RIBEIRO, A. P.; BEZERRA, G. F. [Artigo - Entre relações de poder, segregação e deficiência]

July 27, 2017 | Autor: A. Ribeiro | Categoria: Sociologia, Ciencias Sociales
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RELAÇÕES ENTRE PODER, SEGREGAÇÃO E DEFICIÊNCIA: CONSIDERAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS1 Alan Pereira Ribeiro2 Giovani Ferreira Bezerra3

Introdução Dar visibilidades às problemáticas e desafios enfrentados, cotidianamente, por uma grande massa de sujeitos subdivididos e segregados em pequenos grupos,4 de acordo com suas posições e condições de existência no sistema capitalista - vindo a ser excluídos e colocados à margem das sociedades - constitui-se a realidade contundente entre as sociedades contemporâneas ocidentais. Assim sendo, pode-se afirmar que as práticas segregacionistas5 há séculos têm sido vistas como as melhores possibilidades de educação oferecidas aos sujeitos considerados deficientes, loucos, idiotas, anormais (NERES, 2006; FOUCAULT, 2001, 2009). Dessa perspectiva, justificava-se o destaque dado às clínicas, hospícios, manicômios, casas de recuperação e asilos, instituições essas pensadas com a finalidade de excluir, negar a liberdade e a garantia de direitos aos sujeitos marcados por certas limitações físicas, sensoriais, cognitivas e/ou psíquicas. Tal realidade ainda se faz presente em grande parte das sociedades capitalistas ocidentais, principalmente no interior de países de capitalismo periférico, haja vista a precarização e/ou limitação, quando não a inexistência de serviços públicos voltados à população em condições de vulnerabilidade social e econômica. Implicações essas responsáveis pela segregação, privação e extermínio, que continuam sendo os principais entraves para a formação de uma nova sociedade, pautada na emancipação humana, com vistas à liberdade e ao pleno desenvolvimento humano-social. Com o intuito de melhor expor as principais problemáticas apresentadas por esse trabalho, no que diz respeito à (in)visibilidade histórica dos sujeitos com alguma deficiência, faz-se necessário, a priori, apresentar quais foram e continuam sendo as principais práticas segregacionistas orquestradas pelas sociedades ocidentais. A posteriori, realizaremos algumas análises acerca das representações e concretizações discursivas historicamente apresentadas 1

Este texto foi apresentado na V Jornada Nacional de Educação de Naviraí, realizada de 11 a 13 de setembro de 2013, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Naviraí (UFMS/CPNV). Na ocasião, o texto também foi disponibilizado nos anais do evento, lançados em CD-ROM. Buscando ampliar sua divulgação, optamos por também publicar o presente artigo como capítulo deste livro, agradecendo aos organizadores do evento por autorizarem essa reprodução, em especial à professora Maria das Graças Fernandes de Amorim dos Reis, que esteve à frente da V Jornada. 2 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CPNV). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Inclusão e Diversidade (GPIDI/UFMS) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Estado, Sociedade e Políticas (GEPESP/UFMS). 3 Pedagogo e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). Professor assistente na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus de Naviraí. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Desenvolvimento Humano e Inclusão (GEPEDHI). 4 Nesse caso, consideram-se as proximidades de determinadas características, gostos, hábitos, estilos de vida, condições sociais, financeiras, limitações físicas, psíquicas entre outras. 5 Tais práticas são analisadas, especificamente neste trabalho, no que tange às condições impostas aos sujeitos com deficiência, seja esta por limitações físicas, sensoriais e/ou cognitivas. 1

