“Rigorosamente de negro: situação da morte no discurso e nas prácticas do anarquismo argentino (1890-1910)”. Verve. Revista do UN-SOL. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciencias Sociais PUC-SP, Núm. 22, 2012, pp. 65-99.

May 29, 2017 | Autor: Martín Albornoz | Categoria: Anarchist Studies, Historia Cultural, Antropología De La Muerte
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VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/ Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP. Nº22 (Outubro 2012). São Paulo: o Programa, 2012 - semestral 1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicio­nismo Penal. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. ISSN 1676-9090 VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP (coordenadores: Silvia Helena Simões Borelli e Edison Nunes); indexada no Portal de Revistas Eletrônicas da PUC-SP, no Portal de Periódicos Capes e catalogada na Library of Congress, dos Estados Unidos.

Editoria Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária. Nu-Sol Acácio Augusto, Aline Passos, Anamaria Salles, Andre Degenszajn, Beatriz Scigliano Carneiro, Edson Passetti (coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Flávia Lucchesi, Gustavo Ferreira Simões, Gustavo Ramus, Leandro Alberto de Paiva Siqueira, Lúcia Soares da Silva, Luíza Uehara, Maria Cecília Oliveira, Mayara de Martini Cabeleira, Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Sofia Osório, Thiago M. S. Rodrigues. Conselho Editorial Alfredo Veiga-Neto (UFRGS), Cecilia Coimbra (UFF e Grupo Tortura Nunca Mais/RJ), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick (UFSC), Doris Accioly (USP), Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Heliana de Barros Conde Rodrigues (UERJ), Margareth Rago (Unicamp), Rogério H. Z. Nascimento (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP). Conselho Consultivo Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti (PUCSP), Heleusa F. Câmara (UESB), João da Mata (SOMA), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Eduardo Azevedo (Unip), José Maria Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam, Nelson Méndez (Universidade de Caracas), Pietro Ferrua (CIRA – Centre Internationale de Recherses sur l’ Anarchisme), Robson Achiamé (Editor), Silvio Gallo (Unicamp), Stéfanis Caiaffo (Unifesp), Vera Malaguti Batista (Instituto Carioca de Criminologia).

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verve revista de atitudes. transita por limiares e instantes arruinadores de hierarquias. nela, não há dono, chefe, senhor, contador ou programador. verve é parte de uma associação livre formada por pessoas diferentes na igualdade. amigos. vive por si, para uns. instala-se numa universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é uma labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentia. ela agita liberações. atiça-me! verve é uma revista semestral do nu-sol que estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal.

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sumário

13 Dossiê St. Imier Nu-Sol, Nélson Méndez, I.F.A. Rigorosamente de negro: situação da morte no discurso e nas 65 práticas do anarquismo argentino (1890-1910) Martín Albornoz Cartografias intelectuais: políticas do pensamento social 99 Rogério Nascimento Anarquismo e crime 119 Benjamin Tucker Sociedade de controle e modulação dos programas televisivos 131 femininos Lúcia Soares Roberto Bolaño e Roberto Freire: literatura e resistência na 150 América do Sul Gustavo Simões saúde! 169 Gustavo Ramus & Luíza Uehara

resenhas Das muitas maneiras de se lutar contra as prisões e o regime 203 das penas Acácio Augusto 208

Existir potente João da Mata

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verve é atiçada pelo que pulsa de libertário e vivo, na potência de escritos e experimentações de mulheres e homens do passado e do agora; atenta ao que provoca combates contra o que de fora incide autoritário e violento, e contra o que precisa ser revolvido nos anarquismos. verve pratica a diferença na igualdade e ataca pluralismos, comemorando o movimento incessante da luta na qual não cabem mestres, verdades absolutas, panteões. é com esse fulgor que verve trata os antigos e propicia o novo. vibrando assim, esse número de verve abre com dossiê sobre os 140 anos do congresso anarquista de st. imier para interpelar os anarquismos hoje, rechaçar o bolor e afirmar o que nos é próprio e vigoroso: a revolta! em seguida, martín albornoz apresenta como a morte e os funerais de anarquistas foram inventados, na argentina do início do século XX, como acontecimentos políticos e de resistência; enquanto rogério nascimento explicita o conservadorismo dos cânones acadêmicos no pensamento social brasileiro que deliberadamente ignoram intelectuais libertários da primeira metade do século XX.

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dos inícios do século que passou há, também, um bravo escrito em que benjamin tucker mostra como o regime da propriedade produz crimes e criminosos, numa reflexão atual em tempos de redimensionamento de propriedades, centralidades de poder e segurança. o atual libertário segue no artigo de lúcia soares sobre a produção de subjetividades pela tv na sociedade de controle e com gustavo simões na urgência em combater o que resta das ditaduras latino-americanas pela chama produzida com a literatura de roberto bolaño e roberto freire. nas resenhas, as lutas no tempo presente pelas rebeldias e pela radical força libertária do abolicionismo penal de louk hulsman. atravessando verve, imagens de periódicos anarquistas dos primeiros anos do século XX que foram, no seu tempo, experiências heterotópicas a enfrentar embates que hoje reemergem para novos guerreiros. deslocando-se, verve começa sua segunda década com nova capa, no azul único tão caro ao nu-sol. desdobrando-se, verve transborda em vervedobras levando para os fluxos eletrônicos o tanto de presente e de heterotopia que nos move.

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os 140 anos da internacional libertária: st. imier 1872-2012 nu-sol

Em 1864, foi fundada a Internacional dos Trabalhadores (AIT), sob forte influência do mutualismo de Proudhon, em especial dos posicionamentos expressos em seu livro Da capacidade política da classe operária. Criadas as sessões que a compunham realizaram-se os congressos de Londres (1865), Genebra (1866) e Lausanne (1867). As tensões e disputas, nestes congressos, desenrolaram-se entre o centralismo marxista, o nacionalismo blanquista e o antiestatismo federalista e mutualista dos proudhonianos – estes últimos com ampla maioria na presença das sessões francesa, italiana, espanhola, belga e estadunidense. Essas lutas marcaram a reviravolta no congresso de Bruxelas (1868) e confirmaram a polarização entre Marx e Bakunin no congresso da Basileia (1869). O ano de 1870 acirrou os ódios e violências, inclusive nacionais, em torno da guerra franco-prussiana, bem recebida pelos centralistas e autoritários pelo “serviço” político de centralização prestado por Bismark, segundo a leitura de Marx e Engels, e pelo efeito de unidade nacional francesa, segundo a leitura dos blanquistas. O resultado foi o total abandono dos communards pelo movimento operáverve, 22: 13-15, 2012

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rio internacional, perdidos em suas disputas intestinas e cegos ao acontecimento que foi, em 1871, a Comuna de Paris. Após o massacre dos communards, comandado por Thiers e com apoio do exército de Bismark, em 1872, uma manobra de Marx no congresso de Haia, realizado naquele mesmo ano, expulsou a ala antiautoritária nas figuras de Bakunin e James Guillaume. Esse gesto, levado adiante por uma maioria fictícia em torno de Marx e Engels, se traduziu na verdade em uma debandada da sessão antiautoritária. Em 1872, esta fundou a Internacional Antiautoritária, em St. Imier, no Jura suíço. Em meio às perseguições, prisões e assassinatos, a Internacional Antiautoritária se manteve atuante e foi procedência dos sindicalistas revolucionários, anarcosindicalistas e anarquistas que espalharam a anarquia por todo planeta. Lutas e combates levariam, mais adiante, à emergência do anarco-terrorismo. Entre 8 e 12 de agosto de 2012, um congresso comemorou os 140 anos dessa reunião, lembrando as questões e combates iniciados pelos lutadores daquele tempo. O socialismo autoritário e o nacionalismo já mostraram, durante o século XX, como se repõem ditaduras e representações. Anarquistas estão vivos e se encontraram em St. Imier para rememorar suas lutas. Lá, esperava-se a continuidade da cultura libertária praticada sempre em encontros, com trocas generosas de experimentações que nunca necessitaram de uma conjuntura favorável para se afirmar. Os resultados expressos em seu documento final não parecem ter seguido por esse percurso. O Nu-Sol saudou a realização do congresso divulgando, enviando contribuição para as discussões e material 14

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áudio-visual para exibição. A condução das palestras e debates, no entanto, indicaram uma indisposição dos organizadores do encontro em ampliar conversações. Os textos a seguir apresentam e registram a realização e pronunciamento final dos organizadores, a posição do Nu-Sol e a comunicação de Nélson Méndez acerca dos anarquismos na América Latina. Anarquia é luta com invenção da vida libertária e de uma cultura em ação direta. É nessa luta que o Núcleo de Sociabilidade Libertária situa sua atuação e sua participação no Congresso de St. Imier em seus 140 anos.

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Botar lenha na fogueira. Aumentar o fogo. Apreciar as centelhas, como fogos de artifícios. Ouvir ruídos. Sentir o calor das brasas. Pular a fogueira. Fazer comida, cantar, dançar, dar uns beijos, fumar, beber, notar o rebolado e sentir o estalar das paixões. Conversar, discordar, concordar, discordar de novo. Dormir, acordar, brindar e brincar com os amigos e os amores livres. Estalar: a vida anarquista é fogo, aquece a água, precisa de ar e germina a terra. Não faz da natureza santuário, lei, nem religião. Explode como bomba, demole para inventar: não se ocupa da negação, mas de afirmações. Não tem respostas para grande parte das perguntas; se ocupa de problemas próprios, de equacionamentos imediatos capazes de potencializar a liberdade. Estalar anarquismos.

Diante do estado das coisas

A memória dos anarquismos não é seletiva e não está guardada em nenhum livro, arquivo físico ou digital, bibliotecas, museus. Seus livros, músicas, relatos, poesias, teatros, imagens são efeitos das infindáveis lutas que 16

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acompanham cada anarquista. Não são propriedades de ninguém, não estão disponíveis aos julgamentos e aos juramentos de ninguém. Os anarquistas preservam suas memórias fazendo anarquia, desdobrando práticas, inventando lutas, remexendo na história apaziguada, experimentando a liberdade no presente. Só existe o presente libertário se ele for o espaço do devir, e não ficar reduzido a lembranças do passado e nostalgia de futuro. O presente que vivemos é maledicente por que faz acreditar na eternidade da democracia ou numa utopia de tempos passados. Viver no presente é encarar uma nova luta, diante do conformismo, das acomodações políticas, das negociações estranhas e da crença em condutores libertários, vivos e mortos. No mundo de hoje, não cabem mais os modelos, há muita moda, tudo é passível de ser modulado, inclusive o mais puro revolucionarismo. Não há mais iluminismo que provoque estalos. Num mundo onde a democracia é a panaceia, ela virou a medida de todas as coisas, ser anarquista ficou muito fácil e, paradoxalmente, muito difícil. Hoje, o que não faltam são sites, verbetes, blogs, comunidades, indicações didáticas em livros oficiais, professores e intelectuais bem intencionados e zelosos com a pluralidade de opiniões. O direito à liberdade de expressão reduziu a ação à palavra, a palavra ao disse-que-me-disse, ao desespero e destempero dos exacerbados, que confundem afobação com ação direta, e que sonham em organizar a massa. Hoje, não há mais massa e muito anarquismo acabou diluído na multidão, o nome do mesmo sujeito histórico; muito anarquista não deixa mais de reconhecer que afini17

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dade é sinônimo de pluralismo, e esquece que todo pluralismo exige uniformidade, propõe representação, captura organizações, monitora os movimentos, educa o cidadão e, não só por isso, é contra-anarquista. No mundo globalizado e de antiglobalização, o trabalho manual foi governado pelo trabalho intelectual, imaterial, de produção de produtos e transformou os sindicatos em empresas e em refúgios seguros. Só há vestígios do sindicalismo revolucionário, de anarcosindicalismo, de trabalhadores, sindicalizados ou não, quando comprometidos com a autogestão. Os trabalhadores estão sob o governo da empregabilidade e do empreendedorismo, que lhes dispõem de algum tempo para ações sociais, assistenciais e que alguns trabalhadores fantasiam chamando ação direta. Há um dispositivo de captura mordaz, que apaga o fogo, que faz subir a fumaça do resfriamento, que amontoa cinzas e que convoca à participação. As minorias que traziam uma potência de contestação e se aproximavam dos anarquistas tiveram seu ápice com o movimento 1968. Hoje, estão organizadas em função de uma pletora de direitos e acomodadas numa grande almofada chamada alternativos em ONGs e no Estado. Foi assim que a democracia representativa se fez também participativa e pretende nocautear a democracia direta. Os anarquistas nunca prezaram a democracia como valor universal; sempre lidaram com ela nas lutas e prezam a ação direta como realização da autogestão. Os anarquistas não compõem; preferem enfrentamentos. Estão sempre preparados para luta e sabem valorizar o descanso do guerreiro. O anarquista não é profissional da luta, não é agente dos conceitos, nem um defensor de ideias. Tam18

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pouco pretende ser vanguarda ou condutor de consciência. Para o anarquista, a vida é uma batalha.

Diante das coisas sem Estado

É sempre bom lembrar que a administração das coisas não se faz sem um poder sobre as pessoas. É preciso se afastar dessa ilusão à toa. Então, não há sentido anarquista em pretender restituir direitos sociais, mas é preciso a potência do direito livre que se realiza entre pessoas e um objeto. É preciso um direito antissoberania para acabar com o fundamento divino do direito que sustenta a exploração do forte pelo fraco. Onde isso repercute, onde provoca estalos? Aqui no Brasil, desde a década de 1980, os anarquistas republicam nossos escritos de luta incansáveis, reinventando conversações, promovendo cursos de memória, atualização e crítica, reabrindo centros de cultura libertária, abrindo novos espaços, traçando outros percursos, escrevendo, falando, conversando, provendo mais federações, realizando encontros, reavivando almoços, ecologias, amores livres, um anarquismo social com estilo de vida, coletivo e pessoal, múltiplo e potente. É preciso deixar de lado as picuinhas sobre anarquismo social e anarquismo como estilo de vida: os anarquismos sempre foram sociais e sempre inventaram um estilo de vida terrível ao Estado e temido pelos oponentes. Onde o anarquismo provoca cinzas e conta os mortos? Os anarquistas inventaram práticas que, ao contrário do que gostariam seus detratores e inimigos, são, gradualmente, assimiladas pelo movimento da vida. As19

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sim, desde as escolas mistas até algumas práticas do sexo livre, que antes escandalizavam os boçais, foram devoradas como sexualidades, identidades e pedagogias assim e assado. As nossas práticas de políticas radicais, desde o final da década de 1990, habitam movimentos de contestação global, mas correm o risco de serem absorvidas pela racionalidade neoliberal e a política de moderação. O que é caro a nós anarquistas é a luta, o desassossego, a educação livre das nossas crianças, o nosso sexo solto, as nossas amizades impermeáveis e inclassificáveis, o trabalho livre e prazeroso.

Há um jeito de fazer anarquista que não se guia por finalidades, mas pelo surpreendente. Não somos coisas, nem pessoas disponíveis à condução; somos propiciadores de éticas libertárias que nos fazem, no presente, como o assombro e o estalo. Só para não dizer que não falamos de nossos equívocos, aí vão alguns deles. Tem anarquista metido a bacana que dá curso com certificado; tem escritor anônimo, fantasiado de acadêmico, que fala de autores pré e pós anarquismo; tem o ramerrame que não escapa dos efeitos do bolchevismo; têm os pretensiosos que balbuciam uma coisa chamada teoria anarquista; tem tolinho e tolinha falando de anarquismo como inserção social ou anarquismo social; tem malandro fazendo colóquios e encontros enunciados como o primeiro ou segundo, revelando seu camuflado desejo de hierarquia e displicência com a linguagem; tem solidário com preso político, que desconhece o preso comum e, às vezes, incensa empresas do chamado crime organizado; tem acadêmico universitário que acha que o anarquismo está substituindo o marxismo; têm aqueles que querem convocar à participação e acreditam na liberdade da internet; têm os que ignoram a mística e o autoritarismo do Movimento 20

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Sem Terra (MST), do tribunal popular, dos sentinelas, dos líderes de movimentos sociais e da prefixologia sabichona; têm anarquistas que esquecem onde trabalham sob condições de exploração e assujeitamentos e fazem de sua prática um encontro de weekend. Há a urgência de relembrarmos que os intelectuais são apenas retaguarda dos movimentos anarquistas; não esquecer os efeitos destrutivos das organizações conspiratórias governando as consciências; que não há fantasia na pobreza, apenas uma miséria que precisa ser desgovernada; que as distinções entre istas nada mais é que divisão ou pluralismo; que as federações precisam deixar de ser territorializadas; e que o grande monumento erguido pelos anarquismos está no mutualismo e no federalismo. O Nu-Sol é uma associação de pesquisadores libertários voltados para problematizar relações de poder e inventar liberdades. Por meio de cursos regulares e abertos ao público – como os cursos livres e experimentações com linguagens –, conversações com a universidade e o público, procuramos levar os resultados de nossas pesquisas e incômodos à flor da pele. Distanciamo-nos dos refúgios seguros trazidos pelas teorias, do conformismo embalado pelas dogmáticas, dos zeladores das responsabilidades procedimentais e das confortáveis retóricas que alimentam os defensores das vítimas. As pesquisas e atitudes do Nu-Sol apartam-se de condutas solenes, da superioridade da Ideia, da consciência superior e da intransigência da funcionalidade institucional, 21

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para se situar nas lutas por liberdade diante dos efeitos das mais diversas maneiras de governar e dos aprisionamentos sob a vontade do soberano, das normalizações disciplinares e dos governos desdobrados nas sociedades de controle. Lidamos com nossas inquietações de vida indo habitar outros espaços, dentro e fora da universidade, transformando a aula convencional em inesperada aula-teatro, ladeando livros com vídeos, pesquisas científicas com literaturas e artes plásticas, a história no corpo com as surpresas advindas do mundo da inteligência artificial e demasiada humana. Interessamo-nos pelas manifestações ético-estéticas da existência libertária diante dos governos de saber e de verdades. Transitamos pelas bordas e depois delas. Apreciamos as imensas extensões que se avistam e que podemos pisar adiante, porque nos fixamos fora de nós e na órbita das fomes, livres das utopias e fazendo da pesquisa e das atitudes do Nu-Sol uma heterotopia libertária. St. Imier, 8 a 12 de agosto de 2012

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o anarquismo na américa latina: um esboço sobre sua história, características e perspectivas nélson méndez

Recebam todos os participantes e organizadores deste evento uma saudação solidária dos anarquistas venezuelanos, em particular do grupo a que pertenço: o coletivo editor do jornal El Libertario1, com o qual temos nos esforçado há 17 anos por percorrer os caminhos da dignidade, combatividade e entusiasmo que ontem foram, são ainda hoje, e serão amanhã sinais que identificam e dão plena vigência a nosso movimento no mundo. Com a intenção de contribuir desde a América Latina para que todos conheçam, reconheçam e busquem o fortalecimento da identidade que nos une como anarquistas, meus colegas do El Libertario e eu pensamos que o mais conveniente seria apresentar neste Encontro uma introdução global à história, características e perspectivas do anarquismo no nosso continente. Nélson Méndez é membro do Coletivo Editor de El Libertario e Professor Titular da Universidad Central de Venezuela, em Caracas. verve, 22: 23-42, 2012

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Dada a presença aqui de muitos jovens com diferentes níveis de interesse no assunto, mas em geral com pouco ou limitado acesso à informação sobre os temas desta exposição, apresentarei um esquema básico com ideias, personagens, fatos e referências necessárias para compreender o anarquismo latino-americano e sua trajetória. Este relato, especialmente em seus aspectos históricos, não pretende ser erudito, pois espero que, se estas palavras gerarem efeitos na plateia, o façam mais na dinâmica de solidariedade militante e animada troca com o movimento ácrata contemporâneo no nosso continente, e menos na produção de papers e teses universitárias. Em suma, esta será mais uma conversa para anarquistas que para especialistas; e, de modo algum será para esses “anarcólogos” que se deleitam em decretar que o ideal anarquista foi extinto com o fim da Guerra Civil Espanhola, em 1939. Para entrarmos no assunto, vou propor uma abordagem que analisa o passado, o presente e o possível porvir do anarquismo latino-americano, visto em quatro momentos históricos: 1) o século XIX, sua fase inicial, com a chegada da Europa e sua inserção entre nós; 2) o primeiro terço do século XX, com o auge do anarco-sindicalismo e da presença libertária nas lutas sociais, na dinâmica política e no cenário cultural e intelectual do continente; 3) o período de eclipse e quase total desaparecimento entre a segunda metade dos anos 1930 e a década de 1990; e 4) o período entre final do século XX até o momento atual, com um retorno esperançoso do anarquismo, enfrentando o desafio das novas realidades e de, nelas, colocar à prova as potencialidades do ideal libertário.

Embora essa periodização dê uma noção aproximada sobre a localização temporal, não pretende determinar pe24

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ríodos exatos para o que vem acontecendo nos países do nosso continente porque as circunstâncias variaram entre eles; de modo que a abordagem proposta deve ser ajustada de acordo com cada contexto específico. Para citar um exemplo, na Venezuela o processo de chegada e integração foi lento e intermitente (até a segunda ou terceira década do século XX); somado a isto, não pode se verificar nesse país o auge do movimento que foi evidente em outras partes da América Latina, entre as quais, por sua vez, existem variações significativas (veja-se o que aconteceu na Bolívia, na Costa Rica, em Cuba e no Uruguai, para citar alguns casos). Uma das maiores dificuldades para abordar a trajetória do anarquismo continental é o silêncio imposto sobre esta questão por historiadores oficiais positivistas, liberais ou marxistas, e do qual só recentemente começa-se a escapar. Com esse bloqueio de “invisibilidade” pairando sobre a história do anarquismo em cada país, pode-se imaginar o quão angustiante resultaria esta proposta por explicar a via libertária em toda a região, se não houvesse um antecedente de grande valor como apoio e inspiração nessa tarefa: o prólogo “Anarquismo Latino-americano”, escrito por Ángel Cappelletti, em 1990, para o trabalho de compilação intitulado El Anarquismo en América Latina2. Sob a identificação discreta como “prólogo”, temos um texto abrangente que combina conhecimento rigoroso e paixão pelo ideal ácrata, com uma visão geral da história do movimento libertário continental (desde suas origens até meados do século XX) que, na minha opinião, é leitura indispensável para qualquer pessoa interessada neste tema. Sirva esse comentário para encorajar nova publicação em espanhol do trabalho (esgotado há anos e só disponível em formato digital), bem como a sua tradução e divulgação em outros idiomas. 25

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Voltando àquelas épocas (décadas de 1870 e 1880), em que alçou vôo a Internacional antiautoritária, cujo 140º aniversário recordamos aqui em Saint-Imier, várias publicações, personalidades, debates e eventos evidenciam que o anarquismo não só já havia chegado a terras latino-americanas, como também iniciava sua adaptação e enraizamento nas realidades dessa parte do planeta, e a este respeito tem de se considerar a forma como um amplo setor entre os oprimidos identificou as propostas libertárias com tradições de igualitarismo coletivista que, para muitos povos indígenas, eram anteriores ao imperialismo europeu, asteca ou inca, enquanto para aqueles de origem africana provinham do tempo anterior à escravidão. Foi rápido e fértil o esforço por “aclimatar” o anarquismo, processo que merece ser melhor conhecido pelos anarquistas de outros continentes, pois é uma das muitas razões que explicariam que o ideal ácrata calasse fundo em muitas de nossas lutas e movimentos sociais. Como evidência precoce desta assimilação da ideia, podemos mencionar a Escuela del Rayo y El Socialismo, no México; Enrique Roig San Martin e o jornal El Productor, em Cuba; Manuel González Prada, no Peru; e a proliferação de ativistas e publicações que efervesciam na área do Rio de la Plata, onde foram fundadas, em 1872, as seções uruguaia e argentina da Associação Internacional do Trabalho (A.I.T.), ambas com acentuada orientação libertária. Para uma relação mais ampla das expressões do anarquismo continental nas décadas finais do século XIX, e as primeiras quatro décadas do século XX, veja-se a “Cronologia” (1861-1940), que Cappelletti incluiu como apêndice no volume acima referenciado. Entrando nos anos de 1900, o nascimento da Federação Operária Argentina (FOA), que logo seria a Federação 26

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Operária Regional Argentina (FORA) e da Federação Operária Regional Uruguaia (FORU), da Confederação Operária Brasileira (COB), da Federação Operária Regional do Paraguai (FORP), a indomável atividade sindical libertária em Cuba, o trabalho persistente e clandestino de propaganda e organização operária do Partido Liberal Mexicano de Ricardo Flores Magón, são sinais que indicam como o anarco-sindicalismo se tornou a expressão mais evidente (mas não a única) da presença de ideias e práticas anarquistas na América Latina no primeiro terço de novo século. A chama libertária arde forte naqueles dias, não só entre os trabalhadores destes países, mas em geral no resto do continente, de modo a fazer jus à seguinte declaração de Cappelletti: “pode-se dizer, sem dúvida, que o anarquismo se enraizou entre os operários nativos de maneira muito mais profunda e extensa do que o marxismo (com exceção talvez do Chile)”. Uma declaração como esta será rejeitada pelas interpretações oficialmente aceitas da direita e da esquerda autoritária, que sempre têm ignorado, minimizado e adulterado a profunda marca anarco-sindicalista na vida social latino-americana. Em resposta, Cappelletti sustentava seu parecer com uma base sólida de referências documentais para cada país, que tem se expandido em quantidade e qualidade devido às diversas, densas e valiosas pesquisas históricas das quais apenas mencionarei algumas poucas, a saber: Biófilo Panclasta: el eterno prisionero, do Coletivo Alas de Xué da Colômbia3; El Anarquismo en Cuba, de Frank Fernández4; Magonismo: utopía y revolución, 19101913, de Ruben Trejo5; História do Anarquismo no Brasil, em dois volumes compilados por Rafael Deminicis, Daniel Aarão Reis e Carlos Addor6; La choledad antiestatal. 27

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El anarcosindicalismo en el movimiento obrero boliviano, de Huáscar Rodríguez7; além das contidas no site do Grupo J.D. Gómez Rojas de Chile e do Arquivo Anarquista Peruano.

Em toda parte e em todo momento, a ação anarco-sindicalista se uniu ao interesse de pensar e manter viva uma cultura libertária que enfrentasse os suportes ideológico-culturais da opressão. Nas primeiras décadas do século XX, e mesmo antes, multiplicaram-se na América Latina experiências, estudos e propostas, em um esforço por descobrir as rotas que levassem prontamente a construir o mundo livre proposto pelo anarquismo. Esses esforços produziram-se, apenas para mencionar algumas das suas dimensões, através de cooperativas auto-gestionadas, fundos solidários de ajuda mútua, escolas livres da supervisão eclesiástica ou estatal, experiências de vida em comunidade, editoras sem fins lucrativos, projetos autônomos de criação/difusão cultural. Sendo essas as suas metas, não é surpreendente que um setor significativo de artistas e estudiosos tenham se atraído por um pensamento e uma prática que, de forma tão vívida, propunha a ruptura com o conservadorismo sufocante que então governava as sociedades do continente. Deve-se lembrar que esse nexo entre uma parte da intelectualidade e o anarquismo ocorreu em termos distintos ao do processo análogo acontecido com o marxismo, no qual essa elite assumiu o papel de vanguarda dirigente, presumindo ser a única capaz de interpretar corretamente a consciência revolucionária para os trabalhadores e outros tantos explorados. Além disso, neste alvorecer do século XX, se mantém e consolida a vontade de desenvolver no continente uma 28

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teoria anarquista adequada para refletir e intervir sobre as especificidades da nossa realidade. O anarquismo latino-americano não esperou que as luzes chegassem da Europa, dando por si mesmo respostas novas e coerentes para questões como, por exemplo, a situação de opressão, racismo e embrutecimento da qual padeciam camponeses e indígenas; ao avanço agressivo do capitalismo imperialista externo, associado com os poderes semi-feudais locais; à hegemonia cultural reacionária exercida pela Igreja Católica; à luta pela libertação das mulheres; ou a como fazer para que um movimento político-social decididamente racional e moderno, como o anarquista, conseguisse seus propósitos na situação do tradicionalismo caudilhesco e de ignorância generalizada, ainda imperante em nossas terras, e para o qual chegou a criar respostas organizacionais tão originais como FORA na Argentina ou o Partido Liberal Mexicano. Ver como os camaradas e as camaradas pensaram suas circunstâncias, para depois agir em conformidade e fazê-lo de acordo com o Ideal, é uma lição valiosa para hoje, quando podemos aprender com seus sucessos e suas falhas, bem como sobre as tensões e debates que foram gerados nos setores libertários. Os exemplos são muitos, alguns de tamanha importância que não conseguiram ser apagados da memória coletiva, apesar das artimanhas dos historiadores no poder; outros estão apenas começando a ser resgatados das mistificações ou esquecimentos, e valorizados em sua importância. A esse processo de reflexão, debate e ação devem ser associados pessoas e grupos que se expressaram com coragem, razão e sagacidade; algumas das quais mencionarei mais adiante como uma forma de chamar a atenção para sua obra e trajetória, e que mere29

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cem uma análise muito mais detalhada do que a proposta neste esboço histórico. Mais uma vez eu me volto ao prólogo de Cappelletti, que propõe três razões, que considero válidas, para explicar o declínio sofrido pelo anarquismo latino-americano a partir das décadas de 1930 e 1940. Eu acrescentaria uma quarta que as complementa. Essas causas são: 1°. O auge do autoritarismo do qual padece a América Latina nessas décadas, visível em ditaduras como as de Machado e Batista em Cuba, Vargas no Brasil, Uriburu na Argentina, Terra no Uruguai, e assim outros sinistros casos em outros países. Estes regimes foram particularmente sistemáticos e ferozes na perseguição ao movimento operário e anarquista, pois se introduzia, então, no nosso continente o modelo repressivo próprio do Estado moderno totalitário que, naquela época, mirava-se nos exemplos a serem seguidos da Itália fascista e da Alemanha nazista. 2°. A fundação dos partidos comunistas do continente, cujo relativo florescimento (em alguns casos, à custa do anarquismo) tem muito a ver com o “prestígio revolucionário” de que se orgulhavam devido a sua dependência da União Soviética, que os controlava e sustentava enquanto instrumentos internacionais da sua política de Estado. 3°. O surgimento de correntes nacional-populistas (Aliança Popular Revolucionária Americana/APRA, no Peru; o Partido Revolucionário Institucional/PRI mexicano; o peronismo argentino; Ação Democrática na Venezuela; o battlismo no Uruguai, etc.) que, com o apoio de fatores de poder emergentes, são bem sucedidos em propagar a sua ideologia de reformismo pró-estatista e de vago patriotismo, apresentando-se como uma possibilidade 30

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supostamente realista pela sua flexibilidade política e pela gama de realizações menos subversivas e mais imediatas que aquelas prometidas pelo anarquismo.

4°. A derrota da Revolução Espanhola e o que ela gera em termos de crise ou de refluxo para o anarquismo da América Latina. O ano de 1936 na Espanha foi sopro de esperança para um movimento anarquista que começava a se perceber na defensiva ou em refluxo – exceto lá –, gerando por isto mesmo uma intensa solidariedade ácrata continental, razão pela qual o resultado desse processo foi mais do que sombrio para aqueles que ainda levantavam bandeiras libertárias nesta parte do mundo, unida por tão fortes laços com a Península Ibérica.

Em tal atmosfera, tornou-se muito difícil a mera sobrevivência de grupos, de publicações e de atividades anarquistas em quantidade, que lembrassem tudo aquilo que, em tantos lugares, fora conhecido pela geração anterior. Certamente não se extinguiu o anarquismo latino-americano neste período que começa no final de 1930 e se estende até por volta de 1990, mas em muitos lugares pareceu ter desaparecido sem deixar vestígios, ou se manteve apenas enquanto viveram os envelhecidos e escassos porta-vozes do Ideal. Nem mesmo a chegada do grande contingente de exilados libertários ibéricos, espalhados pela América Latina depois de 1939, reverteu esta tendência, apesar dos esforços que fizeram para contribuir com o movimento onde se estabeleceram. Sem dúvida, houve iniciativas para reverter esta trajetória descendente, dentre as quais, talvez o melhor exemplo tenha sido a 1ª Conferência Anarquista Americana de Montevidéu, em 1957, mas pouco ou nada se conseguiu a este respeito. 31

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Para piorar a situação, a fidelidade marxista-leninista proclamada em 1961 pelos líderes da insurgência que haviam derrotado dois anos antes o ditador Batista, no que foi chamado de Revolução Cubana, pareceu a muitos uma evidência conclusiva de que o dogma da foice e do martelo era a única maneira de promover, com sucesso, mudanças revolucionárias e progressistas em nosso continente. Essa mesma fé foi imposta nos desdobramentos radicais do nacionalismo populista (é o caso do Movimento da Esquerda Radical/ MIR da Venezuela, do Peru e da Bolívia) ou do ativismo católico de base, cuja teologia da libertação se fundia com o marxismo, sem maiores complicações. Assim, até a década de 1980, o debate da esquerda acontecia entre as variantes marxistas que ostentavam seu perfil autoritário como insígnia revolucionária de sua linhagem, enquanto muito pouco do que provinha do anarquismo era compreendido ou atendido, e que na melhor das hipóteses diluía-se no que fosse mais palatável para o chamado marxismo crítico. Com o isolamento, parte do combalido movimento libertário tendeu a se lançar à nostalgia da glória do passado, o que dificultava compreender e agir com destaque em seu presente, enquanto outro setor promovia uma aproximação a posições marxistas (por exemplo, moderando ou silenciando o discurso antieleitoral, recusando-se a criticar o regime de Fidel Castro, assumindo o discurso ambíguo de “libertação nacional”, e/ou acomodando-se aos mitos guevaristas-militaristas sobre a luta armada), o que acabava sendo mais claudicação que aproximação. O exemplo mais doloroso dessa rendição ao marxismo foi a posição de uma parcela do anarquismo continental (por exemplo, a Federação Anarquista Uruguaia) e mundial 32

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(Daniel Cohn-Bendit no 1º Congresso da Internacional das Federações Anarquistas/IFA), que se prestaram a silenciar, e até mesmo a justificar, a feroz repressão do regime de Castro, que liquidou ou lançou ao exílio o movimento libertário cubano.

