REVOLUÇÃO E FEDERALISMO alguns apontamentos sobre Arendt, Proudhon, Bakunin e os Zapatistas

July 22, 2017 | Autor: Rodrigo Pennesi | Categoria: Russian Revolution, Hannah Arendt, Mexican Revolution
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA – PPGF

REVOLUÇÃO E FEDERALISMO alguns apontamentos sobre Arendt, Proudhon, Bakunin e os Zapatistas

_______________________________ RODRIGO PENNESI

RIO DE JANEIRO 2015

AGAMBEM

1 Os estudos de Hannah Arendt sobre a política chamam a atenção por sua originalidade e também por sua recusa em se deixar classificar facilmente dentro das correntes tradicionais da filosofia política, ou mesmo dentro dos campos amplos da esquerda e da direita. Em sua análise do fenômeno da Revolução, a filósofa toma como ponto de partida a separação radical entre os campos do social e do político, inspirando-se no modelo da democracia grega para tal. Tendo essa separação como chave de entendimento para a análise dos processos revolucionários, a filósofa pode então partir para a avaliação minuciosa dos maiores processos revolucionários da história, a saber as revoluções americana e francesa. A parte que nos toca nesse breve ensaio, na verdade se encontra no final do seu livro, quando após analisar a experiência revolucionária húngara resgata a herança dos conselhos como o grande legado das revoluções para a política, conselhos entendidos como um modelo de gestão governamental oposto diametralmente ao modelo partidário que se tornou hegemônico em nossa contemporaneidade. Em um ponto de seu livro Arendt nos deixa um breve e enigmático comentário acerca da contribuição de dois grandes pensadores do campo do socialismo libertário ao afirmar que “existem alguns parágrafos nos textos dos socialistas utópicos, principalmente em Proudhon e Bakunin, nos quais é relativamente fácil encontrar uma certa consciência do sistema de conselhos”(ARENDT, 2011, 327). Partindo dessa brecha de aproximação, nossa intenção é analisar mais a fundo as colocações acerca dos conselhos nesses dois pensadores, contrapostos com a proposta da filósofa e também buscar uma atualização do debate ao analisar o modelo das juntas de bom governo desenvolvidas pelas comunidades zapatistas do estado de Chiapas no México. A obra de Arendt nos leva a um conceito de política que não segue a risca os passos da tradição ocidental. A filósofa busca resgatar uma noção originária da política ancorada na experiência da polis grega e que teria se perdido quase por completo na contemporaneidade. A experiência da Liberdade Política está tão sepultada na História que não há linguagem para tratá-la. O Tratamento históricofilosófico do político em Arendt, pode a princípio nos levar a crer que este se perdeu por completo na era moderna, porém em seu livro Sobre a Revolução ela retoma o tema apontando seu aparecimento durante os processos revolucionários. A etimologia do problema da liberdade política em Arendt remonta a Grécia antiga, e a clássica distinção entre o espaço da vida privada e o espaço da vida

2 pública. Essa distinção era tão marcada que Werner Jaeger em seu livro Paideia afirmava que a criação das cidades-estados significava que o homem recebera “além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos”(JAEGER, Paideia, apud ARENDT, 2007, p.33). Não apenas um novo âmbito da vida que se abre, mas uma nova forma de vida, tamanha a disparidade entre os campos específicos existentes. O espaço privado da vida, a casa, o οἶκος é ligado aquilo que nos aproxima dos animais, nossas necessidades vitais e do domínio do mestre sobre os escravos ou do pai sobre a família. A πόλις é o espaço público e nos aproxima dos deuses, aonda se está não por necessidade, espaço de ação livre, na companhia dos próprios concidadãos. A Pólis era o espaço da ação, compreendida no sentido específico da ação (práxis) e do discurso (léxis), significando a capacidade de iniciar o imprevisível e sem precedentes. Agindo e falando na esfera pública, na ágora, os cidadãos mostravam quem eram, revelavam suas identidades pessoais originais e, assim faziam a sua aparição no mundo humano. A política não é domínio, de que não se baseia na distinção entre governantes e governados e nem é mera violência, mas ação em comum acordo, ação em conjunto, sendo reflexo da condição plural do homem e fim em si mesma, assim não pode ser homogeneizada. A ação é o espaço de afirmação das diferenças e não o esmagamento dessas por um consenso imposto. O papel das diferenças era tão importante na Grécia que aqueles que se recusassem a tomar partido nas disputas de facção da pólis eram punidos severamente. É esse conceito de política como espaço da liberdade e da criação do novo que Arendt quer resgatar ao retornar aos gregos. Política como espaço da ação, ação como capacidade de iniciar o imprevisível e sem precedentes. O espaço da política instaura o novo, um movimento que escapa ao circulo, à curva, ao padrão, à norma, ao comportamento. Essa é a noção de política que a maior parte da filosofia desde Platão tenta fugir, a filosofia política surge para atar a política à metafísica. Atar a política a metafísica significa tirar sua capacidade de criação do novo, reduzir a política a formas de governo, e submeter o governo ao saber imutável. Resta então dizer que o que pretendemos enfatizar ao analisar o conceito de política para Hannah Arendt é que a mesma implica não só a possibilidade, latente em todos os seres humanos, de “começar”, de criar algo novo, fazendo surgir o insperado, o imprevisível, mas também, e não de maneira secundária, que a ação política nunca se realiza no isolamento, sempre é uma ação em conjunto, configurando um acordo entre iguais.