pelo campo religioso e científico sobre a deficiência, pensando de forma contextual e relacional suas principais influências junto a outras problemáticas presentes nos Estados modernos. Buscamos, assim, expor brevemente a realidade brasileira como resultado e resultante de múltiplas determinações. 1 No limite da (in)visibilidade: os sujeitos com deficiência e as práticas repressivas Durante muitos séculos, foram negados direitos e visibilidade aos sujeitos com alguma deficiência, fosse esta física, sensorial ou cognitiva, bem como aos indivíduos com doença mental ou quaisquer outras peculiaridades distintas do tipo humano considerado normal. No intuito de melhor expor os principais entraves e conquistas obtidos por essa minoria, colocada na condição de excluída6 e vista à margem das sociedades, por muito tempo, propomos uma análise das principais visões e condições impostas a esse grupo no transcorrer da história das sociedades ocidentais. Para tanto, devemos nos reportar ao ocorrido no interior das sociedades tradicionais, antigas, medievais e modernas, destacando as condições e privações impostas a essas pessoas, que têm vivido em condições desfavoráveis ao desenvolvimento de seu intelecto e bem-estar social ainda na contemporaneidade. O extermínio, infanticídio e abandono de indivíduos deficientes e/ou desviantes da norma, no interior das sociedades tradicionais e antigas, foram percebidos como práticas naturais e necessárias para a sobrevivência dos grupos humanos, controle da natalidade e extermínio do mal, sendo as limitações compreendidas como castigo divino e encarnação de espíritos malignos (MIRANDA, 2004; NERES, 2006). Neres (2006, p. 2), ao expor brevemente a trajetória histórica dos sujeitos com deficiência no interior das sociedades ocidentais, afirma que: Assim como eram considerados incapazes para a sobrevivência na sociedade primitiva, na sociedade antiga as pessoas com necessidades educativas especiais eram incapazes de atender os padrões sociais atribuídos aos homens, portanto eram denominados deficientes, disformes...

Essa situação recebe novos contornos no decorrer da Idade Média, pois, devido à concepção cristã disseminada pela Igreja Católica, instituição hegemônica nesse momento histórico em quase toda a Europa, os deficientes passam a adquirir alma. Logo, são acolhidos por igrejas, orfanatos, abrigos e clínicas de tratamento. Em troca, viam-se obrigados a prestar inúmeros serviços à instituição que os acolhiam, como meio de contribuir com os gastos gerados por sua hospedagem. Ainda nesse contexto, os deficientes passam a ser vistos como arquétipos do poder de um Deus cristão capaz de punir seus fiéis por eventuais descaminhos. No período medieval, a deficiência era considerada, portanto, o meio por qual Deus, segundo a visão cristã 6

O discurso inclusivista emerge na contemporaneidade como estratégia capitalista e meio pelo qual o capital assegura e amplia seus domínios. Basta observar que o slogan da inclusão desenvolve novas necessidades de consumo e relações comerciais, como, por exemplo, a aquisição de materiais pedagógicos, adaptação de escolas, construção de centros especializados e melhorias urbanísticas, necessitando-se de capital para a promoção dessas ações. Como estratégia reformista, iniciativas como essas são vistas como questionáveis, porquanto não atendem a todas as demandas da população; apenas mitigam as tensões sociais. Nessa direção, o uso do conceito de exclusão torna-se problemático, porque, de um modo ou outro, todos participam das relações econômicas capitalistas, estão submetidos à sua lógica perversa; portando, incluídos na sociedade produtora de mercadorias. Nesse trabalho, todavia, ainda empregamos o termo exclusão, alertando o leitor para a contradição que esse conceito objetivamente engendra na realidade, dada a ausência de expressão mais apropriada e unívoca, até o momento, para expressar, neste texto, a ideia de uma inclusão precária, marginal, dependente do capital e suas formas de exploração reiteradas (Cf. BEZERRA, 2012; LANCILLOTTI, 2003; MARTINS, 2009). 2

dominante, instruía e alertava a humanidade sobre os perigos da carne, do espírito e da mente (NERES, 2006). Conforme menciona Pan (2009, p. 79-80, grifo da autora), observamos um movimento histórico [...] desde as práticas presentes nas sociedades antigas e medievais, que pregavam a eliminação ou o abandono dos deficientes mentais, considerados subumanos, passando pelo cristianismo, quando, então, eles ganham alma no plano teológico. A marca CARIDADE-CASTIGO define a atitude medieval diante da deficiência. A caridade protege o deficiente no asilo e também o esconde e o isola; por outro lado, o castigo o protege, é a forma de salvar sua alma.