Tais circunstâncias explicam basicamente o porquê, no período entre o Maio de 1968 e a queda do Muro de Berlim, em 1989, quando em outros lugares do mundo há um ressurgimento relativo das bandeiras negras, a decadência ainda é a tônica do anarquismo na América Latina. Nem mesmo a saída da clandestinidade do anarquismo espanhol após a morte de Francisco Franco, em 1975, com seu simbolismo e com a liberdade para divulgar, a partir de então, suas publicações, teve, em princípio, qualquer efeito perceptível. No máximo, pode-se recordar nos anos 1980 a presença dos resquícios libertários que nos meios juvenis significou a extensão da cultura punk ou, mais especificamente, anarco-punk. Na década de 1990, no entanto, há uma mudança no cenário e nas referências que definiam a esquerda continental. Chegam os ecos do colapso do império soviético, deixando em orfandade político-ideológica os viciados no marxismo, incluindo aqueles que haviam se aventurado a fazer discreta crítica a esse absurdo do capitalismo de Estado pudicamente chamado de socialismo real. Além disso, os regimes de similar gabarito que sobreviveram, como a China, aceleraram sua entusiasmada “Longa Marcha” à globalização neoliberal, com exceção da Coreia do Norte, perdida em uma autarquia stalinista e dinástica. A expressão de tal afundamento no Novo Mundo foi o desfazer-se da miragem da Revolução Cubana, que servira de narcótico consolo ao marxismo-leninismo continental ao longo 33

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de trinta anos de derrotas, cada uma mais dolorosa que a outra para seus devotos (como a insurgência guerrilheira dos 1960, o Chile de Allende, o deslocamento dos sandinistas na Nicarágua, para citar algumas delas). Além disso, as tortuosas táticas do leninismo foram a melhor escola para que muitos políticos e organizações nascidas dessa matriz ensaiassem o mais descarado oportunismo, chegando a negar qualquer discurso ou intenção revolucionária. O colapso do bloco soviético e os fracassos notórios de linha autoritária marxista em nossos países deram álibis “politicamente corretos” para que esses “convertidos” à santidade da democracia burguesa iniciassem um caminho que, no futuro, lhes daria muitos frutos na escalada ao poder, que têm trilhado com absoluta devoção aos interesses do Estado e do capital. Com o colapso das certezas estáticas que regeram em décadas anteriores, as ideias e práticas ácratas voltaram a ter uma audiência que havia muito lhes era desconhecida, ainda que isso não tenha gerado novo auge imediato ou sem percalços. Às vezes agiram influências de fora da área continental, quando ficou claro que vinha do âmbito libertário aquilo que de mais destacado acontecia no que se refere à reativação das lutas sociais, à organização coletiva para além dos falidos modelos leninistas e às propostas revolucionárias a eles associadas. Somado a isto, houve a descoberta que faziam diferentes atores sociais, em contextos diferentes, tanto das ideias do anarquismo quanto da sua história em nossos países, tendo em vista que estava se enfraquecendo a exclusivista hegemonia doutrinária do marxismo e seus partidários. Assim, durante um período que chega até hoje e abrange 34

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todos os cantos da América Latina, um número crescente de ativistas, de jovens com perguntas e inquietações, de mulheres, de indígenas, de estudantes, de trabalhadores, de pessoas com curiosidade intelectual, aproxima-se do ideal anarquista com um interesse que só tem precedentes naquele que despertou no início do século XX. Por volta de 1995, quando a internet era uma novidade apenas disponível para uma minoria na América Latina, começou-se a usá-la como forma de contato, troca e divulgação do anarquismo, demonstrando ser altamente adequada para esses fins. Por isso, quando nos anos seguintes essa rede de redes gradualmente se abriu para um uso bastante difundido entre a população, consolidou-se como uma ferramenta muito valiosa nesse ressurgimento do anarquismo. Isto não só pelas possibilidades de comunicação instantânea, ou troca de informações em grandes volumes e custos cada vez mais baixos, mas porque ela tem promovido modos de relacionamento horizontal, coordenação não-hierárquica e ação em rede que são, desde sempre, práticas anarquistas.

Vivemos nos últimos vinte anos o que me atrevo a chamar de retorno do anarquismo latino-americano, com indicadores precisos e verificáveis: multiplicação de publicações periódicas (impressas e virtuais), junto com renovados esforços para divulgar livros e panfletos libertários clássicos ou recentes; o contínuo brotar de coletivos e espaços de inspiração ácrata (mesmo em lugares sem antecedentes anarquistas); plurais e criativas expressões de ciberativismo; ressurgimento notável da militância, das propostas e dos símbolos do anarquismo em diferentes situações de luta social; manifestações vivas e reconhecíveis em diversos âmbitos da cultura, seja nas artes figurativas, no palco, na 35

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música, na literatura, na pesquisa ou na reflexão sócio-histórica. Tudo isso de alguma forma evoca o panorama libertário continental de um século atrás, porém, destaca uma diferença crucial: falta a primazia do foco e da ação anarco-sindicalista que existiu naquela época. Não cessam os esforços para recuperar algo da visibilidade de outrora, mas salta à vista a lenta recuperação do anarquismo no meio laboral quando comparada a outros campos da vida social. O quadro do anarquismo no Novo Mundo completa-se com as referências às tensões e desafios com os quais deve lidar hoje em dia, destacando-se três fontes para esta reflexão. Primeiro, o livro póstumo do saudoso companheiro Daniel Barrett, Los sediciosos despertares de la anarquía8, que contém a melhor análise sobre as realidades e tarefas a cumprir hoje pelo movimento anarquista na América Latina; por isso sua leitura é recomendável como a do prólogo de Cappelletti. A segunda referência é a lista de correio eletrônico Anarqlat9 que, desde 1997, tem sido fórum virtual de troca para o movimento libertário continental, razão pela qual nele se manifesta, e de forma significativa, sua história recente. O terceiro apoio está no site do jornal venezuelano El Libertario, em cuja seção “textos” existem densos e diversos trabalhos em torno da atualidade do anarquismo latino-americano, além de um dossiê que compila a literatura sobre este assunto na edição impressa deste porta-voz ácrata que circula desde 1995. Todo o anteriormente mencionado, a respeito da recente publicação de obras que abrem um caminho promissor para reconstruir a memória do anarquismo latino-americano, sem dúvida contribui para o avanço do conhecimento histórico e para esclarecer debates entre os 36

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estudiosos, mas para nós é de extrema importância em função da recuperação da capacidade para expor interpretações próprias e pertinentes sobre a sociedade, a política e a cultura dos nossos países, o que requer uma compreensão completa do que fomos, de quem somos e do que queremos ser. Precisamos então de uma história resgatada das armadilhas positivistas, liberais ou marxistas. É necessário, também, o conhecimento e o aprofundamento recriador do ideal ácrata, superando preconceitos contra o saber e a capacidade intelectual alheios à tradição anarquista, de pessoas que lêem para refletir, discutir e construir a utopia possível. Isso é altamente relevante para o presente e o futuro do anarquismo na América Latina, pois devemos reconstruir e fazer avançar um pensamento/ação próprio, diferente não só daquilo que é colocado pelos nossos óbvios adversários da direita, mas do que propõe um marxismo que, em diferentes partes do continente, atua agora como gerente do Estado e da salvaguarda dos interesses do capitalismo globalizado, papel que seus variados expoentes cumprem rigorosamente, apesar das diferenças de maquilagem. Seria desastroso para o nosso movimento se fosse incapaz de definir este curso autônomo que foi um dos seus pontos fortes no passado, que de modo algum significa isolar-se, mas manter seu próprio perfil e não diluir nossos objetivos específicos. Já dissemos que é obrigação do anarquismo se recriar para atender às novas circunstâncias, mas distorceria a sua identidade se o fizesse procurando eficácia nas desgastadas plataformas organizacionais do leninismo; se promovesse o anti-imperialismo como um grito de denúncia contra o agressivo intervencionismo ianque, mas que se cala diante de outras potências imperiais de espírito semelhante; se questionasse o capitalismo privado para 37

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justificar o capitalismo de Estado; se aceitasse que os avanços na conquista do pão justificam os retrocessos na conquista da liberdade; se propusesse que, com a tolerância e ainda o patrocínio de “Estados progressistas”, seria possível construir “poder popular”. Enfim, se o anarquismo recair nos caminhos que conduziram ao marxismo como opção para uma mudança revolucionária positiva, paradoxalmente, daria razão aos agouros do autoritarismo vermelho sobre a impossibilidade do socialismo libertário. Desde as décadas de 1930 e 1940, o anarquismo latino-americano tem um desafio pendente: como lidar com sucesso com a demagogia do nacionalismo populista, que em suas mutáveis variantes ainda é figura dominante no cenário político continental. A atual onda de “governos progressistas” é o novo disfarce desse antigo adversário, que é de vital importância ser contestado com respostas no nível prático e bem articuladas na teoria, que tornem evidente aos olhos do coletivo a fraude dessas alegadas realizações estatais e supostas boas intenções dos governantes, de modo a promover e atuar, desde as bases, para construir opções realistas de ação autônoma, alheias às disputas sobre o manejo do Estado e independentes das instituições de poder. Estas ideias gerais (e sua aplicação prática) ainda requerem muita reflexão e trabalho por parte do movimento ácrata na América Latina, uma vez que certamente já não há mais lugar para repetir equívocos marxistas, tampouco espaço para ignorá-los agora, deixando-os para mais tarde, ou ainda para optar pela tolerância cúmplice ou por apoiar como aliados menores populistas “menos piores”, aqueles que se dizem de esquerda ou socialistas. Evidências da urgência deste desafio, das confusões que gera e do dano persistente que o 38

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anarquismo tem sofrido por não decifrá-lo, é que agora temos de lidar com os “anarco-chavistas” na Venezuela, como se não fossem suficientes as lastimáveis paródias do “anarco-peronismo”, do “anarco-battlismo” no Uruguai e do “anarco-castrismo” cubano. Insisto em algo que considero essencial para que o esperançoso retorno ácrata termine de enraizar: é preciso consolidar o anarquismo como ferramenta válida e construtiva para as lutas sociais autônomas de hoje, que as oriente em direção à perspectiva de revolução inerente ao ideal libertário. Sem dúvida, o impulso do atual renascimento na América Latina tem suas raízes conjunturais nos processos da cultura de massas como a difusão do punk, processos intelectuais como a revitalização do interesse pelas ideias ácratas, e processos políticos como a irrupção neozapatista desde 1994, e o auge do movimento antiglobalização a partir de Seattle 1999; mas se posteriormente tem conseguido se manter é porque, em muitos aspectos, consegue conectar-se com demandas e conflitos coletivos como poderá verificar qualquer um que percorra o panorama contemporâneo de ativismo e de luta social continental. Ainda que não sejam tão sólidas e difundidas quanto gostaríamos, essas conexões existem, oferecendo uma possibilidade que seria imperdoável deixar passar.

Concordo com a afirmação de que o anarquismo será ação social ou não será. Adiar ou subordinar essa ação em função de feitos exemplares, da profecia e dos ensaios de “dias de fúria”, de um pessoal “estilo de vida livre” que se torna um pretexto contra a solidariedade, de se isolar em um anarquismo para o cultivo intelectual ou gozo estético, condenaria o nosso ideal à esterilidade e à inércia. 39

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Entrando na parte final desta palestra, vou apresentar uma lista de escritores anarquistas latino-americanos, que eu pessoalmente considero as figuras mais importantes do pensamento libertário continental. Chamemos de “clássicos” os que escreveram antes de 1950: Enrique Roig San Martín (cubano; 1843-1889), Manuel González Prada (peruano; 1844-1918), Ricardo Flores Magón (mexicano; 1873-1922), Rafael Barrett (hispano-paraguaio; 18761910), Luisa Capetillo (portorriquenha; 1879-1922), Edgard Leuenroth (brasileiro; 1881-1968), José Oiticica (brasileiro; 1882-1957), Francisco Pezoa (chileno; 1885-?), Diego Abad de Santillán (hispano-argentino, 1897-1983).

Há, também, os “contemporâneos”, que se destacam a partir da segunda metade do século XX: Jacobo Maguid (argentino; 1907-1997), Luce Fabbri (ítalo-uruguaia; 1908-2000), Abraham Guillén (hispano-uruguaio; 19131993), Edgar Rodrigues (luso-brasileiro; 1921-2009), Ángel Cappelletti (argentino-venezuelano; 1927-1995), Roberto Freire (brasileiro; 1927-2008), Rubén Prieto (uruguaio; 1930-2008), Alfredo Errandonea (uruguaio; 1935-2001), Rafael Spósito (alcunha de “Daniel Barret”) (uruguaio; 1952-2009). É imperativo mencionar, também, os agrupamentos e propostas coletivas mais destacados, já extintos ou ainda existentes: Asociación Continental Americana de Trabajadores – ACAT/AIT, Casa del Obrero Mundial (México), Centro de Cultura Social (São Paulo, Brasil), Centro de Estudios Sociales Germinal (Costa Rica), Colônia Cecília (Brasil), Comunidad del Sur (Uruguai), Confederação Operária Brasileira, Confederación General de Trabajadores (México), Diario La Protesta (Argentina), Federación Obrera de La Habana (Cuba), Federación Obrera Local 40

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(La Paz, Bolivia), Federación Obrera Regional Argentina, Federación Obrera Regional Peruana. Federación Obrera Regional Uruguaya, IWW – Industrial Workers of the World (Chile e outros países do continente), Partido Liberal Mexicano, Periódico La Protesta (Peru), Revista Guángara Libertaria (mantida por cubanos no exílio). Do mesmo modo, segue uma amostra da diversidade que existe hoje entre as centenas de presenças da Internet ácrata latino-americana: AculturA/ La Libertaria – Venezuela (acultura.org.ve), Archivo Anarquista Peruano (anarquismoperu.noblogs.org), Coletivo Ativismo ABC e Casa da Lagartixa Preta – Brasil (ativismoabc. org), Cuba Libertaria (issuu.com/ellibertario/docs e nodo50.org/ellibertario/cubalibertaria.html), Federación Anarquista de México (congresolibertario.blogspot. com), Federación Libertaria Argentina (libertario.org. ar), Federación Obrera Regional Argentina (fora-ait. com.ar), Grupo José Domingo Gómez Rojas/Chile (grupogomezrojas.org), Hommodolars Contrainfo – Chile (hommodolars.org/web), La Libertad/Costa Rica (lalibertadcr.blogspot.com), La Papalota Negra/El Salvador (papalotanegra.noblogs.org), Mujeres Creando/Bolívia (mujerescreando.org), No borders, no nations/ Anarquismo “latino” en U$A (butterflyrevolt.tumblr.com), Núcleo de Sociabilidade Libertária/Nu-Sol/Brasil (nu-sol.org), Periódico Anarquía/Uruguay (periodicoanarquia.wordpress.com), Periódico Sin Permiso/Paraguay (periodicosinpermiso.wordpress.com), Radio Piromanía – Colombia (radiopiromania.latenia.net), Semilla Libertarias – Porto Rico (semillaslibertarias.blogspot. com), Soma, uma terapia anarquista – Brasil (somaterapia.com.br). 41

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Saint-Imier, Suíça. Agosto 2012 Tradução do espanhol por Nélson Méndez. Revisão da tradução por Thiago Rodrigues.

Notas 1

Disponível em www.nodo50.org/ellibertario.

Ángel Cappelletti e Carlos Rama (orgs.). El Anarquismo en América Latina. Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1990. [Edição impressa esgotada; digital diponível em www.bibliotecayacucho.gob.ve/fba/index.php?id=97&no_ cache=1&download=155.pdf ]. 2

Orlando Villanueva, Renán Vega, Juan Gamboa, Amadeo Clavijo e Luis Fajardo. Biófilo Panclasta, el eterno prisionero Ediciones Alas de Xue, 1992. 3

Frank Fernández. El anarquismo en Cuba. Madrid, Fundación de Estudios Libertarios Anselmo Lorenzo, 2000. 4

Rubén Trejo. Magonismo: utopía y revolución, 1910-1913. Cidade do México, Editorial Cultura Libre, 2005. 5

Rafael Deminicis, Daniel Aarão Reis e Carlos Addor (orgs.). História do Anarquismo no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Mauad/Eduff, 2006; 2009. 6

Huascar Rodríguez García. La choledad antiestatal. El anarcosindicalismo en el movimiento obrero boliviano. Buenos Aires, Libros de Anarres, 2010. 7

Daniel Barret. Los sediciosos despertares de la anarquía. Buenos Aires, Anarres, 2011. [Também disponível em www.quijotelibros.com.ar/anarres.htm]. 8

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Disponível em https://lists.riseup.net/www/info/anarqlat.

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declaração final do encontro internacional do anarquismo, st. imier, suíça, agosto de 2012 I.F.A. Após cinco dias de debates e trocas para lembrar nossa história, preparar nossos combates futuros e fazer convergir nossos esforços, reafirmamos o valor das posições e resoluções do congresso de St. Imier que fundam o anarquismo social, permitem seus futuros desenvolvimentos e garantem as bases de uma unidade de ação sincera entre todos os setores combativos e antiburocráticos da luta social. O congresso de St. Imier definiu-se como aberto à diversidade e à pluralidade dos pensamentos e das práticas do movimento operário antiburocrático e federalista, construindo, ao mesmo tempo, o movimento libertário nascente. Ele recusou a forma-partido, hierarquizada, institucional e eleitoralista, defendida pelas correntes do socialismo autoritário. Ele combateu a concepção estatista da mudança, que entendia e entende ainda hoje que a conquista, a ocupação do Estado, é um instrumento de transformação social. I.F.A., Internacional das Federações Anarquistas. verve, 22: 43-48, 2012

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O congresso de 1872 também proclamou sua vontade de combater qualquer tipo de organização hierarquizada, burocrática, constituída para exercer o comando e suscitar a delegação, a submissão e a obediência. Contra tudo isso, o congresso opôs a federação das organizações operárias e das lutas, assim como a livre iniciativa, o projeto socialista de gestão direta e de mudança social; ele também propôs a pluralidade das formas de organização de concepção não hierárquica no movimento operário, em suas lutas, e no projeto socialista libertário. Numerosas lutas, ações militantes e tentativas revolucionárias precederam e sucederam o congresso internacional de 1872. O anarquismo toma lugar nessa história. Ele constitui hoje um movimento político que reagrupa numerosas experiências e conquistas comuns a grande número de coletivos e de organizações específicas, sindicais de luta social e populares. O anarquismo traz sua contribuição à construção de um movimento coerente capaz de uma intervenção eficaz e forte, que busca a coerência entre os meios e os fins visando mudar radicalmente a sociedade. Para nós, o anarquismo alimenta as lutas sociais e se nutre dessas mesmas lutas. Ele contribui para o movimento popular de autoemancipação e de auto-organização. Cada resistência, cada luta, cada dissidência, cada alternativa coloca a questão da liberdade e da igualdade. Cada combate social abre possibilidades que devemos acompanhar em direção à liberação social e política. A transformação social radical que evocamos em nossos desejos e preparamos através de nossa ação só pode resultar da vontade, da livre determinação e do engajamento 44

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consciente das classes populares, dos indivíduos, mulheres e homens hoje dominados por esse sistema injusto.

Estamos em meio a uma verdadeira guerra social e econômica, com intensidades variáveis, mas sempre mais extensa, mais viva, mais brutal. Generaliza-se uma situação de insegurança social e de precariedade, que saqueia o bem comum, destrói os serviços públicos, busca suscitar o medo, a resignação e a submissão, impondo por toda a parte o capitalismo. Essa política é conduzida tanto pelos capitalistas quanto pelos governantes a seu soldo. Estes últimos tentam impor uma colonização total de nossas condições de existência, mobilizando para o serviço da reprodução do sistema todas nossas atividades. Paralelamente, existe uma recrudescência dos elementos das antigas dominações: patriarcado, discriminação de sexo e de gênero, xenofobia, racismo, sujeição, exploração. A renovação dessas desigualdades serve para reforçar a valorização capitalista e para garantir a reprodução geral do sistema.

O anarquismo denuncia um único sistema de enquadramento e de dominação que, a cada dia mais, obedece a uma lógica oligárquica. O anarquismo não desvaloriza de forma alguma os já existentes espaços de liberdades individuais e civis, os serviços públicos e de bem comum e as poucas políticas de redistribuição das riquezas, devidas às solidariedades sociais. Os anarquistas querem defender e ampliar essas aquisições. Todos esses avanços foram conquistados no passado por lutas sociais. A esperança de mudar a sociedade graças à conquista do poder do Estado é largamente desqualificada. A conquista do poder institucional, a integração no poder do Estado, a ação governamental e a participação nas eleições não 45

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trazem qualquer melhoria para as condições de vida comuns, para os direitos políticos e sociais. Pelo contrário, é na recusa de delegar ao Estado a definição e o governo do bem comum que as populações podem defender eficazmente seus interesses e suas aspirações. É agindo por elas mesmas, multiplicando e reforçando suas organizações, apropriando-se da riqueza social e dos meios de produção e de distribuição, impondo suas exigências, criando suas próprias formas de organização e lançando-se à luta no campo cultural que as classes populares podem se contrapor à barbárie e melhorar suas condições de existência. Os partidos de esquerda não se apresentam mais como forças de progresso e de justiça social. Eles não defendem nem mesmo suas aquisições anteriores. Pelo contrário, precipitam a ruína e o desmantelamento de nossas conquistas sociais. A burocratização do movimento operário e social, a política de delegação orientada para a integração nas instituições do Estado, a recusa da luta e a imposição da paz social a qualquer preço, a submissão aos objetivos, às estratégias e aos valores capitalistas de globalização, arrastam-nos a uma regressão social, política e ecológica de grande amplitude. É por isso que a eficácia da luta e a construção de alternativas concretas estão ligadas à ação direta popular, pois esta se ancora na convicção de que os grupos sociais devem se emancipar por si próprios e agir sobre uma base federalista e solidária. Nesta sociedade de classe não existe consenso nem compromisso possíveis capazes de satisfazer o interesse comum. Reivindicamos claramente o dissenso em relação aos poderes. A ação direta traz uma proposição aberta e plural de transformação social. 46

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verve Declaração final do Encontro Internacional do Anarquismo

Ela se desdobra numa pluralidade de formas de organizações e de ações capazes de federar as resistências populares. Os anarquistas agem no interior dos movimentos de luta para garantir sua autonomia, para federá-los numa perspectiva revolucionária e libertária, para construir o poder popular na direção da emancipação econômica, política e social. Nosso projeto é o do comunismo libertário. Reivindicamos a convergência das tradições e das experiências acumuladas nesse sentido: comunalismo livre, autogoverno municipal, autogestão, conselhos abertos e populares, sindicalismo de base, de combate e de gestão direta; livre acordo para a criação, a experimentação, a associação, o federalismo e as alternativas em movimento. Isso significa a construção, desde a base, de um poder popular direto, não estatizante. Queremos, assim, a ruptura com o capitalismo. Lutamos pela autogestão em uma sociedade futura fundada na liberdade e igualdade. Esse objetivo implica em formas de organização diversa em todos os âmbitos da vida social e econômica. Tal orientação evoca uma sociedade autoinstituída, um desenvolvimento social e econômico livremente escolhido. A socialização das forças de produção e de troca, e a autogestão social constituem sua forma principal. Um acesso igual aos recursos disponíveis e renováveis e aos meios da sociedade sustentam as possibilidades de livre associação, de experimentação econômica e de exploração das condições de existência. A autogestão funda-se na livre organização daquelas e daqueles que trabalham, consomem e são membros da sociedade após a abolição do Estado, num quadro 47

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de autoinstituição política, de democracia direta e direito das minorias. O anarquismo social, o anarco-sindicalismo e o sindicalismo revolucionário, assim como o comunismo libertário, defendem um projeto político fundado na coerência entre fins e meios, entre ações cotidianas e lutas revolucionárias, entre movimento crescente de autoemancipação e transformação social radical. Desde 1872, nosso movimento contribui com muitas outras mulheres e homens livres para abrir esse caminho. Nosso compromisso hoje é de prosseguir com esse projeto tão longe quanto ele for conduzido pela ação direta dos povos. St. Imier, 12 de agosto de 2012 Todas as organizações que assim desejarem poderão assinar esta declaração, sejam ou não membros de Anarkismo. Enviar email para info@rebellion-osl-ch Organizações signatárias (23/08/2012):

Organisation Socialista Libertaire (Suíça); Política y Sociedad (Chile); Alternative Libertaire (França); Radio Regeneración (México); Federazione dei Comunisti Anarchici (Itália); Grupo Libertario Via Libre (Colômbia); Multiforo Alicia (México); Centro de Investigación Libertaria y Educación Popular (Colômbia).

Tradução do francês por Martha Gambini. 48

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verve Sobre a declaração final do Congresso...

sobre a declaração final do congresso de st. imier/I.F.A.1, agosto de 2012 nu-sol

Os anarquismos e os anarquistas saúdam a vida libertária dispensando-se de determinações teóricas ou supostos condicionantes conjunturais. Os anarquistas afirmam suas lutas diante de uma urgência presente, em cada instante e na atualidade de suas práticas, que não reduzem a vida a um objeto e a um objetivo da política moderna. A existência libertária é contestação da autoridade em qualquer lugar e a todo instante; é invenção de práticas segundo o que cada um faz libertariamente de si mesmo e associado. Isto jamais poderá ser sintetizado ou sistematizado em uma teoria, tampouco pode ser traçado enquanto verdadeira história, pois a história é feita com a honra dos inúmeros anônimos. Na vida anarquista a invenção de práticas e a afirmação de suas memórias são atualização das lutas, sem desdenhar que a memória, também, é um campo de batalha. verve, 22: 49-62, 2012

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Nós e a divulgação formal da declaração final

O Nu-Sol saudou com alegria a realização do Encontro Internacional Anarquista – 2012 St. Imier como esforço de uma memória de 140 anos sobre um momento decisivo dos anarquismos e possibilidades de diversidades. Enviamos nossa contribuição por escrito além de algumas das nossas produções audiovisuais realizadas nos locais em que trabalhamos e vivemos. Diante de um encontro internacional aberto aos libertários do planeta, informamos sobre nossas ações diretas e afirmamos nossas lutas. Nossas conversações libertárias não pretendem buscar diálogos com inimigos, aproximações, negociações ou sínteses. Pretendem abrir mais conversações, de guerra e de paz. A declaração final do encontro apareceu, eletronicamente, similar aos documentos-síntese das agências internacionais de Estados, que anunciam sempre contemplar a pluralidade das posições presentes e, com isso, suprimem o que não deve aparecer no programa geral de ação. Desnecessário lembrar que o encontro de 140 anos atrás, que animou esse de 2012, respondeu a uma manobra perpetrada por um grupo que almejava um único programa revolucionário para trabalhadores da época.

O vírus do pluralismo na Anarquia

O documento-síntese interdita a conversa de saída ao impor a convergência de esforços em torno de um anarquismo social. Pretende dar a entender que os demais anarquistas vivem numa bolha, são brandos ou impostores. 50

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verve Sobre a declaração final do Congresso...

Os que afirmam a urgência em deixar essa podre sociedade morrer não são ingênuos, nem mal intencionados, a ponto de ignorar os efeitos de poder dessa verdade nomeada como sociedade e que se pretende universal. Sabem que essa formulação teórica, antes de tudo, funciona como discurso de verdade que, dentre outras coisas, justifica seu duplo complementar: a sociedade política ou, se preferirem, o Estado. Segundo este documento, o anarquismo social é pluralista e declara reconhecer formalmente as demais “correntes”. Reivindica o lugar do anarquismo nas lutas trabalhistas, seu reconhecimento e contribuição às conquistas dos trabalhadores, garantidas pelo Estado.

Saúda as dissidências e os alternativos ao anunciar o combate à insegurança social, à precariedade do trabalho e realçar os protestos contra a perda de direitos sociais com renovação das desigualdades.

Não vê outra via que não a construção teleológica do momento final da vingança, numa revolução social que faria justiça a uma história de mais de 200 anos. É o plataformismo falando em nome de todos e pretendendo conduzir cada um.

A ação direta, para os integrantes do anarquismo social, não passa de um conceito tático, subordinado a uma estratégia teórica, tentada por Nestor Mahkno, a ser realizada por meio de um pluralismo federado que unifica as diferenças. Como o efetivado pela política liberal, todo pluralista deseja consolidar as identidades – o idêntico, o semelhante, o análogo e o oposto – em uma uniformidade que faz 51

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da diferença o objeto da representação para produzir e reproduzir sujeições e assujeitamentos. O pluralismo, incorporado por certos anarquistas, passou a ser o outro nome da política para os grupos de afinidades. Ao anarquismo social apetece organizar as federações a partir das demarcações jurídico-políticas e linguísticas das fronteiras estatais. Pretende constituí-las como federações regionais e nacionais até chegar à grande federação internacional. Entretanto, ainda tem como referência teórica o Estado-nação e suas divisões subestatais. Essa estratégia do anarquismo social é anacrônica! Com a elastificação transterritorial das fronteiras e o domínio das chamadas organizações e instituições internacionais, que pressionam o Estado para ajustar as regulamentações e regulações nacionais às globalizadas, os Estados também funcionam conectados em fluxos moduláveis de autoridade, violência e organização.

As melhorias e as minorias

O documento-declaração se inscreve no programa planetário de melhorias das condições de vida, só que desta vez por meio do que chamam de auto-instituição política, com democracia direta e garantia dos direitos de minorias. Desconhecem ou escaramuçam que as minorias foram capturadas pela racionalidade neoliberal e a democracia burguesa dentro das quais os trabalhadores desempregados protestam por novos empregos. Até mesmo as lutas ecológicas, tão em voga no presente, receberam somente uma anotação marginal, ignorando 52

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verve Sobre a declaração final do Congresso...

as inúmeras análises anarquistas sobre o tema, em especial nos EUA, por meio das concepções conflitantes de Jonh Zerzan e Murray Bookchin. Este último (também um discípulo de Hegel), tido como o pai fundador do anarquismo social – que os papagaios de piratas repetem ad nauseam – posiciona-se em oposição ao que lhe é insuportável e que chama de anarquismo como estilo de vida. Bookchin, além da disputa doméstica, elaborou uma densa análise sobre a ecologia já nos anos 1950 e que parece mal lida, incompreendida ou desconhecida pelos que professam o anarquismo social. Será que apenas teve seu conceito de anarquismo social capturado pelos sindicalistas e plataformistas que ele considerava ultrapassados?

Os primos brigados

Há uma estranha síntese em curso na qual os marxistas contemporâneos e certos anarquistas unidos constatam teoricamente a falência dos partidos e clamam pela necessidade de outra organização das massas para construção do poder popular. Pai Hegel (admirado por Marx e Bakunin) abençoaria essa união do céu dos sábios com a mãe História. Teria o hibridismo político de Daniel Guérin, finalmente, conseguido a conciliação entre os alegados primos brigados? Contudo, os donos da História, essa juíza universal da razão, jamais apagarão a memória viva dos libertários que seguem na luta e dos que não se refestelam e estapeiam no debate teórico, como soube muitas vezes fazer com desenvoltura o próprio Daniel Guérin. 53

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A memória das lutas não recorre aos escritos, combates e existências libertárias em busca de socorro das autoridades consagradas pela história para acomodar os sacerdotes da teoria ou sentinelas do anarquismo, porque muitos dos que a preservam e a atualizam sabem que são os combates no presente que norteiam os usos e abusos do passado. Cada luta, cada palavra e cada existência é memória que arde como combustível para o combate presente. Como lembrou Proudhon, ela se dá como revolução permanente, a pequena guerra que travamos nessa vida que é uma batalha. Nesse sentido a memória de dois anarquistas nos acompanha como alerta e alarme aos adormecidos no berço esplendido da verdadeira história e das emboloradas teorias. Um mais recente, Hakim Bey, lembrou: “Não proteste, desfigure!”. Outro, no começo do século passado, foi Émile Armand que diante da impossibilidade em definir um anarquista anotou: “Felizmente, jamais o reino da harmonia – estagnado, monótono e mortal –, se realizará sobre a terra. Sempre haverá contestadores, rebeldes, refratários, impérvios, críticos, pensadores, negadores, seres que amarão e odiarão vigorosamente, apaixonados, perturbadores, amorais, marginais, anarquistas. [...] Os que se preocupam, acima de tudo, com a escultura de seu próprio ser, não podem estar de acordo com os que não vão além da lenta transformação do ambiente.”

Teoria ou análise?

O documento de St. Imier fala de coerência entre fins e meios. Resvala para o velho e abolorecido jeito de fazer 54

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da política moderna. Devemos nos perguntar, com Emma Goldman, quais fins são estes e quais os seus meios? As respostas podem nos liberar de embarcar na aventura do justo para moralizar os fins, com revolução violenta ou revolução branda, sem esquecermos dos milhares de reformistas, alternativos e independentes.

A imposição de uma revolução, produzida pelos verdadeiros justos organizados segundo seu programa de ação política, apenas renova a precisa análise de Proudhon que situa a meta de uma revolução como preparação para a acomodação dos novos autoritários em nome da sociedade. É preciso deixar de exercitar a inócua distinção entre Proudhon e Marx, sublinhada por Lenin, a respeito dos meios diferentes para o mesmo fim.

A revolução pode ser um ato derradeiro contra o Estado, porque já existe uma sociedade mutualista e federativa, e mesmo dentro desta estarão os que se indisporão contra a Ideia de sociedade. Não há descanso para a luta, não há paraíso! Aos anarquismos não cabe sub-avaliar os espaços de liberdade. No capitalismo liberal e neoliberal os espaços de liberdade são antes de tudo espaços de segurança (da propriedade, do Estado, do cidadão). Essa primeira década de século XXI nos levou a sentir na pele que as garantias à liberdade são na verdade garantias de livre concorrência que produzem seguranças, seguros e assegurados configurando as massas de protestos por empregos, punições e ingênua esperança em controle da corrupção. Onde há Estado há corrupção!

Não há tecnologia de poder a ser politizada e, portanto, fica reduzido à retórica ou a uma estratégia ainda pouco 55

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definida ou dissimulada dizer que os anarquistas pretendem defender e alargar políticas de distribuição de renda (a mão liberal do New Deal como socialização de consumo) ou os mecanismos de rede de solidariedade social. Partidos, eleições e participações não trazem melhorias à vida libertária, e neste sentido os protestos independentes e indignados, mesmo lançando mão de táticas anarquistas, as pacificam em negociações governamentais. Qual anarquista quer melhorar na vida? Quem pretende isso, com todas as colaborações da sociedade civil organizada é o capitalismo de ponta com tecnologias e negócios sociais do desenvolvimento sustentável e a busca por garantir o futuro das gerações. O capitalismo sustentável capturou em grande parte a chamada sociedade civil organizada, dando a crer que a distinção teórica entre Estado e sociedade civil, que nunca passou de um artifício de dominação, hoje se encontra superada. Antes, foram teoricamente separadas para se apoiarem uma na outra; hoje, superada a separação, estão imantadas ou conectadas por meio de participações e jogos de interesses entre cidadãos e trabalhadores na empresa responsável, sustentável e cidadã. Cabe aos anarquistas embarcar em revisão teórica em nome da emancipação humana? Não há teoria anarquista possível e cabível voltada para a abolição do Estado. Fazer de certos anarquistas os seus teóricos na atualidade é chegar muito atrasado na história, é clamar pelo pastor, é perder a memória! Anarquista analisa cada movimento e se revira constantemente: seus intelectuais não são vanguarda, mas retaguarda! O lugar tranquilo da teoria está no pensamento burguês e no dos revolucionários do pas56

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sado. Bakunin, Kropotkin e Malatesta foram imprescindíveis para sua época. Bakunin e Malatesta foram analistas incisivos. Kropotkin tentou ir mais longe e propor, pelo avesso de Marx, um anarquismo científico, teórico, engessado, tentando corrigir o rumo justo para a evolução e o desenvolvimento humanos. O movimento anarquista nunca precisou de teoria para enfrentar o Estado, o capitalismo e o comunismo: eclode produzindo abalos, afirma cada individualidade e suas associações. Em certos momentos armou-se e combateu destemidamente, mas, no dia a dia da nossa vida, não deixou de interceptar qualquer relação de poder hierarquizado, por dentro e de fora dos anarquismos. Não há emancipação humana (fim) pela melhoria das condições de existência (meios). Com isso na cabeça, o neoliberalismo não só agradece como rouba nossas palavras de práticas preciosas como ação direta, autogestão, solidariedade e liberdade de se autogovernar (que não é sinônimo de livre-arbítrio), repaginando seus discursos em ONGs, fundações, institutos e empresas. Não estamos em regressão social, política e ecológica, como afirma o documento-declaração. Estamos em outro tempo histórico, que exige outros espaços libertários. Quem quer voltar ao passado idílico do burguês Rousseau ou ao comunismo primitivo tecnologizado do autoritário Marx? Proudhon mostrara que o comunismo é o regime da autoridade severa, no passado e no futuro. Estava enganado? Alguém ainda imagina a nova sociedade somente após abolir o Estado? Se for isso, os meios continuam os mesmos dos marxistas, a ilusão do igualitarismo é a mesma e o que se pretende é adequar-se aos meios organizativos. 57

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As lutas do século XIX e da primeira metade do século XX foram efeitos do iluminismo. Ainda hoje deve ser assim? Onde estão os sindicalistas revolucionários, quando o sindicato se transformou em empresa, parceiro de negociações governamentais e a gestão da empresa ultrapassou a fábrica? Taí um ponto impossível de discordância com as análises de Murray Bookchin. Nosso problema político não depende de partido, organização ou sindicato. Talvez de associações em federação livre das demarcações territoriais e com o mutualismo econômico. Um anarquista não engole ser identificado como alternativo: isso é coisa na qual as minorias ficaram ajustadas pelos direitos e capturadas pelas políticas de governo da empresa, do Estado, de suas vidas medíocres. Tornaram-se composições convergentes e majoritárias. Os anarquistas, ao contrário, sempre foram minorias potentes. Não se pode desconhecer os anarquistas que não se identificam como anarquista social (opô-lo a estilo de vida é julgar, subjugar, tentar colocar no ostracismo o que o liberalismo faz com desenvoltura democrática e o comunismo fez com tribunais populares justos). Os anarquistas estão em todos os lugares para incomodar e inventar suas liberdades sem pensar em segurança. Não são otários que se vestem de heróis. Não confundem suas intempestividades com descalabros, nem se fazem de cordeiros com diálogos mansos ou eruditos. Preferem ser anônimos e deixar a ribalta e o púlpito aos ilusionistas teóricos, aos supostos organizadores da massa, aos que se afirmam pluralistas e que se pretendem hegemônicos. 58

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Tudo bem com a turma do anarquismo social, mas nada aceitável essa história de ter de engolir que estão certos e pretenderem ter os demais sob seu programa. Nosso interesse comum não é o seu interesse hegemônico. Ninguém é autônomo!

