Revolução Cubana em Perspectiva BIAZETO & MARTINS.pdf

May 22, 2017 | Autor: Luis C. P. Martins | Categoria: Guerra Fría en América Latina, Política Internacional, Revolução Cubana
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MARTINS, Luis Carlos dos Passos, BIAZETTO, Bruno Henz Revolução Cubana em Perspectiva: EUA, Brasil e a Guerra Fria na América Latina nos anos 60. Porto Alegre : Editora All Type Ltda, 2014, v.1. 112 p.

ISBN 978-85-65459-02-0 1 – América – História – Revolução Cubana. 2. Imprensa. 3. Guerra Fria. 4. Relações Internacionais. 5. Brasil. 6. EUA Prefixo Editorial: 65459

Revolução Cubana em Perspectiva: EUA, Brasil e a Guerra Fria na América Latina nos anos 60

MARTINS, L.C.P & BIAZETTO, B. H. (Org.).

Porto Alegre : Editora All Type Ltda, 2014

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO

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CAPÍTULO I Agora é guerra: o papel da diplomacia americana na primeira tentativa de remoção de Castro (1960) Bruno Henz Biazetto

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CAPÍTULO II Perigo vermelho: o anticomunismo em debate na campanha presidencial estadunidense de 1960 Waldemar Dalenogare Neto

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CAPÍTULO III Os Dilemas de San Tiago Dantas em Punta del Este, 1962 Arthur Schreiber de Azevedo

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CAPÍTULO IV Brasil e a Questão Cubana: a Politica Externa Independente na visão da grande imprensa Luis Carlos dos Passos Martins Arthur Schreiber Azevedo

70

CAPÍTULO V A Crise dos Mísseis: o conflito na visão da grande imprensa brasileira Lilian Orso

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Apresentação

O livro aqui apresentado é composto por um conjunto de cinco capítulos notadamente distintos e redigidos por diferentes autores. Um tema, porém, une-os e se torna o eixo dessa obra coletiva: a reflexão sobre a Revolução Cubana e as suas consequências para a relação entre Estados Unidos, América Latina e Brasil, no início dos anos 60. Não se trata, contudo, de análises sobre esta Revolução propriamente dita, mas de textos focados na maneira como ela foi pensada e/ou provocou reações em diferentes contextos institucionais, espaciais e, acima de tudo, discursivos. Mais do que o processo revolucionário liderado por Fidel Castro, o que está em discussão nesta coletânea são as diversas maneiras maneira de “ler” e de reagir a ele, as quais nos indicam como era impossível não se importar e não se posicionar diante de um acontecimento tão impactante, mesmo através de leituras e reações divergentes. Além disso, o recorte temporal é relativamente curto, concentrando-se em torno dos três anos que se sucederam à deflagração da Revolução e, dessa forma, detendo-se nas visões e nas ações desencadeadas ainda no “calor dos acontecimentos”, como é o caso das tentativas de reversão ou anulação da mesma por parte dos EUA. Uma abordagem com esta pode, contudo, frustrar o leitor que busca maiores informações específicas sobre a Revolução Cubana ou deseja compreender o seu efeito de longo prazo para as relações exteriores na América e sobre os rumos da Guerra Fria. Todavia, ela apresenta vantagens. E não são poucas. Primeiro, de recuperar as interpretações e representações produzidas por parte dos agentes históricos direta ou indiretamente envolvidos no processo no momento em que se viram na contingência de pensar e de se posicionar frente a ele, as quais tem um peso elucidativo para as suas ações e estratégias de valor igual ou maior do que as explicações macro-estruturais. Segundo, porque esse tipo de escolha temática pode permitir perceber, muitas vezes de forma surpreendente, como as leituras e as reações a um acontecimento desta ordem são bastante diversos das visões totalizantes que as análises macro-históricas tendem a consagrar posteriormente. Terceiro e por fim, essa opção de abordagem oferece um bom panorama de como este mesmo acontecimento foi experimentado, vivido e sentido por

parte de seus contemporâneos, recolocando o “sujeito na História”, de onde nunca deveria ter sido deslocado. Foram essas as principias intenções que motivaram a publicação desses diferentes textos e esperamos ter conseguido atende-las, ao menos parcialmente. Os capítulos do presente livro foram organizados respeitando critérios de ordem cronológica e, acima de tudo, temática. O primeiro deles é Agora é guerra: o papel da diplomacia americana na primeira tentativa de remoção de Castro (1960), de autoria de Bruno Henz Biazetto. Utilizando documentação produzida pela diplomacia norteamericana, o autor aborda como o Departamento de Estado e outras instâncias do establishment governamental norte-americano perceberam originalmente a Revolução Cubana e como pensaram em reverter o processo. Chama a atenção a visão bastante particular sobre o que acontecia na ilha caribenha, especialmente a pouca importância dada ao poder de liderança de Fidel e à força que a Revolução adquiria internamente. Também não deixa de surpreender a interpretação no mínimo arrogante dos homens do Departamento e da CIA, grande parte dos quais achava que seria possível derrotar o movimento castrista simplesmente transmitindo para a ilha caribenha, de forma clandestina, peças publicitárias e jogos de beisebol. Objetivava-se, com isso, divulgar o “modo de vida americano” e, dessa forma, colocar a população de Cuba contra Castro e sua estratégia de direcionar o regime revolucionário para o socialismo soviético, numa crença bastante ingênua acerca do poder de persuasão do american way of life sobre uma população que havia “sofrido” a influência desse estilo de vida por mais de um século. O segundo capítulo, intitulado Perigo vermelho: o anticomunismo em debate na campanha presidencial estadunidense de 1960, de Waldemar Dalenogare Neto, analisa a forma como a Guerra Fria e a Revolução Cubana foram abordadas na campanha eleitoral de 1960, que levou o candidato democrata John F. Kennedy à Presidência dos Estados Unidos. O foco do estudo do autor foi o uso da televisão nessa campanha, nova arma empregada nas disputas eleitorais estadunidenses, abordando, para tanto, documentação original, oriunda dos debates e da propaganda televisiva. Destaca-se, curiosamente, a pouca ênfase que o tema da Revolução Cubana recebe nos primeiros debates, quando é focada como questão central da Guerra Fria a ameaça de a China tomar as insignificantes ilhas Quemoy e Matsu, na época pertencentes a Taiwan. Essa curiosa escolha, porém, justifica-se como uma estratégia da campanha de Richard

Nixon, candidato republicano, desejando evitar que o movimento revolucionário de Fidel Castro, extremamente constrangedor para a administração Eisenhower - de quem Nixon era vice-presidente -, tomasse conta da discussão eleitoral. Por pressão da própria mídia promotora dos encontros televisivos e por uma manobra tática de Kennedy, a “perda” da ilha caribenha “para o comunismo” tornou-se um dos temas-chave do último debate, gerando um forte incômodo ao candidato republicano e contribuindo para o seu fracasso no pleito que se seguiu. Os três últimos capítulos promovem um redirecionamento do olhar: o foco da análise deixa de estar nos EUA e passa a ser a posição do Brasil diante do processo revolucionário cubano e as suas consequências para a América Latina, dando ênfase à forma como a estratégia brasileira foi interpretada pela grande imprensa da época. No capítulo III, Os Dilemas de San Tiago Dantas em Punta del Este, 1962, de Arthur Schreiber de Azevedo, é avaliada a atuação de San Tiago Dantas, então chanceler do governo parlamentarista de João Goulart, e responsável pela condução da política externa brasileira na Conferência de Punta del Este. Ocorrida no Uruguai, em 1962, esse conclave decidiu pela expulsão do governo de Cuba da OEA. O texto retrata não apenas as difíceis negociações que resultaram no documento final do encontro, mas enfatiza os propósitos e ideias centrais a partir dos quais Dantas procurou defender os princípios de não intervenção e autodeterminações dos povos. Era uma forma de impedir que a rigidez ideológica da Guerra Fria viesse a pautar completamente as relações entre os países americanos. Com isso, tentava-se garantir igual ou maior margem de manobra ao Brasil em busca de vantagens políticas e/ou econômicas em suas táticas de inserção internacional, uma das bases da Política Externa Independente (PEI). Uma questão a destacar, porém, nesse trabalho, é a hipótese levantada pelo autor de que a posição final do Brasil não foi resultado de uma estratégia previamente concebida, mas uma adaptação dos princípios e propósitos defendidos por Dantas aos diferentes cenários que as negociações e acontecimentos políticos acabaram gerando. O capítulo IV, de autoria de Luis Carlos dos Passos Martins e novamente de Arthur Schreiber de Azevedo (Brasil e a Questão Cubana: a Politica Externa Independente na visão da grande imprensa), dará ênfase à forma como a participação brasileira na Conferência de Punta del Este foi abordada pelos grandes jornais brasileiros, representados aqui pelo periódico carioca Jornal do Brasil e pelo impresso paulista O Estado de S. Paulo. Nesta análise, destaca-se o seguinte: afora uma forte

rejeição dos jornais a qualquer ação militar contra Cuba, não encontramos uma unanimidade de posição entre JB e OESP; ao contrário, eles apresentam profunda divergência no que se refere à sua visão sobre a Guerra Fria, à participação brasileira em Punta del Este e à Política Externa Independente levada adiante pelo governo brasileiro. No caso, OESP criticando pesadamente a atuação do Brasil e a PEI e o JB assumindo a defesa desses dois pontos. Além disso, salienta-se a tentativa dos impressos em fazer uma leitura dos acontecimentos da política externa a partir de seus possíveis efeitos e/ou interesses na política interna do país. Contudo, não é possível, a partir desse trabalho, concluir que esses jornais eram meros porta-vozes de grupos político-partidários. Muito ao contrário, a hipótese aqui defendida é que o posicionamento sobre as relações exteriores do Brasil constituiu uma das formas a partir das quais esses diferentes e influentes periódicos procuraram construir, perante o seu leitor e o universo político, a condição de interlocutores legítimos no debate público nacional. O quinto e último capítulo, A Crise dos Mísseis: o conflito na visão dos jornais no Brasil, de Lilian Orso, apresenta uma abordagem similar a anterior, só que agora voltada ao posicionamento dos mesmos jornais frente à Crise dos Mísseis e à participação brasileira no conflito. Os resultados são bastante convergentes com os encontrados no capítulo IV: crítica unânime no que se refere à solução do confronto com o uso da força militar, mas forte divergência no que diz respeito à atuação “neutralista” brasileira e aos princípios da PEI. O maior diferencial desse capítulo está, contudo, em mostrar como as divergentes opiniões identificadas nos editoriais aparecem nitidamente no espaço da informação, através de variadas estratégias, como a seleção ou esquecimento de determinado tema, a diferença de ênfase dada a um mesmo assunto e, por fim, o próprio posicionamento, explícito ou implícito, contido no texto das reportagens.

CAPÍTULO I Agora é guerra: o papel da diplomacia americana na primeira tentativa de remoção de Castros (1960) Bruno Henz Biazetto1

Este artigo tem por objetivo primordial analisar o papel do Departamento de Estado nas operações que visavam remover o regime castrista em Cuba. O presidente Dwight Eisenhower dividiu essa tarefa entre a CIA e o Departamento de Estado. A CIA possuía um papel ainda mais complexo, que era a montagem de um grupo paramilitar de exilados, visando à derrubada direta do governo cubano. Contudo, a participação da CIA já é algo bastante abordado pela historiografia, ainda mais quando a temática é Cuba e os anos 60 (BANDEIRA, 1998). Neste ensaio, o cerne não está no secreto, no mundo obscuro das agências governamentais de inteligência durante a Guerra Fria. A ênfase se encontra nas ações da diplomacia e como ela pode, às vezes, ocupar posições que transcendem o seu caráter original de representação e intermediação. Os diplomatas, nos séculos anteriores ao XX, sempre estiveram muito associados à espionagem. Em um mundo onde os setores de inteligência não estavam desenvolvidos, essa função era exercida pela diplomacia conforme KISSINGER (2006) e WRIGHT (2006) nos recordam muito bem. Com a chegada do século XX e o surgimento das agências de espionagem e contra-espionagem, os diplomatas perderam um pouco da imagem negativa que lhes foi atribuída. Mas, mesmo assim, eles ainda eram responsáveis por articulações que os remetiam ao seu velho papel. Também é necessário lembrar que muitas das ações da diplomacia são baseadas na Razão de Estado e que a defesa dos interesses de suas nações, normalmente, utilizando-se mais da força do que dos argumentos (MORGENTHAU, 2003; WIGHT, 2002). A partir desses parâmetros, o Departamento de Estado teve a importante tarefa de articular diplomaticamente o apoio na América Latina e na Europa para a remoção 1

Doutorando em história da América Latina pela universidade de Georgetown.

do governo cubano. Também foi encarregado de realizar operações de propaganda em Cuba, visando minar ideologicamente o regime inimigo, além de buscar membros compatíveis com os ideais estadunidenses, para a formação de um novo governo. A pressão econômica constitui-se no meio favorito do Departamento de Estado para que a mudança de regime acontecesse rapidamente. Ao longo do ano de 1959, diversos métodos foram estudados, mas somente o bloqueio da entrada do açúcar cubano nos Estados Unidos havia sido consenso entre os diplomatas. Já em 1960, o que era apenas um planejamento se transforma em prática. A complexidade, bem como as eventuais reações ao plano estadunidense, trazia uma série de problemas para a diplomacia norte-americana. Sobre essas medidas, comenta Moniz Bandeira: Na opinião do Secretário de Estado, Christian Herter, o Sugar Act era mais importante, desde que se constituía uma arma contra Cuba. E aqueles que criticavam o Departamento de Estado por não adotar sanções econômicas contra o regime de Fidel Castro concluíram que nenhuma outra medida seria tão eficaz quanto o corte da cana de açúcar e o desestímulo ao turismo, já a evaporar-se (BANDEIRA, 1998, p. 225).

O Departamento já trabalhava para inicialmente buscar novos parceiros fornecedores de açúcar para os Estados Unidos. Thomas Mann, o Secretário de Assuntos Econômicos, acreditava que era vital reduzir a dependência do mercado norteamericano em relação ao açúcar cubano. Ele também ressaltava que o GATT 2 não seria um problema, pois as violações cubanas seriam mais sérias que as americanas, o que dando aos Estados Unidos uma chance maior de vitória em uma possível arbitragem da questão. Por fim, ele destacava que a pressão seria bem sucedida, por um simples fato: A economia de Cuba está ligada a nossa e cedo ou tarde Cuba terá de reconhecer isso. Somente então, nós estaremos em uma vantajosa posição de barganha. Investidores vão perder muito pouco até a espera de uma época

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O GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) ou Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio foi criado em 1947 com o objetivo de tentar dinamizar o comércio internacional. Não era propriamente um tratado e nem um órgão independente, tendo sido formado através de uma série de acordos entre os países participantes. Baseava-se na “ideia de que o livre câmbio e a divisão internacional do trabalho representa[vam] um ideal que deve[ria] ser atingidos pelas nações civilizadas”. Além disso, os “signatários se empenhavam em não suspender as suas tarifas aduaneiras e a conceder a seus parceiros o tratamento de nação mais favorecida” (MAURO, 1973, 414), fazendo com que todos os governos fossem obrigados a oferecer as mesmas taxas para qualquer país assinante. Também foi acertado que as tarifas alfandegárias seriam reduzidas a cerca de um terço de seu valor vigente, o que, obviamente, favorecia as nações industrializadas – exportadoras de bens manufaturados e, por isso, interessadas em manter e/ou conquistar mercados para os seus produtos – e prejudicava as nações não-industrializadas, que aspiravam desenvolver um parque fabril próprio mediante o protecionismo.

mais razoável, já que a possibilidade de um acordo satisfatório e imediato é remota.3

Contudo, para que o êxito fosse possível na questão do açúcar, o presidente precisava ter a autoridade para realizar o corte, algo que somente poderia ser dado pelo Congresso. Nesse ponto, é importante ressaltar que Eisenhower passava por uma fase bastante conflituosa com o legislativo, principalmente com a consolidação da maioria democrata em 1958. Cabia aos congressistas renovarem as vantagens tarifárias cubanas, de quatro em quatro anos. E muitos deputados e senadores acreditavam ser uma temeridade dar para um governo de caráter bastante incerto um benefício tão grande por tanto tempo. A batalha pela chamada “autoridade do executivo” seria intensa e sua importância ficou bem clara nas palavras de Henry Ramsey, 4 do grupo de planejamento de políticas: O obstáculo imediato nas relações cubano-americanas é a pendente legislação do Congresso relativa à cota do açúcar. É do meu entendimento que o Poder Executivo vai pedir que a atual legislação seja estendida por um ano e que seja dado ao Executivo a autoridade de fazer ajustes nas cotas existentes. Eu espero e presumo que essa legislação vai passar. Isso nos permitiria arranjar o tempo necessário e dar ao Executivo a flexibilidade necessária para manobrar com Cuba, nas cotas e nos preços. Isso iria abrir uma área de comunicação que poderia ser útil. 5

Cabia agora aos congressistas republicanos e ao próprio governo a tentativa de convencer a maioria democrata da importância da medida para a solução do problema cubano. Porém, era ano eleitoral e os democratas não se demonstravam muito interessados em facilitar a vida do Executivo. Principalmente porque as discordâncias mais sérias estavam justamente na formulação da política externa. Os senadores

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“Cuba’s economy is tied to ours and sooner or later Cuba will have to recognize this. Only then will be in an advantageous bargaining position. The investors lose little by waiting for a reasonable time since the possibility of a satisfactory and immediate settlement is remote” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 726). 4 Membro do Grupo de Planejamento de Políticas do Departamento de Estado. 5 “The immediate hurdle in US-Cuban relations is the pending Congressional legislation on the sugar quota. It is my understanding that the executive branch will ask the existing legislation be extended for one year and that the executive be given authority to make adjustments in exisising quotas. I hope and assume that the existing legislation will pass. It would permit us to buy necessary time and give the executive the flexibility required to maneuver with Cuba on quotas and prices. This would open an area of communication which might be helpful” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 797).

Fulbright, Johnson e Kennedy criticavam incessantemente a administração de Eisenhower por deixar que a União Soviética estivesse na “dianteira” da Guerra Fria. O antigo Secretário de Estado no governo Truman, Dean Acheson, reuniu um grupo de intelectuais democratas para estabelecer um constante debate sobre os rumos da política externa norte-americana. O grupo de trabalho se mostrou bastante crítico das estratégias estadunidenses para a América Latina, condenando uma aparente perda de terreno do governo americano na região. Algumas das medidas sugeridas seriam incorporadas ao programa de governo de Kennedy, transformando-se na Aliança para o Progresso.6 Esse desejo de formular uma nova política para a América Latina tornava os democratas bastante duvidosos das pretensões governamentais. O que deixava a liberação para a definição da cota algo ainda mais difícil. Portanto, era necessário que a liberação chegasse logo, para que ela tivesse o efeito desejado de uma vez. Castro ainda parecia bastante forte e popular, o que preocupava o Departamento de Estado, levando os seus formuladores a trabalhar com outras formas de pressão econômica. Uma delas foi a aplicação de um boicote de petróleo para Cuba. As companhias americanas, que eram as responsáveis pelo refino na ilha, haviam se negado a refinar mais petróleo para Castro, deixando Cuba em uma crise de combustíveis. A União Soviética se propôs a fornecer petróleo cru para os cubanos, o que foi aceito prontamente pelo país, necessitado do produto. Mas, as refinarias americanas receberam ordens diretas do Departamento de Estado, via o embaixador Phillip Bonsal, de se retirarem de Cuba, caso fossem obrigadas a refinar petróleo russo. O embaixador destacava que era “lamentável” que companhias como a Esso e a Texaco, presentes na ilha durante quase 80 anos, tivessem de encerrar as suas atividades por uma questão política. De acordo com os especialistas estadunidenses, os equipamentos americanos que ficaram em Cuba não eram adequados para o refino do petróleo russo. O Departamento também articulou seus contatos em Londres, onde pediu ao governo de McMillan que pressionasse a Shell para encerrar as suas atividades na ilha.

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A partir de 1952, forma-se o chamado “Grupo Finletter”, fundado pelo acadêmico democrata Thomas K. Finletter. O objetivo era a existência de um fórum constante de debates das políticas do partido. O grupo era composto por nomes do porte de Eleanor Roosevelt, George Kennan, Dean Acheson e Kenneth Galbraith. A partir de 1956, o grupo ficou conhecido como DAC (democratic advisory comitee), e suas idéias tiveram um imenso impacto na formulação da política externa de John Kennedy.

As informações passadas até aquele momento pelo governo britânico davam conta de que a Shell teria a mesma posição que as suas parceiras norte-americanas, e que as três anunciariam a sua decisão para o governo cubano no mesmo dia, 6 de junho.7 Outro ponto que deveria ser abordado na questão do petróleo era a intenção de dificultar ao máximo o transporte do combustível para Cuba. Todo transporte era realizado via naval, por armadores gregos, em sua maioria. Os diplomatas estadunidenses prontamente entraram em contato com os senhores Onassis e Niachros, os dois maiores armadores do mundo naquela época, convencendo-os de seus propósitos através do discurso persuasivo de que a Grécia fazia parte do bloco ocidental e que a sua colaboração era essencial nesse momento de “crise”. Os diplomatas ainda enfatizaram que seria bom para um andamento saudável dos negócios dos gregos nos Estados Unidos se eles cooperassem com os estadunidenses naquele momento. Ambos se mostraram bastante receptivos e foram devidamente persuadidos de sua importância, colaborando prontamente com a não utilização de seus navios para o transporte de petróleo para Cuba8. Este particular método de pressão foi bastante efetivo no começo e a ilha somente iria resolver os seus problemas com o abastecimento de combustível ao se alinhar, definitivamente, com o bloco oriental. Conforme, ao longo do ano, a tensão parecia se agravar, outra medida foi seriamente considerada. Consistia na utilização do Trading With the enemy act. Este ato interromperia imediatamente todo comércio entre Cuba e os Estados Unidos, bem como liberaria ao governo estadunidense a possibilidade de congelar todo dinheiro cubano que estivesse em bancos americanos. O Secretário do Tesouro, Anderson, gostava da ideia, mas, ao mesmo tempo, dizia que ela tinha de ser pensada com cuidado, pois não era do interesse dos Estados Unidos passarem a ideia de que Cuba era uma vítima perante a comunidade internacional.9 Depois de uma árdua batalha no Congresso norte-americano, a autoridade do Executivo para cortar a cota do açúcar cubano foi finalmente aprovada em julho. Roy Rubottom, em encontro no Departamento de Estado, afirmou que era necessário fazer um uso imediato da autoridade para mostrar ao Congresso que o voto de confiança no

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FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 936. FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 980. 9 FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 959. 8

governo foi bem aproveitado.10 Afirmou ainda que iria recomendar ao presidente o corte de 700.000 toneladas das 740.000 que Cuba tinha direito de exportar aos Estados Unidos.11 Ao mesmo tempo, os novos exportadores deveriam ter o seu açúcar pago de acordo com os preços praticados no mercado americano, que eram o dobro do mercado internacional.12 Após o êxito no bloqueio do açúcar e do petróleo, o governo de Eisenhower começava a demonstrar sinais de otimismo. Na reunião do NSC,13 ocorrida um dia depois do anúncio do corte, Douglas Dillon afirmava que esse ato iria gerar um efeito em cascata que levaria à quebra da economia cubana.14 No mesmo encontro, o Secretário Anderson argumentou que era a hora de o governo americano congelar o dinheiro e os bens do governo cubano nos Estados Unidos. Seria o golpe final, na percepção do Executivo estadunidense.15 O cenário otimista se modificou a partir da segunda metade de 1960, quando o bloqueio petrolífero começou a perder efeito. Em um encontro com o presidente, Allen Dulles informou que os chineses comprariam grande parte do açúcar cubano, podendo chegar até 500.000 toneladas. Enquanto o Sr. McCone 16 informava a Eisenhower que era impossível impedir Cuba de adquirir mais petróleo. Armadores de menor porte estavam dispostos a fornecer os seus serviços aos cubanos, enquanto o governo americano somente conseguiu garantir um acordo com os gigantes do setor.17 A grande solução parecia ser realmente a efetivação do Trading with the Enemy Act, que começou a ser defendida pelo Departamento de Estado. Em uma correspondência para o Secretário de Estado Herter, o Secretário de Defesa, Thomas Gates, explica os benefícios da aplicação do ato: Sob o Trading with the Enemy Act, os EUA poderiam (1) congelar as contas de banco cubanas nos EUA e proibir todos os negócios entre cidadãos americanos e firmas cubanas; (2) embargar todas as importações de Cuba; e

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FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 976. FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 976. 12 FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 979. 13 National Security Council (Conselho Nacional de Segurança). 14 FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 982. 15 FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 986. 16 Diretor da Comissão de Energia Atômica a partir de julho de 1958. 17 FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1023. 11

(3) aplicar “controle de transações” para negar a Cuba produtos de firmas controladas pelos EUA no exterior. 18

Aqui chegamos a um ponto bastante interessante, onde havia uma não usual concordância entre os diversos setores do Estado norte-americano sobre a necessidade da implementação de uma pressão econômica. Porém, as discordâncias logo retornaram, justamente no momento em que as lideranças apresentavam satisfação com o andamento das ações. Outros setores se mostravam desgostosos e até mesmo descrentes com a possibilidade de êxito das medidas tomadas até então. Mesmo sendo uma minoria e com poucas chances de realmente influenciar um novo tipo de política externa, eles se faziam notados, como o caso do embaixador Bonsal: Nenhum dos elementos de pressão econômica já citados vai botar esse governo de joelhos e, ainda por cima, eles estão sendo interpretados, até mesmo por nossos amigos, como uma tentativa mal sucedida de fazê-lo.19

Bonsal estava em Cuba, e era um diplomata bastante perspicaz, por isso era bem informado e ciente do momento da ilha. Ele complementava argumentando que, se os Estados Unidos compravam 774.000 toneladas de açúcar de Cuba, o Bloco Comunista estava comprando 2.200.000 toneladas. Mesmo a um preço inferior e com grande parte do pagamento sendo feita através de equipamentos, a demanda dos mercados da Rússia e da China compensava boa parte da perda anterior. Dentro dos quadros do Departamento de Defesa, crescia o descontentamento. Em um memorando, Edward Lansdale20 escreve para James Douglas, nos seguintes termos: Como você já apontou, não me parece que o nosso curso atual de ação vai trazer os resultados efetivos que desejamos. O plano atual é baseado na premissa de que o povo cubano vai se transformar em uma força anticomunista em um número suficiente para trazer uma mudança de governo. As táticas comunistas de segurança, como a de criar milícias populares, e o contínuo apoio a Castro pela maioria da população, bloqueiam o sucesso das nossas ações planejadas. Assim, me parece que é hora de

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“Under the Trading with the Enemy Act, the US could (1) freeze Cuban bank accounts in the US and prohibit all dealings between US nationals and the Cuban firms; (2) embargo all imports from Cuba; and (3) apply “transactions controls” to deny Cuba products of US controlled firms abroad” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1037). 19 “None of the above elements of economic pressure will bring this government to its knees though they in themselves are being increasingly interpretated, even by our friends, as unsucessful attempts to do so” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1042). 20 Assistente para Operações Especiais, órgão ligado ao Departamento de Defesa.

darmos outra boa olhada em nosso plano. Se o nosso atual plano parece fadado ao fracasso, então o que pode ser feito para se ter sucesso? 21

Por fim, a estimativa nacional de inteligência, relativa à situação de Cuba, realizada ao fim de 60, mostrava a ineficiência das medidas econômicas até aquele momento: “A economia cubana como um todo continua a se deteriorar, mas não ainda ao ponto de ameaçar a estabilidade do regime de Castro”.22 Ainda havia esperança na implementação do Enemy Act, mas isso exigiria mais um esforço concentrado no Congresso e já não havia mais tempo para a administração Eisenhower fazer isso. Seria uma decisão a ser tomada pelo governo Kennedy, na medida em que envolvia o reconhecimento diplomático de Cuba como um inimigo oficial dos Estados Unidos. O que se pode perceber na questão econômica é que o governo estadunidense superestimou o potencial de suas medidas, ao mesmo tempo em que subestimou a ajuda oferecida pelo Bloco Comunista. Também se pode notar que a discordância dessa vez não está centrada no triângulo Departamento de Estado, Defesa e Executivo, mas sim na hierarquia. Ao passo que as lideranças desses três ramos acreditavam que as medidas eram efetivas, os responsáveis diretos pela sua aplicação e verificação já podiam notar a sua ineficiência. Essa contradição afetou diretamente o desenvolvimento da política externa estadunidense para Cuba naquele momento, já que a falha na cadeia de comunicação (feedback) comprometia qualquer correção de rumo. O fracasso inicial da pressão econômica não pode ser entendido isoladamente. Ele está ligado à eficiência duvidosa das outras iniciativas organizadas pelo governo estadunidense, como a propaganda, por exemplo. O componente essencial do plano de mudança do governo cubano era fazer com que o próprio povo de Cuba fosse o instrumento da mudança. Para provocar a sua mobilização, era necessário apresentar os Estados Unidos como um parceiro, interessado no desenvolvimento da ilha caribenha. E 21

“As you pointed out, it does not appear that our present course of action will bring the effective results we desire. The present plan is based on the assumption that the Cuban people would rally to anticommunist forces in sufficient numbers to bring about a change in government. Communist security tactics, such as creating a people’s militia, and the continued support of Castro by a majority of Cubans, block the success of planned actions. Thus, it appears to be time to take another hard look at our plan.If our present plan now seems to be doomed to failure, then what must be done for success?” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States ,Government Press, 1991, p. 1115). 22 “The Cuban economy as a whole continues to deteriorate, but is not yet close to the point where the stability of Castro regime is jeopardized” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1172).

era imperativo enfraquecer a força que a retórica antiamericana Castrista possuía sobre as classes mais baixas. Para que isso se tornasse possível, o Departamento de Estado formulou uma série de estratégias, descritas em detalhes no memorando de Abbott Washburn 23 para o embaixador Phillip Bonsal: Nós reconhecemos realisticamente que este esforço expandido de informação pode representar no máximo uma pequena parte da totalidade de influências em jogo na complexa situação cubana. Mas descrever o procedimento passo a passo é necessário: (1) manter uma imagem clara dos EUA o quanto for possível diante do povo cubano, já que se vive em uma época em que Castro tem constantemente retratado os EUA como a fonte da maior ameaça para Cuba. 24

Washburn prossegue: (2) Manter e aumentar a simpatia que os cubanos, como indivíduos, têm pelos EUA; (3) evitar deixar um vácuo que pode vir a ser preenchido por extremismo comunista ou ultranacionalista; (4) prover com ainda mais material o estoque já disponível que documente os perigos do comunismo. 25

Washburn indicava que todo material, que envolveria propaganda em jornais e na televisão cubana, mais a organização de exilados e de americanos influentes antiFidel, custaria algo em torno de US$ 200.000. Esses recursos seriam geridos pela United States Information Agency (USIA), que era subordinada ao Departamento de Estado e se dedicava à promoção dos valores americanos ao redor do mundo. Sobre o caráter da USIA, comenta Nancy Snow: Considero a USIA um instrumento de relações públicas da propaganda corporativa que “vende” a história da América no exterior integrando interesses comerciais com objetivos culturais. Do mesmo modo que a Comissão Creel persuadiu a população americana durante a Primeira Guerra Mundial a aceitar sem questionamento uma guerra total contra a Alemanha e o povo alemão, a USIA utiliza a guerra psicológica para promover a

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Diretor Adjunto da Agência de Informação dos Estados Unidos. “We recognize realistically that this expanded information effort will at best be but a small part of the totality of influences at play in the complex Cuban situation. But the step-up is necessary: (1) to keep as clear a US image as possible before the Cuban people at a time when Castro has increasingly portrayed the US as the source of the greatest threat to Cuba” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 774). 25 “(2) to maintain and increase the friendship Cubans as individuals hold for the US.; (3) to avoid leaving a vacuum for Communist and ultra-nationalistic extremism to fill; (4) to provide an increased suply of readily-available material documenting the dangers of Communism” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 774). 24

superioridade da livre empresa norte-americana, a expansão dos interesses comerciais no exterior... (SNOW, 1998. p. 40).

