Revolução das Flores: Uma introdução ao Grupo do Ano 24 na vanguarda do shōjo manga

Share Embed


Descrição do Produto

SLIDE   1  Boa tarde.    A minha apresentação hoje é sobre um conjunto de autoras conhecidas como Grupo do Ano  24, que revolucionaram a  banda desenhada japonesa para raparigas, chamada shōjo manga,  na década de 70 do século XX.    SLIDE   2  Para contextualizar um pouco esta “revolução”, é preciso dizer duas coisas.    Primeiro,  que  apesar  de  por  altura  dos  anos  70,  a  banda  desenhada  japonesa  contar  já  com  mais  de  duas  décadas  de  afirmação  de  grandes  nomes  como  Osamu  Tezuka,  a  banda  desenhada  dirigida  a  um  público  feminino  era  vista,  largamente,  como  um  género  menor  e  marginal.     SLIDE   3  Segundo, que a esmagadora maioria das novelas e banda desenhada para raparigas eram na  verdade escritas e desenhadas por homens. Ou seja, as raparigas consumiam estes produtos,  mas não tinham uma intervenção directa na sua produção.      SLIDE   4  O  Grupo  do  Ano  24  veio  mudar  tudo  isto,  não  só  porque  estas  autoras  trouxeram  o  shōjo  manga para a vanguarda artística da cultura popular japonesa, como constituíram a primeira  grande vaga de mulheres produtoras de banda desenhada no Japão.      Estas  senhoras  são  as  autoras  das  obras  que  vamos  ver  hoje,  a  saber,  Moto  Hagio,  Keiko  Takemiya, Riyoko Ikeda e a Yasuko Aoike.     Actualmente, elas estão na casa dos 60 e bastantes, mas na altura eram jovens de apenas 20 e  poucos anos. Já agora, é importante dizer que elas nunca pararam de trabalhar, e que ainda  hoje continuam a fazer banda desenhada.     SLIDE   5  As obras em que irei focar‐me são quatro: primeiro, iremos ver “Coração de Tomás” e “Poema  do Vento e das Árvores”; e, depois, veremos  “Rosa de Versailles” e “De Eroica Com Amor”. 

  SLIDE   6  Começando então por “Coração de Tomás” de Moto Hagio, e “Poema do Vento e das Árvores”  de Keiko Takemiya, pode dizer‐se que são duas obras “gémeas”, que estabeleceram algumas  das características mais icónicas e inovadoras do Grupo.    Ambas  contam  histórias  trágicas  de  amor  entre  rapazes,  passadas  em  colégios  católicos  na  Europa,  em  finais  do  século  XIX,  e  ambas  abordam  temas  difíceis  como  o  suicídio,  o  abuso  sexual, o racismo, a homofobia e a pedofilia.     SLIDE   7  Aqui vemos precisamente o suicídio de Tomás, atirando‐se de uma ponte, logo nas primeiras  páginas de “Coração de Tomás”…    SLIDE   8  …e, em “Poema do Vento e das Árvores”, uma cena de sexo entre os protagonistas Gilbert e  Serge.     É preciso dizer que Takemiya demorou anos até conseguir publicar estar obra por se recusar a  censurar este tipo de cenas, consideradas impróprias pelos editores.      SLIDE   9  A semelhança entre estas obras reflecte a própria proximidade entre Hagio e Takemiya, que na  altura eram colegas de quarto em Tóquio e partilhavam uma série de interesses.    Nomeadamente,  a  vontade  de  construir  narrativas  complexas  e  psicológicas,  muito  influenciadas por romances de coming‐of‐age, como Damien do Hermann Hesse.     SLIDE   10  E  um  fascínio  com  a  homossexualidade  masculina,  em  particular  entre  jovens  rapazes,  fomentado por filmes europeus como Les Amitiés Particulières.     SLIDE   11  A  combinação  destes  interesses  culminou  na  introdução  do  género  shōnen‐ai,  ou  “amor  de  rapazes”. 