Transcrevendo...

O site do Grupo Libertario de Acción Directa2 noticiou que o representante brasileiro, “como é habitual nestes grupos, apresentou sua corrente [plataformista ou especifista] como se fossem os únicos anarquistas no Brasil. Este comportamento é uma constante entre os plataformistas [ou especifistas como se chamam no Brasil], que se apropriam da linguagem do conjunto do movimento de maneira excludente. (...) É evidente que cada ativista tem uma ideia diferente de como levar adiante a luta. Ainda que compartilhemos mais ou menos ideias similares sobre a sociedade a que queremos chegar, a divergência quanto aos métodos a serem empregados é consideravelmente maior. (...) O problema surge quando esta divergência de critérios é usada como desculpa para justificar atitudes autoritárias contra os demais companheiros. (...) Seja como for, a atitude de certos grupos, coletivos e individualidades que se atribuem o direito de excluir os outros, em virtude de uma suposta falta de pureza ou ortodoxia, deve ser rechaçada”. O site do Grupo de Estudios José Domingos Gómez Rojas3 publicou uma crônica dos dias em St. Imier da qual destacamos as seguintes passagens: “no caso particular da mesa sobre ‘anarquismo e inovação política’, parecia que, às vezes, era uma inovação de finais do século XIX, com 59

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muitas fórmulas conhecidas, mas nesta ocasião tratava de assinalar o movimento dos indignados, sobretudo pelo seu caráter anárquico quanto organização”. Neste sentido, prossegue a crônica, citando o plataformismo ou especificismo de brasileiros dizendo que “pudemos articular nossas críticas e receios a este tipo de organização com outro olhar.” Sublinham o quanto são desconhecidas as práticas anarquistas latino-americanas por anarquistas europeus, e o quanto estes estão marcados pelas notícias sobre movimentos marxistas-leninistas, e concluem constatando o quanto nos desconhecemos na América Latina, inclusive dentro do Brasil, pois, “apesar de nosso espírito internacionalista, esquecemos a necessidade de encontros, da conversação sincera, da aprendizagem de nossas experiências, apesar de vivermos deste lado do mundo”.

Dizendo

O Nu-Sol afirma a vida libertária que se associa na luta, não se filia ao que teoricamente é definido como correntes dos anarquismos – somos abolicionistas do castigo, não estamos presos ou imantados a correntes –, e tampouco reduz suas lutas às afinidades ideológicas. Não lutamos pela liberdade, mas lutamos nesse mundo com liberdade, afirmando uma cultura libertária que não necessita de provas ou justificativas da História, tampouco de uma formulação teórica que ateste sua razoabilidade ou eficácia. Todo universal de liberdade supõe segurança e uma força que a garanta! Apreciamos, respeitamos e aprendemos com as lutas trabalhistas do passado, da mesma maneira que reconhece60

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mos seus esgotamentos nas disputas autoritárias e disciplinares no interior dos sindicatos.

Os jovens trabalhadores manuais e intelectuais de hoje talvez não tenham descoberto ao que estão sendo levados a servir, não por eclipse de consciência, mas por estarem satisfeitos com as benesses do atual capitalismo planetário, que exige que cada trabalhador se repagine como capital humano. Enquanto isso, os que se autoproclamam como resistência se estapeiam numa briga pela propriedade da memória do passado ou pacificando a luta entre primos brigados.

A vida libertária segue em luta com as dificuldades que cada lutador sente na pele, pois quem luta sabe que o sangue corre e escorre livre de conjunturas e das condições históricas determinadas.

Não disputa a verdade, afirma a existência como ação direta que nega as representações, da mesma maneira que considera e não despreza as chamadas interpretações verdadeiras e as abiloladas tentativas de unificação hegemônica em um programa revolucionário. O anarquista está desperto!

E se for o caso de buscar onde começa a anarquia que nos inflama, fiquemos com Sebastién Faure, inventor da palavra libertário e ativo militante das discussões sobre organização, pontualmente realizadas no final do século XIX, começo do século XX, emergidas por implicações do terrorismo anarquista e da brutal repressão estatal que se seguiu contra os anarquistas que praticavam e os que não praticavam o terrorismo.

Nossas palavras destinadas a todos os companheiros que puderam ir a St. Imier foram divulgadas somente pela ação direta de compas que a xerocaram; enviamos resulta61

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dos de diversas práticas documentadas que foram atiradas junto com nosso documento no ostracismo... Enfim, ao nosso modo fomos a St. Imier e voltamos de lá com a certeza de não sermos pluralistas e avessos às identidades, o que é comum aos juízes, aos superiores e aos majoritários. Em sua enciclopédia anarquista, Faure, generosamente, definiu o anarquista como quem nega autoridade e luta contra ela, seja lá qual for o lugar em que busca se instaurar, até mesmo entre os anarquistas. Que vivamos todos e que essa merda chamada diálogo – o saber do sacerdote sobre o consentimento do ignorante – tão afeito à polêmica – a prática doutrinária por excelência onde ninguém arreda o pé de sua platitude – a cada dia se transforme, pelo menos estre nós, em conversação. Viva a vida anarquista e saúde aos corajosos lutadores libertários!

Notas

Ver objetivos e princípios da I.F.A. em http://www.afed.org.uk/organisation/aims-and-principles.html. 1

Disponível em: http://grupolibertarioacciondirecta.wordpress.com/20 12/08/25/cronica-encuentro-anarquista-stimmier-2012/#more-1405. 2

Disponível em: http://grupogomezrojas.org/2012/08/31/cronica-los-dias-en-saint-imier-por-grupo-gomez-rojas/. 3

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rigorosamente de negro situação da morte no discurso e nas práticas do anarquismo argentino (1890-1910) martín albornoz

Introdução

No dia 25 de janeiro de 1909, suicidou-se em Buenos Aires o conhecido dirigente portuário anarquista Esteban Almada. A notícia da sua morte, fruto de uma “paixão amorosa” motivada pelo suicídio de sua companheira Luisa Matasari, encheu de penar o movimento libertário local. A crônica do seu enterro, publicada no principal veículo de propaganda libertária, o La Protesta, ocupou um lugar de destaque na primeira página, incluindo fotografias do cadáver de Almada e de sua companheira, algo completamente incomum nas notas necrológicas que, como se verá, abundavam na imprensa anarquista desde o final do século XIX. Segundo o cronista, o enterro “permitiu ontem que uma vez mais o anarquismo se manifestasse Martín Albornoz é graduado em História e doutorando na Universidade de Buenos Aires. Bolsista do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET/Argentina) e pesquisador do Instituto de Altos Estudios Sociales (IDAES), da Universidade de San Martín. verve, 22: 65-98, 2012

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entusiasta e solidário, pronto sempre a propagar com a ação e a palavra, movendo os costumes rotineiros com as concepções novas da vida e da morte”.

A crônica ressaltava o modo como os anarquistas ressignificavam o que consideravam “práticas rançosas”, para despertar nas consciências “vias desconhecidas” de emancipação e liberdade. Mencionou-se uma série de referências de forte carga simbólica: uma carroça sem cruz, uma manifestação – que, se de fato era de dor – também era um protesto contra a ordem social, os discursos dos companheiros junto do caixão. Para os anarquistas, o enterro de uma camarada era um ato político que introduzia uma ruptura em relação aos rituais funerários da burguesia. Uma vez, no cemitério da Chacarita, em Buenos Aires, foram entoadas as estrofes do hino “Filhos do Povo” que, em pleno cemitério “retumbavam como um insulto violento aos causadores de tantas e tantas mortes prematuras”. Por sua vez, com relação a outros enterros que aconteciam na mesma necrópole, o cronista afirma, como contraste, que “os acompanhantes dos outros mortos, que em carros luxuosos carregados com essas coras que são o emblema da vaidade dos endinheirados, olhavam estupefatos nossos companheiros que seguiam cantando junto ao pobre ataúde que levava o cadáver de Almada”1. Além da glorificação de sua memória, a morte de Almada trazia um problema de significado singular para os anarquistas, já que o companheiro exemplar não havia morrido em consequência da violência imediata do Estado, algo a que estavam acostumados. Ao contrário, Almada decidiu acabar com sua vida por razões íntimas. Isso não foi obstáculo para que, de todo modo, os anarquistas atribuíssem o

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peso de sua morte a uma vontade estranha à sua identidade anarquista e a seu universo de significados. Um dia antes do enterro, o propagandista libertário Eduardo Gilimón refletiu, a propósito do caso Almada, sobre as notícias necrológicas, que desprezava por estabelecer hierarquias entre os mortos. Não obstante, quando deu-se esse caso, viu-se na obrigação de fazer o mesmo: “alguns mortos escapam a esta minha resistência à necrologia jornalística. São os mortos que caem tragicamente, destroçados pela prepotência capitalista, ou dilacerados por esse meio carregado de atavismo e preconceitos”. Em qual dessas situações se inscreveria o suicídio de Almada? Evidentemente não se tratava de uma vítima direta da violência capitalista. Como caracterizar, então, a “paixão amorosa” que desencadeou a tragédia? O que faz com que um trabalhador inteligente, instruído e coerente decida acabar com sua valiosa vida para o movimento? A resposta encontrada por Gilimón é conclusiva: “O que aconteceu no cérebro de Almada diante do cadáver de sua amada? A razão turvou-se e sobre as ideias adquiridas sobreveio o sentimento, a força impulsiva, irresistível de paixão amorosa que subjuga e avassala até a cegueira, impedindo o funcionamento das demais faculdades intelectuais”. Nesse ponto, o suicídio se assemelhava de maneira notável às determinações sociais que nublavam o verdadeiro sentido da vida, que se resumia na luta contra a opressão e a construção do comunismo anárquico. De alguma maneira, Almada tinha sido vítima do mundo que combatia, “do ambiente”, convertendo-se em “outra vítima do amor passional!”, como também poderia ter sido de uma doença ou da exploração.2 67

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A crônica e a nota necrológica acima interessam porque resumem várias questões fundamentais para pensar as relações do anarquismo com a morte e as formas de processá-la em Buenos Aires, na passagem do século XIX para o século XX. Quando do suicídio de Almada, o anarquismo predominava na Argentina, competindo com o socialismo parlamentar no cenário do protesto social, com modos próprios de mobilização, de ocupação do espaço público, de interpelação aos trabalhadores, com uma importante rede de publicações e círculos de sociabilidade que excediam, em parte, o mero conflito das relações de trabalho. Dentre as formas de manifestar o mal-estar dos “oprimidos”, as “manifestações sinistras” – como denominavam os cortejos fúnebres – ocuparam um lugar importante nas suas práticas militantes, conferindo ao fato de morrer uma conotação fortemente política. Como explicita o caso de Almada, junto às práticas rituais, o anarquismo produziu uma sensibilidade peculiar diante da morte, que se, em certo sentido, era devedora do clima da época – como o positivismo, a sociologia e a antirreligiosidade –, também despontava como uma vontade de praticar uma propaganda voltada a transformar seu presente num sentido revolucionário. A morte foi compreendida, no discurso propagandístico, como uma característica central do sistema, o que permitiu aos anarquistas reunir numa mesma matriz explicativa uma enorme quantidade de modos de morrer que iam desde o leito do hospital até uma manifestação, atravessando e moldando as relações de dominação e exploração, incluindo o suicídio.

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A morte como totalidade

No que diz respeito às reflexões dos anarquistas sobre a morte, assim como em muitos outros temas, o anarquismo argentino não inovou muito em comparação ao que se havia pensado na Europa das décadas finais do século XIX. A morte como tal, fosse por causa violenta ou por doença, foi interpretada como um elemento intrínseco ao sistema capitalista, colocado como sua causa primordial e quase única explicação. Para os anarquistas, a preocupação com as formas de morrer, na grande maioria dos casos, esteve sempre relacionada às condições de exploração e higiene, à fragilidade da vida dos proletários, à repressão policial e às prisões. Os espaços de trabalho – fábricas, campos, minas ou selvas –, as cidades, a moradia dos trabalhadores, os quartéis, as prisões, os hospitais, as igrejas, e até o casamento, foram narrados e entendidos como mortuários ou espaço de morte em vida. Em larga medida, a propaganda e a literatura anarquista, em tom de “melodrama político”, inscreveu-se numa forma narrativa que atribuía ao capitalismo todo peso do funerário e do negador da vida. Assim, de modo marcadamente maniqueísta, operárias extenuadas com pencas de filhos famintos, mendigos congelados, trabalhadores anêmicos violados em sua dignidade, sifilíticos, tuberculosos, e anciãs obscurecidas pelo pensamento religioso, compunham um mesmo quadro crepuscular, que somente poderia ser alterado pela ação e pela palavra luminosa do militante anarquista, pelo cataclismo revolucionário e pela ação massiva e irrefreável da solidariedade. Outro modo de entender a morte teria significado para os anarquistas uma concessão ao obscurantismo religioso ou à mera especulação abstrata.

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O discurso anarquista reuniu, então, em uma só causa, as múltiplas formas de morrer, e voltou grande parte de sua ação política e cultural à sua denúncia, numa perspectiva de marcada indignação moral. A morte foi explicada e condenada sempre na qualidade de uma situação. Daniel Colson afirma que, para o anarquismo, a morte é situada e sintomática de uma ordem opressora. Até mesmo os casos em que se morre como consequência de rebelião, coletiva ou individual, as razões que compreendem a morte continuam estáveis: “A morte anarquista é sempre, justamente, uma morte em situação, em um momento e em relações de violência dadas, quando a afirmação da vida e a constituição de uma vida mais poderosa exigem rebelar-se e recompor essas relações de outra maneira”3. Em sua significação política, a morte e, com ela, a violência – atributos inerentes à organização estatal e capitalista das relações e interrelações sociais – não eram entendidas como uma realidade autônoma, privilegiada ou fundadora, sendo sempre um resultado determinado pelas circunstâncias. Matar ou morrer era entendido como algo socialmente explicado pelo sistema burguês injusto, inclusive nos momentos, muito frequentes na Europa na passagem entre os séculos XIX e XX, nos quais os anarquistas recorreram ao assassinato e ao terrorismo. Essa “externalização” da morte com relação ao seu próprio projeto trazia em si, no discurso anarquista, uma afirmação da vida que nem mesmo diante da situação mais dramática poderia se perder como horizonte orientador da conduta humana. A morte carecia de positividade quando morrer era uma esperável consequência do espírito de rebelião e da ação revolucionária.

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Nesse sentido, quando as pessoas escolhessem morrer pelas próprias mãos, a morte também seria determinada e compreendida dentro da regularidade da “situação”. O caso de Almada é um claro exemplo. No plano mais geral, o artigo intitulado “O suicídio”, publicado no La Protesta Humana, de Buenos Aires, após tratar de modo pungente casos emblemáticos de suicídio – a abandonada mãe de muitos filhos que se asfixia junto com sua prole numa casa miserável, o banqueiro falido que salta de um edifício, a bela garota com “mal de amor” que se envenena, o exausto operário que apenas se deixa morrer – afirmou: “A causa que determina esses atos é muito mais profunda e o mal que ocasiona não se cura com palavras, nem com a promessa de castigos maiores depois da morte. É a miséria, é o despotismo e a má educação que são os sintomas dessa doença. É a fome o que leva o proletário ao suicídio; é pela falta de pão e demais meios de vida que tantos homens, mulheres e velhos decidem retirar-se de um meio social; de modo premeditado e reflexivo, cansam-se de viver padecendo, vendo como outros gozam e dilapidam aquilo que, se bem distribuído, não seria causa nem de miséria de alguns, nem de soberba e vaidade de outros”4. Redundante, por conta das determinações sociais, o suicídio, em sua abrangência e por seu caráter policlassista, explicava a presença ubíqua da morte em toda sociedade. Não existia grande diferença entre morrer por vontade própria, morrer de tuberculose, morrer por um acidente de trabalho ou morrer pelas balas policiais. A explicação do problema social do suicídio era tão genérica, em termos individuais, como a solução que se propunha para erradicá-lo.

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Segundo o mencionado artigo, seria necessário eliminar a sede por riquezas, a ânsia de mandar, a moeda, o governo e o monopólio das terras, das casas e das fábricas. Seria preciso ensinar a prática da liberdade, da tolerância, do amor, da fraternidade, do apoio mútuo entre jovens e o cosmopolitismo. Havia que desprezar a educação patriótica, a embrutecedora religião e a lei, e educar-se em química, astronomia, física e história natural. Organizada assim a sociedade, os suicídios deixariam de fazer sentido e a morte ficaria independente de sua marca social. Os anarquistas, compreendendo desse modo a morte e suas diversas formas, conceberam a totalidade da história como um grande relato unitário e propuseram em seu presente uma espécie de estado de “luto permanente” que apenas poderia ser interrompido com o advento da anarquia entendida como a harmonia perfeita. Em termos de subjetividade política e de propaganda, compreende-se a obsessão que tiveram, muito cedo, no contexto da esquerda argentina, de elaborar uma série de práticas de rememoração dos mortos. Isso se vincula especificamente com a “função memorial” da propaganda anarquista. Marc Angenot afirma que a propaganda socialista e anarquista “enquanto interpreta a conjuntura, é um conservatório memorial, um martirológio” que organiza a vida militante em datas que concentram, por sua significação profunda, o sentido do ato de recordar e enaltecer os mortos. As datas-chaves desse doloroso calendário, na Argentina, foram o 1º de maio, concebido como dia universal de contrição e luta; o 11 de novembro, dia no qual foram enforcados os mártires de Chicago; e o aniversário da Comuna de Paris de 1871. Ao lado dessas fortes referências, os anarquistas argentinos 72

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intercalaram na sua imprensa seus próprios “nomes” de vítimas da luta contra a opressão. Nas palavras de Angenot, essa função memorial implica que “a propaganda pretende ter uma longa memória, não apenas para não esquecer nenhum nome do ‘martirológio operário’, mas também para incutir o desprezo das novas gerações aos ‘assassinos’ burgueses e aos ‘renegados’ operários”5. O exercício de recordar e elaborar uma tradição que guiasse a ação, num presente concebido como luta, implicou, assim, em certa seletividade – ainda que não na explicação de fundo – entre diferentes tipos de mortos-vítimas. Se todas as pessoas morriam por conta da desigual e autoritária organização social, era necessário selecionar aqueles casos mais destacados, nos quais a própria circunstância da sua morte conferisse traços particulares. A operária com seus filhos, o suicida sem alternativa, o doente terminal e o extenuado trabalhador anônimo davam a textura própria do sistema e de suas regularidades. Não obstante, sua condição de vítimas-plenas os fazia irrecuperáveis, permanecendo quase sempre no anonimato ou diluídos no relato geral dos anarquistas no momento de denunciar o capitalismo.

O critério geral, por parte dos anarquistas na Argentina, para recuperar certos mortos, no final do século XIX, foi sua vontade de luta contra a sujeição em vida. As causas da morte eram comuns com as do proletariado em seu conjunto, mas pelo simples fato do morto de ter sido um anarquista, era um sinal de que a vontade revolucionária merecia ser recuperada. Nas páginas da imprensa libertária eram anunciados continuamente os falecimentos de anarquistas. Esses pequenos textos comemorativos eram, ademais, uma incontornável fonte para recuperar, de al73

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gum modo, a autopercepção que os ácratas tinham de si mesmos. Por exemplo, o periódico El Rebelde anunciou assim a morte do anarquista José Consorti, acontecida em Florença, Itália: “Vítima dessa fatal ordem social, sucumbiu num miserável leito de hospital (...) minado pela tísica com que o atual ambiente domina a massa proletária. Recordemos a memória desse jovem companheiro”6. Similar é o anúncio da morte, no El Perseguido, de Luiz Albinola: “No dia 27 passado, deixou de existir, na oficina de reparos dos trabalhadores inutilizados pela exploração burguesa chamada Hospital de Clínicas da Capital, o companheiro argentino Luis Albinola, vítima da feroz doença da febre tifoide. Ainda que nosso companheiro contasse apenas com 18 anos, havia já provado todo o peso dessa maldita sociedade”. Com isso, o jornal convidava a acompanhá-lo na “última morada” e mandava os pêsames à “desconsolada família”. Em outras ocasiões, incluíam-se pequenos relatos do enterro. Por exemplo, Carlos Valpreda “pagou prematuramente seu tributo à mãe comum, a terra” depois de sofrer por muito tempo “uma penosa doença provocada pelo excesso de trabalho e escassez de alimentos. Compareceram ao enterro e pronunciaram sentidas palavras os militantes ácratas Telarico e Félix Basterrra. Sobre a tumba foram depositadas três coroas de flores vermelhas com as inscrições ‘Os anarquistas de Buenos Aires’, ‘A imprensa anarquista’ e ‘Os anarquistas de Floresta’”7. Situados nessa perspectiva na qual os anarquistas cuidavam de seus mortos, é importante frisar que, em termos das práticas funerárias libertárias de finais do século XIX, foi destacada uma importância plena aos símbolos que deviam acompanhar a despedida dos companheiros. Tudo era 74

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disposto de forma sumamente organizada e não podiam faltar palavras de dor dos amigos, a colocação de coroas, o luto, a presença no cemitério e os pêsames aos parentes. Essas práticas que podiam não inovar em comparação com as formais mais tradicionais, diziam respeito à significação política que lhes eram conferidas. Em determinadas ocasiões, os anarquistas pretenderam desafiar, com sua presença e com seus atos, a paz dos cemitérios. Em junho de 1893, morreu um dos principais redatores do jornal El Perseguido, talvez o meio de propaganda mais radical da história do anarquismo portenho, defensor da linha mais antiorganizadora, mais proponente da ação direta e, em seus próprios termos, o mais amoral e individualista. A ocasião implicou para o periódico uma perda notável, de acordo com o caráter ilustre do morto. Rafael Roca, segundo a elegia publicada em sua homenagem, foi militante em vários países, perseguido sempre pela polícia, querido até por seus inimigos, dono de uma oratória “que com sua palavra eletrizava quem o escutasse, convencendo a todos”, além de ser comedido em seus hábitos. Doente, primeiro, de gripe espanhola, depois, de febre tifoide, morreu “sob o golpe” de um ataque cerebral. Sua morte foi “uma perda para a propaganda de nossas ideais e todos perdemos um bom companheiro e um bom amigo”8. A crônica do enterro era detalhada e tinha características, como veremos, que seriam compartilhadas pelos muito enterros da primeira metade do século XX. Cerca de trezentos anarquistas, os mais íntimos, acompanharam os restos de Roca de sua casa mortuária ao cemitério da Chacarita. O féretro ia coberto com uma bandeira vermelha e negra, e ao longo do caminho os gritos de “Viva a Anarquia!” repetiam-se, enquanto a 75

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fila dos seguidores aumentava. Ao chegarem, faltavam quatro minutos para as cinco, horário em que, segundo seu regulamento, o cemitério fechava. Os funcionários da Chacarita se negaram a enterrar o ataúde e ofereceram, em troca, guardá-lo em um depósito até o dia seguinte. A partir desse momento, o relato não é mais o de um funeral, mas se transforma na crônica de um enfrentamento: “Os companheiros não vacilaram um momento sequer. Tiraram o féretro do carro fúnebre e, sem parar por nada, foram todos ao lugar onde estavam abertas as sepulturas e, na primeira que encontraram, depositaram o caixão; e, não havendo com quê cobri-lo de terra, usaram as mãos e os pés, gritando: ‘Assim enterramos nossos companheiros quando a burguesia e a autoridade não nos permitem! Morra a autoridade, abaixo a burguesia!’ Em menos de cinco minutos, ficou enterrado”. Enquanto isso, o administrador do cemitério, após pedir ajuda, apareceu com coveiros e peões armados com bastões e rastelos. Também foram fechadas as portas para que ninguém pudesse escapar, ainda que, com essa manobra, tenham prendido pessoas sem qualquer relação com esse acontecimento, que estavam presentes a outros enterros. Nenhum anarquista quis escapar. Pouco depois, chegou a polícia, que sem pretender deter a todos, contentou-se em levar três libertários que tinham à mão. Para evitar que o conflito aumentasse, o restante se absteve de querer liberar esses presos. Uma vez na sede do cemitério, os três detidos e o administrador da Chacarita tiveram o seguinte diálogo: “Administrador: Como vocês se atrevem a armar um escândalo nesse lugar sagrado? Não sabem que essa terra não é de vocês? 76

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Um preso: Que bruto! Sabemos muito bem que essa terra é dos mortos. Administrador (dirigindo-se ao chefe de polícia): Esses senhores enterraram um cadáver depois que a porta já estava fechada. O mesmo preso: Mas é, mesmo, muito torpe! Um mentiroso! Por onde haveríamos de entrar com o cadáver se a porta estivesse fechada?”. Em seguida, os presos foram levados à delegacia 22 do bairro de Belgrano, onde ficaram detidos dois dias, após negarem-se a pagar fiança de noventa pesos. Depois de uma tentativa do administrador de violar a tumba, decidiram deixar Roca onde estava ao saberem que morrera de tifo. A conclusão da empreitada foi no dia seguinte: “Aquele que, em vida, foi nosso companheiro Roca, foi enterrado como merecia: a despeito de todas as autoridades que a isso se opunham, contra as quais dedicou sua vida. Acontecimentos como esse encorajam os propagandistas e extirpam das massas muitas preocupações engendradas por uma falaz educação”.

As manifestações sinistras: mártires, símbolos, ritos e mobilizações

Ao despontar do século XX, o anarquismo, após dirimir suas divergências internas – entre os que pregavam a ação sindical e coletiva e os que não eram partidários de nenhuma organização estável que excedesse os laços imediatos de afinidade de seus membros – tornou-se a força majoritária a organizar o movimento operário. Em paralelo, e em aberta competição com os socialistas já cons77

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tituídos como Partido Socialista, os anarquistas foram elaborando e colocando em funcionamento um amplo repertório de práticas políticas e culturais com o propósito de dotar o nascente e cosmopolita movimento operário na Argentina de uma identidade especificamente libertária. Entre elas, as manifestações de rua ocuparam um lugar primordial. Os anarquistas se voltaram às ruas “com naturalidade”, numa Buenos Aires na qual existia, já há várias décadas, uma consolidada “cultura de mobilização” da qual participava amplos setores da sociedade. Nesse contexto, as manifestações anarquistas foram delimitando seus próprios contornos e singulares significações, exibindo altos graus de confronto e construindo uma cultura política que fez da utilização do espaço público um dos seus principais centros de gravitação. Ao mesmo tempo, em sintonia com as práticas de mobilização, os anarquistas se proveram de um denso conjunto de símbolos identitários: a bandeira vermelha – ou vermelha e negra –, hinos revolucionários, calendários próprios, estandartes, estilos de militância, linguagem de confronto e modalidades de ação. Esse novo contexto – marcado por um notável aumento do conflito social que se expressou na quantidade de greves e de manifestações de rua – fez com que os anarquistas argentinos considerassem novas formas de morrer que, se já eram bem conhecidas na Europa – e que foram brindadas com profusas homenagens – não deixavam de impactar ao acontecerem localmente. Se a morte, como vimos, era percebida como um elemento regulador e distintivo do capitalismo, morrer em uma manifestação ou em uma greve, demandou elaborar certas respostas concretas. Não bastava somente denunciá-las na imprensa. Quando a tropa policial avançava sobre um grupo de ma78

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nifestantes, ou contra um piquete de greve, deixando atrás de si mortos, o sistema desnudava de forma “pornográfica” sua própria essência. Nesses casos, a conhecida capacidade de mobilização libertária colocava-se a serviço da homenagem aos que tombaram e à denúncia do sistema. Por outro lado, assim como os mártires de Chicago ou os fuzilados da Comuna, aqueles que morriam em situações de violência como essas não o faziam na condição de vítimas anônimas, mas na de lutadores, campeões e heróis do proletariado. A explicação da morte, no fundo, era a mesma – a ferocidade do sistema homicida – mas os mortos requeriam um tratamento distinto tanto pela imprensa anarquista como no espaço público. Se, na última década do século XIX, a condição de morrer sendo anarquista era digna de ser homenageada, na primeira década do século XX, morrer lutando, em greves ou manifestações, era garantia de ingressar no “panteão” libertário.

A primeira vítima

Em outubro de 1901, em Rosário, Província de Santa Fé, mil operários da empresa açucareira Refinaria Argentina declararam greve, reclamando um discreto aumento salarial, o pagamento de horas extras e uma diminuição na jornada de trabalho. A comissão de greve foi à empresa para apresentar suas demandas. Do outro lado, o chefe de polícia da cidade, Grandoli, e seu ajudante, Maza, se ofereceram como mediadores. Ao chegarem para o encontro de mediação, o chefe de polícia prendeu a Ovidi, da comissão de operários, sob o pretexto de sua periculosidade, o que gerou rápida mobilização dos trabalhadores, exigindo sua libertação. No confronto que se seguiu, mor79

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reu o operário austríaco ou polonês – as informações são divergentes quanto a isso – Cosme Budislavich, de trinta anos, que tentou tomar as rédeas da diligência policial que levava Ovidi. Tanto anarquistas quanto socialistas afirmaram que Budislavich não tinha uma atuação destacada no anarquismo rosarino, e tampouco tinha familiares no país. Essa morte, no entanto, teve uma repercussão considerável na imprensa anarquista de Buenos Aires, pois foi tida como a primeira morte desse tipo na história da luta entre capital e trabalho na Argentina. Para La Protesta Humana, tratou-se de um crime feroz “com a proteção da força e da impunidade com que a sociedade burguesa premia seus maiores assassinos”. Um assassinato que, por sua violência e perversidade, “inflama o sangue e produz loucas vertigens de extermínio”9. Budislavich estava desarmado quando foi baleado na nuca, ao tentar escapar do comissário de polícia e seu assistente. Já o jornal La Vanguardia, porta-voz do Partido Socialista, enviou o destacado militante Adrián Patroni para informar sobre os acontecimentos de Rosário e publicou o seguinte obituário: “Cosme Budislavich: faleceu no dia 20 de outubro de 1901, assassinado covardemente pelos sequazes policiais de Rosário. La Vanguardia exige o castigo aos culpados e envia seus pêsames à classe trabalhadora do mundo inteiro”10.

Assim que correu a notícia do assassinato, uma comissão de operários foi ao Hospital de Caridade de Rosário para reclamar o corpo, com a intenção – não alcançada – de velá-lo e enterrá-lo. No dia seguinte, outra comissão, à qual se somaram mais de cem mulheres, tampouco conseguiu recuperar o cadáver. Enquanto isso, na Casa do Povo de Rosário, organizou-se uma “manifestação sinistra” 80

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com o mesmo propósito, quando, por ordem do juiz, foi permitido retirar o cadáver de Budislavich para enterrá-lo numa sepultura que lhe foi reservada no cemitério da cidade. Rapidamente, os trabalhadores levaram – encabeçados por sessenta operárias que traziam uma bandeira vermelha com fitas negras – o corpo ao cemitério. No caminho, a manifestação de mais de mil e quinhentas pessoas ruidosamente protestou em frente ao Palácio de Justiça. Durante o trajeto, a coluna sofreu o assédio do corpo de guarda da prisão; no entanto, “os operários estreitaram filas e avançaram de modo surpreendente, comovedor”. Ao chegarem à porta do cemitério, os trabalhadores não puderam levar adiante seu ato por pressão da polícia. Além da procissão fúnebre, que teve cores de desafio às autoridades, os operários de Rosário organizaram para o dia seguinte uma manifestação de protesto e conclamaram uma greve geral. Tal manifestação foi, aos olhos do socialista Adrián Patroni, “A procissão mais imponente que presenciei na vida. Sinceramente, foi uma agradável surpresa. Jamais poderia imaginar nada análogo, mesmo tendo em conta que nas diversas manifestações operárias dessa cidade, a nota especial tenham sido os gritos, vivas e cantos”. Após afirmar que tais características foram consequência da organização promovida pelo Centro Socialista Rosarino e a sua própria presença, Patroni continuou: “imaginem, nossos leitores, uma multidão composta por dez mil trabalhadores percorrer o trajeto de meia légua pelas ruas centrais, sem bandas de música, marchando silenciosos, sem que se ouvisse um só grito, impressionando tão favoravelmente que o alto comércio, membros do foro, numa palavra, tudo de mais culto de Rosário viu-se ante um desfile tão impressionante”11. 81

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Ainda sobre a importância do acontecimento, Gregorio Inglán Lafarga, diretor de La Protesta Humana, elevou Cosme Budislavich à categoria de mártir e “morto necessário” da causa: “necessitava esse belo movimento, que vem orientar as massas produtivas desse país, ser regado com o sangue dos mártires para produzir-se vigoroso e fecundo, como toda generosa aspiração do povo foi regada com sangue sob a dominação de todas as tiranias (...). Os ocorridos não são mais que incidentes preliminares da grande luta pela emancipação operária que se avizinha”12. A conversão de Budislavich em mártir, assim como os casos que veremos, provocou no discurso anarquista certos deslocamentos e readaptações. Em geral, como destaca Rafael Núñez Florencio para o caso espanhol, a ideia de mártir estava fortemente associada aos anarquistas que se voltaram ao terrorismo e à propaganda pela ação, que tinham plena consciência de sua vontade sacrifical: “oferecem em sacrifício suas vidas em prol de ideais que pretendem servir, em prol de companheiros que pretendem vingar, ajudar ou animar, e na esperança de uma futura sociedade melhor que, com seus atos, pretendem ajudar a conseguir” 13. Na Argentina, onde a prática do terrorismo, ainda que reivindicada por muitos grupos, não foi levada adiante senão anos mais tarde, a conversão do morto em mártir devia acontecer de outra forma e dotar todo tipo de luta – participar de uma greve, de uma marcha ou um ato – uma intensidade similar à do atentado. O que diferenciava o anarquista morto de outras vítimas do sistema era sua vontade de luta, que não prescrevia uma só forma para realizar-se. O rememorar de sua figura, sua estilização no recordar e sua inclusão na família dos mártires fun82

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cionava, então, de maneira automática sobre esse sentido inicial, que colocava os anarquistas em uma posição distinta diante da morte. Essa primeira morte apresentou alguns traços típicos que se enquadravam nas respostas que os anarquistas deram, no contexto do conflito social, ao assassinato de trabalhadores e militantes. A chamada “manifestação sinistra”, entendida como acontecimento fúnebre, mas também de protesto, foi o lugar designado às mulheres, à exibição de símbolos, ao desenvolvimento da solidariedade para com o morto e sua colocação no nível dos mártires da Ideia. Situações como essas possibilitavam certas resignificações e combinações de forte impacto simbólico. Tal era o caso, por exemplo, do caixão com a bandeira e sua exibição no espaço público. Juan Suriano chama a atenção para a significação desse aspecto, já que o féretro embandeirado passava a ocupar um lugar central no cortejo fúnebre, transformando o luto numa expressão pública – e de rua – que desafiava as autoridades ao “exibir seus mortos como uma bandeira de combate e luta, enquanto demonstrava a indignação pelo assassinato do camarada caído”14. É preciso mencionar, no entanto, que nem todos os anarquistas estiveram plenamente de acordo com a solenidade e o respeito destacados por Adrián Patroni como virtudes. Por exemplo, quando da manifestação que aconteceu em Buenos Aires para protestar contra a morte de Budislavich, o propagandista libertário Félix Basterra publicou um texto intitulado “Contra los paseos, la acción”. Nele, Basterra diminuía a importância das manifestações, como meio de propaganda, em ocasiões como essas: “motivados pelo assassinado do pobre companheiro Budislavich, todos acreditaram que, por ter dado um passeiozinho 83

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numa tarde acinzentada e de aspecto sério, contribuíram para o protesto vingador... Francamente é de dar pena que, em uma hora prefixada, os trabalhadores se vistam com cara de funeral marchando com a eloquência triste do silêncio”15. Afirmava-se, com as palavras de Basterra, que se demandava algo mais do movimento anarquista do que simples demonstrações de rua como forma de homenagear os mortos: algo que somente se poderia obter com um redobramento da ação.

