Revolução e Resistência - Perspectivas reichianas no campo social (Monografia PUC-Rio).doc

May 29, 2017 | Autor: Vicente Carnero | Categoria: Wilhelm Reich, Psicología clínica, Psicologia Política, Clínica e Política
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PUC-RIO – PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DO RIO DE JANEIRO

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA


































REVOLUÇÃO E RESISTÊNCIA: PERSPECTIVAS REICHIANAS NO CAMPO SOCIAL



















José Vicente Pereira Justo Carnero



































Rio de Janeiro, novembro de 2009

PUC-RIO – PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DO RIO DE JANEIRO


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA






























REVOLUÇÃO E RESISTÊNCIA: PERSPECTIVAS REICHIANAS NO CAMPO SOCIAL














Monografia apresentada ao Departamento de
Psicologia da PUC-RIO – Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro
como requisito parcial à obtenção do Título
de Psicólogo.


Orientadora: Profª. Dra. Maria Helena
Zamora.


























Rio de Janeiro, novembro de 2009

AGRADECIMENTOS




À professora Maria Helena Zamora, pela profunda amizade, carinho e
companheirismo que pude receber ao ter a chance de circular e estar perto
desta mestra que me abriu os caminhos teóricos e práticos sobre a política,
e participou entusiasticamente de meu interesse em resgatar e inserir de
forma potente as contribuições de Reich na academia.






Aos meus amigos e colegas de monitoria Flávia Pfeil, Bruno Larrubia e
Flávia Villaverde pelo companheirismo e pelos momentos alegres de
aprendizagem e aprimoramento da matéria Psicologia e Instituições, o que
sempre foi um incentivo para a preparação das aulas às sextas-feiras.






Aos meus professores que durante a graduação me fizeram apreciar e
aprender diferentes campos da psicologia, compartilhando seus preciosos
conhecimentos. Agradeço também ao ótimo encontro com os professores da UFF,
Cristina Rauter e Eduardo Passos, que também apontaram para o resgate do
pensamento de Reich sobre questões políticas e cotidianas.





À minha querida esposa Jennifer Paixão que foi muito companheira durante
as longas tardes de concentração para confeccionar esta monografia e que
esteve a meu lado com amor, leveza e alegria me dando suporte para que
pudesse conciliar momentos intensos de trabalho e estudo.






Ao meu mestre de coração Rudi Reali por todos os anos de amizade e
ensinamentos inestimáveis que possibilitaram tanto minha evolução afetiva
quanto profissional, campos que aprendi serem intimamente interligados e
interdependentes. Agradeço também a Elizabeth Reali pela amizade, pelo
carinho e pelas críticas que foram muito construtivas.






Às minhas amigas e companheiras de formação em Vegetoterapia Carátero-
Analítica, Alice Paiva e Simone Motta que a partir da grande amizade, me
ajudam a aprimorar a prática e a didática da terapia reichiana.






Aos meus pais, José Vicente Carnero e Julia Carnero, pelo amor, pelo
carinho e por me possibilitarem condições de conforto, segurança e
aprendizagens importantes durante a vida.






A todos estes que trazem vida e um campo forte à minha existência,
obrigado!









































"Pelos campos há fome em grandes plantações, pelas ruas
marchando indecisos cordões; Ainda fazem da flor seu mais
forte refrão, e acreditam nas flores vencendo o canhão.

Há soldados armados, amados ou não, quase todos perdidos
de armas na mão; Nos quartéis lhes ensinam uma antiga
lição, de morrer pela pátria e viver sem razão.

Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz
a hora, não espera acontecer.

Nas escolas, nas ruas, campos, construções, somos todos
soldados, armados ou não. Caminhando e cantando e seguindo
a canção. Somos todos iguais braços dados ou não."

(Pra não dizer que não falei de
flores – Geraldo Vandré)



































RESUMO


Este trabalho compreende um estudo sobre as perspectivas teórico-
clínicas do pensamento de Wilhelm Reich e suas derivações no campo da
política. O tema é apresentado a partir do enlace de conceitos como
vitalidade, energia e sexualidade, pontos de partida para a compreensão das
idéias do autor. Enfatiza a dimensão conectiva do ser vivo em relação ao
seu meio e as sobredeterminações na cultura resultantes dos movimentos que
são feitos neste intuito. Estabelece diálogos entre as formas de gestão
humana no capitalismo e a consequente estruturação de uma economia que se
reflete em diversos campos, sobretudo o sexual.





PALAVRAS-CHAVE: Reich; sexualidade; política; instituições; fascismo;
educação.













































SUMÁRIO




AGRADECIMENTOS 2
RESUMO 5
SUMÁRIO 6
INTRODUÇÃO 7
I) PANORAMA HISTÓRICO POLÍTICO DA PROPOSTA CLÍNICA DE WILHELM REICH 9
II) A PROPOSTA DE INTERVENÇÃO POLÍTICA NO CAMPO SOCIAL 45
CONCLUSÃO 57
BIBLIOGRAFIA 59



















INTRODUÇÃO





Os motivos que me fizeram ter interesse por esse projeto, partiram tanto
da experiência clínica com a prática reichiana, como a partir dos estudos
em análise institucional e política social na universidade. O campo
reichiano é bastante amplo e implica em diálogos com disciplinas díspares
que não tendem a se comunicar com facilidade. A perspectiva apresentada
pelos estudos sociais, que escapam a um modelo privado e individualizante
de clínica, foi de grande importância para que surgisse a necessidade de
aprofundamento e de resgate do pensamento de Wilhelm Reich.


Este autor revolucionário e pioneiro, a partir da contraposição de
certos preceitos rígidos da psicanálise, inaugura uma forma de
contextualizar o ser humano, bem como suas formas de ser e existir, por
meio de diversas disciplinas atravessadas por um mesmo princípio comum. A
energia, conceito muitas vezes repudiado ou incompreendido por autores que
se apóiam em noções positivistas e não-holísticas, forma a base do
pensamento de Reich e o permite transitar por distintos campos do saber de
forma paradigmática – ao tomar como parâmetro fundamental, o aspecto
sensível da vida.


Este trabalho tem como objetivo pesquisar alguns referenciais
metodológicos, para um questionamento de base clínica e política, a
respeito do que se cria nas práticas cotidianas. Da mesma forma, busca
elucidar onde se ancoram as práticas de educadores e psicoterapeutas,
sobretudo, a partir das linhas pelas quais produzem orientação e o que de
fato inauguram no campo social.


O texto foi pensado a partir da influência de alguns autores que
fundamentaram as concepções reichianas, como Spinoza e Nietzsche, de alguns
filósofos da Diferença, como Deleuze e Guattari, bem como do ponto de vista
da Análise Institucional. Tais estudos fazem compreender e fornecem o olhar
sobre o que está sendo estudado, por isto não será raro perceber que alguns
dos termos utilizados provém destes autores.


Esta monografia tratará do tema Revolução e Resistência: Perspectivas
reichianas no Campo Social, tendo como objetivo caracterizar um olhar sobre
a política no que diz respeito à possibilidade de maiores aberturas
perceptivas em relação à vida com o outro e em sociedade. Um segundo
questionamento será feito sobre os fatores que legitimam a violência, ou as
práticas destrutivas no campo social, tanto por suas formas sociais, quanto
por suas formas emocionais.


Esse trabalho organiza-se em temas divididos por capítulos na seguinte
ordem: o capítulo I faz um percurso no contexto histórico de Reich em Viena
e Berlim, entre os anos de 1920 e 1934, elucidando algumas de suas teorias
e bases filosóficas ; o capítulo II aprofunda as intervenções políticas de
Reich durante este período, suas considerações sobre o fascismo e a
necessidade de intervenções políticas na sociedade, uma vez que se pretenda
operar em prol de mudanças que visem trazer uma condição mais potente de
existência. Ambos os capítulos descrevem o que muitas vezes é chamado como
a "fase política" de Reich, o que pretende ser desmistificado, pois julgar
suas intervenções políticas como uma "fase", pode derivar em uma divisão
artificial e pouco coerente de sua obra. Ao final, teremos as considerações
conclusivas deste trabalho e o conteúdo bibliográfico.


I) PANORAMA HISTÓRICO POLÍTICO DA PROPOSTA CLÍNICA DE WILHELM REICH




Wilhelm Reich inicia a faculdade de Medicina em 1918, com a facilidade
de completá-la em quatro anos devido à condição de ex-combatente da
Primeira Guerra Mundial. No ano seguinte, participa de conferências sobre
anatomia e, em uma destas, recebe um convite para organizar em conjunto com
outros estudantes, um seminário de sexologia. No entanto, a forma como os
alunos abordavam o assunto causou-lhe estranheza. O tema não era abordado
com a mesma clareza e objetividade como em outros âmbitos da medicina, mas
permeado por um moralismo que causava em Reich um desagrado instintivo.
Posteriormente, já atuando em psicanálise, o mesmo incômodo persistiria,
uma vez que, na visão de muitos de seus colegas psicanalistas, a
sexualidade parecia apenas existir correlacionada com instintos perversos.
A aproximação de Reich pelo tema, partia da convicção de que "a sexualidade
é o centro em torno do qual gira a vida da sociedade como um todo" (Reich,
1988b:28), consciência que não teve origem em seus estudos em psicanálise,
mas a partir de suas próprias vivências na infância e na adolescência
(Reich, 1996:85).


A relação com o pensamento freudiano se constituiu por um viés
biológico. Reich, muito próximo da tradição romântica alemã, encontrava na
natureza e nas "ciências da vida" uma aliada e um modelo orgânico, não
mecânico de transformação social (Barreto, 2000:113). Durante a faculdade
de medicina deparou-se com um conflito que permeava as discussões
biológicas do início do século XX, entre o vitalismo e o mecanicismo[1].
Nenhuma das duas, na opinião de Reich, estava totalmente adequada a
explicar a vida. Nem tanto transcendental, como tampouco um somatório de
partes mecânicas em funcionamento, sua compreensão era de que "a vida era
marcada por uma notável racionalidade e intencionalidade da ação instintiva
e involuntária" (Reich, 1988b:29).


É com Henri Bergson que encontra uma filosofia menos determinista, menos
cientificista e ao mesmo tempo uma dialética que visava a contraposição de
dualidades antagônicas complementares[2], que se torna base para a futura
identidade e unidade do funcionamento corpo-mente, um dos principais
fundamentos do pensamento reichiano.


A filosofia de Bergson, na passagem para o século XX, representava um
marco pioneiro na introdução de um novo zeitgeist, que rompia com o
positivismo e o idealismo do século XIX. Segundo a concepção hegemônica de
ciência, a natureza e o mundo são compostos por três propriedades: a
extensão, a multiplicidade numérica e o determinismo causal (Bochénski,
1975:109). Nesta concepção de natureza, o espaço é composto de corpos
sólidos extensos que se encontram metricamente separados e justapostos.
Disto, derivam-se leis naturais invariáveis que determinam por causalidade
os acontecimentos. Bergson rompe com este paradigma mecanicista,
introduzindo uma forma de apreender a realidade completamente diferente. Ao
não considerar o movimento e as forças atuantes, mas apenas seus efeitos e
as posições dos corpos, a ciência natural traça uma imagem de mundo que
carece de dinamismo e vida (Ibid.). Para Bergson a realidade compõe-se por
uma intensidade qualitativa e por elementos heterogêneos que se
interpenetram.


A realidade "não é espacial nem calculável", é um agir que flui e
constantemente devém (élan vital), não podendo ser desta forma, medida ou
discriminada. A apreensão métrica da matéria espacial seria característica
da inteligência lógica, que cria estratégias de ação a partir de parâmetros
exatamente definidos. Ao ser seu objeto principal, o que é imóvel e fixo, é
capaz de captar a matéria para transformar os corpos em instrumentos.
Dentre suas características, estariam ainda a capacidade analítica de
conceber clareza e distinção a qualquer sistema ou lei, bem como a
decomposição ou recomposição de suas partes.


Ao mesmo tempo, para Bergson, não é característica da inteligência
compreender a duração real e a vida. A duração (durée), um de seus
conceitos mais importantes, apenas pode ser conhecida pela intuição. Como
afirma Bochénski:


"Órgão do homo sapiens, a intuição não está ao serviço da
prática; seu objeto é o fluente, o orgânico, o que está em
marcha; só ela pode captar a duração. Enquanto a
inteligência analisa, decompõe, para preparar a ação, a
intuição é uma simples visão, que não decompõe nem compõe,
mas vive a realidade da duração." (1975:111 [grifo do
autor]).


A inteligência que é constituída com a matéria, introduz à duração a
descontinuidade, a extensividade e as formas determinadas, interrompendo
portanto a corrente vital única, que permite a compreensão dos movimentos.
Para Bergson, toda criação e evolução da vida parte de um impulso comum
original que designou como élan vital. A concepção de um impulso vital e de
uma evolução criadora, parte de uma leitura acurada do filósofo aos
fenômenos biológicos. Se na vida há uma finalidade ou fim (do grego télos,
propósito), este não deve residir em seu final, mas em seu início. A vida
deve ser abraçada em sua totalidade em uma apreensão única e indivisível. O
princípio vital original se encontra em oposição tanto ao finalismo
tradicional quanto ao mecanicismo. O órgão vivo dentro de uma concepção
mecanicista, não é capaz de gerar criação, criatividade ou mudança real,
uma vez que cada desenvolvimento estaria contido em seus predecessores.
Reich, no entanto, faz um adendo. Este élan vital que flui entre os seres
vivos, na medida em que é sentido, vivido e experienciado por eles, não
seria possível existir apenas em uma dimensão metafísica.


Este questionamento inicial, mas de nenhuma forma contrário ao
pensamento do filósofo, é o que o levará anos mais tarde ao campo da
energia enquanto fenômeno físico. Segundo Dadoun (1991:44), a "lacuna"
sentida por Reich na teoria bergsoniana será preenchida pela revolução
psicanalítica e pelo que chamou de corpo sexual. O vitalismo inicial de
Reich desenvolve-se, portanto, em torno da sexualidade.


Na psiquiatria da época, pouco conhecimento havia sobre as enfermidades
psíquicas ou sexuais; quando não eram tratadas de forma moralista, muitas
vezes eram explicadas pela ciência através da hereditariedade e da
determinação biológica. Reich, contudo, rejeitou durante sua obra, o
determinismo, o inatismo e moralismo subjacentes à quaisquer explicações.


É neste contexto de crise científica, epistemológica e cultural que
encontra Freud. A teoria da sexualidade de Freud fornecia uma compreensão
clínica completamente distinta. A sexualidade não era um fenômeno que
surpreendia o homem na puberdade como um florescer repentino, mas tinha sua
origem na infância através de estágios de desenvolvimento sexual. Disto
compreendeu que "a experiência sexual inclui um campo muito maior que a
experiência genital" (Reich, 1988b:34) e assim, encontra em Freud um
pensamento lógico que fornecia novas hipóteses aos questionamentos
anteriores.


Em 1920 Reich ingressa na Associação Psicanalítica Internacional. No
entanto este é o momento em que Freud se afasta das formulações iniciais
estabelecidas no Ensaio de uma Psicologia Científica, no qual postulava
"uma base fisiológica para o inconsciente, de modo a fazer da psicanálise
uma ciência natural" (Barreto, 2007:139). No mesmo ano, Freud publica a
obra Para Além do Princípio do Prazer, onde passa a atribuir à sexualidade
uma dimensão cada vez menos material e quantitativa, em detrimento de uma
dimensão qualitativa, onde o ego se tornava a instância central dos
conflitos psíquicos. Começam assim, as divergências de Reich em relação à
psicanálise.


