RIBEIRO, Alan Pereira [Artigo - Má Educação as Ciências Sociais como fonte de análises]

July 27, 2017 | Autor: A. Ribeiro | Categoria: Cinema, Sociologia, História, Antropologia
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Anais do II Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí – Realização Cursos de História, Letras, Direito e Psicologia – ISSN 2178-1281

MÁ EDUCAÇÃO: AS CIÊNCIAS SOCIAIS COMO FONTE DE ANÁLISES *

Alan Pereira Ribeiro (UFMS) [email protected]

RESUMO O cinema, nas últimas décadas, vem exercendo papel fundamental na desconstrução, em outros casos na legitimação, de alguns paradigmas que perpassam o campo do gênero e das sexualidades. Considerando a importância da sétima arte, pretendemos analisar o filme Má Educação (2004), de Pedro Almodóvar, fundamentando-nos em estudos realizados pelas Ciências Sociais. Objetivamos enfocar o submundo trans expresso na obra cinematográfica almodovariana, que aborda sexo, droga, prostituição, violências físicas e simbólicas. Compreendemos a importância do cinema e das Ciências Sociais na análise de diversos discursos, entendidos como moralistas, tabus e preconceitos construídos culturalmente e legitimados durante séculos em nossa sociedade. Devido às transformações por que passa a cultura, o cinema transforma-se em um dos diversos meios de problematização da realidade social e possibilita um diálogo entre seus diferentes atores. Palavras-chave: Sexualidade. Submundo trans. Cinema.

BAD EDUCATION: SOCIAL SCIENCES AS SOURCE REVIEW

ABSTRACT Cinema has been playing the role of deconstructing or legitimizing some paradigms in terms of gender and sexuality in the last few decades. Taking into account the importance of the 7th art, we analyze the movie Bad Education (2004), directed by Pedro Almodóvar, basing ourselves on Social Sciences studies. Our objective is to focus the transsexual underworld expressed in Almodóvar‟s cinematography, which addresses sex, drugs, prostitution, physical and symbolic violence. We understand the importance that cinema and Social Sciences have in the analysis of speech, seen as moralistic, with taboos and prejudice culturally produced and legitimized for centuries in our society. Considering the changes through which culture goes, cinema has become one of the several review sources to analyze social reality and enables a dialogue among social agents. KEY-WORDS: Sexuality. Transsexual underworld. Cinema.

INTRODUÇÃO O cinema possibilita a representação de diversas realidades sociais. Pode desempenhar uma função educativa, democrática e transformadora. Sua função educativa e democrática só se faz possível a partir do momento em que os diversos setores excluídos da sociedade se colocarem como protagonistas, suas produções se encontrarem disponíveis a toda sociedade, independente de seu poder econômico, permitindo o surgimento de uma nova sociedade menos desigual e mais justa. Sua função transformadora se apresenta principalmente no âmbito cultural, considerando as constantes alterações provocadas em nossos valores, crenças e padrões comportamentais. O cineasta Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281