1º de maio de 1904

No imaginário comemorativo libertário, o 1º de maio significou tanto uma homenagem aos mártires como um desafio às autoridades e um modo de apropriar-se das ruas da cidade. Desde 1890, anarquistas e socialistas construíram uma tradição em torno da data com regularidade, atribuindo em cada caso significados distintos. Se, para os socialistas, significou a data ideal para expandir suas forças de forma ordenada e com algum traço de festividade, para os anarquistas, o 1º de maio implicou, de forma unânime, um dia de luto, combate e memória de todas as vítimas da opressão. Em ambos os casos, se observavam, pontualmente, as formas de organização, fossem a dos percursos das manifestações, do programa das atividades ou da escolha dos oradores. A diferença nos modos de afrontar e interpretar o 1º de maio repercutiu no modo pelo qual as autoridades responderam a cada caso. Durante a manifestação do 1º de maio de 1904, segundo informou La Protesta, “esse dia de grande expansão coletiva” se desenrolava em total calma, em meio a “vivas”, “cânticos” e “músicas”. O clima, um sol radiante e 84

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uma temperatura agradável, acompanhavam a demonstração no seu percurso. Desde a Plaza Lorea foram desfraldadas bandeiras, no trajeto saudaram a sede de La Protesta e, ao chegar à Plaza Mazzini, bem no centro da cidade, os oradores tomaram posição na tribuna. De imediato: “soou o primeiro disparo, e logo depois, uma saraivada de balas; os revólveres em seu desesperado vomitar de balas, pérfido e assassino, com implacável sanha, com fúria incontível, produzindo a dispersão precipitada, o tumulto dos que, decididos a morrer, queriam vender caro suas vidas; o levantar de mulheres lançadas ao chão, com suas roupas em trapos, o refugiar-se de homens sem armas que se protegiam atrás de árvores, de bancos de praça e das plantas”16.

Logo os grupos se dispersaram entre os golpes de sabre e os disparos da polícia. Ainda não havia terminado as agressões, quando um grupo de manifestantes se reuniu em torno dos feridos e dos mortos. O corpo de um deles, José Ocampo, tornou-se objeto de disputa com a polícia, quando um grupo de anarquistas levou-o, nos ombros, ao escritório de La Protesta, onde o acomodou numa escada, à guisa de maca: “Desse modo, e envolto na bandeira com que, momentos antes, se saudava a coluna, o cadáver foi transportado até a rua Reconquista e, logo depois, pelas avenidas Entre Ríos e pela Chile, nas quais os transeuntes tiravam o chapéu ao passar do grupo. Em vão, a polícia tentou duas ou três vezes deter a fúnebre marcha da procissão”. Ao chegar à sede da Federação Operária Regional Argentina (FORA), a principal do país, conduzida pelos anarquistas, alguns militantes na sacada falaram “com a energia e a indignação que merecem os atos de tal selvageria”. Logo após, o corpo de Ocampo foi levado para dentro da sede. Em poucos minutos, a polícia e uma bar85

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ricada de bombeiros se concentraram às portas do edifício, provocando nova debandada que deixou, tanto o morto quanto o prédio, aos cuidados de “um indefeso homem”. Diante de tão frágil resistência, o local foi invadido e o corpo de Ocampo sequestrado e enterrado numa fossa comum no cemitério da Chacarita. Segundo informou La Protesta de 4 de maio, “depois de servir de pasto às pesquisas dos estudantes de medicina, convertido em dejetos de hospital, os despojos do operário Ocampo, a trágica vítima dos assassinatos policiais (...), foram parar na fossa comum em um canto pútrido da Chacarita”17. Alguns anarquistas inquiriram as autoridades do cemitério sobre o lugar onde descansavam os restos e decidiram comprar uma sepultura, que foi paga com doações. Em sinal de luto, a Federação Operária, anarquista, e a União Geral dos Trabalhadores (UGT), socialista, deixaram suas bandeiras a meio mastro, colocando-lhes uma fita negra nas lanças das hastes. Os escudos dos demais centros operários foram, também, marcados pelo luto, e até mesmo o Centro Socialista baixou sua bandeira em sinal de protesto. As mulheres, uma vez mais, foram destacadas como ativas participantes das homenagens: “é digna de menção a conduta das companheiras de Villa Crespo, que não perderam a compostura durante o tiroteio, e que acompanharam até a Federação a coluna que conduzia o cadáver de Ocampo, tomando, nela, a posição dianteira”. Por último, se reprovou a conduta dos socialistas que mantiveram suas atividades apesar do ocorrido: “o que é de se estranhar, no entanto, é que os diferentes bailes e festas que figuravam no programa socialista para o domingo tenham sido realizados, apesar de tudo, apesar

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do descomunal e doloroso drama (será que não sabiam?) que afligia a família operária”. No caso de José Ocampo, diferentemente do que aconteceu em outras situações, os anarquistas se encarregaram explicitamente de dar um verniz heroico. Em princípio, no contexto no qual os imigrantes anarquistas podiam ser expulsos do país pela Lei de Residência, Ocampo, oriundo da região do Chaco, era argentino e, portanto, expressão do grau de penetração das ideias anarquistas no país: “não era um gringo (...) Ocampo, a vítima imolada pelas ferozes hordas policiais era argentino, nascido em Chaco Austral, tinha entre 22 e 24 anos e era foguista no porto da cidade”18. Ademais, Ocampo “caiu como um herói”. Com “voo de águia” tinha vindo a Buenos Aires, cidade de “abutres” e “hienas”, para conquistar seu pão. Foi um “férreo centauro dos pampas” que viveu e sofreu como seus irmãos trabalhadores. Tinha “cabeleira de centauro” e “semblante altaneiro”, as livres brisas dos pampas tinham “purificado sua carne de bronze”, “tonificado seus músculos”. Possuía “luz”, “amor” e uma “indomável audácia”. Desse modo, o trabalhador assassinado adquiriu estatura mitológica e ingressou, plenamente, no panteão libertário na qualidade de mártir. Ocampo, “que caiu como um leão de forte e poderosa garra, sorri possivelmente na lápide onde vão despedaçar seu corpo; sorri como sabem fazer os heróis, invencíveis heróis para os quais nem o número nem a traição conseguem acovardar”19. Ocampo, até então um anônimo operário, migrou por obra e graça da propaganda anarquista à posição de “herói da Ideia”.

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A greve dos inquilinos

Em 1907, os inquilinos em Buenos Aires entraram em greve, protestando pelo aumento dos aluguéis e pelas condições em que se encontravam. A greve, conhecida como “a greve dos inquilinos”, se prolongou, com picos de intensidade, ao longo de todo ano e envolveu a maior parte dos cortiços da cidade. Sobre as especificidades da greve, é preciso destacar que, além do fato notável e inédito de que, coordenadamente, parte dos moradores de cortiços portenhos tenham se negado a pagar os aluguéis, exigindo seu rebaixamento, os anarquistas tomaram como sua a luta, participando ativamente das ações, informando diariamente sobre a propagação e dinâmica dos acontecimentos e enfatizando a dimensão revolucionária da greve. Outro detalhe interessante da greve dos inquilinos foi a ativa participação das mulheres, não apenas como um elemento associado ao devir do movimento, mas também como enérgicas ativistas. Nesse contexto, na porta de um cortiço na Avenida San Juan, foi realizada uma manifestação de vizinhos para evitar o despejo de uma família. A polícia, que devia levar adiante o despejo, investiu contra os manifestantes, resultando morto o transeunte Miguel Pepe. Nos dias seguintes, La Protesta, com antes em outros casos, deu significado à parábola mortal de Miguel Pepe em termos de martirológio proletário. Sua morte haveria de ser fecunda e o nome de Miguel Pepe ficou associado, em sua face pública e política, à fila de sacrificados pela emancipação: “o povo sabe que em todas as cruzadas redentoras, seu sangue correu generoso porque ele é como semente que há de dar frutos fecundos de rebelião ao mundo”20. 88

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Ainda que a interpretação e a perspectiva sobre a morte fossem similares a outros casos, a natureza nova desse assassinato era, basicamente, a mesma que a da greve que, ao desvincular a questão social da estritamente laboral, descentralizava, também, a geografia possível dos conflitos e enfrentamentos contra a ordem estabelecida. O derramamento de sangue, no entanto, não foi o habitual: “não bastava o sangue derramado nas ruas e praças da capital, não bastavam as prisões em massa de bons e honrados trabalhadores que não tinham cometido delito algum que não fosse o de amar intensamente a causa da liberdade, a causa dos oprimidos”. Novamente se tratava de uma confirmação da sensibilidade anarquista que destacava constantemente a ubiquidade da morte. O impacto do assassinato de Miguel Pepe repercutiu, também, no tamanho da manifestação que acompanhou o cortejo fúnebre desde San Telmo até a Chacarita. Eduardo Gilimón, um dos principais propagandistas libertários da época, recordou em seu livro de memórias que, além do caráter político, “o enterro de Miguel Pepe, colossal, extraordinário, convertido em grandiosa manifestação de protesto foi, pode-se dizer, o último ato da greve dos inquilinos, que durou quase três meses”21. Também o jornal La Protesta narrou em detalhes “o grandioso espetáculo” do enterro: “as ruas por onde deveria passar o fúnebre cortejo estavam repletas de uma multidão que esperava o momento de se incorporar à coluna”22. O enterro político nesse caso não foi incompatível com uma cerimônia mais íntima sobre a qual La Protesta não deu maiores informações: “antes das oito da manhã e depois de realizada a sempre triste cerimônia final, habitual nesses casos, colocou-se em marcha o carro fúnebre 89

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puxado por quatro cavalos, repleto de coras enviadas por amigos do defunto e dos representantes dos cortiços em greve”. Esse interessante ponto permite inferir certa descontinuidade entre o enterro popular – “a triste cerimônia final habitual” – e o ato político em que se transformara o enterro a partir da atuação anarquista. Continuando o relato, La Protesta informou que o ataúde foi levado por companheiros que se revezavam a cada quarteirão, tamanha era a vontade generalizada de homenagear Miguel Pepe: “todos queriam oferecer esse último tributo e modesta homenagem à vítima do chumbo liberticida”. Calculou-se em cinco mil os presentes ao enterro, entre os quais se contavam não menos que setecentas mulheres: “mulheres que compareceram espontaneamente, deixando seus afazeres diários, como protesto pelo bárbaro ato policial”. Seguindo a compungida coluna, sempre em aberta tensão, ia o esquadrão de segurança, com seus “briosos corcéis dispostos a entrar em combate na primeira oportunidade que aparecesse”. O clima geral por parte dos presentes era, ainda que hirto, de profundo respeito: “Oh! Aquele silêncio sepulcral que enchia o ambiente ao passar a fúnebre comitiva nos parecia anunciar explosões de indignação que não tardariam!”, o que não impediu o cronista de destacar o “estupor” com que a burguesia, “inquieta, lançava olhares furtivos por entre as grades das casas”. O fundamental nesse tipo de demonstração, algo que especialmente obcecava os anarquistas era evidenciar que, diferente de outras formas de manifestação nas quais se podia admitir palavrões, gritos e algazarra, nas manifestações fúnebres a compostura deveria primar sobre qualquer outro tipo de expressão: “Assim, em completa ordem, sem que ninguém a impusesse, sem comis90

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são de coluna nem chefes de seção, os amigos da desordem chegaram até o cruzamento entre [as avenidas] Corrientes e Callao”.

A cidade devia prostrar-se diante da solenidade do cortejo e acompanhá-lo em sua solenidade. Todavia, ao chegar à Chacarita, “a mansão da morte e do silêncio”, onde o olhar do público em geral era menos numeroso, teve lugar expressões de protesto: “o sino não soou sua lamuriosa voz, o bronze não deu seus lamentos de protesto”. Em contraposição, “ressoou, forte e grande, tomando tudo, o Hino do Povo, entoado por aqueles peitos varonis, fazendo, por fim, uma explosão da indignação de que estavam prenhes todos os corações”. Por seu turno, sinfonicamente, “os poderosos vivas à Anarquia foram bramidos por argentinas vozes femininas, que eram toda uma promessa para o futuro”. Novamente o povo sentia a angústia e a raiva – e seus inimigos, o terror. O pároco da capela do cemitério, simbolizando outro dos inimigos dos anarquistas, “empunhou uma cruz que estava pendurada em sua batina, pretendendo, com esse símbolo de regressão e obscurantismo, deter a passagem das novas ideias, que numa torrente avassaladora, ameaçavam colocar um fim no passado de exploração e infâmias”. Junto à torrente de ideias que veio com o cortejo, a morte de Miguel Pepe, em outro momento da liturgia fúnebre, foi uma vez mais conjurada por uma torrente de discursos. Depositado o caixão, diante da presença sempre hostil dos “cossacos” – a força policial –, militantes tomaram a palavra. A narrativa desse momento é interessante porque, de modo distinto a outras crônicas, essa recuperou as tonalidades dos discursos. O primeiro a falar foi Carlos Balsán, que “com voz forte e varonil” maldisse 91

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o capitalismo e dirigiu-se às mulheres mostrando como eram exploradas nas fábricas, nas oficinas e nos “imundos cortiços”. Balsán indicou-lhes, além disso, frisando o caráter doméstico do trabalho feminino, a necessidade de que educasse os filhos de modo que não pudessem, no futuro, ser instrumentos da burguesia. Por fim, destacou que à violência vinda de cima só era possível se opor com outra violência, no caso, a dos trabalhadores. Em tom similar, falou Antonio López, que com “a sinceridade que o caracteriza, versou sobre a necessidade da força para que os operários se fizessem respeitar”. Carlos Casares, o terceiro a falar, explicou que a morte de Pepe devia-se à desigualdade social. Então, emocionado e debutando como orador, Tito Flopa argumentou que “nossos mortos” não deviam ser chorados como hipocritamente choram os burgueses, mas sim, deveriam ser vingados. O último a se manifestar foi Serafín Romero que, “de expressão fácil, comoveu intensamente” enumerando as dores do proletariado e, uma vez mais, conclamando à ação direta. Outra vez, agora com a morte de Pepe, ativou-se mecanismos de solidariedade por parte do movimento anarquista. La Protesta contou que numerosos trabalhadores deixaram seus lugares de trabalho em sinal de protesto. Já Juana Rouco Buela, em suas memórias, registrou que, de modo nada estranho, a FORA – explicitamente anarquista nesse ano de 1907 – encarregou-se dos custos do velório e da placa colocada na tumba do assassinado, cujo texto dizia: “Vítima da greve dos inquilinos, assassinado pela polícia”. Rouco Buela, talvez ajustando-se aos requerimentos literários desses gêneros de narrativa, recordou, 92

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também, que a manifestação no enterro de Pepe foi interrompida várias vezes devido a enfrentamentos com a polícia e que, ela mesma, foi oradora diante da cova.23 A referência da autora destaca, entre outras coisas, a importância que tiveram, em suas memórias, a participação feminina nos funerais de operários. Dias mais tarde, no 27 de outubro, aconteceu em Buenos Aires uma manifestação de apoio à greve dos inquilinos na Plaza Lorea na qual compareceram quarenta mil pessoas.

Considerações finais

É importante saber que na cidade de Buenos Aires, na passagem do século XIX para o século XX, os anarquistas não foram os únicos a ocupar as ruas para comemorar a morte. Os estudos de Sandra Gayol sobre a morte dos “grandes homens”, ex-presidentes, figuras destacadas do panorama político e cultural na Argentina, que marcaram os primeiros anos do século XX, permitem comparar diferentes formas de ritualização política na Argentina desses anos. Esses funerais de Estado, vividos como grandes acontecimentos públicos, tiveram uma importância política e ideológica notáveis na sua época e trouxeram consigo “um esforço de construção simbólica que, liderado pelo próprio Estado, visou transmitir unidade e identificação nacional através dos restos mortais do ‘grande homem’”24. Muitos dos elementos dos rituais republicanos colocados em jogo durante os enterros de figuras como os ex-presidentes Julio Argentino Roca, Manuel Quintana ou Miguel Juárez Celman, assemelham-se, em parte, aos utilizados pelos anarquistas. Entre outros, a conversão do corpo em veículo político, a bandeira a meio pau, a 93

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centralidade do ataúde no ato, o deslocamento do cortejo fúnebre pela cidade até o cemitério, a presença de multidões. Não obstante, a significação e a apropriação dos ritos e símbolos funerários adquiriu um sentido diametralmente oposto no caso dos libertários. Enquanto para os representantes do Estado, na sua qualidade de mortos ilustres, sua reintegração ao mundo dos vivos foi realizada de modo a operar como elemento aglutinante e atribuidor de sentido à sociedade em seu conjunto, para os anarquistas, a morte proletária significou uma ruptura primordial. Morrer, da forma que fosse, era uma razão a mais para ativar o protesto e o enfrentamento. O contraste entre ambas as sensibilidades foi percebido pelos anarquistas quando da morte e do enterro do ‘glorioso’ presidente Quintada, em 12 de março de 1906. A propósito do luto declarado pelo Estado como forma de socializar o pêsame pelo falecimento do presidente da nação, o periódico anarquista sublinhou a falsidade e a artificialidade da dor: “a pretendida dor pública de ontem deu vazão a múltiplas declarações de pseudopesar, declaratórias elegias postas em verso premeditadamente, sem um ataque de sincera inspiração, sem sombra de equanimidade, mesmo que fosse conservadora. Pasmados estamos de espanto – dizíamos ontem – mas nos assombra, às vezes, como se pode colocar sobre o inanimado peito de um homem mau – sim, mau – e desprovido de sã dignidade, o grotesco ornamento da torpe veemência exagerada, as homenagens pálidas de uma forçada laudatória póstuma. (...) O que devia, então, o povo de Buenos Aires a esse filho morto quando alcançou a meta de sua ambição, mas uma ambição ignominiosa? Como poderia o povo ser tomado por um luto que não lhe diz respeito? Quintana é con94

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duzido ao sepulcro, sem cortejo de dimensões populares. Naturalmente, o povo que foi sacrificado pela férula desse oligarca republicano não lhe deve nenhuma gratidão; é um povo ultrajado que, na humanidade de seu rancor, não quer acompanhá-lo porque o despreza até na morte. O povo não ama no vazio, não ama inconscientemente, não ama sobre a inércia das aberrações. (...) O povo não adora os tiranos. A queda na morte dos representantes da tirania, se não é benefício para o povo, permite, ao menos, que se tenha a oportunidade de vinganças indiretas”25. A morte dos governantes, mesmo que por causas naturais, era um ato de justiça, num sentido inverso ao que se passava com a morte dos anarquistas e do povo – que eram sempre necessariamente injustas. As únicas demonstrações de dor genuínas somente podiam acontecer diante das vítimas do capitalismo, do qual Quintana era um representante cabal. Em suma, é possível afirmar que os anarquistas construíram paulatinamente um sentido coletivo à morte e ao enterro dos trabalhadores. Como argumentam Mirta Lobato e Silvana Palermo, nesses casos “as cerimônias fúnebres abandonavam seus tons íntimos, privados e familiares, para se transformarem num evento cidadão. Nesses casos, a dor da pessoa se expressava num ritual público e as formas de luto articulavam uma mensagem política”26.

Para os anarquistas, ativos participantes e atores dos funerais proletários, esses momentos eram tanto a confirmação do seu fatalismo como interpretação global do capitalismo, como ocasião para manifestar-se abertamente contra o sistema. Como se viu na primeira parte desse ensaio, a morte atravessava as relações sociais e subsumia de forma massiva a existência proletária, mas ainda que todos morressem pela mesma causa, não necessariamente as situações 95

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requereriam um mesmo conjunto de respostas simbólicas e políticas. A articulação dessas respostas em eventos públicos permitiu aos anarquistas forjar uma imagem própria de desafio singular à ordem estabelecida, enquanto dotava sua propaganda de uma função memorial por meio da recuperação da morte de seus companheiros vítimas do sistema. Os nomes que constantemente eram incorporados por sua imprensa, às vezes com pequenas referências ao morto, dão conta dessa vocação para não esquecê-los. Esta recuperação, ademais, se inscrevia e adquiria sentido dentro de um discurso e de práticas que colocavam no âmago da ação libertária a comemoração das grandes datas fúnebres do calendário proletário internacional, como o 1º de maio. Tradução do espanhol por Thiago Rodrigues

Notas 1

“El entierro de Almada” in La Protesta. Buenos Aires, 27 de janeiro de 1909.

Eduardo Gilimón. “Esteban Almada” in La Protesta. Buenos Aires, 26 de janeiro de 1909. 2

Daniel Colson. Pequeño léxico filosófico del anarquismo. De Proudhon a Deleuze. Buenos Aires, Editorial Nueva Visión, 2003, pp. 162-163. 3

“El suicidio” in La Protesta Humana. Buenos Aires, 17 de novembro de 1901. 4

Marc Angenot. “La propaganda socialista. Elementos de retórica y propaganda” in Interdiscursividades. De hegemonías y disidencias. Córdoba, Universidad Nacional de Córdoba, 2010, pp. 170-173. 5

6

“José Consorti” in El Rebelde. 12 de fevereiro de 1899.

7

“Carlos Valpreda” in El Rebelde. Buenos Aires, 7 de novembro de 1900.

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“Rafael Roca” in El Perseguido. Buenos Aires, 16 de junho de 1893.

“Los sucesos de Rosario” in La Protesta Humana. Buenos Aires, 26 de outubro de 1901. 9

“Cosme Budislavich” in La Vanguardia. Buenos Aires, 26 de outubro de 1901. 10

Adrián Patroni. “Los sucesos del Rosario” in La Vanguardia. Buenos Aires, 2 de novembro de 1901.

11

12 Gregrorio Inglán Lafarga. “La primera víctima” in La Protesta Humana. Buenos Aires, 26 de outubro de 1901.

Rafael Núñez Florencio. El terrorismo anarquista. 1888-1909. Madrid, Editorial Siglo XXI, 1983, p. 128. 13

Juan Suriano. Anarquistas. Cultura y política en Buenos Aires 1890-1910. Buenos Aires, Manantial, 2001, p. 309. 14

Félix Basterra. “Contra los paseos, la acción” in La Protesta Humana. Buenos Aires, 26 de outubro de 1901.

15

16

“El pueblo asesinado” in La Protesta. Buenos Aires, 3 de maio de 1904.

“El pueblo asesinado. Cuadro de sangre” in La Protesta. Buenos Aires, 4 de maio de 1905. 17

18

“José Ocampo” in La Protesta. Buenos Aires, 3 maio de 1904.

19

“Los sucesos de ayer” in La Protesta. Buenos Aires, 3 de maio de 1904.

20

“La gran huelga” in La Protesta. Buenos Aires, 24 de outubro de 1907.

Eduardo Gilimón. Un anarquista en Buenos Aires (1890-1910). Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1971, p. 86. 21

“El entierro de ayer. Grandioso espectáculo en el cementerio” in La Protesta. Buenos Aires, 25 de outubro de 1907. 22

Juana Rouco Buela. Historia de un ideal vivido por una mujer. Buenos Aires, sem dados de edição, 1964, p. 17. 23

Sandra Gayol. “Los despojos sagrados: funerales de estado, muerte y política en la Argentina del Centenario” in M.I. Tato e M. Castro (orgs.). Del Centenario al peronismo. Dimensiones de la vida política argentina. Buenos Aires, Editorial Imago Mundi, 2010. 24

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“Lápida” in La Protesta Humana. Buenos Aires, 15 de março de 1906.

Mirta Lobato e Silvana Palermo. “Del trabajo a las calles: dignidad, respeto y derechos para los y las trabajadoras” in Mirta Lobato (ed.). Buenos Aires. Manifestaciones, fiestas y rituales en el siglo XX. Buenos Aires, Editorial Biblos, 2011, p. 66. 26

Resumo O artigo pretende analisar como os anarquistas argentinos pensaram a questão da morte e que modalidade de práticas eles desenvolveram para lidar com ela entre as décadas de 1890 e 1910. Por meio de acontecimentos históricos do período, o artigo apresenta como o movimento anarquista argentino transformou enterros, manifestações de luto nas ruas e velórios em atos políticos durante as primeiras décadas do século XX. Palavras-chave: anarquismo argentino, morte, política. Abstract The article aims to analyze how the Argentinean Anarchists used to think about death and which kind of practices they developed to deal with it between the 1890’s and the 1910’s. By mentioning real facts, it will expose how the Anarchist movement converted burials, street demonstrations of greave and funeral services in political acts during the first two decades of the 20th century. Keywords: Argentinean Anarchism, death, politics.

Recebido em 27 de julho de 2012. Confirmado para publicação em 12 de setembro de 2012.

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cartografias intelectuais: políticas do pensamento social rogério nascimento

Situando os mapas intelectuais

O processo de iniciação nas Humanidades e em particular nas Ciências Sociais na contemporaneidade acontece, grosso modo, com a apresentação de aportes teóricos ao lado dos diferentes métodos de pesquisa social. O estudante passa diretamente do ensino médio às questões conceituais e metodológicas quando ingressa em algum dos cursos de graduação. É certo existirem na programação de Ciências Sociais disciplinas correlatas como, por exemplo, as de História, Geografia, Filosofia, Psicologia, entre outras. A inclusão destas matérias no currículo objetiva, dizem, oferecer ao graduando elementos e informações adicionais a fim de ampliar os horizontes de sua formação acadêmica. Rogério Nascimento é pesquisador no Nu-Sol, doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e professor de Antropologia na Universidade Federal de Campina Grande. Publicou Florentino de Carvalho, pensamento social de um anarquista. Rio de Janeiro, Achimé, 2000. verve, 22: 99-116, 2012

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Entretanto, estas matérias parecem não suprir consideráveis lacunas quando se considera, na trajetória biográfica dos autores estudados, os condicionantes sociais na configuração das ideias. Trata-se de uma mais larga apreensão dos pressupostos sociais, de suas dimensões implicadas e indicadas na elaboração e constituição do pensamento social. Penso mais precisamente nas tramas do contexto histórico nas quais as diversas escolas teóricas foram constituídas. As teorias devidamente situadas possuem variadas dimensões, sobretudo antecedentes e desdobramentos relativos aos tensionamentos políticos, aos interesses econômicos, à ambiência religiosa e intelectual. Na realidade, tais jogos de força não descartam aspectos da vida social num certo momento histórico. Antes, muito pelo contrário, articulam dinâmicas religiosas, relacionam elementos das etnicidades, suscitam enfrentamentos entre ideologias, acionam convergências e embates de grupos intelectuais, além de outros dinamismos. Estes aspectos me parecem subestimados quando das leituras e discussões em aula desde as disciplinas introdutórias até as dos momentos conclusivos no curso. Isto porque a leitura dos teóricos é precedida por incursões em manuais e textos de comentadores cujo compromisso primordial é, aparentemente, apenas com o didatismo. Nesta direção procuram apresentar, de maneira organizada e sistematizada, o campo de conhecimento teóricometodológico. Por conta deste possível imperativo pedagógico neste momento do curso há uma tímida apreciação do contexto sócio-histórico, dos embates político-econômico, das tensões intelectuais, ideológicas e religiosas, na constituição das áreas do conhecimento. 100

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Mas se é verdade o cuidado com o didatismo, também é verdade o delineamento de uma espécie de quase hagiografias quando das referências aos autores clássicos e contemporâneos. Nomes de estudiosos representativos de certas escolas teóricas são aprendidos pelo estudante ao longo de seu percurso na graduação como predestinados à elaboração das suas obras.

O efeito mais transparente deste processo formador é o estabelecimento de referenciais a partir da ênfase maior em certos escritos de autores integrantes de algumas das teorias apresentadas. Estão postas as condições para a formação das cartografias intelectuais através da referida classificação dos autores em clássicos e contemporâneos e de um simultâneo movimento de minimização ou mesmo apagamento de outros nomes.

Para uma mais adequada inclusão daqueles no cânone, considerando a distância cronológica entre os chamados clássicos e os mais recentes, são apresentados numa lógica tomada de empréstimo dos estudos do campo do parentesco, próprios da Antropologia: os estudantes os encontram dispostos como que em grupos etários. Seguindo esta perspectiva, existem autores da primeira, segunda, terceira e tantas gerações quantas sejam necessárias para acomodar a todos numa certa linhagem, a partir do início com os clássicos, até aos contemporâneos. Toda cosmovisão possui suas narrativas de origem mítica com contornos um tanto místicos. A consagração de um cânone intelectual acadêmico, por sua vez, não iria fugir à regra. Através destes procedimentos são instituídos verdadeiros mapas mentais do campo intelectual. Como todo mapa, há maior número de elementos excluídos do que incluídos. 101

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Uma pergunta: como se estabelecem os cânones intelectuais no pensamento social?

Este processo envolve tensionamentos vários. No entanto, gostaria de focalizar os relativos à trajetória biográfica dos autores. Quando digo ‘trajetória biográfica’, me refiro especificamente aos segmentos sociais integrantes do processo de socialização de todos nós. Este particular impõe ao estudioso das Ciências Sociais discernir, enquanto parte significativa da elaboração do pensamento social, aspectos relacionados à integração dos autores estudados nas Ciências Sociais aos diversos grupos sociais como os de religião, economia, nacionalidade, ideologias, etnicidade, gênero. Pelo menos. Geralmente estes aspectos constituintes da trajetória pessoal do pesquisador são apenas sugeridos quando não desconversados ou minimizados. Acontece de serem colocados sob a poeira das obviedades invisibilizadas, na conta de simples detalhes de percurso. No entanto, estes ‘pormenores’ são por demais significativos para um melhor entendimento dos dinamismos particulares na elaboração do pensamento social. Isto porque estes fluxos reverberam intensamente nos textos acadêmicos, dando aconchego às teorias com suas afirmações, conclusões e reflexões.

Os conjuntos dos nomes e das escolas teóricas possuem maior ou menor visibilidade no meio intelectual a depender de disputas, embates, enfrentamentos, correlação de forças políticas colocadas numa certa época. Este processo acontece através dos atritos, convergências, articulações, sobreposições entre diversos segmentos sociais. O componente político neste ínterim é incontornável. Entretanto, este item constitui objeto de desconversação 102

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quando aos teóricos consagrados é atribuído exclusivamente caráter de excelência em seu pensamento como critério utilizado à definição de sua presença no cânone. Sobressai, então, a primazia de seu cabedal conceitual e metodológico enquanto fator determinante, justificativo e explicativo de seu acatamento numa certa comunidade intelectual. O momento simultâneo é o do estabelecimento de um dinamismo de naturalização do cânone. O neófito, como o experimentado nos estudos da sociedade, fixa, de maneira relacional, nomes autorais e de escolas teóricas, convencido do argumento meritocrático afirmado insistentemente nas aulas, nos manuais e em livros de comentadores. Geralmente os comentadores integram o conjunto do clã dos aderentes de seus comentados. Possuindo maior versatilidade com os clássicos – ou contemporâneos –, surgem enquanto autoridades reconhecidas para apresentar e comentar satisfatoriamente alguma obra em particular destes autores como também seu pensamento social geral. Vejamos a seguir este assunto em relação ao pensamento social no Brasil, da forma como a perspectiva atual se instala, apoiada em postulados tidos na medida de obviedades patentes e indiscutíveis.

