RIBEIRO, I. S. Os Secularistas Cristãos
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Cultura Árabe II Professora Dra. Arlene Elizabeth Clemesha
Os Secularistas Cristãos Isabella Sales Ribeiro (8978447) São Paulo / 2015
1. Introdução O século XIX no mundo árabe foi marcado pelas reformas ( tanzimat ) efetuadas pelo governo do, então, Império Otomano, seja na esfera administrativa, judiciária ou legislativa, como tentativa de remediar a decadência eminente deste império (desde o século XVIII). Já não havia, como outrora na comunidade islâmica (umma), um sentimento que agregasse a população da mesma forma que Muhammad foi capaz de inspirar; as
comunidades estabeleciam laços de
solidariedade religiosa muito herméticos, afastados uma solidadriedade embasada em fatores culturais ou sociais. Estava colocado o problema de como conciliar o mundo moderno com as estruturas religiosas que regiam a organização política e social de pilares islâmicos. Por isso, havia de se pensar novos modelos de Estado, educação e legislação, que contemplassem as variadas confissões religiosas, as diferenças culturais e, ainda, elaborar uma ideia de nação que se aplicasse a tal conjuntura e que preservasse o Mundo Árabe (no caso, sob o Império Otomano) do imperialismo europeu. Após um longo período de enrijecimento da filosofia e demais ciências, o contato dos intelectuais árabes com a produção científica europeia proporcionou algumas mudanças revigorantes, mas também representava a ameaça de supressão da cultura local por elementos que não se adequariam a ela. Esses intelectuais tiveram a tarefa de refletir sobre como o aprendizado que experienciavam ou importavam do exterior poderiam confluir para mudanças benéficas nos países do qual se originavam. Os autores citados neste trabalho são reconhecidos como “secularistas cristãos”, pela sua identificação religiosa pessoal ou familiar e pelo modo como pensavam a organização política ideal para seu tempo. Sobre a cunhagem do termo “secularismo” em árabe, se lê que: The early Arab debate on secularism centred mainly on the relationship between religion and state, and on matching European successes in science, technology and governance. ‘Secularism’ was translated into Arabic either as ‘ilmaniyah , a neologism derived from ‘ilm (science or knowledge) or as ‘alamaniyah , derived from ‘alam (world or universe). It has been suggested that the use of any other translation, such as la diniyah , that implied the exclusion or marginalization of religion, would have met with outright rejection by Muslims. It was therefore necessary to introduce
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ir through a term that implied knowledge and success, wich Islam not only encouraged but also demanded. (TAMIMI, 1990 : 17)
2. As missões religiosas na Síria O contato dos intelectuais árabes com a ciência que se desenvolvia na Europa está intimamente ligado às missões cristãs (católicas e protestantes) que intensificaram sua presença nos territórios otomanos, especialmente a partir dos governos de Muhammad ‘Ali e Ibraim Pasha que aboliu as leis de exceção para nãomuçulmanos na década de 1830 e do edito Hatti Humayun, do sultão Abdulmejid em 1856,
que também estipulava condições igualitárias para
muçulmanos e nãomuçulmanos. Além disso, a imprensa periódica árabe viveu um enorme florescimento decorrente das iniciativas dessas missões e dos escritores que com elas se formaram. Em uma população composta aproximadamente por 65% de islâmicos, 31% de cristãos e 4% de drusos, a região era segmentada em comunidades religiosas com pouca solidariedade nacional. Até por volta da década de 1830, não havia praticamente nenhuma presença efetiva de missões religiosas estrangeiras, a não ser a jesuítica (que, no entanto, tinha sua atuação muito limitada). Ademais, as escolas eram predominantemente ligadas a uma instituição de fé e recebiam apenas alunos de seus respectivos credos. A falta sentimento de nacionalidade também produziu uma desvalorização quase absoluta da língua e cultura escrita árabes, relegando a raras escolas o papel de perpetuar o ensino do idioma nativo. Antes das escolas fundadas pelas missões, uma das únicas escolas locais em que perdurava o estudo da língua árabe era ‘Ayn Waraqa , um seminário maronita frequentado por futuros intelectuais do secularismo cristão. Com o trabalho de alguns dos estudiosos que serão tratados a seguir, em especial Nasif alYazeji e Butrus alBustani, a valorização da língua árabe foi retomada, enquanto cultura e enquanto tópico essencial no currículo escolar de qualquer instituição. Outra
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característica do cenário educacional era parca disponibilidade de livros e materiais didáticos, especialmente em árabe, devido ao desenvolvimento restrito da imprensa local. Isso também é fator importante para entender a presença tímida de periódicos nos países árabes, exceto por aqueles governamentais. O cenário da imprensa árabe passou por grandes mudanças após a modernização trazida pela imprensa protestante, que mudara sua sede do Egito para Beirute.