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Pedro Almodóvar busca, por meio de suas produções, democratizar o cinema e transformar a sociedade, objetivando a alteração das diversas visões exercidas sobre as ditas sexualidades minoritárias, que se expressam nos múltiplos espaços urbanos. Como objeto de análise escolhi o filme, La mala educación (2004), produzido e dirigido por Pedro Almodóvar importante cineasta espanhol. A película se apresenta como uma trama envolvente e apaixonante, cheia de mistérios e revelações, características marcantes de suas produções. As relações temporais1 nos apresentam confusas no início do filme. Já no final da película, tornam-se completamente claras e reveladoras. O filme La mala educación é considerado por muitos, sinônimo de sexo, paixão, prostituição, drogas e violências. Os atores apresentam concepções opostas às “normas” socialmente aceitas. Percebe-se que a obra cinematográfica busca privilegiar as ditas sexualidades desviantes, 2 representadas por travestis, homossexuais e bissexuais, excluindo, propositalmente o papel dominante do heterossexual, representado em muitos filmes hollywoodianos. Almodóvar inverte a hierarquização das sexualidades, colocando a heterossexualidade em um ocultismo existencial.3 Suas obras proporcionam diversas leituras sobre a sociedade, exercendo múltiplas críticas àqueles pilares centrais que a sustentam. Religião, moral e ética são colocadas em xeque. Problematiza-se a realidade por que passam os diversos homossexuais e travestis, representados nessa obra por Enrique Goded (Fele Martinez), jovem cineasta espanhol que enfrenta uma crise de criatividade cinematográfica, Hanrel Andrade (Gael García Bernal) iniciante ator de teatro que se passa por seu irmão Inácio Rodrigues (Francisco Boira) personagem esse que descobre a travestilidade no decorrer de sua vida. Inácio, durante a infância, é o antigo amor de Enrique, amor esse descoberto durante sua escolarização em um Colégio Jesuíta. Colégio esse dirigido por padres, entre eles padre Manolo (Daniel Giménez Cacho), jovem professor de Literatura e diretor da instituição, que desrespeitando as doutrinas religiosas abusa sexualmente de Inácio. Por meio dessa breve introdução a respeito do filme La mala educación, percebemos a importância do cinema e das Ciências Sociais em nossa sociedade. O primeiro agindo no imaginário das pessoas; a segunda buscando desvendar e interpretar os mistérios, fatos e transformações sociais. Buscaremos em um primeiro momento, apresentar o panorama social e político em que nasceu o cinema de Pedro Almodóvar. Logo em seguida, faremos algumas análises do filme em si, colocando as Ciências Sociais a dialogar com as problemáticas apresentadas na película. 1.

Uma Madri de aspirações e possibilidades

Pedro Almodóvar nasceu numa Espanha franquista e ditatorial durante a década de cinquenta, especificamente em 1951, na pequena Calzada de Calatrava, província de Ciudad Real. Após oito anos, sua família decide emigrar para Extremadura, local onde

* Acadêmico do Curso de Ciências Sociais da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Câmpus de Naviraí (UFMS-CPNV). Bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. 1 Pedro Almodóvar propõe uma narrativa dentro de uma narrativa, onde passado e presente se encontram e se desencontram. 2 Entende-se por sexualidades desviantes toda e qualquer prática que se apresente contra determinada norma vigente, ou seja, a uma sexualidade hegemônica, representada aqui pela heterossexualidade, levando a estigmatização de Gays, Bissexuais, Lésbicas, Transexuais, Travestis, Transgêneros (GBLTs). 3 Almodóvar não valoriza, em diversas produções, o papel da heterossexualidade. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281

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Almodóvar conclui seu ensino fundamental e médio. Desde criança anseia estudar cinema. Vê-se na necessidade de emigrar para Madri.4 A capital Madri representa, nesse período histórico, para muitos jovens do interior, mesmo durante a ditadura de Franco, um local de possibilidades e de liberdades. Com dezesseis anos, já aspirando ares de liberdade, decide se aventurar em Madri, porém, logo se encontra em grandes dificuldades financeiras, sua decepção se agrava ao descobrir que o governo Franco acaba de fechar a Escola Oficial de Cinema, reduto de grandes estudiosos da sétima arte.5 As constantes dificuldades enfrentadas por Almodóvar nesse período o impedem de realizar seus sonhos, porém, a persistência e a autoconfiança não o deixaram desistir de seus objetivos. Buscando, mesmo com o fechamento da Escola Oficial de Cinema, se alto instruir na arte do cinema, vindo após alguns anos de trabalho árduo conseguir comprar sua primeira câmara Super 8 mm. Com 29 anos, produz de 1974 a 1979 diversos curtasmetragens com a ajuda de seus amigos. Seu primeiro longa-metragem6, Pepi, Luci, Bom y outras chicas del montón (1980), representa um novo período para o cinema espanhol, por meio da ironia e da irreverência utilizada pelo cineasta. Essa película questionou diversos valores e costumes que até então vigoravam, provocando escândalo, ao mesmo tempo em que despertava admiração por grande parte da sociedade espanhola, não acostumada com esse novo gênero cinematográfico. Suas primeiras obras são consideradas, segundo Santana, G.: [...] de tom pornográfico resultantes da influência do underground madrilenho, do qual Almodóvar participava com amigos que desenvolviam atividades artísticas no campo da música, quadrinhos, artes plásticas, teatros e fotografias [que buscavam retratar as diversas transformações sociais, culturais e políticas vivenciadas durante o período de 7 redemocratização].