Segundo ele, "o conceito de "libido" foi despido de todos os traços de
conteúdo sexual e transformou-se em uma figura de retórica" (Reich,
1988b:113), enquanto a sexualidade, não mais em sua dimensão concreta e
real, tornava-se "Eros". O instinto sexual perdia importância como força
central do funcionamento psíquico. As duas novas forças pulsionais que
moveriam o homem seriam Eros, dirigida à vida, e Thanatos, dirigida à
destruição e à morte. Freud inaugurava uma equivalência e um conflito
inevitável de forças inerentes ao ser humano. A pulsão de vida caracterizar-
se-ia apenas como uma antítese da pulsão de morte e não mais como fonte da
energia psíquica. Se a morte, tomada como negatividade, ganhava status de
pulsão, tinha-se como corolário, ser o mal uma característica intrínseca ao
ser humano, estando sempre à espreita de manifestar-se. Se as manifestações
cruéis e sádicas são tomadas como inerentes à natureza humana, tal como
pressupôs Freud, disto resulta um finalismo determinista: o homem destrói-
se porque busca um fim à própria existência. É preciso, contudo, distinguir
a "aniquilação cruel e dolorosa da vida" (Barreto, 2000:69 [grifo nosso]) –
um decurso socialmente engendrado – de um processo natural de decomposição
do vivo o qual não porta em si nenhum adjetivo ou qualidade destrutiva.
Enquanto a morte é um processo verificável, nem toda oportunidade de
manifestação de ira, revolta, ou de destituir do trono o que é tirano, tem
por determinação natural transformar-se em uma atividade sádica ou
destrutiva.


Na primeira formulação, o mundo externo era composto por papéis
repressivos e punitivos exercidos pela sociedade, configurando assim o
conflito neurótico como uma tensão entre a libido e o medo de punição. Com
a nova formulação, o mundo – o papel social exercido por este –
"desaparece" e o homem passa a ser remetido apenas a seus elementos
internos, a sentimentos inconscientes de culpa que poderiam ser reparados
através da punição e do sofrimento. O sofrimento torna-se não mais
originário das relações sociais, mas de uma "necessidade biológica de
sofrer". Inicialmente a teoria da pulsão de morte constituiu-se apenas como
uma hipótese, no entanto, Freud modificou esta posição ao compreender que a
teoria anterior não levaria a nenhuma resolução possível. Reich discorda
com os princípios desta formulação, uma vez que conduziam à afirmação de
"que a estrutura humana e as condições da existência humana eram imutáveis"
(Reich 1988b:191).


Em 22 de maio de 1922 foi fundada a Clínica Psicanalítica de Viena, cujo
objetivo era fornecer atendimentos sociais à população. O dispensário teve
Freud como diretor e Reich como seu assistente clínico até 1928, ano em que
assumiu a diretoria. No mesmo ano em que foi fundada a clínica, ocorreu o
Congresso Psicanalítico Internacional em Berlim, onde Freud propôs uma
competição de ensaios que tinha como tema a correlação entre a teoria e a
técnica psicanalítica. Não havia formulações teóricas para certos fenômenos
que apareciam em clínica, tal como a chamada "reação terapêutica negativa",
uma espécie de investimento inconsciente de alguns pacientes que, ao invés
de obterem sucesso durante o tratamento, apenas pioravam.


A partir desta preocupação, nasce a proposta de Reich de organizar um
seminário sobre a técnica psicanalítica, com o objetivo de estudar
sistematicamente os casos clínicos, o que permitiria uma ampliação do
conhecimento e um maior domínio sobre a técnica. Freud aprovou com
entusiasmo o seminário e este passou a ser presidido por psicanalistas
proeminentes como Hitschmann e Nunberg. Apenas em 1924, Reich se admite com
experiência suficiente para assumir a presidência do Seminário e permanece
em sua liderança até 1930, quando se transfere para Berlim. Cabe ressaltar
que o Seminário de Terapia Psicanalítica teve um papel fundamentador das
reformulações técnicas propostas por Reich à prática psicanalítica:


"As explicações da técnica terapêutica e a concepção
dinâmico-econômica do caráter como um todo são,
essencialmente, frutos de minhas vastas experiências e
incontáveis discussões no Seminário de Terapia
Psicanalítica da Clínica Psicanalítica de Viena, que
dirigi durante seis anos..." (Reich, 2004:1).


Segundo Reich, a observação clínica apurada acarreta invariavelmente no
aperfeiçoamento da teoria, que por sua vez, deve servir ao propósito da
prevenção das neuroses. Desta forma, por meio de sua prática clínica,
concluiu que "as neuroses são resultado de uma educação familiar patriarcal
e repressiva no que se refere a questões sexuais" (Reich, 2004:3) e que
deveria haver uma mudança radical nas condições sociais para que as
neuroses pudessem ser evitadas. Considerando que o modelo clínico
individual restringia a um pequeno número de pessoas a possibilidade de
submeter-se a um tratamento analítico, Reich sentia urgência de um trabalho
mais amplo, que possibilitasse a melhora das condições de saúde da
sociedade em maior escala.


A experiência adquirida no trabalho na Clínica conduziu a uma crítica
radical da estrutura social que alimentava a repressão e a inibição moral –
ambas geradoras de estase que conduziam à neurose e à insatisfação sexual.
Nas produções psicanalíticas e psiquiátricas da época não havia uma
problematização da condição social dos pacientes. A pobreza e a falta de
acesso às necessidades básicas, não pareciam ser parte importante dos
problemas clínicos. No entanto, "é trabalhando nos ambulatórios e não
apenas em seu escritório, [que Reich] toma consciência da imensa miséria
social dos operários e sobretudo dos jovens" (Lapassade & Lourau, 1972:51).


Reich apresenta seu conceito de "potência orgástica" primeiramente no
Congresso Psicanalítico Internacional de Salzburgo, em 1924, a partir da
ampliação de suas formulações sobre "A genitalidade do ponto de vista do
prognóstico e da terapêutica psicanalítica", apresentado um ano antes, onde
afirmava que dentre seus mais de quarenta casos de neurose na clínica, não
havia encontrado nenhum paciente que não apresentasse impotência ou
frigidez, principalmente sob as formas de abstinência sexual. Inicialmente
a investigação se deu sobre a manifestação direta da genitalidade na
relação sexual. Assim, Reich observou as perturbações na potência vaginal
da mulher e na potência ejaculativa e eretiva do homem. Contudo, constatou
casos de neuróticos que eram eretivamente potentes, e assim, concluiu que a
potência eretiva nada dizia sobre a regulação das funções da libido. Este
tema é tratado por Reich, em seu livro escrito em 1926, "A Função do
Orgasmo", onde discorre sobre o papel do orgasmo como regulador da energia
biológica (libido) no organismo. Segundo conclui sobre o tema:


"No ato sexual livre de angústia, de desprazer e de
fantasias, a intensidade de prazer no orgasmo depende da
quantidade de tensão sexual concentrada nos genitais.
Quando maior e mais abrupta é a "queda" da excitação,
tanto mais intenso é o prazer" (Reich, 1988b:94).


O indivíduo neurótico é orgasticamente impotente, isto é, no auge do
abraço genital é incapaz de entregar-se voluntariamente à convulsão do
organismo e, por conseguinte, de realizar uma descarga completa da
excitação. Caso uma quantidade de energia sexual não possa ser descarregada
e assim retornar o organismo a seu equilíbrio biológico, ocorre uma reserva
energética que se torna estagnada no organismo. É a estase sexual que
fornece a força motriz tanto para as neuroses quanto para os sintomas
patológicos neuróticos. A dimensão quantitativa então, antes abandonada por
Freud, torna-se juntamente com a potência orgástica, os elementos centrais
na investigação econômica das atividades sexuais.


A distinção entre potência eretiva e potência orgástica evidenciava que
o importante no prognóstico dos pacientes neuróticos era compreender "se a
capacidade de conseguir satisfação sexual adequada estava intacta" (Reich,
2001:26 [grifo do autor]). A potência orgástica, descrita como a
"capacidade de abandonar-se [...] ao fluxo de energia biológica" (Reich,
1988b:94), também se constituía como a "capacidade do indivíduo para o
amor" (Reich, 1988b:15). A entrega ao contato afetivo se estabelece como a
potência vital ao encontro, do qual depende a saúde psíquica. Assim Reich
conclui que "as enfermidades psíquicas são o resultado de uma perturbação
da capacidade natural de amar." (Ibid.)


Este é o sentido que futuramente irá orientar tanto a clínica quanto as
intervenções no campo social, pois sem a modificação das instituições
sociais que criam o temor, o ódio, a violência, o desamparo e as condições
de irracionalidade humana que levam aos movimentos e às estruturas de
caráter fascistas, não é possível cogitar a formação de uma sociedade
psiquicamente e emocionalmente saudável. Entretanto, tal mudança não pode
ser realizada sem lutas políticas e sociais.


O período do ano de 1926 foi marcado por intensas descobertas clínicas,
como a técnica da análise sistemática das resistências caracteriais, onde
Reich evidenciou que a proposta clínica do terapeuta podia resultar em
insucesso se não fossem observadas certas dinâmicas que ocorrem na relação
terapêutica. Tais dinâmicas estavam além da análise da resistência e da
transferência, tal como eram postuladas na época. Ao mesmo tempo, as
pesquisas sobre a função do orgasmo e a genitalidade conduziam a um gradual
conflito com a instituição psicanalítica. Adjetivos como "agressivo,
paranóide e ambicioso" começaram a ser dirigidos a Reich por alguns membros
da Sociedade.


Após anos em contato com a miséria emocional e material das classes
populares em Viena, Reich ingressou no ano de 1927 no Partido Comunista
Austríaco e passou a participar ativamente dos movimentos socialistas.
Reich estudou Marx e, sobretudo Engels, em sua obra baseada nas
investigações antropológicas de Lewis Morgan: "A origem da família, da
propriedade privada e do Estado". A obra trata do surgimento da família
patriarcal, monogâmica compulsória, onde o homem passa a ser o detentor do
excedente da produção e, portanto, torna-se o líder econômico e o chefe da
família. Apesar de Engels apenas se referir à sexualidade em seu aspecto
reprodutor (Barreto, 2000:79), Reich percebe que a divisão social
estabelecida pela passagem do matriarcado para o patriarcado constituía um
aspecto fundamental das pesquisas sobre a organização econômica-sexual e
familiar nas sociedades.


Reich refutava a idéia de que a família fosse uma instituição imutável,
mas ao contrário, era moldada a partir de influências sociais, o que
conferia historicidade à família nuclear burguesa. Tal sustentação feria
uma conformidade bastante cara à subjetividade moldada pelo capitalismo. O
esvaziamento da vida pública ocorreu no momento que o homem se retirou de
uma dimensão coletiva de existência e passou a se fechar no domínio da
intimidade e da "sagrada família".


Poderíamos retomar a discussão em outro contexto, a partir das
contribuições do sociólogo Richard Sennett (1988). Para ele, o capitalismo,
longe de haver apenas transformado o modelo das relações comerciais,
inaugurou uma forma de relação do privado, conferindo valor à produção do
individual encerrada em si mesma e constituindo diretamente o processo de
privatização da vida. Nesta nova esfera, o moralmente mau e o ameaçador
passam a residir na vida pública e no contato com o outro diferente. Os
agenciamentos no coletivo passam a ser percebidos e sentidos como
produtores de insegurança. A família então assume o papel de produzir na
intimidade sagrada e restrita, indivíduos condicionados a exibir
socialmente uma forma de conduta moral que expusesse os valores daquele
grupo. Seria possível pensarmos em um paralelismo entre a estética moral e
as vitrines que exibem o "valor em si" do produto da forma mais eficiente
possível. Anteriormente, o valor do bem era composto na medida em que
constituía uma relação de múltiplos investimentos entre comprador e
vendedor, este último oferecendo algo de que poderia se precisar ou não. Na
nova equação, o objeto em si traz a necessidade de possuí-lo – o que se
exibe esteticamente se torna o próprio valor. A preocupação com a
funcionalidade, que carrega uma forte atribuição relacional, desaparece.


Esta nova família voltada sobre si mesma, encerrada em um forte código
narcísico, carece cada vez mais de trocas afetivas heterogêneas e adoece.
Suas vivências emocionais tornam-se contraditórias em diversos níveis,
atravessando todos os processos de socialização das pessoas que se
encontram em seu meio, em especial, a educação.


Reich toma o modelo familiar burguês como o principal responsável das
produções iniciais de repressões sexuais e educativas contrárias à vida que
levariam posteriormente à produção de estruturas de caráter neuróticas.
Seria um primeiro passo a uma divergência explícita com um dos pilares da
psicanálise.


Desta forma, Reich apesar do caráter social e assistencial da Clínica
Psicanalítica de Viena, buscou desenvolver uma clínica que fosse além da
estrutura individual e particular, com uma função educacional e orientadora
para pessoas de todas as classes sociais, servindo ao propósito da
prevenção das neuroses. Reich compreendia que frequentemente a primeira
intervenção necessária, era a assistência social.


Neste intuito, buscou alianças entre os políticos a fim de possibilitar
este tipo de trabalho. Reich tinha a compreensão da necessidade de centros
de saúde mental e junto com três amigos obstetras e quatro psicanalistas
funda, em janeiro de 1929, a Sociedade Socialista para Consulta Sexual e
Pesquisa Sexológica. Este movimento recebe o apoio de Freud e destaca-se
por inaugurar seis clínicas de Higiene Sexual que eram frequentadas por
trabalhadores. Nestas clínicas fornecia informação gratuita: conselhos
sobre natalidade, problemas sexuais e educação sexual, bem como promovia
palestras e discussões em grupo. O movimento encontrou adesão imediata
entre os jovens, tanto solteiros como casais que se preocupavam em discutir
a sociedade em que viviam, as repressões que eram exercidas sobre
sexualidade dos adolescentes, as proibições sociais e médicas sobre o
aborto, a inexistência de informações sobre os métodos contraceptivos -
questões não apenas vistas do âmbito sexológico, como críticas pertencentes
às esferas sócio-cultural e econômica[3].


Em setembro deste ano Reich faz uma viagem à União Soviética por conta
de ataques feitos à psicanálise por comunistas ortodoxos, que acusavam a
teoria freudiana de ser uma ideologia burguesa (Nitzschke, 2004). A
proposta era esclarecer a pedagogos e cientistas as contribuições que a
psicanálise tinha a fazer ao socialismo.


No dia 12 de dezembro de 1929, em uma reunião na casa de Freud, aberta
somente ao titulares da Sociedade Psicanalítica, Reich falou sobre a
"profilaxia das neuroses". Nesta reunião estavam presentes Hitschmann,
Federn, Nunberg, dentre outros.


"Havia uma atmosfera muito calma, fria, mas eu insisti:
primeiro temos que passar da terapia para a profilaxia -
prevenção. Segundo, temos que debruçar-nos sobre a
família, que é a origem do conflito edípico, etc. A
atmosfera era fria" (Higgins. M & Raphael. C, 1979:63).