Cartografia do pensamento social no Brasil contemporâneo Quando nos decidimos a entender processos e dinamismos sociais de nosso tempo e procuramos literatura especializada no assunto, somos apresentados a uma série de estudiosos e pesquisadores. No caso de alguém desejar conhecer temas relativos à sociedade local, regional, nacio103

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nal e suas interfaces com a comunidade internacional, terá à disposição alguns nomes de estudiosos situados em certas perspectivas teóricas. Pensemos, por exemplo, no estudante de Ciências Sociais mais acima referido cuja curiosidade intelectual se volte para estudos da sociedade brasileira. Pois bem! A este estudante será apresentada uma relação de nomes obedecendo a certa ordem cronológica submetida a posicionamentos ideológicos e políticos. O resultado mais imediato desta exposição é a afirmação e o assentamento da concepção, um tanto naturalizante, diga-se de passagem, da existência objetiva de uma sociedade brasileira tal qual tem sido vivenciada em sua fase republicana. Textos de cronistas, padres e viajantes dos séculos XVI, XVII e XVIII abrem a relação. Em seguida teremos arrolados escritos de historiadores, políticos, ensaístas e folcloristas no século XIX. No final deste século, mais precisamente em 1888, acontece a abolição da escravidão negra e a inauguração da república no ano seguinte. É supérfluo lembrar ter sido a república brasileira um projeto político executado por integrantes de segmentos das elites dirigentes. E, antes disso, o Brasil surge como invenção europeia. Estes dois particulares constituem claros indicadores de como a elaboração do pensamento social no Brasil, em sua expressão oficial e oficiosa, aconteceu dentro de projetos políticos das elites dirigentes. Deste modo, ainda no período monarquista, intelectuais e eruditos vinculados a diversos setores dominantes procuraram assentar as bases conceituais da soberania nacional brasileira. A vinda para o Brasil da família real portuguesa em 1808 acionou em setores dirigentes o desejo de tornar o 104

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Brasil um Estado-nação moderno. O objetivo era o de garantir a presença brasileira na comunidade internacional fixando à imagem do Brasil feições de sociedade progressista e liberal. No entanto, o grande obstáculo enfrentado pela monarquia, afora outros, era a instituição da escravidão negra. A propósito da situação da população negra no Brasil, a literatura romântica, com José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Dias (1823-1864) como seus mais representativos expoentes, delineia um Brasil composto apenas por lusitanos e índios... civilizados. O negro, aqui, inexiste. Um rápido parêntesis: a simples e brutal anulação da presença de parte significativa da população no Brasil já nos oferece material para pensarmos sobre o caráter arbitrário e discricionário possível de se instalar sob formas de reflexão em torno do fenômeno humano. Fecha parêntesis. Um monarquista liberal, o pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910) foi quem apresentou a escravidão negra como um problema social a ser devida e urgentemente equacionado. Ele ocupa uma posição estratégica nesta relação de pensadores e políticos que elaboraram pensamento sobre o Brasil. Enquanto um dos principais articuladores do Partido Abolicionista, Nabuco escreveu, entre outros textos, A Escravidão, em 1869, e O Abolicionismo1, em 1883. Este último é seu escrito mais conhecido. Nele, apresenta a escravidão como crime perpetrado contra as camadas populacionais negras cuja participação estatal fora decisiva. Aponta ainda a necessidade de uma reparação. Esta medida teria na imediata abolição da escravatura seu esto105

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pim mais urgente, devendo ser complementada por outras como acesso à terra, com os instrumentos de trabalho, e à educação. Apesar de monarquista convicto, Nabuco acabou passando para o republicanismo no final de sua vida, vendo adotada, entre suas sugestões, apenas a abolição legal da escravidão negra. Este seu posicionamento contra a escravidão não deve ser motivo para maiores entusiasmos, pois sua perspectiva não abole em si mesmo o racismo predominante das classes dirigentes, nem tampouco considera a possibilidade das populações negras tomarem para si a abolição da escravidão. Esta tarefa constituía, antes disso, assunto exclusivo para os parlamentares discutirem e encaminharem. Em suas análises, a miscigenação seria a forma mais segura de melhoramento e aperfeiçoamento do povo brasileiro. Neste autor se encontra, portanto, uma das primeiras iniciativas de positivação da miscigenação. Esta perspectiva laudatória da ideia de raças e da miscigenação, enquanto forma mais característica do Brasil, fora apropriada, estendida e aprofundada por Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), médico maranhense criador da Escola Baiana de Antropologia. Integrado a setores republicanos, equacionou o problema indígena e negro, vislumbrando seu ocaso natural e inevitável por completa incapacidade orgânica para apreensão da mentalidade civilizada. A única saída para evitar a completa ruína do Brasil seria, sugeriu, intensificar a migração de trabalhadores europeus a fim de acelerar, através da miscigenação com a população nativa, seu processo de embranquecimento. Nina Rodrigues considerava o meio ambiente natural e a raça enquanto elementos decisivos às definições 106

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de políticas governativas. Modernizar o Brasil passava, para republicanos de diversos matizes, pela instauração de uma sociedade urbano-industrial, de economia capitalista, com instituições governativas dentro dos modelos democráticos, progressista, composta por cidadãos de mesma categoria (desde que brancos ou embranquecidos), laica e escolarizada. No entanto, todas estas transformações dependiam basicamente de políticas de melhoramento da dita raça brasileira. A eugenia, assim, definiria um futuro mais promissor para o país. As sugestões indicadas por Nina Rodrigues foram adotadas pelos governos republicanos. Desta maneira, o incentivo governamental para a vinda de trabalhadores europeus, abrindo a terceira onda imigratória na república velha e na nova, fez parte da busca de embranquecimento da população brasileira. O cuidado para garantir esta medida se deu com uma colonização em que não fossem criados bolsões de nacionalidades dentro do Brasil. Como é possível de perceber, o viés biológico predominou entre estudiosos do Brasil pelo menos até meados dos anos de 1960. Florestan Fernandes (1920-1995) apresenta uma insatisfação com interpretações do Brasil fundamentadas em perspectivas biológicas e culturalistas, cujo maior representante foi Gilberto Freyre (1900-1987). Para Florestan, tratava, isto sim, de considerar as condições das camadas negras da população brasileira diante do processo de modernização instalado com a república. A Integração do Negro na Sociedade de Classes2 – título de seu livro publicado em 1965 – passaria pela adoção de medidas governamentais facultando acesso aos meios de produção e à educação escolar. 107

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Florestan retoma, a sua maneira, as medidas reparadoras indicadas no século XIX por Nabuco. Seu pensamento tem sido revisitado, numa indicação de certa ascendência no campo reflexivo contemporâneo. Prova disto são as recentes reedições de seus livros. São estes nomes os grandes marcos referenciais de uma cartografia intelectual contemporânea quando se pensa em estudos sobre o Brasil. Este mapeamento, por si só, indica a predominância de outras cartografias intelectuais no Brasil, cujos critérios variaram de conformidade com os projetos políticos das elites dirigentes em diferentes momentos históricos. No entanto, o viés analítico baseado no determinismo geográfico e biológico, na cultura, na classe ou na nação possui em comum serem essencialistas. Em cada uma destas abordagens há uma substância primordial – o trópico, a raça, a cultura, a classe ou a nacionalidade – nos estudos, reduzindo a complexa vida social no Brasil a uma parcela.

Sentidos para o local

Os cronistas e viajantes respondiam a expectativas políticas alheias às atribuições projetadas por intelectuais contemporâneos. Naqueles escritos, o Brasil era apresentado ora como paraíso na terra, ora como inferno, mas sempre colônia. Mesmo assim, estes escritos são reivindicados na literatura oficial e oficiosa como provas da objetiva existência da nação brasileira. A criação do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil em 1838 revela a preocupação das elites pensantes, vinculadas à monarquia, em formar um acervo intelectual demonstrativo da existência concreta da nação brasileira. 108

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É deste período o estabelecimento dos estudos folcloristas. Estes estudos partem de um pressuposto caracteristicamente evolucionista. Isto porque consideram os estratos populares de uma nação moderna como repositórios de sobrevivências de etapas passadas de um pretenso processo evolucionário. As camadas dirigentes, de seu lado, constituiriam os pólos mais evoluídos, apresentando a cultura nacional em suas formas mais bem elaboradas, avançadas e sofisticadas. A ideia de meio ambiente e de raça encontram, de maneira diferente, aconchego entre os escritos de cronistas e folcloristas. Os autores explicitamente racistas, como Nina Rodrigues, expõem estas perspectivas em seus livros. Este autor exerceu influência significativa no pensamento social acadêmico no Brasil ao longo do século XX. Seu livro de 1894 – As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil3 – foi reeditado diversas vezes. Em 1938, portanto no ano seguinte à implantação do Estado Novo, há uma edição com prefácio laudatório escrito por Afrânio Peixoto. Em 1957, há outra edição deste livro. Em 1932 é publicado Os Africanos no Brasil, livro escrito em 1906 e perdido entre seus manuscritos. A edição de 1932 só fora possível porque um de seus discípulos encontrou as páginas que faltavam. Gilberto Freyre redige prefácio de um livro intitulado A Atualidade de Nina Rodrigues. Este prefácio é totalmente elogioso. Freyre se ressente apenas do autor, Augusto Lins e Silva (1945), catedrático de Medicina Legal, não ter dado o devido destaque ao caráter intervencionista de Nina Rodrigues. 109

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Gilberto Freyre, com sua perspectiva culturalista, empresta novo alento à ideia de meio e raça. Tropicologia e miscigenação são as ferramentas conceituais desta atualização. Neste caso, o Brasil deveria se constituir como nação composta por regiões particulares e solidarizadas. O nacional deveria, no seu entendimento, garantir a expressão das especificidades regionais. A disputa entre as elites regionais fora acirrada, predominando a concepção elaborada por segmentos dirigentes do eixo sul-sudeste, cuja concepção da nação enquanto totalidade una e indivisível via nos regionalismos perigosas tendências separatistas e dissolventes.

A permanência de Getúlio Vargas (1882-1954) no poder indica a aceitação, sobretudo nos segmentos das elites dirigentes, de suas concepções totalitárias para a vida social no Brasil. Com ele fora instaurada não apenas um novo mapa político, mas também nova cartografia intelectual.

Cartografias intelectuais outras

A depender do tempo e do espaço, estabelece-se os referenciais intelectuais. Na Idade Média, dominava a Igreja e a perspectiva intelectual era religiosa. Os pensadores e estudiosos eram sacerdotes interpretando e transmitindo a vontade de Deus para o conjunto dos fiéis. Na Alemanha hitlerista o nazismo imperava, definindo a biologia enquanto fator determinante nas relações sociais. Neste momento, os intelectuais eram racistas notórios, envolvidos no projeto eugenista de melhoramento e salvação da ‘raça pura’ diante dos perigos representados pelo que entendiam serem ‘raças inferiores’. Boas4 e Weber5 apontam os condicionantes extra-

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-acadêmicos na configuração do pensamento social. O primeiro demonstra logo nas primeiras páginas como o contexto político é decisivo tanto na publicação de livros como também pressionando e alterando a linha de pensamento dos pesquisadores. O segundo, ao refletir sobre como se processava o ingresso de candidatos à docência na universidade alemã de sua época. No Brasil república, em suas primeiras décadas, os intelectuais oficiais procuravam fundar um país moderno através da eugenia, mas também por meio de formas de integração do negro à comunhão nacional e da assimilação das populações indígenas à sociedade envolvente. Predominam nestas perspectivas ideários de estabelecimento do consenso social através de um congraçamento das desigualdades políticas e econômicas apresentadas como meras diferenças culturais. Este consenso também poderia ser alcançado através da conciliação entre as diferentes classes. As políticas de reparação social, visando integrar as camadas negras da população à comunidade e à comunhão nacional, constituem medidas com este teor político conciliatório. As teorias sociais constituem, de um modo geral, ferramentas importantes para o conhecimento da sociedade. Este conhecimento pode ser elaborado não apenas utilizando destas ferramentas por sobre os fenômenos sociais, a fim de alcançar suas causas ou seus sentidos e significados. É plausível e instigante tensioná-las quanto a quais concepções de vida social sugestionam ou mesmo afirmam com maior entusiasmo. A análise de quais dentre as escolas do pensamento predominam numa sociedade são reveladoras das formas de sociabilidade deste aglomerado humano: os autores consagrados num país em certo 111

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período histórico, por exemplo, indicam se existe ali inclinação a dinamismos autoritários ou libertários. Nesta direção, é curioso perceber como os clássicos das Ciências Sociais de nossos tempos – Durkheim, Marx e Weber – concebiam a dinâmica da vida social: a inevitável transformação social deveria ser conduzida, guiada, jamais deixada ao ritmo e sabor das diversas coletividades constituintes de uma sociedade. Mudanças sociais só seriam admitidas, respectivamente, sob a regência de um Estado Corporativo, da Ditadura do Proletariado ou de um Estado Democrático, detentor do monopólio da força física. Dentro da cartografia intelectual existem referenciais reconhecidos, nomes mais expressivos e de maior visibilidade do que outros. Há outros de menor relevo, isolados, relativamente marginais, integrados ou em oposição a um conjunto mais adensado. A cartografia sugere topografia característica. Mas há também os pontos apagados, ocultados ou subtraídos. Isto tem relação com o processo de construção da memória social tão bem assinalado em seus contornos políticos por Paul Connerton6. A construção desta memória segue múltiplas dinâmicas historicamente elaboradas. Assim, no caso brasileiro, a partir da Era Vargas (1930-1945) estabeleceu-se a cartografia intelectual originária da atualmente em voga. Com ele aconteceu um calculado e sistemático apagamento do conjunto do pensamento e dos experimentos dos trabalhadores anarquistas. Todas as realizações e concepções elaboradas pelos operários com sindicatos, teatro, educação e escolas, universidade para trabalhadores, naturismo, atuações em torno da condição da mulher e da infância proletária, discussões e propostas de simplificação orto112

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gráfica, publicações de livros, jornais e revistas, congressos, entre outros, foram simplesmente deitados fora da história intelectual formulada no Brasil. Nomes como o de Maria Lacerda de Moura (18871945), a intelectual brasileira mais conhecida no exterior até os anos da década de 1950, foram simplesmente subtraídos de seu lugar na história do pensamento social elaborado nestas terras. Em 1933 saiu pela editora Civilização Brasileira uma coletânea intitulada Por que ser Anti-Semita? Um Inquérito entre Intellectuaes Brasileiros. Dentre os trinta cinco colaboradores está Maria Lacerda de Moura7, com texto repudiando o racismo e a ideia de raça. Florentino de Carvalho, pseudônimo de Primitivo Raymundo Soares (1883-1947), Lima Barreto (18811922), José Oiticica (1882-1957), Friedrich Kniestedt (1873-1947), Fábio Luz (1864-1938), Neno Vasco, pseudônimo de Gregório Nanianzeno Moreira de Queiroz Vasconcelos (1878-1921), Elysio de Carvalho (18801925), Francisco Viotti (?), Gigi Damiani (1875-1953), Rodolfo Felipe (1892-1965?), Domingos Ribeiro Filho (?), Domingos Passos (?), Isabel Cerruti (?), Maria Antonia Soares (?), Angelina Soares (?), entre muitos outros e outras, constituíam nomes de projeção numa cartografia intelectual vinculada ao movimento operário. Isto significa dizer, fora dos círculos oficiais e oficiosos do pensamento social. Enquanto representantes dos setores populares aniquilados com a ascensão dos governos totalitários pelo mundo no pós-Segunda Guerra Mundial, estes nomes foram descartados. Não os encontramos nos manuais e livros de história intelectual no Brasil. Mesmo com significativa produção expostas em livros, revistas e jornais, seus 113

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pensamentos não são estudados na contemporaneidade. Gonçalves e Silva8 realizaram importante pesquisa levantando a publicação de livros anarquistas em língua portuguesa. Basta consultar esta obra para se ter uma ideia da produção intelectual intensa havida entre trabalhadores anarquistas no Brasil. Dos autores nomeados mais acima, apenas Lima Barreto constitui exceção. No entanto, seu pensamento não é situado nas relações havidas dentro do movimento operário, mas enquanto um esteta sensível, boêmio, alcoólatra e acometido de surtos de loucura. Mesmo considerando o teor social de seus escritos, literatura hoje em dia quase significa redução, como aquelas em que os jesuítas colocavam indígenas. Acontece com a literatura na atualidade exatamente aquilo que Lima Barreto tanto combateu: é entendida, fora do campo dos especialistas, enquanto atividade de deleite estético e entretenimento. Apenas.

Outra pergunta: quais os sentidos destas reflexões?

De saída, a ideia é desnaturalizar processos de elaboração do pensamento social. No mundo intelectual a evidência nos aspectos teóricos e metodológicos de autores específicos enquanto critério explicativo único e suficiente para seu predomínio constitui a forma de naturalização por excelência. Ao contrário, sua desnaturalização é realizada situando as atividades intelectuais dentro do conjunto dos fenômenos sociais. Estes, por sua vez, apresentam lógicas, composições, articulações, ordenações, coerências, mas ao mesmo tempo embates, ambiguidades, paradoxos, contradições, conflitos. 114

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Afinal de contas, os estudos dos fatos sociais constituem também fatos sociais. As atividades intelectuais possuem qualidade política envolvendo, emoldurando e transpassando seu aparato teórico e metodológico. É preciso retirar desta consideração, que tenho na medida de consensual no meio dos estudiosos da sociedade, as devidas conclusões. Talvez tencionando o óbvio possamos melhor perceber relações outras antes desconsideradas, abrindo à possibilidade de reconfiguração de nossos horizontes de atuação reflexiva.

Notas

Joaquim Nabuco. O abolicionismo. Introdução de Gilberto Freyre. 4ª Edição. Petrópolis, Vozes, [1883] 1977. 1

Florestan Fernandes. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1965. 2

Nina Rodrigues. As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil. 2ª Edição. São Paulo/ Rio de Janeiro/ Recife/ Porto Alegre, Companhia Editora Nacional, [1894]1938. 3

Franz Boas. A mente do ser humano primitivo. Tradução de José Carlos Pereira. Petrópolis, Vozes, 2010. 4

Max Weber. Ciência e Política: duas vocações. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo, Cultrix, 2011. 5

Paul Connerton. Como as sociedades recordam. Tradução de Maria Manoela Rocha. Oeiras (Portugal), Celta Editora, 1999. 6

Maria Lacerda de Moura (et. alli). Por que ser Anti-Semita? Um inquérito entre intellectuaes brasileiros. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1933. 7

Adelaide Gonçalves e Jorge E. Silva. A bibliografia libertária: o anarquismo em língua portuguesa. São Paulo, Imaginário, 2001. 8

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Resumo O artigo analisa a produção do pensamento social brasileiro entre o século XIX e os anos 1960, com atenção à dinâmica política e social do período. O autor argumenta que as celebradas e estabelecidas interpretações da sociedade brasileira foram construídas em conformidade com posições e ideias das elites dirigentes. O efeito imediato dessa produção de conhecimento foi a construção de uma interpretação que naturalizou perspectivas racistas e oligárquicas, isolando e virtualmente destruindo outras perspectivas intelectuais como a anarquista. Palavras-chave: pensamento social, cartografia intelectual, movimento anarquista. Abstract The article analyzes the production of the Brazilian social knowledge since the 19th century until the 1960’s and the political and social dynamics within this period. The author stands that the celebrated and established interpretations of the Brazilian society were built reporting elites positions and ideas. The immediate effect of this production of knowledge was the construction of a interpretation that naturalized racist and oligarchic perspectives, isolating and virtually destructing other intellectual perspectives such as the Anarchist’s. Keyword: social thinking, intellectual cartography, Anarchist movement.

Recebido em 13 de maio de 2012. Confirmado para publicação em 10 de julho de 2012. 116

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O Sr. B. W. Ball escreveu um artigo no Index criticando o Anarquismo sem ter se familiarizado com os fundamentos dessa filosofia. Por esta razão segue a resposta: O argumento central do Sr. Ball contra nós, dito em poucas palavras, é este: onde existe crime, deve existir força para reprimi-lo. Quem nega isto? Certamente não a Liberty: certamente não os anarquistas. O Anarquismo não é uma restauração da não-resistência, apesar de que pode haver partidários da não-resistência em suas fileiras. A direção do ataque do Sr. Ball implica que nós deixaríamos que o roubo, o estupro e o assassinato fizessem estragos na comunidade sem levantar um dedo para deter sua ação brutal e sangrenta. Pelo contrário, nós somos os mais severos inimigos da invasão de pessoas e propriedade, e, apesar de estarmos mais preocupados em destruir as causas disto, não temos nenhum escrúpulo em relação a um tratamento tão heroico de suas manifestações imediaBenjamin R. Tucker (1854-1939) foi um anarquista individualista nascido nos Estados Unidos. Editou o jornal Liberty entre 1881 e 1908, no qual publicou anarquistas europeus como Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin, além de textos de Bernard Shaw e Friedrich Nietzsche. Tucker foi o primeiro a traduzir para o inglês O único e sua propriedade, de Max Stirner. verve, 22: 119-126, 2012

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tas, conforme mandam as circunstâncias e a sabedoria. É verdade que esperamos com ansiedade o desaparecimento definitivo da necessidade de força mesmo com o objetivo de reprimir o crime, mas isto, apesar de estar presente como um resultado necessário, não é em absoluto uma condição necessária para a abolição do Estado.

Ao nos opormos ao Estado, não negamos a proposta do Sr. Ball, mas sim a afirmamos e enfatizamos claramente. Travamos a guerra contra o Estado enquanto o principal invasor das pessoas e da propriedade, enquanto a causa de substancialmente todos os crimes e de toda a miséria que existe, sendo ele próprio o mais gigantesco crime existente. Ele fabrica criminosos muito mais rápido do que os pune. Ele existe para sustentar os privilégios que produzem o caos econômico e social. É o apoio único dos monopólios que concentram riqueza e instrução nas mãos de poucos e difunde pobreza e ignorância entre as massas, cujo aumento da desigualdade é diretamente proporcional ao aumento do crime. Ele protege uma minoria espoliando a maioria através de métodos demasiado sutis para serem entendidos pelas vítimas, e então pune estes membros desobedientes da maioria na tentativa de espoliar outros através de métodos bem simples e diretos que são reconhecidos pelo Estado como legítimos, coroando seus ultrajes ao induzir acadêmicos e filósofos como o Sr. Ball a defender, como uma desculpa por sua existência infame, a necessidade de reprimir o crime que ele constantemente cria. O Sr. Ball – para a sua honra, que seja dito – durante os dias anti-escravatura, foi um firme abolicionista. Ele realmente desejava a abolição da escravatura. Sem dúvida ele se lembra quão frequentemente se lhe apresen120

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tavam os argumentos de que a escravidão era necessária para manter os negros iletrados longe da possibilidade de causar problemas, e que não seria seguro dar a liberdade para uma tal massa de ignorância. Naqueles dias, o Sr. Ball enxergava através do sofisma de um raciocínio como tal, e sabia que aqueles que argumentavam aquilo o faziam para dar uma cor de justificativa moral a sua conduta de viver no luxo sobre o pesado trabalho imposto aos escravos. Provavelmente estava acostumado a responder-lhes algo como: “É a instituição da escravatura que mantém os negros na ignorância, e justificar a escravatura com base na ignorância é raciocinar em círculo e ser redundante”. Hoje, o Sr. Ball – novamente para a sua honra, que seja dito – é um abolicionista da religião. Ele realmente deseja a abolição, ou pelo menos o desaparecimento, da Igreja. Quão frequentemente ele deve encontrar ou ouvir padres que, mesmo dispostos a admitir em privado que as doutrinas da Igreja são um monte de enganações, sustentam que a Igreja é necessária para manter em ordem as massas guiadas pelas superstições, e que sua liberação da sujeição mental em que ela os mantém levaria à sua precipitação em uma desenfreada dissipação, libertinagem e ruína definitiva. O Sr. Ball enxerga claramente através da falácia de uma lógica como tal, e sabe que aqueles que a utilizam fazem isto para ganhar um fundamento moral sobre o qual se apoiar enquanto coletam suas taxas dos pobres, que não conhecem nada melhor do que pagá-las. Podemos imaginá-lo respondendo com uma perdoável indignação: “Patifes astutos, vocês sabem muito bem que é a sua Igreja que satura as pessoas com superstições, e que justificar a sua existência com base na superstição é colocar a carroça na frente do cavalo e assumir o próprio argumento em disputa”. 121

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Agora, nós, Anarquistas, somos abolicionistas políticos. Nós realmente desejamos a abolição do Estado. Nossa posição nesta questão é paralela em muitos aspectos àquelas dos abolicionistas da Igreja e da escravatura. Mas neste caso o Sr. Ball – para sua desonra, que seja dito – toma o lado dos tiranos contra os abolicionistas, e levanta a exclamação tão frequentemente levantada contra ele: o Estado é necessário para manter ladrões e assassinos dominados, e, se não fosse pelo Estado, nós seríamos todos estrangulados nas ruas e teríamos nossas gargantas cortadas em nossas camas. Já que o Sr. Ball enxergou através dos sofismas de seus oponentes, nós todos enxergamos através do seu, precisamente similar aos dos outros, apesar de sabermos que não ele, mas os capitalistas usam-no para cegar as pessoas frente o verdadeiro objeto da instituição através do qual eles são capazes de extorquir do trabalho a maior parte de seus produtos. Nós lhe respondemos assim como ele respondeu aos outros, e sem nenhuma paciência: você não consegue ver que é o Estado que cria as condições que fazem nascer ladrões e assassinos, e que justificar sua existência com base na preponderância do roubo e do assassinato é um processo lógico tão absurdo quanto aqueles utilizados para derrotar seus esforços para abolir a escravatura e a Igreja? Então, de uma vez por todas, nós não somos contra a punição de ladrões e assassinos; nós somos contra a sua fabricação. Exatamente aqui o Sr. Ball deve nos atacar ou não atacar em absoluto.

Os responsáveis pelas plataformas de partidos políticos, os escritores dos editoriais de jornais, os amassadores de almofadas de púlpito e os oradores de comícios, que agora unem suas vozes em um coro frenético para proclamar a origem estrangeira do mal e defender, portanto, a exclusão 122

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do elemento estranho do solo americano, deveriam estudar os números do décimo recenseamento compilados pelo reverendo Frederick Howard Wines e por ele apresentados ao congresso da Associação Nacional de Prisões, recentemente realizado em Boston. Os pensadores que se alimentam de frenesi devem encontrar nestas estatísticas alimento para o raciocínio. A partir delas parece que, apesar da proporção de crime entre a população nascida no exterior ser ainda bem mais alta do que a da nossa população nativa, a proporção anterior, que em 1850 era mais de cinco vezes mais alta que a última, em 1880 era menos de duas vezes maior. E parece ainda que, se considerados somente crimes contra pessoas e propriedade, as duas proporções estão quase no mesmo nível, e que a proporção de criminosos estrangeiros tende a exceder aquela dos criminosos nativos à medida que o catálogo dos “crimes” é estendido para cobrir as chamadas ofensas contra a moral pública, a política pública e a sociedade. Em outras palavras, o percentual de nativos que roubam, prejudicam, queimam, assaltam, sequestram, estupram e matam é quase tão grande quanto o percentual de estrangeiros de tendências similarmente invasivas, e o percentual de estrangeiros que não cumprem a lei excede o dos nativos que não cumprem a lei somente porque os estrangeiros estão menos dispostos que os nativos a obedecer àquelas leis que dizem que as pessoas não devem beber isto ou comer aquilo ou fumar aquilo outro; que eles não devem amar a não ser sob formas e condições prescritas; que eles não devem dispor-se ou expor-se a não ser como seus governantes determinam; que eles não devem trabalhar ou divertir-se no domingo ou blasfemar o nome do Senhor; que eles não devem jogar ou dizer palavrões; e que eles não devem enviar, possuir ou ler literatura obscena exceto a Bí123

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blia. Isto quer dizer, novamente, que pessoas que por acaso nasceram na Europa não estão mais determinados a invadir seus iguais do que as pessoas que por acaso nasceram na América, mas que os últimos estão muito mais dispostos a serem invadidos e esmagados do que qualquer outro povo na terra. O que conta bastante em favor dos estrangeiros, na opinião da Liberty, e faz com que seja importante para nossa própria liberdade e nosso bem-estar fazer todo o possível para encorajar a imigração. Mas, dizem os estridentes, estes estrangeiros são Anarquistas e Socialistas. Bem, há alguma verdade nisso; como regra geral, quanto melhor o povo for, mais Anarquistas e Socialistas serão encontrados entre eles. Isto também é um fato que o décimo recenseamento prova. Agora, em qual classe de estrangeiros neste país os Anarquistas e Socialistas aparecem mais? Certamente não entre os chineses ou os irlandeses ou os cubanos ou os espanhóis ou os italianos ou os australianos ou os escoceses ou os franceses ou os ingleses ou os canadenses. Mas estes são os únicos estrangeiros com exceção dos russos que aparecem, no que diz respeito à criminalidade, de forma pior que os americanos nativos. Para achar neste país um número considerável de Anarquistas e Socialistas de origem estrangeira devemos nos dirigir aos russos, alemães, poloneses, húngaros, bávaros. As estatísticas mostram, entretanto, que os russos são quase tão disciplinados quanto os americanos, os alemães são tão disciplinados, os poloneses mais disciplinados, e os húngaros e bávaros mais de duas vezes mais disciplinados. Moral: Se os defensores do privilégio desejam excluir deste país os oponentes do privilégio, eles deveriam fazer 124

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com que o Congresso omitisse a realização do décimo primeiro recenseamento. Pois o décimo primeiro recenseamento, se for realizado, sem dúvida enfatizará estas duas lições do décimo: primeiro, que a imigração estrangeira não aumenta a desonestidade e a violência entre nós, mas aumenta o amor pela liberdade; segundo, que a população do mundo está gradualmente se dividindo em duas classes, Anarquistas e criminosos. Tradução do inglês por Maria Brant.

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Resumo Em um breve ensaio, publicado no seu jornal Liberty, Benjamin Tucker responde a um certo Sr. Ball sobre a suposta relação entre anarquismo e crime. Tucker argumenta que, pelo combate ao Estado e ao regime da propriedade, o anarquismo visa livrar a sociedade desses dois fabricantes de assassinos e ladrões. Assim, anarquismo não seria sinônimo de caos e crime, mas exatamente o oposto. Palavras-chave: anarquismo, crime, liberdade. Abstract This brief essay is Benjamin Tucker’s answer to an article by a certain Mr. Ball about the supposed relationship between Anarchism and crime. Tucker exposes that by combating the State and the property regime, Anarchism aims to free society from those two assassins and robbers makers. Thou, Anarchism would not be a synonym of chaos and crime, but quite the opposite. Keywords: Anarchism, crime, liberty.

Recebido em 14 de agosto de 2012. Confirmado para publicação em 17 de setembro de 2012. 126

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Drogas, cuidados e ambientes monitorados

Eles são chamados de nóias, zanzam como andrajos à cata de resíduos, material para reciclagem a ser entregue em cooperativas sustentáveis, uma esmola, uma pedra de crack. Pernoitam pelas ruas da cidade e sustentam o olhar atônito. Governo e população mostram-se confiantes em higienizar as ruas destes farrapos com programas repressivos e ambulatoriais. Enquanto isso, as classes mais abastadas procuram curar seus parentes em clínicas especializadas que não dispensam o uso de maconha, ou em pentecostais, com suas conhecidas práticas de resignação. Vivemos uma nova maneira de abordagem do chamado usuário de drogas. A legislação recente reconhece os programas de redução de danos que investem em cura e inclusão e autoriza o uso do ayuasca para cerimônias religiosas. Concentra a repressão no tráfico, apesar de imprecisa quanto à portabilidade de substâncias ilícitas. Assim, os programas de governo voltam-se ao atendimento ambulatorial com terapêuticas, investindo na vontade do usuário de abandonar a droga.

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O combate às drogas passa hoje por uma modulação, para além da repressão. Personalidades públicas difundem seus argumentos favoráveis à descriminalização da maconha; pipocam marchas com o respaldo jurídico e policial defendendo a liberdade de manifestação; mídias e a internet produzem variadas opiniões. Circula, assim, a construção de um consenso relativo aos novos cuidados com a pasmada população de usuários, não desconhecendo os moralistas de plantão que exigem repressão, isolamento ou o abate desta parte do rebanho e limpeza do espaço para o seu trânsito como gado limpo e reprodutor. O consumo de liberdades governa o temário da descriminalização e dos cuidados com os nóias, compondo o conjunto aceitável, neste momento, para a ecologia ambiental. A reviravolta neoliberal, provocada pela implementação constante do desenvolvimento sustentável, produz novas maneiras de governar condutas. Os programas ambulatoriais e de redução e danos funcionam voltados para um indivíduo do qual espera-se a despoluição de si. Os efeitos das lutas ecológicas ultrapassam o tema da preservação e da conservação da natureza para se situarem nos ambientes monitorados das cidades, não só por meios eletrônicos.

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Deixamos a era do pastorado na qual um líder atendia às faltas individuais e coletivas do rebanho. Agora, cada membro também deve ser um pastor de si e dos demais, mostrar-se resiliente, monitorar as condutas de cada um e configurar-se como um cidadão-polícia, convocado à participação constante para além da representatividade política. Os nóias são indivíduos a serem despoluídos e vinculados a programas de higienização de zonas das cidades com interface com os programas de revitalizações urbanas voltados à população em geral. Eles devem ser tratados e, como os demais, ocupados para o seu benefício e o da cidade, recebendo cuidados necessários para descobrirem suas potencialidades produtivas, afastados do vício e da violência. Os programas expressam a racionalidade neoliberal relativa à conformação do indivíduo como capital humano, combinando repressão e atenção com saúde atrelada à segurança, pelos quais governos e a sociedade civil organizada contam com cada cidadão-polícia na higienização dos ambientes. Constata-se, uma vez mais, que o tráfico de drogas é algo impossível de ser extirpado (sua supressão levaria a déficits monumentais na indústria bélica e financeira) e que ele exercita suas mobilidades, instalando-se, agora,

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no México e nas regiões norte e nordeste do Brasil. Resta ao usuário de crack a esperança na salvação, celestial ou ambulatorial, com inclusão? O sonho da higienização provoca a descentralização da cracolândia-SP. Vagando como morto-vivo, porque esta também é a face da liberdade do consumo, caminha doidão, como testemunha do jamais limpo e salutar capitalismo. Estampa em seu corpo a putrefação dos asseados, saudáveis e bem vestidos conformistas adeptos das melhorias na subsistência.

[Publicado como ‘hypomnemata 141’, boletim eletrônico do Nu-Sol, fevereiro de 2012]

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sociedade de controle e modulação dos programas televisivos femininos1 lúcia soares

A sociedade de controle é a sociedade da comunicação simultânea e instantânea e do controle contínuo.2 Assim, as instituições disciplinares, descritas por Michel Foucault, com seus dispositivos de vigilância e controle em espaços fechados são redimensionadas na atual sociedade de controle, modelando-se e adaptando-se a novas táticas de governo das condutas e das populações que incluem técnicas de controle dentre as quais as mídias eletrônicas – a televisão e a internet – exercem um papel preponderante. As novas tecnologias da comunicação e as redes digitais remodelam os veículos de comunicação, estendendo seu campo de cobertura a diversos setores da sociedade. Os sujeitos, nesse processo, não se encontram inertes como passivos receptores de informações, dados e imagens; pelo contrário, eles também produzem dados, informações e imagens que transmitem por meio dessas mesmas tecnologias, participando diretamente da disseLúcia Soares é pesquisadora no Nu-Sol, doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP; professora do curso de Psicologia e da Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Uninove . verve, 22: 131-149, 2012

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minação dos seus efeitos. No regime do controle contínuo da sociedade de controle, o indivíduo é convocado a aderir, a participar da vida social e da política em democracia enquanto cidadão, o que significa acompanhar, compartilhar, interagir e acreditar ser possível influenciar os acontecimentos que passam diante de seus olhos e a um toque dos seus dedos, na tela do televisor, do computador ou do celular.

