de reforço das ideias e da mobilização de outros em torno do mesmo ideal. Por exemplo, no século XVII, em Espanha, Miguel de Cervantes escreve Dom Quixote de La Mancha, cuja primeira edição foi publicada em Madrid em 1605. Nesta obra, o fidalgo Dom Quixote e o seu fiel escudeiro Sancho Pança, representam valores distintos, embora sejam participantes da mesma realidade. Os dois pertencem a mundos muito diferentes: Sancho thelos.utem.cl/2013/12/revolucao-cientifica-no-seculo-xvii-um-legado-europeu-para-o-mundo/

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Pança é apresentado como um homem de bem, de bom senso e é para o mundo real aquilo que Dom Quixote é para o mundo ideal. O estilo de paródia de escrita permite dar relevo aos contrastes, evidenciando um permanente conflito que surge do confronto entre o passado e o presente, o ideal e o real e o ideal e o social. Já no nosso século, um dos inspiradores dos movimentos que eclodiram nos países árabes e na Europa no início desta década foi Stéphane Hessel, autor de “Indignai-vos” publicado em 2010. Para Hessel, “a nossa capacidade de indignação pode e deve levar-nos a ações construtivas, motivadas pela recusa da passividade e da indiferença”. O seu livro é acima de tudo uma incitação à mobilização, um convite ao empenho pessoal na vida das cidades e nos combates da nossa época”. No prólogo do seu livro pode ler-se, que corresponde a “cada um de vós individualmente e a todos nós colectivamente, encontrar as pistas através das quais a ‘cidadania internacional’ em gestação pode dotar de vida este século”. Estamos, indubitavelmente, perante a uma chamada de participação individual (e coletiva) na construção de um mundo de e para todos, acima da multiculturalidade, das divergências, e de outros aspetos discriminatórios. Por outras palavras, há um repto à iniciativa individual na construção de uma melhor sociedade, assente sobre valores íntegros e verdadeiros. Mas os aspetos sociais, económicos, culturais, espirituais, científicos, etc. são indissociáveis e as palavras de Hessel, embora proferidos num contexto socioeconómico da Europa do século XXI, podem muito bem rever-se noutros contextos (por exemplo, como a ciência e a educação). E embora em condições mais difíceis, nem todas as revoluções necessitam obrigatoriamente de uma mobilização de massas, embora seja uma condição necessária para a sua nidação.

O princípio da (não) localidade da revolução Seja no século XVII ou nos tempos atuais as revoluções e as conquistas são feitas de e para as pessoas e, portanto, mobilizadoras de ideais (valores, princípios), mais ruidosas ou mais silenciosas, mais céleres ou mais demoradas, mas sempre contra algo instaurado (por vezes profundamente alicerçado na sociedade), mas sempre com o intuito da construção de uma sociedade melhor, alicerçada sobre valores cada vez mais universais. A isto chama-se progresso, evolução. E é válido para qualquer área e setor: social, politica, económica, justiça, saúde, educação, ciência, etc. Para qualquer um destes domínios, o ativador é o mesmo: inquietude e persistência. No entanto, as maiores diferenças entre os vários tipos de revoluções podem explicar-se pelo seu alcance e pelo feito de (não) localidade: • As revoluções sociais tendem a ser de índole sócio-económico-política e confinadas a um país ou região, abrangendo questões especificamente direcionadas para a melhoria da qualidade de vida das pessoas na sociedade. Quando ocorrem, movimentam massas e tendem a ser mais violentas. Os seus impactos são, assim, mais limitados mas mais imediatos. • As revoluções de índole espiritual são de essência cultural, como a música, a literatura, as artes, e mais abrangentes, por terem na sua essência uma matriz de valores humanos e espirituais transculturais. • As revoluções no campo das ciências são de cariz universal e, portanto não local, não se confinando a um país, cultura ou sociedade. Assentam na compreensão do mundo natural, buscando o conhecimento, na firme expectativa de que ele é a porta para a liberdade, a chave para o entendimento das coisas e para superar os problemas da sociedade.

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Figura 1: Pelo seu alcance, os vários tipos de revoluções podem avaliar-se pelo efeito de não localidade Quanto maior o efeito de não localidade, maior o impacto das ideias e a transcendência da revolução. Nenhuma revolução tem proporcionado maior efeito de não localidade, à escala universal, quanto a revolução científica. Neste domínio lidamos com valores intemporais, imateriais e universais, sem direito de propriedade. É, quiçá, das revoluções com maior retorno garantido em todos os níveis: económico, social, político, cultural, etc. Por isso, é legítimo considerá-la como a “mãe” de todas as revoluções.