Na ocasião, Reich defendeu de forma clara seu ponto de vista de que as
neuroses poderiam ser evitadas, desde que fossem introduzidas novas
condições de educação, de vida familiar e organização social. Ele
sustentava o caráter radical da Psicanálise e sua potência enquanto
instrumento de transformação social, jamais a relegando a uma esfera
estritamente psicológica e individual. Para Reich, a despeito da opinião
dos intelectuais da época, não é possível excluir a dimensão política da
ciência, uma vez que esta não está dissociada do contexto social. Em suas
palavras: "Toda descoberta científica inclui uma pressuposição ideológica e
uma conseqüência social prática". (Reich, 1988b:181)


O resultado dessas discussões sobre Psicanálise e cultura, pode ser
visto na obra de Freud "O Mal-Estar na Civilização", publicado alguns anos
posteriores ao encontro. Este livro se configura como uma "defesa" contra
os argumentos de Reich e o "perigo" que estes acarretavam para a manutenção
da Psicanálise (Reich, 1988b:179). Nesse livro, Freud embora reafirme a
busca do homem pela felicidade, seguindo o princípio do prazer, reafirma a
insustentabilidade desse princípio.


"A vida sexual do homem civilizado encontra-se, não
obstante, severamente prejudicada; dá, às vezes a
impressão de estar em processo de involução enquanto
função, tal como parece acontecer com nossos dentes e
cabelos. Provavelmente, justifica-se supor que a sua
importância enquanto fonte de sentimentos de felicidade e,
portanto, na realização de nosso objetivo de vida,
diminuiu sensivelmente. Às vezes, somos levados a pensar
que não se trata apenas da pressão da civilização, mas de
algo da natureza da própria função que nos nega satisfação
completa e nos incita a outros caminhos" (Freud, 1997:61).


Apesar da posição assumida por Freud, Reich acreditava que a psicanálise
poderia fornecer às pessoas importantes contribuições sobre as condições de
miséria social e sexual da sociedade. Sem o objetivo de provocar Freud, no
entanto, esforçava-se por conscientizar outros psicanalistas da natureza
social do trabalho a ser feito:


"A psicanálise tornara-se um movimento muito
controvertido, de âmbito mundial. A responsabilidade era
enorme, mas não era do meu feitio fugir parodiando a
verdade: devia apresentar o problema exatamente como era,
ou calar-me. A última hipótese já não era possível. O meu
trabalho político-sexual adquirira autonomia..." (Reich,
1988b:166).


A influência de Engels e de sua visita à União Soviética, levam Reich a
contestar frontalmente outro dos pilares da psicanálise, o Complexo de
Édipo. No artigo publicado em 1930, "Maturidade sexual, abstinência, moral
matrimonial – uma crítica da reforma sexual burguesa", Reich defende que o
capitalismo é uma forma de produção que se sustenta sobre a repressão da
sexualidade natural das massas e, portanto, a luta contra a exploração
econômica deveria ser uma luta revolucionária sexual[4]. Tanto a família,
quanto o Complexo de Édipo, deveriam ser pensados a partir das influências
da atmosfera ideológica da sociedade, que por sua vez, exerce influência
sobre o desenvolvimento da criança (Reich, 1982:108).


Reich localiza na família burguesa uma triangulação composta por
relações entre o pai patriarcal, a mulher e os filhos. Na ideologia
matrimonial onde a monogamia é compulsória, o núcleo da família deve ser
mantido "por mais miseráveis e inconsoláveis, dolorosas e insuportáveis que
sejam a situação conjugal e a constelação familiar" (ibid.:106). Há uma
função política envolvida neste tipo familiar que é "a sua propriedade como
fábrica de ideologias autoritárias e estruturas conservadoras" (ibid.:105
[grifo do autor]). Dentro desta estrutura familiar, o pai imbuído
socialmente do papel de chefe da família, foi durante muito tempo, não
apenas permitido, mas instigado a reproduzir um determinado modelo
hierárquico que submete e domina pontos de vista minoritários que estão
abaixo dele, como o a criança e o da mulher. Ao mesmo tempo, este sistema
produz uma submissão àqueles que se encontram acima, tendendo à absorção e
à referenciação a partir dos pontos de vista dominantes.


Reich propõe então outra leitura sobre os processos que levariam ao
Complexo de Édipo. A criança pequena dirige seus primeiros impulsos
eróticos para as pessoas afetivamente mais próximas, que costumeiramente na
sociedade ocidental, tendem a ser os pais. Por volta dos três a seis anos,
a conexão que se dava prioritariamente por sistemas de comunicação
emocional e sensorial com o ambiente materno, passa a ser experimentada
rudimentarmente pela genitalidade. A criança passa a vivenciar excitações
corpóreas nas partes genitais e não raro descobre formas masturbatórias que
visam aliviar uma tensão vegetativa. Neste sentido, o movimento afetivo-
erótico (carinho) e a tensão genital (sensualidade), encontram-se em
profusão indistinta.


A liberdade sexual – não aqui tomada em seu referencial reichiano, mas a
partir de uma perspectiva comum de livre escolha de práticas sexuais –
tornou-se gradativamente um tema amplamente discutido e reafirmado nos
meios sociais. A questão levantada por Reich é se esta liberdade é
facilmente sustentada por pais e educadores no âmbito privado. A ereção, a
masturbação, a nudez e o interesse sexual da criança geram, em adultos
socializados de forma moralista ou a partir de uma suposta permissividade
que se constitui como negligência, sentimentos de incômodo e inadequação.
Uma atitude que afirma o prazer e aporta uma realidade amorosa é
contraditória a uma estrutura familiar hierárquica onde as relações são
prioritariamente de conformação à ordem. Desta forma, a educação familiar
individualista, exclui as crianças de uma coletividade e de formas afetivas
e criativas com outras crianças. Mesmo nos jardins de infância onde podem
brincar juntas, não lhes é permitido, no entanto, proceder de forma natural
em relação à sexualidade. Agenciamentos espontâneos não raro são coibidos
quando se trata do que é sexual ou genital. Para a criança, tais formas de
afeto passam a ser mistificadas ao menor sinal de um rigor autoritário.


A desvalorização ou incompreensão do devir infantil levam os adultos a
submeterem as crianças a condições psicológicas que não compreendem e não
satisfazem seu universo. Jogos sexuais fazem parte do mundo das crianças,
como modo de atender às suas ânsias de descobertas e atividades motoras.
Há apenas a ressalva de que isto seja feito a partir de compreensões de
mundo e etapas de desenvolvimento semelhantes, pois de outra forma, tais
jogos perderiam completamente a função de descoberta e de regulação entre
os pares. Dito de outra forma, o ambiente da criança deve ser adaptado à
sua idade e às suas necessidades. Para elas não existem juízos morais e
tampouco necessidades intempestivas de amor e carinhos, assim como
demonstrações de afeto que pertencem ao universo adulto, como beijos
quentes, abraços apertados, dentre outras (Reich, 1982:283). Não há cortes
temporais no desenvolvimento sexual, este se dá através de um continuum
crescente e suave. Uma vez permitida, a sexualidade e a subjetividade das
crianças tende a se auto-regular a partir de uma vida amorosa satisfatória.
Isto torna necessário um campo potente que esteja em contato com a
satisfação instintiva dos afetos a fim de proporcionar uma preservação
contra o desenvolvimento de atitudes mutilatórias.


Assim, para Reich, a teoria edipiana que referencia a mãe como objeto de
desejo do menino e o pai como seu rival, ao impedir o acesso ao objeto
desejado, apenas seria lógico, por um ponto de vista econômico-sexual[5],
se uma educação coercitiva baseada no medo e na punição, despotencializasse
a criança de seus investimentos eróticos, criando uma forte tensão e vias
escassas de conexão afetiva. O resultado seria


"[...] um desejo de incesto econômica e dinamicamente
excessivo onde exista um interesse demasiadamente marcado
pelo objeto incestuoso, devido a uma restrição geral da
vida instintiva" (Reich, 1988a:33 [grifo do autor]).


Com a limitação da atividade sexual infantil, a ligação de incesto, ao
invés de ser desfeita, é aumentada. A repressão do desejo é então
necessária dentro do seio familiar "criando uma fixação aos pais de forma
sexual e autoritária" (1982:109). Por outro lado, a criança intuitivamente
percebe que os pais entre si têm direito àquilo que lhe é interdito. As
relações decorrentes, portanto, precisam se dar por um viés disciplinar,
que ao mesmo tempo suscita na criança uma aspiração a um poder autoritário
que compreendeu funcionar perfeitamente na triangulação entre os pais.


O fator que garantiria a livre sexualidade e a educação sexualmente
positiva da criança a partir de uma concepção vital, não residiria em
idéias, retóricas afirmativas, ou ainda, quando se prenuncia uma certa
dúvida da proposta do contemporâneo, da incitação de sua presença no campo
social. A proposta de Reich escapa às vias tangentes, tomando como força
econômica a criação e manutenção de dispositivos que preservem os ritmos
infantis, através de relações parcimoniosas sentidas às necessidades e não
tanto aos valores da ordem. Este seria o substrato inicial que permitiria
que as regras básicas a serem internalizadas para a participação na cultura
não fossem referenciadas sensorialmente em operações de elevação
hierárquica, ou de identificação com qualquer forma patriarcal, mas em
relações transversais que não fizessem outro movimento que intensificar a
potência sexual.


A partir deste ponto de vista, o Complexo de Édipo não seria um fenômeno
universal, mas representaria uma forma de repressão sexual que seria
imposta à população através da moralidade burguesa (Barreto, 2000:81). O
Complexo de Édipo então poderia ser superado, bem como a produção em massa
de neuroses, desde que houvesse uma revolução econômica, social e mais
importante, sexual, contra os processos de dominação e controles sociais
frutos de uma sociedade baseada em um autoritarismo patriarcal (Barreto,
2007:151).


Reich apresenta estas idéias em um seminário que fora apenas assistido
por Federn e Freud. No entanto, Freud rejeita a idéia imediatamente e
"declara que o Complexo de Édipo não depende da estrutura familiar nuclear
burguesa e que a superação desta não afetaria aquele". Da mesma forma
declara que "Reich está envolvido com uma ideologia e que aquilo não era
psicanálise" (Berlinck, 1995:9).


Como uma continuação das obras de Engels e Morgan, o etnólogo Bronislaw
Malinowski publica um livro em 1929 chamado "A vida sexual dos selvagens",
onde contesta a obra de Freud "Totem e Tabu" e a universalidade do Complexo
de Édipo, a partir do estudo com os povos das ilhas Trobriand, pertencentes
à Papua-Nova Guiné. Malinowski após conviver anos com os nativos das ilhas,
conclui e defende que em uma sociedade organizada de forma não belicista e
matriarcal, onde culturalmente não eram instituídas práticas repressivas
sexuais entre jovens e crianças, estes experienciavam, de modo geral, uma
sexualidade e atividades coletivas desprovidas de perversões, neuroses,
desconfianças e angústias (Reich, 1988b:198). Da mesma forma, em oposição
às determinações biológicas constatadas por Freud, não era possível
verificar a existência de conflitos sexuais entre a criança e seus pais e
tampouco o período de latência, uma vez que a atividade sexual das crianças
era contínua e amadurecia até um momento na puberdade onde se iniciavam as
relações sexuais.


Reich e Malinowski trocaram cartas durante alguns anos e discutiram
sobre a impossibilidade das pessoas na Europa poderem viver uma vida
satisfatória e sexual plena, ao contrário do que ocorria nas ilhas
Trobriand. Enquanto possibilidade de economia individual e social, Reich
aponta, como característica de uma sociedade patriarcal e autoritária, a
insuficiência ou a ausência de mecanismos de proteção que capacitem uma
regulação biológica sã e não compulsiva. A sexualidade, não sendo temida ou
direcionada a um processo de escravização econômica, permite uma
organização social que seja harmônica às necessidades biológicas.


"Contrariando completamente nossa civilização, a sociedade
trobriandesa proporciona os meios de isolamento e higiene
à sexualidade do adolescente, particularmente no que diz
respeito à habitação e a outros aspectos, até onde lhes
permite o seu conhecimento dos processos naturais" (Reich,
1988b:199).


Contudo, a refutação do Édipo enquanto complexo universal suscita
algumas questões. Malinowski introduz uma vertente antropológica na
contestação do complexo, ao questionar que o vínculo entre a criança e os
pais seria variável a uma determinada cultura e estrutura social. A
previsão de Freud era que tais relações seriam sempre suscetíveis a
conflitos e repressões e, por conseguinte, levariam ao aparecimento de
complexos. A universalidade contestada pelo antropólogo tinha como direção
uma concepção de organização familiar e de ordem econômica que não seriam
aquelas da família patrilinear ariana, objeto de análise de Freud. As
relações entre pai, mãe e filhos não apresentavam um caráter conflitante ou
repressivo sexual em Trobriand, onde o menino, por exemplo, encara o pai
como um companheiro sem autoridade com quem compartilha o lar.


Se Malinowski erra, como afirmam Soares & Miranda (1974:47), ao "tomar
Pai e Mãe como entidades reais, ao invés de admiti-los como lugares
simbólicos na constelação edipiana", tal equívoco vem por estabelecer uma
contestação de antítese entre um absolutismo e um relativismo cultural em
crítica a uma concepção etnocêntrica de família e não pela realidade das
funções atribuídas a pai e mãe. De certo modo, se a operação linguística e
semântica que envolve o Édipo é invariante[6], Malinowski atesta a mesma
invariância simbólica na seguinte afirmação:


"No Complexo de Édipo há o desejo reprimido de matar o pai
e casar-se com a mãe, enquanto na sociedade matrilinear
das Trobriand o desejo consiste em casar-se com a irmã e
matar o tio materno" (Malinowski, 1973:74).


Se por um lado, as relações com a mãe e o apego sensual a ela não são
reprimidos, pois à criança lhe é permitida expressar sua sexualidade
através de outros canais instituídos socialmente, o que resulta que "todo
desejo infantil pela mãe se extinga gradualmente de maneira natural e
espontânea" (Ibid.), por outro, verifica-se que uma forma variável de
incesto surge de uma sanção entre os trobriandeses. O relacionamento
existente entre o irmão e a irmã é severamente tratado com repreensão caso
haja qualquer aspecto sexual ou íntimo envolvido. O resultado é que a
sexualidade com a irmã "manifestamente evitada, seja secretamente desejada"
(Lobato, 1999). Confirma-se desta forma, que há tanto uma interdição social
– a proibição ao incesto fraterno – quanto um ódio reprimido em relação ao
tio materno que exerce a autoridade real de disciplina, deveres e apreensão
das tradições.


No entanto, outros antropólogos e autores que trabalharam como
psicanalistas, levantaram a tese do relativismo cultural e estabeleceram
diálogos com a obra de Malinowski. Estão entre eles os culturalistas Karen
Horney e Eric Fromm, a antropóloga Ruth Benedict e outros como Margaret
Mead e Erik Erikson que participaram das Conferências Macy em meados dos
anos 50. Para estes autores, assim como para Reich, de certa forma, o
problema do Édipo está ligado à questão da autoridade paterna, à
sexualidade infantil e aos fatores culturais que as permeiam.


O papel da realidade que julgamos necessário evocar é sobre a ansiedade
e a tensão que se apresentam por uma necessidade de satisfação sexual real,
a produção de uma determinada estase que produz sobredeterminações na
capacidade real de satisfação perante os processos vitais, que certamente
não podem ser respondidas por uma afiliação ao simbólico. Reich, portanto,
não nega ou "esquece" este registro, tal como apontam alguns autores – o
que derivaria em um antagonismo desnecessário entre Lacan e Reich[7]. Este
último apenas não define a linguagem ou o simbólico como seu objeto de
estudo. A reflexão de Reich não está nem no caráter invariante (Lacan), nem
em uma triangulação que aponta para um determinado modelo familiar, que não
pode ser universal (relativismo cultural), mas sobre uma produção que se
encerra na figura do privado, na forma de uma pequena estação que reproduz
e modela uma determinada ordem majoritária que vai para além da família.
Reich adota os argumentos de Malinowski para expor que a proibição que
forma o Édipo, não se refere tão somente ao incesto, mas direciona-se a
todos os outros tipos de relações sexuais, bloqueando os caminhos
vegetativos e aqueles de satisfação dos afetos. O desejo incestuoso aparece
como uma particularidade, e a repressão sexual, não se orientando apenas a
tal prática incestuosa, possui uma função muito mais ampla consequente a um
modo de proveito bélico-autoritário que tem sua expressão máxima e
contemporânea nos modos de produção burgueses.