  Ainda  hoje,  a  homossexualidade  masculina  é  um  motivo  prevalente  na  banda  desenhada  japonesa  para  raparigas,  algo  que  geralmente  suscita  alguma  perplexidade  em  quem  não  esteja tão familiarizado com o assunto.     Mas  na  realidade,  se  tivermos  em  conta  a  história  da  cultura  shōjo,  o  que  vemos  é  que  o  shōnen‐ai  vai  beber  directamente  às  chamadas  novelas  “classe  S”  da  primeira  metade  do  século XX.    SLIDE   12  Este  termo  “classe  S”  define  um  tipo  de  “amizades  apaixonadas”  entre  raparigas,  que  assentava  no  discurso  do  amor  espiritual  típico  da  literatura  da  Era  Meiji,  canalizado  para  relações homossociais arrebatadas mas sexualmente inocentes.     As  “relações  S”  funcionavam  como  uma  espécie  de  “bolha”  que  permitia  às  adolescentes  expressarem  os  seus  desejos  em  moldes  que,  na  altura,  seriam  completamente  impossíveis  nas relações heterossexuais, envoltas em tabu e controladas pelos homens.     A resposta do Grupo do Ano 24 foi pegar nas “amizades apaixonadas” da “classe S” mas aplicá‐ las a rapazes, permitindo às raparigas explorar o corpo masculino num contexto romântico e  sexual com toda uma nova liberdade, mas ainda assim de forma segura.    SLIDE   13  Por isso, também, é que estas autoras recorrem à figura do bishōnen, uma palavra que quer  dizer  “rapaz  belo”  em  japonês  e  é  usada  para  descrever  rapazes  adolescentes  com  traços  considerados andróginos ou “femininos”.     Esta beleza compósita permitia expressar aquilo que era um muito desejado meio‐termo entre  os  dois  sexos;  daí  que  os  protagonistas  do  shōnen‐ai  sejam  frequentemente  descritos  como  “corpos de rapazes com corações de rapariga”.     SLIDE   14  Em  termos  formais,  estas  obras  caracterizam‐se  por  uma  “visualidade  háptica”,  táctil,  por  oposição a óptica.     

O ornamento é usado como uma espécie de “sismógrafo” emocional, em que os abundantes  efeitos atmosféricos, símbolos e metáforas visuais surgem ligados a emoções complexas, não  necessariamente verbalizáveis.    SLIDE   15  Outro aspecto importante é que, em momentos mais investidos de afecto, como situações de  conflito emocional ou autodescoberta, rompe‐se com a grelha típica da banda desenhada em  prol da deambulação sensorial, assente no encadeamento de elementos.    Como  vemos,  este  é  conseguido  através  da  simultaneidade  e  contiguidade  de  personagens,  desdobramentos do espaço‐tempo e figuras “abertas” ou fragmentadas.     Estas  características  expressam‐se,  contudo,  de  modos  diversos  dentro  do  próprio  Grupo,  e  outros clássicos oferecem soluções diferentes para preocupações semelhantes.    SLIDE   16  Desde  logo,  a  fórmula  “classe  S”  é  utilizada  de  forma  distinta  no  drama  histórico  “Rosa  de  Versailles”, que conta a história de Oscar, uma mulher educada como um rapaz pelo pai militar,  que se veste e comporta como um homem.     Oscar  torna‐se  comandante  da  Guarda  Imperial  da  Maria  Antonieta,  mas  renuncia  ao  seu  estatuto  aristocrático  para  abraçar  os  ideais  da  Revolução  Francesa,  acabando  mesmo  por  morrer durante a Tomada da Bastilha, para grande choque e consternação das jovens leitoras  à época.     SLIDE   17  A  “Rosa  de  Versailles”  introduziu  uma  dimensão  política  sem  precedentes  no  shōjo  manga,  explorando ideais igualitários que se estendem ao conteúdo romântico da história.    Aliás,  a  própria  autora,  Riyoko  Ikeda,  pertencia  ao  Partido  Comunista  Japonês  e,  tal  como  o  resto do Grupo do Ano 24, cresceu durante o pico da contestação estudantil nos anos 60.     SLIDE   18  Enquanto  personagem,  Oscar  debate‐se  com  e  desafia  a  dinâmica  binária  que  encontramos  tanto nas representações do romance heterossexual, como na própria “classe S”. 

