Revoluções, crises e a emergência de um Novo Mundo

May 30, 2017 | Autor: Pedro Patacho | Categoria: Economia, Sociologia, Ciências Sociais, Capitalismo, Economia Política
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Mulemba - Revista Angolana de Ciências Sociais Maio de 2014, Volume IV, N.º 7, pp. 355-370 © Mulemba, 2014

Revoluções, crises e a emergência de um Novo Mundo*

Resumo: O presente artigo estrutura-se em torno do argumento de que temos vindo a testemunhar um período histórico de grandes e contínuos movimentos de mudança em resultado de várias revoluções que se têm vindo a operar, promovendo acentuadas crises em diversos domínios, com um profundo e duradouro impacto na reestruturação da tríade economia-sociedade-cultura. As ideias apresentadas seguem de perto a volumosa trilogia do sociólogo espanhol Manuel Castells, intitulada A era da informação: Economia, sociedade e cultura, na qual o autor abordou a emergência daquilo a que chamou de um novo mundo, no contexto de uma acelerada revolução tecnológica. Um mundo no qual se redefiniram as relações de produção, as relações de experiência e as relações de poder. Um posterior olhar sobre estas ideias reconhece o seu efeito de naturalização do capitalismo contemporâneo e de bloqueio ao vislumbre de futuros alternativos possíveis. Palavras-chave: Globalização, capitalismo, economia, sociedade, cultura.

Introdução O presente artigo estrutura-se em torno do argumento de que temos vindo a testemunhar um período histórico de grandes e

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O conteúdo deste artigo baseia-se numa conferência proferida na Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Agostinho Neto (UAN), em Luanda, a 10 de Outubro de 2013. O autor agradece à comunidade académica da FCS — UAN pelos seus comentários e contributos críticos durante a conferência, em particular, aos muitos estudantes presentes. Investigador do CI-ISCE — Centro de Investigação do Instituto Superior de Ciências Educativas, Portugal; Investigador do CEREPE — Centro de Recursos Pedagógicos da FCS da UAN, Luanda, Angola; Investigador do Departamento de Pedagoxía e Didáctica da Facultade de Ciencias da Educación da Universidade da Coruña, Coruña, Espanha.

contínuos movimentos de mudança em resultado de várias revoluções que se têm vindo a operar, promovendo acentuadas crises em diversos domínios, com um profundo e duradouro impacto na reestruturação da tríade economia-sociedade-cultura. As ideias apresentadas seguem de perto a volumosa trilogia do sociólogo espanhol Manuel Castells, intitulada A era da informação: Economia, sociedade e cultura (2007a; 2007b; 2007c), uma das obras de grande fôlego que nas últimas décadas se dedicaram à análise dos processos de globalização, da emergência e consolidação de uma nova sociedade (que o autor designa de sociedade em rede), de uma nova economia (que caracteriza como informacional, global e em rede) e de uma nova cultura (em rede, no contexto daquilo que o autor designa por cultura da virtualidade real). Na trilogia de Castells, o ponto de partida para a análise é a revolução operada nas tecnologias de informação e comunicação, sobretudo após o advento da Internet. Na era da informação, segundo o autor, as modificações tecnológicas, a crise económica do modelo capitalista, a crise dos Estados e o apogeu dos movimentos sociais desembocaram num mundo impensável há apenas algumas décadas: globalizado, complexo e cada vez mais interdependente.

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1. As origens

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a. Revolução tecnológica O sistema tecnológico em que estamos imersos hoje surgiu na década de 1970. Desde essa altura assistiu-se à disseminação mundial de uma autêntica revolução tecnológica que teve um papel fundamental na reestruturação do capitalismo, enquanto modo de produção dominante, tanto quanto foi moldada pelo papel que desempenhou (CASTELLS 2007a). Decorridos apenas 30 anos, no início dos anos 2000, as tecnologias de informação e comunicação, que conformam este sistema tecnológico, estavam já amplamente disponíveis para uma cobertura universal, acessíveis através de um único dispositivo e em condições de armazenar, processar, transformar e comunicar quantidades ilimitadas de dados de qualquer natureza e com qualquer finalidade. O mundo estava agora ligado em rede e tornava-se verdadeiramente possível fazer quase tudo na rede. Por que constitui isto uma revolução?

