RIBEIRO, I. S. Os Secularistas Cristãos

June 8, 2017 | Autor: Isabella Ribeiro | Categoria: Arabic Historiography (History), Arab Culture, Islam and Secularism
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO  FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS  HUMANAS  Cultura Árabe II                              Professora Dra. Arlene Elizabeth Clemesha           

Os Secularistas Cristãos        Isabella Sales Ribeiro (8978447)            São Paulo / 2015 

1. Introdução  O  século  XIX  no  mundo  árabe  foi  marcado  pelas  reformas  (​ tanzimat​ )  efetuadas  pelo  governo  do,  então,  Império  Otomano, seja  na esfera  administrativa,  judiciária  ou  legislativa,  como  tentativa  de  remediar  a  decadência  eminente  deste  império  (desde  o  século XVIII).  Já não havia,  como  outrora  na comunidade islâmica  (umma),  um  sentimento  que  agregasse  a  população  da  mesma  forma  que  Muhammad  foi  capaz  de  inspirar;  as 

comunidades  estabeleciam  laços  de 

solidariedade  religiosa  muito  herméticos,  afastados  uma  solidadriedade  embasada  em fatores culturais ou sociais.  Estava  colocado  o  problema  de  como  conciliar  o  mundo  moderno  com  as  estruturas  religiosas que  regiam  a  organização  política  e  social de pilares islâmicos.  Por isso, havia  de se pensar novos  modelos de Estado, educação  e legislação, que  contemplassem  as  variadas  confissões  religiosas,  as  diferenças  culturais  e,  ainda,  elaborar  uma ideia de  nação  que se aplicasse  a  tal  conjuntura e que  preservasse o  Mundo Árabe (no caso,  sob o Império  Otomano)  do  imperialismo europeu. Após um  longo  período  de  enrijecimento  da  filosofia  e  demais  ciências,  o  contato  dos  intelectuais  árabes  com  a  produção  científica  europeia  proporcionou  algumas  mudanças  revigorantes,  mas  também  representava  a  ameaça  de  supressão  da  cultura local por elementos que não se adequariam a ela.  Esses  intelectuais  tiveram  a  tarefa  de refletir  sobre  como  o  aprendizado  que  experienciavam  ou  importavam  do  exterior  poderiam  confluir  para  mudanças  benéficas  nos  países  do  qual  se  originavam.  Os autores citados neste trabalho são  reconhecidos  como  “secularistas  cristãos”,  pela  sua  identificação  religiosa  pessoal  ou  familiar  e  pelo   modo  como  pensavam  a  organização  política  ideal  para  seu  tempo. Sobre a cunhagem do termo “secularismo” em árabe, se lê que:  The  early   Arab  debate  on  secularism  centred  mainly  on  the  relationship  between  religion  and  state, and  on matching European  successes in science,  technology and governance. ‘Secularism’  was  translated  into  Arabic  either   as  ​ ‘ilmaniyah​ ,  a  neologism  derived  from  ​ ‘ilm  ​ (science  or  knowledge)  or  as ​ ‘alamaniyah​ ,  derived  from  ​ ‘alam ​ (world or universe). It has been suggested that  the  use  of any other translation, such  as la diniyah​ , that implied the exclusion  or marginalization  of  religion,  would have met with outright rejection by Muslims. It was therefore necessary  to introduce 

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ir  through  a   term   that  implied  knowledge  and  success, wich Islam not only encouraged  but  also  demanded.  (TAMIMI, 1990 : 17) 

 

2. As missões religiosas na Síria  O  contato  dos  intelectuais  árabes  com  a  ciência  que  se  desenvolvia  na   Europa  está  intimamente  ligado  às  missões  cristãs  (católicas  e  protestantes)  que  intensificaram  sua   presença  nos  territórios  otomanos,   especialmente  a  partir  dos  governos  de  Muhammad  ‘Ali  e  Ibraim  Pasha  ­  que  aboliu  as  leis  de  exceção  para  não­muçulmanos  na  década  de  1830  ­  e  do  edito  Hatt­i  Humayun,  do  sultão  Abdulmejid  em  1856, 