Restringir a sexualidade é restringir a expressão emocional, reprimir
uma expansão que advém de uma afecção. O que é reprimido não se refere
apenas ao circuito edípico – é sobre a própria noção de vitalidade que vai
além do Édipo e que não pode ser apreendida apenas pelo campo da linguagem.
Reich não observa diretamente se a criança pode ou não escapar à
triangulação familiar – ao lhe permitir agenciar no coletivo-sexual – mas
se pode escapar ao familismo ou à familite, tal como chamava os métodos
sádicos de educação e peste emocional na instituição familiar (Reich,
2001:465).


Reich não traz à discussão a família por seu interesse em um romance
familiar – tal como criticarão futuramente Deleuze e Guattari – mas por
questioná-la enquanto primeira instituição na qual o sujeito é socializado
e que, a partir da análise de seus efeitos, também encerra uma série de
períodos críticos do desenvolvimento biológico, psíquico e sexual. A
crítica ao Édipo se dá por ser um projeto que se referencia
predominantemente nos acontecimentos privados e individualistas. A
pontuação insere também no processo de construção do caráter, uma série de
forças e ideologias que atravessam o triângulo pai, mãe e filho. Reich vai
além e constrói uma teoria genealógica para todas as formas de negatividade
no orgânico e em sua extensão direta, o campo coletivo. Ainda que Reich,
enquanto psicanalista, afirmasse que a formação do caráter parte da
superação edípica (2001:152), ao adentrar no domínio da orgonomia, afirma
que todo o desenvolvimento se inicia anteriormente, a partir de relações
energéticas ainda no útero da mãe.


Reich discrimina o Édipo enquanto construção social primeiramente para
trazer à discussão os fenômenos que via na sociedade ocidental, de como a
triangulação edípica se constituía em seu caráter prático, como base para
determinações posteriores de fenômenos verificados no social. Em segundo
lugar, a afirmação do caráter não universal era uma resposta a um certo
pessimismo de Freud e a determinados referenciais de imutabilidade que
sempre buscou combater. Assim, a surpresa em relação ao trabalho de
Malinowski, não está na variabilidade cultural em que se apresenta ou não o
Édipo, mas na confirmação de certas proposições econômico-sexuais que já
desenvolvia. Havia uma modificação real na qualidade da satisfação sexual,
quando certas condições menos coercitivas eram dispostas ao desenvolvimento
das necessidades naturais de conexão dos seres vivos. Não significa em
nenhum momento, que haja alguma sociedade, mesmo as matriarcais, que
garantam a revolução em si ou a permanência da potência orgástica. Isto é
gerado a todo instante, por um perceptível fomento de relações potentes, de
condições materiais e lógicas que previnam a redução da condição humana a
de mera sobrevivência – como é possível exemplificar a partir da obra de
Agamben sobre a vida nua, que referencia um "tipo de hegemonia [...] que
pretende controlar a vida, mas que [...] não quer propriamente matar"
(Zamora, 2008), mas controlar – e pela desconstrução de quaisquer formas
anti-poiéticas e mantenedoras de uma determinada estase e conservação, que
possam se dar tanto no campo do simbólico, das ideologias, quanto no campo
dos agenciamentos.


Retornemos ao percurso de Reich no movimento de higiene sexual. No final
de 1930, anuncia a Freud sua intenção de mudar-se de Viena para Berlim.
Desde que retornara de sua viagem à União Soviética, estivera ocupado
dedicando-se exclusivamente tanto ao movimento psicanalítico quanto aos
centros de higiene sexual. Era em Berlim que a luta entre o socialismo e os
movimentos fascistas se mostrava mais intensa e, em contrapartida, a
aceitação de suas atividades políticas em Viena era cada vez menor.


Ao mudar-se para Berlim, em maio de 1931, entra em contato com alguns
psicanalistas alemães, que assim como ele próprio, tinham uma perspectiva
marxista sobre a teoria freudiana. Dentre estes destacam-se Erich Fromm,
Siegfried Bernfeld, como também Otto Fenichel que pertencera ao círculo de
pesquisas de Reich em Viena e se mudara também para Berlim. Reich ingressa
no Partido Comunista Alemão e sob os auspícios deste, dá continuidade às
suas atividades políticas, participando da fundação da Associação Alemã
para a Política Proletária (Sex-Pol). Esta organização conseguiu em curto
prazo aproximadamente 20.000 inscritos. Tal fato pode ser explicado,
segundo Boadella, devido a existência de uma "(...)consciência sociológica
maior em Berlim do que Reich encontrou em Viena" (1985:79). Dentre os
pontos centrais da plataforma inaugurada por Reich, destacam-se as
seguintes reivindicações dos trabalhadores:


a) Melhores condições de vida para as massas;


b) Abolição das leis contra o aborto e a homossexualidade;


c) Modificação das leis de matrimônio e divórcio;


d) Instruções livres sobre controle de natalidade e
métodos contraceptivos;


e) Proteção sanitária para mães e crianças;


f) Creches nas fábricas e em outros grandes centros de
trabalho;


g) Abolição das leis que proíbem a educação sexual;


h) Permissão aos detentos para visitarem seus lares.


(Reich, 1972:46 [tradução livre do autor])


O destaque adquirido por Reich no Partido Comunista Alemão e a profusão
de pessoas que se afiliavam aos centros de Política Sexual entre 1931 e
1932 começaram a encontrar resistências entre os membros do Partido. Havia
o temor de que o interesse crescente por assuntos sexuais desviasse a
atenção dos jovens aos propósitos revolucionários comunistas, e desta
forma, mesmo antes da ascensão de Hitler ao poder, o Partido Comunista
Alemão ordenou que as literaturas e folhetos de Reich fossem proibidos
dentro da organização.


Apesar da inicial aceitação em Berlim sobre a política sexual, em pouco
tempo percebe a recusa tanto do Partido Socialista quanto do Comunista em
acolher as conclusões de seu trabalho e torna-se oficialmente excluído do
Partido em 1933. Reich explica o fato, apontando a "enorme contradição
entre a sociologia da economia sexual e o economicismo corrente" (Reich,
2001b:XXIV), uma vez que a economia sexual parte do pressuposto de que a
ideologia[8] de um povo corresponde à estrutura de caráter dos indivíduos,
contradizendo o conceito de "consciência de classe" segundo o qual "o
pensamento (consciência) do trabalhador corresponderia a sua situação
social" (Reich, 2001b:9). Desta forma Reich relata que "[sua] expulsão de
ambas as organizações baseou-se no fato de ter introduzido a sexologia na
sociologia, e ter demonstrado como ela afeta a formação da estrutura
humana" (Reich, 2001b:XXIV) e por conseguinte, as formas de conceber a vida
e de pensar de um povo.


Cabe aqui um parênteses em relação ao termo economia sexual. Este se
refere à teoria da sexualidade desenvolvida por Reich a partir de seus
estudos na psicanálise. Tanto a sexualidade quanto o fenômeno do orgasmo
atravessam diversas disciplinas, como a psicologia, a sociologia, a
fisiologia e a biologia, sem definir um território único e restrito. Reich
propõe então, enquanto linha de pesquisa, a economia sexual, agregando os
fundamentos sociológicos de Marx com a concepção (primeva) de libido de
Freud. Dito de outra forma, seria a disciplina que estuda a produção,
distribuição e consumo, ou a gestão da energia sexual entre os sistemas
vivos.


Como mencionado antes, a segunda grande contestação feita à psicanálise
é sobre a existência de um "impulso primário de destruição". Reich toma a
discussão sobre a questão do masoquismo como veículo de contraposição à
condição natural e imutável do impulso de morte. A importância do tema
reside no papel central que exerce no pensamento reichiano – a função de
regulação biológica do orgasmo, o processo de encouraçamento ou blindagem
caracterial e as tentativas de regulação secundárias, cunhadas por Reich de
formação reativa.


O ponto de partida para a compreensão da crítica de Reich a Freud, são
as condições primitivas de regulação e de agenciamento de todo ser vivo, a
partir de processos naturais de interação biológica. Para uma compreensão
adequada da teoria é preciso um breve esclarecimento sobre o conceito de
natural. Todo o sistema de organização do ser vivo se dá por uma troca
inteligente[9] de materiais e de energias com o meio, em um movimento
contínuo, gerando um fluxo. No entanto, ao se tomar apenas a qualidade
mecânica, física e química destas trocas, não é possível compreender com
clareza como se dá o fator de organização ou de coerência – capacidade de
manter-se coeso e funcional – do organismo. Uma perspectiva próxima ao
vitalismo, aponta para a idéia de que todo o ser vivo possui uma carga
energética que impede[10] o processo natural de decomposição da matéria –
uma carga adequada e em constante fluxo que mantém as estruturas coesas
apesar de todas as interações dinâmicas que possam ocorrer com o meio.
Ainda não é possível afirmar com exatidão a natureza desta energia, o
importante é "levarmos em consideração o destino dessa energia, sua
distribuição, sua repartição e sua economia em relação aos processos
fisiológicos, a vida emocional, o equilíbrio neurovegetativo e as tensões
orgânicas" (Navarro,1995:21).


Freud inicialmente ao introduzir o termo libido, conceituou uma energia
no ser humano capaz de aumentar e diminuir de intensidade, bem como de
carregar e descarregar-se, em uma fronteira entre o somático e o psíquico.
Reich retoma as construções iniciais de Freud, mas não concede primazia ao
sistema psíquico. Conforme verificou posteriormente, os processos que
conduziam ao adoecimento eram processos de resignação vital e afetavam,
portanto, o organismo como um todo. A economia energética exercia um papel
fundamental na regulação de qualquer ser vivo – toda a movimentação
mecânica levava a um aumento de carga energética que deveria ser
adequadamente descarregada, conduzindo a um relaxamento mecânico dos
tecidos, células e órgãos carregados a um novo estado de equilíbrio.


Apesar de Descartes haver inaugurado uma divisão estrutural entre mente
(res cogitans) e matéria (res extensa), é preciso refletir que tal cisão
constitui um falso problema, uma vez que a separação das duas substâncias é
em si uma proposição cartesiana. Reich, em sua teoria, contradiz a base do
dualismo. Contudo, aponta para a operação, própria do homem encouraçado, de
instituir o privilégio da razão e abandonar sua existência fundamentalmente
animal.


O que singulariza o ser humano e o distancia de outras espécies é uma
determinada evolução da córtex que permite significar, interpretar, operar
com símbolos, mitos, ou seja, racionalizar, o que permite ser capaz de
criar cultura. A cultura, portanto, deve ser tomada como invenção. Na
medida em que esta afasta o homem da natureza, do natural, força-o a
desenvolver uma série de mecanismos regulatórios artificiais que são
opostos às experiências de prazer e satisfação, apesar de tentarem operar
sempre neste sentido. Isto seria, o que no âmbito sexual, diferenciaria "a
regulagem moralista e a auto-regulagem econômico-sexual" (Reich,
1988b:159). A auto-regulação "é o que permite pensar em um modo de
organização da sexualidade derivado de seu exercício" (Rauter, 2007) e,
portanto, encontra-se em oposição a qualquer forma de obrigação ou dever
moral. Os interesses sexuais não se distanciam dos interesses coletivos,
dos investimentos em relação ao trabalho ou da felicidade amorosa. A
harmonia destas esferas atesta uma estrutura econômico-sexualmente
regulada, abastecida por uma boa reserva de energia vital. Em
contrapartida, a estrutura que deve ser moralmente regulada, conta com uma
capacidade de entrega reduzida e uma sobrecarga de impulsos, que tentam
irromper de forma compulsiva e abrupta em manifestações anti-sociais. O
afastamento de uma possibilidade de regulação natural leva o indivíduo a
desconfiar de suas próprias atitudes e a perceber suas intenções como
perversas, o que torna fácil sua adesão à leis rígidas, enquanto
interiormente, revolta-se contra elas.


O conceito de natural permeia toda a obra de Reich, no entanto, a fim de
não incidir em erros a respeito deste conceito, este deve ser desde-já
diferenciado do termo naturalização. Este se traduz por um processo de
ocultamento, de tornar imutável e determinado algo que possui uma gênese
social e histórica. Percebe-se, por conseguinte, que o termo proposto por
Reich encontra-se em oposição a qualquer forma de determinismo. O natural,
dito de outra forma, seria uma condição contrária – é aquilo que opera na
natureza independente de racionalização.


É por este motivo que Reich toma desvio da qualidade da energia, das
representações psíquicas, dos conteúdos, dos simbolismos e se volta à
questão quantitativa da energia. Em consonância com Freud, também
acreditava que era a interrupção ou repressão do fluxo energético que
originava as neuroses. Todo organismo necessita descarregar uma quantidade
de excitação acumulada em seu interior. Uma pressão interna seria
direcionada ao exterior, ocasionando um movimento, um ex-movere, uma
emoção. É esta motilidade que se torna a expressão vital primária do ser,
uma expansão agradável caracterizada pelo prazer. "Primitivamente, assinala
Reich, a emoção é um movimento expressivo do plasma" (Dadoun, 1991:193
[grifo do autor]). O conceito de plasma é utilizado por Reich para designar
os processos que ocorrem no aparelho de vida autônomo e que indicam uma
função de pulsação biológica na totalidade do organismo – o que denominou
como unidade funcional[11]. Reich conclui, a partir de seus estudos sobre a
energia viva, derivados de sua fórmula inicial descrita em A Função do
Orgasmo, que toda forma de vida pulsa a partir de um movimento de expansão
e contração. A fórmula da vida, segundo Reich, seria uma equação em quatro
tempos: tensão mecânica, carga bioelétrica, descarga bioelétrica e
relaxamento mecânico, denominada simplesmente como função t-c, o que viria
a ser idêntica à fórmula do orgasmo (Reich, 1988b:232).


Em oposição à pulsação energética, haveria uma retração do impulso em
direção ao corpo, um movimento de enclausuramento em relação a estímulos
desagradáveis, o que caracterizaria a angústia. Juntamente com o prazer,
caracterizariam duas direções opostas do plasma orgânico, correspondentes
aos dois afetos fundantes do aparelho psíquico.


Um dos filósofos que teve importante influência no pensamento reichiano
foi Baruch de Spinoza. Sua concepção de Deus é bastante semelhante a
concepção de Cosmos em Reich. Para ambos a força criadora é natural, possui
apenas uma base e conecta todos os seres vivos – portanto a energia cósmica
e erótica serão apenas uma só. Não é possível encontrar na natureza uma
força antitética destrutiva que habita e se constitui de forma imanente no
ser. A negatividade para Spinoza não existe em si, mas se apresenta como um
desvio, uma corruptela do positivo. Para Reich, a tradução no paradigma
científico natural não poderia se dar de outra forma. Thanatos jamais
poderia ser uma força reificada naturalmente presente no homem, mas ao
contrário, suas manifestações seriam claramente movimentos reativos de
desvio ao natural, engendrados pela experiência do ser em seu meio próximo.