b. Crise de um modelo capitalista Depois da Grande Depressão (1929) e até à década de 1970, o modelo Keynesiano de crescimento capitalista (o capitalismo regulado baseado no intervencionismo de Estado) foi responsável pela

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As transformações tecnológicas que tiveram lugar nas últimas décadas são consideradas por Castells (2007a) como uma revolução no sentido em que: a) correspondem a uma alteração substancial das bases materiais do funcionamento da economia, da sociedade e da cultura; b) caracterizam-se por aquilo a que o autor chama de elevada penetrabilidade, ou seja, pela capacidade de influenciar todos os domínios da actividade humana, e não como mera fonte exógena de impacto, mas como pano de fundo dessa própria actividade e da sua contínua reestruturação; c) ao contrário das evoluções tecnológicas anteriores, são sobretudo centradas nos processos e não nos produtos, embora induzindo novos produtos; d) promovem a aplicação do conhecimento e da informação na produção de novo conhecimento e de dispositivos de processamento/comunicação da informação, originando um processo cíclico que o autor designa de realimentação cumulativa; e) caracterizam-se por uma disseminação veloz e ao mesmo tempo indutora das dinâmicas de globalização baseadas nessas próprias tecnologias. Esta revolução tecnológica significou, em suma, um grande, inesperado e repentino aumento de aplicações tecnológicas que transformaram os processos de produção e de distribuição, contribuíram para a criação de novos produtos e serviços e influenciaram todos os domínios da actividade humana. Três factores são aqui decisivos: 1) o papel central que nestas tecnologias desempenham o conhecimento e a informação; 2) o facto de os utilizadores destas tecnologias as apreenderem de forma criativa e aplicada, o que 3) resultou na descoberta exponencial de novas aplicações e na estruturação de redes de interesse partilhado, um ciclo infinito através do qual as tecnologias aumentaram a sua penetração à medida que os utilizadores se foram apropriando delas, aplicando-as e redefinindo-as constantemente, em função das suas necessidades e interesses. Os processos de globalização acentuaram-se à medida que esta revolução tecnológica se desenrolava e se estendia a todos os domínios da actividade humana, moldando-os e sendo moldada por eles.

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prosperidade económica e pela estabilidade social na maior parte das economias de mercado, particularmente durante as três décadas seguintes à chamada Segunda Guerra Mundial. Neste período, a afirmação do capitalismo enquanto modelo de produção dominante apoiou-se fortemente nos Estados democráticos que, através de políticas intervencionistas, foram garantindo alguma proteção social aos cidadãos e às cidadãs e uma certa distribuição dos recursos, permitindo dessa forma a emergência de uma classe média com um razoável nível de segurança proporcionada pela estabilidade laboral. Como salienta Santomé, «o dilema com que os governos se viram confrontados foi o de buscar alguma forma de corrigir as situações de desvantagem sociocultural e económica em que viviam as pessoas pertencentes a classes sociais mais populares, as mulheres, as populações negras ou as minorias étnicas sem poder, sob a ameaça de virem a alimentar focos de grande conflitualidade social a muito curto prazo» (2001: 17-18). De uma forma geral, os estados procuraram garantir não apenas a proteção social das cidadãs e dos cidadãos, mas, igualmente, a regulação do modelo produtivo capitalista, estabelecendo exigências de dignidade tanto ao nível salarial como nas condições de trabalho e nas práticas de contratação. Foi também a partir dos movimentos sociais e das reivindicações políticas da Esquerda, como as oriundas das plataformas e associações sindicais e dos partidos políticos de Esquerda, que se estruturou a luta por uma sociedade justa do ponto de vista distributivo. O resultado foi o chamado Estado de BemEstar ou Estado Social, que representa uma verdadeira vitória da democracia. Porém, uma vitória sempre inacabada, em permanente construção no seio de importantes tensões e dinâmicas de poder, numa constante luta contra a injustiça e a desigualdade. Este modelo social entra em crise entre 1973 e 1979, quando sucessivas crises energéticas e o aumento do preço do petróleo ameaçam o surgimento de uma espiral inflacionária incontrolável e de âmbito mundial, tendo como resultado um significativo abrandamento do crescimento económico à escala global. A partir da década de 1980, e como reacção ao que se afigura como uma potencial crise económica mundial, os governos e as empresas envolvem-se num processo global de reestruturação do capitalismo que abandona os compromissos keynesianos e adopta a via neoliberal proposta por Milton Friedman (1970; 1993), entre outros. De um modo geral, esse processo teve em vista: a) a desregulação dos mercados; b) o