Outra medida que já estava pronta para ser efetivada era a construção de uma estação de rádio em Swan Island, que deveria ter programação transmitida pela oposição sediada em Miami, mas com textos feitos pela USIA. 26 Em um encontro do NSC, novas medidas foram aprovadas. Como a compra de espaço em rádios da Flórida para a transmissão de programas contra Castro, bem como a montagem de outra estação de rádio de 500 KW, para a transmissão de programação semelhante. Existiram também algumas propostas que foram julgadas inadequadas, ou pelos altos custos ou pela falta de efetividade. Uma delas foi a de se transmitir programação de TV estadunidense através de um avião que decolaria de Key West todo o dia. Eisenhower e Allen Dulles se mostraram bastante irritados com a proposta, pois temiam que tal ato iniciasse uma “guerra rádio-televisiva” no ocidente. Eles também temiam que essa agressão fosse muito explícita, passando dos limites de discrição impostos pelo governo para esta operação.27 Allen Dulles ainda chegou a sugerir que a transmissão de jogos de beisebol poderia ser produtiva para a divulgação do modo de vida americano, tendo em vista que os cubanos são fãs do esporte. Complementou, ainda, que notícias pró-americanas poderiam ser passadas nos intervalos dos jogos. Douglas Dillon e Richard Nixon debocharam da sugestão de Dulles e o vice-presidente afirmou que aquilo não era um programa “digno de um americano”.28 A ideia de qualquer espécie de transmissão de TV seria abandonada a partir daí. A investida de propaganda não deveria se restringir somente a Cuba, mas envolver toda a América Latina. Era necessário ganhar o apoio dos demais países do continente, visando medidas mais fortes contra a ilha caribenha na ONU e na OEA. Roy Rubottom, em correspondência para Phillip Bonsal, explica a importância desse projeto: É, portanto, essencial para os Estados Unidos, utilizando-se da maior discrição, ter um papel ativo em levar os fatos para ao resto do hemisfério; caso contrário, nós não podemos esperar que as outras repúblicas americanas vejam a situação sob a mesma ótica que a nossa. 29 26

FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 851. FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 894. 28 FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 895. 29 “It is,therefore, essential that the United States, using the utmost discretion, play an active role in getting the facts to the rest of the hemisphere; otherwise we cannot expect the other American Republics to see the situation in the same light as we do” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 932). 27

Rubottom ainda enfatizava que o esforço da embaixada em Cuba seria vital, pois ela era a responsável natural em prover as informações necessárias para que o governo americano pudesse apresentar ao continente um retrato mais adequado à sua percepção do regime cubano. A partir dessa percepção, novos aliados poderiam ser angariados para o apoio político e diplomático. Por fim, a última menção, na documentação, aos esforços de propaganda era uma informação dada por Allen Dulles em um encontro com o presidente, onde ele avisava que a estação de Swan Island já estava em pleno funcionamento. De acordo com as suas fontes na CIA, o sinal só estava um pouco ruim em Havana, devido ao excesso de rádios na região. Mas ele afirmava que no resto do país o sinal estava perfeito, e que a transmissão por rádio era a melhor forma de os objetivos serem atingidos.30 Porém, a utilização de propaganda que enfatizava os valores estadunidenses, visando conquistar corações e mentes em Cuba, trazia consigo um interessante paradoxo, comentado por Michael Allen: Se apela constantemente aos valores estadunidenses para justificar e legitimar decisões ou tomadas de posição. Inclusive, aqueles que defendem uma postura crítica contra o governo dos Estados Unidos invocam os valores estadunidenses, se bem que é para ressaltar suas incoerências ou hipocrisias... O mundo abriga grandes expectativas sobre os Estados Unidos precisamente porque ele encarna uma ideia de liberdade e democracia a um nível de exigência ética que habitualmente não se poderia esperar que predominasse na tarefa de construção de um Estado no cenário internacional (ALLEN, 2003, p. 54).

A propaganda poderia ter sido um meio efetivo para a cooptação dos cubanos e para se angariar a simpatia de aliados. Contudo, a conquista de suporte substancial das Repúblicas Americanas às medidas estadunidenses contra Cuba estava condicionada a uma intensa coordenação diplomática. O Departamento de Estado sabia que os Estados Unidos estavam em baixa ao sul do continente e que a maioria dos governos latinoamericanos adotava uma postura ambígua diante de Castro, não demonstrando abertamente a sua ojeriza pelo ditador, visando não gerar tensões com a esquerda nacionalista.

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FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1058.

A situação era tão delicada que Livingston Merchant, em reunião com os Chefes do Estado Maior Conjunto, disse ser realmente necessário “um escalpe, e não um machado de cortar carne”.31 O que ele queria passar para os militares, sendo o responsável pela ligação entre a Casa Branca e o JSC, era que uma ação militar unilateral forte por parte dos Estados Unidos não seria exatamente uma opção naquele momento. Assim, era possível conter os notórios ímpetos mais belicistas, que pudemos observar desde 1958. Os diplomatas responsáveis pela busca de apoio no continente sabiam que era vital um bom trânsito com três países: Brasil, Argentina e Canadá. A diplomacia estadunidense tinha consciência que com o peso desses três na OEA, qualquer ação contra Castro seria validada dentro das regras estabelecidas no sistema interamericano. E uma ação forte, referendada por uma organização multilateral de peso, era uma vantagem moral da qual os Estados Unidos não queriam prescindir.32 Em um memorando que o Secretário de Estado escreveu para o embaixador em Cuba, pedindo para a chancelaria do Brasil e da Argentina realizarem um papel de mediação junto a Castro, Christian Herter destacou que os dois eram “muito influentes”33 e pediu para que o embaixador Bonsal fosse pessoalmente agradecer a ajuda prestada. O Secretário estava impressionado com uma discussão ao vivo na televisão cubana, onde Castro brigou com o representante diplomático espanhol, deportando-o com o programa ainda no ar. Os homens do Departamento de Estado acreditavam que boas relações com o Brasil poderiam ser decisivas para carregar o apoio do resto da América Latina. Vasco Leitão da Cunha, o embaixador brasileiro em Cuba, estava em constante contato com Phillip Bonsal. E a sua percepção do problema o aproximava dos Estados Unidos, como mostra o memorando de uma conversa entre ambos: O embaixador brasileiro comparou a atitude cubana em relação aos Estados Unidos com a de uma criança que se volta contra seus pais ou professores, e que no final, somente destruiria o que ela tem de mais valioso. Essa teoria pode ser apoiada também pela observação dos líderes cubanos, que apesar de sua inteligência, são imaturos e inexperientes como crianças brincando com

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FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 732. Para um aprofundamento maior da importância da vantagem moral nas relações internacionais, bem como dos meios de obtê-la, ver WIGHT, 2002, cap VIII. 33 FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 766. 32

armas de fogo. Ele afirmou que a situação exige uma abordagem psicanalítica.34

Tal abordagem deixava o Departamento relativamente animado, vindo ao encontro do pensamento de certos ramos ideológicos da diplomacia estadunidense. A pedra no caminho da melhoria das relações e da busca de um apoio brasileiro mais efetivo era a fria recepção que o governo americano deu para a Operação Pan Americana, do presidente Juscelino Kubistchek. O diplomata Henry Ramsey comenta o assunto dessa forma: Seria útil para reparar as nossas relações danificadas com o Brasil, por causa da Operação Pan Americana, e poderíamos lançar algo que possa ser feito com tempo, colocando o problema do desenvolvimento em um contexto hemisférico e multilateral. Isso iria permitir ao Brasil exercer influências moderadoras em Cuba.35

O governo Eisenhower pouco considerou seriamente a possibilidade de dar ênfase a uma política desenvolvimentista e de apoio hemisférico. Não fazia parte do ideário republicano para a América Latina este tipo de estratégia ou suporte, mesmo que em certos setores do Departamento de Estado ainda existisse um apreço pela política de “boa vizinhança” e uma cooperação hemisférica mais intensa. Porém, ao final do mandato e com o crescente distanciamento da América Latina, o governo percebeu que uma nova orientação teria sido necessária, mas já não havia tempo para uma reversão de curso tão severa. Foi uma tarefa solenemente conferida à próxima administração (IMMERMANN, 1990). Outro interlocutor estadunidense foi o embaixador argentino em Cuba, Júlio Amoedo. Ele teve um encontro com diplomatas cubanos buscando alguma possibilidade de acordo ou de uma retomada de negociações com os Estados Unidos. Amoedo enviou comentários que sugeriam o seguinte:

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“Brazilian Ambassador linkened Cuban attitude toward US to spite of a child against parent or teacher against which could lead him even to destroying his prized possesssions. This theory was further supported he believed by observation that present GOC leaders, however naturally intelligent, are immature, inexperienced and like children playing with fire arms. Situation he feels calls for psychoanalythical approach” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 768). 35 “It would repair our somewhat strained relations with Brazil regarding Operation Pan-America and launch something which must be done be done in time, placing the development problem in a hemisphere and multilateral context. This would permit Brazil to exert moderating influences on Cuba” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 799).

Para os EUA, ser uma vítima dos excessos e dos abusos de Cuba era a melhor forma de superar a predisposição dos países latino-americanos de apoiar a fraca República americana contra o poderoso EUA. 36

Amoedo complementava afirmando que era sábio para a política estadunidense manter um curso mais paciente, evitando providências mais duras e voltadas para o uso da força. Isso, na verdade, somente robustecia o discurso já defendido pelo Departamento de Estado, onde se pregava pressão contra Cuba, mas sem abusos no recurso às armas. Porém, o incipiente suporte de Brasil e Argentina acabou não se configurando, pois os dois países passavam por um ano eleitoral e as necessidades da política interna impediam uma efetivação dessa aproximação, afora outras questões de cunho sociopolítico que envolviam o relacionamento dos dois países naquele instante. De outro lado, México e Canadá, por questões de estratégia continental, não apoiavam as medidas de pressão econômica contra Cuba, as quais julgavam excessivas. Com o passar do tempo e a ausência de um suporte diplomático formal, o governo estadunidense começa a demonstrar, em suas discussões internas, o seu descontentamento com a situação. O Departamento de Estado buscava respostas para entender esse abandono, de certa forma inesperado, de toda América em relação às atitudes que os Estados Unidos pretendiam tomar contra Cuba. Um memorando escrito pelo Secretário Assistente de Estado resume bem as motivações em cada país para essa negativa diplomática: Para a conversa com o presidente, tem de ter sem sombra de dúvida em mente que o México é simplesmente incapaz de qualquer raciocínio sobre o problema cubano sem remeter à revolução que ele mesmo realizou. Já o presidente brasileiro, que demonstrou desejo de participar em projetos deste Departamento, precisa ser julgado nos termos da política doméstica brasileira e no desejo do presidente Kubistchek, que está apoiando o Marechal Lott, visando minimizar a visita do candidato Jânio Quadros a Cuba na primavera passada. Além do mais, de acordo com os relatórios recentes do Subsecretário Merchant, está claro que os canadenses são incapazes de entender o problema cubano à luz da verdadeira ameaça que ele representa. 37 36

“For US to be “victim” of Cuba’s excesses and abuse was best way he thought to overcome Latin American predisposition to side with weak American republic against powerful” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 847). 37 “For a discussion with the President, you will be undoubtedly bear in mind that Mexico is simply unable to assess the Cuban problem in any terms except her own revolution. The brazilian President, if he has envinced a willingness to participate in a good offices effort, must be judged in terms of Brazilian domestics politics and the desire of President Kubischek, who is back Marshall Lott, to offset the effects of candidate Janio Quadros’s visit to Cuba last spring. Moreover, in view of Under Secretary Merchant’s recent reports, it is clear that the Canadiens are unable to see the Cuban problem in its truly menacing light” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991.p. 1027).

Essa pretensa incompreensão da ameaça que Castro representaria para a América Latina deixava, não somente o Departamento de Estado bastante desgostoso, mas também o próprio presidente Eisenhower. Em uma reunião na Casa Branca, ele até mesmo afirmou que era “impossível ter o apoio de vinte países que viviam com governos instáveis”.38 Assim, ao atribuir o termo “instável”, Eisenhower desqualifica imediatamente o contexto e as opções políticas de cada país, reforçando o velho estereótipo anglo-saxônico sobre a “irracionalidade latina”. A falta de apoio do Canadá, um vizinho rico e membro da OTAN, consternava ainda mais o governo estadunidense. Os canadenses se recusavam a congelar o dinheiro cubano depositado em seus bancos e não pensavam em retirar as suas empresas de Cuba, o que levou o Secretário do Tesouro americano a afirmar que ninguém no governo canadense entendia de América Latina. 39

Os diplomatas estadunidenses

também atribuíram tal postura ao desconhecimento do que realmente representava a questão cubana no xadrez da Guerra Fria. Desmond Morton explica o ponto de vista canadense neste momento: Os intelectuais canadenses deploravam a caça aos comunistas promovida pelos políticos americanos, e os diplomatas canadenses se preocupavam com a agressividade da política externa norte-americana... A ansiedade cresceu porque os policy makers dos Estados Unidos necessitavam convencer os seus aliados e seus inimigos de que eles iriam, de fato, arriscar o holocausto nuclear para defender os interesses dos Estados Unidos (MORTON, 2001, p. 267).

A maioria dos países do bloco ocidental percebia os eventos em Cuba como um problema dos Estados Unidos e não como uma ameaça direta do comunismo. Naturalmente, essa postura se modificaria com os eventos a partir de 1961 e com a efetivação da união entre Cuba e os soviéticos. Mas, em 1960, os Estados Unidos não conseguiram persuadir, diplomaticamente, as nações do seu bloco, e isso deixou o governo Eisenhower engessado em termos de alguma medida mais forte. Em outros termos, o suporte diplomático, que era um dos pilares do plano de remoção de Castro, havia falhado. Já que os outros países percebiam os eventos na ilha como um problema estadunidense, caberia aos Estados Unidos, unilateralmente, 38 39

FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1086. FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1013.

resolver o impasse. A questão agora era se o apoio norte-americano para isso seria de maneira explícita ou secreta. Era da concordância da Casa Branca e do Departamento de Estado, que a mudança de regime deveria ser realizada pelos próprios cubanos, com auxílio material e logístico secreto dos Estados Unidos. 40 A pressão econômica e a propaganda tinham como objetivo minar Cuba por dentro, fazendo com que o tecido social se desintegrasse, criando as condições necessárias para a queda do regime de Castro. Havia também duas iniciativas que estavam sendo realizadas fora da ilha e com forte apoio estadunidense. Uma era a montagem de um grupo político de oposição, baseado nos exilados de Miami, visando a montagem de um novo governo. A outra consistia no treinamento de mais de mil tropas paramilitares de exilados, visando uma invasão armada da ilha. O objetivo era que esse grupo, bem treinado e equipado, apenas desse o golpe final em um governo pretensamente desgastado politicamente, que cairia com facilidade diante do descontentamento do “povo cubano”. Essas tropas estavam sendo treinadas pela CIA na Guatemala, e o governo estadunidense desejava o seu uso o mais rápido possível (BANDEIRA, 1998, p. 242-243). No que dizia respeito à criação de uma oposição forte no exílio, os problemas eram os mais diversos. Desde a fraqueza ideológica e a falta de cooperação entre os diferentes partidos, até a ambição de antigos membros do gabinete de Batista de retornarem ao poder. A dificuldade inicial que se levantava já era relativa ao tipo de atividade que esses exilados realizavam na Flórida. Desde 1959, esses novos moradores estavam criando sérias dificuldades ao serviço de imigração dos Estados Unidos. Até mesmo os cubanos mais ricos se dedicavam a atividades ilícitas como jogo, tráfico de drogas e voos clandestinos para bombardear Havana. A sugestão dada pelo governo para o Departamento de Justiça foi a de que eles deveriam ser deixados em paz, pois eram muito úteis para as finalidades estadunidenses num futuro próximo. As atividades criminosas geravam um desgaste maior com o governo estadual, e os voos provocavam seguidos incidentes diplomáticos entre Cuba e os Estados Unidos (BANDEIRA, 1998, p. 242-243). Em uma carta para o Almirante Arleigh Burke, Livingston Merchant explica porque era necessário suportar os “modos” dos imigrantes: 40

FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1049.

A não ser que ocupemos Cuba militarmente por tempo indefinido, a única solução para o problema cubano é a emergência de uma liderança cubana sequiosa e capaz de governar o país de acordo com os moldes consistentes com a política básica dos Estados Unidos para a América Latina. E isso ainda vai levar tempo.41

Seguindo a lógica política da conjuntura, é possível entender a proposição de Merchant para Burke. Apesar da tentação de resolver o problema em curto prazo, utilizando-se da poderosa máquina de guerra estadunidense, o preço em vidas americanas e a incerteza do sucesso eram grandes demais para uma ação tão ousada. O exemplo de Suez ainda era bastante vivo nos diplomatas e militares estadunidenses. Dessa forma, tolerar os modos pouco polidos dos exilados era apenas um pequeno preço a ser pago, diante da estratégia que em tese seria a correta. Outro ponto bastante pertinente é sobre o caráter dessa oposição. Qual era a sua base social e política? Quem eram os partidos? Eram eles confiáveis, compatíveis com as políticas americanas? Um relatório feito pelo Departamento de Estado visava a responder essas perguntas: a) o novo governo deve ser uma coalizão de vários grupos de oposição, de uma unidade bastante frágil, principalmente de centro ou de esquerda e fortemente nacionalista em sua orientação política. Contudo, o futuro governo vai trabalhar com os EUA para trazer estabilidade social, econômica e política. b) Por causa do vasto apoio que muitos dos programas e objetivos do governo Castro possuem, as políticas proclamadas pelo novo governo serão variantes desta – porém, as medidas iniciais implementadas vão provavelmente ser mais responsáveis e calculadas para provocar uma menor objeção dos EUA.42

O governo estadunidense desejava que um novo regime cubano fosse capaz de criar uma classe média liberal no país, que seria o sustentáculo de um regime democrático e aliado dos Estados Unidos. A Casa Branca também sabia que buscar 41

“Unless we were indefitely to occupy Cuba militarly, the only solution to the Cuban problem is necessarily the emergence of a Cuban leadership willing to and capable of governing the country along lines acceptable to the Cuban people and along lines consistent with basic US policy to Latin America” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 838). 42 “a) The new government is likely to be a coalition of various opposition groups, or fraigile unity, left of center and strongly nationalistic in political orientation. It will, however, be willing to work with the US in bringing about political, social, economic and financial stability. B) Because of the widespread support enjoyed by many of the objectives and programs of the Castro government, the proclamed policies of the new government will be variants of these – although initial measures of implementation will probably be more responsible” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1066).

ajuda nos antigos asseclas de Batista era algo impensável, por isso seria necessário lidar com forças de esquerda mais moderadas, embora essas não fossem o tipo de elite política percebida pelos norte-americanos como ideal para governar o país. Por elite política e econômica, podem-se entender homens de negócios de alto escalão e outras profissões geralmente ligadas às classes mais abastadas de uma nação. Nancy Snow explica a lógica inserida na escolha dessa elite: ... a elite culta se encontra na melhor posição para traçar e influenciar a política pró-América em seus respectivos países. Que dizer da maioria da massa, daqueles 80 a 90% que o jornalista Walter Lippmann chama de ‘o confuso rebanho’? Espera-se que apenas leve adiante o programa e não se incomode com a tomada de decisão política ou econômica (SNOW, 1998, p. 48).

Organizar a oposição cubana exilada se mostrava uma grande dificuldade. Existiam muitos movimentos sem expressão, que mais atrapalhavam do que ajudavam por suas minúcias ideológicas. O principal movimento oposicionista era a Frente Revolucionária Democrática (FRD), que possuía uma agenda social não muito radical e era claramente um movimento anticomunista. Contudo, as informações colhidas em Miami não foram muito animadoras, pois o movimento estava minado por brigas internas e pela vaidade pessoal do líder Antônio de Varona. Por fim, a Frente foi caracterizada pelo Departamento de Estado como “inerte”, não conseguindo sequer iniciar um programa de sabotagem contra o governo de Castro. 43 Outro grupo considerado de peso estava no Movimento Revolucionário do Povo (MRP), que tinha como slogan o seguinte mote: “fidelismo sem Fidel”. O que na verdade o grupo contemplava era o retorno da “democracia”, com a mudança da economia, seguindo alguns dos princípios de Castro. De acordo com os diplomatas norte-americanos, o Movimento desejava uma forte presença estatal, mas sem excluir o capital privado. Outra vantagem percebida foi que a maior parte dos correligionários ainda estava lutando em Cuba, o que lhes daria um maior conhecimento da situação. Contudo, os relatórios da embaixada em Havana informavam que esses guerrilheiros opositores sofreram severas baixas, o que poderia comprometer a sua causa no médio prazo.44

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FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1155. FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1155

Outros partidos oposicionistas, como o Movimento 30 de Novembro, o Bloco de Organizações Anticomunistas Cubanas e a Ação Cívica Anticomunista, eram vistos como muito incipientes em sua capacidade de ação e difusos em seu caráter ideológico. Eram movimentos cujas intenções nem mesmo o Departamento de Estado possuía plena ideia e a plataforma de alguns deles se mostrara incompatível com as metas que os Estados Unidos pretendiam atingir na ilha. Portanto, foram rapidamente descartados como alternativa viável. A perspectiva do surgimento de uma oposição política forte em Cuba parecia cada vez mais nebulosa, conforme chegava o fim do governo de Eisenhower. Além das dificuldades anteriormente relatadas, ainda existia uma série de problemas legais, tais como o reconhecimento de um governo no exílio, bem como a sua devida representação na ONU e na OEA. Não bastasse isso, os relatos da embaixada em Havana davam conta de que Castro consolidava cada vez mais o seu poder na ilha, deixando pouca margem para o florescimento de um novo movimento. Também se levava em consideração que, apesar da popularidade de Fidel ter diminuído desde janeiro de 59, ela era ainda muito alta, especialmente nas camadas populares.45 A conclusão do Departamento de Estado nos últimos dias da administração Republicana era que a oposição não tinha a menor chance de derrubar Castro naquele momento. Seria necessário continuar a pressão e, mesmo assim, esperar resultados de médio e longo prazo.46 Enquanto a oposição não estava pronta, o grupo de paramilitares destinados a ser o braço militar da ação política na retomada de Cuba estava sendo treinado a pleno vapor. Vale relembrar que a organização dessa força ficou por conta da CIA, mas, como todo planejamento relacionado a Cuba, a responsabilidade era dividida com o Departamento de Estado, que era informado sobre o projeto constantemente.47 Desde que a ordem de derrubar o regime cubano fora dada pela Casa Branca, ao final de 1959, o uso de força militar era contemplado. O plano inicial formulado pelo JCS está explicado da seguinte forma:

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FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1185. FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1185 47 A parte da operação da remoção de Castro que estava sob comando da CIA foi chamada de “Project Clean up”, com um orçamento estimado em US$ 28 milhões. Ver BANDEIRA, 1998. 46

Sob estes planos está antecipado que as forças utilizadas podem ser dos Estados Unidos em conjunto com outras nações ou forças estadunidenses podem ser utilizadas unilateralmente. Os planos visam, em uma instância, que somente força naval e os Marines serão usados, com a marinha provendo suporte anfíbio e os Marines a força terrestre. Em outra instância, está planejado que todos os serviços militares dos EUA utilizarão suas forças, com a marinha provendo uma força tarefa, os Marines ficariam com a força de desembarque anfíbio, bem como a Força Aérea e os paraquedistas do Exército. Esse plano pode entrar em ação em poucas horas. 48

Também estava previsto no plano um bloqueio naval à ilha, que demoraria algo em torno de 24 horas, de acordo com o Comando da Frota do Atlântico. Apesar da estratégia já estar montada e ser tentadora pela possibilidade de uma solução rápida, politicamente não era viável. Como foi possível verificar, não existia apoio diplomático para uma ação militar direta dos Estados Unidos contra Cuba. E não existia, também, suporte interno, ainda mais para um governo em fim de mandato. Uma guerra em ano eleitoral poderia ter efeitos desastrosos nas eleições de 1960. Dessa maneira, a solução intermediária foi entregar à CIA a montagem de um grupo paramilitar de exilados cubanos, que seria treinado por militares estadunidenses. A função deste grupo paramilitar era espalhar focos de resistência em toda Cuba, colaborando para dar o golpe final contra o regime de Fidel Castro. O grupo 5412 havia estipulado, em março de 1960, que seriam necessários 6 meses para que os paramilitares estivessem prontos para agir.49 Os cálculos do grupo se mostraram muito otimistas. Em agosto, somente estava pronto o treinamento de 20 instrutores cubanos, realizado na Escola das Américas, no Panamá. Esses 20 instrutores deslocaram-se para a Guatemala, onde 500 exilados eram treinados com vistas à invasão. Na Guatemala, encontravam-se forças especiais dos Estados Unidos e técnicos da Força Aérea, que ficavam responsáveis pela montagem de toda a estrutura.50 O Secretário de Defesa, Thomas Gates, deixou bem claro que não queria forças americanas na operação de ataque direto, pois os Estados Unidos não poderiam estar 48

“The plan envisage, in one instance, that only and Naval and Marine forces would be used with the Navy providing amphibious support and the Marines landing forces. Only a few hours would be necessary to implement this Navy-Marine plan. In another instance it is antecipated that all US services wouls provide forces, and the Air Force and Army airborne forces. This plan also can go into effect within a few hours” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p.842). 49 FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 851. 50 FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 851.

imediatamente ligados a qualquer evento do tipo. Isso poderia causar um dano irreparável nas relações com a América Latina. Já Gordon Gray51 discordou e defendeu que tropas estadunidenses deveriam ser utilizadas como reservas, caso o ataque falhasse. Allen Dulles, porém, contemporizou, lembrando que era uma decisão a ser tomada pelo JCS e que ali não era o melhor momento para tal debate.52 Durante o preparo das tropas, acabou vazando para o New York Times a história sobre o campo de treinamento. A notícia teve um forte impacto no continente, gerando uma crise com a oposição guatemalteca e despertando a fúria do governo cubano, que se sentiu bastante ultrajado. A imprensa internacional e a ONU ficaram atentas ao assunto e passaram a cobrar o governo norte-americano. O Secretário de Assuntos Interamericanos, Thomas Mann, comenta o vazamento: Para minimizar o perigo, eu creio que devemos nos mover rapidamente para tirar o foco do nosso treinamento clandestino e outras atividades que temos na Guatemala, e deveríamos transferir as operações para bases dentro dos Estados Unidos. Medidas de segurança mais eficientes seriam possíveis aqui, e outras vantagens operacionais estariam disponíveis da mesma forma. Se essa revelação pública eventualmente der resultado, os EUA deveriam, em meu julgamento, suportar o risco de uma humilhação pública ao invés de uma provável perda do atual governo da Guatemala. 53

A sugestão de Mann de trazer o treinamento para os Estados Unidos foi imediatamente rejeitada pela Casa Branca, por acreditar que o risco de vazamentos era ainda maior em solo norte-americano. Outro fator influente nessa decisão foi que os Estados Unidos não poderiam estar de forma alguma ligados diretamente a essa operação, pelo menos publicamente. E, caso ocorresse algo semelhante em uma base americana, não haveria como negar e a operação seria abortada. O governo Eisenhower foi bastante eficiente em montar uma história para cobrir a falha, mas os meios pelos quais o objetivo foi atingido ainda não estão claros na historiografia do período. De concreto, sabe-se que o treinamento continuou no mesmo

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Assistente especial do presidente para Assuntos de Segurança Nacional. FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1058. 53 “To minimize this danger, I believe we should move promptly to de-emphasize our clandestine training and other activities in Guatemala and to transfer such operation to bases within the United States. Improved security measures would be possible here, and distinct operational advantages would be offered as well. Should public revelation eventually result, the US could, in my judgment, better stand the risk of embarrassing publicity than it could the loss of the present government of Guatemala” (FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991, p. 1123). 52

lugar e que a CIA esperava aumentar o número de tropas para acima de 600.54 Para que isso acontecesse, de acordo com Dulles, um novo campo de treinamento deveria ser construído na América Central, provavelmente na Guatemala. Ao mesmo tempo, os voos do avião de reconhecimento U2 foram autorizados pelo presidente Eisenhower, visando a angariar novas informações sobre os dispositivos de defesa cubanos.55 O U2, aeronave mais moderna de sua época, estava sendo usado com bastante eficiência sobre a URSS, permitindo aos americanos monitorarem até mesmo o potencial nuclear soviético. As primeiras conclusões das análises avaliaram que o exército de Castro crescera consideravelmente, tendo como parâmetro o ano anterior. Já havia inclusive a preocupação com a possibilidade da instalação de mísseis soviéticos, sendo eles nucleares ou não. Essas novas informações aguçaram o sentido de urgência do governo americano. William Pawley, amigo do presidente e de Antônio de Varona, líder maior da oposição, pediam pressa na execução do plano e o aumento no número de paramilitares para 3.000.56 Ambos acreditavam que a janela de oportunidade para uma ação mais forte em Cuba estava se fechando rapidamente. O Departamento de Estado corroborava a ideia, mas entendia que era tarde demais para o governo Eisenhower fazer algo mais sério. Seria tarefa do presidente recém-eleito, John Kennedy, dar sequência aos trabalhos e finalizar a obra iniciada na gestão Republicana.57 Como foi possível perceber, a formulação das medidas que visavam a enfraquecer e derrubar Castro foi bastante heterogênea e exigiram muito dos recursos do Departamento de Estado, tanto no planejamento, como na complexa execução de cada uma das ações em andamento. Contudo, todas elas estavam falhando em dar o resultado esperado no momento em que foram concebidas. Cuba, com o crescente suporte do bloco oriental, resistia ao embargo econômico estadunidense, principalmente ao corte do acesso ao mercado norte-americano de açúcar. As iniciativas no campo da propaganda apresentavam resultados inconclusivos, a despeito do alto investimento que receberam. Castro, conforme se consolidava ainda mais no poder, ficava cada vez mais hábil para controlar o fluxo de informações dentro 54

FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: 56 FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: 57 FRUS. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: 55

United States Government Press, 1991, p. 1123. United States Government Press, 1991, p. 1093. United States Government Press, 1991, p. 1127. United States Government Press, 1991, p. 1176

de seu próprio país. O suporte diplomático das Américas, tão útil para reafirmar uma liderança estadunidense no continente e dar legitimidade a uma ação militar contra Cuba, estava absolutamente esvaziado. A imagem desgastada dos Estados Unidos, diante do conhecido “descaso” com o continente no pós Segunda Guerra, havia diminuído o interesse de muitos dos países latino-americanos em uma aliança incondicional. O complexo contexto interno dessas nações, especialmente a sua relação com as forças de esquerda, deixavam governos temerosos de participar de uma empreitada contra um regime que era popular entre muitos setores da esquerda na América Latina. A oposição cubana, apesar dos intensos esforços do Departamento em buscar um grupo sólido e coerente com as ideias estadunidenses, era dispersa e bastante débil. O próprio governo estadunidense reconhecia que mais tempo seria preciso para a devida maturação de uma força política de oposição que tivesse reais condições de um embate com Castro pelo poder em Cuba. Sobrava como uma espécie de “solução milagrosa” o uso da força de invasão paramilitar. Mas até mesmo esse recurso encontrava-se com efetivos inferiores ao necessário e o seu treinamento estava atrasado. Sem contar as inúmeras incertezas sobre o plano de desembarque e o uso de tropas americanas na operação. John Kennedy acabaria pagando, em 1961, pelas dúvidas e falhas de 1960. A questão de Cuba havia se tornado um verdadeiro nó górdio para a administração Eisenhower. Apesar do desaparecimento do ambiente de severas discordâncias entre os diferentes setores governamentais, que marcaram os anos de 58 e 59, os resultados foram inferiores aos obtidos anteriormente. Se o caminho já trilhado era duvidoso, pelo menos foi fruto de um sério debate de variadas percepções sobre a política externa dos Estados Unidos, que gerou os melhores resultados possíveis no momento. Porém, um ambiente de menor atrito e concordância quase absoluta gerou uma série de projetos falhos, que comprometeram seriamente a capacidade dos Estados Unidos de atingirem seus objetivos em relação a Cuba. Esse fator, somado aos problemas internos e externos enfrentados pelo governo norte-americano naquele estágio da Guerra Fria, redundou no fracasso da derrubada de Castro ainda em 1960, como era o desejo de Eisenhower.