Suas novas produções cinematográficas buscaram problematizar diversas questões políticas, principalmente após a década de 80, contribuindo para a ressocialização da sociedade, ou seja, na construção de novos valores devido ao desgaste das antigas instituições, principalmente a família e a escola, por não responder às diversas transformações sociais. O cinema tornou-se, nesse período, mecanismo fundamental de atualização e formação de novos valores, ligando a Espanha aos grandes centros culturais, como Estados Unidos e restante da Europa, até o momento distante devido à instabilidade política e à constante repressão exercida pelo governo Franco. Após esse período repressivo, o cinema espanhol passou a respirar novos ares de liberdade e autenticidade, possibilitando a criação de variados gêneros cinematográficos. Suas novas produções dialogaram com diversos setores da sociedade. A década de 1990 é considerada o período mais rico do cinema espanhol devido a sua variedade de obras e estilos, e de sua maior proximidade com a realidade social, formando uma nova relação com o público. “Um período que permanece na memória cultural espanhola como sendo de profunda e intensa criação, recordes de bilheteria e filmes 4

Hidalgo, J. E. Autocitação Paródica em Pedro Almodóvar: uma Poética da Pós-Modernidade. Poéticas Visuais, Bauru, SP, UNESP, V 1, Nº 1, p. 81-95, 2010. 5 Ibid. 6 Ano esse que coincide com o nascimento da democracia espanhola, após a morte de Francisco Franco. 7 Santana, G. Riso, Lágrima, Ironia e Tratados: Pedro Almodóvar – Genialidade e Paradoxo em Construção Permanente. 2007. 365 f. Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Sociologia) - Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia, São Paulo, 2007. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281

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cultuados como marcos históricos de discussão e de reflexão que, em fim, ficará eternizado entre os cinéfilos do país e em sua cinematografia.”8 Percebe-se que as constantes dificuldades enfrentadas por Almodóvar, devido às mais variadas transformações porque passava a sociedade espanhola, o possibilitaram a um maior conhecimento a respeito da imponente Madri, o colocando mais próximo de suas belezas e de seus problemas sociais. Almodóvar se utiliza, como nenhum outro, de suas experiências de vida, e do cotidiano da cidade como fonte de criação para suas futuras obras cinematográficas. Tendo, como nenhum outro, a audácia de se autorretratar em seus filmes, em La mala educación (2004), se autorretrata, por meio do personagem Enrique Goded, jovem produtor de cinema que se utiliza do mesmo método como fonte de criação para suas novas obras cinematográficas. O filme que se coloca em análise, La mala educación (2004), Foi selecionado para inaugurar o festival de Cannes. Recebe críticas extraordinárias em todo mundo. Recebe inúmeras indicações (Independent Spirit Awards, Baftas, Cesar, Prêmios Europeus de Cinema) e consegue o prestigioso prêmio de Melhor Filme Extrangeiro do Círculo de Críticos de 9 Nova York [...].