R(E)volução científica: a mãe de todas as revoluções O termo revolução científica foi cunhado em 1939 pelo filósofo francês de origem russa, Alexandre Koyré. Em 1959 apresentou uma série de conferências na The Johns Hopkins University, sobre a ascensão da ciência moderna e a mudança na perceção científica do mundo no período de Nicolau de Cusa e Giordano Bruno até Isaac Newton, que mais tarde seriam compiladas no se trabalho mais famoso, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. De fato, os efeitos da revolução científica foram incontáveis e mudaram significativamente a história da humanidade, abrindo novas portas para um melhor entendimento do mundo. Até à Idade Média, o repositório de conhecimento humano estava muito aposto ao modo de conceção da vida que a religiosidade propagava. A ciência, por sua vez, estava muito atrelada à Filosofia e possuía suas restrições. Contudo, a partir do século XV, o florescer de novas conceções permitiu uma reformulação no modo de se constatar as coisas. A nova forma de pensar, comprovar e, principalmente, fazer ciência, prosperou-se intensamente num período que se prolongou até o fim do século XVI. É a partir deste século até ao final do século XVIII, com especial ênfase para o século XVII, que a ciência, até então atrelada à thelos.utem.cl/2013/12/revolucao-cientifica-no-seculo-xvii-um-legado-europeu-para-o-mundo/

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Filosofia se separa desta e passa a caracterizar-se por um conhecimento mais estruturado e prático. Iniciouse uma revolução científica, absorvendo o empirismo como mecanismo para se consolidar as constatações, marcado por uma rutura com as práticas correntes da Idade Média, fase em que a Igreja Católica ditava o conhecimento de acordo com os preceitos religiosos. A ciência granjeou muitas novas ferramentas e passou a ser elevada aceitação e vista como fundamental para um novo tipo de sociedade que, então, nascia. As comprovações empíricas ganharam espaço e reduziram as influências das influências místicas da Idade Média. O conhecimento ganhou impulso para ser difundido com a invenção de Joahannes Gutenberg, a imprensa, qual fenómeno da Internet dos tempos atuais. A capacidade de reproduzir livros e divulgá-los por lugares distantes foi capital para a revolução científica, na medida em que restringia as possibilidades de releituras e interpretações equivocadas dos escritos. Contudo, é preciso atentar que esta revolução científica advém num contexto do borbulhar de outras movimentações paralelas, sem as quais não teria sido possível ocorrer. De fato, diversos movimentos sociais, culturais e religiosas prestaram as suas valiosas contribuições para o incremento da revolução científica. Aquele foi o período do Renascimento, uma fase que pregava um retorno à cultura greco-romana e propagava a mudança de orientação do teocentrismo para o antropocentrismo. Outra característica era o humanismo, uma corrente de pensamento interessada num pensamento mais crítico e, principalmente, valorizava mais os homens. Tais abordagens mudaram muito o pensamento humano. Neste domínio destaca-se o trabalho de Galileu Galilei, que foi paradigmático não só pela iniciativa mas principalmente pela metodologia seguida e que ilustra bem a dificuldade em lutar contra modos de pensar e agir profundamente enraizados (considerados como inabaláveis), mas vencidos pela inquietude e persistência de um só homem. Sem redes sociais nem imprensa que pudesse utilizar para mobilizar outras pessoas e divulgar os seus pensamentos, mas indignado pelas respostas que encontrava, não impediram que se mobilizasse a “ações construtivas, motivadas pela recusa da passividade e da indiferença”, tal e qual o repto lançado por Hessel nos nossos dias. A próxima revolução científica continua a precisar de reptos destes.

Galileu: o pensador e o artesão Em 1592 Galileu Galilei, físico e matemático italiano, encetou a sua atividade académica na Universidade de Pádua, em Itália, ensinando Geometria, Mecânica e Astronomia. Não obstante a importância histórica, epistemológica e metodológica da experimentação no trabalho de Galileu, foi no domínio da imagética que ele expressou a sua marca de genialidade, encontrando aqui um campo extraordinariamente fértil para a condução de algumas experiências controladas e, em muitos delas, conclusivas. Elaboradas e conduzidas apenas no “laboratório” da sua mente, estas “experiências imaginadas” contribuíram fortemente para ressaltar os paradoxos de uma ciência física milenar e buscar novas fronteiras no entendimento do Universo. Galileu foi um mestre neste processo. Através de “experiências imaginadas” [i] Galileu percebeu, por exemplo, que o movimento dos corpos não deve ser imposto sobre a Natureza, pelo contrário, deve ser adquirido da Natureza através da experimentação e da Matemática. Foi neste período que emergiram os seus brilhantes resultados sobre a queda dos graves, baseados no pressuposto assaz contraintuitivo de que os corpos no vácuo caem todos com a mesma aceleração, apesar da diferença de peso, fato ainda hoje de difícil compreensão pelos alunos que iniciam o estudo desta matéria. Contrariando o pensamento aristotélico, demonstrou que Aristóteles não estava certo a respeito da queda livre dos graves e comprovou empiricamente que os objetos caiem com a mesma aceleração independente da massa, a não ser que uma força externa, como por exemplo a resistência do ar, atue sobre eles. Galileu predisse que, se não existisse ar, uma pena e um martelo largados da mesma altura chegariam juntos ao solo, feito comprovado séculos mais tarde pela missão da Apollo 15, em 26 de Julho de 1971, à Lua, onde não existe atmosfera. thelos.utem.cl/2013/12/revolucao-cientifica-no-seculo-xvii-um-legado-europeu-para-o-mundo/