Na sociedade de controle, a palavra de ordem da mídia, sobretudo da televisão, é participação. Ao investir em sondagens e pesquisas a televisão analisa de que maneira pode-se capturar o telespectador-cidadadão-consumidor, a partir de seus desejos e quereres, instituindo uma percepção de familiaridade e individualidade, mas sempre se dirigindo ao coletivo. Daí, portanto, o telespectador não é mais o receptor passivo, manipulado e dócil. Ao contrário, o telespectador é participativo e dinâmico, sendo persuadido e seduzido o tempo todo por uma operação de mão dupla porque se interessa pela produção das informações transmitidas, editadas, manipuladas pelos programas televisivos e, também, dispõe-se a intervir e manipular os mesmos programas dando sua opinião, por meio de pesquisas instantâneas, colaborações e interatividade. Ao refletir sobre a produção de informações pela mídia contemporânea, Hans Magnus Enzensberger observou que “não existem escrita, filmagem e exibição não manipuladas. Dessa forma a questão não é se as mídias são manipuladas ou não, mas quem as manipula”3. Para Enzensberger, tanto a crença liberal na imparcialidade do jornalismo quanto a crítica de esquerda que acusa a imprensa burguesa de manipular notícias – produzindo ou adulterando informações sobre o “real” – a fim de manipular consciências e, com isso, viabilizar a reprodução 132

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da dominação econômica e política, desconsideram que toda notícia é um fato acontecido que foi lido, editado e interpretado por quem se dispôs a comunicá-la aos demais. Logo, não haveria notícia que não tivesse antes sido manipulada – tocada, mexida com as mãos, trabalhada. Quando escreveu sobre o tema no início dos anos 1970, interessava a Enzensberger afirmar a esterilidade de acusar esse ou aquele grupo por distorcer uma suposta verdade, mas de compreender que toda verdade é produzida a partir de acontecimentos que são recontados a partir de uma perspectiva, ou seja, que são manipulados por valores, interesses políticos, preconceitos etc.. Ao invés de denunciar a manipulação do outro, para o sociólogo alemão, importaria aos grupos políticos de resistência assumir a condição de manipuladores e transmissores de informação, aproveitando, para tanto, as facilidades técnicas que, a partir das inovações do pós-Segunda Guerra Mundial, passaram a permitir que receptores de informação se transformassem em possíveis emissores. A difusão da tecnologia dos computadores pessoais na passagem dos anos 1980 para os 1990, acompanhados da disseminação do uso civil da internet, antes restrito aos aparatos de militares dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, alterou a velocidade e os modos de comunicação não só pela instantaneidade das trocas de mensagens e dados eletrônicos, como também, pelas transformações incorporadas pela própria televisão. A disseminação dos recursos eletrônicos e de telecomunicação a partir dos anos 1990 articulou-se aos programas de TV que passaram a chamar por uma maior interação com os telespectadores, ampliando o conceito de participação para uma audiência fechada que por ventura estivesse presente no 133

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estúdio de gravação. A interação entre comunicadores/ apresentadores de TV e seu público pôde, então, passar a ser imediata – ao vivo –, com impacto na condução do próprio programa televiso, que teve sua editoria flexibilizada de modo a incorporar parte das intervenções do público; fato que tornou mais tênue a divisão entre emissor e receptor acentuando ainda mais o processo que, nos anos 1970, identificara Enzensberger. Desse modo, na sociedade de controle, o telespectador não pode ser considerado um ser meramente comandado por opiniões e valores transmitidos pela TV; ele também interage participando da produção e retransmissão desses valores. Assim, a televisão atual está direcionada para cada um e para todos; e, em parte, produzida pela convocação dos telespectadores. Com seu grande poder de alcance, a televisão é hoje uma via de produção de verdade das mais eficientes, sendo capaz de tornar qualquer discurso potencialmente verdadeiro ao se propor informar, difundir, transmitir e comunicar a “todo mundo”. A TV atinge a todos e a cada um em seus segmentos específicos ao sugerir relatos e interpretações dos acontecimentos da vida cotidiana. Pela tela passam transmissões ao vivo de guerras e conflitos, ações governamentais em favelas, eventos esportivos e programas de entretenimento, educativos, informativos, noticiosos. Enfim, tudo o que acontece parece passar pela televisão. Seguindo a análise de Michel de Certeau4, podemos considerar que a televisão fabrica sua produção, torna o telespectador um consumidor cultural ao colonizar sua vida cotidiana, que é mostrada, construída, reconstruída e dramatizada. Com isso, as práticas cotidianas são exploradas ao máximo, seja nos telejornais, programas de entretenimento, telenovelas ou documentários. 134

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Este artigo procura esboçar uma análise da televisão como produtora de verdades na sociedade de controle a partir do estudo de alguns dos atuais e mais assistidos programas televisivos voltados ao público feminino na TV brasileira. A partir da indicação de procedências desses programas na história de televisão no país, procurar-se-á expor como tais programas femininos produzem e transmitem valores que têm como alvo reafirmar costumes conservadores, modulando condutas para os tempos de hoje, nos quais se espera que as pessoas participem da vida social e dos acontecimentos de modo a reforçar e aperfeiçoar o atual estado das coisas e não para problematizá-lo ou, muito menos, a ele resistir.

Programas

Um dos termos mais recorrentes e significativos quando se trata da televisão é programa, palavra de múltiplos sentidos e acepções. Um programa pode demarcar uma ordem ou uma ordem social que incide sobre a conduta das pessoas; uma ordem entendida como operadora de consciências, procurando incutir regras, normas, modelos a serem seguidos e copiados como exemplos de vida, de retidão e conformidade; uma moral.

Um programa, em sentido amplo, pode ser também uma representação explícita, escrita, ensaiada e encenada por atores sociais que representam um conjunto, ou sequência, com uma determinada função no interior da sociedade. Um programa pode, ainda, estar vinculado à educação, ao que deve ser ensinado, transmitido, comunicado aos alunos que são adestrados, preparados e interrogados nos exames contínuos a que estão sujeitados. 135

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Um programa pode significar o princípio, o caminho que um partido político ou um governo traçam esperando que os partidários e eleitores o sigam. Um programa pode ser um plano, uma política, uma agenda de governo, de candidatos às eleições, de organizações não-governamentais e suas táticas de governo voltadas aos indivíduos, grupos e minorias nas suas demandas por direitos. Um programa pode ser uma produção, um trabalho, seja em série, edição limitada, em tempo real ou virtual. Um programa pode ser um dispositivo eletrônico antivírus para rastrear e eliminar outros, ou para acessar, modificar ou danificar banco de dados, de pesquisa, de instalação de informações, de códigos que recuperem e reparem erros. Um programa pode ser de sexo, pago ou não, e ainda, designar uma diversão. Um programa, por fim, pode significar vigilância, controle, denúncia de si e dos outros.

Um programa televisivo, por sua vez, pretende informar, opinar, emitir juízos e transmitir supostas verdades ao propiciar uma reflexão sobre a vida dos indivíduos, do seu cotidiano, das suas práticas sociais, investindo nos anseios dos telespectadores quando exibem reportagens, documentários, séries – sobre pessoas, lugares, culturas, religiões, música, literatura, gastronomia, comportamento, etc. –, no intuito de atender e, se possível, antecipar as expectativas de quem assiste, avidamente, o que está sendo transmitido. Mais especificamente, um programa de auditório ou de variedades procura entreter, informar, mudar o comportamento e o pensamento, conscientizar, ensinar, atingir, assegurar, sensibilizar, mostrar, direcionar, julgar, moralizar, aconselhar, reconfortar os telespectadores por meio de reportagens, entrevistas, debates, discussões, atrações e qua136

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dros comandados por um apresentador ou apresentadora que saiba animar, interagir, chamar a atenção, ser incisivo – quando preciso –, ter leveza, bom humor com a plateia de espectadores e telespectadores que estão em suas casas acompanhando o que está programado. No que diz respeito a essa reflexão, interessa destacar o poder de produção de verdade da televisão e dos programas de entretenimento femininos na fabricação de condutas cotidianas, menos como segmento de gênero ou classe social, e mais como efeitos do fluxo contínuo da sociedade de controle. Interessa, também, notar como o que é programado pelos editores, diretores, apresentadores de TV passa a ser parcialmente modulado pela interconectividade dos telespectadores, chamados a participar por e-mail, mensagem de texto, twitter ou ligações telefônicas de questões pré-programadas pelos responsáveis da atração televisiva, sugerindo àqueles que assistem que têm algum poder de influência sobre o que se transmite. A programação, então, passa a comportar uma possibilidade de captura das atenções de quem acompanha os programas ao mesmo tempo em que oferece aos telespectadores vias de participação pelas quais também podem expressar seus valores, sentindo-se contribuintes do produto final transmitido pela TV.

Mulheres e programas de entretenimento televisivo

Desde os primeiros anos da televisão brasileira, na década de 1950, as mulheres estiveram presentes na programação, inseridas e contempladas pela nova mídia a partir do que podiam e deviam ver e ouvir ao vivo em preto e branco, anunciado por suas divas de rádio, cinema e teatro que, 137

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então, transformavam-se em estrelas de TV junto a outras em início de carreira, ou ainda, com anônimas garotas-propagandas e telemoças que almejavam o estrelato. Já nos seus princípios, a televisão assediou não apenas as atrizes, cantoras, bailarinas, dançarinas e apresentadoras do rádio, cinema e teatro, como também copiou e adaptou programas deste círculo para telenovelas, teleteatros e programas de variedades, para cativar o seu público principal: o feminino. No entanto, a televisão brasileira, para difundir-se entre esse público, não investiu apenas em teleteatros e telenovelas, gêneros que podiam ser acompanhados por toda a família. Houve um direcionamento específico visando as mulheres que levou à segmentação de programas voltados ao “universo feminino” e que se dedicaram a ampliar, representar, encenar, discutir e incutir nas moças, nas donas de casa, nas mães de famílias valores para sua vida e sentidos para o seu papel na sociedade. Foi nesse campo, carregado de valores e enunciados morais voltados para um público específico, que surgiram os primeiros programas televisivos femininos. Assim, consolidou-se um modelo de programa – semanal ou diário – que abordava temas femininos que iam desde questões cotidianas – como orientações culinárias e dicas para a manutenção da casa – até questões relacionadas às subjetividades das mulheres, como beleza, moda, comportamento, exercícios físicos e jovialidade. Um dos primeiros programas dessa safra inicial, ainda no início dos anos 1950, foi No Mundo Feminino da TV Tupi-SP, apresentado por Maria de Lourdes Lebert e Elizabeth Darcy. Logo veio outro, intitulado Revista Feminina, apresentado por Lolita Rios também na TV Tupi-SP que, preparado nos moldes das revistas femininas impressas de então, vol138

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tou-se às questões do papel da mulher numa sociedade em modernização, urbana e com a entrada de novos valores por meio das próprias mídias de massa como o cinema, o rádio e a TV. O sucesso desses programas foi grande, arrebatando um público significativo para a época de mulheres casadas e solteiras, feias e bonitas, trabalhadoras e donas de casa.5 Em 1957, estreou outro programa destinado às mulheres e apresentado por Hebe Camargo chamado O Mundo é das Mulheres, que se tornou referência e procedência de todos os outros programas de mulheres que surgiriam nos horários matutinos, vespertinos e noturnos, programas diários ou semanais, em várias emissoras de televisão durante esta década. Segundo Miceli, nesse programa, Hebe Camargo construiu sua própria imagem como a de uma mulher igual às outras, pertencente a uma classe média, mãe de família, dona de casa que vai às compras de supermercado, que administra o lar e os empregados da casa, educa os filhos; enfim, uma mulher carinhosa e austera, atenta às normas de conformidade social, empenhada na reprodução de maneira exemplar dos papéis familiares resultantes do seu desempenho de “procuradora a serviço de um quadro de valores e normas particular”6. Foi assim que Hebe, que estreara no final dos anos 1940 como cantora e atriz de rádio e cinema, conquistou a empatia do público de TV que a consagrou como representante da instituição família no segmento dos programas femininos: uma prestadora de serviço público, empenhada em trabalhar, assemelhar-se aos telespectadores, compartilhar com eles seus valores, modos, galhofas, preocupações, a todo tempo desempenhando um papel e reafirmando um mesmo e indicado estilo de vida. 139

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A aceitação do público e o sucesso como transmissora de valores morais disseminados na sociedade brasileira, e que foram catalizados por seu programa, talvez ajude a compreender como Hebe Camargo e seus programas persistam no tempo, reinventando-se de diversas maneiras, provocando modulações7: além da própria permanência no ar, Hebe e seu estilo já foram adotados, copiados e repaginados por outras apresentadoras mais jovens, a exemplo de Adriane Galisteu e Luciana Gimenez, a partir dos anos de 1990. Hoje em dia, os programas televisivos de mulheres utilizam uma série de dispositivos8 para capturar e orientar suas telespectadoras. Eles procuram interceptar e modelar suas condutas ao estimular a interação, colher suas opiniões, reconfigurar seus discursos para atualizar a sua mulher ideal. Na linha do que, há décadas, faz Hebe Camargo, os atuais programas femininos exibidos pela televisão aberta ou fechada procuram moldar e adaptar o comportamento de suas telespectadoras a certos padrões de conduta. Para tanto, investem em sondagens, diagnosticam anseios, reproduzem e explicitam aquilo que elas querem e precisam ver. Por meio do inconsciente maquínico9, a televisão apela para a conduta da mulher fabricando uma realidade que aciona a produção de modos que ordenam e controlam a maneira de viver, de trabalhar, de ensinar, de se vestir, de falar, de andar, de se alimentar, de cozinhar, de lidar com o sexo e com sua sexualidade, com seu corpo, com seu passado, presente e até com seu futuro. A produção de subjetivações é capturada por estes programas femininos, transformada e reproduzida em novos tipos de subjetividades disseminadas pela mídia.

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Os programas femininos da televisão aspiram pensar pelas mulheres, organizar suas vidas, ensinar a fazer, recomendar o que pode ser feito, ou tudo o que uma mulher deve fazer, sentir e pensar, intermediando a conformação de seus comportamentos no interior de uma conduta esperada. Por meio das representações das práticas cotidianas mostradas nos programas femininos, os efeitos dessa produção de um padrão de conduta trabalham para o redimensionamento e atualização da moral conservadora: a moral do casamento, a moral da família, a moral da estética, a moral da boa alimentação, a moral ecológica, sempre como uma inacabada produção “em aberto”. A moral conservadora, dessa maneira, também é repaginada e ganha outra roupagem a ser trabalhada, cotidianamente, pelos programas femininos, que funcionam no sentido de incentivar as mulheres a governar a si mesmas, orientando, interceptando, aconselhando e controlando o seu comportamento. Ao mesmo tempo, isso não significa que os programas femininos inventem e imponham uma moral; ao contrário, eles identificam, captam e expressam práticas do seu público telespectador, enfatizando, amplificando e reforçando condutas. Desde os inícios da TV, entre os anos 1950 e 1960, os programas destinados às mulheres redimensionaram o discurso das revistas femininas e dos programas femininos produzidos pelo rádio, potencializando com imagens os discursos antes apresentados nesses meios de modo a enfatizar o papel da mulher apropriada, condizente e preparada para a vida social. O discurso dos programas femininos da televisão, portanto, não atua sozinho: quem pronuncia, quem diz, quem faz circular esse conjunto de valores e práticas pelo meio televisivo que conforma a mulher e incide

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sobre as telespectadoras são os apresentadores e apresentadoras, a partir do que o seu público quer ver e ouvir. Nos sessenta anos da televisão brasileira, os programas destinados às mulheres na TV aberta expandiram-se em todas as faixas de horário, com programas de informação e entretenimento matutinos ou vespertinos comandados por apresentadoras e jornalistas, ou ainda, por vários apresentadores que se revezam em quadros. No horário nobre noturno, o prime time ainda privilegia os telejornais e as telenovelas, no entanto, há também programas de variedades ou programas de entretenimento e auditório como os atuais programas de Luciana Gimenez e o da própria Hebe, apresentados na faixa de horário das 21h às 23h. Em outros casos, existem quadros específicos que abordam temas destinados às mulheres dentro de programas exibidos à noite, como fez em 2009 o programa dominical Fantástico com o quadro Liga das Mulheres apresentado e editado por Renata Ceribelli. A cada episódio, abordava os problemas e dilemas das participantes acerca de relacionamentos amorosos, relacionamento entre mães e enteadas, cuidados com o corpo e a alimentação, entre outros temas; para tanto, contava com a participação de quatro mulheres que discutiam e opinavam sobre o que poderia ser feito para solucionar tais dificuldades, e ainda, com o auxilio de uma psicanalista. Na TV fechada encontramos não apenas programas femininos como canais com uma programação exclusiva destinada às mulheres. Esse é o caso do Canal GNT da Globosat com sua “programação completa, moda, beleza, receita, casa, mães, saúde e comportamento”10. Já o Canal Discovery Home Health, do grupo Discovery Communications, se intitula “um lugar em que a mulher 142

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participa e se expressa”11. Ambos os canais investem em programas que intervém tanto sobre o corpo – com reportagens e programas especiais sobre intervenções estéticas e cirúrgicas – quanto sobre o comportamento das pessoas – a maneira de se vestir, seus hábitos alimentares, estilos de vida, educação dos filhos, casamento e sexo – com a proposta de uma “reconstrução” de vida. Os atuais programas televisivos femininos investem na produção de subjetividades, ao discutir os dilemas das mulheres em torno do corpo (estética e saúde), do comportamento (trabalho, casamento, família), ou práticas (de adereços, artesanato, culinária, coluna social). Ora entrevistando celebridades, vasculhando suas vidas, colhendo seus depoimentos para mostrar ao público feminino que elas são humanas como você e tem lá seus problemas; ora apoiados em especialistas, como médicos, psicólogos, psiquiatras, educadores, economistas, estilistas, gastrônomos, nutricionistas, esportistas, advogados e arquitetos, todos apresentados como autoridades aptas a falar sobre qualidade de vida, projetos sociais, meio ambiente, trabalho, alimentação, cuidados com os filhos, casamento, amor, ciúmes, saúde da mulher, felicidade, voluntariado, caridade, solidariedade, respeito, limites, e outros temas e assuntos que vão se desdobrando conforme os quadros, os temas e debates abordados. Não obstante, as mulheres telespectadoras são convocadas não apenas a assistir, mas também a aderir e participar continuamente dos temas e situações colocadas pelos programas. Para tanto, precisam acompanhar tais programas na televisão, atentas às chamadas para que opinem por telefone, mensagem de texto ou, ainda por chats e enquetes nas páginas da internet participando das comunidades internas, lendo e postando mensagens nos blogs, 143

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discutindo nos fóruns. Há meios de participação para todas, quer sejam as donas de casa que ocupam parte do seu dia assistindo televisão; quer sejam trabalhadoras, estudantes, profissionais liberais, executivas, casadas, solteiras, ávidas por participar, seguir, observar, aderir, denunciar e expor seus sentimentos, problemas e aflições.

A modulação dos programas femininos televisivos da TV aberta e da TV fechada concorre constantemente para transformar suas telespectadoras à imagem e semelhança das suas apresentadoras esbeltas, repaginadas por cirurgias plásticas, dietas, reeducação alimentar e ginásticas que adéquam seus corpos aos novos padrões estéticos vigentes, para serem aceitas e obterem sucesso em suas vidas. Por outro lado, a transformação, ou o makeover, não ocorre apenas na esfera estético-comportamental, mas também por meio de programas que investem em questões sociais, como é o caso do programa Extreme Makeover Social exibido aos sábados à 0h45 pela Rede Record de Televisão, que procura solucionar problemas específicos dos moradores das comunidades escolhidas para receber o benefício da transformação, de preferência creches e escolas. Ao investir na reconstrução de espaços físicos e sociais, no intuito de beneficiar comunidades carentes e suas famílias, o programa Extreme Makeover Social apela para a consciência cidadã do telespectador-cidadão-consumidor, recorrendo ao discurso da emoção, conscientização, inclusão social, educação, solidariedade, ecologia, sustentabilidade – palavras frequentemente empregadas no programa. Ao reformar creches e escolas, investe em mudanças ecologicamente corretas que são acompanhadas de perto pelas mulheres das comunidades, donas de casa, mães, professoras, diretoras mobilizadas para liderar as parcerias de projetos 144

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sociais via televisão. Essas mulheres são colocadas como principais agentes e alvos da transformação desses locais e práticas sendo elevadas à condição de estrelas efêmeras pelo tempo que durar a reportagem em que aparecem. Programas como esses apresentam-se como ampliadores dos canais de participação dos cidadãos, das mulheres e suas famílias na correção das desigualdades como exercício da compaixão cívica12, ao investir na caridade e no exame de consciência do cidadão de bem, responsável, que faz a sua parte na intenção de ajudar a cuidar do próximo, exercitando um sentimento de participação e de dever cumprido. Desde seus primórdios, a televisão visou agir sobre telespectadores com sua educação voltada para a vida cotidiana dos sujeitos no intuito de ensinar-lhes a governar a si próprios, a sua família e comunidade. Os programas voltados ao público feminino, em especial, teriam, então, potencializando a difusão de práticas de governo de si que, como mostrou Michel Foucault, produziria modos de governo de si e dos outros: “(...) governar a si mesmo; depois, num outro nível governar a sua família (...)”13 e pôr em prática modalidades que incidissem sobre o comportamento e condutas das pessoas. Assim, o papel da televisão e dos seus programas não seria meramente entreter e informar, mas operar sobre as subjetividades do telespectador-cidadão, educá-lo e moldá-lo desde a tenra infância, acompanhá-lo na sua juventude e fase adulta, fazer-lhe companhia na velhice. Os programas femininos investem no desejo das mulheres por um corpo novo, à imagem e semelhança das apresentadoras. Elas aparecem no vídeo rejuvenescidas pelas intervenções estéticas e cirúrgicas, pela maquiagem e pho145

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toshop, artifícios capturadores das subjetividades femininas. A mulher, enquanto telespectadora-consumidora-cidadã, é conclamada a estar atenta o tempo todo para governar a si, a sua família, ao próximo e a sua comunidade. Os fluxos de controle impetrados pelos programas femininos estão sendo redimensionados por modulações contínuas que agora se deslocam em uma via de mão dupla: da TV aberta à TV fechada, da TV fechada à TV aberta. Acoplados à internet, ditam regras de condutas, julgam as ações, intenções e comportamento das mulheres sob a insígnia transcendental do que é certo e errado, uma moral que avalia o que se faz o que se diz. Esses programas de TV transformam e reatualizam um estilo de vida conformado que repousa no campo do que Edson Passetti analisa como o do conservadorismo moderado14, ou seja, no investimento contemporâneo do controle, correção, responsabilidade e equilíbrio, como conduta que se espera de uma mulher moderada, ao mesmo tempo, boa cidadã, mãe zelosa, trabalhadora produtiva e esposa dedicada. Tais programas de TV propiciam tudo isso com o consentimento e adesão voluntária de suas telespectadoras-consumidoras-cidadãs. Essas mulheres não são apenas espectadoras, prostradas diante da televisão. Ao contrário, cada telespectadora – ao se sentir representante e representada – conecta-se a seus programas de televisão preferidos por meio da interatividade. Interagir, nesse sentido, significa seguir, ficar ligado na tela, de olho, enviar mensagens, participar de fóruns de discussão registrar comentários, acessar a internet para assistir o programa em partes ou integralmente, acessar blogs e redes sociais que remetam aos programas; significa, enfim, aderir, envolver-se, fazer parte, contribuir para melhorar a programação. 146

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Não há fim nas variadas modulações que se desdobram da televisão aberta para televisão fechada e vice-versa, sobretudo, na relação entre a televisão e o chamado telespectador-consumidor-cidadão. Está em jogo na sociedade de controle a produção de uma multiplicidade de programas que se apresentam inacabados com sua convocação à participação, às sondagens, às colaborações e programações por demanda, produzindo condutas que se fazem e renovam agora. É nesse jogo que se produz verdades pela televisão para um governo das condutas que se dá numa relação inacabada, sempre refeita, atualizada. Assim, os programas televisivos femininos na TV brasileira explicitam alguns dos componentes participativos e interativos, característicos da tecnologia de governo na sociedade de controle que produzem e são produzidos na interação incessante entre o telespectador e os apresentadores/editores dos programas que emitem e retransmitem valores, práticas e modelos de condutas voltados ao governo moderado de si e dos outros.

Notas

Este artigo apresenta alguns resultados da pesquisa de doutorado Política e Modulações do Entretenimento Televisivo: mulheres e denúncia, apresentada em 2011 no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. 1

Gilles Deleuze. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro, Editora 34, 2000. 2

Hans Magnus Enzensberger. Elementos para uma Teoria dos Meios de Comunicação. Tradução de Claudia S. Dorn Busch. São Paulo, Conrad, 2003, pp. 35-36. 3

Michel de Certeau. A Invenção do Cotidiano. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, Vozes, 1998. 4

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Bia Braune e Rixa. Almanaque da TV . Rio de Janeiro, Ediouro, 2007, p. 58.

Sérgio Miceli. A noite da madrinha. São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p. 56. 6

Segundo Deleuze “(...) uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma pendira cujas malhas mudassem de um ponto a outro”. Gilles Deleuze, op. cit., 2000, p. 221. 7

A noção de dispositivo segue a definição de Agambem: “a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos.” O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó-SC, Argos, 2009, p. 40. 8

De acordo com Guatarri, o inconsciente maquínico não está vinculado apenas à subjetividade humana e pautado na psicologia, mas, sobretudo, nos fluxos e nas “escolhas da sociedade” de maneira essencial acerca de “como viver” num mundo transpassado em todos os sentidos por sistemas maquínicos que tendem a expropriar toda singularidade, toda vida de desejo. Félix Guatarri, Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Tradução de Suelu Rolnik. São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 167. 9

Cf. http://gnt.globo.com/. O Canal GNT passou por uma reformulação em 2011, para tanto, investiu em sondagens e pesquisas sobre o seu público-alvo: mulheres burguesas com idade entre 25 e 49 anos. Em seu portal, o próprio canal televisivo se denomina como específico do público feminino. 10

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Cf. http://discoverybrasil.uol.com.br.

Richard Sennet. Carne e pedra. Tradução de Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro, Record, 2005, pp. 300-306. 12

Michel Foucault. O Nascimento da Biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008, p. 125. 13

Edson Passetti. “Poder e Anarquia: apontamentos libertários sobre o atual conservadorimo moderado” in verve. São Paulo, Nu-Sol/PUC-SP, n. 12, 2007, pp. 11-43. 14

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Resumo O artigo analisa a produção de subjetividades que se dá por meio dos programas de TV voltados ao público feminino, destacando os elementos de conexão entre apresentadores, editores e espectadores por meio de dispositivos eletrônicos como e-mails, chats, blogs e ligações telefônicas. Apresenta-se uma breve história dessa modalidade de programa de TV a fim de problematizá-lo como um dos mais importantes meios contemporâneos para produzir e reproduzir valores conservadores. Palavras-chave: programas de TV femininos, conservadorismo moderado, sociedade de controle. Abstract The article aims to analyze the production of subjectivities through the Brazilian Women TV shows, stressing the elements of connection between anchors, editors and audience allowed by the new electronic ways of instant communications as e-mails, chats, blogs and phone calls. It presents a brief history of this kind of TV show in order problematize it as one of the most significant contemporary ways to produce and reproduce conservative values. Keywords: Brazilian Women TV show, moderate conservatism, society of control.

Recebido em 20 de fevereiro de 2012. Confirmado para publicação em 15 de setembro de 2012. 149

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A ubiquidade das ditaduras na América do Sul

Na América do Sul, anos 1960 e 1970, a ubiquidade da tortura, como mostrou Roberto Bolaño em seus escritos, não ficou restrita somente aos fétidos porões das polícias. Em Noturno do Chile, o escritor apresentou a casa de Maria Canales, espaço no qual eram organizados saraus e tertúlias que reuniam com frequência artistas, literatos, pensadores da cultura do país governado pelo General Pinochet. Bolaño descreveu a descoberta de um cômodo na casa por “um teórico da cena de vanguarda”. “Quando se viu perdido no porão”, conta o narrador do romance, “e se conscientizou disso, não teve medo, ao contrário, viu despertar seu espírito trocista, abriu portas, pôs-se até a assobiar, e finalmente chegou ao último quarto no corredor mais estreito (...) abriu a porta e viu o homem amarGustavo Simões é pesquisador no Nu-Sol e mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP. 150

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rado numa cama metálica, de olhos vendados, e soube que o homem estava vivo porque o ouviu respirar, embora seu estado físico não fosse bom (...) viu suas supurações, como eczemas, as partes maltratadas da sua anatomia, as partes inchadas, como se tivesse mais de um osso quebrado”1. Contudo, após assistir a cena, o teórico de vanguarda ou o ator de teatro ou um convidado qualquer – “meses depois, talvez anos depois, outro habitué dos saraus me contou a mesma história. Depois outro, depois outro, e mais outro” 2 – fechou a porta e não disse absolutamente nada. Com a chegada da democracia, comenta o narrador de Noturno do Chile, soube-se que o marido de Maria Canales havia sido um dos principais agentes da DINA3. “Os subversivos passavam pelos porões de Jimmy, onde este os interrogava, extraía deles toda informação possível (...). Na sua casa em regra, não se matava ninguém (...) se bem que alguns tenham morrido”4. Bolaño viveu na pele as violências dos governos da América do Sul na década de 1970. Foi preso, no Chile, após o golpe civil-militar em 1973. Em “Os detetives”, conto publicado em Chamadas Telefônicas, narrou, por meio da conversa entre dois policiais, o episódio de sua prisão. O ocaso do conto é o diálogo entre Bolaño e um dos agentes – com quem o escritor havia estudado na adolescência – rumo a um espelho situado no fundo do lugar reservado a militantes presos logo após o golpe de Pinochet. A única exigência de Bolaño durante todo o período em que esteve detido foi precisamente mirar-se no espelho. Ao retornar do percurso até o reflexo de sua própria imagem, comentou com o policial que algo estava errado, pois a imagem que ele via não era a de seu rosto. Após argumentar que aquele lugar era mal iluminado ou que a 151

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confusão talvez se devesse ao desgaste causado pelo tempo, o policial decide acompanhar Bolaño até o espelho. Entretanto, acaba olhando a si mesmo e se vê “de olhos muito abertos, como se estivesse cagando de medo”. Por detrás de seus ombros enxerga “um tipo de uns vinte anos mas que aparentava dez anos mais, barbudo, de olheiras fundas”5. O agente relata ao outro policial com quem conversa durante o conto inteiro que, nesse momento, Bolaño sussurrou em seu ouvido “ei, Contreras, tem alguma sala detrás dessa parede?”6. O policial responde que sim, que atrás do espelho localizavam-se as celas reservadas aos ditos presos comuns. Por fim, Bolaño diz: “entendi tudo”. A afirmação que escancara a separação entre os considerados presos comuns e políticos provoca a reação imediata do agente que, por um átimo de segundo, toca com os dedos o revólver para “dar um tiro nele ali mesmo, era fácil, teria bastado apontar e meter uma bala na cabeça”7. Em 1996, ano seguinte à publicação de Chamadas Telefônicas, Bolaño lançou Estrela Distante. No romance, o escritor chileno apresenta Alberto Ruiz-Tagle, jovem que passa a frequentar as oficinas vanguardistas de poesia de Concépcion. Todavia, assim que ocorre o golpe civil-militar, Tagle sai de cena, tornando-se o piloto da aeronáutica Carlos Wieder, ilustre entre os militares chilenos por desenhar com aviões poemas no céu de Santiago. Ao tornar-se um piloto reconhecido pelas altas patentes militares, celebrado por críticos literários vanguardistas, Wieder decide organizar um sarau no interior de um cômodo do apartamento em que residia, com fotos suas de jovens assassinados por suas próprias mãos, alguns com os quais dividia o espaço nas oficinas de poesia às vésperas do 11 de setembro de 1973. Munõz Cano, crítico literário per152

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sonagem de Estrela Distante, reconheceu o corpo de algumas mulheres nas impressões dispostas pelas paredes. “Eram, na maioria, mulheres. O cenário das fotos quase não variava de uma para outra, deduzindo-se, daí, que todas foram feitas no mesmo lugar. As mulheres parecem manequins, em alguns casos manequins sem membros, destroçados”8. Cano prossegue contando que “a ordem em que foram expostas não é fortuita: seguem uma linha determinada, uma argumentação, um roteiro, uma história (cronológica, espiritual...), um plano”9. No mesmo ano em que Bolaño publicou Estrela Distante, o escritor anarquista Roberto Freire lançou o segundo volume de Os cúmplices, romance em que recordou ficcionalmente a militância de resistência à ditadura civil-militar brasileira. Em Os cúmplices, Freire expõe as aventuras apaixonadas vividas por dois jovens irmãos, de sangue e de luta, no bairro do Bixiga, em São Paulo, nas décadas de 1950 e 1960. Momento em que se orgulhavam de “chocar bonde”, rebolar ao som de Elvis Presley, mas principalmente de assistir nos cinemas Marilyn Monroe e depois Brigite Bardot. Baseando-se nas conversas realizadas com o libertário Jaime Cubero, Freire inventou a história destes dois irmãos que acabam descobrindo o anarquismo através das “peladas”, jogos de futebol de várzea. Depois de enfrentarem o time da Mooca, Bruno e Victor recebem o convite do zagueiro da equipe rival, Liberto, filho de um anarquista que lutara na Revolução Espanhola, para frequentarem as reuniões do Centro de Cultura Social localizado no bairro do Brás. Para além do jornalismo presente nas ambições do corajoso irmão mais velho, Bruno, Os cúmplices apresentou também o teatro experimentado por Freire nas décadas de 153

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1950 e 1960. Victor, o irmão mais novo, descobriu junto dos prazeres do sexo as invenções no teatro por Grotowski na Polônia e pelo Living Theatre nos Estados Unidos. No romance, Freire descreveu por meio de certos personagens a repressão enfrentada por ele durante o lançamento do espetáculo O & A, no TUCA, teatro no qual foi diretor geral desde sua inauguração, em 11 de setembro de 1965, até 1967.

Em 1968, um ano após O & A, o general Costa e Silva decretou o AI-5. A violência a partir de então se intensificou ainda mais sobre certos jovens como Wagner, personagem de Os cúmplices, “rapaz que falava com as mãos se agitando diante do rosto”10, militante preso numa manifestação próxima à PUC-SP, na Rua Monte Alegre, que teve as mãos decepadas pelo Delegado Flores 11, no DOPS. Como apontou Cecília Coimbra, a partir de 1968, “a tortura passa a ser prática ‘comum’ e oficial (...). Além de obter informações, fragilizar e pulverizar os opositores do regime, a tortura cumpre, como dispositivo social, uma função: produz subjetividades. Pelo medo, cala a sociedade”12. Se Cléo & Daniel, primeiro romance de Freire, esboçado no porão do DOPS de São Paulo – onde hoje é a “Estação Pinacoteca”, bairro da Luz – apresentou a impossibilidade de amor em meio a um regime militar, neste romance ele relatou a ditadura investindo sobre o sexo dos jovens. Enquanto o primeiro volume de Os cúmplices terminou em sexo liberado e novas possibilidades de prazer descobertas por Victor, o desfecho do segundo volume descreveu a tortura incidindo sobre o corpo de seu irmão mais velho. “O delegado Flores foi-lhe dando bofetadas no rosto, cada vez mais fortes, até que se cansou (...). Entregaram-lhe o arame ligado ao aparelho. O delegado o segurou firme (...) E 154

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Flores foi enfiando o arame pela uretra de Bruno, que logo começou a sangrar”13. Os efeitos da tortura sobre Bruno, o corajoso irmão mais velho que abandonou o jornalismo para se tornar matador de coronéis no nordeste do país, tornam-no impotente para os prazeres da vida. Os cúmplices narrou uma história vivida por inúmeros militantes presos no Brasil. Desde o eletrochoque – “foi-lhe amarrado um dos terminais do magneto num dedo de seu pé e no seu pênis, onde recebeu descargas sucessivas, a ponto de cair no chão”14 – até a utilização de insetos – “a interroganda quer ainda declarar que durante a primeira fase do interrogatório foram colocadas baratas sobre o seu corpo, e introduzida uma no seu ânus”15 –, a tortura visou não somente arrancar informações úteis à repressão dos grupos que lutavam contra a ditadura mas, também, arruinar o sexo e interceptar o prazer. Prática comum nos porões não só do Brasil, mas de toda a América do Sul e parte da Central dos anos 1970. Em Putas Assassinas, Roberto Bolaño escreveu: “no México, me contaram a história de uma moça do MIR16, que torturaram introduzindo ratos vivos na sua vagina. Essa moça conseguiu se exilar e chegou ao DF. Vivia lá, mas cada dia ficava mais triste e um dia morreu de tanta tristeza. Foi o que me contaram. Não a conheci pessoalmente (...). Não é uma história extraordinária. Sabemos de camponesas guatemaltecas submetidas a humilhações inomináveis. O incrível nessa história é sua ubiquidade”17.