3 Dessa forma, por mais que o início seja obra de um único indivíduo, há a necessidade de “outros” para que a ação seja concluída, havendo então uma complementariedade entre as dimensões agonística e consensualista da ação política em Hannah Arendt. Por conseguinte, a política, apesar de ser iniciada pela espontaneidade humana, surge como relação, ela existe entre homens, em outras palavras, não é da essência do homem, considerado isoladamente, ser um “animal político” como pensava Aristóteles, mas por viver num mundo plural, a presença, o olhar do “outro”, é uma marca indelével do fenômeno humano, só podendo ser “apagada” em momentos de “delírio”.(TORRES, 2007, p.240)

Os problemas de interpretação, e as deturpações, do conceito da política pela tradição metafísica se mostram com ainda mais força no momento de tradução do conceito grego para o latim dos filósofos romanos, na tradução consagrada de zoon politikon como animal socialis: homo est naturaliter politicus, id est, socialis (o homem é, por natureza, político, isto é, social). O aparecimento do conceito de social ,eminentemente romano e sem correlato na língua grega, aponta na verdade uma mudança fundamental na concepção da própria arte de governar. Em Roma temos o surgimento da idéia dos projetos urbanísticos, isso é a interferência da Política, do Estado no âmbito do privado, registros dos nascimentos, mortes, terras, assim como ações específicas para a manipulação desses âmbitos. Esse lugar em que o doméstico vem a público é o social, um âmbito intermediário entre aquilo que os gregos pensavam em termos de polis e oikos. O problema dessa adaptação ao mundo latino é que o modo de compreensão do social ainda o mantém preso a sua animalidade, isso é, as suas necessidades vitais, enquanto que a vida política como compreendida pelos gregos, pressupunha a superação das necessidades biológicas, da vida biológica, e a instauração de um novo campo independente que é o campo da vida política. A filosofia política surge para atar a política à metafísica, tentando colocar a questão da política como passível de verdades últimas. Fazer política é um determinado modo de vida, uma forma como os homens se relacionam entre si, a política não é o lugar da verdade, não pode calar a multiplicidade. A melhor compreensão política é uma opinião alargada, que face a uma multiplicidade consegue tomar um caminho. Não há busca do consenso, mas manutenção da multiplicidade. Por isso a política em seu sentido original não pode coexistir com as pretensões universalistas da metafísica. A política é um espaço que dá voz ao povo, povo entendido como multiplicidade de vozes e interesses, e política como espaço de afirmação da diferença, e não exclusão. Esse atrelamento da política à metafísica faz nascer a filosofia política e é um