Para o deficiente que gozasse de condição financeira favorável, era-lhe garantido melhor instrução educacional e condições de vida mais privilegiadas. Porém, mesmo assim, permaneciam como sujeitos dependentes e devedores do status social de suas famílias, experimentando, no máximo, tolerância da sociedade, mas não a completa aceitação por parte desta (NERES, 2006). As sociedades modernas e contemporâneas, principalmente após a Revolução Francesa, no século XVIII e no decorrer da Revolução Industrial, são tomadas por ideais humanistas, médico-pedagógicos e científicos, tendo destaque a criação de instituições de tratamento e acolhimento filantrópicas e/ou vinculadas ao Estado. Contrariamente à finalidade cristã, as novas instituições fundamentam-se na suposta prática do aproveitamento das potencialidades desses sujeitos, adestrando-os e instruindo-os com a finalidade de utilizá-los como força de trabalho (super)explorada. Desse modo, pode-se dizer que as pessoas com deficiências inserem-se nas sociedades ocidentais como participantes das relações sociais de produção, estas pautadas na lógica de mercado e acumulação capitalista. (OSÓRIO, 2005; NERES, 2006; PAN, 2009). Assim, à medida que as transformações sociais e culturais intensificam-se nos países ocidentais, os Estados Nacionais passam a perceber e observar os sujeitos com deficiência física ou transtornos psíquicos, sensoriais e/ou cognitivas a partir dessa ótica capitalista. Nessas condições, segundo Neres (2006, p. 8, grifo nosso): “[...] em 1824 os asilos e hospícios, para manter sua economia doméstica procuravam instruir os idiotas e imbecis na execução de tarefas manuais ou no domínio dos processos intelectuais exigidos pela vida em sociedade.”. Do ponto de vista de Osório (2005, p. 23), “O sistema capitalista, sem pudor, sem regras, tem como estratégia a segregação, num exercício constante de preconceitos, referendando a coação e a discriminação social.”. O deficiente/anormal passa da posição de empecilho para a de objeto utilizável e aproveitável no exercício de determinadas atividades fabris, a fim de satisfazer, sobretudo, interesses econômicos do capitalismo nascente. Nesse sentido, mais do que aproveitar as potencialidades desses sujeitos, instituições como clínicas, manicômios, casas de recuperação e asilos objetivaram o adestramento, controle disciplinar e exercício do poder. Como afirma Foucault (2009, p. 118), as práticas, métodos e mecanismos utilizados por essas instituições sempre objetivaram “[...] o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’.”. Historicamente, entendemos que tais práticas podem ser vistas como um legado do modo de produção antecedente ao próprio capitalismo, porquanto, no interior do feudalismo, as pessoas então denominadas de idiotas já eram utilizadas como mão de obra barata, sob a égide da Igreja, que justificava semelhante exploração com o discurso da caridade e compaixão devidas pelos cristãos aos desvalidos sociais. Desse prisma, cumpre lembrar que a Igreja e os senhores feudais foram, de fato, mais do que qualquer deficiente, os maiores