c. O Estado em crise

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desmantelamento do contrato social entre capital e trabalho, que que se baseava no compromisso entre crescimento económico e estabilidade social através de processos redistributivos; c) o aprofundamento da lógica capitalista de acumulação em função das relações de capital/trabalho; d) o aumento da produtividade do trabalho por via da incorporação de inovação tecnológica, flexibilização e desregulação; e) a globalização da produção e da distribuição; f) a livre circulação mundial de bens, pessoas e capitais; g) a orientação dos apoios estatais para ganhos de produtividade; h) a transformação organizacional em torno dos conceitos de flexibilidade e adaptação; À medida que tudo isto acontece são igualmente criadas as condições para o que modelo capitalista se autoproclame como o único modelo de desenvolvimento possível. Já a partir de 1976 se vinha assistindo a uma progressiva abertura da China à economia de mercado. Em 1989 cai o Muro de Berlim e entre 1990 e 1991 dá-se a desagregação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). As alternativas reais ao modelo de desenvolvimento capitalista tornam-se pouco credíveis. Gradualmente, as pressões sobre os Estados intensificam-se. «As estruturas de carácter nacional começam a surgir como nefastas, como se fossem em si mesmas obstáculos ao desenvolvimento das economias [de mercado]» (SANTOMÉ 2001: 18). De um capitalismo regulado em crise avança-se rapidamente para um capitalismo desregulado que já não permite que o impeçam de deslocar-se para qualquer parte do mundo em que as condições sejam mais favoráveis à obtenção de maiores rendimentos. A ideologia neoliberal impõe-se e força a retirada e o descomprometimento do Estado relativamente uma ampla gama de assuntos económicos e políticos. A lógica capitalista renova-se e intensifica-se...

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Os processos de globalização acentuam-se depois da década de 1970, envolvendo várias dimensões (tecnológica e comunicacional, económica, financeira, ecológica, cultural, política) e colocando em crise a soberania dos Estados nacionais. Tal como Castells (2007a; 2007b), também Held (1995) havia identificado uma série de factores que, particularmente a partir da década de 1980, contribuíram para colocar em causa a soberania dos Estados. No seu conjunto podemos destacar: a) a internacionalização do processo de tomada de

decisões (criação de uma rede internacional de organizações multilaterais que governam o mundo); b) a criação de estruturas internacionais de segurança e vigilância; c) a montagem de um sistema legal de abrangência internacional (leis internacionais que afectam a vida dos cidadãos nacionais); d) a emergência e consolidação de um cultura de massas universal; e) a independência total do sistema financeiro; f) a independência dos sistemas de produção, distribuição e trocas, uma vez que passam a operar de forma desligada da autoridade formal dos Estados. Muito embora os Estados continuem a ser um importante actor no campo das relações internacionais e no governo interno, a ideia de Estado deixa de estar associada à ideia de soberania total, dado que as fronteiras passam a ser permeáveis, tanto economicamente, como financeiramente e culturalmente. A circulação transnacional e pessoas cresce exponencialmente e as soluções para muitos problemas nacionais deixam de estar ao alcance dos Estados, pois que dependentes de instâncias internacionais. Consequentemente, adensase a crise de soberania e os Estados irão vergar gradualmente para se acomodarem aos processos e dinâmicas de globalização.