3. Nasif alYazeji Intelectual importantíssimo para o florescimento dos estudos árabes e da retoma da língua, Nasif alYazeji (1800 1871) era um estudioso de família cristã do Líbano que, por não se contentar com a educação restrita a que teve acesso em sua infância, buscou se aprofundar no conhecimento da língua e literatura árabes pesquisando o acervo de mosteiros e outras instituições locais. Se especializou no estudo da língua e por meio de tais pesquisas, resgatou materiais pouco conhecidos e de grande relevância na literatura árabe. Se tornou entusiasta e divulgador do estudo do idioma e trabalhou para que seu ensino fosse ampliado e resgatado com a importância que deve se dar a língua materna de uma população. AlYazeji não se alfabetizou em nenhuma outra língua estrangeira o que teria restringido seu campo de atuação , mas se empenhou firmemente na produção de materiais didáticos para ensino de árabe nas escolas e para os estrangeiros. Teve discípulos e filhos que deram continuidade ao seu pensamento e ao seu trabalho, convencidos da ideia de que a língua seria um fator agregador muito positivo para seu povo, uma vez que era território comum de quaisquer religiões.
4. Butrus alBustani Diferente de alYazeji, Brutrus alBustani (1819 1883) teve a oportunidade de frequentar uma das melhores escolas de sua comunidade, a ‘Ayn Waraqa, onde 4
foi versado em diversas línguas além do árabe, inclusive em letras clássicas. De família também cristã e libanesa, alBustani se tornou educador e um pensador que criticava veementemente o fanatismo religioso e o sectarismo vivido pela Síria. Na década de 1840, se mudou para o Líbano, onde foi empregado como professor pelos missionários americanos. Sua relação com as missões protestantes, fé a qual adotou, foi duradora e exerceu forte influência na sua forma de pensar Estado e religião; AlBustani foi responsável inclusive pela tradução da bíblia para o árabe empreendida por Eli Smith. Além disso, produziu notáveis obras em língua árabe: um dicionário, uma enciclopédia extensa e materiais didáticos para ensino de árabe nas escolas, como também diversos artigos publicados no periódico alJinan . Por meio das publicações em jornais (quase sempre assinadas por seu filho), alBustani defendeu sua convicção de que a divisão social promovida pelas diferenças de credo era o maior mal que assolava seu país e tornavao vulnerável perante a força e influência estrangeiras. Ele ensejou o resgate da cultura árabe nas escolas e a importância dessa língua e cultura comuns como fatores de coesão social. Para ele, era irrelevante que se ensinassem conteúdos a respeito de países longínquos, geográfica e culturalmente, enquanto o conhecimento da própria cultura era negligenciado. Também criticava o propósito do ensino que era majoritariamente religioso, inclusive das novas escolas abertas pelas missões, o qual buscava inculcar princípios da fé em seus alunos. Butrus acreditava que deviase, pela educação, formar cidadãos patriotas para resguardar a sua identidade árabe e que o caminho do conhecimento os salvaria dos prejuízos do sectarismo. AlBustani buscava conciliar o princípio de patriotismo com a profissão da fé, defendendo que o amor a pátria era uma forma de expressão religiosa, uma vez que tinhas por objetivo a união da população e o bemestar comum. Por outro lado, este era um pensamento que poderia ser facilmente identificado como afronta à soberania do governo imperial otomano, já que continha em si uma ideia de pátria com certa autonomia. No entanto, ele também foi capaz de conciliar sua militância com o governo otomano, deixando claro que a recusa de influência externa não se aplicava à soberania do Império, mas pelo contrário: era necessária a aliança e o
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apoio deste para fortificar a autonomia cultural e política do mundo árabe, pois, sem tal unidade, cada país ou população teria sua resistência enfraquecida em relação a dominação imperialista; essa conduta foi identificada como “Otomanismo”. O legado de alBustani ficou na criação da Escola Nacional (na qual seus princípios seriam aplicados), da Faculdade Protestante Síria (onde estudaram a maioria dos próximos secularistas cristãos) e na produção periódica que se seguiu.