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beneficiários da nova visão teológica e humanista, a qual permanece, com novas roupagens e estratégias, desde a Revolução Industrial burguesa até os dias atuais (NERES, 2006). Logo após o feudalismo, os idiotas - para usar uma expressão da época - passaram a ser colocados em nova condição de existência, vindos a ocupar as periferias das grandes fábricas capitalistas, em condições subumanas. Nessas circunstâncias, mediante o desenvolvimento do capitalismo, impulsionado pela industrialização ocorrida em inúmeros Estados europeus e também, posteriormente, nos Estados Unidos da América (EUA), com a mecanização do processo de produção, os ditos idiotas tiveram, mais uma vez, negado o direito à sobrevivência e a melhores condições de existência. Semelhante prática se torna cada vez mais acentuada e disseminada com o avanço e as mutações hodiernas do capitalismo. Por consequência dessas práticas, as pessoas com deficiência foram e continuam, em maior ou menor proporção, privadas de garantias e direitos fundamentais, haja vista, principalmente, a morosidade de instituições estatais no que tange à efetivação desses direitos. Nessa direção, ao mesmo tempo em que o Estado inclui, ele também exclui, pois, como afirma Nogueira (2000, p. 103), “As leis foram (ou poderíamos dizer que são?) utilizadas como armas que preservam os privilégios e como instrumentos de repressão e opressão, jamais deixando claros e definidos direitos e deveres.”. Diante dessa realidade, os movimentos pela inclusão, liderados por familiares de crianças com deficiência, educadores, juristas, políticos e organizações da sociedade civil em defesa dos direitos humanos, reivindicando a necessidade de uma concepção transformadora e democrática em educação, têm se empenhado na luta por direitos e garantia de melhores condições de vida aos sujeitos nessa condição ontogenética. Entre as ações e (pro)posições visadas, têm ganhado notoriedade as lutas por educação inclusiva; garantia de acessibilidade; espaço no mercado de trabalho; desconstrução de preconceitos e efetivação dos direitos já legalmente conquistados. Outro campo de batalha constitui-se na desconstrução dos estigmas7 sociais historicamente construídos (GOFFMAN, 1993), bem como no combate às práticas segregacionistas pelas quais vêm sendo enquadrados esses sujeitos, sendo necessário um maior engajamento dos múltiplos atores sociais. Entendemos que, para a desconstrução dos inúmeros estereótipos, faz-se necessário utilizarmos o espaço da educação formal/institucionalizada como meio de combate às práticas segregacionistas, preconceituosas e desumanas ainda vigentes. Tal espaço pode ser considerado estratégico no embate ao Estado burguês, burocratizado, segregador e opressor. Todavia, não é esse o único campo de batalha, tendo em vista as múltiplas transformações sociais e culturais. Perante o exposto, no que diz respeito às instituições escolares, é necessário trabalhar e envidar esforços pela construção/transformação orgânica das escolas, enquanto se busca, também, a superação do modo de produção capitalista ora hegemônico. 2 Entre ciência, religião e discursividade neoliberal No decorrer de todas as transformações, a ciência se desenvolveu, sobretudo, na Idade Moderna como meio de contestação aos dogmas religiosos, contrapondo-se a qualquer explicação baseada na vontade divina e/ou em preceitos teológicos. Os males que até o momento eram vistos e explicados pelo cristianismo passaram a ser contestados pelo discurso 7

O termo estigma refere-se à prática excludente, discriminatória e condenadora exercida sobre determinados sujeitos ou grupos sociais, julgados por possuírem certas características ou práticas que fogem aos “padrões” estabelecidos e legitimados social, cultural e historicamente entre as sociedades e seus sujeitos. (GOFFMAN, 1993). 4

científico. Assim, a deficiência foi reinterpretada como infortúnio natural, patologia e enfermidade orgânica, passível de tratamento e reabilitação. A disputa existente entre as visões religiosa e científica surgiu por decorrência das profundas transformações sociais e culturais influenciadas pelo Iluminismo, que culminaram na Revolução Francesa e na Revolução Industrial em países europeus, disseminadas posteriormente, para o restante do mundo. Nesse período, afloraram discursos e ideias humanistas voltados à defesa da felicidade, igualdade, fraternidade e justiça social, porém em termos formais, justificando-se os privilégios de um grupo reduzido e detentor do poder econômico, que então se tornava hegemônico, qual seja, a burguesia. Na conjuntura delineada, o discurso científico passou a dominar grandes espaços e instituições estatais. Por conseguinte, torna-se necessário repensar, também, as relações de poder e as ideologias subjacentes às verdades (im)postas pelo modelo explicativo da ciência burguesa, sendo imprescindível, nos dizeres Foucault (2002 apud OSÓRIO, 2005, p. 23), apresentar propostas “[...] sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder que são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico no interior de uma sociedade como a nossa.”. As visões estabelecidas e legitimadas conforme cada campo disciplinar de saber apresentam-se, pois, como responsáveis por colocar os sujeitos com deficiência ainda mais à margem das sociedades capitalistas contemporâneas, negando-lhes direito, liberdade e importância. Portanto, as práticas segregacionistas, estigmatizantes e preconceituosas só terão seus efeitos reduzidos se, primeiramente, forem enfrentadas as técnicas, os discursos e as coerções, conforme derivados dos campos e instituições de poder que os produzem, bem como dos sujeitos que os praticam e os (re)produzem. Há uma verdadeira explosão discursiva no interior dos Estados ocidentais sobre a necessidade de se promover a inclusão das pessoas com deficiência, dos negros, dos grupos indígenas, da população Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti, Transexual, Transgênero (LGBTs), entre outras minorias sociais. Discursividade percebida como estratégia de poder por parte do Estado neoliberal, visto que este se beneficia da fragmentação das ações e dos movimentos sociais, que cada vez mais reivindicam questões pontuais e de interesses restritos, em vez de se propor a emancipação completa da humanidade, do gênero humano. O Estado, perante a agitação e reinvindicações momentâneas desses grupos, passa a conceder medidas paliativas, pontuais e superficiais, não tendo como propósito a transformação completa da realidade desses sujeitos. Os projetos irrealizáveis e a discursividade envolvente apresentam-se como reflexos de Estados reduzidos, desiguais e assassinos dos direitos humanos fundamentais a qualquer sujeito. Por decorrência da influência neoliberal, o Estado-Nação sucumbe ao modelo do Estado Mínimo, que reserva às minorias desassistidas a permanência de suas mazelas sociais. As ações afirmativas promovidas pelo Estado tornam-se incapazes de resolver os problemas sociais na totalidade, fazendo com que estes sejam mascarados e se perpetuem, o que resulta no prolongamento de seus efeitos nefastos. O sujeito com alguma deficiência, na atual conjuntura econômica, social e política, continua desfavorecido, quando não desprovido, de direitos fundamentais para sua sobrevivência, tais como educação de qualidade; atendimento especializado; garantia de espaço no mercado de trabalho; acessibilidade em espaços públicos e privados; efetivação e garantia de direitos já conquistados, entre outros. Como afirma ainda Osório (2005, p. 23), “Isso demonstra que a inclusão até aqui adotada nas regulamentações normativas, dificilmente é exercitada em sua prática social.” A discursividade tecida sobre a institucionalização da inclusão apresenta-se adornada com novos dizeres e conceitos pseudodemocráticos, mantendo-se, porém velhas práticas e interesses.