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d. Lutas, movimentos sociais e crise cultural

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O século XX ficará certamente na história como o século dos direitos. Para além da aprovação de inúmeras cartas e declarações, assiste-se, com particular intensidade a partir de meados desse século, a intensas lutas por uma maior justiça social em termos de reconhecimento cultural. Movimentos feministas, pacifistas, anti-racistas, anti-coloniais, ecologistas, LGBT, contra o autoritarismo dos sistemas educativos, entre muitos outros, adquirem especial notoriedade. A conquista crescente de direitos por parte de determinados grupos específicos é pressentida como uma ameaça pelos governos e grupos mais conservadores, já que colocam em causa valores e tradições que os favoreciam enormemente. Ao mesmo tempo que tudo isto tem lugar, os processos de reestruturação do capitalismo e o alastramento das perspectivas neoliberais acentuam uma cultura individualista e as organizações colectivas entram em declínio: os sindicatos e os partidos políticos atingem mínimos históricos de militância e de mobilização. Por outro lado, a revolução das tecnologias de informação e comunicação contribui

para importantes transformações nos media, impulsionando o surgimento de uma cultura de massas. O poder dos fluxos informação e comunicação impõe códigos e símbolos num mundo global, colocando em crise e desafiando as referências culturais existentes. A cultura dominante está agora na rede informacional e comunicacional. O controlo da rede e dos fluxos de informação e comunicação corresponde ao controlo da cultura na sociedade global.

2. Um novo mundo

Castells (2007a) define produção como a acção das sociedades humanas sobre a matéria (natureza, natureza modificada pelos sujeitos, natureza produzida pelos sujeitos e a natureza dos próprios sujeitos), da qual se apropriam, transformando-a em seu benefício e obtendo produtos que são consumidos, em parte, acumulando-se o excedente para investimento consoante os vários objectivos determinados socialmente. Trata-se de um fenómeno social complexo organizado pelas relações de classe segundo as quais alguns sujeitos, em função da sua posição de poder, definem as formas de partilha e uso dos produtos no que diz respeito ao consumo e ao investimento. No processo de trabalho, inerente à produção, a divisão entre mão-de-obra e matéria exige o desenvolvimento de meios de produção para agir sobre a matéria, transformando-a com base em energia, conhecimentos e informação. A base desta relação transformadora é a tecnologia. O resultado do processo de produção (produtos) é «socialmente utilizado de duas formas: consumo e excedente. As estruturas sociais, definidas por relações de poder, interagem com o processo de produção determinando as regras para a apropriação, distribuição e utilização do excedente» (CASTELLS 2007a: 18). Essas regras constituem os modos de produção e definem as relações sociais de produção, que por sua vez determinam a estrutura de classes — esta é determinante dos interesses de classe, mas difere da formação de classe em sentido concreto (WRIGHT 2013). Durante o século XX, o modo de produção dominante foi o Capitalismo. Enquanto modo de produção, o capitalismo distingue-se pela separação entre produtores e meios de produção, pela transformação do trabalho num bem, pela posse privada dos meios de

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a. Redefinição das relações de produção