4 dos principais elementos que leva ao diagnóstico de que a política se perdeu na contemporaneidade. Embora parece apocalíptica essa afirmação, Arendt vai em seu livro Sobre a Revolução, nos apontar como nos processos revolucionários a criação de espaços da liberdade sempre desponta independente dos revolucionários profissionais. O resgate do conceito grego de política como construção de um espaço e liberdade é como um “salto de tigre em direção ao passado”(BENJAMIN, 1994, p.230), tendo Arendt nesse ponto demonstrado “um faro para o atual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente”(BENJAMIN, 1994, p.230). Arendt vai construir suas análises das revoluções modernas contra as interpretações tanto liberais quanto marxistas. Contra os liberais vai contestar a afirmação de que essas revoluções se interessavam primeiramente em estabelecer limites para o governo de forma que não interferisse com as liberdades individuais. A noção de Liberdade em Hannah Arendt não é Liberal. A noção Liberal é negativa, é preciso que a política não interfira na minha liberdade. A Liberdade em Arendt é positiva, é a constituição de um corpo político onde o indivíduo continue autante. Contra os marxistas ela vai contrariar a noção de que a questão social foi central, afirmando que ao assumir a hercúlea tarefa de resolver a problemática social a revolução francesa deu luz ao terror e ao fim da revolução como processo de criação do novo. Além desse ponto específico cabe salientar que enquanto em Hegel se busca analisar a realidade como um movimento estável da história, como uma relação de conhecimento. Marx propõe uma atuação, a partir do conhecimento da história se deve fazer história, ou seja, Se eu posso entender a história em sua totalidade, seu movimento, se eu seu de antemão o fim, eu posso acelerar o processo. Para a filósofa o espaço da política é a ação, e a ação é o espaço entre as pessoas logo o desenvolvimento político é da ordem do imponderável para o sujeito, depende sempre dos outros e portanto de uma improbabilidade infinita. Dizer que a Revolução é a instauração do novo, significa dizer que a história não é nem cíclica, nem teleológica. Assim o objetivo geral das revoluções mas do que buscar solucionar o problema social, da fome e da miséria era o objetivo de construção de um espaço público duradouro onde os indivíduos pudessem exercer a ação política livremente. A Liberdade é o fim da Política, A política é o acontecimento em que se dando se instaura o espaço da liberdade, convívio sem divisão entre dominantes e dominados. A esse fenômeno se dava o nome de isonomia. Os partidários da democracia se

5 referiam a si mesmos com o termo isonomia, o termo democracia era usado apenas pelos seus detratores: “O que vocês chamam de 'não domínio' é, de fato, apenas uma outra espécia de domínio; é a pior forma de governo, comandada pelo demos”(ARENDT, 2011, p.58). Obviamente essa separação brusca entre a construção dos dispositivos de apresentação da política diretamente pelos indivíduos, e a resolução dos problemas sociais que assolam a população pode parecer numa primeira aproximação um tanto quanto ingênua, ou mesmo conservadora. Porém a questão que Arendt busca levantar é que tentar sanar o problema social afoga a Revolução, pois o social é insaciável, foi tentando dar fim a miséria por meio do autoritarismo que Robespierre afirma que pereceu a Revolução por perder o momento histórico de instauração da liberdade. A fome emergiu na política com a Revolução, contrariando a arcaica noção de que cabe àqueles que podem prover suas necessidades o trato público da política, a Revolução é o momento em que os subalternos, excluídos da esfera pública, forçam a sua entrada no cenário político. Anteriormente os miseráveis desertavam do Estado, mas não buscaram substituir o Estado. Esse novo personagem político, o povo esfomeado, segundo Arendt é aquele que está disposto a “renúnciar à liberdade perante os ditames da necessidade”(ARENDT, 2011, p.95). Um exemplo claro desse problema se pode encontrar no lema bolchevique que buscava resumir a revolução russa à equação eletrificação + sovietes. O que equivaleria a uma abrupta separação do político e do social, sendo o social tratado tecnicamente, isso é, sua solução não necessita passar pelo aval das decisões políticas. Essa lógica perversa de separação é o que vai permitir pela prevalência do social que se fechem os sovietes para garantir a eletrificação e o progresso da pátria socialista. É a construção de uma política baseada em decisões econômicas, oque leva a secundarização das próprias instâncias de decisão política, que devem estar de acordo com os cálculos econômicos, ou então sofrerem as consequências. Em oposição a isso temos o processo de politização da economia, ou seja, uma economia baseada no poder político, e portanto passível de ser discutida por uma organização política e por meios revolucionários. A economia deve ser politizada, mas a política não pode ser economicizada. Essa distinção entre a atuação dos bolcheviques e a construção da liberdade também nos serve para salientar a irremediável ruptura abrupta entre a lógica dos partidos e a lógica das assembleias ou conselhos. Os partidos, e os partidários