Por fim, o que fica evidente é a falta de entendimento sobre a realidade latinoamericana no momento, por parte da maioria do alto escalão governamental estadunidense. Também se pode perceber que a retomada conservadora do governo Eisenhower levou a busca de soluções anacrônicas, que foram insuficientes para a execução de um plano efetivo. E, paradoxalmente, um ambiente de entendimento entre os diferentes setores governamentais acabou por gerar uma política que era, ao mesmo tempo, tudo e nada. Não era militarista o suficiente (“jacksoniana”) e nem idealista (“wilsoniana”) o bastante. Diz-se usualmente que a virtude está no caminho do meio. Neste caso, o caminho do meio foi, talvez, o que acabou sendo o calcanhar de Aquiles do planejamento estadunidense.

Referências bibliográficas: ALLEN, Michael. Los valores de Estados Unidos. Vanguardia Dossier : número 7, 2003. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. De Martí a Fidel: A Revolução Cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. IMMERMANN, Richard H (org). John Foster and the Diplomacy of the Cold War. New Jersey: Princeton University Press, 1990. KISSINGER, Henry. Diplomacy. New York: Simon and Schuster, 1994. MAURO, Frédéric. História Econômica Mundial : 1790-1970. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. 506 p MORGENTHAU, Hans J. A Política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz. São Paulo: Editora UnB, 2003. MORTON, Desmond. A Short History of Canada. Toronto: McClelland & Stewart, 2001. SNOW, Nancy. Propaganda Inc. vendendo ao mundo a cultura dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1998. WIGHT, Martin. A Política do Poder. São Paulo: Editora UnB, 2002. WRIGHT, Jonathan. The Ambassadors: from Greece to the nation state. London: Harper Press, 2006. Fontes documentais: Foreign relations of the United States. Volume VI, 1958-1960 Cuba. Washington: United States Government Press, 1991.

CAPÍTULO II Perigo vermelho: o anticomunismo em debate na campanha presidencial estadunidense de 1960 Waldemar Dalenogare Neto

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A campanha que colocou John F. Kennedy na Casa Branca, em 1960, foi marcada por uma série de inovações, todas ligadas à popularização da televisão. Com um investimento milionário realizado pelos partidos, a compra de espaços para propagandas políticas no horário nobre acentuou as diferenças entre Kennedy e Richard Nixon, seu oponente que representava a continuidade do projeto do presidente Dwight D. Eisenhower. O anticomunismo foi um dos elementos mais abordados nas duas campanhas. Apesar de ambos os candidatos concordarem que os Estados Unidos deveriam garantir que nenhum caso como o de Cuba se repetisse no continente americano e que a União Soviética deveria ser pressionada para perder influência internacional através da propagação dos ideais dos Estados Unidos, a forma com que o combate ao avanço vermelho no cenário mundial era tratado dentro das campanhas se deu de maneira completamente diferente. Neste artigo, busco analisar como as experiências passadas dos dois candidatos refletiram nos seus programas de governo, nas propagandas presidenciais e nos debates. Para que tal objetivo seja cumprido, não posso deixar escapar uma explicação que será necessária para compreender o andamento do texto. Em 1960, além da tomada de Cuba pelos comunistas estar fresca na memória dos eleitores estadunidense, outro caso ganhava grande repercussão na imprensa americana: a ameaça da China tomar as ilhas Quemoy e Matsu, na época pertencentes a Taiwan. Tal fato fez com que todas as discussões referentes ao anticomunismo na campanha de 1960 jogassem em duas frentes: enquanto a primeira era uma crítica aberta ao temor da União Soviética 58

Mestrando em História no PPG-História da PUCRS.

conseguir instalar novos satélites no continente americano, a outra dizia respeito ao incidente mencionado que envolvia os chineses. Por isto, uma análise das discussões sobre o rumo da política externa dos Estados Unidos no período da campanha deve englobar o caso de Quemoy e Matsu. Para tal, chamo a definição de anticomunismo político estadunidense expressado por Erickson (1987), que abrange não apenas a propaganda no período da Guerra Fria como também a smear campaign59 organizadas em torno do medo de uma dominação e/ou avanço dos ideais soviéticos no continente americano. Isto se torna de fundamental importância para construção deste capítulo, já que trabalho a partir das propagandas e dos debates presidenciais veiculados na televisão. Richard Nixon chegou como franco favorito a eleição de 1960: vice-presidente de seu país durante os dois mandatos de Eisenhower, o republicano buscou montar seu plano de governo apostando na defesa dos ideais defendidos durante os oito anos da administração republicana. Por um longo período, Nixon manteve uma visão positiva da América Latina, que considerava um “território de bons amigos”. Este pensamento começou a tomar outro rumo em 1958, quando, a pedido de Eisenhower, o vicepresidente organizou uma longa viagem pela América do Sul. O objetivo inicial era visitar a Argentina e dar apoio ao presidente Arturo Frondizi, que substituiu o populista Juan Domingo Perón, mostrando que a política dos Estados Unidos para o Cone Sul era apoiar o que a diplomacia americana considerava “novos regimes democráticos” (NIXON, 1962, p. 299). Nixon, porém, visitou todos os países da América do Sul (com exceção de Brasil e Chile) em duas semanas e meia de viagem. Após ser bem recebido em Buenos Aires, o vice-presidente teve discussões acaloradas com estudantes de uma faculdade de Montevidéu. Na Bolívia, Equador e Paraguai, Nixon ouviu gritos de “yanqui go home” ao mesmo tempo em que recebia prêmios e era cumprimentado nas ruas. Em Bogotá, o republicano foi escoltado por um batalhão de policiais que tiveram que usar bombas de gás lacrimogéneo para acalmar uma multidão que levava cartazes dizendo “Morte a Nixon” e “Estados Unidos, deixem a América em paz”. Até mesmo os correspondentes americanos que faziam a cobertura do evento sofreram tentativas de agressão. Durante o seu período na Colômbia, Nixon somente saiu de seu hotel para

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Campanha difamatória.

dois compromissos de agenda. Mais tarde, disse que seria a primeira vez em sua vida política que realmente temeu pela morte (RABE, 2008, p. 100-103). Após ser atacado em Lima, a parada em Caracas seria definitiva para moldar a concepção do que era a América Latina para Nixon. Depois, seu carro ser apedrejado e chutado por uma multidão de pessoas, o vice-presidente por pouco não se feriu quando um vidro de seu carro ser trincado. “Eles não estavam atirando beijos”, disse Nixon para os jornalistas que o acompanhavam. Ao perceber a fúria dos manifestantes e o crescente sentimento de antiamericanismo, o vice-presidente passou a conceber que a América Latina somente poderia ser considerada segura caso os Estados Unidos formulassem um plano para interferir diretamente nos governos, não deixando nenhum espaço para namoros dos líderes latinos com o comunismo (RABE, 2008, p. 104). Os cantos prócomunistas só aumentaram a ira do republicano. Caso chegasse à Presidência em 1960, ele afirmou que não iria dar tanta liberdade aos movimentos de esquerda como Eisenhower fez. Sua principal recomendação ao presidente era a infiltração dos ideais americanos em grandes grupos universitários de toda América do Sul que “aceitassem uma boa gratificação” (AMBROSE, 1987, p. 473-80). As redes de televisão dos Estados Unidos deram ampla cobertura à viagem de Nixon. A reportagem que mostrava cenas do carro de Nixon sendo apedrejado por manifestantes em Caracas gerou grande desconforto no país. Em seu retorno a Washington, mais de dez mil pessoas esperaram o vice-presidente com faixas de apoio. Eisenhower fez questão de receber pessoalmente seu colega e as emissoras de tv cobriram ao vivo o evento. Nos noticiários produzidos pela Universal, o título da matéria em destaque era “Um herói retorna para casa” (RABE, 2008, p. 111). John Kennedy, por outro lado, jamais havia se envolvido de forma decisiva com qualquer assunto relacionado à América Latina. Com uma ascensão meteórica na política estadunidense, o democrata desbancou nomes de peso de seu partido como Lyndon Johnson e Adlai Stevenson para conquistar a nomeação à disputa da Presidência. Como todo bom candidato que pretende desbancar a continuidade de um projeto de governo que estava no poder, JFK trouxe o anticomunismo para o centro da campanha através de declarações em revistas e jornais onde criticava duramente os rumos tomados por Eisenhower durante seu governo. Apesar de nunca ter se envolvido diretamente nas acaloradas discussões do período do Macarthismo no Congresso

americano, Kennedy optou por trazer o medo da supremacia soviética à tona para moldar seu pensamento de que, caso Nixon fosse eleito, a instalação de uma segunda Cuba na América Latina seria evidente. 60

A campanha de 1960: a luta contra uma nova Cuba Com o início da campanha presidencial, a questão da política externa era um dos focos principais de ataques de JFK. Após o lançamento da Sputnik, no dia 1° de outubro de 1957, Kennedy fez um discurso no Senado onde criticava o governo Eisenhower por “deixar o país perder a disputa de satélites e mísseis graças a uma série de confusões e disputas de vaidade”. Melanson (1987) considera que Kennedy conseguiu explorar o medo da superioridade soviética de forma tão eficaz que sua eleição em certo momento parecia a única saída para evitar um desastre maior. O caso conhecido como missle gap - suposta vantagem soviética na corrida de armamentos na transição dos anos de 1950 para 1960 - foi o maior mito criado pela campanha democrata de 1960. JFK e sua equipe sabiam que as estimativas de produção soviética que eles apresentavam ao público eram infladas e, após Khrushchev declarar que a produção de mísseis na união soviética “era tão eficaz quanto à de salsichas”, os democratas passaram a fraudar as estatísticas (DONALDSON, 2007, p. 128). O caso tomou conta das discussões da imprensa: para Nixon, a defesa dos números apresentados por Kennedy era tarefa difícil, já que o histórico de Eisenhower mostrava que a recuperação econômica de que o General tanto se orgulhava passou diretamente pelo corte nos gastos do exército. Nixon também considerava que qualquer tentativa de desmentir os números da produção soviética poderia ser considerada como uma forma de esconder algum tipo de fraqueza sobre o governo Eisenhower. Em agosto de 1960, enquanto Kennedy preferiu propagar suas desconfianças na imprensa escrita, Nixon decidiu levar o caso para uma de suas primeiras propagandas 60

A experiência de Kennedy na área da política externa foi objeto de debates na imprensa estadunidense em 1960. O principal alvo de críticas vinha da amizade da família Kennedy com Joseph McCarthy. JFK não participou da sessão de censura de McCarthy no Senado devido à orientação de seu pai, fato que mais tarde lhe geraria problemas dentro de seu partido. Eleanor Roosevelt, que considerava Joseph “a maior ameaça à liberdade de expressão americana”, negar-se-ia a participar da fracassada tentativa de colocar Kennedy como candidato à vice-presidência pelos democratas, em 1956, por conta de sua indecisão política neste caso e pela desconfiança de que JFK não teria experiência e maturidade suficientes para diferenciar anticomunismo, censura e liberdade de expressão. Para mais sobre o tema, ver CASEY (2008).

políticas na televisão, ao responder se era possível manter a paz no mundo apesar das tentativas de criação de novos satélites comunistas através das iniciativas do SecretárioGeral do Partido Comunista, Nikita Khrushchev. Segundo Nixon: Bem, a verdade é que nós devemos continuar com a paz mundial, e nós podemos, se nós continuarmos mostrando firmeza e força ao mundo comunista. Khrushchev é um homem frio e feroz. Ele se alimenta de fraqueza e dúvidas. E nós nunca podemos cometer o erro de deixá-lo pensar que nós somos fracos. Nós devemos mostrar a ele que nós somos mais fortes no campo econômico e militar, e que nós não vamos ser coagidos, nós não vamos sofrer pressão. Devemos continuar lidando com o comunismo e com os líderes soviéticos não de maneira beligerante, mas com firmeza e sempre com vigilância. 61

Em outra inserção, o candidato republicano continuava propagando o discurso de que era o único capaz de conseguir lidar com Khrushchev. Qual é o problema que mais incomoda os americanos nesta campanha? Não existe nenhuma dúvida sobre a resposta, e eu pude comprovar em minhas viagens pelo país. Principalmente, o povo Americano quer líderes que mantenham a paz na América e no mundo. Henry Cabot Lodge e eu tivemos a oportunidade de trabalhar junto ao presidente Eisenhower nesta questão por sete anos e meio. Nós dois conhecemos o senhor Khrushchev. Nós nos sentamos em lados opostos da sala de conferência com ele. Nós sabemos o que é necessário para a paz. Nós vamos manter os Estados Unidos como a nação mais forte do mundo, e nós vamos manter esta força com uma dura diplomacia – sem desculpas, sem lamentações. Sempre dispostos a negociar pela paz, mas não abrindo espaços para nenhum tipo de concessão em troca dela.62

Enquanto Kennedy utilizava seus espaços na televisão para a veiculação de jingles e promovia discursos de um candidato que se apresentava como a nova cara da política americana, Nixon ainda tratava de fechar as feridas abertas com o caso do

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“Well, the truth is that we must continue to have peace, and we can, if we continue to show firmness and strength to the Communist world. Khrushchev is a cold, hard, ruthless man. He feeds upon weakness and doubt. And we must never make the mistake of letting him think we are weak. We must show him we are strong economically and militarily, that we will not be coerced, that we will not tolerate being pushed around. We must continue to deal with Communism and the Soviet leaders, not belligerently, but firmly, and always with vigilance” (PEACE. Propaganda de Televisão. 1960). 62 “What is the most important issue confronting the American people in this election campaign? There's no question about the answer that I have found in traveling all over this nation. Above everything else, the American people want leaders who will keep the peace without surrender for America and the world. Henry Cabot Lodge and I have had the opportunity of serving with President Eisenhower in this cause for the last seven and a half years. We both know Mr. Khrushchev. We have sat opposite the conference table with him. We know what peace demands. We will keep America the strongest nation in the world, and we will couple that strength with firm diplomacy — no apologies, no regrets. Always willing to negotiate for peace, but never conceding anything without getting a concession in return” (MOST. Propaganda de Televisão. 1960).

missle gap criado pelos democratas. Ainda discutindo sobre sua experiência, o terceiro anúncio de Nixon novamente tinha o comunismo como tema central: O senhor Khrushchev só entende poder e firmeza. Pedir desculpas a ele significa fraqueza. Nosso próximo presidente deve mostrar claramente que os Estados Unidos não vão suportar a pressão de ninguém neste mundo. Enquanto o senhor Khrushchev diz que nossos netos vão viver sob o comunismo, nós devemos dar uma resposta: seus netos é que viverão em liberdade. Quando ele diz que a Doutrina Monroe acabou, nós dizemos que a doutrina da paz deve ser aplicada em todos os lugares do mundo. A única resposta para o comunismo é uma grande ofensiva da liberdade. Liberdade da fome, da doença e a vitória de uma esperança que está em todas as pessoas: liberdade sobre a tirania.63

A insistência de Richard Nixon em abordar assuntos ligados à política externa incomodava os democratas. Enquanto eles pretendiam tratar do assunto somente após os debates presidenciais, cada citação de Nixon a Khrushchev parecia exigir uma resposta por parte de Kennedy. Em um relatório, um assessor de JFK escreveu: “ele (Nixon) está tentando esbanjar seus anos de vice-presidente e tentando convencer o eleitor de que somente ele é experiente” (DOVER, 1994, p. 106).

A chamada “questão da

experiência” foi alvo de discussões em noticiários e artigos em jornais estadunidenses. Mais tarde ela seria levada para a televisão, naquela que foi a maior inovação da campanha de 1960: os debates presidenciais. Considerando que a população estadunidense passava mais tempo assistindo TV do que ouvindo o rádio, a Columbia Broadcasting System (CBS) pressionou o Congresso estadunidense para mudar a legislação e permitir que os dois principais candidatos à presidência pudessem discutir frente a frente os mais variados problemas da nação. Com uma articulação montada pelo líder democrata do Senado, Lyndon Johnson, o Congresso suspendeu a seção 315, somente no período das eleições de 1960. Sendo assim, as redes de televisão apenas tinham a obrigação de convidar os dois principais candidatos daquele ano.64

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“Mr. Khrushchev understands only strength and firmness. To apologize to him just means weakness. Our next president must show clearly that America won't stand for being pushed around anywhere in the world. While Mr. Khrushchev says that our grandchildren will live under communism, we must answer: His grandchildren will live in freedom. When he says the Monroe Doctrine is dead, we say the doctrine of freedom applies everywhere in the world. The only answer to communism is a massive offensive for freedom. Freedom from hunger, from disease, and a victory for the ageless hope of people everywhere: freedom from tyranny” (FREEDOM. Propaganda de Televisão. 1960). 64 Para mais sobre a discussão em torno da criação dos debates presidenciais nos Estados Unidos, ver SCHOEDER (2008).

Assim que os debates presidenciais começaram, a questão da política externa americana mostrava-se como a principal diferença nos planos de governo. Na primeira oportunidade apropriada para abordar os rumos diplomáticos tomados por Eisenhower, Kennedy citou que Nixon deveria dividir o crédito pela perda de Cuba com Eisenhower: Eu tenho sido um crítico das políticas adotadas por esta administração. […] Eu critiquei o senhor Nixon porque, em sua conferência de Havana, em 1955, ele elogiou a competência e estabilidade da ditadura de Batista, responsável pela morte de mais de vinte mil cubanos em sete anos. O que eu critiquei foi a falha desta administração em usar sua grande influência para persuadir o governo cubano e fazer com que eles convocassem eleições diretas, particularmente em 1957 e 1958. Arthur Gardner, um embaixador republicano, e Earl Smith, também embaixador republicano, indicaram nas seis semanas anteriores (a deposição de Batista) que Castro era um marxista, e que Raul Castro era um comunista, mas eles não conseguiram nenhum resultado efetivo. Ao invés disso, continuamos ajudando Batista, o que se mostrou ineficaz. Nunca estivemos ao lado da liberdade. Nós nunca usamos nossa influência quando poderíamos tê-la usado de forma mais eficaz – e hoje Cuba está perdida no quesito liberdade. Eu espero que algum dia ela volte. Mas não acredito que isto vá ocorrer com as mesmas políticas para Cuba que estamos realizando nos últimos anos. Na verdade, isto se aplica também para toda a América Latina – já que estamos ignorando completamente as necessidades deles. Nós não transmitimos um único programa em espanhol para a América Latina durante os últimos oito anos. 65

Defendendo as decisões tomadas pela administração Eisenhower, Nixon optou por expressar que o governo americano diminui o número de ditadores na América Latina nos últimos anos e acusou Kennedy de propagar discursos derrotistas para o país, em uma tentativa de aumentar o medo na população com o monstro chamado Cuba. Bem, eu quero deixar muito claro que eu não concordo quando o Senador Kennedy diz que Cuba é um caso perdido. (Se pensar desta maneira), a China foi perdida quando esta administração chegou ao poder em 1953. Eu vejo Cuba hoje e acredito que nós estamos tomando o caminho certo. Um caminho que é difícil, mas que se mostra, nestas circunstâncias, a única saída para que o povo cubano tenha uma chance de observar suas aspirações de progresso em busca da liberdade, e eles vão conseguir isto com nossa cooperação com outros estados na Organização dos Estados Americanos. Veja bem, o senador Kennedy fez alguns ataques pesados a minha pessoa65

“I've been critical of the Administration's policy. […] I criticized Mr. Nixon, was because in his press conference in Havana in 1955, he praised the competence and stability of the Batista dictatorship - that dictatorship had killed over twenty thousand Cubans in seven years. What I criticized was the failure of the Administration to use its great influence to persuade the Cuban government to hold free elections, particularly in 1957 and 1958. Thirdly, Arthur Gardner, a Republican Ambassador, Earl Smith, a Republican Ambassador, in succession - both have indicated in the past six weeks that they reported to Washington that Castro was a Marxist, that Raul Castro was a Communist, and that they got no effective results. Instead our aid continued to Batista, which was ineffective; we never were on the side of freedom; we never used our influence when we could have used it most effectively - and today Cuba is lost for freedom. I hope someday it will rise; but I don't think it will rise if we continue the same policies toward Cuba that we did in recent years, and in fact towards all of Latin America - when we've almost ignored the needs of Latin America; we've beamed not a single Voice of America program in Spanish to all of Latin America in the last eight years” (CPD, october 7, 1960).

especialmente sobre como eu lidei com Cuba. Ele traz à tona o fato de eu ter visitado Cuba enquanto o senhor Batista estava no poder. Eu só posso dizer que, se nós fossemos jugar as administrações por suas relações com ditadores, eu fico feliz em fazer uma comparação com a administração anterior (Truman). Havia onze ditadores nas Américas quando nós chegamos ao poder, em 1953. Hoje existem apenas três, contando com aquele de Cuba. Achamos que isto é um progresso e tanto. O senador Kennedy também indicou com relação a Cuba que ele considera que eu cometi um erro quando estava lá por não ter convocado eleições diretas naquele país. Fico extremante surpreso que o Senador Kennedy tenha feito um pronunciamento deste tipo. Pra falar a verdade, no seu livro, Strategy for Peace, ele tomou esta mesma posição. E é uma posição que os Estados Unidos têm acordada, que nos proíbe de interferir nas disputas internas de qualquer outro estado e que os proíbe de fazer o mesmo Não, Cuba não está perdida, e eu não acho que estas falas derrotistas do Senador Kennedy vão ajudar em alguma coisa.66

O jornalista Edward Morgan perguntou a JFK sobre o incidente U-2. No dia 9 de abril, um avião americano modelo U-2, utilizado para espionagem, foi abatido por mísseis S-75 Dvina em território soviético. Durante a queda da aeronave, o piloto Francis Gary Powers não conseguiu ativar o botão de autodestruição, e o avião foi capturado pela KGB após Powers se lançar de paraquedas. A CIA orientou Eisenhower a afirmar que o avião era um “experimento meteorológico”, mas não sabia sobre o estado de conservação deste, que, nas palavras de um oficial russo, “era inacreditavelmente impecável, com boa parte dos painéis conservados”. Nikita Khrushchev fez questão de mostrar à imprensa os restos do U-2 e desmentir a teoria americana, indicando que a inteligência russa sabia desde 1956 dos projetos de espionagem dos estadunidenses, mas apenas quatro anos mais tarde conseguiram fabricar mísseis capazes de abater o avião. 67 Durante a sua campanha, Kennedy citou que o governo americano deveria mandar uma carta pedindo desculpas aos soviéticos 66

“Well first of all, I don't agree with Senator Kennedy that Cuba is lost and certainly China was lost when this Administration came into power in 1953. As I look at Cuba today, I believe that we are following the right course, a course which is difficult but a course which under the circumstance is the only proper one which will see that the Cuban people get a chance to realize their aspirations of progress through freedom and that they get that with our cooperation with the other states in the Organization of American States. Now Senator Kennedy has made some very strong criticisms of my part - or alleged part - in what has happened in Cuba. He points to the fact that I visited Cuba while Mr. Batista was in power there. I can only point out that if we are going to judge the Administrations in terms of our attitude toward dictators, we're glad to have a comparison with the previous administration. There were eleven dictators in South America and in Central America when we came in, in 1953. Today there are only three left including the one in Cuba. We think that's pretty good progress. Senator Kennedy also indicated with regard to Cuba that he thought that I had made a mistake when I was in Cuba in not calling for free elections in that country. Now I'm very surprised that Senator Kennedy would have made such a statement as this kind. As a matter of fact in his book, The Strategy for Peace, he took the right position. And that position is that the United States has a treaty - a treaty with all of the Organization of American States - which prohibits us from interfering in the internal affairs of any other state and prohibits them as well. No, Cuba is not lost, and I don't think this kind of defeatist talk by Senator Kennedy helps the situation one bit” (CPD, october 7, 1960). 67 O piloto americano sobreviveu sem ferimentos e foi condenado a três anos de prisão. Em 1962, foi libertado em um acordo de troca de prisioneiros com os soviéticos.

pelo episódio e pelas mentiras. JFK citou que essa forma de correspondência é um ato comum na diplomacia, e que tanto os russos quanto os chineses já adotaram esta prática por incidentes passados e não via motivos para os Estados Unidos não reconhecerem o seu erro. A resposta do vice-presidente seria motivo de controvérsia, pois justificou que a espionagem realizada pelo U-2 era um ato defensivo vinculado à segurança dos Estados Unidos: “Parece-me que todas estas críticas da parte dele (JFK) não tem nenhum fundamento. Todos nós lembramos Pearl Harbor. Perdemos três mil vidas. Não podemos ficar para trás na questão relativa à inteligência”.68 No sábado anterior ao segundo debate sobre política externa, perguntado sobre qual seria sua estratégia para conter os comunistas chineses e defender o governo de Chiang Kai-shek, Kennedy sugeriu traçar a linha defensiva dos Estados Unidos após as ilhas de Quemoy e Matsu, portanto, deixando espaço para o avanço comunista nesta região. Durante o debate, Kennedy disse: Bem, os Estados Unidos passaram boa parte da década de 1950 tentando fazer com que Chiang Kai-shek levasse suas tropas de volta para Formosa. E eu realmente acredito que podemos defender Formosa. Essas ilhas (Quemoy e Matsu) estão a cerca de 10 quilômetros da China comunista e mais de 160 quilômetros distantes de Formosa. Nós nunca garantimos que vamos defender Quemoy e Matsu se elas forem atacadas. Nós dizemos que vamos defender elas como um todo, se acontecer um grande ataque em Formosa. Mas é extremamente difícil falar sobre isso. O senhor (Christian) Herter quando era Secretário de Estado disse que essas ilhas eram estrategicamente indefensáveis. Os almirantes Spruance e Callins, em 1955, disseram que nós não devemos tentar defender essas ilhas na Conferência do Extremo Oriente. O general Ridgway disse a mesma coisa. Eu acredito que, se acontecer uma guerra em Formosa, devemos estabelecer uma linha de defesa bem estratégica. Um dos problemas, para mim, é que ao mesmo tempo em que esta discussão ocorre, há tempos atrás a questão era se a Coréia do Sul deveria ser defendida por nós se ela fosse atacada. Eu acredito que devemos defender Formosa. […] Eu acho que é uma decisão precipitada dar chance para o mundo entrar em uma grande guerra por causa de duas ilhas que são estrategicamente indefensáveis e que não são, de acordo com depoimentos, essenciais para a defesa de Formosa. E eu acho que nós devemos honrar nossos compromissos. Devemos fazer o mesmo em Berlin. 69 68

CPD, october 7, 1960. “Well, the United States, mostly in the middle fifties, tried to persuade Chiang Kai-shek to pull his troops back to Formosa. I believe strongly in the defense of Formosa. These islands are a few miles - five or six miles - off the coast of Red China, within a general harbor area and more than a hundred miles from Formosa. We have never said flatly that we will defend Quemoy and Matsu if it's attacked. We say we will defend it if it's part of a general attack on Formosa. But it's extremely difficult to make that judgment. Now, Mr. Herter in 1958, when he was Under Secretary of State, said they were strategically undefensible. Admirals Spruance and Callins in 1955 said that we should not attempt to defend these islands, in their conference in the Far East. General Ridgway has said the same thing. I believe that when you get into if you're going to get into war for the defense of Formosa, it ought to be on a clearly defined line. One of the problems, I think, at the time of South Korea was the question of whether the United States would defend it if it were attacked. I believe that we should defend Formosa. […] I think it's 69

Kennedy sabia que esta questão seria o principal foco de ataque de Nixon. Afinal, sugerir uma possível entrega das ilhas aos chineses poderia ser considerado como uma posição de fraqueza, com repercussões diretas na América Latina. Robert Kennedy passou dois dias revisando relatórios sobre as ilhas e encontrou depoimentos de almirantes e generais (que foram utilizados na resposta de JFK) para tentar evitar com que a declaração se tornasse arma para os republicanos. Dentro de seu partido, Kennedy enfrentou certa resistência e cogitou-se a possibilidade do senador fazer uma retratação sobre a sua posição. Isso foi prontamente rejeitado pela coordenação de campanha democrata, pois mostraria que o candidato era vulnerável e não tinha conhecimento total da causa. Ainda no segundo debate, Nixon aproveitou para reafirmar seu compromisso com a diplomacia para conter os avanços soviéticos. Eu discordo totalmente do senador Kennedy nesta questão. Eu lembro que no período anterior à Guerra da Coréia também diziam que Coréia do Sul era igualmente indefensável. Foram os generais quem garantiram isto. E o secretário Acheson fez um famoso discurso em um clube, no começo daquele ano, dizendo que a Coréia do Sul estava além da zona de defesa dos Estados Unidos. Eu acredito que ele falou isto porque achava que uma Guerra não poderia acontecer lá. Agora eu vejo esta questão de Quemoy e Matsu e posso dizer que a questão não é se estas duas pequenas nações são importantes. Não é sobre as poucas pessoas que vivem lá – elas também não são importantes para nós. É sobre todo princípio que envolve isto. Estas duas ilhas estão na região da liberdade. Não podemos forçar nossos amigos nacionalistas a sair de lá e entregar estas terras para os comunistas. Se isto acontecer, uma reação em cadeia vai ocorrer. Porque os comunistas não querem Quemoy e Matsu, eles querem Formosa. Em minha opinião isto é tipo de pensamento com a cabeça nas nuvens, igual o que aconteceu no desastre Americano na Coréia. Sou contra isto. Nunca irei tolerar isto como presidente dos Estados Unidos, e realmente espero que o senador Kennedy refaça seu pensamento se chegar à Presidência. 70

unwise to take the chance of being dragged into a war which may lead to a world war over two islands which are not strategically defensible, which are not, according to their testimony, essential to the defense of Formosa. I think that uh - we should protect our commitments. I believe strongly we should do so in Berlin” (CPD, october 7, 1960). 70 “I disagree completely with Senator Kennedy on this point. I remember in the period immediately before the Korean War, South Korea was supposed to be indefensible as well. Generals testified to that. And Secretary Acheson made a very famous speech at the Press Club, early in the year that k- Korean War started, indicating in effect that South Korea was beyond the defense zone of the United States. I suppose it was hoped when he made that speech that we wouldn't get into a war. But it didn't mean that. We had to go in when they came in. Now I think as far as Quemoy and Matsu are concerned, that the question is not these two little pieces of real estate - they are unimportant. It isn't the few people who live on them - they are not too important. It's the principle involved. These two islands are in the area of freedom. The Nationalists have these two islands. We should not uh - force our Nationalist allies to get off of them and give them to the Communists. If we do that we start a chain reaction; because the Communists aren't after Quemoy and Matsu, they're a- they're after Formosa. In my opinion this is the same kind of woolly thinking that led to disaster for America in Korea. I am against it. I would never tolerate it as president of the United States, and I will hope that Senator Kennedy will change his mind if he should be elected” (CPD, october 7, 1960).