Suas produções foram ganhando cada vez mais notoriedade internacional, “„com Todo sobre mi madre‟ [1999] consegue seu primeiro Oscar [na categoria] de melhor filme estrangeiro, além do Globo de Ouro, o César, 3 Prêmios E.F.A. de Cinema Europeu, o David de Donatello, 2 Baftas, 7 Goyas e 45 prêmios mais.”10 Almodóvar em seus diversos filmes busca romper com a naturalização dos gêneros, propondo a quebra de múltiplos paradigmas. Por ser um dos primeiros cineastas a valorizar as sexualidades minoritárias. Esta problemática é expressada pelos papeis de Lola (Toni Cantó), Agrado (Antonia San Juan)11 e por Inácio Rodrigues (Francisco Boira)12, representações legítimas da transformação do gênero e da construção da travestilidade, assim como dos estigmas sociais associados a estas categorias, questões essas que serão analisadas no decorrer desse trabalho. Em suma, a Madri, de Pedro Almodóvar, retrata sua busca por liberdade e autenticidade, principalmente após os anos 70, período marcado pelo florescimento de uma nova contracultura motivada pelos jovens e pelos cinéfilos que aspiravam mais liberdade de expressão, assim como, o retorno à democracia devido ao desgaste que vinha sofrendo a ditadura de Franco, após 30 anos no poder. Ken Goffman e Dan Joy buscam definir o conceito de contracultura: A contra cultura é „ruptura‟ por definição, mas também é uma espécie de tradição. É a tradição de romper com a tradição, ou de atravessar as tradições do presente de modo a abrir uma janela para aquela dimensão mais profunda da possibilidade humana que é a finte perene do verdadeiro novo – e verdadeiramente grandioso – na expressão e no esforço humano. Dessa forma, a contracultura pode ser uma tradição que ataca e dá início a 13 quase todas as outras tradições.

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Ibid., p. 16.

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HIDALGO, 2010, p. 84. Ibid., p. 84. 11 Personagens travestis do filme Tudo Sobre Mi Madre de 1999. 12 Encena uma personagem travesti no filme La mala educación de 2004. 13 GOFFAMAN; JOY , 2007 apud PIZA, R. N. T. Limites Traçados: marginalidade na Madri de Almodóvar. Contemporânea, Rio de Janeiro, RJ, UERJ, V 8, Nº 1, p. 13 - 26, 2010. 10

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A contracultura, assim como, as múltiplas produções cinematográficas espanholas, colocaram em crise os principais paradigmas existentes. Percebe-se que as produções cinematográficas e intelectuais desse período buscaram romper com inúmeras verdades, normas e valores cristalizados. O desgaste tomava conta das principais instituições espanholas, devido à incapacidade de resposta as constantes transformações sociais nos últimos anos do regime franquista. Nesse período de grandes agitações, as produções almodovarianas mostraram-se como meio possibilitador de transformações. Elas utilizam-se da ironia e do sarcasmo como forma de crítica social, propondo alternativas de transformação e valorização dos diversos grupos marginalizados.

2.

“La Visita”: a construção da travestilidade

Proponho analisar alguns pontos que vejo como fundamentais nesta obra, principalmente aqueles em que se faz presente o papel da travesti, objetivo principal dessa análise. Almodóvar procura valorizar em suas obras cinematográficas as múltiplas sexualidades estigmatizadas, questionando seus lugares na margem, colocando-as como protagonistas a fim de afirmar suas identidades, “dissolvendo alguns princípios estabelecidos sobre o corpo, gênero e identidade”14, naturalizados e cristalizados pela sociedade. Os personagens das margens se apresentam como potencial crítica às regras de uma sociedade espanhola desestabilizada pelo fracasso de suas instituições familiares, religiosas e políticas. A positivação da margem esta presente em diversas obras almodovariana, tendo destaque a travestilidade, presente em obras como Tudo Sobre Mi Madre de 1999, representada pelas personagens Agrado (Antonia San Juan) e Lola (Toni Cantó),15 em La mala educación de 2004, obra essa arquitetada em torno dos personagens Inácio Rodrigues (Francisco Boira), Zhara (Gael García Bernal) e Paquito (Javier Cámara), personagens essas que se constrói e representam suas identidades travestis de diversas formas, exercendo uma mistura de (im) possibilidades.