Outras militâncias, a invenção dos escraches

Durante os anos 1990, Freire e Bolaño escreveram sobre as infindáveis violências do Estado. Nessa mesma década, depois de encerradas quase todas as ditaduras 155

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civil-militares, certos jovens passaram a exigir corajosamente a verdade sobre as prisões, torturas e “desaparecimentos” de homens e mulheres durante os anos 1970 e 1980. Os embates irromperam na América do Sul com a reunião, pelas universidades da Argentina, de jovens filhos de militantes assassinados pela ditadura entre 1976 e 1983. Desde a segunda metade dos anos 1980, com o ocaso da ditadura civil-militar, alguns militantes encontravam-se em Talleres como o que levava o nome de Julio Cortázar – escritor que, a partir dos anos 1970, engajou-se em variados embates pela América do Sul – para contar a certas crianças, filhas de seus companheiros de luta, o real desfecho da existência de seus pais. Uma década depois, portanto, esses mesmos jovens passaram a se encontrar em eventos como a “Jornada de Memoria, Recuerdo y Compromiso de la Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación”, realizado em 1995, e voltaram-se, com coragem, para reivindicar a verdade sobre o destino de suas famílias.

É precisamente neste instante – no qual, simultaneamente, o presidente argentino Carlos Menem concedeu indulto a vários militares e o Comandante da Aeronáutica, Alfredo Scilingo fez declarações públicas sobre os chamados “voos da morte” – que irrompeu o movimento dos HIJOS. Emiliano, um jovem que nasceu no interior da ESMA18, conta que a primeira vez em que participou de uma reunião dos HIJOS ficou em silêncio com outros cinquenta jovens. Não havia a necessidade, segundo ele, de dizer o que cada um tinha passado ao largo daqueles anos. “Mais do que irmãos

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de sangue, éramos irmãos de luta. Bastava um olhar ou um sorriso para nos entendermos”19, afirmou. Uma das primeiras ações dos HIJOS na Argentina foi a peça de teatro bla,bla,bla, na qual um torturador que frequentava uma quitanda manchava de sangue cada fruta em que tocava. A montagem se encerrava com os jovens afirmando que era preciso o quitandeiro negar-se a vender a fruta para o covarde com sangue nas mãos. O efeito da cena animou o grupo a articular as chamadas Comissões de Escrache, que consistiam no preparo de manifestações que escancaravam o domicílio, o endereço do serviço dos homens que serviram a ditadura prendendo, torturando e matando homens e mulheres, muitos deles possivelmente seus pais. Não à toa o primeiro alvo da insolência dos jovens foi Jorge Magnaco, médico conivente com a tortura de muitas das mães desses HIJOS, encarregado dos partos na ESMA e do roubo organizado pelo Estado das crianças filhas de militantes. Roubo sistemático que, segundo as Abuelas de Plaza de Mayo, é o resquício insuportável da ditadura nos dias atuais20. Magnaco foi demitido da clínica em que trabalhava e expulso do condomínio onde morava.

Os escraches chegaram ao Chile, país de Roberto Bolaño, no início dos anos 2000, com o nome de funa. E somente nos primeiros meses de 2012, diante das negociações em torno da aprovação da Comissão da Verdade, eles irromperam também no Brasil. “Em março e abril, aniversário de quarenta e oito anos do Golpe de 1964, jovens romperam a monotonia de protestos recentes nos velhos vãos de museus ou diante de prédios públicos para expor onde moram e em que trabalham atualmente os colaboradores e torturadores da ditadura civil-militar”21. 157

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Freire e Bolaño não puderam assistir a tais manifestações. Contudo, para além do mesmo nome, da militância praticada nos anos 1970, das literaturas singulares fortalecidas após os períodos de prisão, o que mirei com esse breve texto não foi comparar a literatura de Freire e Bolaño. “Quem quer mediar entre dois pensadores decididos mostra que é medíocre: não tem olho para o que é único; enxergar semelhanças e fabricar igualdades é características dos olhos fracos”22 já alertou o filósofo Friedrich Nietzsche em Gaia Ciência. O que mirei foi precisamente a potencialização do encontro dos combates desvelados pelos escritos de ambos os escritores às violências de Estado na América do Sul e a atualidade destes embates no presente. Poderia traçar aqui outras proximidades entre a literatura de Freire e Bolaño. Ambos distanciaram-se da militância tradicional para afirmarem a singularidade da escrita. Em “Olho Silva”, primeiro conto de Putas Assassinas, o escritor chileno, ao descrever seu personagem, afirmou: “dizia-se que o Olho Silva era homossexual. Quero dizer: nos círculos de exilados chilenos corria o boato, em parte como manifestação da maledicência, em parte como uma nova fofoca que alimentava a vida bastante chata dos exilados, gente de esquerda que pensava, em todo caso da cintura para baixo, exatamente como a gente de direita que naquele tempo se apoderava do Chile”23. Freire explicitou com o livro de ensaios viva eu viva tu viva o rabo do tatu, publicado em 1977, uma reviravolta em sua existência. O livro apresentou o deslocamento de seu engajamento nas atividades como jornalista na década de 1960, na coordenação geral do TUCA e, sobretudo, seu rompimento com a Ação Popular, organização na qual militou por mais de uma década e que havia se tornado, desde 1971, a Ação Popular 158

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Marxista-Leninista do Brasil. Ao mesmo tempo em que rompia com esta militância, Freire afirmou pela primeira vez o anarquismo como perspectiva de existência. Pertencendo a este bando de escritores que abandonou a militância para inventar, como denominou Michel Foucault, “um pensamento político que não seja da ordem da descrição triste”24, também está outro escritor do sul da América, Julio Cortázar, que certa vez escreveu, sobre sua relação com os embates políticos nos quais se envolveu, que “quanto mais me envolvo em ações que dizem respeito ao Chile, meu problema atual, mais me espanta ter que trabalhar com companheiros que são formidáveis pelo tipo de trabalho que estão fazendo mas que me obrigam, ao mesmo tempo, a pensar – e asseguro que dói ter que dizer isso – sobre o que aconteceria se aqueles rapazes tomassem algum dia o poder revolucionário”25. Resistências, un hijo en libertad... “Este relato deveria acabar aqui, mas a vida é um pouco mais dura do que a literatura”26, escreveu Roberto Bolaño na penúltima página de “Dias de 1978”. No conto, o escritor expõe os efeitos das violências de Estado cometidas sobre um grupo de chilenos exilados em Barcelona. Entre eles há um casal de militantes do MIR. Certa noite, B (talvez de Bolaño) discute com U, um dos pares que constituía o casal chileno. Depois da discussão “lamentável e inevitável”, passa a ver seus conterrâneos em raras ocasiões. Sabe posteriormente, por conversas com outros chilenos exilados, que U foi internado no hospital psiquiátrico de Saint Boi. Quando os encontra novamente fica sabendo também da tentativa frustrada de U em suicidar-se. O escritor chileno 159

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prossegue com o último parágrafo como se a história já tivesse ultrapassado a matéria do livro, porém, antes avisa ao leitor: “A vida é um pouco mais dura do que a literatura”27. Com a imagem derruída, U parte em viagem a Paris com um antigo companheiro de militância. No entanto, salta no meio da madrugada numa estação qualquer. “Não telefona mais. Junto do lugarejo há um bosque. Em algum momento da noite, abandona o caminho e se interna no bosque. No dia seguinte, um camponês o encontra pendurado numa árvore, enforcado com seu próprio cinto (...). O passaporte, os demais documentos de U, a carteira de motorista, o cartão de Seguridade Social, os policiais localizam espalhados ao longe do cadáver, como se U os houvesse atirado enquanto ia pelo bosque ou como se houvesse tentado escondê-los”28. Bolaño e Freire recuperam estas histórias de vidas devastadas pelas ditaduras civil-militares. No instante em que os escraches ganham as ruas do Brasil, lidar com esta literatura também é ficar atento para o fato de que a ciência da tortura, disseminada amplamente pelas ditaduras civil-militares, segue sendo praticada em porões de delegacias, celas de prisão, vielas escuras, casas abandonadas, terrenos dispersos pelo interior, sustentada pela continuidade da existência da polícia, prisão e do Estado.29 Mesmo com os recentes escraches, a ubiquidade abominável da tortura, termo utilizado por Bolaño, sobrevive para além das ditaduras em plena democracia. Entretanto, somadas às existências arruinadas pelas violências do Estado, como a do personagem U, as escrituras de Freire e Bolaño também apresentam aos leitores inúmeras irrupções de resistências. 160

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Enquanto Roberto Freire apresentou Victor, o irmão mais novo que se cala diante das torturas que visavam adquirir informações do paradeiro de sua grande paixão, Bolaño narrou, entre outras, a história de Auxilio Lacourte, mulher uruguaia que residia na Cidade do México e que estava presente na tarde em que o Exército invadiu a Universidade Autônoma do México (UNAM). Sentada na latrina, com a saia arregaçada, Auxílio permaneceu imóvel. Deste modo ficou até que os soldados deixassem a universidade e ainda por mais duas semanas. “Saí ao corredor, e aí sim percebi imediatamente que algo estava acontecendo, o corredor estava vazio e a gritaria que subia pelas escadas era dos que atordoam e fazem história (...). Então eu disse para mim mesma: fique, Auxílio. Não deixem que a levem em cana, mulher (...). Não consigo esquecer nada, dizem que é esse meu problema. Sou a mãe dos poetas do México. Sou a única que se aguentou na universidade em 1968, quando os granadeiros e exército entraram”30. Auxílio, mãe dos poetas do México, mãe destes jovens que morreram na Bolívia, que “foram mortos na Argentina ou no Peru, que sobreviveram foram morrer no Chile (...) que não mataram lá, mataram depois na Nicarágua, na Colômbia, em El Salvador”31. Mãe dos jovens esquecidos que, como Bolaño respondeu certa vez em uma entrevista, semearam com seus ossos a América Latina32. A vida pode ser mais dura. Entretanto, como mostrou Michel Foucault, “um homem acorrentado e espancado é submetido à força que se exerce sobre ele. Não ao poder”33. Mesmo diante das inomináveis violências de Estado, há sempre a possibilidade de a vida escapar e liberar-se para outros embates. 161

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Emiliano, o jovem argentino que nasceu no interior da ESMA, contou que foi um dos poucos bebês que não foi roubado pela ditadura argentina. Explica que, assim que nasceu, sua mãe, Mirta, fez uma marca em sua orelha e comunicou as demais companheiras presas. Mirta foi assassinada pelo Estado argentino. Mas antes fez com que o filho, com quatro meses de idade, chegasse aos cuidados de seus avós.

Notas

Roberto Bolaño. Noturno do Chile. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 111. 1

2

Idem.

3

Dirección de Inteligencia Nacional, polícia política chilena.

4

Roberto Bolaño, 2004, op. cit., p.111.

Roberto Bolaño. “Os detetives” in Chamadas Telefônicas. Tradução Eduardo Brandão. Companhia das Letras, 2012, p. 138. 5

6

Idem.

7

Ibidem.

Roberto Bolaño. Estrela Distante. Tradução de Bernardo Ajzenberg. Folha de S. Paulo e Companhia das Letras, 2012, p. 86. 8

9

Idem.

10

Roberto Freire. Os Cúmplices, vol. 2. São Paulo, Sol & Chuva, 1996, p. 181.

Para além da ironia em inventar um delegado com o sobrenome de “Flores”, é de notar a semelhança entre “Flores” e “Fleury”, um dos conhecidos torturadores do DOPS durante a ditadura civil-militar. 11

Cecília Coimbra. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “Milagre”. Rio de Janeiro, Oficina do Autor, 1995, p. 22. 12

13

Roberto Freire, 1996, op. cit. p. 271.

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Arquidiocese de São Paulo. Brasil Nunca Mais. Rio de Janeiro, Vozes, 1985, p. 34. 14

15

Idem.

O Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) foi fundado no Chile em 1965 reunindo socialistas e libertários que visavam uma transformação global da sociedade chilena. Logo, o MIR ficou sob controle de tendência marxista-leninista, iniciando ações armadas que se intensificaram após o golpe de 1963 que depôs Salvador Allende. Permanecendo ativo na clandestinidade, o MIR assumiu o caracter político-partidário com retorno da democracia em 1990 (N.E.). 16

Roberto Bolaño. “Carnê de baile” in Putas Assassinas. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 206. 17

A ESMA, Escola de Mecânica da Armada, foi o lugar que mais prendeu, torturou e assassinou homens e mulheres acusados de subversão durante a ditadura civil-militar argentina. Hoje é um Centro de Memória dedicado à promoção e ao respeito aos direitos humanos. 18

Disponível em: http://www.taringa.net/posts/info/1349002/Moviemiento-HIJOS-_-escraches_pintadas_agite.html (acesso em:12/02/2012). 19

Abuelas de Plaza Maio. “Memórias Fraternas: La Experiencia de hermanos de desaparecidos, tios de jóvenes apropiados durante La ultima dictadura militar”. Buenos Aires, Eudeba, 2010, p. 235. 20

Nu-Sol, Hypomnemata 141. “Do que engessa e do que se move: que nenhum nome fique à sombra”. Disponível em http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=171 (acesso em: 02/09/2012). 21

Friedrich Nietzsche. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p. 177. 22

Roberto Bolaño. “Olho Silva” in Putas Assassinas. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 12. 23

Michel Foucault. “Eu sou um pirotécnico” in Michel Foucault: Entrevistas. Tradução de Vera Portocarrero e Gilda Gomes. Rio de Janeiro, Graal, 2006, p. 96. 24

Julio Cortázar. Conversas com Cortázar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002, p. 108. 25

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Roberto Bolaño. “Dias de 1978” in Putas Assassinas. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 76. 26

27

Idem.

28

Ibidem.

Ver Nu-Sol. “Tortura” in Verbetes. Disponível em http://www.nu-sol.org/ verbetes/index.php?id=20 (acesso em: 30/08/2012). 29

Roberto Bolaño. Detetives Selvagens. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 197. 30

Entrevista de Roberto Bolaño. Disponível em: http://estrelaselvagem. wordpress.com/ (acesso em 15/02/2012) 31

32

Idem.

Michel Foucault. “‘Omnes et Singulatim’: uma crítica da razão política” in Ditos & Escritos IV. Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 365. 33

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Resumo O artigo expõe a articulação entre as resistências às ditaduras civil-militares na América do Sul afirmadas pelas literaturas de Roberto Bolaño e Roberto Freire. Para além de aproximar a perspectiva de embate vital às violências de estado ocorridas nas décadas de 1960 e 1970, presentes nos romances e contos de ambos os escritores, o texto apresenta a irrupção de novas reivindicações ligadas à atualização das memórias das lutas ocorridas durante as ditaduras civil-militares e da invenção de novos modos de resistência no presente. Palavras-Chave: resistências, literatura libertária, América Latina. Abstract The article presents the correlations between political resistances to the civil-military dictatorships in Latin America seen through the literatures by Roberto Bolaño and Roberto Freire. More than put in perspective the vital combats fought with their writings during the 1960’s and 1970’s, the article presents the emergence of new fighting positions related to the memories of the struggle against authoritarianism and the current inventions of new forms of resistance. Keywords: resistances, libertarian literature, Latin America.

Recebido em 20 de agosto de 2012. Confirmado para publicação em 25 de setembro de 2012. 165

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saúde!1 gustavo ramus & luíza uehara

prólogo Gus: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas inúmeras pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos. [Pensou]: O que aconteceu comigo?”2

Coro: O que aconteceu comigo? Lili: “Só me entrego muito raramente, mas não sei me entregar pela metade, nem a 90%, nem a 99% (...). Considero falta de confiança no amigo ser reticente ou esconder Gustavo Ramus é pesquisador no Nu-Sol e mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP. Luíza Uehara é pesquisadora no Nu-Sol e bacharel em Ciências Sociais pela PUC-SP. verve, 22: 169-201, 2012

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o que pensamos em nos doar. No que me diz respeito, agir assim seria me diminuir a meus próprios olhos. Não gosto daqueles que olham para trás depois de ter decidido algo. Talvez isto não esteja na ‘moda’, mas pouco me importa a moda. Do ponto de vista ético tenho horror aos mornos. (...) Eu me entrego e não me retomo, a não ser que perceba que coloquei minha confiança em alguém que não valia a pena. E isso só acontece quando minha confiança foi, incontestavelmente, traída. Talvez nada disso seja realista, mas gosto mais de mim desse jeito.”3

parte I cena 1: Vontade de vida Sofia: “Ele deseja os piores suplícios, os mais penosos sofrimentos, deseja ardentemente que se prolonguem, que continuem. O que pode ganhar com isso? Viver um pouco mais? Mas que tipo de vida é essa morte lenta?”4 Flávia: que tipo de vida é essa morte lenta? Márcia: que tipo de vida é essa morte lenta? Lili: “Tomei a mim mesmo em minhas mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso (...) é ser no fundo sadio. Um ser tipicamente mórbido não pode ficar são, menos ainda curar-se a si mesmo; para alguém tipicamente são, ao contrário, o estar enfermo pode ser até um energético estimulante ao viver, ao mais-viver.”5 Acácio: “Quem não pode comandar a si mesmo, deve obedecer. (...) quem obedece não escuta a si mesmo!”6 170

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Lili: “Quando [vejo] intérpretes de sonhos, adivinhos e todos os que recorr[em] a eles, julgo os homens os mais estúpidos de todos os animais. Acácio: Para a condução (...) da vida, [só] necessitamos da razão, ou de uma corda para nos enforcarmos.”7

cena 2: Esgotado Gus: “(...) Conhecer: isso é prazer para quem tem o querer do leão! Mas quem se cansou, será apenas o objeto do querer. (...) Querer liberta: pois querer é [inventar]. E somente para [inventar devemos] aprender. (...) [Ninguém] quer subir ao barco da morte! Então como pretendem estar cansados do mundo?”8 Acácio: “Um pouco de possível senão eu sufoco.”9 Gus: Quando me dizem que já estou velho e devo descansar, respondo: “Como? Se eu tivesse participando de uma prova de corrida, deveria abrandar o passo ao me aproximar da meta? Não deveria acelerá-lo ainda mais?”10 Lili: “É preferível morrer de peste do que de mediocridade.”11 Acácio: Eu prefiro morrer de peste a morrer de mediocridade. Gus: é preferível morrer de peste do que de mediocridade. 171

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parte II cena 3: Poder de causar a vida Acácio: “Um de meus avôs prosperou no comércio humanitário de comprar escravos doentes e tratar deles o suficiente para poder vendê-los (a melhor preço) como escravos sãos. Esse negócio, que combina o lucro com a filantropia, permitiu que ele enriquecesse graças à saúde dos outros. (...) Quando chegou aos setenta anos, esse meu avô abandonou a família para se amancebar com uma negra jamaicana de catorze anos que ele chamava de... Cabelo: Imperatriz.”12 Coro: Eu sou neguinha?! Sofia: Eu sou neguinha?! Gus: Desde o século XVII, “um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e morte. (...) Mas esse formidável poder de morte (...) apresenta-se agora como o complemento de um poder que se exerce, positivamente, sobre a vida, que empreende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação, o exercício de controles precisos e regulações de conjunto. (...) Sofia: Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver a morte. (...)

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Lili: Agora é sobre a vida e ao longo de todo seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação; (...) o poder político [assume] a tarefa de gerir a vida.”13

cena 4: A lepra e a peste Acácio: “Houve dois grandes modelos de organização médica na história ocidental: o modelo suscitado pela lepra e o modelo suscitado pela peste. Cabelo: Na Idade Média, o leproso era alguém que era expulso do espaço comum, posto para fora dos muros da cidade, Lili: exilado em um lugar confuso onde ia misturar sua lepra à lepra dos outros. Flávia: O mecanismo da exclusão era o mecanismo do exílio, da purificação do espaço urbano [e dos outros espaços]. (...) Sofia: O próprio internamento dos loucos, malfeitores, em meados do século XVII, obedec[ia] ainda (...) [ao] esquema [da exclusão]. Acácio: Em compensação, existe um outro grande esquema político-médico que foi estabelecido, não mais contra a lepra, mas contra a peste. Neste caso, a medicina não exclui, não expulsa em uma região negra e confusa.

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Lili: O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los um a um, constatar o estado de saúde Coro: de cada um, Gus: ver se está vivo ou morto Cabelo: e dessa maneira fixar a sociedade em um espaço Gus: esquadrinhado, Cabelo: dividido, Gus: inspecionado, Cabelo: percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro.”14 Gus: “Caso, risco, perigo, crise: são (...) noções novas, pelo menos em seu campo de aplicação e nas técnicas que eles requerem, Acácio: porque vamos ter, precisamente, toda uma série de formas de intervenção que vão ter por meta, não fazer como se fazia antigamente,

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Gus: (...) tentar anular pura e simplesmente a doença em todos os sujeitos em que ela se apresenta, ou ainda impedir que os sujeitos que estejam doentes tenham contato com os que não estão. (...) Acácio: (...) não mais estabelecer e demarcar o território, Gus: mas deixar as circulações se fazerem, controlar as circulações, separar as boas das ruins, fazer que as pessoas se mexam, se desloquem sem cessar, que as coisas vão perpetuamente de um ponto a outro, Acácio: mas de maneira tal que os perigos inerentes a essa circulação sejam anulados. Gus: Não mais a segurança do príncipe e de seu território, mas segurança da população Gus e Acácio: e dos que a governam.”15

cena 5: Cemitérios Lili: “Certo número de pequenos pânicos (...) atravessaram a vida urbana das grandes cidades do século XVIII, especialmente de Paris. Gus: [No] ‘Cemitério dos Inocentes’ que existia no Centro de Paris, eram jogados, uns sobre os outros, os cadáveres das pessoas que não eram bastante ricas ou notáveis para merecer ou poder pagar um túmulo individual. 175

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Acácio: O amontoamento no interior do cemitério era tal que os cadáveres se empilhavam acima do muro do claustro e caíam do lado de fora. (...) Os esqueletos se espalhavam (...) provocando pânico e talvez mesmo doenças. Lili: (...) a infecção causada pelo cemitério era tão forte (...) por (...) [conta] da proximidade dos mortos [que, segundo as pessoas da época,] o leite talhava imediatamente, a água apodrecia. Sofia: Este pânico urbano é característico deste cuidado, desta inquietude político-sanitária que se forma à medida em que se desenvolve o tecido urbano.”16 Andre (off): “Pessoalmente, não tenho nada contra os cemitérios, passeio neles com prazer, com mais prazer do que em outros lugares. (...) O cheiro dos cadáveres, que sinto nitidamente sob o cheiro da relva e do humo, não me desagrada. Talvez um pouco doce demais, um pouco estonteante, mas como é preferível ao dos vivos, das axilas, dos pés, das bundas, dos prepúcios cerosos e dos óvulos desapontados. (...) Por mais que eles se lavem, os vivos, por mais que se perfumem, eles fedem.”17 Coro: Eles fedem. Eu sou neguinha?!

cena 6: Saúde e mercado Sofia: Mas, no século XX, “De modo mais geral, pode-se afirmar que a saúde se converteu em um objeto de intervenção médica. Tudo o que garante a saúde do indivíduo, 176

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Mayara: seja a salubridade da água, as condições da moradia ou o regime urbanístico, Sofia: é hoje um campo de intervenção médica que, consequentemente, já não está vinculado exclusivamente às doenças.”18 Lili: “Atualmente, a medicina encontra a economia por outra via. Não simplesmente porque é capaz de reproduzir a força de trabalho, mas porque pode produzir diretamente riqueza, na medida em que a saúde constitui objeto de desejo para uns e de lucro para outros. Sofia: [A saúde, convertida] em objeto de consumo que pode ser produzido por uns – Mayara, Cabelo e Acácio: laboratórios farmacêuticos, médicos – Sofia: e consumido por outros – Mayara, Cabelo e Acácio: os doentes potenciais e atuais –, Sofia: adquiriu importância econômica e se introduziu no mercado.”19

cena 7: Parasita Cabelo: “Parasita: é um verme rastejante, insinuante, que quer engordar em nossos cantos enfermos e feridos. E esta é sua 177

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arte, adivinhar, nas almas que sobem, os pontos em que se acham cansadas: em nosso desalento e mau humor, em nosso delicado pudor ele constrói seu ninho nojento (...): o parasita habita onde o grande tem pequenos cantos feridos.”20 Gus: “não suporto os fabricantes de desastres que diariamente cavam nossa vala comum nos dizendo (...): Gus, Acácio e Cabelo: ‘impossível fazer de outra maneira’.”21 Acácio: “o céu ainda pode desabar sobre nossas cabeças.”22 Gus: e o céu ainda pode desabar sobre nossas cabeças.

parte III cena 8: Poliomelite Flávia: “O primeiro caso de poliomielite naquele verão foi registrado no começo de junho, num bairro pobre de italianos do outro lado da cidade. Lili: [Somente] quando quarenta ocorrências já haviam sido registradas na cidade, apareceu na primeira página do jornal um artigo intitulado Coro: ‘Autoridade médica alerta os pais contra a poliomielite’. (...)

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Sofia: Uma doença capaz de causar paralisia, deixando uma criança aleijada para sempre ou incapaz de respirar fora de um cilindro de metal conhecido como pulmão de aço. Mayara: Isso quando a paralisia dos músculos respiratórios não levava à morte. Sofia: A preocupação com as graves consequências de contrair uma forma séria da doença era ainda maior por não existir nenhuma droga capaz de combatê-la e nenhuma vacina que criasse imunidade contra ela. Mayara: (...) Ninguém conhecia a fonte do contágio, Lili: era possível suspeitar de quase tudo, inclusive dos esqueléticos gatos de rua que invadiam as latas de lixo nos quintais, dos vira-latas de aparência faminta que rondavam as casas e defecavam na rua e nas calçadas, e até mesmo dos pombos que arrulhavam nos telhados e emporcalhavam os degraus do alpendre com seus excrementos esbranquiçados. (...) Sofia: à medida que o número de casos foi aumentando na cidade – juntamente com o medo coletivo –, muitas crianças onde morávamos se viram proibidas pelos pais de usar

piscina[s] pública[s], de frequentar os cinemas refrigerados, de tomar ônibus.

Joana:

Fomos advertidos a não utilizar banheiros ou bebedouros públicos,

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Talita: não tomar nem um gole da garrafa de refrigerante de algum amigo, não apanhar friagem, não brincar com estranhos, Flávia: não pegar livros emprestados na biblioteca, não falar nos telefones pagos, não comprar comida de vendedores de rua ou comer antes de lavar as mãos cuidadosamente com água e sabonete. Joana: Precisávamos lavar todas as frutas e verduras antes de comê-las Talita: e devíamos ficar longe de quem parecesse doente ou se queixasse de qualquer um dos sintomas típicos da poliomielite.”23

cena 9: Saúde por procedimentos Joana: “Uma pessoa vem aqui tem vinte anos de repente volta tem sessenta”24 Talita: “Suba pela rampa tome sua direita cruze o corredor de janelas amplas Gus: O guichê é o último lá eles carimbam 180

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a fila é de morte não fique nervoso Talita: Depois a perícia no décimo andar Não esqueça leve todos os documentos Gus: Volte aqui não vá embora sem a rubrica dos três reclame se acaso.”25 Mayara: “Veio o homem Falou pra mim deitar no chão dormir dormir que amanhã vou ser atendida na meia-noite”26 Cabelo: “Um morador de rua, dois, mais de três morrem às portas dos prontos socorros de São Paulo. Os cidadãos passam e olham. Lili: Os carros não diminuem a velocidade. Cabelo: Os funcionários da Saúde dizem que não recolhem ninguém do lado de fora. Um homem passa 10 horas na calçada morrendo aos poucos. 181

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Lili: Todos estão ocupados com suas funções, empregos, tarefas e normas a serem cumpridas.”27 Sofia: O senhor trabalha nesse hospital? Flávia: ... sim. Sofia: E o senhor não vai ajudar este homem? Flávia: É melhor dar gasolina para ele. Gus: “Estes cidadãos não se importam com quem perambula por ruas e avenidas. Eles os temem. Os mortos-vivos que atravessam dias e noites vagando no nada são os indesejáveis que para a maioria da população deve morrer. Eis a saúde por procedimentos.”28 Márcia e Coro: “Ele falava nisso todo dia Ele falava nisso todo dia Acácio: A herança, a segurança, a garantia Gus: Pra mulher, para a filhinha, pra família Márcia e coro: Falava nisso todo dia Ele falava nisso todo dia Ele falava nisso todo dia 182

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Gus: O seguro da família, o futuro da família O seguro, o futuro Márcia e coro: Falava nisso todo dia Ele falava nisso todo dia Cabelo: A incerteza, a pobreza, a má sorte Quem sabe lá o que aconteceria? A mulher, a filhinha, a família desamparada Retrata a carreira frustrada de um homem de bem Márcia e coro: Ele falava nisso todo dia Gus: O seguro de vida, o pecúlio Era preciso toda a garantia Se a mulher chora o corpo do marido O seguro de vida, o pecúlio Darão a certeza do dever cumprido Márcia e coro: Ele falava nisso todo dia Ele falava nisso todo dia Acácio: Se morresse ainda forte, um bom seguro era uma sorte pra família a loteria Márcia e coro: Falava nisso todo dia Ele falava nisso todo dia 183

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Ele falava nisso todo dia Todo santo dia Gus: Era um rapaz de vinte e cinco anos Márcia e coro: Era um rapaz de vinte e cinco anos Gus: Hoje ele morreu atropelado em frente à companhia de seguro Oh! que futuro! Márcia e coro: Oh! Rapaz de vinte e cinco anos”29 Sofia: “A vida é um adeusinho”30

cena 10: AIDS Cabelo: Tenho a impressão que as pessoas hoje não fazem ideia da barra que foi os anos 80. E acho que nem eu. Num curto período de tempo, perdi muitos amigos. Amigos de longa data e de pouco tempo, com os quais dividia minhas intimidades. Identificados, marcados, apontados como um “grupo de risco”, portadores do que foi chamado de “câncer gay” ou “peste gay”. Não se tratava apenas de correr o risco de ser contaminado, mas de se ver acuado como um risco para os outros. Todo gay deveria se assumir como “agressor biológico”, desempenhando um papel de inimigo público. “As primeiras campanhas de prevenção [à AIDS], além de serem insuficientes para evitar a disseminação da doença, estimularam o preconceito e a discriminação.”31 184

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Mayara: No entanto, o HIV não era uma exclusividade dos gays. Outras pessoas também comporão o chamado grupo de risco. Lili: Houve outras formas de contaminação, como o caso de um famoso violonista que contraiu o vírus em uma transfusão de sangue após um acidente de carro, e tantos outros que compartilharam seringa ao injetar drogas. O descaso no tratamento dos hemofílicos também aumentou em grande escala o número de mortos e contaminados. Cabelo: Lembro-me perfeitamente quando um ex-namorado entrou desnorteado em minha casa com os exames na mão. Ele gaguejava, o corpo todo tremia... Eu lhe disse: “Calma, quer que eu abra para você?” Pausa Cabelo: Teve um mês de agosto que fui ao cemitério quatro vezes. Foi o período mais enlouquecedor de minha vida. Contudo, jamais fechei com essa coisa de casamento. Para mim era e ainda é uma mera reprodução de um modelo dominante, aquisição de direitos do macho hétero. Somos diferentes, e precisamos afirmar nossa diferença sem cair na armadilha de exigir direitos que diluam nossas diferenças para sermos socialmente aceitos. Lili: “O sexo não está mais excluído, deve estar incluído, transitar livremente, desde que pacificado e policiado, como se fosse possível cessar a transgressão, o que permanece surpreendente, o susto. Espera-se tolerar o que for possível 185

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acomodar, identificando e combatendo os outros, [nós,] os monstros.”32 A peste. Acácio: “Robert [Mapplethorpe] morreu no dia 9 de março de 1989.”33 Gus: “Telefonei ao hospital para dar boa-noite outra vez, mas ele já estava embalado, sob camadas de morfina. Segurei o telefone e fiquei ouvindo sua respiração ofegante, sabendo que nunca mais o veria de novo. (...) Robert foi diagnosticado com AIDS ao mesmo tempo que descobri que estava esperando meu segundo filho. (...) Quando Robert atendeu, me pareceu fraco, mas sua voz engrossou ao ouvir a minha. Flávia: Eu vou ganhar dessa coisa [, Patti. Eu vou ganhar dessa coisa, Patti Smith]. Gus: Acreditei nele do fundo do coração. ‘Vou vê-lo em breve’, prometi.”34 Pausa Gus: “Já não me lembro da cronologia exata daqueles últimos meses. Em meados de fevereiro [de 1989], tomada de uma súbita sensação de urgência (...) fui visitar Robert sozinha. (...) Não havia ninguém ali exceto a enfermeira, e ela nos deixou a sós. Sentei na beira da cama e segurei a mão dele. Ficamos assim por um longo tempo, sem falar nada. (...) Robert pediu minha ajuda para levantar. Flávia: ‘estou morrendo. É muito doloroso’. 186

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Gus: Meu amor por ele não podia salvá-lo. Seu amor pela vida não podia salvá-lo. Foi a primeira vez que entendi de verdade que ele ia morrer. (...) A luz entrava pelas janelas sobre suas fotografias e o poema de nós dois juntos pela última vez. Robert morrendo: [inventando] silêncio. Eu, destinada a viver, ouvindo atentamente um silêncio que demoraria uma vida para expressar.”35 Salete (off): “Há instantes, porém, em que perdemos totalmente a fala, em que ficamos pasmos e perplexos, sem saber para onde ir. É aí que tem início a dança, e por razões inteiramente outras, não por razões de vaidade. (...) Não se trata de arte, tampouco de mero talento. Trata-se da vida e, portanto, de encontrar uma linguagem para a vida.”36 (Dançam Talita e Joana.)

cena 11: Práticas não discursivas ( Joana faz Rebeca sentada no chão)

Sofia: “No domingo (...) chegou Rebeca. Não tinha mais de onze anos. (...) A sua pele verde, o seu ventre redondo e tenso como um tambor revelavam uma saúde ruim e uma fome mais velhas que ela mesma, mas quando lhe deram de comer ficou com o prato nos joelhos, sem tocá-lo. Lili: (...) Ninguém entendia como não tinha morrido de fome, até que os índios, que percebiam tudo, porque percorriam a casa sem parar, com seus pés sigilosos, descobriram que Rebeca só gostava de comer a terra úmida do quintal e as tortas de cal que arrancava das paredes com as unhas. (...) 187

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Sofia: Uma noite, na época em que Rebeca se curou do vício de comer terra e foi levada para dormir no quarto das outras crianças, a índia que dormia com eles acordou por acaso e ouviu um estranho ruído intermitente no canto. Lili: Sentou-se alarmada pensando que tinha entrado algum animal no quarto, Sofia: viu Rebeca na cadeira de balanço, chupando o dedo e os olhos fosforescentes como os de um gato na escuridão. Lili: Pasmada de terror, perseguida pela fatalidade do destino, [a índia] Visitación reconheceu nesses olhos os sintomas da doença cuja ameaça os havia obrigado, a ela e ao irmão, a se desterrarem para sempre de um reino milenário no qual eram príncipes. Era a [droga] da insônia.”37 Talita: “Qual a idade oportuna com que se deve casar? Cabelo: Para os jovens ainda não, para os mais velhos, nunca mais.”38 Flávia: Como vovó já dizia: caso você sofra de fortes dores de cabeça, corte rodelas de batata e coloque sobre a testa. Lili: Para problemas de rins, indica-se aquecer um litro de água e acrescentar duas colheres de sopa de quebra-pedra; tampe a panela e deixe por cinco minutos. Depois, beba ao decorrer do dia. Outro de seus benefícios é o combate à hepatite B.