Após o fim do debate especifico sobre política externa, Nixon pensava que havia conquistado uma boa vantagem sobre Kennedy. No entanto, o republicano ficou decepcionado ao saber que a imprensa não deu a cobertura desejada sobre a questão da China. Ao longo da semana, o Partido Republicano passou a veicular propagandas nos jornais acusando Kennedy de ser fraco na política externa. As pesquisas pós-debate apontaram empate entre os candidatos: para a maioria dos analistas políticos, Nixon obteve leve vantagem, mas o caso das ilhas não era algo que pudesse fazer o eleitor deixar de votar em JFK, principalmente pelo caso de Cuba. O fato é que a concepção da política externa de Kennedy estava bem definida: não deixar outro satélite soviético se instalar na América Latina deveria ser prioridade para os Estados Unidos. O caso chinês, de que Nixon abordava com tanta firmeza, apenas se referia a um conjunto de ilhas, que, na visão democrata, não acarretaria o impacto para os Estados Unidos do que uma nova Cuba teria em tempos de Guerra Fria. A visível tensão gerada após o final do debate foi utilizada pelos republicanos como arma para a preparação do próximo encontro, no dia 13 de outubro. Pela primeira vez na história, um link direto de boa qualidade com transmissão ao vivo e com atraso muito pequeno foi utilizado na televisão. Irritado com as frequentes perguntas sobre as ilhas chinesas, Kennedy chamou Nixon de trigger happy dois dias antes do terceiro debate presidencial.71 Como esperado, esta foi a primeira questão abordada pelos jornalistas presentes. Nixon lamentou o comentário e lançou o seu principal ataque durante toda a eleição, tentando passar a mensagem de que Kennedy não era um candidato tão centrado como mostrava ser, e que um presidente deve saber medir os esforços, seja para entrar em guerra ou saber negociar através da diplomacia. Eu lamento muito, porque isto parece implicar que os republicanos gostam de guerra, e que colocariam esta nação em um conflito. Eu gostaria de lembrar o senador Kennedy sobre os nossos últimos cinquenta anos. Eu gostaria que ele citasse um presidente republicano que levou este país para a guerra. Ocorreram três grandes guerras neste período (I e II guerras mundiais, e Coréia) e foram três presidentes democratas que colocaram esta nação nelas. Não quero dizer que um partido é o da paz e outro é o da guerra. Mas eu digo que esta acusação de que eu e os republicanos gostamos de guerra é invalidada pela história. Tinha uma guerra ocorrendo quando chegamos ao poder, em 1953. Acabamos com ela, assim como evitamos tantas outras. Isto certamente mostra que não gostamos de guerra.72 71

Sem tradução aproximada no português, Kennedy quis dizer que Nixon, no campo militar, seria um irresponsável e louco por guerras, procurando problemas para autorizar intervenções militares. 72 “I resent it because it’s an implication that Republicans have been trigger-happy and, therefore, would lead this nation into war. I would remind Senator Kennedy of the past fifty years. I would ask him to name one Republican president who led this nation into war. There were three Democratic presidents who led us into war. I do not mean by that that one party is a war party and the other party is a peace party. But

Nixon foi orientado pela sua equipe a levantar a questão das “guerras democratas” já que as pesquisas internas do partido apontavam que o público americano estava inclinado a concordar com o vice-presidente sobre esta questão. Aproveitando o fato de que a questão chinesa iria tomar conta do encontro, o republicano aproveitou e atacou indiretamente Joseph Kennedy, que tentou levar uma visão positiva de Hitler para Roosevelt antes da Segunda Guerra Mundial: Fazer o que foi sugerido pelo senador Kennedy – sugerir que nós vamos render as ilhas ou forçar os nacionalistas chineses a se render de antemão não é algo que vá levar à paz. Vai levar à guerra, na minha opinião. Isso é o que história de negociação com os ditadores mostra. Nós tentamos isto com Hitler e não funcionou. Ele primeiro queria a Áustria, depois queria os sudetos, depois queria Danzig, e a cada pedida parecia que era só aquilo que ele queria. E o que os comunistas querem? Eles não querem apenas Cuba. Eles querem o mundo! E a questão é que se você rende ou indica com antecedência que você não vai defender uma região do mundo livre, e você acha que isto vai lhes fazer felizes, saiba que não, isto não irá satisfazê-los. Só aumenta o apetite.73

Kennedy sabia que estava sofrendo um pesado ataque e mediu suas palavras. Geralmente optava por discursos defensivos e, sempre que possível, fugia do assunto sobre as ilhas chinesas. O senador sentiu que a discussão em torno de Formosa poderia denegrir a sua imagem. JFK ainda foi questionado sobre Harry Truman. Na semana anterior ao terceiro debate, o ex-presidente americano havia dito que “aqueles que são do sul e votam nos republicanos podem ir para o inferno”. Kennedy declarou que tudo era uma brincadeira e que não podia falar em nome de Truman. Já Nixon ressaltou o seu orgulho com a postura de Eisenhower, que havia “restaurado a dignidade e decência na presidência americana”. O caso das ilhas chinesas, porém, não era relevante para os eleitores, com mais de 88% destes declarando estarem mais preocupados com Cuba. Sabendo das críticas do

I do say that any statement to the effect that the Republican party is trigger-happy is belied by the record. We had a war when we came into power in 1953. We got rid of that; we've kept out of other wars; and certainly that doesn't indicate that we're trigger-happy” (CPD, october 13, 1960,). 73 “To do what Senator Kennedy has suggested - to suggest that we will surrender these islands or force our Chinese Nationalist allies to surrender them in advance - is not something that would lead to peace; it is something that would lead, in my opinion, to war. This is the history of dealing with dictators. This is something that Senator Kennedy and all Americans must know. We tried this with Hitler. It didn't work. He wanted first Austria, and then he went on to the Sudetenland and then Danzig, and each time it was thought this is all that he wanted. Now what do the Communists want? They don't want just Quemoy and Matsu; they don't want just Cuba; they want the world. And the question is if you surrender or indicate in advance that you're not going to defend any part of the free world, and you figure that's going to satisfy them, it doesn't satisfy them. It only whets their apetite” (CPD, october 13, 1960).

jornal The New York Times, que considerou “um programa cujo tempo poderia ser mais bem aproveitado”, os organizadores do debate seguinte aceitaram fazer Cuba o principal assunto da discussão entre Kennedy e Nixon (BOCHIN, 1990, p. 52). O último encontro, realizado no dia 21 de outubro, teve considerações iniciais e finais de cada candidato. A questão central era: o que fazer com Cuba? Dentro de seu círculo politico, Nixon se mostrava a favor de uma ofensiva contra Castro o mais rápido possível. O vice-presidente tentou argumentar com Eisenhower que a demonstração de força contra um ditador comunista vizinho dos Estados Unidos provaria o comprometimento da administração republicana com o projeto de barrar o avanço “vermelho” nas Américas. Apesar de autorizar o treinamento de exilados cubanos, Eisenhower decidiu deixar a decisão de atacar ou não a ilha para o próximo presidente, já que não queria que seu sucessor encontrasse um caos no primeiro dia de trabalho, como foi seu caso com a Guerra da Coréia. O candidato republicano foi ordenado a esconder do público os projetos para intervenção em Cuba. Com isto, passou o debate inteiro defendendo uma posição na qual ele próprio não acreditava. A campanha de Kennedy se mostrava a favor do treinamento de exilados e de uma intervenção imediata contra Castro. Eu acho que as políticas propostas pelo senador Kennedy sobre como lidar com o regime de Castro são, provavelmente, as mais perigosas e irresponsáveis promessas que ele fez durante a sua campanha. Na verdade, o senador Kennedy recomenda que o governo dos Estados Unidos deva ajudar os exilados e todos aqueles que se opõem ao regime de Castro – considerando também que eles são anti-Batista. Agora, vamos entender o que isto significa. Nós temos cinco tratados na América Latina, incluindo um assinado pela Organização dos Estados Americanos em Bogotá, no ano de 1948, no qual nós concordamos não intervir nas políticas internas de nenhum país das Américas [...] O que eu sei é o seguinte: se nós seguirmos as recomendações (de Kennedy), nós vamos perder todos nossos amigos na América Latina, provavelmente vamos ser condenados na ONU e não vamos conseguir cumprir este objetivo. E eu sei de outra coisa: isto seria um convite aberto para o senhor Khrushchev vir na América Latina e nos colocar em uma espécie de guerra civil nesta região, ou até mesmo algo bem pior que isto.74

74

“I think that Senator Kennedy's policies and recommendations for the handling of the Castro regime are probably the most dangers- dangerously irresponsible recommendations that he's made during the course of this campaign. In effect, what Senator Kennedy recommends is that the United States government should give help to the exiles and to those within Cuba who oppose the Castro regime - provided they are anti-Batista. Now let's just see what this means. We have five treaties with Latin America, including the one setting up the Organization of American States in Bogota in 1948, in which we have agreed not to intervene in the internal affairs of any other American country. I do know this: that if we were to follow that recommendation, that we would lose all of our friends in Latin America, we would probably be condemned in the United Nations, and we would not accomplish our objective. I know something else. It would be an open invitation for Mr. Khrushchev to come in, to come into Latin America and to engage us in what would be a civil war, and possibly even worse than that” (CPD, october 21, 1960).

Nixon assumiu uma proposta que não acreditava para defender o governo de Eisenhower e tentar se promover como um candidato pela paz, como já havia defendido nos outros debates. O vice-presidente ainda acrescentou que as políticas do governo Eisenhower de suspensão de financiamentos e corte de qualquer tipo de relações diplomáticas “devem levar o próprio povo de Cuba a lidar com Fidel Castro”. Por outro lado, Kennedy já sabia sobre o plano de treinamento de exilados, graças aos briefings que fez com o Secretário de Estado, Christian Herter, durante a sua campanha.75 JFK discursou contra o projeto republicano e mostrou-se preocupado com a influência de Cuba na América usando o exemplo da eleição presidencial brasileira de 1960, ao lembrar a simpatia de Jânio Quadros por Castro: Em 1957, eu estava em Havana. Eu falei com o embaixador americano que estava lá. Ele disse que ele era o segundo homem mais poderoso de Cuba. E ainda assim, os embaixadores Smith e Gardner, ambos republicanos, mesmo após nos alertarem sobre Castro e suas influências marxistas, suas influências comunistas, nada foi feito. Nossa segurança depende da América Latina. Será que algum americano pode olhar para a situação na América Latina e se sentir satisfeito com o que acontece hoje, quando um candidato à Presidência do Brasil sente que é necessário ligar durante sua campanha – não para Washington – mas para Castro, em Havana, com o desejo de garantir o apoio de simpatizantes de Castro no Brasil? [...]. Qual sistema triunfara nos próximos cinco ou dez anos? Comunismo ou Liberdade? É isto que devemos nos preocupar, Pelos anos de 1965 e 1970, será que teremos outras Cubas na América Latina?. 76

Considerações finais Ao analisar a campanha presidencial de 1960, é interessante destacar como as duas candidaturas optaram por tratar um mesmo problema com soluções e propostas diferentes - ainda que, em última instância, tenham resultados equivalentes. Apesar de o governo Eisenhower ter planos para a invasão de Cuba (que seriam postos em prática 75

Os dois candidatos à presidência dos Estados Unidos têm direito a briefings (reuniões) com pessoas do governo, ou seja, eles coletam dados sobre questões pontuais e planos secretos para evitar que alguma informação confidencial seja vazada para o público. Em sua campanha, JFK deu a entender que não tinha conhecimento do treinamento dos exilados e deixou passar as contradições de Nixon para preservar o fator surpresa de um possível ataque aos cubanos. 76 “In 1957 I was in Havana. I talked to the American Ambassador there. He said that he was the second most powerful man in Cuba. And yet even though Ambassador Smith and Ambassador Gardner, both Republican Ambassadors, both warned of Castro, the Marxist influences around Castro, the Communist influences around Castro, both of them have testified in the last six weeks, that in spite of their warnings to the American government, nothing was done. Our security depends upon Latin America. Can any American looking at the situation in Latin America feel contented with what's happening today, when a candidate for the presidency of Brazil feels it necessary to call - not on Washington during the campaign but on Castro in Havana, in order to pick up the support of the Castro supporters in Brazil? […] Which system, Communism or freedom, will triumph in the next five or ten years? By 1965 or 1970, will there be other Cubas in Latin America?” (CPD, october 21, 1960).

por Kennedy), o candidato republicano preferiu se esconder atrás de um discurso politicamente correto, evitando o comprometimento da missão que estava sendo organizada pela CIA. Kennedy, por outro lado, foi para campanha como franco atirador, atacando a passividade do governo republicano e pedindo uma brusca mudança no posicionamento estratégico dos Estados Unidos no continente americano. Em uma tentativa desesperada de responder as críticas, Eisenhower decretou o embargo total a Cuba dias antes da eleição, o que apenas deu mais argumentos para Kennedy citar o fracasso do projeto republicano. JFK se mostrou como um candidato a favor de uma política diplomática linha dura com qualquer nação latino-americana que tentasse manter relações com a União Soviética O democrata venceu a eleição por uma margem apertada, alvo de muita discussão devido às denúncias de fraude. O que interessa, no entanto, é ver que Kennedy apenas deu sequência ao projeto criado por Eisenhower que seria posto em prática em abril do ano seguinte: a fracassada Invasão da Baía dos Porcos. Quando viu que a ilha não seria conquistada por forças militares sem sofrer pressões da comunidade internacional e retaliações dos soviéticos, JFK mudou seu plano e passou a financiar o apoio de nações simpáticas aos americanos. A proposta da Aliança para o Progresso, no entanto, foi esquecida logo após o assassinato de Kennedy, já que seu sucessor, Lyndon Johnson, deixou a América Latina de lado a fim de voltar os seus esforços para o Vietnã. Richard Nixon, por sua vez, assumiu a presidência em 1968 e adotou o discurso de Kennedy na eleição presidencial de 1960. A partir de uma política externa baseada na tolerância zero, a posse de Salvador Allende no Chile foi também a gota d’água para seus diplomatas. Nixon decidiu apoiar as ditaduras do Cone Sul, citando o perigo da existência de uma nova Cuba na América Latina. O anticomunismo foi a base estrutural da política externa para o republicano, que fechou seus olhos às diversas acusações de violações de direitos humanos nos regimes ditatoriais na região. Por este motivo, não é errado afirmar que o Kennedy de 1962 foi o Nixon de 1960, colocando a diplomacia em primeiro lugar, assim como o Nixon de 1968 tinha em mente um projeto de intervenção muito parecido com o que seu rival democrata pregava na eleição presidencial de 1960. Ainda no caso chileno, após Nixon cancelar empréstimos e financiamentos ao governo socialista de Allende, a cobertura da CIA para o golpe liderado por Augusto Pinochet

em 11 de setembro de 1973 mostrou que a luta anticomunista nos Estados Unidos virou a obsessão de um presidente com uma política externa descontrolada e sem rumo.

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Propagandas presidenciais: BEST Qualified. Propaganda de Televisão. Preto e branco. Partido Republicano, 59s. 1960. FREEDOM. Propaganda de Televisão. Preto e branco. Partido Republicano, 59s. 1960. MOST important issue. Propaganda de Televisão. Preto e branco. Partido Republicano, 59s. 1960. PEACE. Propaganda de Televisão. Preto e branco. Partido Republicano, 59s. 1960.

CAPÍTULO III Os dilemas de San Tiago Dantas em Punta del Este, 1962 Arthur Schreiber de Azevedo77

Introdução

A VIII Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores da Organização dos Estados Americanos, ocorrida entre janeiro e fevereiro de 1962, na cidade uruguaia de Punta del Este, reuniu os países que compunham essa organização internacional para decidir as repercussões políticas e jurídicas do novo regime de governo cubano. Ela pode ser considerada um dos momentos mais dramáticos de História continental, marcada pelo ingresso definitivo, na América do Sul e Central, do conflito da Guerra Fria. Esta Conferência entrou, também, para o imaginário político e social dos países do continente, como, aliás, foi o caso da maioria das polêmicas a respeito de Cuba: se o golpe apresentava-se como um perigo de infiltração socialista no Hemisfério e de transformação de seus países em repúblicas comunistas, ou se a revolução era algo a ser valorizada e cultuada, representando um grito de contestação à hegemonia norteamericana e ao capitalismo. De uma forma ou de outra, as discussões a respeito desse país apresentaram-se recorrentes naquela década, bem como, de certa forma, contemporaneamente. Os resultados dessa VIII Reunião de Consulta somente foram revistos, com alguma dificuldade e polêmica, 47 anos depois, em 2009. O governo de Cuba foi expulso da OEA por uma das nove resoluções da Conferência de Punta del Este. No entanto, essa resolução somente foi aprovada com o número mínimo de votos (14), tendo se abstido as delegações do Brasil, Argentina, 77

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Especialista em Política Internacional. Mestre em História das Sociedades Ibero-Americanas (PUCRS). E-mail: [email protected]

Bolívia, Chile, Equador e México. Quanto às demais resoluções, que incluiam uma condenação à ofensiva do comunismo internacional na América Latina – proposta pela delegação brasileira –, foram todas aprovadas por unanimidade. Portanto, umas das questões centrais para a historiografia sobre esse episódio é tentar entender a abstenção do voto brasileiro para a expulsão do governo cubano em um contexto maior que era a chegada, no espaço sul-americano, da dinâmica da Guerra Fria. De forma geral, as respostas apresentadas partiam de uma compreensão simplificada sobre a Conferência: ela seria, em última análise, resultado da manipulação dos Estados Unidos (EUA) para impor os seus próprios interesses contra as aspirações dos demais países americanos. Essa leitura é feita, dentre outros, por três trabalhos clássicos a respeito da Conferência: Tânia Quintaneiro (1988), Paulo Fagundes Vizentini (1995) e Moniz Bandeira (1998). Essas respostas pecam por deixar de lado um aspecto importante das negociações multilaterais, o qual este capítulo busca apresentar:

embora

a

Guerra

Fria

se

apresentasse

até

aquele

momento

predominantemente como um ambiente de coação e imposição dos EUA e da URSS, havia espaço na negociação para países como o Brasil, a Argentina e o México tomarem decisões de acordo com seus próprios interesses nacionais,78 isto é, com relativa independência e autonomia. O objetivo desse capítulo é analisar os dilemas pelos quais passou o chanceler brasileiro San Tiago Dantas durante a sua tomada de decisão frente ao tema de Cuba, e entender por que ele decidiu abster-se de votar pela expulsão do governo cubano da OEA. Parte-se, em primeiro lugar, de uma análise de seu pensamento diplomático, em especial para entender como ele concebia o funcionamento do sistema interamericano, para, em segundo lugar, avaliar a sua posição durante a Conferência. No último ponto, busca-se compreender os motivos da abstenção em votar na resolução que expulsou

78

O conceito de “interesse nacional”, como aparece ao longo do texto, é posto em seu aspecto cognitivo ou subjetivo, isto é, que os atores interpretam a realidade de seu tempo e concluem, a partir de ideias e conceitos, objetivos a serem buscados em curto, médio e longo prazos, formulando, por fim, estratégias e discursos políticos. Ele se contrapõe, portanto, ao sentido normativo ou objetivo de “interesse nacional”, o qual observa e interpreta, desde o presente, quais eram de fato os interesses constantes naquele momento histórico. Para uma discussão sobre essa relação, observar Renouvin e Duroselle, os quais não buscam “em absoluto, determinar um ‘interesse nacional’ objetivo, porém mostrar quais as ideias subjetivas que os homens de Estado tiveram a respeito, na época contemporânea” (RENOUVIN e DUROSELLE 1967, p. 341). Para uma discussão no âmbito do paradigma construtivista das Relações Internacionais, observar o debate entre HOUGTON (2007) e FLANIK (2011).

Cuba da OEA, ao mesmo tempo em que se colocava favoravelmente a todas as demais resoluções.

“Sistema interamericano” e “Luta pelo direito” no pensamento de San Tiago Francisco Clementino de San Tiago Dantas nasceu em 30 de agosto de 1911, e, aos 50 anos, assumiu o cargo de Ministro das Relações Exteriores do Brasil. Nessa época, ele era Deputado Federal, eleito pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Minas Gerais, no pleito de 1958. Participou, igualmente, das conturbadas negociações políticas que permitiram a ascensão de João Goulart à Presidência da República após a renúncia de Jânio Quadros. Ao ser instaurado o regime parlamentarista e garantida a posse de Jango, Dantas trocou o seu cargo de embaixador nas Nações Unidas com Afonso Arinos de Mello Franco – antigo chanceler de Jânio – e assumiu a chefia desse Ministério. Sua trajetória até assumir o Ministério foi marcada por duas grandes atividades. A primeira é, certamente, a profissional, predominantemente jurídica, voltada, no início, para o direito privado, mas, com o passar dos anos, dedicada ao Direito Internacional Regional.79 Outro elemento importante na sua trajetória profissional é a do ensino, com ênfase em diversas áreas, como Direito Romano, Economia Política, Filosofia e Direito Civil.80 San Tiago, assim, passou a maior parte de sua trajetória pública sob o signo do 79

Em 1928, ele ingressou na Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro, formando-se em 1932. Após uma década dedicada à advocacia e ao ensino jurídico, em 1943, ele ensaia os primeiros passos de uma carreira jurídica internacional, como delegado brasileiro na I Conferência de Ministros da Educação das Repúblicas Americanas, ocorrida no Panamá. Em 1951, ele foi delegado na IV Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos, ocorrida na capital dos EUA. No ano seguinte, se torna membro da Corte Permanente Internacional de Arbitragem, em Haia, bem como Jurisperito da ONU no Comitê sobre Obrigações Alimentares e Execução de Sentenças no Estrangeiro, em Genebra. Em 1953, foi delegado brasileiro na III Reunião do Conselho Interamericano de Jurisconsultos, em Buenos Aires, e, em 1954, Conselheiro da Delegação Brasileira na IV Reunião do Conselho Interamericano Político e Social, no Rio de Janeiro. Entre os anos de 1955 a 1958, foi presidente da Comissão Jurídica Interamericana, com sede no Rio de Janeiro. Em 1959, ele foi conselheiro da delegação brasileira na V Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores da OEA, em Santiago do Chile e, em 1961, foi indicado pelo presidente Jânio Quadros para a Chefia da Delegação Permanente do Brasil na ONU, e, após a renúncia do presidente e dos arranjos parlamentaristas, assumiu como Ministro das Relações Exteriores. Sua trajetória jurídica profissional foi uma carreira jurídica em várias áreas do Direito Internacional Público Regional (MOREIRA, 1983). 80 Após a formatura em Direito, Dantas assumiu a cátedra interina de Legislação e Economia Política da Faculdade de Arquitetura, com uma monografia sobre o Direito de Vizinhança. Em 1937, ele foi efetivado, por concurso, na Cátedra da Faculdade Nacional. Em 1939, ele foi nomeado professor de Instituições de Direito Civil e Comercial da então Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas, transformada, posteriormente, em Faculdade Nacional de Ciências Econômicas da universidade do Brasil.

Direito e do ensino jurídico, o que marcou consideravelmente o modo como pensava e interpretava o mundo. A segunda grande atividade de Dantas é a política.81 A participação partidária pode ser dividida em duas fases, uma em sua juventude, ligada ao nacionalismo católico e antiliberal da AIB, e a outra no final de sua vida, ao ingressar no nacionalismo trabalhista do PTB, com um hiato de cerca de 20 anos. Nesse período de ausência, sua atividade política ficou restrita à publicação de artigos de opinião em jornais, afastado da vida partidária. Nesse aspecto, pode-se considerar que a militância tem um peso menor em sua trajetória, sendo maior a liderança intelectual do que o controle tradicional da burocracia do partido, o que pode ser comprovado a partir da falta de grandes vitórias eleitorais, embora houvesse sido prestigiado com cargos importantes da administração, como Ministério das Relações Exteriores e, posteriormente, da Fazenda. Essa trajetória é o ponto de partida para entender a atuação de San Tiago em Punta del Este. De um modo geral, ele buscava convergir a aplicação de conceitos de seu receituário intelectual com a realidade política do momento, de um modo mais “doutrinário” do que “oportunista”.82 Sua trajetória nos ajuda a compreender, em parte,

Em 1940, novamente por concurso, torna-se catedrático de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, e, no ano seguinte, professor de Direito Romano na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Entre os anos de 1941 a 1945, ele foi Diretor da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Em 1952, ele foi Diretor do Banco Moreira Salles (MOREIRA, 1983). A trajetória profissional de professor foi muito intensa e desde muito jovem, tendo chegado ao auge durante a Segunda Guerra Mundial. É possível que tenha incorporado, como o fez com sua carreira de advogado, essas características para atuar em outras esferas de sua vida. 81 Durante o período em que ficou na faculdade, Dantas teve uma formação política mais intelectualizada. Ele participou ativamente da fundação do Centro Acadêmico de Estudos Jurídicos e Sociais (CAJU), que contava com Vinícius de Moraes, poeta, futuro diplomata e criador do movimento musical da Bossa Nova, além de Otávio de Faria, escritor e, mais tarde, membro da Academia Brasileira de Letras, tendo publicado, em 1931, o livro Maquiavel e o Brasil, e, em 1933, Destino do Socialismo, além do jornalista e historiador Hélio Viana, entre outros, os quais ingressaram com ele nas fileiras da AIB em 1932. Neste ano, após formar-se, assume o cargo de Oficial de Gabinete do Ministro da Educação Francisco Campos. desfilhou-se, porém, dessa organização, em 1937, por discordância a respeito do levante ao governo de Vargas. Teve um período considerável da vida política como dono ou redator-chefe em três jornais: A Razão, em 1931; a Revista Econômica, da Caixa Econômica Federal, em conjunto com Hélio Viana em 1933; e o Jornal do Commercio entre 1957-59. Retornou à vida partidária, de forma definitiva, filiando-se ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Minas Gerais, em 1958, e elegendo-se duas vezes Deputado Federal, em 1959 e 1963. Assumiu cargos de destaque como vice-presidente da Comissão Executiva do PTB, em 1960, bem como Ministro das Relações Exteriores, em 1961, e Ministro da Fazenda em 1963. Foi, também, candidato derrotado como vice-governador de Minas Gerais na chapa com Tancredo Neves (1960), bem como derrotado ao cargo de Primeiro-Ministro, após a queda do gabinete de Tancredo Neves. Em 1964, San Tiago afasta-se da política para tratar de um câncer, e acaba falecendo em decorrência dele em naquele mesmo ano (MOREIRA, 1983). 82 Nesse sentido, Renouvin e Duroselle já faziam a distinção, em 1967, entre um perfil do Homem de Estado “doutrinário” ou “teórico” em contraste com um “oportunista” ou “empirista”. “Os doutrinários – (...) teóricos – são os que estabelecem para o seu uso um sistema de pensamento coerente e que procuram,

o modo como ele julgava as relações interamericanas, isto é, qual importância dava à OEA e aos vínculos com os países do continente. Dentro do seu arcabouço conceitual, presente nas manifestações que deu a respeito da Conferência, dois conceitos aparecem com grande ênfase: o de “Sistema interamericano” e o de “Luta pelo direito”, conceitos ligados à sua experiência de vida. Em relação ao conceito de “Sistema interamericano”, é importante compreendêlo como era utilizado correntemente no debate público da época. Havia, ao menos, duas situações para essa categoria. Na primeira, e mais comum, ela era considerada sinônimo de “pan-americanismo”, um movimento ligado ora à liderança norte-americana no continente (CASTRO, 1962; DREIER, 1962), ora à tradição diplomática de integração continental (MELLO, 1955); na segunda, significava apenas o arcabouço jurídico e institucional da OEA, relativamente autônomo a esse movimento político (DREIER, 1962). No discurso de Dantas, o “sistema interamericano” aparece nesse segundo sentido, isto é, os países americanos que compunham a OEA tinham autonomia para as decisões, dependendo apenas do respeito às regras reconhecidas pela instiuição. Existem diferentes motivos para haver essa distinção no pensamento de Dantas. No aspecto do jogo político, o “pan-americanismo” era um conceito utilizado pela oposição, especialmente Juscelino Kubitschek, Horácio Lafer e Augusto Frederico Schmidt, ligados à “Operação Pan-Americana”. Isso permitia a Dantas diferenciar-se de seus rivais no debate da época ao abster-se de utilizá-lo, especialmente pelas críticas que o conceito vinha sofrendo (AZEVEDO, 2014). No entanto, há outro motivo, ligado ao pensamento de San Tiago. Sua trajetória apresenta uma formação com ênfase em alguns aspectos do “positivismo jurídico”, no sentido proposto por Kelsen, Ross e Hart (BARZOTTO, 2007), e essa teoria jurídica tendia a separar, argumentativamente, Direito e Política. Portanto, era natural para ele fazer uma distinção conceitual entre “pan-americanismo” e “sistema interamericano”, sendo este último o Direito e o primeiro a Política. Essa questão parece mais clara quando analisado os seus argumentos a respeito do funcionamento das Nações Unidas e da OEA, nas declarações feitas em com a máxima frequência possível, harmonizar suas decisões com este sistema. Os oportunistas ou empiristas não se prendem a nenhum sistema preciso e regulam sua conduta pelas circunstâncias. Certamente não pode haver doutrinário puro, porque as circunstâncias impõem, às vezes, decisões aberrantes, relativamente à doutrina, e todo oportunista tem, não obstante, algumas ideias gerais, às quais permanece fiel” (RENOVIN e DOUROSELLE, 1967, p.311).

comemoração ao décimo aniversário dessa organização internacional, em 1955. Teorizou, Dantas, a respeito das organizações internacionais que Todo o sistema institucional, desde a tribo até o Estado e a Federação, exprime e racionaliza uma forma de equilíbrio entre grupos e forças sociais. A instituição é o vestígio lógico, com que se cobre e protege um corpo animado de vida e ávido de dominar suas próprias contradições (DANTAS, 2009, p. 29).

Concluiu, então, que “a Carta de São Francisco e a Organização das Nações Unidas deram essa expressão racional e um estado momentâneo de equilíbrio, em que se encontravam, em 1945, os povos detentores dos meios de destruição em escala mundial” (DANTAS, 2009, p. 29). Como fica claro, San Tiago concebeu uma separação entre a dinâmica política e o arcabouço jurídico e institucional que dá forma à organização. Ao mesmo tempo, ele argumentou que essa dinâmica política modificava constantemente a operacionalidade da organização a partir de problemas que surgiam em seu funcionamento. Com a crise da “polarização da vida internacional”, em 1947, San Tiago argumentou que “o instrumento concebido para servir a uma ação combinada entrou em paralização” (DANTAS, 2009, p. 31). Essa “paralização”, segundo ele, só seria evitada em sua forma total se houvesse, na instituição, um “grau de flexibilidade” que permitisse novos arranjos políticos e institucionais para ela exercer suas “funções sucedâneas” (DANTAS, 2009, p. 32). Se a Organização não conseguisse trazer uma paz permanente, assegurou, ela poderia, de fato, evitar uma guerra total. Concluiu, então: Essa situação [da paralisia decisória devido à Guerra Fria] frustrou a consecução do objetivo institucional [da paz permanente], ou pelo menos retardou o seu advento, mas deu ensejo a que o organismo criasse uma função nova, não menos vital e relevante que a primeira: mantendo frente a frente, em debate público, num fórum ininterrupto, os Estados que se antagonizavam, as Nações Unidas passaram a desempenhar um papel hipotensor da situação internacional. O debate era que as partes são compelidas a justificar suas atitudes e fundamentar suas acusações, [o que, no entanto,] não logra eliminar as causas profundas que impelem as nações para o choque militar. Mas é sabido que as guerras têm causas imediatas e remotas. (...) As imediatas prendem-se a fatos momentâneos, cujo poder de detonação resulta menos de sua própria significação, do que do nível a que chega, em determinadas épocas, a tensão internacional. O isolamento entre as nações favorece a elevação desses níveis de tensão, e a sua confrontação assídua no terreno das conferências e dos debates, favorece a sua baixa (DANTAS, 2009, p. 34).

Na teoria política defendida por Dantas, percebemos que as instituições internacionais, como a ONU e a OEA, servem de “foro de debate ininterrupto”, no qual os “Estados em antagonismo” justificam-se um perante o outro, permitindo que, desse

debate formado pela troca de argumentos, sejam impedidas as “causas imediatas” provocadoras

das

ações militares

(DANTAS,

2009,

p.34).

As

instituições

internacionais, portanto, não servem a um único movimento político, mas, sim, a participação de todos. Isso é muito importante para entender a atuação do chanceler brasileiro em Punta del Este, especialmente essa distinção que ele faz entre “sistema interamericano” e “pan-americanismo”: a OEA fornece um espaço de divergência que possibilita chegar-se à paz, inicialmente, por meio do diálogo e da troca de ideias. O segundo conceito, “Luta pelo direito”, aparece como uma estratágia de ação a partir do funcionamento da própria instituição. Esse conceito sintetizava o modo como ele percebia a evolução das instituições internacionais, como a OEA, além de afirmar o papel e a estratégia da chancelaria brasileira nesse processo. Originalmente, a ideia surgiu em 1955, no mesmo discurso a respeito do funcionamento das Nações Unidas e de como inovações foram feitas nessa instituição para que a Assembleia Geral tivesse mais competências de decisão, devido à “paralisia decisória” (DANTAS, 2009, p. 34). De modo geral, a “Luta pelo direito” era proposta por San Tiago como uma teoria sobre a evolução institucional das organizações. Dantas sustentava ser este um processo gradual em que tais organizações eram reformadas, adquirindo novos contornos jurídicos conforme as relações políticas entre os Estados modificavam-se e os desafios de cada geração se apresentavam diferentes. A transformação de “aspirações” (normas jurídicas sem obrigatoriedade) em “compromissos” (normas jurídicas obrigatórias) dentro do “sistema interamericano” era, segundo acreditava, parte dessa dinâmica (FRANCO, 2007, p. 226). As organizações ganhavam novas finalidades e instrumentos jurídicos, e, portanto, a luta política que os Estados “militarmente fracos” deveriam travar era de conferência em conferência, de resolução em resolução, propondo ou impedindo essas transformações. Nesse sentido, o chanceler argumentou, durante a Conferência, que era preciso “tomar as cautelas necessárias” para que a finalidade da OEA e do sistema de segurança coletivo interamericano não fosse “desviado, com severos prejuízos para as conquistas pacientemente acumuladas em séculos de esforço e luta pelo direito à existência soberana dos Estados mais fracos” (FRANCO, 2007, p. 193). Da mesma forma, ele haveria de propor, na hora de votação, modificiações nos textos das resoluções

apresentadas na Conferência de Punta del Este, dentro dessa dinâmica de “Luta pelo direito”.