O homem pode encontrar várias vias de se preencher de vida e descarregar
sua energia através de diversas atividades. No entanto, é na entrega
sexual, afetiva com o outro, que de fato o organismo se conecta e se
regula, engendrando vida através de relações potentes[12]. É possível
perceber diversas intervenções transdisciplinares na literatura de Reich e
talvez seja esta característica que tenha provocado tanto o incômodo em
Freud e seus seguidores, quanto as compreensões distorcidas de sua teoria
nos dias atuais. Ao mesmo tempo que se torna difícil definir um campo de
atuação específico para os fenômenos levantados, as derivações da teoria e
seus efeitos exigem uma intercessão no campo social.


Cabe aqui tomarmos um exemplo da biologia para compreender como os
efeitos das relações com o meio, acarretam a produção de uma forma
impotente de vida que tende ao adoecimento e a formas reativas de contato.
Uma criatura unicelular como a ameba é composta por uma membrana
plasmática, um protoplasma e organelas em seu interior. O núcleo da ameba
possui um alto potencial de carga energética gerado pelo processo de
fagocitose. Ondas de excitação percorrem o plasma de forma contínua e desta
forma o organismo se carrega até um determinado quantum. A ameba pulsa ao
descarregar esta energia e volta a rearmazená-la em um processo de expansão
e contração. A energia excitada flui em direção à membrana para que a ameba
possa se locomover e capturar novamente um alimento. Se o pH do meio em que
se encontra torna-se danoso, ou se recebe um pequeno choque de um
experimentador que a observe, a ameba contrai-se e enrijece sua membrana
temporariamente. Momentos depois, retorna à sua motilidade natural. Caso os
ataques se tornem fortes, ou sejam prolongados, a expansão torna-se
hesitante e incompleta. Caso persistam, a contração torna-se permanente, a
reação de proteção provoca um encolhimento da ameba e uma impossibilidade
de expansão e um endurecimento crônico da membrana. A ameba garante sua
sobrevivência, mas o faz à custa de um aumento da pressão interna e da
perda da motilidade. Houve, portanto, um processo de encouraçamento ou
blindagem contra os estímulos agressivos. Caso os ataques prossigam, a
ameba irá perder tonicidade, sua membrana irá enrugar e seu campo
energético definhar até que, incapaz de fazer novos aportes de vida,
morrerá. Tais desordens energéticas e emocionais são verificáveis em
qualquer ser vivo. Não é possível afirmar, contudo, que houve um processo
de medo na ameba, uma vez que o medo é provocado por sinais associados a
estímulos nociceptivos (que deflagram dor). No entanto, um determinado
stress pode provocar a estampagem de um sinal no funcionamento e nas
capacidades vitais de um organismo – o que determina um ponto de vista
biológico e biográfico presentes no bloqueio.


O homem possui um sistema infinitamente mais complexo, composto por
subsistemas como o sanguíneo, o linfático, o endócrino, o nervoso autônomo,
dentre outros. No processo de socialização do homem, inclusive
anteriormente, quando o processo social se torna presente através da fusão
com o campo energético da mãe durante a gestação, a conexão afetiva exerce
papel fundamental. Não prosseguiremos aqui com os efeitos dos mecanismos
estressantes durante a vida embrionária, fetal e pós-natal em detalhes e
seus desdobramentos durante o desenvolvimento. Cabe apenas compreendermos
que os bloqueios, que contarão a história destes sinais gravados,
provocarão traços na personalidade do sujeito, referências emocionais,
impossibilidades de entrega afetiva e principalmente formas reativas de
buscar contatos que, de outra forma, se encontram comprometidos.


A vida encouraçada, construída a partir de processos sociais de
violência, dominação, alienação, negligência, é uma vida que é marcada não
para agir, mas para reagir. Friedrich Nietzsche, um dos filósofos que
marcou o pensamento reichiano, prescreve que a vida, ao deixar de ser
ativa, reduz-se às suas formas mais fracas e doentias. Se esta é vivida a
partir do medo, do niilismo, uma vida que teme a luta e o amor, não é outra
senão uma vida regida por forças reativas. Reich traz para a biologia uma
tradução semelhante colocada por Spinoza e Nietzsche – quando a força de um
ser vivo não consegue encontrar caminho por meio de suas expressões
naturais, um desvio é feito na tentativa de buscar o afeto. A
impossibilidade se encontra marcada por conta das inúmeras repressões e
medos impressos no corpo, e assim, esta força que busca conectar-se e
exprimir-se, é distorcida pela própria incapacidade de entrega. Ao
atravessar a couraça, força uma saída por um contato que não é ativo, mas
reativo, constituindo-se como um afeto que se torna artificial, mecânico e
distorcido. A força destrutiva percebida por Freud na humanidade era um
fenômeno real, no entanto, sua gênese tal como era descrita, pode ser
tomada como uma expressão de resignação e pessimismo, ao mesmo tempo em que
representa um engessamento da potência revolucionária e às possibilidades
de intervenção no coletivo.


Retornemos então à "vontade de sofrer" que contradizia o princípio de
prazer proposto por Freud. O homem dissimuladamente tencionaria manter o
sofrimento ou reexperimentá-lo. O impasse permanecia entre a afirmação de
uma tendência biológica primária, ou uma formação secundária do organismo
psíquico (Reich, 2001a: 221). A busca pelo desprazer, a compulsão à
repetição e a necessidade de punição – como forma de expiar um sentimento
inconsciente de culpa originado pelo crime ancestral, tema central do
conflito edípico – apareceriam como sintônicos à hipótese do instinto de
morte.


Na obra "Além do princípio do prazer" de 1920, Freud afirma que a
destrutividade primária no homem, o sadismo primário originado pelo
instinto de morte, se volta ao self como objeto, constituindo o masoquismo.
Na experiência da dor há uma possibilidade de prazer – a essência do
masoquismo é entendida a partir da associação paradoxal da dor com a
excitação sexual. No entanto, compreender como o desprazer tornava-se
prazer, ou como a experiência masoquista do prazer se dava, carecia de
investigações. Reich aborda o tema, contestando a teoria da pulsão de morte
defendida por Freud desde 1920, em uma palestra proferida em 19 de dezembro
de 1931 no Instituto de Berlim com o título: "A economia sexual do caráter
masoquista". Tomando o modelo biológico da função do orgasmo e retomando o
conflito inicial entre pulsão erótica e mundo externo, Reich propõe uma
nova leitura do masoquismo.


Tal como a ameba tomada como exemplo, a expansão prazerosa no homem ao
ser impedida, a partir do contato com o meio, condiciona uma condição
crônica de contração e perda da capacidade pulsátil. Ao retorno da energia
ao centro e à frustração da expansão, Reich dá o nome de angústia de
orgasmo. O organismo, incapaz de estabelecer contato e se liberar do
excesso de tensão acumulada, busca uma forma de resolução externa. Uma
bexiga viva pode ser tomada como exemplo. Se esta continuamente se enche,
em um determinado ponto correrá o risco de romper-se. Impedida de retornar
a uma condição de homeostase, a única solução encontrada pela bexiga é
buscar uma forma de agenciamento em que possa expressar o pedido: "me fure,
ou explodirei". A conclusão de Reich aponta para a gênese do mecanismo
masoquista como uma forma de experienciar o prazer e não o contrário:


"A dor não é de maneira nenhuma o objetivo do impulso; é
simplesmente uma experiência desagradável durante a
liberação de uma tensão sem dúvida real. O masoquismo é o
protótipo de um impulso secundário, e demonstra por força
o resultado da repressão da função de prazer natural"
(Reich, 1988b:217).


O processo de encouraçamento, construído sempre a partir de processos
sociais, conduz a uma vida "lisa"[13], com poucas superfícies heterogêneas,
impossibilitando um bom contato consigo mesma e com o outro. O resultado é
uma forma resignada, empobrecida e tangenciada de busca do afeto, a partir
de contínuas tentativas malogradas de romper a couraça.


Dentro do processo masoquista, alguns traços podem ser distinguidos. O
queixume é a manifestação de um sentimento crônico de sofrimento. A queixa
não leva a consequências ou a soluções tangíveis, a resolução é aguardada
de forma passiva. A condição de impotência incutida traduz tanto uma
incapacidade de liberar-se, quanto de posicionar-se politicamente, através
da potência do ato de apresentar uma reclamação e modificar um status de
vida. O mecanismo busca então uma saída secundária que termina por irritar
e levar o outro ao erro e à retaliação, o que provoca uma condição
momentânea de contato e satisfação. Outros traços presentes são a tendência
de infligir dor a si mesmo, tanto fisicamente, quanto por auto-depreciação.
Ainda que sofra com a mesma intensidade, busca da mesma forma atormentar o
outro. O encolhimento biopático do caráter leva a comportamentos
desajeitados, atáxicos e a agenciamentos dessintonizados do afeto.


Segundo Reich, "o masoquista chega à atividade agradável como qualquer
outra pessoa, mas o medo de punição interpõe-se. A autopunição masoquista é
a realização não do castigo temido, mas de um outro, substituto, mais
suave" (Reich 2001a:229 [grifo do autor]). A particularidade do mecanismo
de defesa se encontra em aceitar uma forma de sofrimento sobre o qual
possua algum controle, a fim de não sucumbir à grande ameaça do castigo –
de romper-se ou esfacelar-se. Cabe lembrar que todas as considerações
reichianas partem de um princípio comum, a primazia do sensorial.


Um paralelo poderia ser feito com as condições de dominação, opressão e
controle impostas pela cultura, em nome da segurança. Desrespeito à
cidadania e aos direitos humanos, criação de estados de exceção,
terrorismo, conduções a partir de uma aceitação comum de que se defenda o
indefensável. Em um próximo capítulo serão discutidas as formas pelas quais
as pessoas são introduzidas na cultura e como os papéis repressivo sexual e
ideológico formatam desde-já subjetividades sintônicas com a Ordem Social e
não raro com o fascismo.


Reich, portanto, irá discorrer sobre as implicações do sexo, em todas
suas dimensões – erótica, genital e afetiva – na política. A regulação da
sexualidade pode se dar tanto pela repressão, quanto pelo seu oposto. Não
se trata aqui da pretensa liberação sexual dos anos 70, à qual se relaciona
a obra de Reich até hoje, inclusive nos meios acadêmicos. Poucos autores
condenavam a compulsividade sexual, a pornografia e outras inibições
sexuais como os próprios sintomas da repressão sócio-política da
sexualidade. A posição libertária ou revolucionária sexual se traduz como a
possibilidade de bons encontros, de dispositivos que incitam a participação
no meio social. Não seria primariamente uma proposta humanista, com
objetivos de celebração da vida e da profusão de afetos – o que pode também
ocorrer – mas, sobretudo, a partir da idéia spinozista de intensidade, de
poder ser afetado e afetar, ampliando a potência de agir.


O fascismo, tal como conceituado por alguns cientistas políticos como
Leandro Konder, é uma tendência política antidemocrática cuja gênese se
encontra na emergência do capitalismo e suas formas de assujeitamento
disfarçadas de liberação e pretensa liberdade. Afirma Konder:


"Seu crescimento num país pressupõe certas condições
históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária
que tenha sido capaz de minar as bases das forças
potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhes a
influência junto às massas); e pressupõe também as
condições da chamada sociedade de massas de consumo
dirigido, bem como a existência nele de um certo tipo de
fusão do capital bancário com o capital industrial, isto
é, a essência do capital financeiro" (Konder, 1979:21
[grifo nosso]).


A preparação reacionária das massas citada pelo autor é tomada por Reich
em outra dimensão. O medo à liberdade não pode ser tomado apenas pela
racionalidade e pela manipulação de interesses, mas por uma condição
orgânica-emocional que é inscrita no corpo e é produtora de negatividade.
As forças reacionárias sócio-políticas tomam por fundação as estruturas
dinâmicas emocionais reativas do homem a fim de estabelecer formas de
relação e de governo contra-revolucionários. A centelha pró-vida, sexual,
deve ser reprimida e minada no processo de socialização, a fim de que o
homem deixe de entrar em contato com seu processo de produção e passe a
temer e a repudiar o convite à vida.


Esta é a grande tragédia da humanidade e que Reich poeticamente
evidencia na releitura da vida e do destino trágico de Cristo (Reich,
1991). Sua crucificação é resultado da irracionalidade e do temor à vida
sob uma forma tacitamente organizada, através das diversas instituições
sociais. Cristo, ao apresentar um vívido princípio de vida, força a
reflexão dos homens sobre suas próprias estruturas biopáticas, sobre suas
frustrações genitais e impotências orgásticas. Ao não suportar o confronto
com a própria angústia de estar encerrado, quer sair desta estrutura rígida
e, em uma tentativa desesperada e pestilenta, deixa de se voltar à própria
condição de miséria emocional em que se encontra e busca aniquilar o outro
a fim de silenciar a dissonância. O "Assassinato de Cristo" então evidencia
a aproximação do postulado de Rousseau em seu Contrato Social: "o homem
nasceu livre e em toda parte está em grilhões" (Dadoun, 1991:285). É o
triunfo da couraça neurótica.


Com a liberação da palestra inaugural sobre o masoquismo no Instituto de
Berlim, Reich desperta uma reação virulenta na instituição psicanalítica e
especialmente em Freud, que escreve em seu diário, em 1o de janeiro de
1932, a anotação: "Providências contra Reich" (Nitzschke, 2004, apud.
Freud, 1992). Temendo que Reich publicasse sua palestra na Internationale
Zeitschrift für Psychoanalyse, coordenada por Otto Fenichel, Freud escreve
ao presidente da Sociedade Psicanalítica Alemã informando que Reich e
Fenichel tinham a "intenção de abusar de revistas psicanalíticas para fins
de propaganda bolchev[ique]" (Ibid. apud. Fallend, 2002). Segundo Fenichel,
que fora destituído do cargo de redator-chefe após o comunicado de Freud,
tal censura provocara nos analistas de orientação marxista, um movimento de
resistência "à política de acomodação com o regime nazista praticada pelos
representantes da IPV [Associação Psicanalítica Internacional]" (Ibid.).


No clima de tensão gerado pelo cenário político internacional da década
de 30, surgiram as primeiras tentativas de afastar o nome de Reich da
Psicanálise, como forma de defesa da mesma. Foi exigido, para que se
veiculasse a publicação do artigo de Reich na Revista Internacional de
Psicanálise, uma nota editorial esclarecendo que escrevera o artigo contra
a teoria da pulsão de morte "a serviço[14]" do Partido Comunista. Este
artigo acabou sendo publicado na XVIII edição da revista em questão, em
1932[15], porém foi seguido de uma réplica de Siegfried Bernfeld com o
título de "Die Kommunistishe Diskussion um die Psycho-analyse" (A Discussão
Comunista da Psicanálise) onde ele comentava as contribuições de Reich para
a sociologia marxista, rejeitando cada uma delas[16].


Em junho de 1932, seis meses antes da tomada do poder por Hitler, Reich
promove uma segunda palestra com o título "Problemas de psicologia de massa
dentro da crise econômica", cuja tese é desenvolvida em uma de suas obras
iniciais mais importantes, a Psicologia de Massas do Fascismo. A obra
lançada em 1933, aponta para o desejo das massas de um líder autoritário
que instrumente e justifique ideologicamente a necessidade socialmente
engendrada de oprimir e ser oprimido, a partir daqueles que são
caracterizados como os "inimigos" da nação ou dos cidadãos em geral.