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produção e distribuição, em função do controlo do capital, sendo orientado para a maximização do lucro dos detentores dos meios de produção. A partir da década de 1980 assiste-se a um processo de restruturação do sistema capitalista, muito estimulado pela revolução das tecnologias de informação e comunicação, embora também moldado por elas. Em geral, essa restruturação visou a intensificação da lógica própria do capitalismo — proporcionando a emergência das perspectivas neoliberais. A nova economia ou o novo sistema capitalista de índole neoliberal distingue-se por ser informacional, global e em rede. O novo sistema capitalista é informacional porque a produtividade e a competitividade dos agentes económicos passa a depender da sua capacidade para gerar, processar e aplicar de forma eficiente informação baseada no conhecimento (a incorporação das tecnologias de informação e comunicação passa a ser o principal factor de produtividade e competitividade). As mudanças nas empresas não são motivadas pela produtividade, mas pela avidez do lucro, para a obtenção do qual os ganhos de produtividade induzidos pelas tecnologias de informação e comunicação são importantes. Quando a crise global da década de 1970 provocou um declínio dos lucros, as empresas de todos os países reagiram adoptando novas estratégias: inovação tecnológica e descentralização organizacional. Mas além disso também foram seguidas as estratégias tradicionais, entre elas: a) a diminuição dos custos de produção (começando pela mão-de-obra); b) o aumento da produtividade (agora com base na inovação de base tecnológica); c) o aumento da competitividade (agora com base na flexibilização); d) a ampliação do mercado (além fronteiras); e) a aceleração do retorno de capital. Em todas estas estratégias as tecnologias de informação e comunicação desempenharam um papel central. Por um lado, durante a crise da década de 1970, as economias nacionais começaram a sentir-se limitadas e incapazes de expandir os seus mercados de forma a garantir a continuidade do crescimento económico, evitando assim o aumento de impostos sobre o capital e o trabalho ou a estimulação da inflação através de injecção de moeda. Por outro lado, assim que reagiram, as economias passaram a concentrar-se na descoberta de novos mercados capazes de absorver a sua capacidade produtiva crescente de bens e serviços. Para alcançar novos mercados e edificar uma rede global de segmentos de mercado em múltiplos países, o capital precisava de extrema

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mobilidade e as empresas de maiores capacidades comunicacionais. A desregulação dos mercados e as novas tecnologias, cujo grande ímpeto se verifica a partir da década de 1980, proporcionaram essas condições. Os primeiros e mais directos beneficiários das novas condições foram as empresas tecnológicas e o sector financeiro. A partir daqui intensifica-se a dissociação entre fluxos financeiros e economia real. O novo sistema capitalista é global no sentido em que, a partir de determinado momento, tem a capacidade de funcionar como uma unidade, em tempo real, à escala planetária. Não é a mesma coisa do que a economia mundial. Há mais de um século que existe uma economia mundial, no sentido em que um determinado modo de produção capitalista avança por todo o mundo. Porém, trata-se agora de algo inteiramente novo, a saber, a globalização da economia mundial. A economia mundial consegue globalizar-se com base numa nova infra-estrutura (as tecnologias de informação e comunicação) e com o impulso decisivo de políticas de desregulação e liberalização levadas a cabo pelos governos nacionais e pelas instituições internacionais. As principais actividades produtivas, o consumo e a distribuição, assim como as suas componentes (capital, trabalho, matérias primas, administração, informação, tecnologia, mercados) passam a organizar-se à escala global mediante uma rede de relações entre os agentes económicos. O novo sistema capitalista é em rede porque perante estas novas condições a produtividade e a competitividade das organizações estabelecem-se e desenvolvem-se na rede global de interacções entre múltiplas redes comerciais. Estar ou não estar na rede passa a ser condição necessária para o crescimento. Estar ou não estar na rede passa também a ser factor potencialmente gerador de dificuldades. As posições na rede podem ter diferentes relevâncias, sendo a sua importância para as dinâmicas globais transformada ao longo do tempo, seja por revalorização ou desvalorização, o que coloca as organizações, os países, as regiões e as pessoas em constante alerta, aquilo que Castells designa por instabilidade estrutural (2007a). Tudo isto tem um impacto brutal nas relações sociais. O modo de produção capitalista baseava-se em estandardizações de todos os tipos: do contrato de trabalho, do lugar e das condições de trabalho, do tempo e dos horários de trabalho. Isso proporcionava às pessoas segurança e previsibilidade, permitindo-lhes traçar um plano para as suas vidas e tomar decisões relativas à habitação, à educação dos

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filhos, ao consumo, etc. À medida que o novo capitalismo neoliberal se vai impondo como modelo de funcionamento dos mercados, tudo se torna incerto e flexível. A flexibilidade e a incerteza geram ansiedade face à dificuldade de planificar a vida privada. Esta particularidade, aliada ao novo perfil de trabalhador (baseado no conhecimento, na flexibilidade e na actualização constante) (MATOS 2012) numa sociedade do consumo, gera um fenómeno de notável individualização e queda das organizações colectivas. Como o trabalho se baseia no conhecimento, a nova economia tende acentuar a desigualdade: a) diferenciação da mão-de-obra; b) individualização do trabalhador; c) redução da intervenção do Estado. Assim, o novo contexto económico de pendor neoliberal tende também a acentuar os fenómenos de exclusão social de todos aqueles que são incapazes de penetrar na rede. O Sistema funciona optimamente para aqueles que estão na rede, particularmente em posições valorizadas, e exclui todos a aqueles que não conseguem aceder à rede ou que para ela são irrelevantes.