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MALUF, Sônia Weidner. Corpo e desejo: tudo sobre minha mãe e o gênero nas margens. Revistas de Estudos Feministas, vol. 10, nº 1, Jan. 2002, pp. 143-153 (trabalho apresentado originalmente na Mesa Redonda “Corpo, Cultura e textualidade”, Seminário Internacional Fazendo Gênero 4, Florianópolis, UFSC, maio de 2000). 15 Película analisada por MALUF, 2002. PASSAMANI, 2010. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281

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“A Visita”16 é apresentada por Almodóvar, como a narrativa dentro da narrativa, onde passado e presente se encontram e se desencontram, havendo a produção de uma obra cinematográfica dentro de outra, narrativa essa capaz de surpreender os mais experientes cinéfilos devido ao seu entrelaçamento de histórias. Considerando sua complexidade, proponho dividir em duas partes a descrição dessa película: primeiro descreverei sobre “A Visita”; em um segundo momento sobre o desfecho do filme em si, fora desse contexto de ficção dentro da própria ficção. O cenário principal de “A visita” representado por suas imagens, símbolos e significados, se apresenta no Colégio Jesuíta San Roan. Lá Inácio sofre constantes abusos sexuais durante sua escolarização. Abusos esses praticados por Padre Manolo. Inácio descobre-se apaixonado por Enrique. As trocas de carinho e práticas homoafetivas se fizeram constantes, relacionamento esse que durou o tempo necessário para construir mais do que laços de amizade. Porém, a ingenuidade de Inácio o fez ser enganado e sofrer constantes abusos sexuais por Padre Manolo, que os surpreendeu, após inspeção de rotina no dormitório, trancados no banheiro. Padre Manolo prometendo não expulsar Enrique, aproveita-se do ocorrido e troca carinhos com Inácio. No dia seguinte, Enrique é forçado a sair do colégio, pois é considerado um empecilho no relacionamento de Inácio com o Padre. Em um segundo momento, Inácio se apresenta em “A Visita”, já em sua idade adulta, com o nome de Zhara, uma vez que o mesmo representa e completa sua nova identidade, assumida e construída em torno da travestilidade. Identidade essa considerada uma das múltiplas possibilidades de se exercer e construir a travestilidade em seu corpo, se apresenta de forma oposição ao modelo identitário hegemônico. Segundo Bento, B.: Falar de „identificação‟ impõe a tarefa de refletir sobre os jogos de negociação e de afirmação, de repulsa pelo „outro‟, pelos que habitam as margens, e de atração por modelos idealizados. Ao mesmo tempo que se identificar envolve um trabalho discursivo de fechamento e de demarcação de fronteiras simbólicas, simultaneamente significa o reconhecimento de características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ainda que idealmente. São as identificações que revelam o processo mesmo de 17 organização da identidade („Eu quero ser um homem/ uma mulher).

São os processos de identificação a um grupo determinado, hegemonicamente representado pela heterossexualidade em oposição aqui à travestilidade, que exclui e marginaliza, segundo Berenice Bento, principalmente as travestis, as/os transexuais e as/os transgêneros, por meio desse modelo idealista e irreal de identidade, construído e disseminado no meio social, se dá a hierarquização das sexualidades, colocando à margem as sexualidades minoritárias ao longo da história. Em oposição a esses modelos idealizados, surge em “A visita” uma nova personagem, Paquito, amiga de Zhara. Ambas sobrevivem de pequenos furtos, prostituições e apresentações na casa noturna La Bomba, na cidade de Madri. Paquito após sua estreia na casa de show apresenta Zhara como próxima atração. [Fala de Paquito] “Ela se define como uma... mistura de deserto, casualidade e cafeteria. Ela é uma grande artista e uma grande, grande amiga minha. Com vocês logo a seguir... um mistério e a fascinação da autêntica, a inimitável Zhara”. O mistério que se refere Paquito se apresenta em torno da sua sexualidade, já sua autenticidade é 16

“A Visita” é escrita por Inácio se apresentando como sua obra autobiografia. Apropriada posteriormente por seu irmão Hanrel Andrade com o objetivo de transforma-la em obra cinematográfica, com a ajuda de Enrique Goded, jovem cineasta. 17 Bento, B. A reinvenção do corpo: Sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. p. 205. Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281

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representada por suas intervenções corporais, proporcionando a construção do feminino ou de algo que aproxime do mesmo.