Os dilemas na tomada de posição sobre Cuba A historiografia é unânime em apontar que, durante a Conferência de Punta del Este, o Brasil defendeu, de modo absoluto, os princípios da autodeterminação dos povos e da não-intervenção em assuntos internos. Os motivos para isso, afirma-se, vai desde uma “simpatia ideológica” do governo com o regime de Fidel Castro (BANDEIRA, 1998), no sentido de solidariedade continental com os países subdesenvolvidos do continente, até uma atitude menos solidária e mais preocupada com os problemas que poderiam surgir a partir das reformas que o próprio presidente João Goulart pretendia fazer, isto é, que ao defender a autonomia de Cuba o país estava defendendo a sua própria (VIZENTINI, 1995). Embora essas sejam respostas muito importantes, nosso objetivo aqui é entender o que significava essa defesa absoluta de princípios para San Tiago Dantas e, assim, ampliar o leque de motivos que poderiam ter levado o chanceler a decidir os votos brasileiros em Punta del Este. Nosso ponto de partida é o reconhecimento de que a tomada de posição a respeito de Cuba foi um processo complexo. Havia condicionamentes internos, ligados à transição de regime após a renúncia de Jânio Quadros, no qual a aproximação entre os dois governos planejada pelo ex-presidente deveria ser revista, ou mitigada. Como fica evidente, nas reuniões preparatórias, para as quais o chanceler brasileiro convocou assessores e embaixadores do quadro do Itamaraty a fim de discutir a situação, explicando ao grupo a necessidade de revisar as posições a respeito desse país devido a problemas de ordem interna. Nas posições de Jânio Quadros, afirmou, “havia um ligeiro toque de simpatia ideológica e uma recusa sistemática – sendo que, algumas vezes, evasiva – de se pronunciar sobre o caráter democrático do governo Fidel Castro”. 83

83

San Tiago lembrou dois episódios da administração passada que apoiavam sua posição. No primeiro, citou um discurso do ministro Afonso Arinos à Câmara dos Deputados, no qual afirmou “de maneira categórica, que não considerava que existissem provas de que o regime de Fidel Castro fosse comunista, dando a impressão de que haver, ou não haver provas fosse de grande importância” (FRANCO, 2007, p. 222). No segundo episódio, lembrou que “atitudes como a da condecoração do comandante Guevara mostravam simpatia e nada tinham que ver com a autodeterminação, o que tornava a atitude oficial mais polêmica do que a que temos procurado observar” (FRANCO, 2007, p. 222).

Portanto, “havia uma pequena diferença entre o que temos procurado fazer e o que caracteriza a linha Jânio Quadros em relação a Cuba” (FRANCO, 2007, p. 222). O chanceler brasileiro afirmou que havia começado a revisão do posicionamento “pelo reconhecimento sincero de que o regime cubano não era democrático”, já que “pouco importava saber se era comunista ou socialista”, mas, sim, “classificá-lo como não democrático, tomado como padrão a Declaração de Santiago.”84 Disso resultaria, segundo ele, a eliminação do “problema da simpatia ideológica” reafirmando que “o governo brasileiro não tem simpatia ideológica pelo regime Fidel Castro; ainda que a possam ter grupos políticos dentro do governo, o governo só tem simpatia pelo que está na Constituição ou nos tratados” (FRANCO, 2007, p. 222). Essa mudança, disse ele, dava novo “vigor” ao princípio de não intervenção e de respeito à autodeterminação dos povos, isto é, eles “adquiriam um caráter mais absoluto”. Dantas concluiu que isso “foi aceito no Congresso e nas diferentes correntes de Opinião”, o que permitiria, de acordo com o raciocínio do chanceler, uma maior margem de apoio junto à sociedade brasileira (FRANCO, 2007, p. 222). Os condicionantes externos diziam respeito ao relacionamento do país com o funcionamento da OEA. San Tiago, ao ser informado da convocação da Conferência, pela chancelaria colombiana, passou a criticá-la categoricamente. O “Plano Lleras” – nome dado em função do Presidente colombiano Alberto Lleras Camargo – era visto por Dantas como uma forma de reintepretar o “sistema interamericano”. Ele afirmou que a “convocação (...) vinha, desde logo, marcada pela inovação do Tratado do Rio de Janeiro e só podia ter duas finalidades”. Na primeira, a convocação pretendia “descobrir no regime cubano uma agressão potencial e, portanto, enquadrá-lo na violação do artigo 6º” deste tratado85 (FRANCO, 2007, p. 222-223). Na segunda finalidade, a convocação 84

A “Declaração de Santiago”, em termos objetivos, foi o documento assinado ao final da V Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores da OEA, que realizou-se em Santiago, no Chile, entre os dias 12 e 18 de agosto de 1959. Essa reunião de consulta tratou do “tema da instabilidade política na região do Caribe e se definiram critérios necessários para a efetividade de um sistema político democrático” (DANTAS, 2009, p. 41). Essa Conferência teve como decisão final, entre outras, a criação de um conceito de “democracia” aplicável a todos os países que compunham o “sistema interamericano”. De forma geral, podia-se considerar um regime democrático aquele que tivesse, ao mesmo tempo: o Estado de Direito; Eleições Livres; Alternância no poder; Respeito aos direito individuais e à justiça social; e existência do Habeas Corpus. No julgamento de San Tiago Dantas, Cuba não era uma democracia pois lhe faltavam essas características. 85 O caput do art. 6º do Tratado Interamericano de Assistência Recpíprova (TIAR) tem a seguinte redação: “se a inviolabilidade ou integridade do território ou a soberania ou independência política de qualquer Estado Americano for atingida por uma agressão que não seja um ataque armado, ou por um conflito extra-continental ou por qualquer outro fato ou situação que possa por em perigo a paz da

pretendia “caracterizar o regime como comunista e, nesse caso, usar a resolução 93 de Caracas como uma ampliação ou aditivo ao Tratado do Rio de Janeiro, ou seja, um caso de agressão presumida”, e, sendo assim, “o simples fato de ser comunista ou filiado ao comunismo internacional presume a agressividade do regime”. Dessa forma, San Tiago concluiu que, em ambas as possibilidades, “ocasiona-se a aplicação de sanções” (FRANCO, 2007, p. 223). A aplicação de sanções era indesejável como solução ao problema, já que Dantas pretendia propor o reingresso de Cuba à democracia – nos moldes da Declaração de Santigo – de um modo que não afetasse ou inovasse negativamente o “sistema interamericano”. Durante as reuniões preparatórias, ele foi enfático nesse sentido. Ao considerar a situação de Cuba naquele momento, foram apresentadas duas alternativas: na primeira, “o Brasil tem esperança de ver Cuba recuperada à amizade continental, por meio suasórios”; e, na segunda, “é necessário o retorno de Cuba ao sistema continental por meios coercitivos, os únicos eficazes para resolver o caso cubano”. Ele afirmou, então “que estamos na primeira posição”, ao mesmo tempo em que procurava evitar a segunda.86 Ao lado do “Plano Lleras”, o chanceler brasileiro propôs o “Plano Fino”. Esse plano consistia, de modo geral, na apresentação de uma proposta de neutralização de Cuba frente ao continente, de um modo muito próximo ao caso da Finlândia em relação à URSS. A ideia original foi do Embaixador Vasco Leitão da Cunha, que havia sido o representante brasileiro nesse país na década de 1950.87 Originalmente, o “Plano Fino” consistia em dez pontos, entre os quais estavam garantidas as conquistas do processo revolucionário cubano, um retorno desse país aos valores definidos pela Declaração de América, o Órgão de Consulta reunir-se-á imediatamente a fim de acordar as medidas que, em caso de agressão, devam ser tomadas em auxílio do agredido, ou, em qualquer caso, convenha tomar para a defesa comum e para a manutenção da paz e da segurança no Continente”. 86 Centro de História e Documentação Diplomática. Cadernos do CHDD. Ano 6, número 11, Segundo Semestre, 2007. p. 392. 87 Em depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação Histórica Contemporânea do Brasil (CPDOC), Vasco Leitão da Cunha relembrou sua passagem pela Finlândia, observando que recebera ordens da Secretaria de Estado para observar “a política escandinava em face da União Soviética”, pois “a Finlândia ficou neutralizada pela Suécia e pela Rússia, e a Suécia ameaçava reformular sua objeção à Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] se a Rússia atacasse a Finlândia” (CUNHA, 1994, p. 152). Prosseguiu, então, afirmando que “o problema era que a Finlândia fazia parte do sistema defensivo da União Soviética. Quando o governo americano propôs ajuda à Europa, a Finlândia quis aceitar a sua parte mas os russos vetaram, declararam que não a poupariam. A Suécia então disse que enquanto os russos respeitassem as dependências da Finlândia, ela não se juntaria à Otan, mas se os russos desrespeitassem, ela reveria a sua posição. De maneira que a Finlândia serve de garantia de que a Suécia não será atacada pela União Soviética. (...) A Finlândia é um Estado-Tampão” (CUNHA, 1994, p. 154-155).

Santiago, além do isolamento ideológico da revolução e a sua desmilitarização, entre outros. Durante a negociação, como é natural, ele vai sofrer muitos ajustes, e a proposta apresentada por San Tiago seria relativamente menos abrangente, como veremos mais adiante. Em resumo, esse plano estava baseado na possibilidade de compatibilizar, por meio de sua negociação, a revolução cubana com a democracia, e, por fim, evitar que qualquer transformação negativa no “sistema interamericano” se perpetuassem pelas sanções que, por ventura, fossem aprovadas contra esse país. Esse plano, contudo, inviabilizou-se em decorrência do discurso de filiação ideológica de Fidel Castro ao marxismo e ao comunismo internacional. Ao afirmar ser o seu governo de matriz socialista, o líder cubano minou a base na qual assentava o “Plano Fino” do chanceler brasileiro e de Vasco Leitão da Cunha: era inconcebível, na época, a transição da revolução de Cuba em uma democracia ao moldes da Declaração de Santiago. Portanto, foi necessário reunir novamente os embaixadores para redefinir as posições sobre a ilha revolucionária. Nessa segunda reunião, duas mudanças no posicionamento a respeito de Cuba foram expostas, além da feita pelo próprio chanceler. A primeira foi a do embaixador Mário Gibson Barboza,88 que criticou o fato de a chancelaria brasileira estar menos preocupada em resolver o problema cubano do que tentar salvar o “sistema interamericano” de um colapso. Ao propor o foco na solução do primeiro, afirmou que ele deveria ser interpretado e lidado exclusivamente no âmbito bilateral entre EUA e a ilha caribenha. Afirmou, ainda, que o Brasil deveria se abster de qualquer protagonismo em relação ao problema, porque, nos Estados Unidos, “jamais o Departamento de Estado aceitaria afrontar a opinião pública com a confissão de que tinha sido levado pela mão da diplomacia brasileira, mexicana ou argentina”. Ele concluiu que, naquela ocasião, “era preciso que o Brasil se omitisse completamente de qualquer espécie de

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Diplomata de carreira, Gibson Barboza nasceu em Olinda, Pernambuco, em 1918, e entrou no Itamaraty na primeira metade da década de 1940. Em 1943, fora designado vice-cônsul em Houston, Texas, nos Estados Unidos, país com que manteve um misto de admiração e distância (BARBOZA, 1992, p. 17-18; 200). Após o término da Segunda Guerra Mundial, participou das negociações que levaram à construção das Nações Unidas e, no final daquela década, foi Oficial-de-Gabinete do então Ministro das Relações Exteriores, Raúl Fernandes, com o qual manteve relações de amizade (BARBOZA, 1992, p. 32). Gibson Barboza estava lotado na delegação brasileira das Nações Unidas quando, em 1961, conheceu Dantas, nutrindo por ele admiração (BARBOZA, 1992, p. 62). Sua experiência no foro multilateral era muito valorizada pelo chanceler, e Barboza relatou que ele o chamava de “minha campainha de alarme”, devido aos constantes alertas que este lhe dava, consequências de uma discordância em termos de pensamento diplomático (BARBOZA, 1992, p. 75).

publicidade” e fizesse crer que a ideia tinha sido “generosidade dos Estados Unidos” (FRANCO, 2007, p. 233-234). A segunda mudança foi exposta pelo embaixador Araújo Castro 89 e era uma crítca ainda mais forte do que a feita por Mário Gibson. Esse embaixador afirmou categoricamente que o problema da Conferência não apresentava solução alguma, tanto no âmbito hemisférico, na tentativa de salvar o “sistema interamericano”, quanto na dimensão cubana. Declarou, ainda, que o governo brasileiro não deveria assumir “a responsabilidade total pela solução do problema cubano, nem pelo futuro do sistema interamericano”, porque o próprio “sistema interamericano” lhe parecia “perdido”, que a situação ia “se resolver mal para o pan-americanismo” (FRANCO, 2007, p. 236). Araújo Castro acreditava ser infrutífera a tentativa de San Tiago de salvar este sistema, pois ele já estava “liquidado” (FRANCO, 2007, p. 237). A proposta desse embaixador, portanto, era a manutenção absoluta de uma posição contrária à sanções, reafirmando os princípios da autodeterminação e da não intervenção e, ao final da Conferência, votar contrariamente a elas. Argumentava, também, que a chancelaria deveria apenas se preocupar com os efeitos da negociação na situação política interna do país. A questão da “opinião pública”, para Araújo Castro, era a mais importante, porque “o assunto está se extremando e, em janeiro, o tema cubano será o grande tópico da política brasileira”. A “opinião pública”, que Araújo Castro estava falando, eram as discussões que ocorriam no Parlamento e na imprensa do país. Sugeriu, por fim, que eles deveriam “colocar o problema cubano dentro do panorama diplomático brasileiro, de maneira a justificar nossa posição” em relação a outras decisões já tomadas (FRANCO, 2007, p. 236). Acrescentou, como medida estratégica, que o governo poderia discursar procurando “conceituar o sentido da independência da diplomacia do Brasil à guisa de princípios gerais de ação”, ou, ainda, que eles poderiam “aproveitar um pouco a questão 89

Igualmente diplomata de carreira, João Augusto de Araújo Castro era carioca e formado em direito pela Faculdade de Niterói em 1940. Havia ingressado no corpo diplomático conjuntamente com Mário Gibson Barboza. Até aquele momento, tinha sido Vice-Cônsul em San Juan de Porto Rico e Nova Iorque, além de ter participado na Conferência para a criação da Organização Mundial da Saúde e sido, também, membro da delegação do Brasil na ONU entre 1949-1953. Após, serviu em Roma até 1957 e em Tóquio até 1961, quando voltou ao Brasil e foi promovido a embaixador. Depois do retorno do Presidencialismo, em 1963, Araújo Castro seria promovido a Ministro das Relações Exteriores, contribuindo para a construção da Política Externa Independente do período, em conjunto com Afonso Arinos e o próprio San Tiago. Uma excelente análise de seu pensamento diplomático foi publicada recentemente e discute com mais detalhes suas ideias e conceitos políticos fundamentais (VARGAS, 2013).

colonial, de modo a mostrar que a diplomacia brasileira está independente de todos os lados”. Pretendia, com isso, evitar o “excesso de gestões [diplomáticas] de nossa parte” ao tentar-se mediar uma solução para um problema que não via fim (FRANCO, 2007, p. 239). Acreditava que deveriam “conciliar e ajustar a posição” para evitar “ataques dos dois lados”, pois, “um ataque dirigido pelo Departamento de Estado contra o Brasil terá efeitos internos muito grandes” (FRANCO, 2007, p. 238). Fica claro que, no ambiente no qual San Tiago estava, a tomada de posição a respeito de Cuba colocava questões que iam além da simples simpatia com o governo de Fidel Castro ou com a defesa de seus próprios interesses a partir do que se decidisse em Punta del Este. Os dilemas estavam em se o governo brasileiro deveria seguir ou não uma linha que priorizava a solução do problema cubano – como sugeria o embaixador Gibson – ou se, de outro modo, priorizava-se salvar o “sistema interamericano”, mesmo que isso significasse abster-se a respeito do próprio problema de Cuba – como o próprio chanceler havia sugerido com o “Plano Fino”. Ainda havia uma terceira opção, que era abandonar completamente o âmbito internacional e priorizar a estabilidade política interna por meio de um discurso não comprometedor – como sugerido por Araújo Castro. Dantas, ao decidir qual seria a estratégia brasileira, procurou unir as três posições ao mesmo tempo, nos limites do que poderia ser compatibilizado. Tentou intermediar uma aproximação entre Cuba e os EUA sem muito alarde, como tinha sugerido o embaixador Gibson; ao mesmo tempo em que deu bastante ênfase à defesa absoluta dos princípios da autodeterminação dos povos e não intervenção em assuntos internos para estabilizar o debate na “opinião pública” nacional, como disse Araújo Castro; e, por fim, apresentou o “Plano Fino” e buscou evitar a aprovação de qualquer iniciativa que viesse a inovar negativamente o “sistema interamericano”, nos termos do seu conceito de “Luta pelo direito”.

Os dilemas em Punta del Este, 1962 Quando Dantas pôs-se a caminho de Punta del Este, cuja Conferência iniciaria no dia 22 de janeiro de 1962, ele tinha em mãos as instruções confidenciais do Conselho

de Ministros para delegação brasileira. Nesse documento estavam, de forma resumida e definitiva, as questões discutidas com seus embaixadores: “a delegação brasileira (...) orientará a sua participação nos trabalhos e o seu voto de forma a preservar, da maneira mais eficaz, a paz no hemisfério”, isto é, “evitar que o problema cubano se agrave, em seus aspectos internacionais, convertendo-se em motivo de agitação junto à opinião pública dos demais Estados” (FRANCO, 2007, p. 272). O Conselho de Ministros estava preocupado com a possível crise no “sistema interamericano” no modo como o chanceler brasileiro havia proposto. O documento restringia, portanto, a delegação brasileira, que ficava proibida de votar “em favor de medidas que importem na violação dos princípios de não-intervenção, inclusive sanções militares, econômicas ou diplomáticas”, pois elas poderiam “enfraquecer o sistema regional interamericano”. Outra exigência trazida pelas instruções confidenciais era de que a delegação brasileira procuraria aprovar uma “resolução, cuja apresentação pode caber a outros países, em que se reconheça a incompatibilidade das declarações e atitudes do governo de Cuba com os princípios e objetivos do sistema interamericano” (FRNCO, 2007, p. 272). Essas exigências, por si mesmo, já davam o sentido dos votos nas futuras resoluções: proibia o Brasil de votar favoravelmente na sexta resolução que expulsava o governo de Cuba da OEA; e exigia o voto positivo na resolução que declarava a incompatibilidade do comunismo internacional com os valores interamericanos. Ao chegar em Punta del Este, San Tiago percebeu um problema muito grave para pôr em prática sua estratégia de negociação. A agenda da Conferência previa o início imediato dos trabalhos, com a exposição de discursos dos representantes de cada país e a votação da Ata Final. Assim, acreditava, não haveria tempo hábil para fazer uma negociação sobre o tema da neutralização de Cuba. Após a eleição que definiu a composição das comissões,90 o chanceler brasileiro sugeriu, com aprovação unânime das demais chancelarias, um “período de flexibilidade” para consultas entre as delegações, a fim de que aquelas que não haviam ainda se definido pudessem ser

90

A delegação brasileira foi eleita conjuntamente com as delegações do Haiti, da Colômbia e dos Estados Unidos para a comissão de estilo, a qual faria a redação preliminar da Ata Final (MRE, 1962, p. 221).

persuadidas pelas outras. Era o primeiro passo, acreditava o chanceler, para negociar a proposta de “finlandização” de Cuba.91 A negociação iniciou com uma entrevista sua aos jornalistas presentes no Hotel San Rafael (local dos acordos), divulgando a proposta brasileira de “neutralizar” Cuba para resolver a grave crise hemisférica. Ele deu uma declaração ao Jornal O Globo, em Punta del Este, a respeito de seu projeto e do que ele significava para o “sistema interamericano”, afirmando que O desejo primordial do Brasil é ver que qualquer decisão a ser tomada em Punta del Este represente a unidade de opinião dos Governos Americanos. Entende o chanceler que uma decisão por maioria de votos, embora alcançado o ‘quorum’ dos dois terços exigidos pela Carta da Organização dos Estados Americanos, seria danosa ao sistema interamericano. Pois em todas as ocasiões em que estiveram reunidos os chanceleres americanos, as decisões foram unânimes. E receia o Sr. San Tiago Dantas que se aquele ‘quorum’ mínimo, que equivale a 14 votos dos países-membros da OEA, não for alcançado, criando-se um impasse, então, haverá um dano maior ao panamericanismo, pelas péssimas repercussões que haveria entre os governos e a opinião pública dos países extracontinentais, além de construir grave desprestígio para o Ocidente, na sua luta ideológica contra o comunismo. 92

Dessa forma, o chanceler propunha ser o seu projeto “o único que pode oferecer uma solução prática para o caso cubano”, 93 e acreditava poder chegar por meio dele à unidade dentro do “sistema interamericano”, unidade cuja falta poderia agravar a crise e enfraquecer o continente dentro da dinâmica de competição da Guerra Fria. Contudo, essa possibilidade de alcançar a unidade de votos estava longe de ser construída pelas delegações. Durante a Conferência, elas iriam se agrupar em torno de duas propostas e, a partir dessas, transitar de um grupo para o outro conforme percebessem, de alguma forma, uma mudança nas suas estratégias de negociação. 94 De um lado, havia 13 delegações que buscavam uma solução prescrevendo sanções a Cuba, lideradas pelos Estados Unidos e pela Colômbia, e seguidas pela Guatemala, San 91

Ministério das Relações Exteriores. O Brasil em Punta del Este, Rio de Janeiro: Seção de Publicações, 1962. p. 220-221; 225. 92 Ministério das Relações Exteriores. O Brasil em Punta del Este, Rio de Janeiro: Seção de Publicações, 1962. p. 224-225. 93 Ministério das Relações Exteriores. O Brasil em Punta del Este, Rio de Janeiro: Seção de Publicações, 1962. p. 223. 94 O Haiti foi o exemplo dessa mudança de posição. Durante a negociação, ele saiu do grupo dos treze para ingressar temporariamente no dos seis, transformando-o em dos sete. Sua saída, no entanto, não apresentava, de fato, uma ruptura com o grupo liberado pelos EUA e Colômbia, já que a delegação haitiana tinha anunciado essa posição devido à falta de vantagens financeiras recebidas pelos EUA, e não discordância quando aos argumentos principais (“San Tiago contrário à intervenção”, Jornal do Brasil, 23 de janeiro de 1962. p. 3).

Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Haiti, República Dominicana, Panamá, Peru, Paraguai e Venezuela. De outro lado, um grupo de seis delegações que defendia uma alternativa sem a aplicação de sanções, no qual se encontravam Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Equador e México.95 Em termos gerais, estavam dispostos dois planos de negociação: o “Plano Lleras” e o “Plano Fino”. O ponto central de divergência a respeito da votação entre o grupo dos 13 e o grupo dos sete ficou evidente em uma declaração do chanceler colombiano 96 e em outra do secretário de Estado norte-americano,97 os quais defendiam a aplicação de sanções contra Cuba mesmo se aprovadas por maioria, dentro das regras de organização da OEA. Ao contrário de San Tiago, que advogava a necessidade de aprovação unânime na resolução, o grupo dos 13 pretendia romper essa tradição da organização. Para evitar que isso ocorresse e o “Sistema interamericano” entrasse em crise permanente, Dantas participou de um almoço-reunião com o Secretário de Estado norteamericano Dean Rusk, conjuntamente com o chanceler argentino Miguel Ángel Cárcano e o chanceler mexicano Manuel Tello na casa do presidente uruguaio Eduardo Victor Haedo.98 Nessa ocasião, San Tiago apresentou a proposta de “neutralização” de Cuba, a qual foi respondida em tom negativo pelos norte-americanos.99 À noite, o chanceler brasileiro dirigiu-se a uma reunião com o representante diplomático cubano Oswaldo Dorticós, na qual apresentou, igualmente, a proposta, e recebeu sua resposta positiva, embora este último questionasse a viabilidade e aceitação pelos EUA. 100 Portanto, a neutralização de Cuba tornava-se inviável já nos primeiros dias e a reunião de consulta parecia dirigir-se à crise institucional, na visão de San Tiago, na medida em que o grupo dos 13 não conseguia alcançar os 14 votos necessários para aprovar sanções contra Cuba e o grupo dos seis (mais o Haiti) não conseguia reunir forças para articular

96

“Alterações nas propostas da Colômbia deram-lhe mais energia, diz Caicedo” Jornal do Brasil, 22 de janeiro de 1962. p. 7. 97 “Rusk prega necessidade de eliminação de Cuba do sistema interamericano”, Jornal do Brasil, 23 de Janeiro de 1962. p. 3. 98 A chancelaria uruguaia, promotora do encontro, não havia, ainda, definido sua posição em relação à Conferência, não integrando nenhum dos grupos. O chanceler brasileiro já havia conversado com o responsável pelas negociações da delegação uruguaia, Benito Nardone, no início da Conferência, quando a proposta havia sido feita. 99 “San Tiago contrário à intervenção”, Jornal do Brasil, 23 de janeiro de 1962. p. 3. 100 Ministério das Relações Exteriores. O Brasil em Punta del Este, Rio de Janeiro: Seção de Publicações, 1962. p. 230.

um consenso em torno de uma proposta que resguardasse os princípios da nãointervenção e autodeterminação dos povos. Os dias que seguiram foram de impasse nas negociações até a votação. Mário Gibson Barboza, em suas memórias, lembrou que a divisão entre os dois grupos provocava, nas reuniões, “silêncios durante intermináveis minutos: ninguém falava, alguns rabiscavam papéis que circulavam em silêncio, sem qualquer comentário” (BARBOZA, 1992, p. 75). Isso tornava, portanto, os discursos na Comissão Geral as principais manifestações no processo de negociação da delegação brasileira, momento em que Dantas reafirmava as suas posições em relação à grave crise do “Sistema interamericano”, ao mesmo tempo em que condenava a aplicação de sanções. Paralelamente à fala do representante brasileiro, circulou uma declaração conjunta do grupo dos seis (mais o Haiti) condenando sanções contra Cuba. A argumentação do memorandum era a exposta anteriormente pelos chanceleres brasileiro, argentino e mexicano, com base nos princípios da não-intervenção e autodeterminação dos povos e a necessidade de assegurar a integridade do funcionamento do “sistema interamericano”. Desse modo, o secretário de Estado norte-americano, Dean Rusk, ao discursar, no dia 25 de janeiro, o fez em um teor moderado, não exigindo sanções contra a ilha caribenha, mas, sim, que o problema fosse resolvido no sentido de excluir o governo de Fidel Castro de participação nos órgãos interamericanos.101 San Tiago, após o discurso de Rusk, emitiu nota comentando-o de forma positiva, já que Entre as medidas a serem tomadas em relação a Cuba (...) não estão mencionadas (...) as sanções previstas no Tratado do Rio de Janeiro e outros, que o Brasil tem considerado (...) inadequados e que certas correntes pouco esclarecidas da opinião pública, não só do Brasil, mas de outros países americanos tem sustentado impensadamente. 102

Por fim, concluiu que “os Estados Unidos estão procurando, como o discurso evidencia, fixar objetivos mais flexíveis, bastante próximos, embora ainda não integralmente coincidentes com o memorandum”.103

101

Ministério das Relações Exteriores. O Brasil em Punta del Este, Rio de Janeiro: Seção de Publicações, 1962. p. 238. 102 Ministério das Relações Exteriores. O Brasil em Punta del Este, Rio de Janeiro: Seção de Publicações, 1962. p. 241. 103 Ministério das Relações Exteriores. O Brasil em Punta del Este, Rio de Janeiro: Seção de Publicações, 1962. p. 241.

Assim, Dean Rusk sinalizava que, com uma proposta menos radical, poderia conseguir os 14 votos necessários para aprovar algum texto contrário a Cuba. Os debates na Comissão Geral estenderam-se por mais um dia e, após o final de semana sem trabalhos, foram aprovadas nove resoluções, entre as quais apenas uma não conseguiu ser aceita unanimemente: a própria resolução que excluía o governo de Cuba da OEA enquanto durasse a orientação marxista-leninista de Fidel Castro. Ela foi votada positivamente pelos 13 países originais do grupo liderado pelos Estados Unidos e Colômbia (o Haiti, mediante promessa de auxílio financeiro, havia voltado a participar do grupo dos 13) e o Uruguai, o qual se tornou o 14º Estado-membro a se posicionar contrariamente a Cuba. Quanto ao grupo dos seis, abstiveram-se, optando por não votar contrariamente. Qual o sentido dessa abstenção, especialmente a brasileira? Segundo o que Dantas tinha afirmado constantemente durante a negociação, a divisão dos países americanos dentro da OEA poderia aprofundar a crise no sistema, enfraquecendo-o em relação ao conflito da Guerra Fria. Portanto, ao abster-se de votar, o chanceler brasileiro pretendia não agravar a crise no “sistema interamericano” por meio de seus votos negativos. Era uma repetição da estratégia já utilizada quando a Conferência fora convocada, tendo ele se abstido naquela ocasião com esse propósito. 104 E quanto aos votos positivos? O modo mais efetivo de compreendê-la é considerar, em primeiro lugar, a concordância da delegação brasileira com o seu teor geral, como mostrado pelas instruções confidenciais do Conselho de Ministros. Em segundo lugar, deve-se levar em conta a estratégia de “Luta pelo direito”, especialmente na primeira resolução. A primeira resolução da Ata Final, aprovada por unanimidade, condenava a “ofensiva do comunismo na América” e declarava a sua incompatibilidade com o “sistema interamericano”. Do ponto de vista de San Tiago Dantas – que tinha sido um dos propositores dessa resolução105 – ela era importante porque reconhecia várias afirmações que ele defendera durante as negociações. Uma delas era a condenação da atuação soviética na América, por ser uma forma de “imperialismo”: “agitando-se o lema do ‘anti-imperialismo’, [o comunismo] pretende-se um imperialismo agressivo e opressor, o qual subordina as nações submetidas aos interesses militaristas e agressivos 104

Centro de História e Documentação Diplomática. Cadernos do CHDD. Ano 6, número 11, Segundo Semestre, 2007. 105 Ministério das Relações Exteriores. O Brasil em Punta del Este, Rio de Janeiro: Seção de Publicações, 1962. p. 261.

das potências extracontinentais”.106 Desse modo, não se condenva o comunismo internacional em si mesmo, mas por ser uma forma geral de “imperialismo”, combatendo-se todas as suas formas, inclusive a perpetrada pela URSS. Do mesmo modo, a resolução reconhecia que o “princípio de não-intervenção e o direito dos povos de organizarem-se livremente os seus sistemas de vida” eram incompatíveis como os “princípios do comunismo”. Assim, a primeira resolução tinha um texto que garantia, além da incompatibilidade do comunismo com o “sistema interamericano”, os princípios da autodeterminação e não-intervenção, seja de forma direta ou indireta. A terceira resolução, chamada de “reiteração dos princípios de nãointervenção e autodeterminação”, igualmente, faziam parte dessa reafirmação direta de defesa dos princípios. Além disso, havia pequenas alterações em questões análogas, nessa primeira resolução, como o reconhecimento de que “ideias de progresso social”, “atividade sindical” e “movimentos políticos e culturais autenticamente progressistas e democráticos” não poderiam ser confundidos com “subversão comunista” e, portanto, reprimidos por “doutrinas e métodos reacionários”.107 Ou, ainda, colocar a questão do desenvolvimento cultural, político e econômico na declaração, ao reconhecer que “a missão dos povos e dos governos desse Continente, na atual geração, é promover o desenvolvimento acelerado de suas economias para eliminar a miséria, a injustiça, a doença e a ignorância, nos termos da Carta de Punta del Este”. 108 Essas pequenas alterações, embora estivessem à margem do assunto principal da Conferência, eram, para San Tiago Dantas, parte inseparável das transformações positivas que ele pretendia implementar na OEA, seguindo o conceito de “Luta pelo direito”.