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Mayara: Se o caso for de prisão de ventre, deixe ameixas de molho em um copo d’água durante a noite. No dia seguinte, em jejum, tome o líquido. Sofia: Para controlar a diabetes, o bom é chá de pata de vaca. Coloque uma folha fresca com duas xícaras de água e leve ao fogo. Quando a água ferver, desligue o fogo. Beba duas xícaras ao longo do dia. Acácio: E para os necessitados: chá de PICÃO. Gus: E agora... a pingaterapia!!! ( Joana com pandeiro canta: “Gripe cura com limão Jurupeba é para azia Do jeito que a coisa vai O boteco do Arlindo vira drogaria”. Pandeiro continua durante a pingaterapia.) Mayara: “A pinga faz parte da deuterose brasílica. (...) Cabelo: Muitas são as virtudes suas: no calor refresca e no frio esquenta; abre o apetite e engana o estômago quando com fome; dá coragem e alegra os ‘brabos’. Mayara: Na medicina popular tem lugar de destaque servindo para curtir, para fazer massagens, para misturar com outros ‘preparos’ ou para inalação.

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Lili: O curtimento é feito com a colocação da planta numa garrafa. (...) A mistura é feita com infusão de plantas às vezes com drogas da farmácia e até outros elementos, como por exemplo, pitadas de cinza, terra de cemitério, cordão umbilical torrado. Cabelo: Umbigo de recém-nascido é coisa que não se joga fora: tem alta finalidade medicinal, por isso é guardado.”39 Acácio: O umbigo de recém-nascido, que era um saber popular desprezado pela ciência, hoje, já pode ser guardado em um banco de DNA. ( Joana retoma a música) Cabelo: Investe-se em pesquisas na Amazônia para descobrir o “composto ativo” da planta usada pelos índios para combater uma enfermidade, para depois, fabricar o novo fitoterápico. Lili: Para atender aos interesses da indústria farmacêutica, esses saberes populares que eram insurrecionais são capturados a todo vapor para comporem o que se chama de saberes compartilhados. Márcia: [Conclamamos] “um boicote de todos os produtos comercializados sob a senha de LIGHT – cerveja, carne, doces, cosméticos, música, o que for. O produto ‘natural’, ‘orgânico’, ‘saudável’, é designado para um setor do mercado constituído por pessoas levemente insatisfeitas que 190

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apresentam um quadro mediano de horror do futuro e possuem uma aspiração mediana por uma autenticidade tépida (...) o que é LIGHT não foi feito para primitivos pobres e famintos que ainda consideram comida nutrição e não décor. (...) Não vamos azucriná-los com mais uma prescrição para a saúde perfeita (só os mortos têm saúde perfeita) (...) O excesso nos cai perfeitamente. (...) Mantenhamo-nos longe de todo dogmatismo. Que o caçador de uma tribo indígena americana possa alimentar sua alegria com um esquilo frito.”40

cena 12: Arroz japonês Lili: “Ontem voltei da cadeia de Tóquio. Odeio ir para o tribunal. Detesto especialmente o interrogatório contínuo feito pelo juiz [a um anarquista ou a qualquer pessoa]. (...) Durante um tempo, antes de sair, sonhava com o que comeria do lado de fora e quanto comeria. Mas, quando saí realmente, tudo o que comia era extraordinariamente delicioso. Sobretudo arroz branco. Colocava o arroz na boca. Meus dentes pareciam envolvidos como se eu tivesse deitado em um acolchoado sob algo agradavelmente macio e fosse, ao mesmo tempo, banhado por um caldo intensamente doce que saltava da ponta da minha língua. Arroz branco puro me bastava. (...) Por favor, mande lembranças a todos os meus camaradas.”41

parte IV cena 13: Escrever Gus: “Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. Escrever é também tornar-se outra coisa que não escritor.”42

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Sofia: “A literatura aparece, então, como um[a] (...) saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma saúde de ferro (...), mas ele goza de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis. Acácio: Do que viu e ouviu, o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados.”43 Flávia:

“A sociedade humana: é um ensaio... e não um contrato!”44

Cabelo: A vida é um ensaio. Lili: “a nossa época não está doente, acontece que já viveu tudo; Acácio: não a torturem tentando curá-la, (...) e como não é possível curá-la, deixem-na morrer.”45 Mayara: deixem-na morrer. Márcia: e como não é possível curá-la, deixem-na morrer.

cena 15: Práticas anarquistas Lili: No início do século XX, no interior de Minas Gerais, o escritor anarquista Avelino Fóscolo, fez de sua casa uma biblioteca pública e um pequeno ateneu onde encenava 192

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peças anarquistas, no intuito de transformar a realidade dos moradores de Taboleiro Grande. Flávia: Também utilizava seus conhecimentos de farmacêutico para atender a população local. Cabelo: Em caso de enfermidades, prisões ou abusos policiais os moradores o chamavam para prestar auxílio, e ele o fazia com grande empenho, sem exigir nada em troca. Em Taboleiro Grande, tinha a fama de ser o único com coragem de enfrentar o delegado da região. Mayara: A primeira Universidade Popular de Ensino Livre da América Latina foi criada, em 1904, na cidade do Rio de Janeiro. Acácio: Esta universidade voltava-se para os operários e seus familiares e também funcionava como uma espécie de centro cultural, no qual, dentre outras coisas, havia um consultório médico comandado pelo anarquista baiano Fábio Luz, que ministrava o curso de Higiene Social. Sofia: A higiene e a salubridade, principalmente nos locais de trabalho, eram uma grande preocupação dos anarquistas. Mayara: Em 1904, Sébastien Faure inaugurou a escola anarquista La Ruche, cuja inquietação era com a saúde das crianças desde sua alimentação e relações com a natureza até a afirmação de sua existência. Interessava um novo espaço apartado de salas de aula fechadas e da presença de um professor detentor de um saber inquestionável. 193

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Flávia: De portas abertas para recepcionar anarquistas de todos os cantos do planeta, contou com a visita de Emma Goldman: Lili: “a minha visita a La Ruche foi uma valiosa experiência que me fez perceber o quanto poderia ser feito pela educação libertária (...). Para libertar (...) a criança – que tarefa maior haveria para aqueles que, como Sébastien Faure, são educadores, não pela simples graça de um diploma universitário?!”46 Gus: “(...) temos aí um processo bem real de luta; a vida como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que tentava controlá-la. Acácio: Foi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das lutas políticas, ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de direito.”47 Gus: “A vitalidade anarquista [explicita] a urgência da vida livre de governo superior, ou ainda, a vida liberada de ser governada. Tal atitude foi e é uma saúde.”48

cena 16: Salud Mayara: “Estávamos no fim de dezembro de 1936. Os anarquistas tinham o controle virtual da Catalunha, e a revolução ainda ia de vento em popa. Sofia: Pela primeira vez na vida me encontrava numa cidade onde a classe trabalhadora estava no comando (...)

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Acácio: Todas as lojas e cafés exibiam uma inscrição dizendo que tinham sido coletivizadas; até mesmo os engraxates tinham sido coletivizados e suas caixas pintadas de vermelho e negro. Flávia: Garçons e lojistas nos encaravam e nos tratavam de igual para igual. Lili: As formas de tratamento servis e até mesmo as de cortesia haviam desaparecido temporariamente. Ninguém dizia ‘senõr’ ou ‘don’ ou mesmo ‘usted’; todo mundo chamava todo mundo de ‘camarada’ e ‘tu’, e ao invés de ‘buenos dias’, dizia ‘salud’.”49 Cabelo: “Os anarquistas, minoria demográfica, sempre viveram à beira da extinção. Acácio: Praticamente em qualquer lugar do mundo, inclusive na menor cidade, há ao menos um anarquista. (...): pereba negra nos 360° do Atlas.”50 Todos: Salud!

cena 17: Saudação libertária Márcia: “Um cumprimento libertário muito comum é desejar saúde ao amigo.

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Cabelo: Provavelmente ele advém do tempo em que a vida dos trabalhadores anarquistas e dos seus filhos era mais curta, mas não menos intensa. Mayara: Os cuidados com a saúde relacionados com a expansão da vida diferenciam os anarquistas de seus companheiros socialistas. Sofia: Os anarquistas não querem conservar nada, estão a qualquer instante provocando revisões e não deixam a coisa ficar quieta, escolhem o risco. Flávia: Talvez, por isso, é que para os defensores da conservação da vida os libertários sejam tão irritantes. Afinal, cultivam a vida de maneira respeitável. Gus: Viver intensamente é cuidar de si e não pretender saber quando a morte virá. É preciso ir além do limite, fincar a vida em limiares, romper com a conservação do passado e fazer irromper o presente. Lili: Se eles querem respeito pela saúde como cura de doenças, os libertários não desconhecem que, na doença, também há vida e saúde.”51 Acácio: “Os anarquistas estão vivos. (...) Não ficam solitários, não são narcisistas, são duplos de peste para abalar saúde, doença e cura. Estão sempre prontos para a luta, são guerreiros.

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Os anarquistas são invenções, experiências, diferenças, descentralidades, resistências. Estamos vivos. Coro: Saúde!”52

FIM

Notas

Aula-teatro 11 do Nu-Sol. Pesquisa de texto por Acácio Augusto, Andre Degenszajn, Aline Santana, Beatriz Carneiro, Cecília Oliveira, Edson Passetti, Eliane Knorr, Gustavo Ramus, Gustavo Simões, Leandro Siqueira, Lucia Soares, Luíza Uehara, Salete Oliveira, Sofia Osório e Thiago Rodrigues. Apresentações em 21 e 22 de maio de 2012 no teatro Tucarena, PUC-SP. Em aula-teatro não há personagens; optou-se por manter os nomes e apelidos dos pesquisadores: Acácio Augusto, Andre Degenszajn, Eliane Knorr (Lili), Flávia Lucchesi, Gustavo Ramus (Cabelo), Gustavo Simões (Gus), Joana Egypto (convidada), Márcia Lázzari (convidada), Mayara de Martini, Salete Oliveira, Sofia Osório e Talita Vinagre (convidada). Produção gráfica: Andre Degenszjan. Sonofonia: Vitor Osório (convidado). Preparação corporal: Joana Egypto e Talita Vinagre (convidadas). Acompanhamento de luz: Luíza Uehara. Coordenação e ambientação: Edson Passetti. 1

Franz Kafka. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo, Brasiliense, 1993, pp. 7; 14; 31.

2

Émile Armand. “Amizade libertária” in Verve. Tradução de Edson Passetti e Martha Gambini. São Paulo, Nu-Sol, n. 17, 2010, pp. 11-13. 3

Sêneca. Aprendendo a viver. Tradução de Lúcia Sá Rabello. Porto Alegre, L&PM, 2009, pp. 116-117.

4

Friedrich Nietzsche. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 25. 5

Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratustra. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2011, pp. 190-191. 6

7

Diógenes. O cínico. São Paulo, Odysseus, 2009, p. 239.

8

Friedrich Nietzsche, 2011, op. cit., pp. 192-197.

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Gilles Deleuze. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 131. 9

10

Diógenes, 2009, op. cit., p. 244.

Edson Passetti. “Abolicionismo penal, medidas de redução de danos e uma nota trágica” in verve. São Paulo, Nu-Sol/PUC-SP, n. 7, 2005, p. 79. 11

Ricardo Piglia. Respiração artificial. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo, Companhia das letras, 2010, pp. 61-62. 12

Michel Foucault. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhón Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988, pp. 127-131. 13

Michel Foucault. “O nascimento da medicina social” in Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979, pp. 79-98. 14

Michel Foucault. Segurança, território, população. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2008, pp. 78-81; 85; 103. 15

16

Michel Foucault, 1979, op. cit., pp. 79-98.

Samuel Beckett. Primeiro amor. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 2. 17

Michel Foucault. “Crise da medicina ou crise da antimedicina” in Verve. Tradução de Heliana Conde. São Paulo, Nu-Sol, n. 18, 2010, pp. 180-181. 18

19

Idem, pp. 187-188.

20

Friedrich Nietzsche, 2011, op. cit, p. 199.

Luis Buñuel. Meu último suspiro. Tradução de André Telles. São Paulo, Cosac Naif, 2009, p. 349. 21

Antonin Artaud. “Acabar com as obras-primas” in O teatro e seu duplo. Tradução de Teixeira Coelho. São Paulo, Martins Fontes, 2006, pp. 83-93. 22

Philip Roth. Nêmesis. Tradução de Jorio Dauster. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, pp. 9-20. 23

Francisco Alvim. “Guichê” in O metro nenhum. São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 44. 24

Francisco Alvim. “Balcão” in Poemas (1968-2000). São Paulo/Rio de Janeiro, Cosac Naify/7 Letras, 2004, p. 160.

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Francisco Alvim. “Muito ótimo” in 2011, op. cit., p. 16.

Nu-Sol. Flecheira Libertária. N. 200, 19 de abril de 2011. Disponível em: http://www.nu-sol.org/flecheira/pdf/flecheira200.pdf. 27

28

Idem.

Gilberto Gil. Ele falava nisso todo dia. Disponível em: http://letras.terra. com.br/gilberto-gil/556773/. 29

30

Francisco Alvim. “Suspiro” in 2004, op. cit., p. 187.

Ministério da Saúde, Brasil. “A origem do conceito de vulnerabilidade”. Disponível em: http://www.saude.df.gov.br/003/00301009.asp?ttCD_ CHAVE=23792. 31

Edson Passetti. “Segurança, confiança e tolerância: comando na sociedade de controle” in Revista São Paulo em Perspectiva. São Paulo, São Paulo Perspectiva, v. 18, n. 1, 2004. 32

Patti Smith. Só garotos. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 253. 33

34

Ibidem, pp. 243-244.

35

Ibidem, pp. 252-253.

Pina Bausch. “Dance, senão estamos perdidos” in Folha de S. Paulo. Caderno Mais! São Paulo, 27 de agosto de 2000. 36

Gabriel García Márquez. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro, Record, 2009, pp. 44-47. 37

38

Diógenes, 2009, op. cit., p. 255.

Alceu Maynard Araújo. Medicina rústica. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1979, pp. 127-129. 39

Hakim Bey. CAOS Terrorismo poético e outros crimes exemplares. Tradução de Patricia Decia e Renato Resende. São Paulo, Conrad, 2003, pp. 40-42. 40

Osugi Sakae. Memória de um anarquista japonês. Tradução de Ludimila Hashimoto. São Paulo, Conrad Editora do Brasil, 2002, pp. 158-159. 41

42 Gilles Deleuze. “A literatura e a vida” in Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo, Ed. 34, 1997, pp. 11; 16. 43

Idem, pp. 13-14. 199

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Friedrich Nietzsche, 2011, op. cit., p. 260.

Max Stirner. “Mistérios de Paris” in verve. Tradução de J. Bragança de Miranda. São Paulo, Nu-Sol/PUC-SP, n. 3, 2003, p. 29. 45

Emma Goldman. Living my life. New York, Dover Publications, 1970, pp. 408-409. 46

Michel Foucault. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1988, p. 136. 47

Salete Oliveira. “Anarquia e dissonâncias abolicionistas” in Revista Ponto-e-Vírgula. São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, vol.1, 2007, p. 159. 48

George Orwell. Lutando na Espanha. Tradução de Ana Helena Souza. São Paulo, Globo, 2006, p. 29. 49

Christian Ferrer. “átomos soltos – a construção da personalidade entre os anarquistas no início do século XX” in Verve. Tradução de Natalia Montebello. São Paulo, Nu-Sol, n. 5, 2004, p. 160. 50

Edson Passetti. Anarquismos e Sociedade de Controle. São Paulo, Cortez, 2003, p. 116. 51

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Idem, p. 318.

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Resenhas

das muitas maneiras de se lutar contra as prisões e o regime das penas ACÁCIO AUGUSTO

Ester Kosovski e Nilo Batista (Orgs.). Tributo a Louk Hulsman. Rio de Janeiro, Editora Revan, 2012, 304 pp.

Em tempos de monitoramentos produtores de apatias e imobilidades, afirmar a presença de Louk Hulsman é uma lufada de ar e fumaça; é encontrá-lo presente e mobilizador, em luta aberta e risonha contra a prisão, o regime das penas, o sistema penal e toda sua parafernália carcomida e covarde, na qual não há inocentes, apenas inocentados. Eis um dos efeitos da busca pelo justo, de uma visão de mundo incapaz de vencer a força da gravidade: quando tudo é grave, gravíssimo, nada é urgente, vital. O sistema penal e a pena privativa de liberdade não são criações imemoriais, mas recentes, históricas, segundo um encontro muito específico de eventos e interesses. Lembrar insistentemente esse truísmo é dizer que o mundo e as coisas do mundo são o que

Acácio Augusto é pesquisador no Nu-Sol. Doutorando em Ciências Sociais no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP e professor no curso de Relações Internacionais na (FASM) Faculdade Santa Marcelina. verve, 22: 203-207, 2012

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fazemos delas e de nossas vidas e não a elaboração sobre, os fantasmas do pensamento e o fatalismo pragmático e imobilizador. Nem a utopia distante, nem a imobilidade conformista. Um livro que se apresenta como lembrança de um homem como Louk Hulsman, apenas por sua publicação, já coloca a cada um a possibilidade de enxergar que o sistema penal não existiu desde sempre e que não é uma realidade incontornável e necessária. Mostra a qualquer pessoa que uma sociedade sem penas já existe, bastando notar que cada um, ao menos uma vez na vida, já deve ter solucionado um problema sem a necessidade de recorrer ao sistema penal ou a uma solução punitiva. Louk Hulsman, homem de escrita rara, possibilitou a muitos enxergar a estrela já nascida de uma sociedade sem penas e de uma sociabilidade apartada do regime do castigo. Foi como se ele tivesse se aproximado e indicado, com os olhos apertados, o que já estava lá precisando apenas de um aguçamento de percepção para ser notado. Conhecer os efeitos de seus escritos em outras pessoas, mesmo após três anos de seu desaparecimento, é viver uma aproximação dessa experiência de percepção. Tributo a Louk Hulsman pode ser lido buscando tal experiência. Menos, inclusive, como um tributo. Segundo a definição do dicionário, a palavra, um substantivo masculino, designa: “1. Pagamento que um Estado é forçado a fazer a outro. 2. Prestação monetária compulsória devida ao poder público; imposto. 3. Homenagem, preito”. Nas definições, nada mais avesso aos relatos encontrados nos diversos textos sobre sua vida e obra, ou melhor, sua vida/obra. Trata-se de um livro com arco extenso de registros e interpretações, ora como lembranças emocio204

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nadas e repletas de saudades, ora como hermenêuticas extensas e juramentadas, ora com pontuações precisas de seu legado de luta num combate alegre e libertário. Nos dezesseis escritos a propósito deste cronópio de gargalhosa peleja (p. 63), que são abertos com um poema de sua filha (pp. 8-9), há desde seríssimas interpretações sobre sua contribuição para aproximação entre direito penal e canônico, na busca pela verdade verdadeira (pp. 11-37), passando pela simplicidade de uma contundência sincera e inteligente ao dissecar o sistema penal (pp. 57-65), longas transcrições de seus escritos esgotados e pouco reeditados (50-55), até sua atualização em luta, como atitude libertária de um “ensaísta diante do teórico; o instaurador diante do continuador; o defensor da brevidade e da urgência em combater castigos e severidades diante dos manuais e compêndios” (p. 73). Ao ler esses tantos artigos, ficamos sabendo que Louk adorava jardinar e cozinhar; que resistiu à ocupação nazista na Holanda e fugiu de um campo de concentração; que foi professor emérito e conversador animado; que lutou os 86 anos de sua existência. Mas notamos, também, que ele foi capaz de animar com sua presença na América Latina – talvez, guiada pela constelação do Cruzeiro do Sul – lutas de muitas pessoas posicionadas no interior do que combatem: intelectuais na universidade, prisioneiros editores, juristas e juízes contrários às penas, advogados bandidos (no sentido de não mocinhos e sem pretensão de justa inocência), estudantes de Direito que combatem o direito penal. Esclarece-se sobre a diferença entre explicitar, descritivamente, que crime são eventos criminalizáveis, a depender do encontro com 205

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os poderes, e que situação-problema já é uma maneira de pensar fora do crime, do conceito e da prática, como afirma Edson Passetti (pp. 54-55). Mas também, continuando Passetti, que “o abolicionismo é inclassificável. Não é propriedade de ninguém. Os abolicionistas penais são de várias procedências” (p. 67). E a propósito de seus escritos, presenças e viagens é possível ler, em português e espanhol, artigos sobre a impossibilidade da efetivação de uma democracia num mundo em que exista prisões (pp. 81-98), a renovação das desigualdades e a expansão dos controles eletrônicos pela mesma velha prisão (pp. 235-251), as violências e mortes da política criminal (pp. 253-302). Uma variedade sem necessidade de convergência, ainda que se busque encontrá-la em idílicas liberdades rousseauneanas (pp. 117-123). A urgência, colocada por Hulsman, é uma só: acabar com as prisões e o regime das penas. Mas atentar, também com ele, como lembra Nilo Batista, que a abolição da pena começa em cada um e não é uma utopia, “utópico é o discurso convencional” (p. 59). Fora das convergências é preciso afirmar a coexistência das lutas, atento à violência dos pacificadores, às artimanhas dos conservadores progressistas e às seduções dos bajuladores; aprender com o navegador holandês, como pontua Passetti, que “distancia-se dos reformadores à direta e à esquerda” (p. 75) é preciso, quiçá em busca de estrelas ainda não vistas. Desta atitude que não se furta ao combate, reunir em um livro escritos sobre o abolicionismo penal de Louk Hulsman é iniciativa urgente e saudável. O cuidado com o próprio livro em sua editoração não corresponde, no 206

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entanto, à fina matéria e aos potentes escritos que se encontram publicados, tampouco se equivale, no que diz respeito ao trato editorial, à reconhecida coragem dessa editora de publicar autores incômodos, dissonantes e liberadores e que se reafirma com a aparição desse livro. A verve e o Nu-Sol se afirmam próximos do abolicionismo penal de Hulsman desde os inaugurais trabalhos de Edson Passetti e Salete Oliveira, no final da década de 1990, até a presença constante, direta e indireta dos escritos desse instaurador na revista editada desde 2002. Nominalmente, ele está presente em verve nos números 1, 2, 3, 8, 15 e 21. Sendo que o número 15 traz um dossiê publicado no ano de sua morte com alguns textos que também se encontram nesse livro. Das muitas maneiras de se combater a prisão e o regime das penas seguimos em conversação com parceiros de viagem, afirmando a urgência em abolir a prisão para jovens no Brasil, como posição inegociável em acabar com o regime do castigo. Saudamos os amigos de batalhas que registram nesse livro a presença desse saudável cronópio desgovernado que foi Louk Hulsman. Que a circulação desses escritos traga novos e outros ares pela abolição do sistema penal. E contra o atual conformismo que vigora, que outros jovens intelectuais, jovens advogados e operadores do direito, prisioneiros e ex-prisioneiros possam enxergar a estrela que esse andarilho apontou e segue presente. Saúde aos que lutam, como fez Hulsman por toda sua existência, contra a prisão e o sistema penal.

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Michel Onfray. A potência de existir. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2010, 144 pp.

O filósofo Michel Onfray é um pensador urgente. Na emergência de seu pensamento, estão colocadas lado-a-lado a anarquia no presente, a ética dispendiosa e jubilosa, o ateísmo combativo e a materialidade da existência. Elementos, enfim, que possam compor uma vida potente no aqui e agora. Pensador jovem, como pouco mais de cinquenta anos, Michel Onfray apareceu na cena intelectual da França como um nietzschiano de esquerda e iconoclasta, defensor de um hedonismo atualizado ao tempo presente, no qual propõe o direito do ser humano ao prazer. Hoje, é um dos ensaístas mais populares e prestigiados de seu país. Suas obras (mais de cinquenta títulos) estão traduzidas para vários idiomas e espalhadas por diversos países. Sua proposta filosófica se quer inserida no cotidiano, articulada à experimentação com o real. Em A Potência de Existir, lançado no Brasil recentemente por ocasião das comemorações do ano da França no Brasil, o autor promove uma síntese de seu pensamento – ainda em construção – e que serve também como João da Mata é doutorando em Sociologia Econômica e das Organizações na UTL/Portugal e doutorando em Psicologia na UFF/Rio de Janeiro. Desenvolve a Soma – Uma Terapia Anarquista há cerca de vinte anos. 208

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uma porta de entrada a uma trajetória que navega entre a ética e a política, passando também pela estética, história da filosofia, pedagogia libertária e tantos outros temas. A trajetória intelectual de nosso intercessor mistura-se à sua história de vida. Os primeiros anos vivendo próximo à fábrica, a morada no pensionato, o encontro com o anarquismo, a curta e angustiante vida de proletário e a demissão marcante do emprego fabril foram algumas das passagens em sua história que se tornaram determinantes para seu pensamento. Estudou letras e depois filosofia. Com pouco mais de dezoito anos, entrou contato com a obra de Marx e desencantou-se com o que observava das experiências a experiência soviética. Ao fascínio com o pensamento de Nietzsche, somou-se o de obras de anarquistas como Max Stirner, Mikhail Bakunin e Pierre-Joseph Proudhon, pensadores que o faziam ver proximidades maiores que contradições com a obra nietzschiana. No livro A Potência de Existir o leitor encontrará várias passagens e esboços do que Michel Onfray chama de um manifesto hedonista. Para defender seu principal conceito, o materialismo hedonista, em boa parte do livro, Onfray dedica-se a estabelecer sua crítica ao que considera a principal fonte do abandono do corpo, do prazer e da vida jubilosa: o platonismo e sua impregnação sobre o cristianismo. Apresenta antão um resumo de sua Contra-História da Filosofia, projeto que resultou na publicação de seis volumes, na qual o autor percorre a história da filosofia em busca de pensadores que foram “esquecidos” pala filosofia oficial, para traçar uma galeria de devassos e pensadores marginais, libertários e hedonistas. Seus crimes, diz o autor, foram “propor-se o prazer, a felicidade, a utilidade comum, o contrato jubiloso; compor com o cor209

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po em vez de detestá-lo; domar paixões e pulsões, desejos e emoções, em vez de extirpá-los brutalmente de si. (...) Puro prazer de existir” (p. 11). O materialismo hedonista de Michel Onfray está apoiado no personagem conceitual do Condottiere. Esta figura, diz ele, é o esboço de um autêntico libertário, materialista e hedonista. Para chegar a ele, sua investigação deságua em Veneza. É lá que Onfray descobre a imagem esculpida por Andrea del Verrochio do Condottiere Bartolomeo Colleoni, que ganhou fama como mercenário de exércitos pagos para defender a cidade. No entanto, a partir de uma perspectiva nietzschiana, Michel Onfray o vê como um guerreiro, que enfrenta de forma trágica suas batalhas de vida.

O Condottiere como personagem conceito carrega a ideia de ser um condutor de si mesmo, um artífice no processo de seguir a vida. Sua ética situa-se também dentro de uma perspectiva estética, na medida em que cria sua existência como obra de arte. Sem ocupar-se em conduzir ou ser conduzido, ele está mais interessado em estabelecer suas rotas, num constante processo de criação de cartografias, onde o prazer é uma espécie de bússola e sua crítica aos valores sociais assemelha-se à Diógenes, o cínico. Este procedimento será um importante arranjo de forças na ética hedonista, procurando manter a liberdade individual conjugada à relação com o outro. Aos que veem o exercício do prazer como algo banal e desconectado ao outro, Onfray afirma: “aos olhos dos seus adversários, o hedonismo passa por ser o sintoma da indigência de nossa época: individualismo, dizem – confundindo, porém com o egoísmo: o primeiro afirma que só existem indivíduos; o segundo, que só há ele, autismo, defesa do consumidor, 210

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indiferença para com os males alheios e da humanidade inteira” (p. 55). Será na imanência que Onfray defende o materialismo hedonista e seu interesse pelo que se estabeleça no concreto e na prática, onde as experiências, geradas pela própria existência, possibilitem o encontro com sua virtuosidade. Segundo ele, a virtude do Condottiere será marcada pela desobediência contra a servidão e pelo ateísmo contra o ideal ascético. Ela dirige-se aos instantes de júbilo e servirá como postura afirmativa diante da vida. Onfray quer pensar o seu Condottiere como um ser em permanente busca por tornar-se um homem total, ao encontro da completude em si mesmo; daí a noção de obra aberta utilizada pelo autor, que o vê em permanente construção, sem nunca chegar a um ponto final. Em sua dimensão ética, almeja a energia em busca de aplicação, numa tentativa estética de aproximação e equilíbrio entre a exuberância e a forma. Esta dimensão artística que o autor pretende lançar sobre seu personagem conceitual, pretende ir de encontro ao que afirmavam os gregos: fazer de sua vida uma obra de arte. Defende assim a noção que a arte não é apenas o objeto que está no museu, mas a própria vida e o sentido que cada um dá a ela. Não basta viver de qualquer maneira, mas há de se construir uma estética na condução da existência. Em Onfray, esta estética está atrelada à ideia de escultura: esculpir a vida é dar os contornos e as formas que cada um elege como mais singulares. Ao final do livro, Onfray dedica-se a articular seu pensamento ético e estético com a política libertária. Seu pensamento está fortemente apoiado numa perspectiva libertária, no qual o autor procura estabelecer um cruza211

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mento entre a ética e a política, entre o hedonismo e o anarquismo para elaborar uma análise anarquista contemporânea. Procura atualizar o pensamento libertário, especialmente através da noção de individualidade proposta por Max Stirner e a defesa de seu único radical. Seu individualismo é elevado à condição primordial para a defesa da singularidade, bem diferente de qualquer tipo de egoísmo acomodado e alienado como possa parecer. Uma anarquia que se faça atual, presente, distante de qualquer sonho de futuro promissor: “aqui e agora, e não amanhã ou para um futuro radioso, mais tarde – porque amanhã nunca é hoje... A revolução não espera a boa vontade da História maiúscula; ela se encarna em situações múltiplas nos lugares onde é ativada: em nossa família, nossa oficina, nosso escritório, nosso casamento, nossa casa, sob o teto familiar, desde que um terceiro esteja implicado numa relação, em toda a parte” (p. 140). Para isso, diz Onfray é preciso gastar-se, consumir-se para execrar a poupança existencial. Economizar vida é o grande prejuízo que se pode ter. A anarquia se inventa na permanente relação com o outro. Michel Onfray, na construção de seu materialismo hedonista, procura combater a herança platônica e cristã que durante séculos impregnou a filosofia, a vida no ocidente e enfraqueceu a possibilidade de liberdade e prazer como condições da vida. O filósofo do prazer quer uma filosofia do real, da imanência e do corpo. Sua proposta filosófica por ser uma obra em desenvolvimento ainda apresenta lacunas, mas tem mostrado uma relevância cada vez maior na filosofia francesa contemporânea. Uma aposta filosófica que está intimamente ligado às coisas da vida: de uma vida livre, potente e jubilosa.

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NU-SOL Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. hypomnemata, boletim eletrônico mensal, desde 1999; flecheira libertária, semanal, desde 2007; os insurgentes, apresentação de abril a junho de 2008; reapresentação de junho a agosto de 2008, de dezembro de 2008 a fevereiro de 2009; ágora, agora, apresentação da série ao vivo de setembro a outubro de 2007; reapresentação de janeiro a março de 2008 e de fevereiro a abril de 2009; ágora, agora 2, apresentação da série de setembro a dezembro de 2008; reapresentação de abril a julho de 2009 e de julho a outubro de 2009; ágora, agora 3, apresentação da série de outubro a novembro de 2010; carmem junqueira-kamaiurá — a antropologia MENOR, apresentações em outubro/novembro de 2010; 2011 e 2012. Canal universitário/TVPUC e transmissão simultânea em http://tv.nu-sol.org. Aulas-teatro Emma Goldman na Revolução Russa, maio e junho de 2007; Eu, Émile Henry, outubro de 2007; FOUCAULT, maio de 2008; estamos todos presos, novembro de 2008 e fevereiro de 2009; limiares da liberdade, junho de 2009; FOUCAULT: intempéries, outubro de 2009 e fevereiro de 2010; drogas-nocaute, maio de 2010; terr@, outubro de 2010 e fevereiro de 2011; eu, émile henry. resistências., maio de 2011; loucura, outubro de 2011; saúde!, maio 2012. DVD ágora, agora, edição de 8 programas da série PUC ao vivo; os insurgentes, edição de 9 programas; ágora, agora 2, edição de 12 programas; carmem junqueira-kamaiurá — a antropologia MENOR; ágora, agora 3, edição de 7 programas. Vídeos Libertárias (1999); Foucault-Ficô (2000); Um incômodo (2003); Foucault, último (2004); Manu-Lorca (2005); A guerra devorou a revolução. A guerra civil espanhola (2006); Cage, poesia, anarquistas (2006); Bigode (2008); VídeoFogo (2009). Assista em: www.nu-sol.org/tv. CD-ROM Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um incômodo). Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004 29 títulos.

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r recomendações para colaborar com verve Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Conselho Editorial para possível publicação. Os textos enviados à revista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à formatação: Extensão, fonte e espaçamento: a) Artigos: os artigos não devem exceder 17.000 caracteres contando espaço (aproximadamente 10 laudas), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo. b) Resenhas: As resenhas devem ter no máximo 7.000 caracteres contando espaços (aproximadamente 4 laudas), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo. Identificação: O autor deve enviar mini-currículo, de no máximo 03 linhas, para identificá-lo em nota de rodapé. Resumo: Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 10 linhas — em português e inglês — e de três palavras-chave (nos dois idiomas). Notas explicativas: As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota de fim de texto. Resenhas não devem conter notas explicativas. Citações: As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto observando o padrão a seguir:

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I) Para livros: Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página. Ex: Rogério Nascimento. Florentino de Carvalho: pensamento social de um anarquista. Rio de Janeiro, Achiamé, 2000, p. 69. II) Para artigos ou capítulos de livros: Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano, página. Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in Ensaios, vol. I. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores, 1987, p. 76. III) Para artigos publicados em periódicos: Nome do autor. “Título” in Nome do periódico. Cidade, Editora, volume e/ou número, ano, páginas. José Maria de Carvalho. “Elisée Reclus, vida e obra de um apaixonado da natureza e da anarquia” in Utopia. Lisboa, Associação Cultural A Vida, n. 21, 2006, pp. 33-46. IV) Para citações posteriores: a) primeira repetição: Idem, p. número da página. b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página. c) para citação recorrente e não sequencial: Nome do autor, ano, op. cit., p. número da página. V) Para obras traduzidas: Nome do autor. Título da Obra. Tradução de [nome do tradutor]. Cidade, Editora, ano, número da página. Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. Tradução de Salma T. Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2000. p.42. VI) Para textos publicados na internet: Nome do autor ou fonte. Título. Disponível em: http://[endereço da web] (acesso em: data da consulta).

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Ex: Claude Lévi-Strauss. Pelo 60º aniversário da Unesco. Disponível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n1/indexn1.htm (acesso em: 24/09/2007). VII) Para resenhas: As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o título, da seguinte maneira: Nome do autor. Título da Obra. Tradutor (quando houver). Cidade, Editora, ano, número de páginas. Ex: Roberto Freire. Sem tesão não há solução. Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1987, 193 pp. As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico para o endereço [email protected] salvos em extensão “.rtf”. Na impossibilidade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em cd seja encaminhada pelo correio para:

Revista Verve Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro Godói, 969, 4º andar, sala 4E-20, Perdizes, CEP 05015-001, São Paulo/SP. Informações e programação das atividades do Nu-Sol no endereço: www.nu-sol.org

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Projeto temático FAPESP Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle visite: http://www.pucsp.br/ecopolitica/ http://revistas.pucsp.br/ecopolitica/

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