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La Bomba é palco de encontros e desencontros, representa para Zhara e Paquito o espaço público; assim como a rua, é vista como local de batalha onde as mesmas retiram seus sustentos e financiam suas intervenções corporais. São nesses espaços que as travestis trocam experiências, entram em contato com drogas, se prostituem etc. Como fica evidente na fala de Paquito ao questionar Zhara: “ai nada como se encher de drogas e de hormônios pra fica doidinha como você né bichona?”. Apresentando o envolvimento de ambas com drogas e utilização de hormônios, o primeiro como meio de encarar a luta diária por sobrevivência19, o segundo, utilizado como forma de construir seus corpos mais femininos. Contando com a ajuda de sua amiga, Zhara anseia se vingar do Padre que a abusava sexualmente durante sua infância. Zhara decide, após se encontrar com o padre, exigir um milhão, em dinheiro, como meio de financiar sua transformação, afirmando que deseja “uma vida melhor e um corpo melhor”. [Padre Manolo, se negando a aceitar, afirmando] “E oque eu tenho haver com essas melhorias?” [Zhara] “Você podia me ajudara financia-los.” O desfecho de “A Visita” se aproxima, não aceitando a chantagem Padre Manolo contando com a ajuda de Padre José, a executa. No segundo momento, saindo de “A Visita”, o desfecho dessa película apresenta Inácio já na idade adulta, como dependente químico,20 encontra na prostituição e na prática de pequenos furtos o único meio de alimentar seu vício, furtos esses praticados contra a própria família. Seu envolvimento com drogas o leva a morte por overdose.

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Zhara em apresentação no teatro Lá Bomba. Para um melhor entendimento sobre a relação das travestis e transexuais com o uso de drogas, ver BENEDETI, 2005; BENTO, 2006; PELÚCIO, 2005. 20 Usuária de Heroína e Cocaína. 19

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As intervenções corporais praticadas pelas travestis Inácio Rodrigues (Francisco Boira), Zhara (Gael García Bernal) e Paquito (Javier Cámara), une ambas pela busca de uma identidade travesti, capaz de motivá-las a promover diversas transformações físicas e sociais. Seus corpos transformados representam a construção simbólica do feminino, ou seja, a construção de um novo gênero que se opõe ao binarismo masculino/feminino. Como afirma Marcos Benedetti: As travestis constroem seus corpos e suas vidas na direção de um feminino ou de algo que elas chamam de feminino. Em sua linguagem êmica, querem ser mulher ou se sentir mulher. Se sentir mulher é uma expressão que por si só já traz algumas pistas de como esse feminino é concebido, construído e vivenciado pelas travestis. De fato, a maior parte não se iguala às mulheres, nem tampouco deseja fazê-lo. O feminino travesti não é o feminino das mulheres. É um feminino que não abdica de características masculinas, porque se constitui em um constante fluir entre esses pólos, quase como se cada contexto ou situação propiciasse uma mistura 22 especifica dos ingredientes do gênero. (Grifo do autor)