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Segundo Bezerra e Araujo (2013, p. 581), “[...] o paradigma inclusivo também engendrou outras formas de abandono, negligência, alienação e preconceito [...], promovendo-se a mercantilização das deficiências.”. Isso porque, ainda para os autores supracitados, “O movimento inclusivista [...] surge e se mantém atrelado aos princípios neoliberais de uma escola e Estado mínimos, obedientes às regras do jogo mercantil, que não reconhece fronteiras éticas ou étnicas, nem assume como referência principal a humanização do homem.”. (BEZERRA; ARAUJO, 2013). Nas últimas décadas, em decorrência de inúmeras crises mundiais, os Estados neoliberais, no Ocidente, passaram a reduzir gastos e a não mais arcar com a manutenção de um modelo denominado de Estado de bem-estar social. Dessa forma, passou a não intervir nas questões sociais, contribuindo para o agravamento da situação já vulnerável em que se encontravam as minorias. Como analisa Neres (2006, p. 14. grifo da autora), Muito mais do que uma imposição do Banco Mundial, o modelo neoliberal, ‘é uma nova roupagem do discurso burguês, frente à crise do capitalismo que mal disfarça a falência do Estado’ em gerenciar o controle dos desabrigados e ociosos, trazidos pela recessão econômica e alto índice de desemprego.

Expressão ideológica dessa conjuntura mais recente, podemos destacar ação da Assembleia-Geral das Nações Unidades que firmou, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tendo como finalidade evitar que atrocidades como as ocorridas em períodos anteriores, como nas duas grandes guerras mundiais, tornassem a se repetir. Documento esse que, em seus princípios, busca reconhecer, mas não assegurar, direitos básicos de sobrevivência, liberdade e dignidade ao ser humano, independente de credo, nacionalidade, raça/etnia, sexo ou gênero. Em seu artigo primeiro, afirma que “[...] todos os seres humanos nascem livres e iguais de dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” (BRASIL, 1995). Mesmo diante de tais princípios básicos, há uma verdadeira negligência dos Estados quanto a seu respeito e efetivação, sendo estes desrespeitados indiscriminadamente e sem pudor, em muitos casos, no espaço educacional, mercado de trabalho, bairros, favelas, entre outros tantos lugares. O Brasil, assim como os demais países capitalistas ocidentais de capitalismo subordinado, tardiamente tem firmado tratados mundiais, acordos e formulação de leis consideradas fundamentais para a melhoria da qualidade de vida das pessoas com deficiência ou outras necessidades educacionais especiais. No caso do Brasil, os principais direitos e avanços assegurados ao sujeito com deficiência foram formalizados a partir da Constituição da República Federativa do Brasil (1988); Estatuto da Criança e do Adolescente (1990); Declaração de Salamanca sobre Princípios, Políticas e Práticas na área das Necessidades Educativas Especiais (1994), da qual o país foi signatário; Convenção da Guatemala (1999), incorporada à legislação nacional mediante o Decreto nº 3.956, de 8 de outubro de 2001 (BRASIL, 2001); Plano Nacional de Educação (2001 - 2010); Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008), além da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, realizada e aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2006, a qual também foi assinada pelo Brasil8. Esses tratados e acordos foram reafirmados e ampliados, sobretudo, no contexto brasileiro posterior à promulgação da Lei de Diretrizes a Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996, mediante a proposição de projetos de leis complementares, que, em seus artigos, incorporam a Educação Especial na perspectiva da 8