que  também  estipulava  condições  igualitárias  para  

muçulmanos  e  não­muçulmanos.  Além  disso,  a imprensa periódica árabe viveu  um  enorme  florescimento  decorrente  das  iniciativas  dessas  missões  e  dos  escritores  que com elas se formaram.  Em  uma  população  composta  aproximadamente  por  65% de  islâmicos, 31%  de  cristãos  e  4%  de  drusos,  a  região  era  segmentada  em  comunidades  religiosas  com  pouca  solidariedade  nacional.  Até  por  volta  da  década  de  1830,  não  havia  praticamente  nenhuma  presença  efetiva  de  missões religiosas  estrangeiras,  a não  ser  a  jesuítica  (que,  no  entanto,  tinha  sua  atuação  muito  limitada).  Ademais,  as  escolas  eram predominantemente ligadas a uma instituição de fé e recebiam apenas  alunos  de  seus  respectivos  credos.  A  falta  sentimento  de  nacionalidade  também  produziu  uma   desvalorização  quase  absoluta  da  língua  e  cultura  escrita  árabes,  relegando a raras escolas o papel de perpetuar o ensino do idioma nativo.  Antes  das  escolas  fundadas  pelas  missões,  uma  das  únicas  escolas  locais   em  que  perdurava  o  estudo  da  língua  árabe  era  ​ ‘Ayn  Waraqa​ ,  um  seminário  maronita  frequentado por futuros intelectuais do secularismo cristão. Com o trabalho  de alguns  dos estudiosos  que  serão  tratados a seguir, em especial Nasif al­Yazeji e  Butrus  al­Bustani,  a  valorização  da  língua  árabe  foi  retomada,  enquanto  cultura  e  enquanto  tópico  essencial  no  currículo  escolar  de  qualquer  instituição.  Outra 

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característica  do  cenário  educacional era  parca  disponibilidade de livros  e materiais  didáticos, especialmente em  árabe,  devido  ao  desenvolvimento  restrito  da imprensa  local.  Isso também  é  fator  importante  para entender a presença tímida de periódicos  nos  países  árabes,  exceto  por  aqueles  governamentais.  O  cenário  da  imprensa  árabe  passou   por  grandes  mudanças  após  a  modernização  trazida  pela  imprensa  protestante, que mudara sua sede do Egito para Beirute.    

3. Nasif al­Yazeji  Intelectual  importantíssimo  para  o  florescimento  dos  estudos  árabes  e  da  retoma da língua, Nasif  al­Yazeji  (1800­ 1871) era um  estudioso  de  família cristã do  Líbano  que,  por não se contentar  com a educação restrita a que  teve acesso em sua  infância,  buscou  se  aprofundar  no  conhecimento  da  língua  e  literatura  árabes  pesquisando  o  acervo  de  mosteiros  e  outras  instituições  locais. Se  especializou  no  estudo  da língua  e  por meio de tais pesquisas, resgatou materiais pouco conhecidos  e  de  grande   relevância  na  literatura  árabe.  Se  tornou  entusiasta  e  divulgador  do  estudo  do idioma  e trabalhou para que  seu  ensino  fosse  ampliado  e  resgatado  com  a importância que deve se dar a língua materna de uma população.   Al­Yazeji  não  se  alfabetizou  em  nenhuma  outra  língua  estrangeira  ­   o  que  teria  restringido  seu  campo  de  atuação  ­,  mas  se  empenhou  firmemente  na  produção  de   materiais  didáticos  para  ensino  de  árabe  nas  escolas   e  para  os  estrangeiros.  Teve  discípulos  e  filhos  que  deram  continuidade ao seu pensamento e  ao  seu  trabalho,  convencidos  da  ideia  de  que  a  língua  seria  um  fator  agregador  muito  positivo  para  seu  povo,  uma  vez  que  era  território  comum  de  quaisquer  religiões.   

4. Butrus al­Bustani  Diferente  de  al­Yazeji,  Brutrus  al­Bustani  (1819  ­  1883)  teve  a  oportunidade  de frequentar uma das melhores  escolas de  sua  comunidade, a ‘Ayn  Waraqa,  onde  4