Considerações Finais A Conferência de Punta del Este, em 1962, apresentou-se como um processo complexo e polêmico de negociação hemisférica. O chanceler brasileiro, 106

Ministério das Relações Exteriores. O Brasil em Punta del Este, Rio de Janeiro: Seção de Publicações, 1962. p. 12. 107 Ministério das Relações Exteriores. O Brasil em Punta del Este, Rio de Janeiro: Seção de Publicações, 1962. p. 13. 108 Ministério das Relações Exteriores. O Brasil em Punta del Este, Rio de Janeiro: Seção de Publicações, 1962. p. 14.

dentro do quadro político interno e internacional, obteve uma posição de destaque na qual pode articular politicamente as posições que o país levaria para ela. De modo geral, os dilemas que passou na definição de posições se articulavam em torno de dois conceitos principais: o de “sistema interamericano” e o de “Luta pelo direito”. O primeiro dilema de Dantas foi, então, tomar uma decisão em relação a Cuba. Ele ponderou, em primeiro lugar, a necessidade de revisar a posição de Jânio Quadros de aproximação ideológica, reconhecendo que o regime cubano não era democrático. A partir disso, o chanceler pode, em segundo lugar, tomar a decisão de propor o retorno desse país para o regime democrático conforme previsto pela Declaração de Santiago, legalmente reconhecida pelo “Sistema interamericano”. Uma decisão assim, acreditava, tinha como efeito a salvaguarda do sistema frente ao risco de sua modificação negativa que inevitavelmente ocorreria com a aprovação de sanções. Essa era a base de seu plano de neutralização de Cuba frente ao conflito da Guerra Fria. O segundo dilema surgiu quando Fidel Castro declarou-se marxista-leninista, vinculando o regime de governo cubano ao da União Soviética. A partir desse momento tornava-se inviável seu retorno à democracia e San Tiago deveria replanejar a sua posição a partir desse fato. Com seus embaixadores, em especial Araújo Castro e Mário Gibson Barboza, ele poderia lidar com o problema de duas formas: ou tentava resolvê-lo pondo EUA e Fidel Castro em diálogo; ou abandonava qualquer forma de solução ao problema e focava nas repercussões internas de sua decisão. Dantas buscou seguir os dois conselhos, na medida em que ambos se adequavam à sua estratégia de impedir qualquer inovação negativa no “Sistema interamericano”, propondo, subsidiariamente, o plano de neutralização como opção. E assim chegou ao terceiro dilema, já em Punta del Este, quando buscou evitar as sanções militares, políticas e econômicas contra Cuba, adiando o início da Conferência para ter tempo de expor o seu projeto de neutralização aos EUA e a Cuba. Conforme a resposta era negativa, só restava a San Tiago – e aos seus aliados – impedir as sanções que se delineavam nas propostas do grupo dos 13. Após uma defesa intrasigente de princípios, e o consequente entrave da negociação, os norte-americanos sugeriram uma resolução sem sanções militares, mas políticas. Ao defender a expulsão do governo de Cuba do “Sistema interamericano”, o dilema de Dantas era: dar um voto negativo à proposta, o qual dividia os países e, por consequência, enfraquecia a união

política hemisférica; ou abster-se de votar, o que não gerava um rompimento total entre eles, ao mesmo tempo em que expressava seu descontentamento com a solução, além de retirar, em parte, a sua legitimidade dentro do sistema, por não ser unânime. Optou por abster-se. Por fim, aprovou as demais resoluções, fazendo pequenas modificações em seu conteúdo, tornando a luta contra o “comunismo” como uma luta contra o “imperialismo”, adequada ao quadro geral de posições já tomadas pela política externa independente.

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CAPÍTULO IV Brasil e a Questão Cubana: a Politica Externa Independente na visão da grande imprensa Luis Carlos dos Passos Martins 109 Arthur Schreiber Azevedo 110 Uma introdução

No presente capítulo, iremos abordar a forma como dois dos principais jornais da grande imprensa nacional nos anos de 1960, o Jornal do Brasil e o Estado de S. Paulo, posicionaram-se frente à participação brasileira na Conferência de Punta del Este, no Uruguai, ocorrida em janeiro de 1962. 111 Este tema já se justifica pela própria importância da Conferência, que discutiu a permanência de Cuba no “sistema americano” e, principalmente, na Organização dos Estados Americanos, depois que o líder revolucionário da ilha caribenha, Fidel Castro, optou por encaminhar o regime cubano em direção ao socialismo e à influência de Moscou. Além disso, a historiografia interpreta a participação brasileira nesse episódio como um momento de inflexão da política externa nacional, no qual o país teria passado de um tradicional alinhamento com as posições norte-americanas para uma Política Externa Independente (PEI), pela qual procuraria pautar a sua inserção internacional não por bandeiras ideológicas, mas pela ampliação dos parceiros a fim de obter maiores vantagens econômicas e políticas. A escolha da investigação a partir dos grandes jornais tem, porém, suas próprias motivações. Estudos sobre a forma como a imprensa nacional abordou as principais questões de política externa brasileira ao longo da História são ainda raros. A bibliografia especializada privilegia a análise dessa questão nos círculos políticodiplomático, normalmente com um enquadramento macro-histórico, procurando 109

Pós-doutor em História pela PUCRS e professor do Curso de Graduação em História e do PPG em História da mesma instituição. 110 Especialista em Política Internacional pelo PPG em Sociologia da PUCRS e mestre em História pelo PPG de História da mesma instituição. 111 Esse capítulo é a apresentação de resultados parciais de uma pesquisa maior que está investigando a forma como a Política Externa Brasileira foi abordada pela grande imprensa nacional no período do pósguerra (1945-1964).

relacionar as tomadas de decisões na condução dos negócios externos com a dinâmica econômica, social e política do país. Não se trata, é claro, de criticar essas formas de abordagem, todas elas pertinentes para a compreensão do tema aqui em análise, mas de apontar um aspecto que ainda tem sido pouco explorado. O estudo dos posicionamentos da grande imprensa a respeito da política externa brasileira tem diferentes pontos de interesse. Em primeiro lugar, em virtude da própria necessidade de os formulares e executores dessa política buscarem respaldo interno para as suas ações no plano externo.112 Embora tais ações sejam voltadas para a relação do país com os demais, ela também visa e mesmo não pode desconsiderar a repercussão junto às diversas instâncias sociais no interior de uma nação. O que se torna ainda mais imperioso em se tratando dos anos de 1960, quando a Guerra Fria dividia o mundo em dois blocos opostos e pautava as tomadas de posição dos partidos e outros grupos políticos. Se aceitarmos isso – e esse é o segundo ponto que gostaríamos de considerar –, a análise dos meios de comunicação se torna fundamental, na medida em que a mídia constitui um espaço privilegiado tanto para a busca de legitimação das políticas públicas frente ao corpo social, quanto para a compreensão da repercussão e das leituras que estas políticas podem receber para além do universo diplomático. Mesmo que os posicionamentos dos meios de comunicação não possam ser generalizados para toda a coletividade e muito menos serem tomados como expressão da “opinião pública”, sua análise oferece bons indicativos acerca das informações, interpretações e ideias que foram difundidas para o “grande público”

113

ou mesmo circularam pelo corpo social

(ROSANVALLON, 2010). Nesse sentido, ao focarmos a pesquisa na forma como conceitos e ações em política externa foram apropriados e difundidos pela grande imprensa, a investigação redireciona o olhar inquiridor do círculo onde essas ações e conceitos são formulados e executados para um espaço no qual eles são discutidos, avaliados e recebem um poder 112

Ver exemplo no Capítulo III, com a posição de Araújo Castro sobre a estratégia brasileira em Punta del Este. 113 No sentido em que Gabriel TARDE (1992) definiu esse termo, ou seja, de um público que só pode ser reunido através dos meios de comunicação de massa. Segundo o autor, a democracia de massa só foi possível na medida em que surgiu a imprensa comercial, capaz de reunir em um “grande público” indivíduos que estão fisicamente separados, geografia e socialmente: “O sufrágio universal e a onipotência das maiorias parlamentares só foram possíveis pela ação prolongada e acumulada da imprensa, condição sine qua non de uma grande democracia niveladora; não digo de uma pequena democracia limitada às muralhas de uma cidade grega ou a um cantão suíço” (TARDE, 1992, p. 91).

de penetração do corpo social que ainda não possuíam - ao menos no que se refere à elite que consume os jornais e cujo respaldo nunca pode ser desconsiderado. Com bem salienta ROSANVALLON, um dos grandes equívocos metodológico da “história das ideias políticas” foi tentar encontrar os conceitos políticos que revolucionaram as sociedades nos grandes filósofos e instituições, esquecendo a forma como tais ideias foram difundidas, discutidas e apropriadas pelo público em geral (ROSANVALLON, 1995, p. 16-17). O estudo da imprensa constituiu uma das principais alternativas para recuperar essa dinâmica do pensamento político, especialmente em sua capacidade mobilizadora. Além disso, embora a mídia não disponha da capacidade de impor a sua representação da realidade aos destinatários de suas emissões como defenderam e ainda defendem as teorias “apocalípticas”,114 não podemos negligenciar a sua influência na delimitação do que vai ser publicamente discutido. Como apontam os pesquisadores orientados pela teoria do agendamento, os meios de comunicação não têm o poder de estabelecer o que as pessoas vão pensar sobre um assunto, mas exercem um importante papel na determinação dos assuntos sobre os quais o público irá pensar (McCOMBS, 2009). Da mesma maneira, BOURDIEU inclui esses meios como um dos principais campos de produção simbólica intervenientes no processo de “delimitação da problemática legítima”,

115

atingindo, inclusive, no mundo contemporâneo, a condição

de espaço mais importante na imposição do que é politicamente pensável. Em seu texto, hoje clássico, sobre o “império do jornalismo”, o autor afirma que a “publicidade”, ou seja, a capacidade de “tornar público” controlada pela mídia, exerce um forte efeito de “legitimação” sobre as temáticas previamente selecionadas por ela. Em consequência, para o autor, o “monopólio sobre os meios de grande difusão” permite ao campo jornalístico se impor ao campo político como local privilegiado do contato com o grande público (BOURDIEU, 1994, p. 6-7) e, dessa maneira, impor a sua própria lógica de funcionamento a este último. 114

Quanto às teorias “apocalípticas”, ver Humberto ECO, 1993, e sobre as teorias hipodérmicas e a Escola de Frankfurt, consultar Mauro WOLF (2003). Apesar de ocuparem campos opostos no universo epistemológicos nos estudos de comunicação, tanto a teoria hipodérmica quanto a abordagem frankfurtiana parte do pressuposto de que o emissor de uma mensagem tem grande capacidade – quase inapelável – de impor o sentido final que a mesma irá receber no emissor. 115 BOURDIEU define o que chama de “campo de produção ideológica”, na qual a imprensa teria um papel cada vez mais importante, como um “universo relativamente autônomo, onde se elaboram, na concorrência e no conflito, os instrumentos de pensamento do mundo social objetivamente disponíveis a um momento dado do tempo e onde se define, simultaneamente, o campo do pensável politicamente ou, se quiser, a problemática legítima” (1979, p. 465).

Devemos, porém, evitar o risco – tão comum e tentador – de pensar essa possibilidade de delimitação da problemática legítima como sendo apenas fruto da ação deliberada daqueles que controlam os meios de comunicação. É necessário também se precaver da tendência, como tradicionalmente faz a análise da mídia no Brasil, de colocar a imprensa somente como porta-voz de discursos externos à sua área de produção, cuja finalidade seria apenas “manipular” conscientemente a “realidade” a fim de defender interesses políticos e econômicos.116 Embora essa forma de análise não deva ser descartada, limitar-se a esse aspecto seria muito redutor na avaliação do fenômeno comunicacional. Como bem ressalta BOURDIEU, os meios de comunicação devem ser considerados como um campo de produção simbólica que, mesmo dependente das pressões externas, possui a sua lógica específica de funcionamento e as suas formas próprias de selecionar e representar a realidade, nas quais também interferem, além dos interesses exteriores, categorias sociais e profissionais de compreensão do mundo, que normalmente não agem de maneira consciente e deliberada. Mais do que isso, como ressalta Lavina RIBEIRO (2004), as tomadas de posição dos jornais constituem a principal formar a partir da qual o jornalismo impresso constrói simbolicamente a sua inserção no “espaço público” como capaz de criar significados para os seus leitores e, assim, construir-se como um interlocutor legítimo nesse espaço. Dessa forma, considerar a mídia como mero instrumento de defesa de outros “poderes sociais” é, no mínimo, empobrecer o seu papel efetivo no debate nas sociedades contemporâneas. Por fim, os argumentos precedentes nos levam à outra questão: a necessidade de considerar o estudo da imprensa em si mesmo, ou seja, como objeto específico de análise. Avaliar a forma como os grandes jornais historicamente abordaram a política externa brasileira constitui um excelente tópico para compreender o seu posicionamento político-ideológico, tema bastante controverso e ainda muito negligenciado pela historiografia dedicada ao estudo dos meios de comunicação no país. Pois permite entender como essa imprensa tentou construir a sua posição no debate público avaliando a inserção internacional do país e, assim, procurou legitimar-se frente aos seus leitores como um intérprete do mundo e da imersão do Brasil no mesmo. 116

Quanto a isso, ver as posições de SODRÉ (1983) e CAPELATO (1980), a qual define a imprensa como “instrumento de manipulação de interesses”.

A escolha dos periódicos O Estado de S. Paulo e o Jornal do Brasil decorreu especialmente do fato de eles estarem entre os mais importantes órgãos da grande imprensa brasileira nos anos 60. O Estadão, jornal paulista bastante tradicional, com quase 80 anos de existência nesse período, era o principal expoente da mídia de São Paulo. Enquanto que o JB, impresso carioca com 70 anos de existência, encontrava-se entre os jornais mais influentes do Rio de Janeiro, ocupando um lugar de vanguarda na modernização do jornalismo brasileiro naquela conjuntura. Embora não se pretenda tomar esses dois jornais como representantes de toda a imprensa nacional, pelo exposto, não é difícil de aceitar que ambos fornecerão, no atual estágio da pesquisa, bons indicativos sobre as percepções possíveis da participação brasileira em Punta del Este e da Política Externa Independente que circularam na imprensa no período 117.

A Conferência em seu contexto

Para compreendemos melhor o significado da participação brasileira na Conferência de Punta del Leste devemos, inicialmente, esclarecer melhor o que se entende por Política Externa Independente (PEI). Esta foi uma estratégia gestada nas presidências de Jânio Quadros e de João Goulart, com a participação de seus respectivos ministros das relações exteriores – Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Araújo Castro – entre os anos de 1961 e 1964. Por meio dela, procurava-se dar um sentido comum e certa continuidade às ações desses governos em política externa, as quais, embora não fossem completamente coerentes entre si, guardavam características similares, como a busca pela universalização das relações internacionais do Brasil, a defesa da descolonização, da autodeterminação dos povos e da não intervenção em assuntos internos. Essas ideias surgiam em um momento no qual se discutia com intensidade a coexistência pacífica entre os Estados Unidos e a União Soviética, bem como emergia a influência do chamado “Terceiro Mundo” – conceito surgido nesse período -, contido no Movimento dos Não Alinhados (ARCHER, 1985; CERVO, 2008; CRUZ, 1989). No plano econômico, a “independência” se caracterizava pela expansão da inserção brasileira sobre os mercados consumidores da África, da Ásia e do Leste 117

Sobre esses jornais, um histórico mais detalhado será oferecido no capítulo seguinte.

Europeu, em uma tentativa de diversificar as exportações nacionais e impulsionar o projeto de desenvolvimento, independentemente de afinidades ideológicas com seus sistemas de governo das nações parceiras. No plano interno, ela se contrapôs à “Operação Pan-Americana” de Juscelino Kubitschek, que privilegiava o relacionamento com os EUA e o hemisfério, não somente em questões econômicas, mas também politicamente. Portanto, a PEI foi formada, aos poucos, em um período de intensa crítica sobre a inserção internacional do Brasil e de busca por estratégias não ideológicas para a formação de parcerias externas (CRUZ, 1989). A Conferência de Punta del Este, ocorrida no litoral uruguaio em janeiro de 1962, foi negociada dentro desse contexto geral da PEI, no momento em que se tentava dar os primeiros sentidos para essa estratégia. De modo objetivo, ela reuniu os países que compunham a Organização dos Estados Americanos (OEA) para decidir as repercussões políticas e jurídicas da Revolução Cubana dentro dessa instituição intergovernamental. O desenrolar dessa questão expôs uma divergência fundamental entre os participantes. De um lado, havia aqueles que defendiam a aplicação de sanções econômicas, diplomáticas e militares contra o regime de Fidel Castro, com base em uma interpretação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), no qual a simples existência de um governo comunista, socialista ou ligado à União Soviética consistia em uma ameaça presumida de agressão ao sistema interamericano e deveria, portanto, ser eliminado. Essa posição era sustentada pelo chamado grupo dos 13, composto por Estados Unidos, Colômbia, Guatemala, San Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Haiti, República Dominicana, Panamá, Peru, Paraguai e Venezuela. O Haiti, embora tenha saído temporariamente do grupo, retornou a ele ao final, mediante a promessa de investimentos e recursos norte-americanos. Do outro lado, estavam os países que se contrapunham à aplicação de sanções de qualquer natureza contra Cuba, argumentando que o sistema interamericano garantia a autodeterminação para seus membros, além de não prescrever qualquer forma de intervenção em seus assuntos internos. A escolha de um regime de governo, afirmavam, era um tema particular a ser decidido pelo povo de cada país e não coletivamente pela OEA. Faziam parte desse grupo, chamado de grupo dos seis (com a participação temporária do Haiti), Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Equador e México.

A delegação brasileira, chefiada pelo Ministro das Relações Exteriores San Tiago Dantas, defendia esses dois princípios e, subsidiariamente, a aprovação de um plano de neutralização para Cuba, ao estilo do acordado em relação à Finlândia. Em ambos os casos, o EUA e a União Soviética deveriam se abster de interferir política e militarmente no país em troca da estabilidade na região. O plano brasileiro, no entanto, não foi aceito pelos norte-americanos. Outra singularidade era que o chanceler Dantas não aprovava as aplicações de sanções porque elas poderiam modificar o funcionamento da OEA de modo a prejudicar, futuramente, a independência e a autonomia da política externa brasileira, e afetar, consequentemente, o projeto de desenvolvimento nacional pensado pelo governo (FRANCHINI NETO, 2004). Durante a negociação, todavia, algumas posições acabaram convergindo entre os participantes, especialmente os indecisos, como o próprio Uruguai. Segundo as regras da OEA, para aplicar qualquer forma de sanção em uma Reunião de Consulta de Ministros das Relações Exteriores, era necessário o voto da maioria absoluta (dois terços dos participantes), mais especificamente 14 votos. Como o grupo dos 13 necessitava apenas de mais um voto, o Secretário de Estado norte-americano, Dean Rusk, sinalizou uma resolução intermediária, excluindo o governo – e não o Estado cubano – da OEA. Essa resolução teve o voto positivo do número mínimo de participantes, incluindo-se o país sede da Conferência junto ao grupo dos 13. As demais nações abstiveram-se de votar essa resolução, não causando nenhum constrangimento maior ao funcionamento da organização. Foi a primeira vez que uma resolução em suas conferências não foi tomada por unanimidade (MONIZ BANDEIRA, 1998). Com esse resultado, qual importância de Punta del Este para a PEI? A historiografia responde a essa pergunta por meio do que chama de uma negação ao “alinhamento automático” com os Estados Unidos ocorrido durante a Conferência. Nesse alinhamento, os interesses nacionais do Brasil eram identificados pelos formuladores de política externa como idênticos aos interesses nacionais dos norteamericanos, e o resultado era uma aliança privilegiada com a maior potência do continente e do mundo (RICUPERO, 2006, p. 27), naquilo que ficou conhecido como “pan-americanismo”, ou seja, uma aliança continental entre todos os países que compunham a OEA. Em Punta del Este, entretanto, observa-se uma passagem da prioridade “pan-americana” para uma prioridade “latino-americana”, na qual as relações internacionais do país iriam

priorizar o relacionamento com

os vizinhos

subdesenvolvidos

do

continente,

bilateralmente

ou

com

novas

instituições

internacionais que estavam sendo criadas, como a Associação Latino Americana de Livre Comércio (ALALC) (CERVO, 2008, p. 75-76). Outra questão advinda dessa característica de desalinhamento com os EUA ocorrido na PEI era a mudança, igualmente importante, de uma prioridade “regional” da política externa, na qual a OEA apresentava-se fundamental, para uma prioridade “universal”, na qual o relacionamento preferencial do Brasil se diversificava, no seio da Organização das Nações Unidas (ONU) e por meio de relacionamentos bilaterais. Nesta perspectiva, o governo brasileiro abria espaços globais em suas estratégias de inserção internacional, vinculando-se com países de outros continentes e de outras matrizes “ideológicas”, com a mesma ênfase de prioridade que dava para o relacionamento com os do continente (VIZENTINI, 2003). Parte da historiografia interpreta essa nova estratégia de inserção internacional como sendo resultado de uma inovação na perspectiva sobre o “interesse nacional”, determinado, agora, a partir de prioridades políticas internas, consequências diretas da urbanização e da industrialização, as quais geraram novos atores e novas demandas sociais (CERVO, 2008, p. 74). Decorreria daí a razão pela qual o Estado brasileiro passa a defender os princípios de não-intervenção em assuntos internos e da autodeterminação dos povos, isto é, os conceitos de liberdade e soberania política durante a Conferência de Punta del Este.

Punta del Este em pauta: os jornais e a Conferência

Analisando os dois jornais pesquisados, é indiscutível o grau de importância que a Conferência de Punta Del Este recebe nesses periódicos. Afora as reportagens e notícias, o encontro de Chanceleres é abordado pelos impressos em seus editoriais praticamente em todos os dias avaliados. Além disso, é perceptível que ambos os periódicos deram ênfase semelhante ao tema, não sendo possível afirmar que o assunto receba maior destaque em um do que em outro. Essa constatação, porém, não deve surpreender, na medida em que, como vimos, discutia-se em Punta del Este não só como lidar com Cuba pós-revolucionária, mas

também com as consequências que a sua opção pelo socialismo poderia trazer para a segurança hemisférica e o “concerto americano”. Igualmente não surpreende que ambos os periódicos apresentem uma visão pouco positiva sobre a situação cubana. Embora possamos encontrar elogios a respeito da Revolução, ocorrida em 1959, os rumos assumidos pelo governo revolucionário, liderado por Fidel Castro, em direção ao socialismo e ao alinhamento com o Bloco Soviético, desagradaram sobremaneira os jornais. O que mais preocupa, porém, os impressos não é a opção político-ideológica da ilha caribenha – embora, isso não conte com o seu apoio. O foco das suas restrições está nos efeitos que esta opção poderia trazer para a América, servindo como uma provável porta de entrada para o socialismo e os “interesses de Moscou” no continente. Como deixa bem claro OESP: O ano de 1959 começou também sob a égide de Cuba e da mensagem de esperança que trouxeram ao seu povo, e a todos os outros povos da América Latina, os lutadores de Sierra Maestra ao entrarem triunfantes em Havana. Desde então a esperança que Fidel Castro suscitou foi progressivamente substituída pelas perspectivas sombrias que se abriram para a América Latina pelo fato de a bela filha tropical das Antilhas separando-se espiritualmente de tudo que as Américas significam, ter-se transformado numa base logística da penetração comuno-soviética neste Continente.118

Dessa maneira, seria de se esperar que ambos os periódicos apresentem grandes expectativas sobre a realização da Conferência e dos resultados que ela poderia conseguir. Entretanto, quando analisamos OESP, percebemos que este jornal não se posiciona diretamente sobre o conclave antes de sua abertura.119 O periódico apenas começa a fazer referências ao encontro na medida em que aborda a participação brasileira no mesmo, indicando agora o apoio dado à sua realização, como podemos notar por esse comentário às decisões finais do conclave: O culto da liberdade da pessoa humana e a independência interna e externa das nações. Foi esta tradição mais caracteristicamente americana, que foi vitoriosamente reafirmada pela Conferência de Punta del Este, a cujo nome permanecerá eternamente ligado a fato inédito na história de um continente 118

“Uma lição para os tímidos”, O Estado de S. Paulo, 02 de janeiro de 1962, Caderno 1, p .3. O Jornal do Brasil compartilha essa preocupação, alertando os seus leitores sobre o risco que a ilha insurgente representava para todo o continente americano. “Ou devemos cruzar os braços diante do regime de Fidel Castro, que põe toda a sua alma numa revolução marxista latino-americana? Devemos, por acaso, aplaudir o confisco de propriedades, a criação de um partido único, os fuzilamentos, as restrições crescentes à Igreja Católica, a propaganda subversiva espalhada por todo o Continente, o estímulo às atividades revolucionárias nas pequenas nações das Caraíbas?” (“Que fazer de Cuba?”, Jornal do Brasil, 12 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6) 119 É bastante aceitável interpretar essa negligência como sendo uma forma de dizer que se trata de uma ação cuja necessidade se impõe por si só, não precisando ser, por isso, justificada.

inteiro de, por decisão unanime de todas as nações que nele habitam, ter-se formulado a “doutrina da incompatibilidade” da ideologia comunista com os princípios que regem sua vida política e social. 120

O Jornal do Brasil, ao contrário do Estadão, posiciona-se de forma muito eloquente sobre a Conferência no período que antecede a abertura da mesma. A sua posição, porém, é muito mais de receio e resistência do que entusiasmo. Lembra o impresso, por exemplo, que ela “foi convocada nos termos do Tratado do Rio de Janeiro – o que nos pareceu incorreto”, tendo em vista que nem este e “nem a Carta da OEA preveem sanções contra um país por agressão ideológica ou de propaganda ou por ter firmado acordos comerciais, culturais, etc., com uma nação extracontinental”. 121 Em outras palavras, a maior preocupação JB está no medo que da Conferência resultem sansões punitivas contra Cuba por suas opções políticas internas, numa clara agressão à soberania nacional cubana e ao princípio democrático do concerto interamericano. 122 Percebe-se, dessa forma, a proximidade da opinião do JB com a linha defendida pela diplomacia brasileira em Punta del Este o que não conseguimos identificar no Estadão. Este último, por sinal, foi bem eloquente em avaliar a participação do Brasil no Conclave. Começa levantando severas dúvidas sobre a ação do governo federal, afirmando: “Têm sido tão frequentes, tão confusas e, às vezes, tão contraditórias as declarações do sr. Santiago (sic) Dantas a respeito da posição do Brasil na próxima conferência de Punta del Este que já não se sabe, afinal, qual será essa posição.” 123 Quando analisa o conteúdo apresentado pela chancelaria brasileira, o jornal não condena propriamente a oposição de Dantas a uma possível invasão da ilha de Fidel. 124 Detemse, na verdade, naquilo que identifica como vacilo do chanceler ao não aderir 120

“O exemplo das Américas”, O Estado de S. Paulo, 02 de fevereiro de 1962, Caderno 1, p. 3. “Solução política”, Jornal do Brasil, 07 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6. 122 “A Conferência dos Chanceleres das 21 Repúblicas membros da Organização dos Estados Americanos, a ser aberta amanhã em Punta del Este, deverá responder a três questões principais. A primeira é se os Estados membros da OEA são – ou não – tão soberanos quanto os outros países independentes das várias regiões do mundo. A segunda é se existe realmente uma diferença ético-político entre o sistema interamericano e o sistema de nações que tem seu centro no (hoje abalado) eixo Moscou – Pequim. A terceira é se a orientação democrática e política de homens como o Presidente Kennedy é realmente a que domina hoje em dia no alto do Poder norte-americano” (“Destemor e confiança”, Jornal do Brasil, 21 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6). 123 “Ainda a institucionalização do problema cubano”, O Estado de S. Paulo, 14 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 3. 124 “O sr. San Thiago Dantas já evoluiu em relação às que publicamos anteontem. Já não se trata tanto de reintegrar Cuba num sistema que ela pretende desintegrar, mas sim de demonstrar a inconveniência de uma ação militar pura e simples e também de sanções econômicas e de sugerir medidas diplomáticas. Ora, ninguém pretende aconselhar ações militares, e, como o próprio sr. San Thiago Dantas proclama seria pelo menos inócua qualquer sanção econômica” (“Ainda a institucionalização do problema cubano”, O Estado de S. Paulo, 14 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 3). 121

imediatamente à alternativa de exclusão da ilha caribenha da OEA. Para o jornal, “a única fórmula” aceitável seria “o afastamento de Cuba da Organização dos Estados Americanos e o seu consequente isolamento dentro do bloco interamericano. Será isso que sugere o sr. San Thiago Dantas?. [...] Qual será a posição do Brasil na conferência de Punta del Este?” 125 Diante dessa situação, o periódico desdenha da posição do chanceler brasileiro, em especial de seu argumento de que a Conferência não tinha como sancionar qualquer um dos seus membros por decisões em sua política interna. Segundo o impresso paulista, essa forma de raciocínio não passa de mera filigrama jurídica, a qual, porém, não é sem consequências, tendo em vista que abre o risco de infiltração comunista na América, o maior receio do jornal relacionado ao caso cubano. Conforme o Estadão “a Cuba do sr. Fidel Castro” não pode pertencer à “família das nações americanas”, pois, “(t)anto ou melhor do que nós, sabe s. exa. o que significa para a harmonia continental a existência de uma ‘cabeça de ponte’ bolchevista no coração do Hemisfério”.126 Agindo dessa forma, “a posição brasileira só pode favorecer a Cuba marxista e, através dela, o Cremlin”, algo que se torna muito perceptível, para o impresso, quando se observa “a satisfação com que o comunismo acompanha a ação do sr. San Thiago Dantas” e “o apoio indisfarçado que as autoridades brasileiras se preparam para dispensar ao governo de Havana”.127 Outra consequência danosa é o significado da ação do chanceler sobre os rumos da política externa brasileira para o continente, ao quebrar com uma suposta tradição de convergência com os EUA. 128 O Estadão, porém, deixa claro que essa mudança de rumos, embora esteja sendo agravada, não foi concebida e nem iniciada por Dantas. Ao contrário, ela já vinha sendo gestada pelo governo de Jânio Quadro, como salienta o jornal ao recordar que a posição do Chanceler em Punta del Este coincide, aliás, no fundo, com a que assumiu o sr. Jânio Quadros quando, ao empossar-se na Presidência da República do Brasil, resolveu modificar o rumo da nossa política exterior, que sempre fora de absoluta lealdade à palavra empenhada com os Estados Unidos num solene tratado de aliança 125

“Ainda a institucionalização do problema cubano”, O Estado de S. Paulo, 14 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 3. 126 ”A entrevista do chanceler”, O Estado de S. Paulo, 17 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 3. 127 “Atitude que se não justifica”, O Estado de S. Paulo, 18 de janeiro de1962, Caderno 1, p. 3. 128 “No conclave de Punta del Este, pelo que se pode concluir das reiteradas declarações do titular do Itamarati, o Brasil afastar-se-á da sua posição histórica. Ao contrário do que sempre se verificou no passado, o Governo brasileiro resolveu desta vez assumir posição divergente dos Estados Unidos.” (“Atitude que se não justifica”, O Estado de S. Paulo, 18 de janeiro de1962, Caderno 1, p. 3).

militar. Aproximou-se então o ex-presidente do grupo das nações ditas “neutralistas”. Não ia até à adesão a Moscou, pois no fundo é um liberal convicto, mas em sua inveterada e primária demagogia não podia deixar passar a ocasião de fazer escândalo, comprometendo o Brasil numa tomada de posição dúbia que havia de concorrer para a sua queda do poder.129

Para reforçar essa posição, o jornal externa seu apoio ao Manifesto dos ExChanceleres, um apedido publicado na imprensa por quatro ex-ocupantes do Itamarati os quais, com base na sua suposta autoridade derivada do exercício pretérito da chancelaria, vieram a público discordar da linha “neutralista” de Dantas.130 Sobre a nota, comenta o Estadão Em memorial dirigido ao governo federal, os ex-ministros do Exterior do Brasil declaram-se irredutivelmente contrários ao ponto de vista do sr. San Thiago Dantas. E isto depois de enumerarem os compromissos iniludivelmente assumidos pelo País em sucessivos acordos e tratados de cuja redação participamos e cuja validez jamais foi contestada por qualquer governo brasileiro. Em todos esses documentos nos comprometemos solenemente, com as demais nações que os assinaram, a combater o totalitarismo de esquerda que viesse porventura a se implantar no Continente.131