O texto da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi oficialmente promulgado, no Brasil, pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. (BRASIL, 2009). 6

educação inclusiva. Tais marcos legais inclusivistas são consideradas, por muitos, como os principais avanços adquiridos em termos de garantias fundamentais no Estado Democrático de Direito. Conforme analisado por Carmo (2001, p. 2), [...] não podemos desconsiderar a importância do respaldo legal, do valor do direito e de sua manutenção no texto legal. Ele, contudo, por si só, não resolve nem tem a capacidade de mudar as relações sociais, mas contribui sobremaneira nos embates jurídicos na luta pela democracia e estado de direito.

Os direitos assegurados pela Declaração dos Direitos Humanos (1948) e/ou pelos inúmeros acordos, convenções e leis firmados, no plano legal-institucional e burocrático dos Estados, apresentam-se, todavia, incapazes de pôr fim às atrocidades cometidas em conflitos armados como os ocorridos no Iraque, em 2002, entre árabes e israelenses desde o fim do século XIX, ditaduras autocráticas e teocratas no Oriente Médio, pobreza extrema em inúmeros países africanos e latino-americanos, desigualdades regionais, miséria e inúmeras formas de exclusão social no Brasil, só para pontuar alguns exemplos. A institucionalização do poder político visa controlar, adestrar e disciplinar os sujeitos, pois, ao mesmo tempo em que apresenta avanços, também retira, nega e negligencia direitos, ficando as promessas de transformação social e inclusão no campo teórico/ideal; logo, distantes da realidade dos principais interessados. Esse panorama evidencia um Estado fragilizado, governos falidos e um sistema judiciário aristocrata, por excelência representante e resultante das novas concepções neoliberais e burguesas na sociedade contemporânea. No caso do Brasil, há, em maior ou menor proporção, disparidade social e econômica entre os estados federativos, pobreza acentuada nas periferias das grandes metrópoles, educação desigual e de baixa qualidade, sistema de saúde precário e segurança pública deficiente e autoritária. Ao mesmo tempo em que o Ministério da Educação (MEC) investiu, em 2001, cerca de R$ 14,5 bilhões em educação no Brasil, o Estado gastou cerca de R$ 101 bilhões em pagamento apenas dos juros das dívidas externas. Estima-se que a dívida externa brasileira aproxima-se de R$ 1 trilhão de reais segundo a Consultoria de Orçamento da Câmara de Deputados e a Secretaria Especial de Informática do Senado Federal - Prodasen. (Cf. OSÓRIO, 2005). No âmbito do direito assegurado aos sujeitos com deficiência, a Constituição da República Federativa do Brasil (1988), em seu Artigo 208, inciso III, garante, para todos, o “atendimento educacional especializado [...], preferencialmente na rede regular de ensino.” Porém, devido à falta de acessibilidade e qualidade das instituições de ensino públicas, despreparo do corpo docente e do quadro de funcionários e recursos pedagógicos limitados, a não efetivação desse direito inibe o desenvolvimento intelectual e social, quando não exclui esses sujeitos. Segundo Mantoan (2005, p. 95), [...] para entender às características desse tipo de organização, [esses serviços] fragmentam e distanciam, categorizam e hierarquizam os seus assistidos, como constatamos frequentemente nas escolas comuns e especiais e nas instituições dedicadas ao atendimento exclusivo de pessoas com deficiência. Embora não seja um traço típico das instituições educacionais brasileiras, temos uma tendência muito forte para a meritocracia, para o elitismo escolar, em todos os níveis de ensino; com isso valorizamos os alunos que correspondem a um modelo idealizado artificialmente e desconsideramos e excluímos os que não conseguem corresponder a ele.