6 desse modelo, sempre são pegos de surpresa pela agilidade das formações de base, e embora possam momentaneamente apoiar esses esforços (como Marx na comuna de Paris, ou Lenin na revolução soviética), na verdade “jamais pensam nelas como possíveis germes de uma nova forma de governo, tomando-as como meros instrumentos a serem descartados quando a revolução chegasse ao fim”(ARENDT, 2011, p.322) Arendt nos apresenta nesse final de seu estudo sobre as revoluções a sóbria divisão da heranaça das revoluções em partidos e conselhos. “A verdade histórica dessa questão é que o sistema partidário e o sistema de conselhos são quase contemporâneos; ambos eram desconhecidos antes das revoluções”(ARENDT, 2011, p.339). E ainda mais assume a originalidade dos sistemas de conselho ao afrimar que “neste aspecto, é simples questão de justiça dizer que todos os partidos da direita à esquerda têm muito mais em comum entre si do que jamais os grupos revolucionários tiveram com os conselhos”(ARENDT, 2011, p.342). O grande exemplo de revolução conselhista para Arendt é o exemplo da Revolução Húngara. Segundo a filósofa o que começou com uma manifestação estudantil cresceu para um levante armado em menos de 24 horas, e rapidamente o problema central da revolução se tornou como institucionalizar uma liberdade que já era um fato consumado. Ela chega a afirmar que nunca antes uma revolução atingiu seus objetivos tão rapidamente. Ao invés do mando das multidões que poderia ser esperado, apareceram imediatamente, quase que simultaneamente com o levante mesmo, os conselho revolucionários e de trabalhadores, isto é, a mesma organização que por mais de cem anos, emerge sempre que as pessoas se permitem por alguns dias, ou algumas semanas ou meses, seguir seus próprios dispositivos políticos sem governo (ou um programa de partido) imposto de cima. Os consselhos firzeram sua primeira aparição na revolução que varreu a Europa em 1848; eles reapareceram na revolta da Comuna de Paris em 1871, existiram por algumas semanas durante a primeira revolução russa de 1905, para reaparecer com toda sua força na revolução de Outubro na Rússia e a revolução de Novembro na Alemanha e Áustria depois da 1ª Guerra Mundial. Até agora, eles sempre foram derrotados, mas de forma nenhuma apenas pela contrarevolução. O regime bolchevique destruiu seu poder ainda sob Lenin e atestou sua popularidade roubando seu nome (soviet sendo a palavra russa para conselho); quando tanques russosoviéticos destruiram a revolução na Húngria, eles na verdade destruíram os únicos sovietes livres e revolucionários que existiam em qualquer parte do mundo. E na Alemanha, de novo, não foi a reação, mas os Socialdemocratas que liquidaram os Conselhos de soldados e trabalhadores em 1919. No caso da revolução húngara, ainda mais marcadamente do que nos casos anteriores, o estabelecimento de conselhos representou “o primeiro passo prático para reestabelecer a ordem e reorganizar a economia

7 húngara em uma base socialista, mas sem controle rigido do partido ou o aparato de terror”(este é a avaliação do Relatório da Nações Unidas). (ARENDT, 1958, p.28)

Sua análise porém parece ser um tanto quanto ingênua ao afirmar a espontaneidade dos conselhos, mostrando um grande desconhecimento das correntes do socialismo revolucionário que não seguiam a vertente marxista dogmática. Sim de fato ela afirma a originalidade e força de Rosa Luxemburgo, porém também peca por omissão ao expor a contribuição dos socialistas libertários, ou utópicos como ela mesmo prefere chamar afirmando apenas de forma pífia e rasa que esses pensadores estavam “desaparelhados” para lidar com as novas formas de governo revolucionárias(ARENDT, 2011, p.327). O problema se agrava ao afirmar categoricamente que nessa época “mal existia qualquer indício da intima ligação entre o espírito da revolução e o princípio da federação”(ARENDT, 2011, p.333). Uma das mais importantes obras de Proudhon se chama O Princípio Federativo de 1865, e Bakunin publicou seu livro Federalismo, Socialismo E Antiteologismo, em 1868. Essas falhas não se restringem ao período da Comuna de Paris, momento fortemente influenciado por aliancistas como Louise Michel e Eugene Varlin *, mas se estende também ao processo de ciração dos sovietes na Russia, processo inspirado pelos anarquistas, que apesar de toda sua influência sempre mantiveram seus princípios, como fica explícito na passagem a seguir, quando da formação do primeiro conselho operário (‘Soviet’), e da tentativa de eleger o professor e intelectual Voline como dirigente. Segue sua resposta, tão aplicável a tantas e tantas áreas da vida em sociedade. Ao mesmo tempo, foi colocada uma outra questão: Quem dirigiria os trabalhos do Soviet (Conselho)? Quem seria colocado à sua direção? Os operários presentes propuseram, sem nenhuma hesitação, o meu nome. Muito emocionado pela sua confiança, recusei todavia a proposta com energia. Eu disse a meus amigos: ‘Vocês são operários. Vocês querem criar um organismo que deverá se ocupar dos interesses operários. Aprendam então desde o princípio a cuidar vocês mesmos dos seus negócios. Não confiem o seu destino a pessoas que não pertencem ao seu meio. Não venham escolher novos senhores: eles acabarão por dominá-los e por traí-

* Aliança Internacional da Democracia Socialista, organização revolucionária coletivista, aderiu à Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) no ano de 1868. No ano de 1871, Bakunin e seus companheiros atuaram na insurreição proletária da Comuna de Paris. O encadernador e representante da Seção Parisiense da AIT, Eugéne Varlin, militante da Aliança, foi uma das principais lideranças no movimento insurrecional. Bakunin atuou diretamente na Comuna de Lyon.