Este movimento é descrito como uma expressão da estrutura de caráter
irracional produzida por fatores sociais e econômicos e não como um
fenômeno nacional isolado. "O 'fascismo' é a atitude emocional básica do
homem oprimido da civilização autoritária da máquina, com sua maneira
mística e mecanicista de encarar a vida" (Reich, 2001b:XVII) Neste livro,
Reich elucida os motivos pelos quais os alemães apoiaram o governo
autoritário de Hitler, com base em sua estada em Berlim no período
precedente a ascensão do nazismo. Nesta ótica, a família autoritária, ao
introduzir a socialização de crianças e jovens na cultura a partir de
inibições morais da sexualidade, torna-se a principal perpetuadora do
sistema social autoritário. É preciso questionar como uma produção vital
enseja o próprio aniquilamento, se não a partir de certas produções
doentias e mortíferas de um campo social absolutamente organizado para este
fim. Expõe Reich sobre o objetivo direto da moralidade sexual:


"Ela tem um efeito de paralisação sobre as forças de
rebelião do homem, porque qualquer impulso vital é
associado ao medo; e como sexo é assunto proibido, há uma
paralisação geral do pensamento e do espírito crítico"
(Reich, 2001b:28).


Assim, a atuação de Reich como comunista em Berlim até esta data,
associada à sua crítica ao Fascismo o tornaram alvo de perseguição por
parte dos Nazistas.


Reich a partir de argumentos clínicos elaborou uma teoria que afirmava
que a aparente vontade de sofrer seria na verdade o reflexo das influências
sociais sobre o aparelho psíquico, o que abriria caminho para uma série de
críticas das condições sociais causadoras das neuroses. Embora tal teoria
realmente pudesse servir como um bom argumento psicológico para a causa
comunista, supor que ela havia sido formulada devido sua posição política,
seria invalidar a vasta experiência clínica de Reich e a cientificidade da
própria teoria. De fato, é possível perceber a discordância gradual sobre
as pressuposições de Freud antes mesmo das questões políticas, não estando
seu artigo em dissonância com seu trabalho até aquela data.


Desta forma, como consequência da pressão exercida pelos Nazistas, os
dirigentes da Sociedade Psicanalítica Alemã começaram a temer que as
teorias e a atuação de Reich pudessem trazer danos em sua atividade
profissional, expulsando-o da Associação Psicanalítica. Em 1933 a
publicação do livro Análise do Caráter é apoiada pela Sociedade
Psicanalítica, mas não realizada. Neste mesmo ano, o nome de Reich já não
constava mais na lista dos membros da Sociedade, uma operação de
desligamento que inicialmente havia sido feita em sigilo. Em 1934, no XIII
Congresso Psicanalítico Internacional em Lucerna, Reich é desligado
oficialmente de quaisquer atividades relacionadas à psicanálise.


Talvez a importância deste desfecho não resida tanto em demonstrar como
Reich tornou-se um "ilustre banido" na história da psicanálise, mas em
sinalizar como mesmo a instituição psicanalítica tornou-se vítima e
instrumento do mesmo mecanismo reacionário que fora elucidado durante sua
obra. Ao ser Reich excluído publicamente da Associação Psicanalítica,
apresentou-se um anúncio e um aviso para os futuros dirigentes da Sociedade
Psicanalítica Alemã. Segundo Fenichel (Nitzschke, 2004), os diretores da
IPV não condenaram Reich por suas divergências teóricas a Freud ou por seus
princípios políticos, mas por reivindicar a inserção política da
psicanálise por estar em coerência com seu próprio campo de estudo. Temendo
que os nazistas interditassem a psicanálise na Alemanha, reiteraram a
posição de uma psicanálise politicamente neutra, tal como defendia Freud,
ao afirmar que esta poderia servir a qualquer Estado.


Os esforços empreendidos eram em função de um afastamento absoluto "das
convicções divulgadas por Reich em Berlim" e salientar o comprometimento da
psicanálise em promover a "índole positiva das pessoas" (Ibid.). Tais
considerações aproximavam-se de certos ideais do pensamento eugenista de
Francis Galton. A Eugenia, termo cunhado por Galton em 1883, refere-se à
tese de que as capacidades humanas derivam não de condições ambientais ou
sociais, mas de uma causalidade biológica hereditária (Guerra, 2006). Seria
papel do homem garantir o desenvolvimento e evolução da espécie humana, a
partir do controle social de alguns agentes. Tal projeto levaria ao
aprimoramento das qualidades físicas ou mentais (raciais) de gerações
posteriores.


A partir de 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, passaram a entrar
em vigor as primeiras leis raciais e de segregação social endereçadas
àqueles que não constituíam vantagem para a sociedade. Segundo o Nacional-
Socialismo, todos os seres admitidos como "inferiores" – que colocavam em
risco a pureza ariana – e aqueles que implicassem em custos para o Estado,
continuamente passaram a ser vítimas de programas de eutanásia e
esterilização. As pessoas consideradas "improdutivas" deveriam ser
submetidas a programas disciplinares para o progresso moral e físico. Caso
isto não fosse possível, nada mais restaria de utilidade ao Estado ou à
sociedade, devendo ser portanto, eliminadas.


Era preciso que os nazistas compreendessem que havia dois tipos de
psicanálise: uma, de cunho reacionário que se voltava a práticas
comunistas, como foi o caso de Reich, e outra que poderia afirmar sua
terapêutica como útil ao Estado nazista. Reiterando esta segunda opção, o
instrumento psicanalítico passou a ser empregado como ferramenta de
aprimoramento em favor daqueles inadaptados à cultura[17]. O movimento que
inicialmente buscava a apolitização, sob o intento da própria conservação,
tornou-se em pouco tempo um movimento politizado, ainda que absolutamente
adverso ao seu sentido original e mais próximo a uma demanda de submissão
ao regime nazista. A apolitização, que havia sido sempre uma falácia para
Reich, foi tema de um artigo posterior seu na "Revista de Psicologia
política e Economia-sexual" chamado "Ciência 'apolítica'" (Nitzschke,
2004), onde relatou com ironia o reverso da história. Se a psicanálise não
podia ser instrumento de intervenção social, como se explicava que os
próprios psicanalistas que o condenaram, tivessem a iniciativa de operar
uma psicoterapia alemã em favor de um regime Nacional-Socialista? Tal como
é possível perceber, a expulsão de Reich da Associação Psicanalítica
Internacional não se constituiu como fato isolado, ao contrário, ao negar
qualquer acordo com o movimento Nazi, operou contra uma tendência de
subsistência fraca e portanto, foi censurado, isolado e proscrito de
qualquer participação na história da psicanálise por muitos anos.


Trazer à discussão tais acontecimentos não tem por intuito o
desmerecimento ou um novo fomento de críticas à psicanálise, mas elucidar,
sob um ponto de vista analítico institucional, que os movimentos de
adoecimento, de peste emocional e fascistas são sempre possíveis de
ocorrer, principalmente se caem em sua inobservância. O olhar não deve se
voltar à psicanálise enquanto movimento, mas a um conjunto de pessoas que
compuseram uma instituição, uma organização formal de operações em uma
determinada época. Face a um risco de ameaça às estruturas tradicionais,
insuflou-se um movimento de conservação em detrimento das forças
instituintes (revolucionárias), o que culminou no encerramento em um
apoliticismo e à compactuação com lógicas sintônicas ao próprio nazismo.


A impossibilidade de abstinência de posicionamento político frente aos
eventos coletivos talvez tenha sido a maior crítica de Reich, assim como a
mais sintônica com todo o desdobramento de sua obra. Partindo da
sexualidade, Reich percebe que há algo intensivo e imanente, que é produtor
de sentidos e que opera no campo social. Há uma notável força que não é da
ordem da linguagem, mas do expressivo, que conecta os seres em relações de
expansão e produtividade. Tal condição de existência não se dá
fortuitamente ou mediante operações lógicas programadas, mas
necessariamente depende sua potência, da boa regulação das funções vitais
da pólis.





II) A PROPOSTA DE INTERVENÇÃO POLÍTICA NO CAMPO SOCIAL





No prefácio à primeira edição do livro Análise do Caráter em 1933, antes
de sua expulsão da Associação Psicanalítica Internacional, Reich apresenta
sob a forma de uma subversão lúcida aos princípios terapêuticos e às
fronteiras estabelecidas na clínica, um questionamento sobre o dispêndio de
se produzir uma teoria e uma prática voltadas à observação individual de um
sujeito analisado. Empreender esforços sobre a caracteriologia do
indivíduo, poderia se constituir em "uma supervalorização extravagante e
unilateral da psicoterapia" (Reich, 2001a:2), uma vez que não se colocasse
em questão as condições sociais e as forças coletivas que atravessam os
indivíduos, o que constituía um problema para a própria afirmação dos
objetivos terapêuticos propostos pelo analista.


Na palestra realizada na residência de Freud, em dezembro de 1929, sobre
as consequências sociais da teoria da libido, Reich define quatro questões
às quais não havia resposta prévia:


"1. Quais são as conseqüências finais da teoria e da
terapia psicanalíticas?


2. É possível continuarmos a nos limitar apenas à análise
das neuroses dos homens e das mulheres individualmente, em
uma prática particular?


3. Qual a natureza do papel que o movimento psicanalítico
deve assumir na estrutura social?


4. Por que é que a sociedade produz neurose em massa?"
(Reich, 1988b:170 [grifo do autor]).


Partindo de uma visão médica, a proposta de Reich é a de intercessor. No
entanto, neste momento, a intercessão não se dá sobre a estase sexual
geradora de efeitos negativos sobre a potência e a expansão da vida. A
proposta de Reich é deslocar a matriz psicoterapêutica para fora de um
âmbito capitalístico, sob a previsão de que ao menos que se faça uma
intercessão no coletivo, nas práticas cotidianas, nas formas como as
pessoas são introduzidas na cultura, a clínica individual nunca estará à
altura de realizar sua proposta de criar aberturas à saúde psíquica e
emocional. Dito de outra forma, enquanto as máquinas produtoras de neuroses
seguirem seus cursos sem que se façam esforços de intervenção em certos
modos de operação, o psicoterapeuta correrá o risco de relegar seus
esforços a uma mera contenção de uma última instância da produção.


Este questionamento leva a uma última análise do papel do analista: deve
ele escarafunchar conteúdos inconscientes, que malgrado o sujeito precisam
ser investigados, ter uma estranha missão de interiorizar, buscar o
traumático, o núcleo patógeno e enunciar como um saber estrito ao
procedimento analítico individual, ou realizar um deslocamento para fora da
interpretação e questionar o que desse saber pode advir nas práticas
sociais? De forma muito espontânea, compreendeu Zadniker, um jovem operário
torneiro que Reich encontrou no partido comunista alemão, a problemática
envolvida:


"O Complexo de Édipo soa muito bem quando você explica
desta forma, mas como nós podemos usá-lo em nossa luta por
uma vida melhor? Não podemos psicanalizar a todos. Nós
temos que mudar a sociedade e nossas condições de vida. Se
nós quisermos ser ouvidos, precisamos de uma mensagem.
Temos de acabar com o sofrimento no mundo. Nós
trabalhadores aprendemos rapidamente, mesmo que alguns de
nós sejam preguiçosos ou estejam desgastados, mas vocês
intelectuais devem aprender a falar em termos que as
pessoas comuns possam compreender. As únicas questões
importantes hoje são aquelas que todos possam entender"
(extraído do documentário de Meller-Marcovicz, Viva Little
Man [tradução livre do autor]).


Reich encontrou em Zadniker um amigo e um "mestre", que o introduziu à
uma compreensão mais próxima das questões, da realidade e das formas de
pensar dos operários, levando-o a questionar boa parte de seus antigos
valores. "Aprendi, escreve Reich, a ver amplamente coisas que não se
encontram em nenhum manual de política ou ciência. Comecei a tomar
consciência cruelmente da inutilidade da ciência universitária" (Dadoun,
1991:393). Reich encontrou no contato e nas amizades com os operários, uma
abertura afetiva e uma simplicidade, que muitas vezes não encontrava em
seus colegas e amigos mais "cultos". Foi por conta desta apreciação da
forma simples e direta de se relacionar dos operários, que Reich afirma não
ter assumido uma idolatria cega ao movimento trabalhista como o faziam
muitos intelectuais de esquerda. Uma aproximação mecânica e não marcada por
intensidades, tendia a ser tão efêmera a uma aproximação, quanto a uma
separação do movimento.


Reich percebeu nos trabalhadores uma capacidade intuitiva para
compreender, sem a necessidade de livros ou explicações complexas, questões
emocionais e sexuais humanas e políticas. Zadniker, em particular,
compreendia automaticamente todos os pontos de vista da economia sexual, da
etiologia sexual das neuroses e dos movimentos reacionários que apareciam
quando as pessoas eram incapazes ou incapacitadas de satisfação. Os
processos econômico-sexuais e suas leis se tornavam simples de serem
compreendidos e "geralmente e espontaneamente estavam presentes na labuta
silenciosa dos estratos terra-à-terra da sociedade" (Reich, 1976:104
[tradução livre do autor][grifo do autor]). Disto, era possível
compreender, da mesma forma, que não havia sentido em considerar qualquer
forma de conhecimento específico e disciplinar à classes abastadas,
culturalmente capacitadas para compreender os meandros ou intervenções
terapêuticas[18].


A introdução de uma orientação psicanalítica nos meios políticos se deu
inicialmente a partir de palestras a vários grupos, explicando
conceitualmente os complexos de édipo e de castração, no entanto, a
resposta era tão insatisfatória como as apresentações dos partidos de
esquerda sobre análises econômicas. A saída encontrada por Reich foi
capturar o interesse a partir de uma perspectiva que estimulasse as pessoas
a observarem suas próprias necessidades emocionais (Sharaf, 1983:129). Para
tanto, introduziu duas vertentes que eram os materiais diretos de seu
trabalho, o domínio médico, particularmente sobre as práticas e métodos
sexuais e o âmbito educacional. Assim, partindo dos aspectos teóricos[19]
da psicanálise, em direção aos problemas concretos da vida sexual das
pessoas, Reich inicia o movimento que veio a se chamar Sex-Pol. Mais do que
ajudar as pessoas com seus problemas sexuais e dinâmicas afetivas
individuais, o principal objetivo de Reich era fornecer às necessidades
sexuais e afetivas de uma vida amorosa e plena, uma série de
questionamentos políticos, o que levava a inserção dos problemas em
preocupações políticas mais amplas. O movimento que se iniciava a partir de
questões sobre a vida sexual e educação das crianças, colocava em discussão
invariavelmente questionamentos práticos sobre políticas públicas e
reivindicações de espaços sociais que eram mantidos à margem e que não
interessavam a nenhum grupo político. As práticas feitas em política sexual
funcionavam tal como oficinas políticas, eram espaços de discussão,
participação e conscientização, que sempre giravam em torno do envolvimento
coletivo. Não havia teorias críticas a serem dominadas, o que poderiam ser
chamadas de um conteúdo desalienante. As informações e orientações
oferecidas nestes encontros eram formas de trazer possibilidade e ampliação
de olhares sobre questões do cotidiano e estratégias de socialização, parte
da mesma medida profilática proposta por Reich.


Foi a partir dos depoimentos e destes trabalhos que desenvolveram-se os
conceitos presentes em "Psicologia de Massas do Fascismo". Se uma pessoa
vivencia conflitos emocionais e problemas sexuais, tenderá a uma percepção
intimista de mundo, sem o aporte de energia necessário para considerar o
outro, mas apenas se autopreservar. O apoliticismo[20] ou a apatia
política, não tendem a um estado subjetivo de passividade, mas indicam uma
defesa contra a consciência das responsabilidades sociais, o que em uma
análise primária indica uma forma de enclausuramento perceptivo na relação
com o outro.