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Em pouco mais de três séculos as ciências físicas conheceram um desenvolvimento expressivo, catalisadas pelo recurso àquelas “experiências imaginadas”, nas quais os cientistas se abstraiam de situações reais, indo além das perceções transmitidas pelos sentidos. Com efeito, na história da ciência, mais recentemente, encontramos esta modalidade de explicação da Natureza como, por exemplo, no início do desenvolvimento da mecânica quântica e da teoria da relatividade no início do séc. XX. Atualmente, as “experiências imaginadas” têm merecido um crescente interesse traduzido pelo número cada vez maior de estudos e publicações, mostrando que o processo de “experimentar em pensamento” cada vez mais ganha significado e constitui, essencialmente, uma estratégia que tem como um de seus principais efeitos a possibilidade de familiarização com o sentido histórico da ciência e seus métodos. Nessa perspetiva, os aspetos epistemológicos e práticos desempenham um papel estratégico nas conexões com as diferentes áreas do conhecimento (Georgiou, 2005). O fato de Galileu recorre a “experiências imaginadas” explica-se pela inexistência de condições e instrumentação adequada para a realização efetiva das experiências. De resto, Galileu era um incomparável defensor das práticas experimentais, virtude que lhe haveria de conferir nova marca de genialidade. Esta faceta de artesão de Galileu é reveladora de um dos aspetos mais importantes da revolução científica do séc. XVII, uma característica marcante da praxis anti aristotélica. Aristóteles e os filósofos gregos em geral, nada tinham contra o conhecimento prático, a que chamava techne. Só não o consideravam do mesmo tipo do conhecimento científico a que chamavam episteme. Para os gregos, a diferença entre estes dois tipos de conhecimento não estava na diferença entre teoria e prática, mas, sim, na distinção entre as origens e os objetivos do conhecimento. Para o primeiro, a prática, interessava saber o «como fazer», um processo sujeito à descoberta pelo uso, enquanto o segundo, a teoria, dizia respeito exclusivamente à razão ou à compreensão das coisas, sugeridas pela observação, através do conhecimento das suas causas, ou seja o entendimento dos «porquês». Um dos aspetos bastante inovador em relação ao legado da observação grega, uma observação que assentava na ação direta e despojada dos órgãos dos sentidos, residia, agora, no facto de ultrapassar o observar, passando-se a “experimentar”, o que significava interrogar a Natureza de um modo diferente. E este modo de inquirição implicava a utilização de instrumentos de medida que, contrariamente ao que até aí acontecia, prolongavam a capacidade do homem em medir para lá do que era permitido pelos seus órgãos dos sentidos. Quem respondia ao observado não eram os órgãos dos sentidos, mas os aparelhos de registo. O perscrutar para lá da perceção sensorial da Natureza, permitia compor novos quadros mentais sobre o comportamento da Natureza. Experimentar é também confiar na imaginação e, de uma forma unicamente mental, produzir resultados à custa de “experiências imaginadas”, tal como Galileu proporá nos seus Diálogos. A revolução científica no séc. XVII vai recorrer exatamente a este novo processo de interrogar a Natureza para encontrar as leis que governam os fenómenos sem se preocupar com as “causas”. Galileu preocuparse-á com a queda dos graves e não com a causa da queda e, neste processo, intervém o artesão, concebendo novos modos de medir o tempo, e o matemático, que exprime os resultados por relações numericamente rigorosas. A maior contribuição que Galileu legou à posteridade foi ter dado uma linguagem Matemática à Natureza. Isso terá sérias implicações, que, talvez nem o próprio Galileu e a igreja tivessem dado conta. Pois essa será um dos prenúncios da decadência da igreja católica nos séculos posteriores.