8 los. Estou convencido de que no que toca as lutas e a emancipação de vocês, ninguém, exceto vocês mesmos, poderá jamais alcançar um resultado verdadeiro. Por vocês, por cima de vocês, no lugar de vocês, ninguém fará nada, nunca. Vocês devem achar o presidente, o secretário e os membros da comissão administrativa em suas próprias fileiras. Se vocês precisarem de informações, esclarecimentos, de certos conhecimentos especiais, enfim, de uma ajuda intelectual e moral baseada em uma instrução aprofundada, vocês poderão se dirigir a intelectuais, a pessoas instruídas que deverão sentir-se felizes não de vos dirigir como senhores, mas de vos trazer seu auxílio sem se meter nas questões da organização de vocês. É dever deles prestar-lhes esse concurso, pois não é por culpa de vocês que lhes falta a instrução indispensável. Esses amigos intelectuais poderão mesmo assistir às reuniões – com voz consultiva, sem mais. (VOLINE, 1980 Livro 01, capítulo II)

Ao enfatizar o caráter anti-estatista e anti-autoritário das Revoluções, os anarquistas sempre deixaram as questões sociais para serem resolvidas pela base (isto é: conselhos/assembleias/soviets/comuna/räte), ou seja, pela instância política fundacional

do

federalismo

libertário.

Isso

porém

nunca

impossibilitou

o

desenvolvimento de uma clara proposta de estabelecimento de uma nova forma de governo que prescindisse do Estado e do monopólio da violência por quem quer que seja. Eis o princípio federativo na visão dos anarquistas, a construção de uma Federação, ou

ainda uma Confederação e não uma República, de conselhos,

soviets, Rätes, comunas ou o que quer que o povo em armas invente como instância deliberativa direta. O federalismo libertário é o meio de organização proposto pela maior parte das vertentes anarquistas, tendo sido proposto pela primeira vez por Pierre-Joseph Proudhon (1809 – 1865), considerado o pai do anarquismo. O federalismo consiste na subdivisão organizacional temporária ou permanente da sociedade libertária, que se organizaria de baixo para cima, em grupos/unidades autônomas de associações, comunas, ou cooperativas que se juntariam em federações, e daí em confederações, por meio de delegados com mandados revogáveis sempre submetidos às assembleias locais por meio do exercício da democracia direta. Ele é derivado, no plano das ideias, do federalismo estatal, porém completamente ausente de relações verticais como o último, sendo regido de forma puramente coletiva e permeada pelo conceito-base da Democracia Direta, ou Democracia de base. O federalismo constituí a proposta positiva anarquista para o modo de organização da sociedade que prescinde do Estado. Trata-se, portanto, de responder a questão: como é possível uma organização da sociedade sem Estado? A diferença para federalismo estatal consiste justamente no caráter descentralizado

9 da organização, partindo de baixo para cima. Mais do que isso, a unidade federalista libertária não é pensada como primeiramente estabelecida abstratamente como uma República para, a partir disso, atingir o concreto, mas trata-se de uma unidade concreta, sem necessidade de um contraponto abstrato (que seria o Estado ou a República) para supostamente corresponder. O federalismo é o oposto da hierarquia ou centralização administrativa. O federalismo é (ou deve ser), por um lado, a resposta ao Estado centralizado, o modelo da sociedade que vai substituí-lo e, ao mesmo