"A repressão da satisfação das necessidades materiais tem
resultados diferentes da repressão das necessidades
sexuais. A primeira leva à revolta, mas a segunda impede a
rebelião contra as duas espécies de repressão ao reprimir
os impulsos sexuais, retirando-os do domínio do consciente
e fixando-os como defesa moral. Na verdade, também a
inibição da própria rebelião é inconsciente. Na
consciência do homem médio apolítico não se encontram
vestígios disso. O resultado é o conservadorismo, o medo
da liberdade; em resumo, a mentalidade reacionária"
(Reich, 2001b:29) [grifo do autor]).


A falta de crítica e submissão das massas advém dos mecanismos de
supressão sexual e repressão das formas afetivas, o que cristalizam as
energias do organismo em defesas caracteriais e formam uma blindagem contra
a percepção de sensações individuais e de movimentos irracionais no campo
social. É possível apreender neste momento, um pouco mais de profundidade
sobre a proposta reichiana de intervenção e orientação as questões
concernentes à sexualidade: "A falta de clareza sobre questões sexuais e,
ainda pior, sobre mentiras e enganos sobre a vida amorosa humana, minaram a
capacidade das pessoas de ver através de engodos políticos" (Sharaf,
1979:132 [tradução livre do autor]).


É no cotidiano que olhares de estranhamento podem incitar uma percepção
mais ampla dos processos culturais. Inicialmente podem aparecer como
contradições, experiências interiores de dor, sofrimento e segredos
íntimos. É necessário que a percepção do problema se inicie a partir da
esfera pessoal, por isso a importância das pessoas falarem do que sentem –
a conscientização de uma certa qualidade afetiva pode servir de catalizador
a processos mais amplos. Reich focou na miséria sexual que permeava a vida
das pessoas, para levar então à compreensão de que a miséria não é uma
qualidade permanente, mas é determinada por um conjunto de forças que
atravessam e que, portanto, devem ser politizadas para além do pessoal.


Tais forças não pertencem a nenhum âmbito específico, qualquer sistema
ou movimento político pode ser atravessado por elas[21], como dirá Foucault
décadas mais tarde. Mesmo o território político-sexual, em seus discursos e
microintervenções, pode ser atravessado por forças conservadoras ou
revolucionárias. Os movimentos fascistas, especialmente os nazistas,
direcionavam vetores de afiliação com o medo das massas de seus próprios
impulsos e medo do caos, o que ampliava a urgência de defesas moralistas,
de proteção à família, de mais lei e de mais ordem (Ibid.). Direcionavam
propagandas sexo-políticas de forma negativa e a afirmar tendências
destrutivas básicas, caso não se assumissem diretivas de controle. Neste
sentido, para Reich, "a cristandade católica, particularmente, aboliu há
muito tempo o caráter revolucionário, isto é, rebelde, do cristianismo
primitivo[22]" (Reich, 2001b:217 [grifo do autor]), tornando-se desta forma
a organização político-sexual mais poderosa do mundo. Em contrapartida, a
disposição dos corpos desinibidos, expansivos, exibidos a olhares que
tentam apreender um pouco de vida, mas que por serem função de um mecanismo
compulsivo, malogram, tampouco atestam liberdade ou potência de vida. A
pretensa liberação, a pornografia, o sexo desinvestido de afetos,
criticados por Reich, são modulações das operações maquínicas que habitam
este mesmo território de práticas e agenciamentos. Estas não tornam a
sexualidade mais aceita ou melhor compreendida, mas induzem à disrupção de
um processo vital e ao mesmo tempo a submetem a normatizações de um
determinado modelo identitário a ser produzido e comercializado.


Com a introdução da análise caracterial e dos movimentos político-
sexuais no coletivo, Reich abre portas a uma psicologia comunitária e
inaugura o conceito de inseparabilidade entre o domínio clínico e o
político. Ainda que não tenha oficializado esta junção no âmbito clínico,
inaugura uma forma de compreender as questões humanas, não presa ao
indivíduo, mas sendo "a partir da análise do sócius, do coletivo, dos
grupos humanos, que chegaremos a compreender este caso particular da
cultura ocidental, de sociedades que esvaziaram a esfera do público em
proveito do privado" (Rauter, 2007:2). Para Reich, a clínica individual
pode sim, atuar como dispositivo analisador das inscrições de forças que
atravessam a constituição do psiquismo, produzem necessidades que se tornam
reais e necessárias e constituem uma regulação biológica do organismo. A
partir do processo de compreensão da estruturação biológica humana, seria
para Reich, função da psicoterapia, derivar fundamentos de intervenção no
campo social.


Tal procedimento metodológico parte de uma premissa completamente
distinta àquelas hegemônicas na época, que se encontravam em sintonia com
as ideologias capitalistas. Explicações sobre qualquer forma de sociedade
humana não poderiam partir do indivíduo ou de uma história e cultura
particular, nem tão pouco de pulsões circunscritas a um funcionamento
dissociado do público. As condições sociais que possibilitam uma qualidade
positiva ou negativa de satisfação dos afetos, devem ser as primeiras a
entrar em análise, antes de premissas lineares e deterministas sobre
pulsões e necessidades humanas que intercedem enquanto fatores históricos.


Reich sai então de sua restrição ao consultório clínico e busca
compreender no esforço teórico dos casos que se apresentam, algumas
contribuições ao campo da política. O desvelamento da estrutura do caráter
trouxe um evidente olhar sobre a ineficiência do homem em acompanhar em
termos do desejo, o que inaugura como idéias e revoluções econômicas.
Apesar de ter isto em mente, muitos dos projetos sociais iniciados e
desenvolvidos por Reich malograram em função da mesma síntese que foi
proferida anos mais tarde:


"Esta discrepância entre o que um ser humano quer, aquilo
com que sonha, aquilo que intelectualmente ele considera
como verdadeiro e bom e o que ele realmente pode fazer,
isto é, o que a sua estrutura, a estrutura de caráter, lhe
permite fazer, é um grande problema [...]." (Higgins &
Raphael, 1979:83 [grifo do autor]).


O que o homem – não aqui tomado como uma abstração do ser humano, mas em
referência ao ser capitalista herdeiro de um patriarcado milenar – funda
como formas de operação e concretização no social, depende mais das forças
de reprodução da Ordem atuantes do que um organizar de idéias, de conceitos
e teorias. O próprio processo de construção do caráter implica na inscrição
de uma série de forças que atravessam o sistema vivo. Não há uma
sobreposição de forças ao caráter, assim como não é possível afirmar
qualquer estrutura prévia, mas sua própria constituição parte de um
processo e ao mesmo tempo de uma série de materializações e conservações
que foram feitas a fim de possibilitar uma existência produtiva. Para que
as determinações capitalistas possam seguir em curso, é preciso que os
impulsos vitais sejam ajustados nas massas, para que desempenhem com
eficiência quaisquer funções que serão exigidas delas mais tarde. Da mesma
forma, é preciso haver todo um investimento de "paralisação sobre as forças
de rebelião do homem" (Reich, 2001b:28) a fim de impedir quaisquer
movimentos de transformação ou questionamentos sociais e minar instâncias
produtivas desejantes. As forças de conservação que habitam o homem são
aquelas que precisam conservar uma certa Ordem Social, mas ao mesmo tempo
precisam conservar e constringir a liberação no próprio ser, no organismo,
pois há um risco na liberdade ou no fluxo livre de forças.


A inserção clínica que inaugura a análise do caráter, é de que a vida
como um todo sofre processos que não podem ser avaliados de forma
independente, mas a partir de um conjunto de movimentos múltiplos
superpostos que definem as formas de ser e estar no mundo. Da mesma forma,
Reich elucida, a partir da dinâmica libidinal, os mecanismos biológicos de
transformação da potência de vida em poder sobre a vida – um fazer que, ao
invés de permitir sua produção heterogênea, implica em um exercício de
assujeitamento e de destruição daquilo que, de uma forma resignada, se
diferencia.


Estas duas articulações trazem à política uma contribuição importante
sobre a contraproducência de objetivos sociais que apenas tomam como
referência as condições desfavoráveis a que são submetidos os coletivos em
relação às esferas do saber, da riqueza e dos recursos de propriedade.
Reich aponta que o obstáculo às revoluções e que a falta de êxito dos
programas de reformulação, se explica sobretudo, porque não se acompanha
uma mudança caracterial nas massas. Mesmo a reflexão sobre as experiências
históricas que existiram a partir de tentativas de transformação social,
não garante o sucesso de investidas de abertura no campo social ou a
incorruptibilidade dos processos de agenciamento no coletivo. Todos estes,
no entanto, se constituem como elementos indispensáveis. O fulcro do
projeto para Reich é fornecer intervenções no coletivo que possibilitem a
criação de condições de regulação onde a vida não tenha que se corromper,
se tornar destrutiva e reacionária, a fim de que possa subsistir. Em outras
palavras, uma revolução que não ofereça condições de permanência, isto é,
que se oriente por pura potência criadora e estabeleça princípios e
objetivos, sem observar as condições de perdurabilidade da potência vital,
estará fadada ao fracasso. Para Reich não se trata de resolver as questões
políticas e sociais, mas fomentar outros processos dos quais as estratégias
políticas e sociais derivem. Neste sentido, a proposta revolucionária de
Reich não pode deixar de ser sexual[23], pois é no campo das afecções e dos
agenciamentos coletivos que é possível constituir um movimento de retorno à
raiz dos processos vitais e de composição de estratégias potentes que
garantam a sua continuidade. A originalidade de Reich está em constituir
uma forma de pensar que comunga com diversos campos do saber, provocando o
efeito de retirar o pensamento e as sensações de uma zona de conforto que
promove a separação dos espaços disciplinares[24]. Podemos afirmar,
portanto, que o pensamento de Reich encontra-se inteiramente consonante com
as propostas transdisciplinares presentes no contemporâneo.


Ao tomar o campo do sexual como ponto de partida para uma profilaxia e
prevenção das neuroses, é possível pensar uma política e uma economia que
propiciem uma prevenção de formações anti-vida, anti-sexuais, que esvaziam
os agenciamentos de sua vitalidade e criam formas mecânicas, burocráticas e
duras de gestão e de conexão entre os seres. A profilaxia proposta por
Reich, parte de uma leitura que não dissocia a dimensão do coletivo da
dimensão clínica, o que torna a tarefa da psicologia não estar presa ao
indivíduo, mas ao contrário, questionar a serventia de pensá-lo, suas
problemáticas, seus complexos, restritos ao íntimo, sem considerar o
parâmetro sexual que aporta necessariamente a produção na esfera pública.


Desta forma, a intercessão e a ruptura com um certo modelo clínico se
inicia, quando Reich compreende que apenas "a mudança radical das
instituições e ideologias sociais (mudança que depende do êxito das lutas
políticas de nosso século) criará as condições necessárias a uma ampla
profilaxia das neuroses" (Reich, 2001a:3). Quando Reich rompe, no que diz
respeito ao fio condutor da análise, com a esfera das representações e
insere o olhar prioritário sobre as formas de reação do ego, deixa de
caracterizar o sintoma como algo desviante a um funcionamento saudável do
organismo e introduz um olhar holístico sobre o sistema. O sintoma
neurótico "é apenas a conseqüência de uma situação caracteriológica geral"
(Higgins & Raphael, 1979:79), assim introduzindo o conceito de que é a
estrutura do caráter que é doente. Reich desloca o olhar que parte de um
subsistema psicológico, para outro que considera toda a estrutura do
sujeito funcional e biológica que se torna enferma, a partir de todos os
processos sociais que participa e se conecta, desde estágios muito
primários de socialização. Sendo o sintoma, sintônico com todo um processo
de produção, e não apenas o que dele pode ser separado e categorizado,
Reich se questiona qual é então a extensão dos processos que formam as
bases do caráter. Tendo como ponto de vista esta extensão, estimou, a
partir dos pacientes que recebia na Clínica Social em Viena, que "90% de
todas as mulheres e cerca de 70 a 80% dos homens" (Ibid.), estavam
caracteriologicamente e neuroticamente doentes e não eram capazes de
estabelecer uma regulação satisfatória e natural dos afetos e da
sexualidade. Isto apontava diretamente para um processo social em massa de
produção de neuroses, o que já não permitia considerá-las um território
apenas restrito a um modelo clinicocêntrico.


O movimento político-sexual proposto por Reich não teve início apenas
por sua crescente sensibilidade aos problemas e realidades encontrados na
clínica, mas após haver se deparado com o massacre ocorrido em Viena em 15
de Julho de 1927. No evento da Julirevolte, ou Revolta de Julho, policiais
exterminaram nas ruas dezenas de manifestantes proletários desarmados, que
protestavam contra a política recentemente estabelecida de cooperação entre
os industrialistas ricos, as unidades paramilitares Heimwehr e a Igreja
Católica Austríaca. Reich descreve este período em detalhes em sua obra
People In Trouble – The Emotional Plague of Mankind, vol. II, baseado no
manuscrito Menschen im staat (Os Homens no Estado), publicada apenas nos
Estados Unidos em 1953. Uma série de tensões se acumulavam por todo
território alemão envolvendo o Partido Socialista Cristão, que obtinha
liderança nacional e o Partido Social Democrata, que concentrava suas
forças principalmente em Viena. Após um ataque terrorista deliberado,
desencadeado pela direita política na pequena cidade austríaca de
Schattendorf, pelo grupo militar independente Heimwehr, todos os acusados
seguiram a julgamento, sendo, no entanto, libertos em alguns meses. A
política dos juízes conservadores, de estabelecimento de penas brandas aos
criminosos aliados à direita, enfureceram os operários em Viena, que no dia
15 de Julho iniciaram uma greve de protesto. O confronto entre a polícia e
a multidão se deu em torno no Palácio da Justiça, o qual havia sido
incendiado pelos protestantes como símbolo da justiça fraudulenta (Sharaf,
1983:124).


Reich fora avisado por um de seus pacientes que a cidade havia sido
ocupada por policiais armados e trabalhadores, e assim, interrompeu suas
atividades clínicas e saiu às ruas para juntar-se à multidão. O que se
seguiu, Reich descreveu como "um curso prático em sociologia marxista"
(Reich, 1976:22 [tradução livre do autor]). Seu ponto de observação era o
mesmo de centenas de pessoas, que se dividiam tanto em não-participantes
como os que eram alvos da polícia. Em certo momento do evento, uma falange
de policiais começou a se mover lentamente em direção à multidão que
observava o tribunal em chamas. Quando atingiu certa distância dos
espectadores, o oficial responsável deu o comando de disparo, e assim,
muitos policiais atiraram diretamente sobre a multidão, enquanto alguns
deles levantaram seus rifles e atiraram por cima da cabeça das pessoas.
Reich relata que o sentimento que teve no momento foi o de assistir a uma
"máquina sem sentido" (Ibid.:27), operada por homens autômatos aos quais
faltavam razão e julgamento. Estes homens, em nome da ordem civil,
prescreviam a quais outros eram permitidos o amor e a quais não. Pensar a
operação maquínica no homem civilizado e todas as suas sobredeterminações,
como a perda das funções auto-reguladoras espontâneas e sua substituição
por outras rígidas e automáticas, tornou-se a partir de então, o fio
condutor das pesquisas no campo da política.


O "confronto entre as classes" que presenciou, era bastante distinto às
lutas de classe descritas pelos conceitos marxistas. As pessoas "corriam,
gritavam, atiravam e morriam", não haviam capitalistas nas ruas, apenas
"milhares de trabalhadores que se encontravam dentro e fora de uniformes".
A temática poderia ser a luta dos capitalistas contra os operários mas, o
que se processava de fato, era que "as pessoas guerreavam contra sua
própria classe" (Ibid.:24).