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b. Redefinição das relações de poder

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Tradicionalmente, os Estados organizam os tempos e espaços sociais transformando-os em formas de dominação e poder. Contudo, no novo sistema global o tempo e espaço sociais são cada vez mais definidos e controlados pelos fluxos globais de capital, produtos, serviços, tecnologia, comunicação e informação. As tradições e formas comuns de organização da vida dos sujeitos, dos grupos e das instituições são questionadas e desafiadas em face dos fenómenos de individualização e adaptação dos sujeitos, grupos e instituições à nova realidade. Em face do desafio crescente à soberania e legitimidade dos Estados, Castells (2007b) adianta que estes têm despoletado uma série de respostas/reacções na tentativa de reafirmar o seu poder: a) políticas de autonomia; b) processos de descentralização; c) desenvolvimento de organizações supranacionais. Contudo, paradoxalmente, este tipo de estratégias tem contribuído ou para reforçar as identidades locais e afastar as pessoas ainda mais do Estado, ou para comprometer ainda mais a sua soberania. Mais ainda, os mecanismos de autonomia e descentralização têm acabado por se esculpir sob a égide de uma ideologia neoliberal que os converte frequentemente

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em processos de mercantilização das instituições e serviços públicos (CLARK & NEWMAN 1997; BALL 2004), de que é um bom exemplo o sector da educação (PATACHO 2013). Para além desta questão, os mercados financeiros (fluxos de capitais agora globais) ficam largamente fora do controlo de qualquer governo. Assim, as políticas económicas nacionais ficam altamente comprometidas pelo desaparecimento da regulação e controlo dos fluxos de capital, o que limita seriamente a autoridade nacional em termos de definição da política económica. Esta diminuição de poder e controlo é acentuada, por sua vez, pela internacionalização e desregulação da produção. A consequência destas questões é o declínio da capacidade dos governos assegurarem, nos seus territórios delimitados, a base produtiva para gerar receitas. À medida que a posse dos meios de produção é cada vez mais difusa e que o cálculo das mais-valias do sistema produtivo se torna cada vez mais difícil, indivíduos e empresas vão deslocando capitais para paraísos fiscais em todo o mundo, provocando uma crise fiscal dos Estados. Por sua vez, essa crise fiscal vai colocar em causa o Estado Providência (inerente ao contrato social entre capital e trabalho), que é o principal sustentáculo do Estado Social nos países industrializados. À medida que os Estados redimensionam a EstadoProvidência aumenta a contestação e a insatisfação dos cidadãos e das cidadãs, crescendo a agitação social. A redefinição das relações de poder resulta, em boa medida, mas não apenas, da crescente incapacidade dos estados para controlar a sua política monetária, definir o seu orçamento, organizar e regular a produção e o comércio, arrecadar impostos e honrar os seus compromissos relativamente aos direitos sociais dos trabalhadores e pensionistas. Entretanto, uma outra questão de poder ganha enorme dimensão. Tradicionalmente, o controlo sobre a informação, as comunicações e o entretenimento funcionou como sustentáculo do poder e controlo dos Estados, o que foi aperfeiçoado com o surgimento de desenvolvimento dos media. Porém, a revolução das tecnologias de informação e comunicação, a globalização da posse dos media e das telecomunicações, a sua autonomia, versatilidade e diversidade significaram igualmente uma muito acentuada diminuição do poder e influência dos Estados. Gradualmente, os Estados vão perdendo o controlo sobre os media e sobre as comunicações. As tradicionais bases de poder simbólico são então destruídas.