tempo, a

forma

de

associação

dos trabalhadores; organizações,

comunidades e grupos que querem hoje a modificação radical da sociedade. Pierre-Joseph Proudhon é considerado o primeiro anarquista auto-intitulado, uma classificação que ele adotou em sua primeira obra O que é a Propriedade?, publicada em 1840. Proudhon defendeu que a ordem só surgiria da liberdade, e não o contrário, por meio da auto-organização em uma sociedade que abolisse a propriedade como fator de desequilíbrio. À propriedade, ele opôs a posse. A existência da propriedade, portanto, significaria sempre a dominação de alguns sobre outros e a origem do governo e instituições estatais. A posse, por outro lado, diria respeito ao uso de bens e recursos necessários para a manutenção continuada da vida, ela seria um direito plenamente justificado de ser exercido não devendo prestar contas jamais à propriedade, afinal, negá-la significaria em máximo grau condenar o outro à morte ou à escravidão. Proudhon defendeu a partir disso o mutualismo: teoria de apoio mútuo por meio da livre associação dos trabalhadores, contra a socialização dos meios de produção ou ainda sua concentração nas mãos de um Estado. Proudhon é também o primeiro daqueles que tratam o federalismo como princípio geral de organização da sociedade. O Estado seria oposto à autoorganização da sociedade. Ainda no seu período considerado não-anarquista, ele opõe o Estado ao sistema federal. Ainda defendendo a manutenção do Estado, propõe a organização federalista da sociedade. Mesmo a concepção estatal de federalismo é já um ruptura teórica, já que não mantém a unidade estatal como supressão da particularidades e diferenciações em busca de um conjunto homogêneo, não mantém que sociedade pode manter-se apenas pela supressão das liberdades, mas aceita que um grupo social pode existir por ele próprio, internamente determinado e não por unidade externa. Haveriam grupos locais, que Proudhon chama 'naturais', unidos pela comunidade linguística, costumes e religião.

10 O reforço dos poderes centrais seria uma compensação, nos regimes estatais, da ausência de unidade real. Os Estado demasiado grandes seriam levados a este tipo de centralização para tentarem manter-se soberanos e, por meio disto, seriam também levados à guerra com outros Estados. A proposta de Proudhon se constitui a partir de sua própria dialética serial, proposta completamente distinta da hegeliano-marxista ao propor uma dialética não sintética de inspiração heraclítica. Os detalhes dessa proposta não cabem serem explicados nesse trabalho que tem outro foco, mas em sua proposta é necessário ressaltar o papel central da dialética da liberdade e da autoridade. A Autoridade supõe liberdades que a reconheçam como tal ou que a neguem como tal, não há autoridade sem liberdade, seria o princípio da unidade. A Liberdade também suporia, politicamente, uma autoridade que a autorize ou a reprima, o princípio de multiplicidade. O federalismo contemplaria o princípio da autoridade e da liberdade.Neste sistema, ambas se encontram limitadas e contrabalançadas. Não existem liberdades ou autoridades absolutas, os absolutos são contra-sensos, se se suprime uma das duas, a outra não faria sentido. Estão em relação de pressuposição mútua, indissoluvelmente ligados um ao outro, porém, irredutíveis um ao outro (como gradezas inversas), um precisa do outro, mas um se opõe ao outro, a luta perpétua destes dois princípios constitui a uno-multiplicidade das sociedades humanas. Não é possível sociedade sem autoridade ou sem liberdade totalmente (equilíbrio de um pela outro). O federalismo permitiria o equilíbrio perfeito entre estes princípios. Não é possível suprimir uma a outra nem resolvê-las em uma expressão comum, não há síntese entre liberdade e autoridade, elas entram em movimento perpétuo, movimento que é motor histórico, pois uma tende a absorver a outra, esta dialética é irredutível e insolúvel, ela é permanente nas sociedades, a resolução que não nega a tensão teria como expressão máxima o federalismo. Eis portanto a questão da revolução em permanência de Proudhon, um organismo político que não se cristalize como Estado apenas é possível se respeitarmos a soberania do conselhos mesmo em sua organização federativa. “Os contratantes devem reservar-se sempre uma parte de soberania e ação maior do que aquela que abandonam.” (Proudhon, Do Princípio Federativo, p.324). “ A autoridade encarregada da sua execução não pode nunca retirá-la aos seus constituintes; quero dizer que as atribuições federais nunca podem exceder em número, em importância e em

11 realidade as das autoridades comunais, do mesmo modo que estas não podem exceder as prerrogativas dos cidadãos. Se fosse de outro modo, a federação tornar-se-ia uma centralização, a autoridade federal, de simples mandatária e função subordinada que deve ser, seria olhada preponderante; em lugar de ser limitada a um serviço especial, ela tenderia a abarcar toda a atividade e toda a iniciativa.” (Proudhon, Do Princípio Federativo, p.330)