Percebe-se que em suas produções Almodóvar “[...] não trata os gêneros de forma binária. Ele problematiza o binarismo, a fim de abrir espaço para a diversidade, não apenas em termo de sexualidade, mas de gestão da vida mesma”.23 Problematizando a construção dos papeis de gênero e de sexualidade, levando a valorização de suas diferenças e particularidades, provocando o rompimento com aqueles padrões essencializados e naturalizados de classificação. As/os transexuais, as/os transgêneros e as travestis ao romperem com esse binarismo excludente apresentando-se às Ciências Sociais como nova proposta paradigmática, problematizando as múltiplas possibilidades de representações e construções dos gêneros e das sexualidades, provocando a desconstrução do homem e da mulher universal. O rompimento dessas verdades paradigmáticas encontra como campo propício o âmbito das Ciências Sociais, pois as mesmas colocam em questionamento a naturalização do corpo imposta pelas ciências biológicas. Questionando essas verdades biologizantes sobre o corpo, Benedetti afirma que “[...] não haveria um estrato puramente biológico do corpo, governado por leis naturais, como querem as ciências médicas e biológicas. O corpo, mesmo no seu nível mais „natural‟, é um produto social, porque esta (de que há um nível puramente natural) é a nossa representação sobre ele”.24 As verdades retratadas pelas ciências biológicas partem de representações e construções socioculturais. 21

Inácio Rodrigues (Francisco Boira). Filme La mala Educación (2004), de Pedro Almodóvar. BENEDETTI, M. R. Toda Feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. p. 96. 23 PASSAMANI, Guilherme Rodrigues (Org.). Ciclo de Cinema: entre histórias, teorias e reflexões. Campo Grande: UFMS, 2010. p. 39. 22

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BENEDETTI, 2005, p. 53.

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Nossas representações sobre o corpo, perpassando o campo do social, são disseminadas pelos meios de comunicação de massa e respaldadas principalmente pelas ciências naturais, sendo posteriormente naturalizados pelo senso comum, oque contribui para as múltiplas verdades exercidas sobre o corpo, principalmente sobre os gêneros e as sexualidades minoritárias. Segundo Berenice Bento, “as instituições sociais produzem e reproduzem as margens por meio de duas táticas simultâneas: pela exposição discursiva daqueles que estão fora das normas de gênero, por intermédio das reiterações prescritivas, dos insultos, e pelo ocultamento, pela invisibilização.”25 As ciências humanas representam a “esquerda”, por contribuir na desconstrução desses discursos excludentes, tendo “[...] a antropologia e as ciências sociais [...] [passado] a conquistar e explorar novos temas e objetos, imprimindo às análises novas interpretações sobre as diferenças entre homens e mulheres, sobre o corpo, o sexo e as relações sociais.”26 Principalmente após a década de 60, sendo impulsionada pelo surgimento e fortalecimento do movimento feminista, responsável por questionar as diversas verdades formuladas sobre o gênero e a sexualidade, lutando pela conquista de novos espaços e direitos. As personagens travestis descritas por Benedetti em suas observações de campo se assemelham em diversos momentos às personagens Zhara, Paquito e Inácio, principalmente no que diz respeito às intervenções corporais proporcionadas pelas cirurgias plásticas, aplicações de silicones e ingestão de hormônios femininos. Sendo essas as principais técnicas utilizadas na construção do corpo travesti, de forma que o mesmo se aproxime cada vez mais de uma estética feminina. O uso dessas técnicas, segundo Benedetti, proporciona no corpo das travestis curvas mais arredondadas, diminuição dos pelos, definição do nariz, bocas mais femininas, entre outras, possibilitando novos contornos corporais. Buscando, através desse novo corpo, uma maior aproximação com o papel do feminino capaz de causar um sentimento de pertencimento ao novo gênero. Porém, segundo o autor, os custos elevados das cirurgias plásticas e a dificuldade de se obter hormônios femininos tornam essas técnicas acessíveis a poucas.27 Inácio deseja essa transformação, ao chantagear o Senhor Berenguer, exigindo do mesmo dinheiro, como meio de financiar sua transformação corporal, afirmando que antes de se internar em uma clínica de recuperação, deseja se concertar. Termo bastante utilizado pelas travestis. Concertar o corpo representa para as travestis a construção do feminino, ou de algo que se aproximo do mesmo, de forma que as distanciem do masculino. O corpo construído ou concertado se entende como autentico ao representar o ideal do feminino para as travestis. Considerando que: As travestis, ao investir tempo, dinheiro e emoção nos processos de alteração corporal, não estão concebendo o corpo como um mero suporte de significados. O corpo das travestis é, sobretudo, uma linguagem; é no corpo e por meio dele que os significados do feminino e do masculino se concretizam e conferem à pessoa suas qualidades sociais. É no corpo que as travestis se produzem em quanto sujeitos [constituídos de códigos e 28 significas formadores de suas identidades].