Reich se questionou se seria possível afirmar de fato haver um conflito
de classes, ou se não seria apenas um exemplo prático da irracionalidade
política e biopsicológica das massas. A polícia que disparara contra
centenas de pessoas pertencia ao Partido Social Democrata, assim como os
trabalhadores que se insurgiam eram Sociais Democratas. Afirma Reich, que
alguns destes homens-máquina possuíam uma certa capacidade vital que havia
sido preservada, suficiente para se sentirem envergonhados e desobedecerem
às ordens dadas. Afirma ainda que "um ser vivo não dispara às cegas sem
saber ao que está atirando e por qual razão. A vida tinha que ter morrido
dentro daqueles que o fizeram" (Ibid.:27).


A partir deste evento, Reich defrontou-se não apenas com os eventos do
consultório no contexto individual, mas com algo que, inusitadamente ao
adentrar o setting clínico, denunciou formas de atividade pública que eram
ineficazes (tal como a neurose) ou operavam diretamente contra as condições
da existência humana. Certos momentos manifestos, que trespassam os
ocultamentos da conformação social, tornam possível analisar através das
práticas (a brutalização, o entorpecimento, a falta de vitalidade das
forças policiais) e dos efeitos sofridos pelas pessoas no mesmo processo de
socialização (a apatia das pessoas e a aceitação majoritária do massacre,
uma vez que foram poucos os que se rebelaram), um processo de adoecimento
que não é individual, mas coletivo. A exemplo da Revolta de Julho, outros
eventos do contemporâneo demonstram que a doença bio-social afeta de modo
generalizado a todas as partes. Não foi possível distingui-la distintamente
entre os espectadores e os policiais: ambos foram constituídos de forma a
aceitarem os papéis fornecidos socialmente. Conforme afirma Reich a
respeito da função sociológica da formação do caráter: "...cada organização
social produz as estruturas de caráter de que necessita para existir"
(2001a:4). É a grande contribuição de Reich ao papel que desempenham as
instituições humanas no processo de inserção dos sujeitos na cultura.


CONCLUSÃO





No início deste trabalho, buscou-se trazer ao leitor algumas
conceituações importantes do pensamento reichiano que pudessem fundamentar
um olhar mais transversal e vital sobre a clínica. A opção de não
centralizar a discussão sobre os aspectos corporais que costumeiramente
referenciam a obra de Reich, foi precisamente evidenciar parâmetros sociais
e coletivos, da sexualidade, da energia e dos bloqueios, que muitas vezes
são colocados em segundo plano, mas que possibilitam uma estratégia de
vida, para além do clínico privado, em sociedade.


Conceber a vitalidade e a destruição da potência, ou a disrupção de
fluxos desejantes – segundo Deleuze e Guattari – constitui-se um desafio,
por ser um assunto complexo, multifatorial e que envolve diversas esferas
da vida. O próprio moralismo repudiado por Reich, principalmente no que
concerne diretamente a questões sexuais, continua até hoje a ser encontrado
em educadores, acadêmicos e psicoterapeutas, de modo geral, que apresentam
profundo descontentamento em articular e considerar interações sociais sob
parâmetros mais afetivos, engajados, em sintonia com a própria satisfação
na vida. Tais formas tristes e desvitalizadas de constituir teoria e
intervenções clinâmicas, apenas podem produzir refúgio em considerações
dissociadas da prática ou ainda, movimentos reacionários que poderíamos
classificar como microfascismos, pela retirada da potência do outro através
dos mecanismos de saber-poder, como diria Foucault.


Trazer à discussão os movimentos políticos dos quais Reich participou,
não tem por objetivo apenas esclarecer que muitas de suas intervenções
foram pioneiras enquanto campo psicológico, devendo ser observadas apenas
como movimentos coletivos. O intuito é, sobretudo, trazer a idéia de que o
território político-sexual deve ser tomado também dentro do espaço clínico,
enquanto espaço de tratamento, uma vez que, tanto este, quanto o corpo
funcional que se encontra presente em análise, são atravessados
constantemente por um jogo de forças. Para Reich, estas forças em jogo são
imanentes – assim como para Bergson e Spinoza – e circulam na dimensão do
orgânico, daquilo que é marcado pela vida. Operando através de uma
economia, ou de um determinado sistema de regulação, estes fluxos e forças
podem assumir vetores que visam a conexão com o outro e, ao mesmo tempo,
seu afastamento e destruição. É preciso sustentar este sistema paradoxal
para que seja possível encontrar vias de trabalho sobre o sofrimento ou
sobre as repetições mortíferas, sem torná-las reificadas, ou ainda,
imanentes.


Desvelar esta constituição seria a nosso ver, a dimensão mais precisa do
olhar de Reich no campo social. Aquele que busca intervenções no âmbito
individual ou coletivo deve ter presente a direção dos vetores de suas
práticas; se aporta coerência ou se é atravessada por linhas de força que
apenas trazem a deteriorização do sistema. O referencial, pra tanto, não
pode ser cognitivo ou lógico, mas da ordem do que é sentido, do que opera
no campo sexual. Talvez este seja o sentido possível para a saúde, para a
abertura de horizontes e possibilidades de construções subjetivas. As
únicas intervenções que importam são aquelas que caminham na linha das
correntes vitais, o que implica necessariamente, segundo a visão que
pretendemos aqui abordar, em uma modificação da economia energética e
sexual do organismo vivo. De outra forma, torna-se fácil incorrer em uma
elaboração de idéias e desejos que tangenciem e mimetizem a vida, ao invés
de provocar um encontro potente com ela, a partir da satisfação concreta
dos afetos e da liberação de sentidos que, com o tempo, tornaram-se
cristalizados.











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[1] O vitalismo é uma doutrina filosófica que se tornou importante na
Europa no séc. XVIII que se contrapunha às explicações cartesianas na
concepção da singularidade do orgânico. Postula a organização da vida
através de uma força vital basicamente distinta à das ciências naturais,
não sendo física ou química e em contrapartida, também se distanciando do
espiritualismo e do sobrenatural. Com o desenvolvimento das explicações
racionais e mecanicistas sobre os fenômenos da vida, o vitalismo passou a
ser rejeitado como um retrocesso científico e, portanto, a Medicina foi se
tornando predominantemente materialista (anti-vitalista) tal como permanece
até os dias de hoje. A concepção reichiana de energia é bastante próxima ao
vitalismo, responsável por dar movimento à vida, antecede a atividade
mecânica, elétrica e química do organismo, sendo o que organiza a matéria e
mantém as atividades reguladoras do organismo. A divergência se encontra na
concepção metafísica da vida, para além da natureza, o que Reich rejeitava.

[2] Como citado por Dadoun (1991:44), um "imenso e original trabalho
efetuado por Bergson sobre as oposições tradicionais: mecanicismo-
finalismo, idealismo-materialismo, espaço-duração, etc."

[3] Cabe observar que atualmente estas são questões já incorporadas por
muitos países como políticas públicas. Contraditoriamente, referenciando as
necessidades que já eram levantadas naquela época, os países mais
opressores, onde a democracia encontra maiores barreiras para ser exercida,
são justamente os que não incorporaram direitos de grupos oprimidos,
conquistas e direitos dos jovens, das mulheres e outras minorias.

[4] Segundo Barreto (2000:80) o artigo mencionado foi inserido em 1936
no livro revisado e publicado posteriormente nos Estados Unidos em 1945,
com o nome "A Revolução Sexual".

[5] Segundo nota de rodapé adicionada à entrevista conduzida a Reich em
1952: "Reich usou a palavra "economia" no sentido da orientação ou
regulação das funções. Assim "economia sexual" indica o conhecimento que
lida com a economia da energia biológica do organismo, isto é, com a
capacidade de o organismo regular ou equilibrar a sua energia sexual
(biológica)" (Higgins & Raphael, 1979:58).

[6] Segundo Jacques Lacan, a operação psíquica que estrutura o sujeito é
a castração. É desta forma portanto, que se inauguraria o Édipo em seu
caráter universal enquanto fundador da humanidade, fazendo o homem passar
de seu estado animal para seu estado civilizado. O Complexo de Édipo seria
a metáfora do ingresso da criança na cultura e portanto, da "estrutura
simbólica, indissociável da existência da linguagem" (Millot, 1987:122).

[7] O próprio Lacan, disserta sobre os "enganos" de Reich no artigo
"Variantes do Tratamento Padrão" publicado em 1955 e reeditado depois pelo
autor em 1966 em sua obra Escritos. Neste livro afirma o equívoco que tomou
Reich em sua análise das resistências e que levou ao "erro" da Análise do
Caráter. Reich fora "muito longe no princípio de buscar para-além da fala a
inefável expressão orgânica" (Lacan, 1998:317) , ao mesmo tempo em que sua
concepção de pulsão implicava na "substituição do aparelho de linguagem
pelo aparelho sensório-motor, contrapondo-se a Freud, que sempre escreveu
os avatares da pulsão no aparelho de linguagem" (Bernardes, 2005:140, apud.
Associação mundial de psicanálise).

[8] O termo ideologia aqui é tomado no sentido de seu senso comum.
Aparece como um conjunto de convicções e crenças, diferente da proposta de
autores como Marx e Engels que tomam a ideologia como "o fenômeno das
representações sociais que invertem e ocultam a gênese da realidade social"
(Souza Filho 2001:34)

[9] A palavra inteligência vem do latim que significa inter-legere, ou
seja, uma capacidade de leitura em uma interrelação. No caso, todo sistema
natural possui uma inteligência, uma capacidade de sensibilidade e
responsividade ao meio e outros seres com os quais se relaciona. Cada
espécie o faz de forma distinta a partir das estruturas orgânicas que
possui.

[10] Impedir não seria o termo correto, uma vez que toda a matéria
termina em decomposição. A velocidade e a forma como isto ocorre é que vão
informar sobre a qualidade vital do organismo. Uma capacidade de carga e de
troca energética suficientemente boa – um bom quantum energético – é o que
garantiria a condição saudável.

[11] Reich, ao considerar o organismo como um todo e não necessariamente
a interconexão de partes mecânicas, busca um princípio de funcionamento
comum a todo ser vivo e para tanto, toma o exemplo hipotético de uma bexiga
viva (1988b:220). É possível tomar também como exemplo, o funcionamento de
um organismo unicelular que é composto por uma membrana plasmática, um
envoltório nuclear e um espaço entre ambos, definido como citoplasma. O
plasma na física é tomado como uma outra forma de matéria dinâmica, que
possui um comportamento coletivo e que difere dos estados sólido, líquido e
gasoso.

[12] Podemos tomar a potência como uma forma de conexão com o outro em
que a capacidade vital de um organismo depende da capacidade vital do
outro. Dito de outra forma, segundo Navarro, é "um estado de consciência
sadio [...] dialeticamente ativado por uma boa relação com o mundo interior
e com o mundo exterior, sendo fundamental para a instauração de um bom
contato com os outros" (Navarro, 1995:25).

[13] "Vida lisa" é um termo utilizado por Félix Guattari em sua obra "As
três ecologias" (apud. Zamora, 2008).

[14] Dadoun comenta que Freud exigiu que no cabeçalho do texto de Reich
fosse colocada uma nota introdutória com sua vinculação política – "membro
do partido bolchevista", talvez na tentativa de limitar e diminuir seu
alcance. Segundo o autor, o menosprezo de Freud pela posição política de
Reich, apenas atesta o esvaziamento e o afastamento desta esfera nas
práticas cotidianas, como percebido em suas obras que fundam a cultura
humana em mecanismos de renúncia (1991:306).

[15] O capítulo XI, 'O Caráter Masoquista' da obra de Reich "Análise do
Caráter", representa o rompimento clínico de Reich com a teoria freudiana
da pulsão de morte. O capítulo foi publicado pela primeira vez na mesma
revista citada acima em 1932, tendo sido incorporado ao livro apenas no ano
seguinte.

[16] O artigo pode ser encontrado no The International Journal of
Psychoanalysis em Applied Psycho-Analysis: Siegfried Bernfeld. 'Die
kommunistische Diskussion um die Psycho-analyse.' Imago, 1932, Bd. XVIII,
S. 352–385.

[17] Para uma discussão pormenorizada do que se seguiu à expulsão de
Reich da Associação Psicanalítica Internacional, ver o artigo referenciado
de Bernd Nitzschke, 2004.

[18] Os seminários sobre a técnica psicanalítica, onde eram discutidos
os casos da Clínica Social Psicanalítica de Viena, cujo trabalho resultou
na técnica da Análise do Caráter, eram feitos em paralelo às orientações
político-sexuais feitas com grupos.

[19] Neste momento, entre 1927 e 1928, foi o início da separação prática
e conceitual de Reich da psicanálise, apesar de haver sido efetivada apenas
em 1934. A disciplina que já estava em curso e que veio depois a ser
assumida de forma independente recebeu o nome de economia sexual.

[20] O sujeito político para Reich deve ser diferenciado de sua posição
partidária. Enquanto o apartidarismo é possível e possibilita o pensamento
não estar restrito a uma disciplina institucional, a existência de um
apoliticismo deriva do posicionamento de um sujeito que, a partir da
racionalização, evita os fatos e deprecia a realidade (Higgins & Raphael,
1979: 70). Apesar de Reich se referir à dimensão terapêutica como tendo um
caráter intrinsecamente político, apreende forte crítica ao homem político
que apenas sustenta uma prática burocrática e autoritária e que se vale da
retórica a fim de obter influência social. Segundo Reich, o político ao
qual se refere, "não significa apenas o membro de um partido, mas sim
qualquer homem ou mulher para quem o poder, a influência, a carreira,
significam tudo, e o conhecimento e a infelicidade humana, nada" (Ibid.:
56).

[21] Neste momento Reich tenta enfatizar que não basta se preocupar com
os aspectos pessoais dos problemas, devendo estes ser conectados com amplos
problemas sociais. Futuramente, com o conceito de peste emocional este
atravessamento de forças negativas nos diversos sistemas de interação se
torna mais evidente.

[22] Não significa contudo, que se possa observar o cristianismo como um
movimento único e absoluto, uma vez que certos grupos, com uma forte
potência de manutenção de um espírito institucionalista (Baremblitt,
1992:22) integram seus movimentos a aspectos libertários cristãos, como é o
caso das comunidades eclesiásticas de base no Brasil, bem como em outros
países.

[23] É bastante controversa a serventia que alguns autores ou movimentos
coletivos fizeram destas partes iniciais da obra de Reich, para ilustrar ou
embasar campos de saber ou disciplinares, sem no entanto compreender a
coerência e a extensão do paradigma reichiano. Por sua vez, a revolução
sexual – que parte de minar do campo social os processos de repressão
sexual – e a esfera política combatida por Reich, apenas podem se dar em
consonância com os desenvolvimentos posteriores da energia sexual enquanto
vitalidade, nos domínios bio-físicos da energia. Não é raro encontrar
dissociações e fragmentações da obra de Reich em muitos textos acadêmicos,
o que torna difícil sua apreensão correta e sua inserção potente dentro dos
espaços da academia.

[24] Muitas vezes, a rejeição dos conceitos reichianos como forma de se
pensar diferentes fenômenos, se dá pelo desconforto em congregar em um
mesmo raciocínio disciplinas tão diversas como a biologia, a sociologia, a
antropologia, a psicologia, a economia e a física. Sobretudo o conceito de
energia, cujo movimento (fluxo), perpassa diversos acontecimentos nos
campos sociais e naturais.
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