Nesses espaços institucionalizados, quando há práticas inclusivas, em muitos casos, como se apresentam as escolas comuns atuais, pode-se notar a segregação e hierarquização de acordo com as limitações, rendimento, comportamento e dificuldades dos alunos, sem que 7

isso resulte em um acompanhamento pedagógico e práticas didáticas mais efetivas para o desenvolvimento intelectual e psicossocial dos sujeitos. Desse modo, com a precarização e muitas vezes inexistência de recursos e estruturas adequados, contribui-se para a reprodução das desvantagens, discriminação, pobreza e descaso, observando-se, em decorrência, segregação, privação e extermínio. Tal situação permanece como o principal entrave para a (trans)formação de uma nova sociedade, esta pautada na formação humana para a liberdade e para o pleno desenvolvimento do homem, tanto como ser genérico, como em sua individualidade. Considerações finais O presente texto buscou expor, por meio de uma perspectiva sócio-histórica, algumas práticas e seus respectivos desdobramentos perpetrados pelas sociedades ocidentais contra os sujeitos com deficiência e outras singularidades consideradas desviantes da normalidade (im)posta. Nessa direção, apresentamos algumas das principais formas de poder e estratégias de dominação pelas quais passaram e passam esses sujeitos, cooptados em sua subjetividade pelo discurso da docilidade-utilidade (FOUCALT, 2009). Tais práticas foram e continuam intensificadas com surgimento e desenvolvimento do capitalismo, atualmente moldado pela ideologia neoliberal. Os Estados ocidentais, seja pela visão e discursividade religiosa e/ou científica, apresentaram-se como instituições e campos opressores por excelência, por negar a liberdade e plena realização humana, fazendo dos sujeitos com deficiência meros objetos utilizáveis, corpos disciplinados e, portanto, manipuláveis, com reduzido valor. Na contemporaneidade, o movimento inclusivista, forjado no bojo da proposta neoliberal de educação para todos, assegura, sob nova roupagem, a hegemonia desse modo de produção e sua superestrutura jurídico-política, posto que se recorre a medidas paliativas e políticas focais como meio de escamotear o atendimento às necessidades sociais estruturais. Na contramão dessas medidas e seu efeitos, almejamos e defendemos, tal como Bezerra e Araujo (2013, p. 585), Uma práxis em que a ‘inclusão’ não seja mera acomodação reformista, imposta de forma alienada às escolas, mas sim pretexto para a crítica e subversão da própria (des)ordem (neo)liberal vigente; oportunidade para se almejar, e construir, ‘[...] um sistema de educação que lhes assegure [a todos os homens, com ou sem deficiência] um desenvolvimento multilateral e harmonioso que dê a cada um a possibilidade de participar enquanto criador em todas as manifestações de vida humana.’ (LEONTIEV, 1978, p. 284).

Diante dos fatos e problemáticas analisados aqui, acreditamos ser necessária a (pro)posição de uma práxis revolucionária e contestadora como forma de enfrentamento ofensivo às práticas de poder, manipulações discursivas e artimanhas engendradas pelo capitalismo e pela classe detentora dos meios de produção na contemporaneidade alienada. Em síntese, diante da realidade apresentada, pensamos que esforços coletivos precisam ser (re)direcionados para se compreender a necessidade de transformação desta sociedade, com vistas à emergência de uma nova organização social, tendo como finalidade a superação do modo de produção capitalista e a emancipação humana, o que significa, retomando-se o clássico ideal marxiano, passar do reino da necessidade para o reino da liberdade. REFERÊNCIAS BEZERRA, Giovani Ferreira. Enquanto não brotam as flores vivas: crítica à pedagogia da inclusão. 2012. 270f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Mato 8

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