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A globalização da informação e comunicação, dentro ou fora dos media, promove uma nova cultura de massas e a proliferação planetária das mais diversas manifestações culturais. O poder passa também a estar inserido nos códigos culturais e torna-se tanto mais eficaz quanto melhor for a sua transmissão/proliferação. Os media, enquanto palco de influência, são agora um território de competição cultural. As lutas pelo poder acontecem no seio das redes de informação e comunicação e mediante a manipulação de símbolos culturais. O conhecimento e a informação constituem poder no capitalismo informacional. Desta forma, os símbolos culturais e a manipulação da cultura constituem fonte de poder, sendo este, por sua vez, fonte de capital. Esta inter-relação cultura-poder constitui a base da nova hierarquia social no capitalismo informacional, global e em rede. Estas são também as condições para a emergência do poder do senso-comum. A ampliação mediática — massiva — de produtos e significados culturais faz com que tais produtos e significados se tornem no centro organizador das relações de experiência dos sujeitos, sendo trivializados e aceites como senso-comum, ou seja, como naturais, necessários e inevitáveis. Esse senso-comum alcança uma hegemonia ideológica no sentido em que qualifica e define os sujeitos dizendo-lhes o que existe, o que não existe, o que é bom, bonito, atraente, agradável, assim como todos os seus contrários... Deste ponto de vista, este novo senso-comum estrutura e condiciona os pensamentos e os desejos dos sujeitos.

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c. Redefinição das relações de experiência As consequências dos movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970 (feminismo, libertação sexual, contra-cultura, etc.) colocam em crise importantes instituições sociais, como é o caso da família, que é estruturante das relações de experiência dos sujeitos. A redefinição da ideia de família, das relações de género e da sexualidade conduzem à redefinição da própria identidade dos indivíduos, com impacto nas suas escolhas e nas suas vivências. Principalmente as mulheres e os jovens redefinem amplamente as suas relações de experiência. As redes de pessoas (motivadas pelas mais diversas razões) — e não necessariamente a família — passam a estruturar os planos pessoais dos sujeitos em função das suas necessidades individuais.

Essas redes são múltiplas e cada pessoa pode estar integrada numa multiplicidade delas (são agora personalidades flexíveis). Em vez de adoptarem modelos de comportamento, os sujeitos redefinem as formas de sociabilidade em função da experiência real e imediata, ou seja, das suas relações. Emerge então uma nova sociedade, a saber, a sociedade em rede:

As relações de experiência serão agora aquelas através das quais os sujeitos, imersos numa cultura intensamente individualista, consigam maximizar a possibilidade de alcançar os seus objectivos individuais. Ao mesmo tempo, mas colectivamente, as redes informacionais e comunicacionais permitem a afirmação e ampliação mediática de novas identidades, muitas vezes fundadas em culturas de resistência (localismo, tribalismo, separatismo, ambientalismo, etc.). Estas identidades não estruturam apenas as experiências das pessoas envolvidas nesses movimentos, mas têm o potencial de influenciar outros sujeitos, adquirindo notoriedade pública, aceitação generalizada e constituindo, assim, identidades de projecto. Desta forma, os códigos culturais que circulam vertiginosamente nas redes de informação e comunicação provocam um fenómeno de hibridação cultural: fusão de múltiplas influências na estruturação das escolhas dos indivíduos; dificuldade de identificar referentes; desorientação; superficialidade; submissão ao senso-comum hegemónico controlado pelos media.

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• Marcada pela individualização do trabalho; • Marcada pela erosão das estruturas colectivas (sindicatos, associações, partidos, etc.); • Marcada pela crise de soberania e de legitimidade dos Estados; • Marcada pela relevância da informação e do conhecimento na estruturação das relações sociais.