Primavera italiana Depois de ter sido inventado na Holanda, em Outubro de 1608, o telescópio [2] começou a aparecer, como objeto de curiosidade, nalgumas feiras na Europa. Na Primavera seguinte, Galileu ouviu rumores sobre o instrumento e, sendo um bom artesão, começou a fabricar o seu próprio aparelho de observação, sem mesmo ter um modelo em mãos, apenas por descrições orais. Em 1609, apresentou várias versões do aparelho feitas por ele mesmo, a partir de tentativas e após thelos.utem.cl/2013/12/revolucao-cientifica-no-seculo-xvii-um-legado-europeu-para-o-mundo/

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construir a sua luneta de aumento 3x e apontá-la para o céu, descobrindo que não tinha grande nitidez, constrói o primeiro telescópio com um aumente de 30x. É com o seu telescópio que Galileu fomenta as suas observações. O primeiro objeto que focou foi o que estava mais perto, o mais fácil de todos, o que é irresistível de olhar. Foi logo à primeira, com a Lua, que Galileu começou a fazer estragos na mentalidade da época. As observações da Lua têm um carácter sistemático e de rigor que permitem retirar conclusões que mais ninguém retirou. Ele repara que a Lua é feita de montanhas e vales, consegue fazer uma estimativa da altura das montanhas. A Lua fica apresentada como um enorme rochedo e torna-se muito mais semelhante à Terra. Depois, vieram as luas de Júpiter. Mas foi quando apontou o telescópio para Vénus, viu as fases que o planeta tinha e só conseguiu justificá-las através da teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico – desenvolvida quase cem anos antes e publicada no ano da morte do polaco, em 1543, que diz que o Sol é o centro do universo e não a Terra – é que percebeu a prova que tinha na mão e finalmente pôs o mundo a questionar a teoria geocêntrica. Para além destas observações, Galileu descobriu outros fenómenos celestes, entre os quais as manchas solares, os principais satélites de Júpiter e a natureza da Via Láctea, como a concentração de incontáveis estrelas, iniciando assim uma nova fase da observação astronômica na qual o telescópio passou a ser o principal instrumento, relegando ao esquecimento os melhores instrumentos astronômicos da antiguidade (astrolábios, quadrantes, sextantes, esferas armilares, etc.). As descobertas de Galileu forneceram assim evidências muito fortes aos defensores do sistema heliocêntrico de Copérnico, e permitindo outra interpretação da vigente pelo clero. Mas estas descobertas não lhe bastaram e Galileu passou a fazer observações cuidadosas, noite após noite e fez cálculos mais aproximados que aqueles de Copérnico. Com registos, esquemas, rigor, persistência. Com Galileu, cada facto extraordinário que ele descobria passava a objeto de estudo sistemático. É isto que é genial nele. Um ano antes, Galileu era apenas um professor da Universidade de Pádua, com 45 anos, amante da mecânica, com dificuldades financeiras por ter de sustentar a família, longe de imaginar que um objeto baseado em princípios óticos fosse transformá-lo num revolucionário da Astronomia. Galileu Galilei abriu a janela pela qual, ainda hoje, continuamos a olhar o universo.

Vaticano, a rede social do século XVII Todo o modelo ou nova ideia só terá alcance se conseguir desalojar outros modelos vigentes e merecer a aprovação dos pares e da comunidade. O maior opositor à teoria heliocêntrica era a igreja católica e Galileu sabia que não podia menosprezar este facto. Por isso, tendo amigos eclesiásticos, Galileu apresentou ao vaticano as suas opiniões sobre o sistema heliocêntrico, que é reprovado por um cardeal de nome Belarmindo. Na igreja da época existiam basicamente dois segmentos: um mais fechado e radical, de fazia parte o cardeal Belarmindo, e outra mais aberta. Quando Galileu esteve em Roma e apresentou o telescópio aos sacerdotes, foram vários os eclesiásticos que se negaram piamente a verem o céu com aquele instrumento. Alegando que se Aristóteles dissera que o sistema solar era de uma certa forma, não haveria necessidade de olhar para o céu. E se não fosse igual ao que Aristóteles dissera, então, o que se veria só poderia ser um engano. É somente após a morte do cardeal Belarmino e do papa da época, Paulo V, que Galileu viu uma nova oportunidade de mostrar os seus trabalhos ao novo papa, Urbano VIII. Nesse ínterim, Galileu escreve obras que enaltecem a igreja católica afirmando a sua superioridade, talvez, para angariar a simpatia do novo papa. Ou como o Rossi escreveu, “os cientistas modernos, Galileu em primeiro lugar, agem com uma desenvoltura e um oportunismo metodológico que são totalmente desconhecidos da tradição medieval.” É neste período, por volta de 1623, que Galileu apresenta ao vaticano a sua teoria revolucionaria no livro Il Saggiatore. Com a dedicação ao papa Urbano VIII e sua devida aprovação, passa despercebida a ideia que irá agitar a Europa nos anos posteriores. Apesar de ser citada a obra Dialogo Sopra i Due Massimi Sistemi Del Mondo, Tolemaico e Copernicano ou simplesmente Diálogos, como a que mais chamou atenção na thelos.utem.cl/2013/12/revolucao-cientifica-no-seculo-xvii-um-legado-europeu-para-o-mundo/