foi  versado  em  diversas  línguas  além  do  árabe,  inclusive  em  letras  clássicas.  De  família  também cristã  e  libanesa,  al­Bustani  se  tornou  educador  e  um pensador que  criticava veementemente o fanatismo religioso e o sectarismo vivido pela Síria.  Na  década  de  1840,  se  mudou  para  o  Líbano,  onde   foi  empregado  como  professor pelos  missionários americanos.  Sua relação com as missões protestantes,  fé  a  qual  adotou,  foi  duradora  e  exerceu  forte  influência  na  sua  forma  de  pensar  Estado e religião; Al­Bustani foi responsável inclusive  pela  tradução da  bíblia para o  árabe  empreendida  por  Eli  Smith.  Além  disso,  produziu  notáveis  obras  em  língua  árabe:  um dicionário, uma enciclopédia extensa e materiais didáticos para ensino de  árabe nas escolas, como também diversos artigos publicados no periódico ​ al­Jinan​ .  Por meio das  publicações em  jornais  (quase sempre  assinadas por seu filho),  al­Bustani  defendeu  sua  convicção  de  que  a  divisão  social  promovida  pelas  diferenças  de  credo  era  o  maior  mal  que  assolava  seu  país  e  tornava­o vulnerável  perante  a  força e influência  estrangeiras. Ele ensejou o resgate da cultura árabe nas  escolas  e  a  importância  dessa  língua  e  cultura  comuns  como  fatores  de  coesão  social.  Para  ele,  era  irrelevante que  se  ensinassem conteúdos a  respeito  de  países  longínquos, geográfica  e  culturalmente, enquanto o  conhecimento da própria cultura  era  negligenciado.  Também  criticava o propósito do ensino que era majoritariamente  religioso,  inclusive  das  novas  escolas  abertas   pelas  missões,  o  qual  buscava  inculcar  princípios  da  fé  em  seus  alunos.  Butrus  acreditava  que  devia­se,  pela  educação, formar  cidadãos patriotas para  resguardar a sua identidade árabe e que o  caminho do conhecimento os salvaria dos prejuízos do sectarismo.  Al­Bustani buscava  conciliar  o  princípio de  patriotismo com a profissão da  fé,  defendendo que  o  amor a pátria  era uma forma de expressão religiosa, uma vez que  tinhas por objetivo  a união  da população e o bem­estar comum. Por outro lado, este  era  um  pensamento  que  poderia  ser  facilmente  identificado  como  afronta   à  soberania  do  governo  imperial  otomano,  já  que  continha  em  si  uma  ideia  de pátria  com  certa  autonomia.  No  entanto,  ele  também  foi  capaz  de conciliar  sua  militância  com  o  governo  otomano,  deixando claro  que  a recusa de influência  externa não  se  aplicava  à  soberania  do  Império,  mas  pelo  contrário:  era  necessária  a  aliança  e  o 

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apoio  deste  para  fortificar  a  autonomia cultural  e  política do mundo árabe, pois, sem  tal unidade,  cada  país  ou  população teria sua resistência enfraquecida em relação a  dominação imperialista; essa conduta foi identificada como “Otomanismo”.  O  legado  de  al­Bustani  ficou  na  criação  da  Escola  Nacional  (na  qual  seus  princípios  seriam  aplicados),  da  Faculdade  Protestante  Síria  (onde  estudaram  a   maioria dos próximos secularistas cristãos) e na produção periódica que se seguiu. 

  5. Shibli Shumayyil  O  médico  sírio  Shibli  Shumayyil  (1850  ­1917)  foi  precursor  do  estudo  do  pensamento  darwinista  no  mundo  árabe,  motivo  de  muitas  controvérsias  entre  os  intelectuais  de  orientação  religiosa.  Foi  aluno  da  Faculdade  Protestante  Síria  e  depois  cursou  medicina  em  Paris, onde entrou em  contato com a produção científica  europeia  que  se desenvolvia no século XIX e sobre a qual pouco se tinha divulgação  em  árabe. Shumayyil  foi  leitor  e tradutor  de cientistas  darwinistas, especialmente do  alemão  Friedrich  Büchner,  e  sua  concepção  de  sociedade  é  permeada  por  alguns  conceitos desses  pensadores.  Foi também  colaborador do periódico ​ Muqtataf​ , onde  publicou seus artigos e discussões mais polêmicas.  Defensor  do  materialismo  científico,  ele  acreditava  na  ideia  da  unidade   de  todo  ser  (e da  matéria)  dentre  os  quais o  ser humano é  o  auge da organização, por  ser  capaz  de  controlar  os  processos  da  matéria.  Em  decorrência  dessa  visão  de  mundo,  o  pensamento  de  Shumayyil  é  identificado  como  socialista  (​ ishtirakiyya​ ,  socialismo),  em  uma  acepção  muito  particular:  para  ele,   tanto  a  solidariedade  religiosa  quanto  a  solidariedade  patriótica  são  igualmente  prejudiciais  para  o  homem,  uma  vez  que   pressupõem  uma  exclusividade  de  grupos  nociva  à unidade  social.  Para  ele,  a  verdadeira  coesão  social  nos  tempos  modernos  deve  ser  universalizante:  “​ a  lealdade  ao  ​ watan  ​ limitado  deveria  dar  lugar  a  ​ wataniyya  ​ do  mundo​ ”  (HOURANI,  2005:  267).  Assim,  todos  os  governos  deveriam  trabalhar  em  função  do  bem­estar  comum  e  da  garantia  de  igualdade  de  direitos  entre  todo  ser  humano.  Acreditava  que  o  problema  dos  fanatismos  não  era  a  religião  em  si  ou  a  6