Mikhail Bakunin é considerado o principal teórico do anarquismo e crítico de Marx, apesar de ter também muito em comum com o pensamento marxista, inclusive partilhando o mesmo pano de fundo filosófico próprio à época: a filosofia kantiana, o idealismo alemão e a dialética hegeliana. Participou da Primeira Internacional, na qual ele permaneceu sendo muito ativo até sua expulsão por Karl Marx e seus seguidores no Congresso de Haia em 1872. Defendeu a ação e organização dos trabalhadores de forma a abolir o Estado e o capitalismo, enquanto os aliados de Marx defendiam a conquista do poder político pela classe trabalhadora. Para Bakunin, se os marxistas tivessem êxito em ocupar o poder, eles iriam criar uma ditadura de partido que se apresentaria como uma falsa expressão da vontade do povo. Bakunin trabalha com relações conceituais entre quatro noções básicas: liberdade, que suporia socialismo porque a liberdade individual só poderia se estabelecer sob a condição da liberdade coletiva; socialismo, que suporia federalismo, porque o socialismo centralizado, ou estabelecido de cima pra baixo, anularia a si mesmo e federalismo libertário, que suporia o materialismo, pois seria da mesma maneira que as relações materiais constituiriam a base das relações qualitativas fundadas na prática humana concreta, que o poder e a organização social suporiam grupos autônomos operacionais também fundados na prática humana concreta. A forma de socialismo tal qual a concebia Bakunin era conhecida como Anarquismo coletivista, condição na qual os trabalhadores poderiam administrar diretamente os meios de produção através de suas próprias associações produtivas. A ideia é que a propriedade dos meios de produção, distribuição e troca deveriam ser socializadas e administradas coletivamente pelos próprios trabalhadores reunidos em pequenas associações. Desde modo, cada um deles produziria segundo o acordado coletivamente e receberia o produto íntegro de seu trabalho (valor trabalho suposto). Estas associações a sua vez estariam confederadas através do principio federativo. No entanto, este sistema federal deve buscar, segundo os coletivistas, respeitar e mesmo ampliar a autonomia das associações

12 que autogestionam os meios de produção. “Da natureza do seu objetivo depende essencialmente o modo e a própria natureza de sua organização.” Assim vemos que de fato as críticas de Arendt aos ditos socialistas utópicos, que apesar de vislumbrarem o conselhismo, não possuíam propostas para modelos duradouros de governança, se mostram completamente sem fundamentação bibliográfica. O que de forma nenhuma diminui o valor de seus estudos e a importância das suas conclusões, apenas reproduzindo um desconhecimento de bibliografia socialista não marxista que acaba sendo um lugar comum na academia. Um outro breve recorte que gostariamos de delinear é a atualização dessa problemática analisando a proposta concreta desenvolvida pelos indígenas Tzotzil, Tzeltal, Tojolobal, dentre outros nas montanhas de Chiapas. Esses povos, assim como a grande maioria dos indigenas mexicanos, possuem uma relação cosmogônica com as assembleias, quer dizer, mesmo seus mitos de criação possuem assembleias de deuses que debatem igualitariamente os rumos do mundo. Essa forte herança das assembleias livres reflete obviamente no modelo de política que desenvolvem esses povos quando se veem fartos da política institucional e partidária e partem a afirmar sua dignidade rebelde e sua verdadeira política. Esse antagonismo se mostra muito claramente na oposição entre o mau-governo (Estado, polícia militrarizada, etc) e o bom-governo (assembleias, polícia comunitária, etc). Para os zapatistas o exercício da liberdade deve estar sempre atrelado aos principios éticos do zapatismo. Para eles não há uma distinção possível entre ética e política, pois em tudo que fazem estão cumprindo com os sete princípios do mandarobedecendo: 1.Servir e não se servir 2. Representar e não suplantar 3. Construir e não destruir 4. Obedecer e não mandar 5. Propor e não impor 6. Convencer e não vencer 7. Baixar e não subir O objetivo desses 7 princípios éticos, além de refletirem toda uma cosmologia fortemente arraigada nas tradições maias é que assim se busca não repetir com o bom governo(conselhos e assembleias) os mesmos erros que cometem as

13 instâncias do mau governo(partidos e eleições), e não chegar a reproduzir os mesmos modos que eles. Os três níveis de governo autônomo zapatista se dividem em relação crescente de espaço e decrescente de poder delegado. No primeiro nível estão os agentes e comissariados autônomos de cada comunidade zapatista, eles são as autoridades diretas da comunidade. No segundo nível estão as autoridades autônomas dos municípios, são as autoridades que coordenam as comunidades que integram seu município autônomo. No terceiro nível está a Junta do Bom Governo, responsável pelas outras instâncias de governo, responsável por toda a zona, porém, a máxima autoridade é o povo. As autoridades começam a ser nomeadas a partir da comunidade e quando são eleitos nas comunidades, passam ao município. No município, se concentram companheiros que integram este município, homens e mulheres e ali é onde se nomeiam as autoridades. Como parte dos deveres do governo autônomo temos que: levar informes e apresentar propostas aos povos, prestar conta de todos os trabalhos coletivos que temos ao nível da zona municipal. Fazemos isso através de assembleias gerais, realizadas por zona com a participação das autoridades de cada povoado. É assim que as informações chegam até os povos para que estes estejam informados e para que qualquer proposta que seja apresentada na assembleia retorne para as bases, para se consultar os companheiros e companheiras. Os povos têm o direito de exigir que as autoridades cumpram com seu trabalho e de decidir como o povo quer que este trabalho funcione, ou seja, o povo tem que dizer como quer que funcione sua autoridade porque o povo é a única autoridade que não pode ser destituída. (…) As autoridades têm o direito de exigir que o povo cumpra com os acordos e regulamentos estabelecidos coletivamente, ou seja, o povo exige, mas também a autoridade exige que se cumpra o que foi exigido. (A Liberdade Segundo os Zapatistas, 2014)