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época, ele foi apenas a causa de sua condenação, por motivos óbvios.

Conclusão Para além de inevitáveis, todas as revoluções têm uma marca e um rosto. Galileu era um vulgar professor universitário, mas com uma característica impar: indignação pela aceitação sem contestação. Essa era asua marca, com a qual revolucionou a visão de mundo, deixando um legado incomensurável: contribuiu para a teoria do heliocentrismo, lançou as bases do conceito da inércia, descobriu manchas no sol, escreveu um tratado sobre a aceleração dos corpos em queda livre, além de ter descoberto que a lua não era uma esfera perfeita e lisa como dissera a igreja e Aristóteles, mas levemente arredondada e cheia de crateras vista através da luneta, embora tal afirmação pudesse ter levado a pensar que todos os planetas seriam assim. Nem todos seremos, certamente, como Galileu. Mas todos podemos, certamente, fazer escolhas e podemos ver a árvore ou a floresta, ser a continuidade ou a rutura, o problema ou a solução, cruzar os braços ou cruzar o mundo, ser mais um ou valer por dez, copiar ou ser copiado, seguir a história ou fazê-la, escolher o peixe ou a cana. A decisão é de cada um. Parafraseando Hessel, “a nossa capacidade de indignação pode e deve levar-nos a ações construtivas, motivadas pela recusa da passividade e da indiferença”. E por isso, compete a “cada um de vós individualmente e a todos nós colectivamente, encontrar as pistas através das quais a ‘cidadania internacional’ em gestação pode dotar de vida este século”.

Notas: 1. Contendas que viriam a ser conhecidas por Guerra da Restauração. 2. Concebido para fins bélicos para observar o inimigo à distância, dando um novo significado à expressão “vê os teus inimigos antes que eles te vejam”. i. A que provavelmente hoje chamaríamos virtuais. Com o desenvolvimento da realidade virtual, nos nossos dias, passou a ser possível criar ambientes virtuais, como uma extensão da nossa mente e em complemento aos cenários reais.

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Sumario Revista Thélos N°8, UTEM, Santiago, Chile, Diciembre 2013 Comité EditorPalabras del Director Artículos Inserción Curricular de las Tic en la Enseñanza de las Ciencias: una visión general(R)Evolução científica no século XVII: um legado europeu para o mundoEl hombre y la naturaleza en Cuna de cóndores de Mariano LatorreEntre el reconocimiento y el desconocimiento de una profesión. Reflexiones en torno a la complejidad de la figura del diseñador industrialLa Idea de las Ciencias de los profesores de Biología de los establecimientos educacionales de Valparaíso y Viña del Mar, ChileEl Observatorio Astronómico Nacional (OAN) 1852-1856: Políticas Científicas y Nación, en la República Conservadora ChilenaCiencia y Liceos en Chile durante el Siglo XIX*Raíces Históricas de la Formación del Estado y de la Constitución Oligárquica de 1833 en ChilePioneros en la Enseñanza e Investigación Matemática en Chile Eventos Destacados Presentación de nuevo texto del Profesor Zenobio Saldivia – Presentación y Comentario del profesor Alex Ibarra Peña.Lanzamiento de la Revista de Estudios Políticos y Estratégicos del PEPPProfesor Zenobio Saldivia es designado Dr. Honoris Causa en Perú Notas Sarmiento y La Ciencia Reseñas Utopías juveniles: de la bohemia al Che, de Hugo Biagini, Leviatán, Buenos Aires, 2 Edición, 2005, 106 pp.Reivindicar la Memoria. Epistemología y metodología sobre la historia de la filosofía en América Latina. – De Alberto Saladino García, Ed. Universidad Autónoma del Estado de México y Universidad Nacional Autónoma de México, Toluca, México, 2012. thelos.utem.cl/2013/12/revolucao-cientifica-no-seculo-xvii-um-legado-europeu-para-o-mundo/

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