5. Shibli Shumayyil O médico sírio Shibli Shumayyil (1850 1917) foi precursor do estudo do pensamento darwinista no mundo árabe, motivo de muitas controvérsias entre os intelectuais de orientação religiosa. Foi aluno da Faculdade Protestante Síria e depois cursou medicina em Paris, onde entrou em contato com a produção científica europeia que se desenvolvia no século XIX e sobre a qual pouco se tinha divulgação em árabe. Shumayyil foi leitor e tradutor de cientistas darwinistas, especialmente do alemão Friedrich Büchner, e sua concepção de sociedade é permeada por alguns conceitos desses pensadores. Foi também colaborador do periódico Muqtataf , onde publicou seus artigos e discussões mais polêmicas. Defensor do materialismo científico, ele acreditava na ideia da unidade de todo ser (e da matéria) dentre os quais o ser humano é o auge da organização, por ser capaz de controlar os processos da matéria. Em decorrência dessa visão de mundo, o pensamento de Shumayyil é identificado como socialista ( ishtirakiyya , socialismo), em uma acepção muito particular: para ele, tanto a solidariedade religiosa quanto a solidariedade patriótica são igualmente prejudiciais para o homem, uma vez que pressupõem uma exclusividade de grupos nociva à unidade social. Para ele, a verdadeira coesão social nos tempos modernos deve ser universalizante: “ a lealdade ao watan limitado deveria dar lugar a wataniyya do mundo ” (HOURANI, 2005: 267). Assim, todos os governos deveriam trabalhar em função do bemestar comum e da garantia de igualdade de direitos entre todo ser humano. Acreditava que o problema dos fanatismos não era a religião em si ou a 6
dicotomia com a ciência, mas a conduta dos líderes que se aproveitavam dos discursos religiosos (distorcidos) para legitimar a defesa de interesses pessoais e, dessa forma, perpetuar os conflitos religiosos. Portanto, defendia que era possível a coexistência pacífica de ideais religiosos e científicos, pois estes se encontram em âmbitos completamente distintos, não conflitantes e que devem permanecer apartados para bem do conhecimento e do Estado.
6. Farah Antun O pensamento de Farah Antun (1874 1922) é muito próximo do de Shumayyil quanto à ideia de Estado e sua relação com a religião. Tendo passado grande parte de sua vida estudando no Cairo e nos Estados Unidos, foi fortemente influenciado pelo pensamento Positivista. Para ele, o homem é formado essencialmente de duas funções distintas e coexistentes: o intelecto e o coração. Quanto à organização social, o intelecto seria correspondente ao Estado, à política, ao conhecimento; enquanto o coração estaria relacionado às religiões. Ele entendia que todas as religiões comungavam de princípios morais muito próximos em sua essência e, portanto, não havia motivo para que as poucas divergências entre elas fossem causa do sectarismo social tão profundo no qual se vivia. O Estado poderia perfeitamente ser regido sem influência alguma de preceitos religiosos, uma vez que se tratavam de âmbitos muito diferentes. Antun desagradou alguns dos pensadores mais importantes de sua época, Rashid Rida e Muhammad ‘Abduh, que não viam a possibilidade de dissociação do Estado e da religião islâmica. Mas para ele, este era o primeiro passo para construir uma sociedade forte, capaz de resistir à dominação estrangeira e que não sucumbisse à volatilidade dos interesses pessoais de seus governantes. Deveriase legislar em prol unicamente dos problemas deste mundo, e não do mundo pósmorte. A motivação mais evidente da idealização desse modelo de Estado era o pouquíssimo espaço de atuação política dos cristãos na Síria, além da sua
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perseguição direta, mas também servia à defesa da igualdade para quaisquer minorias religiosas do país. BIBLIOGRAFIA : ABUMANNEH, Butrus. “The Christians between Ottomanism and Syrian Nationalism: The Ideas of Butrus alBustani”, in International Journal of Middle East Studies, Vol. 11, No. 3 . Cambridge University Press, 1980. ANTONIUS, George. The Arab Awakening . G P Putnam’s Sons, 1946. ELSHAKRY, Marwa. Reading Darwin in Arabic, 18601950 . University of Chicago Press,
2013.
Parcialmente
disponível
em:
. Acesso em: 24 de nov. de 2015. HOURANI, Albert. “Os secularistas Cristãos: Shumayyil e Antun”, in O pensamento árabe na era liberal: 17981939. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. LEWIS, Bernard. What went wrong?: the clash between Islam and modernity in the Middle East . New York, Harper Perennial, 2002. TAMIMI, A.; ESPOSITO, J. L. Islam and secularism in the Middle East . London: Hurst
&
Co,
2000.
Parcialmente
disponível
em:
. Acesso em: 24 de nov. de 2015.
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