O levante zapatista ocorreu em 1º de Janeiro de 1994, 10 anos após a criação do Exército. O que desencadeou o levante numa época em que todas as guerrilhas latino-americanas enfrentavam processos de paz, a queda do muro de Berlim ainda ressoava com o lema de Tatcher “Não há alternativa”, foi a ameaça dos ejidos, propriedades comuns garantidas aos indígenas pelo processo de Independência e defendidos pelo exército libertador do sul durante a Revolução de 1910 sob o comando do general Zapata. A ameaça à terra e à água, fontes da vida desse povo

14 que se diz feito de milho, foi o estopim de uma revolta que institui um vasto território liberado e governado seguindo preceitos éticos fortemente arraigados nos costumes locais. “Abaixo e a esquerda é onde bate o coração”. O modelo de governo criado pelos zapatistas para controlar seu território prescinde do Estado ou de uma República instituida. Os dispositivos federalistas de descentralização do poder dão conta de toda a gestão da vida social respeitando inteiramente os direitos políticos de todos os indivíduos. O sistema de justiça criado pelo zapatistas também é baseado nas comunidades locais e não trabalha dentro do paradigma punitivista ou carcerário, lógicas essas que necessitam da centralidade estatal para se justificarem. Podemos também nos rumos do século XX resgatar diversos outros levantes ignorados pela autora que instauraram por semanas, meses ou anos o sistema conselhista como forma de fazer política hegemônico. Durante a revolução russa, Arendt chega a nos apresentar o caso da base de Kronstadt que se levantou em defesa dos soviets livres, contra o poder bolchevique; mas não cita a liberação da Uccrânia pelo exército negro, a makhnovitchina, que derrotou primeiro o exército branco, para depois enfrentar o exército vermelho em defesa dos soviets livres. O levante búlgaro e macedônio contra o Império Otomano, instaurou em um território nas montanhas uma zona liberada e autogovernada antes de serem dizimados. Assim como a Catalunha e a Andaluzia em 1936 na Espanha onde os sindicatos passaram a gerir todos os apectos da vida social, sendo derrotados pelas trapaças de Stalin, mas do que pelo exército de Franco propriamente dito. Independente de faltas e omissões é preciso reafirmar que a filósofa nos presenteia com uma clara distinção entre as tradições conselhistas e partidárias mesmo em sua gênese, que se mostra uma chave de leitura essencial para analisarmos tanto os aspectos das revoluções históricas, quanto também o fazer política em nossa contemporaneidade. “De fato, a contemporaneidade se escreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo.”(AGAMBEN, 2009, p.69). É nessa intercessão que enxerga a filosofia como exercicio crítico de diagnóstico do presente, que podemos ousar pensar uma construção do fazer política como concretização de um espaço de liberdade na sociedade.

15 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: AGAMBEN, Giorgio. O que é Contemporâneo. Chapecó, SC: Argos, 2009 ARENDT, Hannah. Totalitarian Imperialism: Reflections on the Hungarian Revolution. IN: The Journal of Politics, Vol. 20, No. 1. (Feb., 1958), pp. 5-43. ________. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007 ________. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 BAKUNIN, Mijail. Federalismo, Socialismo Y Antiteologismo. Edição cibernética. 1868 BENJAMIN, Walter. Mágia e técnica, arte e política. São Paulo: ed. brasiliense, 1994 PASSETTI, Edson et RESENDE, Paulo-Edgar (Orgs). Proudhon - Coleção Grandes Cientistas Sociais nº56, coordenada por Florestan Fernandes. São Paulo: Editora Ática, 1986 PROUDHON, Pierre Joseph. El principio federativo. Edição cibernética. 1865 TORRES, Ana Paula Repolês. O sentido da política em Hannah Arendt. In: Trans/Form/Ação, São Paulo, 30(2): 235-246, 2007 VOLINE. A Revolução Desconhecida. São Paulo: Global Editora, 1980

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.