O corpo, para ambas, simboliza a representação das praticas e relações sociais presentes no universo trans. Os seios principal símbolo do feminino é visto por Inácio como a única coisa “divina” em seu corpo. Em sua fala a personagem evidencia isso: “Sei que 25

BENTO, 2006, p. 209. BENEDETTI, 2005, p. 26. 27 Ibid. 28 Ibid. 26

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meus peitos são divinos mais o resto... em fim não vamos falar disso. Ficar linda custa muito dinheiro Padre Manolo, acho que um milhão bastaria”. Inácio pretende se concertar, almejando um corpo ideal, não deixa de reproduzir os padrões de beleza presente no universo das sexualidades. A busca pelo belo é prometida às travestis por meio de inúmeras intervenções corporais. Ao ver suas tetas como a única coisa bela em seu corpo, Inácio deixa transparecer a vontade e o desejo de assumir uma nova identidade, incorporando e construindo em torno de um novo gênero. Essa vontade de ser caracteriza-se como período de transição, de total construção do novo, motivada muitas vezes pela insatisfação. Como observa Sônia W. Maluf: [O corpo das travestis] Mais que o território dado a priori onde operaria a transformação, o corpo transformado apresenta-se como o espaço de reterritorialização desses sujeitos da margem. Por um lado, realiza-se algo que é da ordem de um desejo que parece dado previamente [...]. Por outro lado, o processo de transformação, de torna-se outro, é o que constitui, o que dá corporalidade a esse desejo e ao sujeito desse desejo. O corpo é, nessa experiência, desejo e objeto ao mesmo tempo. Ele deixa de ser uma substância previamente dada (o reino da natureza), em cima da qual irá se inscrever o que é da ordem da cultura, ou seja, enquanto experiência que 29 reúne afeto, afeições, habitus [...].

O corpo transformado das travestis rompe com inúmeras verdades cristalizadas, possibilitam sobre ele diversas leituras. Por meio dessas leituras que o corpo, o gênero e a sexualidade, vêm nas ultimas décadas, significativamente, sendo explorado pelas Ciências Sociais, principalmente no âmbito da Antropologia do Corpo e da Saúde, que tem contribuindo expressiva na desconstrução, ao mesmo tempo, na construção de novos saberes sobre os gêneros e as sexualidades, divulgando trabalhos bem originais.30 Minha análise sobre o filme La mala educación, de Pedro Almodóvar, se apresenta apenas como uma das múltiplas possibilidades de análises, visto que o cinema em conjunto com as Ciências Sociais possibilita o resgate e a valorização desses personagens que habitam a margem de nossa sociedade. Inácio, Zhara e Paquito ao afirmarem suas identidades travestis, assim como, Henrique Goded ao afirmar sua identidade homossexual, requerem novos meios de representar suas identidades de forma a não serem discriminadas(os) socialmente. Ao mesmo tempo, esses personagens da margem vem ocupando novos espaços. O cinema apresenta-se como meio para ressignificar a representação de diversas realidades sociais, agindo algumas vezes como desconstrutor de estigmas e estereótipos legitimados e naturalizados ao longo da história. Almodóvar, por meio de suas produções cinematográficas, problematiza estas personagens, ao mesmo tempo em que as torna protagonistas, proporcionando uma maior positivação de suas identidades, sejam elas de gênero ou de sexualidade, contribuindo de maneira significativa na democratização e transformação dos múltiplos espaços sociais.

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MALUF, 2002, p. 147. BENEDETTI, 2005, p. 51-55.

Textos Completos: II Congresso Internacional de História da UFG/Jataí: História e Mídia – ISSN 2178-1281

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