Outra forma de deslegitimar a posição da chancelaria é enquadrá-la como dissociada do interesse ou opinião da coletividade. Assim, a crítica dos ex-chanceleres não é apenas a palavra de antigos ocupantes do Itamarati, pois, com ela, “nada mais fazem do que interpretar o sentimento nacional”.132 O próprio jornal também se coloca como um intérprete privilegiado do interesse coletivo, falando em nome de toda a nacionalidade: A Nação brasileira não aceita de modo algum o ponto de vista sustentado em Punta del Este pela nossa declaração. E, através da sua imprensa, pela voz dos chefes da Igreja e pelas manifestações de grande número de congressistas, ela fez já sentir que reprova inapelavelmente a posição assumida pelo Brasil no Uruguai. 133

129

“A defesa do continente e o Itamarati”, O Estado de S. Paulo, 01 de fevereiro de 1962, Caderno 1, p. 3 O Manifesto dos Ex-Chanceleres foi um apedido publicado no dia 16 de janeiro de 1962, no jornal O Globo, assinado por quatro ex-titulares do Ministério das Relações Exteriores, José Carlos Macedo Soares, João Neves da Fontoura, Vicente Ráo e Horário Lafer. Todos tinham sido chanceleres de pelo menos um dos governos que datavam de Getúlio Vargas, Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek. Nessa nota, os signatários condenavam a linha de ação adotada pelo Brasil para se posicionar na VIII Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores da Organização dos Estados Americanos, defendendo um retorno às “nossas tradições” de alinhamento com o posicionamento norte-americano e o combate ao “totalitarismo”. 131 “O Manifesto dos ex-chanceleres”, O Estado de S. Paulo, 19 de janeiro de1962, Caderno 1, p. 3. 132 “O Manifesto dos ex-chanceleres”, O Estado de S. Paulo, 19 de janeiro de1962, Caderno 1, p. 3. 133 “Governos versus opinião pública”, O Estado de S. Paulo, 03 de fevereiro de 1962, Caderno 1, p. .3. 130

Distanciada do interesse coletivo, a posição de Dantas e do governo brasileiro são associadas a interesses particulares, ou pior, a interesses partidários e ambições políticas do próprio chanceler: A Casa de Rio Branco era terreno respeitado, onde nunca lograva penetrar a política rasteira dos partidos. Hoje, pelo contrário, o que se vê é um governo constituído por elementos de partidos fragorosamente derrotados nas últimas eleições subordinar a tese que defende em congresso internacional às conveniências dos seus membros no futuro pleito eleitoral. Não é o prestigio nem a segurança nacional que o sr. San Thiago Dantas tem em vista quando procura insistentemente solidarizar-nos com a aventura castrista: o que preocupa s. exa. é o que possa pensar de sua atitude em Punta del Este o eleitorado que obedece a liderança da corrente comuno-nacionalista.134

Atitude que se explica pela “filiação” política do chanceler, da “mesmíssima família” do “homem que neste momento preside aos destinos políticos da nacionalidade”: O sr. Jango Goulart veio-nos de São Borja e o sr. Tancredo Neves, chefe do Conselho de Ministros, e, portanto, segunda responsabilidade na hierarquia da alta administração, provém da facção política mineira que nunca deixou de estar ao lado do ditador Vargas. Nessas condições, seria realmente de espantar que o sr. San Thiago Dantas fosse a Punta del Este defender a tese que a democracia liberal brasileira entende ser a única que corresponde ao sentir quase unanime da nacionalidade.135

Em outras palavras, a postura particular do chanceler brasileiro em Punta del Este só se explicaria como uma atitude voltada aos interesses mesquinhos particulares de Dantas e dos políticos que ele representa. Quando analisamos o Jornal do Brasil, encontramos uma posição singularmente diferente sobre a posição brasileira na questão em debate. O periódico carioca não se furta em elogiar abertamente a linha de ação adotada pela chancelaria nacional, afirmando que ela é “a mais construtiva e realista de quantas já foram divulgadas, por vários Estados”. Para o JB, nada é tão construtivo e realista, neste mundo dividido em que vivemos e neste Continente angustiado a que pertencemos, do que uma tentativa objetiva e franca de contribuir para a paz regional e para a preservação de um sistema fundado nos princípios da civilização ocidental. 136

134

“Itamarati em Punta del Este”, O Estado de S. Paulo, 26 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 3. “Governos versus opinião pública”, O Estado de S. Paulo, 03 de fevereiro de 1962, Caderno 1, p. 3. 136 “Brasil e Cuba”, Jornal do Brasil, 13 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6. 135

No que se refere propriamente ao conteúdo, o JB endossa a defesa que Dantas faz dos princípios de autodeterminação dos povos e de não intervenção como argumento para tentar vetar as sanções punitivas a Cuba. Mais do que isso, conforme o jornal, tal posição não contraria a linha de ação histórica do Brasil, mas é formulada como “reza a tradição do Itamarati”: Vale a pena assinalar que a conduta da Chancelaria brasileira sempre foi de reafirmar esses princípios consagrados nos instrumentos internacionais que o Brasil firmou. [...] O fato de ser Cuba, hoje em dia, uma nação sob regime comunistas não desobriga o Brasil do cumprimento dos tratados existentes. Muito pelo contrário. Nação democrática o Brasil não tem o hábito – tipicamente totalitário – de considerá-los meros farrapos de papel.137

Encontramos nesse ponto não uma apenas uma divergência de posição, mas uma verdadeira “luta simbólica” - no sentido que Bourdieu emprega essa expressão138 - entre os dois jornais pesquisados, qual seja: uma disputa pela imposição do sentido mais legítimo de uma palavra, conceito ou expressão, que é, ao mesmo tempo, uma forma de (des)legitimar aqueles que as empregam. No caso em questão, um conflito pela definição mais legítima do que seria a “tradição” da política externa brasileira e qual lado da disputa seria o “totalitário” e qual o democrático. Sintomaticamente, é importante notar que nenhum dos jornais nega a necessidade de associar a ação da política externa brasileira a uma “tradição”, o que nos denota o respaldo que o Itamaraty tem como instituição responsável por tal política e a importância de vincular qualquer ação na condução da mesma a uma linha de continuidade. Da mesma maneira, ambos os periódicos procuram defender a sua posição relacionando-a à “democracia” e classificando a ação dos adversários como “totalitária”. O notável é a diferença de definições que eles atribuem a esses termos. No caso do Estadão, democracia está praticamente reduzida ao combate ao comunismo, enquanto totalitarismo fica circunscrito ao próprio comunismo. Qualquer atitude que se tome para combatê-lo é legitima-se em si mesma, inclusive a que

137

“Solução política”, Jornal do Brasil, 07 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6. Conforme BOURDIEU, o campo de produção ideológica é o lugar privilegiado da luta simbólica, ou seja, da luta pela definição da visão mais legítima sobre o mundo social que é também um conflito pela construção desse mundo, porque a transformação ou a conservação da ordem social dependem da transformação ou conservação dos esquemas de percepção dessa ordem. Para este autor, a luta simbólica se dá essencialmente pela disputa em torno da imposição do sentido social ou coletivo dos grupos sociais – definidos por sua posição geral na sociedade e/ou por sua posição específica em determinado campo de produção – e das características, das ideias, dos programas, dos projetos, que a eles estão associados (BOURDIEU, 1990, p.192; BOURDIEU, 1989, p.134). 138

implique em quebra das regras legais e em agressão a outras nações. Já para o JB, temos o contrário: a democracia sendo associada ao respeito às normas jurídicas do “concerto americano” e o totalitarismo às medidas usadas para desrespeitá-las, não importando as causas que as motivem. No que se refere à definição da “tradição brasileira” em política externa, OESP a define como a aproximação à política norte-americana de combate ao comunismo, ou seja, de adesão aos princípios da Guerra Fria no contexto americano. No caso do Jornal do Brasil, essa tradição passa a ser a coerência histórica com os princípios de autodeterminação e de não-intervenção e a prioridade dada não a compromissos ideológicos mas aos preceitos jurídico-políticos de “liberdade” e “democracia”. O impresso carioca, porém, não defende essa linha de ação como um enfrentamento dos EUA. Ao contrário, caso a chancelaria brasileira se mantenha nesse caminho, ela ajudaria os norte-americanos na definição de uma política continental mais acurada: “O nosso Governo prova que o Brasil já atingiu a maturidade política e pode, por meio de sua ação independente, prestar um serviço real não apenas ao sistema a que pertence como, também, ao seu aliado tradicional: os Estados Unidos”. 139 Dessa maneira, não deve surpreender a crítica contundente que o JB faz ao Manifesto dos Ex-Chanceleres. Não só acusa o documento de oportunista e desestabilizador da posição brasileira na Conferência, como também contesta abertamente a interpretação que ele faz da tradição do Brasil em política externa. Insinuam que o Governo está, pura e simplesmente, invocando “o preceito de autodeterminação para justificar, sob a capa da neutralidade o descumprimento de compromissos soberanamente assumidos por todos e pelo Brasil”. Pedem que o Governo resguarde a tradição diplomática brasileira, dando a entender que tal coisa não está acontecendo. (...) É o caso de acolherem – eles – um apelo. O daqueles brasileiros mais informados e mais atualizados que sabem que a luta contra o adversário é um exercício de paciência e de firmeza. 140

Notamos, dessa forma, que o JB distancia-se muito da posição do Estadão na avaliação do papel brasileiro na Conferência de Puntal del Este e do que seria a nossa tradição em política externa. As divergências, porém, não param por aí. Quando se reporta, por exemplo, ao “perigo cubano”, o Jornal do Brasil, mesmo que não descarte por completo a possibilidade de um avanço do comunismo na América 139 140

“Brasil e Cuba”, Jornal do Brasil, 13 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6. “Apelo aos apelantes”, Jornal do Brasil, 18 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6.

a partir da Revolução em Cuba, minimiza esse perigo, afirmando que o “comunismo cubano já está circunscrito, praticamente, pela simples ação de presença de forças norteamericanas nas Caraíbas. E a Aliança para o Progresso, se aplicada com a necessária rapidez, impedirá o processo de cubanização do Continente”.141 Na verdade, a maior preocupação do jornal não está no avanço do comunismo, mas no risco ao “sistema interamericano” decorrente de um confronto entre Estados Unidos e Cuba se ambos continuarem irredutíveis em suas posições políticas. Como pergunta o JB: até “que ponto o Governo de Cuba está disposto a aceitar que a sua revolução seja circunscrita e até onde o Governo norte-americano se sentirá suficientemente forte para abandonar a posição emocional que sempre manteve com relação ao caso cubano, passando a adotar uma atitude racional?”

142

O alvo dessa fala,

porém, não é Havana, cujas decisões o jornal não parece querer influenciar, mas o governo de Washington, o qual, conforme o impresso carioca, “deve (...) enfrentar os riscos de uma gradativa mudança de orientação quanto ao caso cubano, pois estes são bem menores do que os riscos que qualquer ação drástica, reflexa ou emotiva pode trazer para o sistema interamericano.” 143 Ou seja, mais do que o medo do comunismo, a grande ameaça que a questão cubana está gerando é o fim do sistema interamericano derivado de uma ação agressiva dos EUA - no caso, a invasão de Cuba -, em detrimento das soluções políticas e dos princípios jurídicos que deveriam nortear as relações entre os países. Mas que sistema interamericano era este? Em outras palavras, como o jornal define este sistema que tanto procura defender? A resposta a essas questões aparece abertamente na avaliação que o JB fez dos resultados finais da Conferência:

E aí está o segundo grande resultado da Conferência de Punta del Este: ficou provado, de uma vez por todas, para conhecimento não só do comunismo internacional como de todo e qualquer bloco ou país, que o sistema em que vivemos é uma associação de países livres. (...) todos, sem exceção, no livre gozo de sua soberania nacional, exercendo em toda a sua profundidade o 141

“Esperança em Kennedy”, Jornal do Brasil, 16 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6). Ou ainda: “O segundo ponto de referência a que inicialmente nos referimos consiste na comprovação do fato – no qual tantas vezes insistimos, nesta coluna – de que a Cuba não interessa deixar o sistema interamericano. Nestes dias, em Punta del Este, e já antes, ao passar pelo Brasil, a atitude da delegação cubana não tem mostrado outra coisa. As ameaças cubanas no sentido de poder Cuba vir a integrar-se no Pacto de Varsóvia são bravatas pueris” (“Posição de grandeza”, Jornal do Brasil, 28 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6). 142 “Esperança em Kennedy”, Jornal do Brasil, 16 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6. 143 “Esperança em Kennedy”, Jornal do Brasil, 16 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6.

direito de escolha entre objetivos, métodos, estilos de ação. Um sistema democrático unindo nações democráticas. Sistema e nações que, inclusive, se sentem suficientemente fortes para suportar, sem entrar em pânico, o desvio ocasional, para a direita ou para a esquerda, deste ou daquele de seus membros mais débeis. Um sistema, ademais, que se sabe capaz de exercer irresistível atração, mais cedo ou mais tarde, para os transviados da esquerda e da direita. 144

Ora, essa definição do “sistema interamericano”, baseado nos princípios da democracia continental e da “auto-determinação dos povos”, difere muito da definição tradicional de pan-americanismo, como convergência com as orientações norteamericanas, aproximando-se daquilo que defendia a diplomacia brasileira naquela conjuntura. Mais do que isso, a viabilidade e mesmo a vitalidade desses princípios exigem uma mudança na linha de ação estadunidense. Para o jornal, aliás, os EUA estão diante de uma “encruzilhada” entre duas opções representadas por duas figuras públicas: de um lado, a nova orientação do governo de John Kennedy, “intelectual e político por vocação”, e, de outro e contrário à primeira, “os militares e mercadores que insistem em manter, como guia dos Estados Unidos, uma política de potência inteiramente ultrapassada pelos fatos da vida de nossa época.145 Durante toda a sua cobertura da Conferência, o impresso carioca avalia a participação estadunidense com base nesse parâmetro, ou seja, qual dos dois lados prevaleceria no posicionamento do país.146 E aposta todas as suas fichas no abandono das posições de força em favor de uma política de desenvolvimento econômico para a América Latina, como forma de combater o comunismo, política esta representada pela Aliança para o Progresso (AP). Essa proposta de Kennedy, aliás, receberá enorme destaque no JB, sendo objeto de menção ou comentário positivo em quase todos os editoriais que abordam a Conferência, em franco contraste com O Estadão, que pouco a menciona. Além de enfatizar esse programa, o Jornal do Brasil ainda demonstra grande esperança que a sua aplicação constitua a principal saída, não só para inibir a possível disseminação do comunismo na América Latina a partir da Revolução Cubana, mas igualmente para prevenir a repetição autóctone do mesmo “problema” em outra nação continental: 144

“Os grandes resultados”, Jornal do Brasil, 31 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6. “Posição de grandeza”, Jornal do Brasil, 28 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6. 146 Assim, logo no início da abordagem do tema, o periódico se preocupa em salientar: “Quanto à posição norte-americana, já foi mais intransigente. Hoje, o Governo dos Estados Unidos procura uma solução política – à seu favor, é claro, mas basicamente política. É com esse espírito que a delegação norteamericana irá a Punta del Este” (“Solução política”, Jornal do Brasil, 07 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6). 145

A Aliança é um programa democrático, político, diplomático – civilizado. É a antítese da intervenção em Cuba ou onde quer que seja, da política da potência, do fechamento de portas e janelas, da interrupção do diálogo, da belicosidade farisaica. A Aliança, ademais, a longo alcance, dispensa qualquer medida externa, unilateral ou coletiva, contra o regime castrista. Pois, se ela tiver êxito, dentro de pouco tempo nada impedirá que intelectuais, estudantes, trabalhadores do campo e da cidade, em todo o Continente, tirem suas conclusões do contraste entre o fracasso político e econômico de Cuba e a prosperidade com liberdade que se instalará em vinte Repúblicas através da Aliança.147

Em consequência, não fica difícil de entender a forma como o JB irá se posicionar frente às mudanças que estavam ocorrendo na orientação da política externa brasileira desde o governo de Jânio Quadros. Ao contrário do Estadão, que insiste em enquadrar o Brasil no contexto ideológico da Guerra Fria, o impresso carioca está preocupado, não apenas com a democracia e a autodeterminação dos povos, mas também com o desenvolvimento econômico da região, para o que uma política externa mais independente dos conflitos ideológicos se torna indispensável. Isso leva o periódico a dizer que “o Brasil tem uma política externa fundamentalmente clara e segura – ainda que flexível e rica de cambiantes, como toda a política -, independente da fragilidade de indivíduos, governos, regimes constitucionais”.

148

E essa política, ao

contrário de ser frágil e porta de entrada do comunismo, é a estratégia de uma Nação soberana. De nação dividida, fraca, ainda convalescente de uma crise que teria destruído ou desvirtuado muitas outras – mas de nação decidida a conservar sua personalidade e a luta por seus direitos fundamentais. Uma política que o grande povo dessa mesma nação soberana compreende e aprova como um interesse, uma vivência que atestam o alto grau de politização que em tão pouco tempo conquistamos – nós que ainda há poucos anos podíamos ser considerados uma nação sem quadros. Essa política é a da Nação.149

147

“Destemor e confiança”, Jornal do Brasil, 21 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6. O JB também fez fortes críticas aos EUA, quando o Secretário de Estado Dean Rusk insinuou que, caso a Conferência não endossasse uma política norte-americana mais punitiva para Cuba, Washington repensaria o programa de Kennedy: “o Secretário de Estado dos Estados Unidos cometeu, ontem, um erro que os amigos de seu país só podem lamentar e procurar, a todo o custo, remediar enquanto é tempo. Colocou ele a vitória, na Conferência, do ponto de vista de seu país, como condição sine qua non da Aliança para o Progresso”. (“Salve-se a Aliança”, Jornal do Brasil, 24 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6). 148 “Situação nacional”, Jornal do Brasil, 19 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6. 149 “Situação nacional”, Jornal do Brasil, 19 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6. O mesmo discurso pode ser encontrado mais além, quando o jornal afirma: “Somos hoje o que temos de ser: uma nação ainda pobre, ainda dividida, ainda hesitante diante de vários caminhos. Mas já somos uma nação inconfundível. Somos uma nação que têm seus interesses, que tem seu jogo, seu espírito, sua palavra. Uma nação politizada. Um ser nacional com uma vontade de poder – vontade justificada não apenas por nossa potencialidade, porém já agora por inúmeros aspectos positivos de nossa atualidade” (“Situação Nacional”, Jornal do Brasil, 19 de janeiro de 1962, Caderno 1, p. 6).

Notamos aqui como o JB procura se construir simbolicamente como um intérprete do “grande povo” e da posição desse povo de aprovação frente aos novos rumos que a política externa brasileira está tomando. Da mesma maneira, vemos o seu endosso, não só às opções da diplomacia em Punta del Leste, mas à própria estratégia central da Política Externa Independente: abandono dos preceitos da Guerra Fria na condução da inserção internacional do país e a defesa dos princípios jurídicos que garantiriam mais liberdade de ação ao Brasil em busca de seus objetivos como Nação. No caso, a busca pelo desenvolvimento econômico, sendo os EUA um parceiro possível apenas na medida em que corresponder a essa expectativa. Por fim, assim como o Estadão, o JB não deixa de fazer uma leitura da política externa com base nas divisões da política interna do país. Diferentemente no jornal paulista, porém, o impresso carioca irá buscar apoio no outro lado do espectro partidário. Referindo-se ao futuro pleito parlamentar argentino e a posição de Frondizi, cujo governo levou a Argentina na direção do Brasil na Conferência de Punta del Este, o jornal afirmou que

(...) a luta é, sim, interna, ferindo-se, violenta ou disfarçadamente, no seio de cada um dos países democráticos deste Hemisfério: a luta entre as forças da reforma e do progresso, representadas por homens como os Presidentes Kennedy e Frondizi e como o ex-Presidente Jânio Quadros, e as forças retrogradas da extrema direita, em cuja ação contraproducente o comunismo continental e internacional deposita suas maiores esperanças. 150

Em outras palavras, o jornal parece claramente tomar uma posição, se não oposta, ao menos divergente frente ao OESP, no que se refere à relação entre política externa e política interna no Brasil. Mais do que isso, vincula diretamente a PEI ao progresso econômico e social – em alguns casos, ao desenvolvimento – em contraposição às “forças da extrema direita”, ao “obscurantismo político e econômico”. Mas, sintomaticamente, coloca o comunismo como uma consequência do segundo grupo e associa, no caso do Brasil, o primeiro grupo a Jânio Quadros e não João Goulart.

150

Mais adiante, comenta: “A vitória ou a derrota do Presidente Frondizi terá imediata repercussão no Brasil e em todo país da América Latina onde se decide a luta entre a democracia e os extremismos totalitários, entre o Direito e a força bruta, entre o progresso econômico e social e o status quo. A vitória de Frondizi será a vitória de Kennedy e de sua Aliança para o progresso. Sua derrota será, a curto prazo, a vitória da extrema direita, do obscurantismo político e econômico, das soluções belicistas. A longo prazo, será a vitória do fidelismo e do comunismo” (“Batalha decisiva”, Jornal do Brasil, 06 de fevereiro de 1962, Caderno 1, p. 6).

Considerações finais O trabalho aqui apresentado é apenas o início de uma pesquisa maior que procura avaliar a forma como, não apenas a Política Externa Independente, mas as próprias estratégias de inserção internacional do Brasil foram apropriadas pela grande imprensa brasileira no pós-guerra. Entretanto, mesmo parciais, esses resultados já permitem, se não conclusões definitiva, ao menos o levantamento de algumas hipóteses. Notamos claramente a relevância do tema de política internacional relacionado à Guerra Fria para ambos os periódicos pesquisados e, é claro, que nenhum desses representantes da grande imprensa toma a defesa do socialismo como bandeira. Entretanto, evidencia-se claramente a divergência de posição, quando o Estadão toma uma postura oposta à posição “neutralista” brasileira, defendendo abertamente um alinhamento direto com os EUA, e o JB, ao contrário, sustenta essa posição de neutralidade e independência e, mais do que isso, apoia os princípios básicos que norteiam a Política Externa Independente. Além disso, notamos que ambos os periódicos procuram fazer relação entre as ações da política externa brasileira com a política interna, numa demonstração evidente de que sua leitura da primeira é feita com base nas alternativas político-doutrinárias oferecidas pela segunda. Igualmente, é visível como nesse ponto os jornais também divergem: OESP condenando a PEI como sendo uma mesquinha estratégia do chanceler Dantas e do governo petebista em busca de apoio das “esquerdas nacionais”, enquanto o JB coloca essa política como sendo uma posição internacional ligada ao progresso econômico-social na América - cujo expoente brasileiro seria o ex-presidente Jânio Quadros -, enquanto que a oposição a ela seria obra do atraso, do conservadorismo retrógrado, etc. Entretanto, seria um equívoco pensar que tais associações possa ser reduzida a um simples reflexo – ou seja, que os jornais fossem meros porta-vozes dos grupos político que, de fora, ditariam as suas tomadas de posições no universo jornalístico. Até porque, pela análise que fizemos, não é possível vislumbrar com clareza qual grupo político seria o suporte da posição de cada jornal. Ao contrário disso, embora não se descarte os vínculos político-partidários da imprensa, parece mais razoável pensar que o posicionamento dos periódicos aqui estudados melhor reflete a forma como cada um deles pretende construir a sua especificidade como interlocutor legítimo no “debate

público” brasileiro do período. Nesse caso, se a defesa retórica da democracia, da tradição em política externa e o próprio anticomunismo estão como os elementos comuns da inserção nesse debate, são as divergências que constroem o lugar específico de cada um, direcionando-se, provavelmente, a públicos distintos. Dessa maneira, consideramos que, OESP, seguindo a sua própria tradição, procura construir/reforçar a sua posição como interlocutor das classes conservadoras, através especialmente da defesa do alinhamento com os EUA, do anticomunismo e do “antitrabalhismo”. Enquanto o JB, embora não cultive simpatias pelo socialismo e nem demonstre afinidades diretas com João Goulart e o PTB, tenta procura ocupar o espaço de um jornal ligado à defesa do desenvolvimentismo econômico e de sua expressão na política externa, qual seja, uma estratégia de inserção internacional pragmática, não ideológica e voltada para a obtenção dos recursos materiais e políticos necessários ao progresso econômico do país e à sua construção como uma Nação forte – nesse caso, industrializada. São hipóteses que as pesquisas posteriores nos informaram sobre a sua validade ou não para interpretar os pontos acimas elencados.

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janeiro-fevereiro

de

1962,

disponível

em

CAPÍTULO V A Crise dos Mísseis: O conflito na visão da imprensa brasileira Lilian Orso151 Introdução

O presente texto pretende verificar como a Crise dos Mísseis, conflito ocorrido em outubro de 1962, envolvendo Estados Unidos, União Soviética e Cuba, foi abordado por parte da imprensa brasileira. Para tanto, realizou-se a pesquisa a partir da leitura dos jornais O Estado de São Paulo e o Jornal do Brasil, buscando estabelecer uma relação entre os dois periódicos, apontado convergências e divergências no discurso jornalístico ao abordar esse tema. Assim, investigou-se os acervos on-line dos dois jornais selecionados, destacando a cobertura jornalística a partir do dia 17 de outubro de 1962, data em que começam a chegar as primeiras informações a respeito das bases nucleares instaladas em Cuba pela União Soviética, até o dia 31 de outubro de 1962, data em que foi noticiado o fim da crise. A escolha desses jornais baseou-se nos seguintes critérios: a) O fato de tratar-se de periódicos muito tradicionais e influentes na imprensa brasileira, sendo dois impressos de grande tiragem e os mais antigos em circulação no país naquela conjuntura; b) A abrangência de ambos, que cobrem os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, os mais importantes do Brasil no período estudado; c) a possibilidade de testar a hipótese de que esses jornais defenderem pontos de vista ideológicos diferentes na conjuntura em questão, que os aproximava tantos das forças mais conservadoras do país, no caso de O Estado de São Paulo, quanto das progressistas e populares, como no Jornal do Brasil.

151

Especialista em Política Internacional pela PPG-Sociologia PUCRS.

Inicialmente, iremos contextualizar o tema, explicando a importância da Crise dos Mísseis na Guerra Fria, uma vez que ela constitui num dos momentos mais tensos desse período. Também analisaremos o papel do Brasil frente a esta crise, identificando qual foi seu posicionamento no conflito e a orientação da política externa brasileira no governo do então presidente João Goulart. Por fim, o presente estudo analisará reportagens e editorias dos jornais O Estado de São Paulo e o Jornal do Brasil, com a intenção de interpretar como a Crise dos Mísseis e a posição do Brasil diante dela foram retratadas nos jornais selecionados.

A Crise dos Mísseis

Guerra Fria Ao abordamos o tema da Crise dos Mísseis é importante, como contextualização, mencionar aspectos gerais do período histórico conhecido como Guerra Fria. A Guerra Fria teve como seus protagonistas os governos dos Estados Unidos e da União Soviética, representando sistemas econômico-sociais bastante distintos (capitalismo x comunismo). Iniciou-se logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, e durou até 1991, quando da dissolução da URSS. Segundo Paulo Vizentini, Os Estados Unidos emergiram como os maiores beneficiados pela guerra, pois ela reativou e expandiu seu parque industrial, absorveu a enorme massa de desempregados dos anos 30, além do país sofrer poucas perdas humanas e praticamente nenhuma destruição material. Sua economia tornou-se dominante, respondendo por quase 60% da população industrial em 1945 (VIZENTINI, 1900, p. 13).

Já sobre a União Soviética, o mesmo autor comenta que A URSS, por seu turno, exercera um papel decisivo na derrota da Alemanha nazista e gozava de imenso prestígio diplomático e militar, tendo seus interesses reconhecidos em sua esfera de influência junto as suas fronteiras europeias. O fortalecimento da esquerda em todo mundo e a presença do Exército Vermelho no centro da Europa e no Extremo Oriente também acentuavam o poderio soviético (VIZENTINI, 1990, p. 14).

Ideologicamente em campos opostos, as duas superpotências passaram a disputar espaços de poder e influenciar todo o globo, numa luta pela hegemonia política, econômica e militar no mundo, embora não tivéssemos conflitos armados diretos. No entanto, isso não quer dizer que os dois países envolvidos não se preocupassem com o

poderio militar, pois promoveram uma verdadeira corrida armamentícia. Apesar dos discursos sobre o desarmamento, foi um período histórico em que o mundo se alarmou com a possibilidade de uma guerra nuclear. Para J.P. Morray Essa nova aversão à guerra nuclear reflete-se nas políticas nacionais de desarmamento. Há um sentimento generalizado de que a corrida armamentista termina na guerra. O receio popular das armas nucleares faz, portanto, do desarmamento um objetivo aparente, ao passo que na realidade o armamento nuclear continua crescendo (MORRAY, 1961. p. 136).

Estados Unidos e União Soviética se utilizaram da Guerra Fria com o objetivo de controlar os países do assim chamado Terceiro Mundo, tentando evitar que os mais próximos escapassem da sua área de domínio. O grande temor norte-americano era que o comunismo se propagasse além das fronteiras do Bloco Soviético e, principalmente, chegasse à América. “Os Estados Unidos alertava o mundo da ‘ameaça comunista’, ficando clara a preocupação em perder o controle sob alguns governos e economias mundiais, como do Brasil e dos países latino-americanos” (ARBEX, 1997. p. 46). Estados Unidos e União Soviética disputavam o poder e, ao mesmo tempo, protegiam-se um do outro. Sendo assim, a corrida armamentista alcançou uma dimensão geoestratégica. Para José Arbex Jr., “além de desenvolver tecnologias de destruição cada vez mais sofisticadas, as superpotências criavam e consolidavam bases militares em todo o mundo, estabelecendo zonas de influência” (ARBEX, 1997. p. 44). A bipolaridade da Guerra Fria, assim, atingiu o mundo, com os países, aos poucos, colocando-se de um lado ou de outro. Dentro da Política Internacional, os Estados Unidos e a União Soviética estabeleceram o objetivo de alcançar o maior número possível de aliados, para assim ampliar o seu poder global. A Crise dos Mísseis ocorreu em meio a esta disputa pelo poder entre as duas superpotências. Os Estados Unidos, após a vitória da revolução de Fidel Castro e sua aproximação da URSS, temiam que o comunismo chegasse a uma área até então sob o seu controle. A Washington não interessava ter como vizinho um país aliado aos soviéticos, passando, então, a exigir o apoio incondicional das demais nações do continente americano para reverter o processo revolucionário cubano. Porém, muitos países não se definiram claramente, como foi o caso do Brasil, que na conjuntura dos anos 60, durante o governo de João Goulart, não concordou com uma intervenção em Cuba, proposta pelos Estados Unidos. Em relação à Crise dos Mísseis, o Brasil adotou

uma postura conciliadora, oferecendo-se para mediar o conflito. Esta proposta desagradou o governo norte-americano que esperava o apoio brasileiro contra Fidel Castro. De acordo com Amado Cervo

A política exterior do Brasil tem por fundamento um caráter nãoconfrontacionista. Sobrevaloriza o princípio da autodeterminação e consequentemente a não-intervenção. Quer soluções pacificas e negociadas para as controvérsias e condena o uso da força para obter resultados externos. O pacifismo brasileiro é uma opção filosófica que conta com o apoio de fatores socioculturais, tais como a satisfação com o território e a abundância de recursos naturais, a heterogeneidade cultural, a tolerância social, a tranquilidade diante dos vizinhos. Não conta, entretanto, com o apoio das teorias de relações internacionais que prevaleceram nos centros de poder e da história das relações internacionais contemporâneas. Os princípios de nãointervenção e autodeterminação, que as grandes potências apreciam para as outras, não integraram seu realismo durante a Guerra Fria (CERVO, 1994. p. 309).

No período da Crise dos Mísseis, o governo brasileiro estava sob as diretrizes da Política Externa Independente (PEI), que se caracterizava, principalmente, por sua autonomia no que se referia às alianças com os demais países, procurando evitar o alinhamento ideológico com qualquer um dos blocos envolvidos na Guerra Fria.152 Segundo Amado Cervo A Política Externa Independente (PEI) – designação com que ficou conhecida a política exterior brasileira de 31 de janeiro de 1961 (posse de Jânio Quadros) a 31 de março de 1964 (advento do regime militar) – foi, pois, um processo e não um projeto concebido em detalhes. A política exterior inaugurada por Jânio Quadros, possuía um caráter pragmatista, pois buscava os interesses do país sem preconceitos ideológicos; e para melhor consecução desses objetivos, adotava a postura independente em face de outras nações que tinham relacionamento preferencial com o Brasil (CERVO, 1994. p. 310).