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3. A concluir: «Celebração “direitista” da nova economia» Bob Jessop (2005) escreveu um texto no qual identificava à data aqueles que se lhe afiguravam como os dois grandes textos que procuraram compreender as dinâmicas da globalização e o futuro «da economia capitalista, dos novos paradigmas de produção,

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do estado moderno e das lutas sociais à luz das novas tecnologias de informação e comunicação» (p. 42). Um desses textos é precisamente a volumosa trilogia de Manuel Castells com base na qual estruturámos as ideias deste artigo. O outro é aquela que classifica como a erudita obra de Michael Hardt e Antonio Negri, Império (2004). Enquanto que o primeiro assume uma orientação marcadamente sociológica, o segundo é sobretudo um ensaio filosófico. Ambos merecem de Jessop duras críticas. As suas críticas apoiam-se em duas ideias fundamentais: a) «a primeira é que estes estudos se direccionam para uma celebração esquerdista e direitista... na nova economia e da rede do Estado associada com o capitalismo global contemporâneo. Esta ideia baseia-se em estratégias teóricas e problemáticas que servem de base a estes estudos, mais do que as intenções, declarações ou uso de material empírico por parte dos autores»; b) «A segunda ideia é que, na procura de avançar e/ou actualizar Marx na análise da situação actual, ambos os estudos recuam no que diz respeito às grandes questões» (p. 42). Não nos deteremos aqui em considerações sobre a obra de Hardt e Negri, que de resto merece uma leitura aturada, mas sim sobre a obra de Manuel Castells que, segundo Jessop, constitui uma mera celebração «direitista» do capitalismo contemporâneo. Este argumenta que ao observar o informacionalismo como um modo progressivo de desenvolvimento de uma nova economia da informação e do conhecimento que apenas se tornou possível por meio das relações de produção capitalistas, Castells produz um efeito de naturalização do capitalismo como o único modelo de desenvolvimento possível. Ao insistir «no ponto de vista de que o capitalismo se reorganizou para usar o informacionalismo [com vista a] restaurar o seu crescimento dinâmico, depois da crise económica e política em meados de 1970» (p. 43), Castells suprime «totalmente o político da dinâmica entre o exercício do poder e a resistência ao próprio» (H. Marcuse, citado por JESSOP 2005: 43). Na perspectiva de Jessop, o efeito da análise de Castells é não apenas uma naturalização do capitalismo contemporâneo enquanto uma inevitabilidade e o único modelo de desenvolvimento possível, como também uma incapacidade de vislumbrar qualquer potencial transformador nos novos movimentos sociais que descreve, bem assim como de apresentar novas utopias. É, de inúmeras formas, uma perspectiva pessimista sem a força conceptual que permita vislumbrar outros futuros alternativos possíveis.

Referências bibliográficas

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CASTELLS Manuel 2007a (3.ª ed.), A era da informação: Economia, sociedade e cultura. Volume I – A sociedade em rede. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. 2007b (2.ª ed.), A era da informação: Economia, sociedade e cultura. Volume II – O poder da identidade. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. 2007c (2.ª ed.), A era da informação: Economia, sociedade e cultura. Volume III – O fim do milénio. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

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WRIGHT Erik Olin 2013, Classes. Tradução de Ana Medeiros; revisão de Isabel Henriques e Pedro M. Patacho. Luanda, Edições Mulemba; Mangualde, Edições Pedago [«Biblioteca de Ciências Sociais e Humanas»].

Title: Revolutions, crises and the emergence of a New World Abstract: This article is structured around the argument that we have witnessed in the past decades a historical period of great and continuous movements of change as a result of various revolutions that have been operating, promoting several crises in various fields, with a deep and lasting impact on the restructuring of the triad economy-society-culture. The presented ideas closely follow the Spanish sociologist Manuel Castells famous trilogy, entitled The Information Age: Economy, Society and Culture, in which the author discuss the emergence of what he called a new world in the context of an accelerated technological revolution. A world in which the relations of production, experience, and power are redefined. A further look at these ideas recognizes his naturalization effect of the contemporary capitalism as an obstacle to the glimpse of possible alternative futures. Keywords: Globalization, capitalism, economy, society, culture

Pedro Manuel Patacho

Pedro Manuel Patacho (cf. supra, pp. 305-306)

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