dicotomia  com  a  ciência,  mas  a  conduta  dos  líderes  que  se  aproveitavam  dos  discursos  religiosos  (distorcidos)  para  legitimar  a  defesa  de   interesses  pessoais  e,  dessa forma, perpetuar os conflitos religiosos.  Portanto,  defendia  que  era  possível  a  coexistência  pacífica  de  ideais  religiosos  e  científicos,  pois  estes  se  encontram  em  âmbitos  completamente  distintos,  não  conflitantes  e  que  devem  permanecer  apartados  para  bem  do  conhecimento e do Estado.    

6. Farah Antun  O  pensamento   de  Farah  Antun  (1874  ­  1922)  é  muito  próximo  do  de  Shumayyil  quanto  à  ideia  de  Estado  e  sua  relação  com  a  religião.  Tendo passado  grande  parte  de  sua vida  estudando  no Cairo  e nos Estados  Unidos, foi fortemente  influenciado  pelo  pensamento  Positivista.  Para  ele,  o  homem  é  formado  essencialmente  de  duas  funções  distintas  e  coexistentes:  o  intelecto  e  o  coração.  Quanto  à  organização social, o intelecto  seria  correspondente  ao  Estado,  à  política,  ao conhecimento; enquanto o  coração  estaria  relacionado  às  religiões.  Ele entendia  que  todas  as  religiões  comungavam  de  princípios  morais  muito  próximos  em  sua  essência  e,  portanto,  não  havia motivo para que  as  poucas  divergências entre  elas  fossem  causa  do  sectarismo  social  tão profundo no qual se vivia.  O Estado  poderia  perfeitamente ser  regido sem influência alguma de preceitos religiosos, uma vez que  se tratavam de âmbitos muito diferentes.  Antun  desagradou  alguns  dos  pensadores  mais  importantes  de  sua  época,  Rashid  Rida e Muhammad  ‘Abduh,  que  não viam a  possibilidade  de dissociação  do  Estado e da  religião  islâmica.  Mas para ele, este era o primeiro passo para construir   uma  sociedade  forte,  capaz  de  resistir  à  dominação  estrangeira  e  que  não  sucumbisse  à  volatilidade  dos  interesses  pessoais  de  seus governantes. Deveria­se  legislar  em  prol  unicamente  dos  problemas  deste  mundo,  e  não  do  mundo  pós­morte.  A  motivação  mais evidente da idealização desse modelo de Estado era o  pouquíssimo  espaço  de  atuação  política  dos  cristãos  na  Síria,  além  da  sua 

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perseguição  direta,  mas  também  servia  à  defesa  da  igualdade  para   quaisquer  minorias religiosas do país.  BIBLIOGRAFIA​ :    ­ ABU­MANNEH,  Butrus.  “The  Christians  between  Ottomanism  and  Syrian   Nationalism:  The  Ideas  of  Butrus  al­Bustani”,  in  International  Journal  of  Middle  East Studies, Vol. 11, No. 3​ . Cambridge University Press, 1980.  ­ ANTONIUS, George. ​ The Arab Awakening​ . G P Putnam’s Sons, 1946.  ­ ELSHAKRY, Marwa.  ​ Reading Darwin in  Arabic, 1860­1950​ . University  of Chicago  Press, 

2013. 

Parcialmente 

disponível 

em: 

. Acesso em: 24 de nov. de 2015.   ­ HOURANI,  Albert.  “Os  secularistas  Cristãos:  Shumayyil  e  Antun”,  in  ​ O  pensamento  árabe  na era liberal:  1798­1939. Tradução Rosaura Eichenberg. São  Paulo: Companhia das Letras, 2005.  ­ LEWIS,  Bernard.  ​ What  went  wrong?:  the  clash  between  Islam  and  modernity  in  the Middle East​ . New York, Harper Perennial, 2002.  ­ TAMIMI,  A.;  ESPOSITO,  J.  L.  ​ Islam  and  secularism  in  the  Middle  East​ . London:  Hurst 



Co, 

2000. 

Parcialmente 

disponível 

em: 

. Acesso em: 24 de nov. de 2015. 

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