A Crise

O período conhecido como a Crise dos Mísseis é considerado por parte da historiografia como um dos maiores embates entre Estados Unidos e União Soviética, durante a Guerra Fria.153 A crise se instalou em outubro de 1962, a partir do momento que o governo norte-americano foi informado da intenção soviética de instalar mísseis 152

Quanto a isso, consultar os capítulos III e IV. Arbex Jr., por exemplo, classifica a Crise dos Mísseis “como umas das mais sérias crises geopolíticas da Guerra Fria e do século XX” (ARBEX, 1997, p.166). 153

nucleares em Cuba. Iniciou-se, assim, dias de tensão, no qual o mundo viveu a sensação de um iminente combate nuclear, que envolveu diretamente os líderes dos governos dos países participantes do conflito: o norte-americano John Kennedy, o soviético Nikita Kruschev e o cubano Fidel Castro. No dia 16 de outubro de 1962, o governo norte-americano descobriu, através do sobrevoo de um avião U-2, a instalação de bases nucleares na ilha de Cuba, por parte da União Soviética. Especialistas americanos detectaram que tais bases comportariam mísseis SS-5 com capacidade de atingir praticamente qualquer ponto do território estadunidense. Kennedy imediatamente reuniu os seus assessores a fim de definir estratégias para lidar com essa situação.

Em 22 de outubro, John Kennedy fez um pronunciamento transmitido por rádio e televisão, anunciando a presença de armas nucleares em Cuba e comunicando o isolamento da ilha, caso os soviéticos não desativassem as bases nucleares. A partir deste dia, a Crise dos Mísseis tornou-se pública e gerou muita tensão entre os três países envolvidos diretamente e o resto do mundo, pois a ameaça de uma guerra nuclear pairava no ar. 154

Os dias que se seguiram foram de muitas reuniões entre governantes dos países envolvidos no conflito, com o clima da proximidade de uma guerra nuclear tomando conta da atmosfera mundial. As negociações eram tensas. Os Estados Unidos exigiam a retirada imediata das bases nucleares de Cuba, sob pena de invadir a ilha. Já Fidel Castro passou a ver o episódio como a melhor forma de enfrentar os americanos e apoiava totalmente a proposta do primeiro ministro soviético Nikita Kruschev de permanecer com as bases nucleares instaladas em Cuba. Em 26 de outubro de 1962, Kruschev enviou uma carta aos Estados Unidos propondo um acordo, alegando que, apesar das diferenças ideológicas entre ambos os blocos, seria possível uma convivência sem emprego de meios militares. John Kennedy preferiu ignorar a última mensagem de Kruschev, agindo como se nunca a tivesse recebido, e respondeu apenas concordando com a promessa de não atacar a ilha cubana. Em 28 de outubro de 1962, porém, o clima de tensão começaria a se dissipar, quando Kruschev anunciou, pela Rádio Moscou, a decisão de retirar os mísseis de Cuba, pondo fim à iminência de uma guerra nuclear. A atitude do líder soviético foi duramente criticada, por supostamente demonstrar fraqueza, ao não sustentar sua 154

“O dia que chegamos perto do fim”, Revista Veja, São Paulo, outubro de 1962.

posição inicial frente aos Estados Unidos. A maior crítica veio por parte do governo cubano. Fidel Castro se sentiu traído, pois, durante as negociações, não havia sido consultado pelos russos. Fidel alegou que as bases nucleares eram uma defesa e uma garantia para o desenvolvimento de Cuba. Em discurso, acusou o soviético de não ter coragem de enfrentar os EUA. A postura de Kruschev, aliás, acarretou-lhe séria oposição dentro do Kremlin pela forma como conduziu a crise, contribuindo para o seu afastamento do cargo, dois anos depois. No lado oposto, John Kennedy foi muito aclamado pela forma como comandou a negociação durante a Crise dos Mísseis. Fidel Castro, apesar de não perder a popularidade, passou a ficar mais atento ao jogo do poder político internacional. Antes da Crise dos Mísseis, a possibilidade de uma guerra nuclear não chegava a alarmar a população mundial. Era difícil imaginar uma situação que levasse as superpotências ao limite de uma guerra. Mas, após outubro de 1962, o mundo passou a acreditar nesta possibilidade e a temer a utilização de armas nucleares (TARR, 1968. p. 100). A Crise dos Mísseis também teve consequências no Brasil. O ano de 1962 foi um período delicado para a política brasileira, que ainda vivia sob o impacto da renúncia de Jânio Quadros e do movimento da Legalidade para assegurar a posse de João Goulart. Em meio a todo esse processo, chegou um pedido do presidente Kennedy solicitando apoio brasileiro em relação à Crise dos Mísseis através de uma posição contrária ao governo cubano. Goulart, porém, preferiu oferecer a diplomacia brasileira para mediar o conflito, enviando o general Albino Silva, chefe da Casa Militar, a Cuba a fim de conversar com Fidel Castro. A resposta de João Goulart tinha como princípio básico a defesa da soberania de cada país, respeitando suas posições políticas e institucionais, conforme rezava a cartilha da Política Externa Independente. O governante cubano, entretanto, mostrou-se irredutível, pois, para ele, como vimos, a proteção dos mísseis soviéticos seria fundamental à segurança de seu país. De qualquer sorte, o posicionamento político brasileiro frente ao conflito não agradava aos Estados Unidos, que esperavam a total reprovação do comportamento soviético e cubano. A alegação de Washington era que, não só o território americano estava sob ameaça russa, mas o mundo inteiro.

A Imprensa Brasileira

Durante a Crise dos Mísseis, o mundo acompanhou apreensivo as negociações entre Estados Unidos e União Soviética, que tiveram grande repercussão na imprensa internacional e nacional. Durante as duas semanas mais tensas de outubro de 1962, os jornais brasileiros, como o Jornal do Brasil e o jornal O Estado de São Paulo, traziam em suas páginas reportagens sobre a Crise dos Mísseis, com matérias jornalísticas que, além de informar sobre o conflito, também alarmavam a população com a possibilidade de uma guerra nuclear. A imprensa brasileira nos anos 60 passava por diversas reformas, implantando novas normas editoriais. Por influência norte-americana, os principais jornais do país começaram a adotar as regras do jornalismo comercial anglo-saxônico, dando maior privilégio à informação do que à opinião, e procurando ser mais atrativos ao leitor, com maior dinamicidade nas editorias, o uso de fotografias e chamadas na capa, etc.. 155 Entretanto, essas mudanças não provocaram o total abandono da condição desse jornalismo como imprensa opinativa, quase de “tribuna”. Segundo Simão Alves Tannous, aliás, “foi nos anos 1960 que conhecemos o apogeu do jornalismo político, a imprensa acompanhava

as reivindicações e contestações politico-ideológicas,

posicionado-se e opinando” (TANNOUS, 2010. p. 139). Quanto a isso, a historiografia normalmente aponta essa imprensa como sendo fortemente

oposicionista

ao

presidente

João

Goulart,

sempre

exaltando

o

anticomunismo como forma de amedrontar seus leitores mais conservadores. 156 A campanha para a derrubada do presidente “Jango” ganhou força em 1964, com o um forte apelo discursivo “à ordem” e contra a “ameaça vermelha”, supostamente representada pelo governo, havendo uma boa dose de convergência dos grandes jornais em favor da derrubada do presidente, com o golpe militar de 1964. 157

155

Quanto a essas mudanças, consultar RIBEIRO (2007), ABREU & LATTMAN-WELTMAN (1996) e SILVA (1991). 156 Por exemplo, afirma OLIEIRA: “O jornal O Estado de São Paulo fazia forte oposição ao governo João Goulart, classificando-o como passivo, manobrado pelos comunistas, que o poder tinha caído em suas mãos, que era um líder revolucionário disfarçado, corrupto e incapaz” (OLIVEIRA, 1993, p. 57). 157 Como lembra CAPELATO, no “dia 31 de março de 1964 a ‘Revolução Gloriosa’ livra o Brasil da ameaça comunista. A grande imprensa, em sua maioria, exulta. As manchetes dos jornais expressam indignação contra o presente, entusiasmo e otimismo quanto ao futuro” (CAPELATO, 1988, p. 53).

Jornal do Brasil

O Jornal do Brasil é um jornal carioca diário e matutino, fundado em 9 de abril de 1891 por Rodolfo de Souza Dantas e Joaquim Nabuco. Em sua declaração de princípios, traçava diretrizes básicas de sua conduta política, afirmando seu propósito de criticar o governo, mas estabelecendo, ao mesmo tempo, limites a essa atuação. Tradicionalmente é considerado um jornal com maior penetração nas camadas populares e médias por ter, até os anos 50, as páginas iniciais dedicadas aos classificados, e por destinar grande espaço a temas caros a esses grupos, como a economia popular. Aliás, como aponta Martins (MARTINS, 2010), até os anos 50, sobrevivia basicamente das vendas em bancas e da oferta dos classificados. O jornal encarou com desapontamento o início do governo de Jânio Quadros, que criticava duramente a política de Juscelino Kubitschek, o que é possível notar neste editorial: Poucas vezes em nossa história um chefe de Estado fez afirmativas tão pessimistas sobre a situação financeira do país. E não resta dúvida que o presidente tinha razão no que dizia respeito às finanças nacionais. Mas... o presidente Jânio Quadros não pintou um retrato preciso da República, tendo omitido toda e qualquer referência ao processo de desenvolvimento econômico brasileiro, que é real e não pode ser negado. O que é essencial, é que o Brasil não adote umas dessas políticas de austeridade sem liberdade que só servem para manter a chamada democracia das aparências. Do Sr. Jânio Quadros queremos um governo excepcional, e não de exceção (Jornal do Brasil apud ABREU, 2001. p. 2870).

As críticas diretas a Jânio intensificaram-se a partir de 3 de junho de 1961, quando ocorreu o incidente da suspensão da Rádio Jornal do Brasil, em consequência da divulgação da notícia de um pacto militar firmado entre Jânio e Arturo Frondizi, presidente da Argentina. As medidas tomadas a seguir pelo governo suscitaram protestos crescentes, culminando na condecoração do ministro cubano Ernesto Che Guevara, que foi severamente criticada pelo Jornal do Brasil. Com a renúncia de Jânio, em agosto de 1961, colocou-se a questão da posse do vice-presidente João Goulart, inaugurando-se assim nova crise política. O jornal firmou posição em defesa da legalidade, passando a sofrer consequências da censura. Após a posse de Goulart, o impresso carioca deu um crédito de confiança a seu governo, apoiando uma das principais questões encaminhadas pela nova administração: a política

externa independente proposta pelo ministro das Relações Exteriores, Francisco de San Tiago Dantas.158 Em 22 de janeiro de 1962, o jornal criticou as pressões do governo norteamericano na Conferência de Punta del Este, onde San Tiago Dantas defendeu o princípio da não intervenção em Cuba.159 A indicação de Dantas para o cargo de primeiro ministro foi bem aceita pelo Jornal do Brasil, que entreviu aí a possibilidade de um governo de união nacional. A recusa do Congresso veio, contudo, desapontar o jornal, ao mesmo tempo em que aguçou a crise política, adiada com a implantação do parlamentarismo. A convocação do plebiscito, dia 06 de janeiro de 1963, que decidiria sobre a volta, ou não, ao regime presidencialista recebeu integral apoio do Jornal do Brasil. Restaurado o presidencialismo e organizado o novo ministério, foi estabelecido, como objetivo prioritário do governo, encontrar uma fórmula que conciliasse a continuidade do desenvolvimento do país com um programa anti-inflacionário (ABREU, 2001, p. 2866 – 2871).

O Estado de São Paulo

O Estado de São Paulo é um jornal paulista diário e matutino. Foi fundado em 4 de janeiro de 1875, com o nome de Província de São Paulo, por um grupo sob a liderança de Américo Brasiliense de Almeida Melo e Manuel Ferraz de Campos Sales. O jornal defendeu desde o início os interesses da elite agrária, combatendo a centralização política e administrativa imposta pelo Poder Moderador ao longo do Império. Em 1889 o jornal passou a chamar-se O Estado de São Paulo. Durante a sua história ficou conhecido como um jornal conservador, apoiando as elites econômicas do país e defensor do liberalismo, tendo como uma de suas bandeiras a proposta de uma maior aproximação como os Estados Unidos durante a Guerra Fria. Foi acima de tudo um jornal antigetulista e antipopulista.

158

A esse respeito, advertia o Jornal do Brasil: “Os adversários dessa política exterior sustentada galhardamente pelo presidente João Goulart e pelo chanceler San Tiago Dantas são minoria. Trata-se, no entanto, de uma minoria poderosa, com ramificações no estrangeiro, que atua metodicamente, como se cumprisse as determinações de um comando central. Há uma verdadeira conspiração democrática de direita em todo o continente, ameaça tão grande quanto a do comunismo” (Jornal do Brasil apud ABREU, 2001, p. 2870). 159 Quanto a isso, consultar o capítulo IV.

O governo Kubitschek foi considerado por O Estado de São Paulo como “o período mais trabalhoso de toda a sua existência.” (ABREU, 2001, p. 2031). O jornal opôs-se de maneira sistemática ao presidente, considerando um representante tardio do getulismo. O início do governo de Jânio Quadros foi recebido com euforia pelo periódico. Pouco tempo depois, entretanto, o impresso paulista começou a se inquietar com a política externa de Jânio, que defendeu a admissão da República Popular da China na Organização das Nações Unidas (ONU), reatou relações diplomáticas com a Hungria, a Romênia e a Bulgária, e condecorou o ministro cubano Ernesto Che Guevara. Por fim, a partir de março de 1961, O Estado de São Paulo se enfileirou entre os setores oposicionistas. A renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, foi recebida com perplexidade. Contrário a posse de João Goulart, O Estado de São Paulo não confiava na solução parlamentarista. O novo presidente foi recebido com hostilidade.

Cronologia da Crise dos Mísseis

A Crise dos Mísseis durou exatos treze dias, este número serviu de inspiração para dar nome às manchetes de jornais, reportagens de revistas e, até mesmo, filmes. 160 Como vimos, o conflito começa a ser narrado a partir do dia 16 de outubro de 1962, quando o presidente Kennedy recebe a primeira informação a respeito das bases nucleares que estavam sendo instaladas em Cuba pelo governo soviético. No dia 17 de outubro o Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo noticiam, muito sutilmente, as primeiras informações a respeito do conflito. Do dia 17 até o dia 31 de outubro de 1962, os dois periódicos pesquisados não passaram um só dia sem noticiar a Crise dos Mísseis. A princípio, o Jornal do Brasil ocupou mais as suas páginas do que O Estado de São Paulo, mas, conforme a crise foi se agravando, os dois jornais passaram a dedicar mais espaço para o grande embate da Guerra Fria. Na cronologia da Crise dos Mísseis podemos observar, através do Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo, como as notícias sobre este conflito internacional chegaram ao Brasil. Como vimos, em virtude do segredo com que o assunto era tratado, 160

A revista Veja de outubro de 1962 deu a uma de suas reportagens o título “Treze Dias de Angústias”. Nos anos 2000 o cinema lançou o filme “Thirteen Days”, no Brasil recebeu o título de “Treze Dias que Abalaram o Mundo”.

a cobertura do mesmo inicia apenas a partir do dia 23 de outubro, quando o conflito tornou-se público, depois do discurso feito, no dia anterior, pelo presidente Kennedy e transmitido pelo rádio e televisão. O Jornal do Brasil noticiou, em sua reportagem de capa, o início do bloqueio americano: “O presidente Kennedy proclamou, ontem à noite, a decisão norteamericana de realizar, de imediato, o bloqueio aeronaval de Cuba, para impedir o transporte de qualquer tipo de armamento à ilha”.

161

Mais além, comenta: “O

presidente João Goulart declarou que o Brasil não aceita o recurso à violência como forma de solução dos conflitos internacionais”. 162 O dia 24 de outubro de 1962 foi de muita tensão no cenário internacional. O bloqueio prometido pelos Estados Unidos entrou em vigor e navios norte-americanos se posicionaram para impedir que embarcações se encaminhassem a Cuba. Neste dia, o Jornal do Brasil foi mais enfático, dando maior espaço para o conflito, trazendo uma importante reportagem que mostrava a União Soviética alertando as suas tropas e acusando os Estados Unidos de encaminhar o mundo para guerra.163 É ressaltada na matéria a indignação da URSS em relação às decisões estadunidenses, questionando o direito de Washington em intervir no destino de outros países. Em um trecho da reportagem, o jornal explicita as perguntas dos soviéticos: “Quem deu aos Estados Unidos o direito de assumir o papel de mestre dos destinos de outros países e outros povos? Porque devem os cubanos revelar os assuntos internos de sua pátria somente para agradar os Estados Unidos?” 164 Enquanto o JB expôs a indignação e os questionamentos soviéticos, o Estadão trouxe em suas páginas deste mesmo dia novamente trechos do discurso proferido pelo presidente Kennedy, sem se preocupar em dar muito destaque ao conflito propriamente dito. Com a tensão aumentando a cada dia, a ONU, através de seu secretário-geral U Thant, iniciou uma tentativa de negociação entre as duas superpotências. O envolvimento da ONU no conflito foi amplamente divulgado pelos jornais no dia 25 de outubro de 1962, apesar do próprio insucesso da ação. Diferentemente do que vinha 161

Dizia o jornal: “A União Soviética cancelou ontem todas as licenças militares. Fez com que os países do bloco socialista acentuem os seus preparativos bélicos e acusou os Estados Unidos de darem um passo na estrada que leva ao desencadeamento de uma guerra nuclear” (Jornal do Brasil, 23 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 1). 162 Jornal do Brasil, 23 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 1. 163 Jornal do Brasil, 24 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 3. 164 Jornal do Brasil, 24 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 3.

ocorrendo até então, nesta data, o jornal O Estado de São Paulo deu maior cobertura à Crise dos Mísseis em comparação ao Jornal do Brasil. Além da reportagem de capa, o impresso paulista distribuiu as notícias sobre o conflito em mais seis páginas, apresentando aos seus leitores relatos mais detalhados sobre as negociações em curso. A reportagem de primeira página do periódico deteve-se na mudança de rumo dos navios russos e no bloqueio naval em vigor pela Marinha dos Estados Unidos. Dizia o jornal:

Um porta-voz do Departamento de Defesa informou hoje que alguns dos navios do bloco comunista que se dirigem a Cuba, aparentemente alteraram seu rumo. Acrescentou, porém, que os navios continuam navegando para Cuba. Aduziu o porta-voz que ainda não foi necessário interceptar os citados navios.165

No dia 26 de outubro de 1962, a Crise dos Mísseis obteve grande cobertura jornalística tanto pelo Jornal do Brasil quanto pelo O Estado de São Paulo. No JB, destacamos a reportagem da página 3, noticiando que os membros do Conselho de Segurança passaram a considerar a proposta do Brasil para solucionar o impasse. Conforme o impresso: “[a]lguns Estados membros do Conselho de Segurança estão considerando apresentar a proposta brasileira, feita perante a Assembleia-Geral no início do atual período de sessões, de que as regiões da América Latina e África sejam consideradas zonas desnuclearizadas.”166 Em relação a isso, percebe-se nitidamente que o impresso carioca passou uma imagem muito positiva do Brasil frente ao conflito internacional, destacando que o secretário-geral da ONU, U Thant, dirigiria a proposta brasileira aos Estados Unidos e à União Soviética. Na mesma data, o Estadão, diferindo do JB, foca nas condições impostas por Kennedy e Kruschev para solucionar a crise. Segundo o jornal, os dois governantes se dispunham a negociar a paz, atendendo ao apelo de U Thant, na medida em que ambos estariam preocupados com o rumo da crise e os seus governos teriam enviando mensagens ao secretário da ONU, considerando a possibilidade de um acordo. 167 Já, em

165

O Estado de São Paulo, 25 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 1. Jornal do Brasil, 26 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 3. 167 Segundo o jornal, Kennedy teria escrito: “Em sua mensagem e em sua declaração no Conselho de Segurança, ontem à noite, V.Exa. fez certas sugestões e propôs conversações preliminares para ver se pode chegar a acordos satisfatórios. Posso dar-lhe garantias de nosso desejo de chegar a uma solução satisfatória desta questão”. Já Kruschev escreveu: “Recebi sua mensagem e a estudei com atenção. Felicito-o por sua iniciativa e compreendo sua preocupação pela situação criada na zona das Antilhas, uma vez que o governo soviético também considera esta situação muito perigosa e que, como tal, exige a 166

relação ao posicionamento brasileiro e a sua tentativa de conciliação do conflito, O Estado de São Paulo não divulgou nenhuma informação. Com base no levantamento aqui realizado, o dia 27 de outubro poderia ser considerado como uma data de trégua entre os envolvidos na Crise dos Mísseis, pois, os dois jornais pesquisados noticiaram que os Estados Unidos e a União Soviética atenderiam ao pedido do secretário-geral da ONU, evitando o encontro dos barcos soviéticos com os barcos americanos. O dia 28 de outubro de 1962, porém, foi de intensas negociações. O JB trouxe, para seus leitores, o acordo proposto pelo primeiroministro soviético Kruschev que se dispunha a desativar as bases em Cuba, desde que os Estados Unidos também desativassem as bases na Turquia. Esta proposta foi enviada ao presidente Kennedy e ao secretário-geral do ONU. Na página 2, o impresso carioca esclareceu que os soviéticos teriam a mesma preocupação que os americanos sobre o perigo representado por bases nucleares inimigas tão perto de seus países. Disse Kruschev em sua mensagem: O presidente Kennedy parece preocupado com bases de foguetes a 150 quilômetros do litoral norte-americano, mas a Turquia esta localizada ao nosso lado. Nossos guardas caminham e fitam uns aos outros. Os senhores localizaram foguetes destruidores na Turquia, literalmente junto de nós, ao nosso lado.168

O Estadão, por sua vez, destacou, em sua capa do dia 28 de outubro, a decisão de Kennedy de somente levantar o bloqueio naval se a União Soviética inutilizasse as bases: O presidente Kennedy anunciou que concorda em ordenar a suspensão da quarentena imposta a Cuba, dispondo-se também a dar garantias de que a ilha não será invadida, desde que o chefe do governo soviético tome prontamente as providências necessárias para tornar inofensivas as bases de foguetes nucleares instaladas em Cuba, sob o controle da ONU, e suspenda o envio de armas ofensivas para a ilha. 169

Já no dia 30 de outubro de 1962, o clima de tensão se distendia nas páginas dos jornais, com os Estados Unidos admitindo suspender o bloqueio e a União Soviética se comprometendo em retirar os foguetes de Cuba. O Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo traziam em suas capas do dia 30 de outubro manchetes sobre o alívio

intervenção imediata da ONU. Declaro-lhe que estou de acordo com sua proposta, que corresponde aos interesses da paz” (O Estado de São Paulo, 26 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 2). 168 Jornal do Brasil, 28 de outubro de 1962, Caderno 1, p.2. 169 O Estado de São Paulo, 28 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 1.

internacional, depois de duas semanas de tensas negociações entre duas potências nucleares. Já no dia 31, a expectativa da chegada do fim dos impasses se confirma, com EUA e URSS negociando o encerramento da Crise dos Mísseis e o término dos momentos de tensão vividos pelo mundo com a iminência de uma guerra nuclear. O Jornal do Brasil trouxe na sua capa deste dia, a boa imagem com que o Brasil sairia da crise. O presidente João Goulart havia enviado o General Albino Silva a Havana e considerou os resultados satisfatórios. Segundo o JB, o governo brasileiro se manteve como mediador da crise, em busca da paz. E este posicionamento brasileiro foi elogiado pelo presidente Kennedy, que, conforme o impresso, “manifestou a um grupo de 80 oficiais brasileiros da Escola Superior de Guerra, na Casa Branca, a esperança de que o Brasil e Estados Unidos continuem a caminhar juntos”. 170 Enquanto o impresso carioca apoiava o presidente João Goulart e a política externa brasileira, o Estadão desconsiderava abertamente a linha de ação da diplomacia nacional nesse conflito.

Editoriais Finalizaremos nossa pesquisa com a análise de dois editoriais, um de O Estado de São Paulo e outro do Jornal do Brasil. Pretendemos, como isso, verificar se a cobertura diferenciada de cada jornal sobre o episódio no espaço da informação confirma-se também no espaço da opinião. E, pode-se adiantar, na análise dos editoriais de ambos os periódicos pesquisados, percebemos uma série de divergências de opiniões sobre a Crise dos Mísseis e a posição da política externa brasileira do governo João Goulart. O Estado de São Paulo, com o editorial intitulado “O Brasil ante a capitulação do URSS” considerou desfavorável o afastamento do país em relação aos Estados Unidos e criticou a diplomacia brasileira no que se refere à Crise dos Mísseis. Em determinado momento, chegou a dizer: Vai se tornando extremamente desagradável a posição em que o Brasil, neste momento crucial da história da humanidade, é colocado pelo grupo de homens a cujas mãos foram cair, para a infelicidade do país, as rédeas da nossa política diplomática. Tudo que se vem fazendo nesse campo é profundamente errado. A posição do Itamarati em relação aos acontecimentos

170

Jornal do Brasil, 28 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 1.

desencadeados pela ocupação militar de Cuba pela Rússia, é de todo insustentável. 171

O Estadão igualmente considerou irresponsável a determinação de João Goulart em rejeitar o projeto dos membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) de apoiar incondicionalmente as decisões dos EUA, discordando abertamente dos rumos da política externa do presidente do PTB: E foi para isso que o governo brasileiro tentou torpedear a atitude máscula dos dirigentes norte-americanos. Mais de uma vez aqui temos afirmado que nenhuma responsabilidade o povo brasileiro tem nesta política indigna. E que a nação não se identifica nela e que formalmente a repudia, atesta-o entre muitos outros fatos o documento em que várias associações brasileiras se dirigem ao senador Moura Andrade pedindo-lhe a convocação imediata do Congresso Nacional para a clara definição da política brasileira no plano internacional. 172

Em outras palavras, o jornal condenou taxativamente a linha ação do governo Goulart nesse caso, considerando que o mais prudente seria a solidariedade do Brasil com as causas norte-americanas. Posicionamento que, a rigor, é coerente com a crítica que o impresso paulista já havia feito a Jânio Quadros e a “Jango” em relação à condução das relações exteriores brasileiras com base nos princípios da Política Externa Independente. Com o encerramento da Crise dos Mísseis, após a negociação entre as duas superpotências, pairava no ar o temor norte-americano que a América Latina sucumbisse ao comunismo. Os Estados Unidos não ficaram muito satisfeitos com a postura do Brasil em relação à Crise dos Mísseis, na medida em que o país não se posicionou contrário a Cuba. Esta também era a preocupação do jornal O Estado de São Paulo, ao defender que o Brasil deveria ter seguido a convocação norte-americana para combater o comunismo na América. O editorial do Jornal do Brasil do dia 31 de outubro de 1962 foi em sentido contrário, estampando a seguinte manchete: “Prestígio Externo”. Mostrava-se, assim, totalmente de acordo com o posicionamento da política externa brasileira em relação ao conflito: Neste momento em que uma das crises mais graves que o mundo contemporâneo já conheceu, dá ao Brasil a oportunidade de projetar, no plano internacional, a sua imagem de nação defensora da paz e propugnadora de soluções políticas racionais, vale a pena recordar que foi áspero e 171

O Estado de São Paulo, 30 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 3. O Estado de São Paulo, 30 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 3. 20 Jornal do Brasil, 31 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 6 172

pontilhado de incompreensões o caminho percorrido por todos aqueles que, na política, na diplomacia, na imprensa e em tantos outros setores, trabalharam em favor de uma política externa independente. 173

Enquanto o jornal O Estado de São Paulo critica o Brasil por não ser solidário às causas norte-americanas, o JB elogia o governo brasileiro por não votar passivamente em favor de todas as propostas dos Estados Unidos.174 Além disso, o impresso carioca se posicionou favorável à Política Externa Independente do governo Goulart, ocupando suas páginas com elogios ao Brasil e incentivando as decisões brasileiras frente à política internacional. Encerrando assim seu editorial do dia 31 de outubro de 1962: A política externa brasileira não tem donos nem donatários. Ela é de um país que se afirma e que sabe o que está fazendo. É de todos, inclusive daqueles que antes não compreendiam que nela estavam implícitos poder e glória para o nosso país. 20

A partir deste editorial do Jornal do Brasil, percebemos uma grande divergência entre os periódicos. Enquanto o jornal O Estado de São Paulo criticava veemente a política externa brasileira em relação ao conflito de Cuba, o Jornal do Brasil apoiava totalmente a postura da diplomacia brasileira na condução do caso, mostrando confiança no governo João Goulart nesta questão e sustentando, inclusive teoricamente, a Política Externa Independente levada adiante por ele. Nada mais diferente um do outro, então.

Considerações finais

O objetivo do presente texto foi abordar a Crise dos Mísseis tomando por base as reportagens dos jornais O Estado de São Paulo e o Jornal do Brasil. Escolhemos estes dois periódicos brasileiros com a intenção de analisar a postura da imprensa frente ao episódio de outubro de 1962, na medida em que se trata de dois jornais importantes e de posicionamentos divergentes. No que se refere ao levantamento numérico das reportagens, observamos que o Jornal do Brasil ofereceu mais destaques nas reportagens sobre o conflito, enquanto que O Estado de São Paulo iniciou a cobertura jornalística sobre o episódio de maneira mais moderada, divulgando pequenas notas sobre a crise. Analisando a condução jornalística

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Jornal do Brasil, 31 de outubro de 1962, Caderno 1, p. 6. Editoriais em anexo.

dos impressos, percebemos que, no decorrer do conflito, as reportagens se mostravam menos imparciais e, na medida em que as negociações tornavam-se mais tensas, os rumos da política externa brasileira começam a ser avaliados diretamente na narrativa do episódio. A Política Externa Independente levada adiante pelo governo de João Goulart nessa conjuntura passou a receber duras críticas do O Estado de São Paulo, que avaliava de maneira negativa as negociações da diplomacia brasileira em relação ao conflito internacional. Já no entender do Jornal do Brasil, Jango conduzia de maneira correta os rumos dessa diplomacia, considerando positiva a proposta de solução conciliatória em relação à Crise dos Mísseis. A divergência entre os dois jornais fica mais evidente ao analisarmos os editoriais publicados logo após o encerramento do conflito. O editorial de O Estado de São Paulo, de 30 de outubro de 1962, intitulado “O Brasil ante a capitulação da URSS” é uma crítica ao posicionamento do Brasil em relação à Crise dos Mísseis, alegando que a política brasileira se colocou em absoluto antagonismo frente aos demais países americanos. Já no editorial analisado do Jornal do Brasil, do dia 31 de outubro de 1962, percebemos todo o apoio do impresso carioca à política externa do governo de João Goulart, constatando que o Brasil sai da Crise dos Mísseis com uma excelente imagem internacional. Mas como podemos entender tamanha divergência? A explicação parece estar na própria forma como que cada periódico procura se inserir na arena de debates daquele período e nos grupos econômico-sociais que lhes poderiam lhe dar suporte. Periódico tradicional e conservador, defensor das elites econômicas paulistas, o Estadão prioriza a luta contra o comunismo e o combate ao governo “trabalhista” de Goulart. Colocando-se como um arauto do conservadorismo, o combate à PEI emerge como um imperativo, diante da quebra que ela insiste em promover no alinhamento tradicional do Brasil com os EUA em termos de política internacional e do risco de uma aproximação com o bloco soviético, derivado de seu pragmatismo. O JB, por sua vez, é o periódico que lidera a renovação da imprensa brasileira adotando uma linha editorial mais objetiva e menos política. Embora ainda seja preciso

investigar melhor o assunto, a sua defesa da participação “neutralista” do Brasil, no caso da Crise dos Mísseis, e o seu apoio dado à PEI parecem-nos estar ligados a essa nova postura editorial do jornal que, pelo visto, não se reduz às mudanças gráfico-editoriais, mas envolve também o seu posicionamento doutrinário do periódico, tanto em favor do desenvolvimentismo, como da Política Externa Independente com a qual o desenvolvimentismo está intrinsecamente ligado.

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