  A sua recusa em aceitar um papel de género fixo condena ao fracasso três dos seus pseudo‐ envolvimentos  amorosos,  não  só  rejeitando  uma  “relação  S”  com  a  amiga  Rosalie,  como  levando‐a  a  assumir  papéis  extremados;  primeiro,  de  princesa,  de  modo  a  contrariar  Hans  Fersen, pelo qual Oscar está apaixonada mas que a vê apenas como um homem e camarada‐ de‐armas; e, depois, de playboy, para irritar o seu noivo, Conde de Girodelle, que a vê apenas  como mulher, levando ao rompimento do noivado.     SLIDE   19  No final, Oscar acaba por apaixona‐se, sim, pelo amigo de infância André, com o qual se parece  física e simbolicamente.     Na  sequência  em  que  Oscar  e  André  consumam  o  seu  amor,  o  que  é  enfatizado  é  a  semelhança  física  e  igualdade  entre  eles  através  da  comparação  com  os  gémeos  mitológicos  Castor e Pólux, reimaginando o romance heterossexual à luz de uma política igualitária.     SLIDE   20  Esta é, já agora, uma das primeiras “cenas na cama” da história do shōjo manga, tendo tido um  enorme impacto nas leitoras da altura.     SLIDE   21  No  extremo  oposto  das  histórias  “sérias”  e  sentimentais  por  que  o  Grupo  ficou  conhecido,  temos “De Eroica Com Amor”, de Yasuko Aoike.     A  correr  desde  1976,  Eroica  é  uma  aventura  internacional  à  maneira  de  James  Bond,  com  comédia e acção, em que um irrascível agente alemão da NATO, Klaus, conhecido como “Klaus  de Ferro”, persegue e é perseguido pelo ladrão de arte Eroica, um lorde inglês homossexual e 

→ inspirado, fisicamente, na estrela de rock Robert Plant.  

esteta assumido    SLIDE   22 

O  elemento  cómico  e  tantalizante  da  série  passa  por  esta  relação  de  amizade‐ódio  em  que  Klaus  rejeita  os  constantes  avanços  de  Eroica,  mas  as  circunstâncias  os  forçam,  invariavelmente, à colaboração e contacto físico.    

Por  exemplo,  nesta  sequência  em  cima  de  um  comboio  em  movimento,  Eroica  segura  na  cintura de Klaus para ele executar um disparo, na condição de não tocar em nada abaixo do  cinto, mas, com toda a agitação, claro que Eroica acaba mesmo deitado sobre as nádegas de  Klaus, para grande fúria e embaraço do último, como podem ver...    SLIDE   23  Klaus  e  Eroica  apresentam,  também,  um  modelo  de  bishōnen  “masculinizado”,  de  ombros  largos e queixos angulares, que vai ter uma influência fortíssima nos 80 e 90, no shōjo manga  em geral, mas particularmente, na transição do shōnen‐ai para o género conhecido por yaoi,  em que a componente erótica se vai tornar cada vez mais dominante e explícita.      SLIDE   24  Por último, Eroica foi também inovador por trazer a acção “pura e dura” para o território do  shōjo manga, introduzindo nas revistas de banda desenhada para raparigas coisas nunca antes  vistas como  perseguições em tanques  com revólveres a bazucas, e variando de tom desde  o  humor slapstick ao thriller hardboiled.     Ainda mais, a história tem como cenário a Guerra Fria – portanto, um evento contemporâneo,  por  oposição  às  obras  que  vimos  anteriormente  –,  bem  como  uma  gigantesca  diversidade  geográfica,  mostrando  a  Europa  dos  Alpes  ao  Pártenon,  destinos  invulgares  do  Alasca  ao  Iraque, e uma lista infindável de cidades, incluindo uma passagem por Lisboa.     SLIDE   25  Concluindo, estas obras são representativas daquilo que foi a revolução do Grupo do Ano 24,  em que as autoras reinventaram elementos da cultura shōjo do pré e pós‐guerra de modo a  explorar  personagens  psicológica  e  emocionalmente  complexos,  narrativas  que  abordam  questões  políticas,  filosóficas,  sexuais  e  sociais,  e  géneros  até  então  exclusivamente  masculinos como o thriller e a ficção científica.    Para  tal,  foi  necessário  “deslocarem‐se”  para  territórios  livres  dos  constrangimentos  daquilo  que  era  a  sua  realidade  mais  próxima,  nomeadamente,  assumindo  outros  sexos,  outros  tempos e outros lugares.    

O Grupo do Ano 24 partilhou, assim, não só um espaço histórico e cultural comum, como todo  um novo sistema de valores estéticos e éticos para o shōjo manga: um que não era monolítico,  mas heterogéneo e adaptável à visão individual de cada autora.     

→ Obrigada! 

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.