Ritmos, tropos e figuras em Raul Pompéia_ pequena análise d\'O Ateneu

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UNIVERSIDADE   DE   SÃO   PAULO  ESCOLA   DE   COMUNICAÇÕES   E  ARTES       

 

Ritmos,   tropos   e  figuras   em   Raul   Pompéia:   pequena   análise   d'O   Ateneu        Trabalho   apresentado   à  disciplina  C   ultura   &  Literatura   Brasileira:   Império  Professor   Doutor   Jean   Pierre   Chauvin  Luís   Guilherme   Marques   Ribeiro   –  8544335        São   Paulo  2   de   dezembro   de   2016     

INTRODUÇÃO      O  presente  trabalho  consiste  em  na  análise  do  percurso  figurativo  de  uma  notável  cena  do  primeiro   capítulo   d’ O  Ateneu ,  a  narração   da   “f esta   da   educação   física ”  (§  24   a   §40) .   Pretende­se  explorar  os  efeitos  estilísticos  da  expressão,  para  além  do  plano  do  conteúdo,  como  os  recursos  fônicos,  métricos,  rítmicos  e  sintáticos,  bem  como  as  figuras  de  pensamento   e  tropos   retóricos.   Não  se  trata  de simples exercício de identificação e classificação, mas numa análise que  procure  mostrar  as  funções  desses  recursos  na  produção  de  sentido  do  texto,  repousando  a  atenção   no   que   pode­se   chamar   de   “dimensão   poética”   da   prosa   de   Raul   Pompéia.   Trata­se  de  um  exercício  de  imersão  analítica,  “ao  rés  do  texto”, parágrafo a parágrafo,  balizada  por  certa  referência  crítica  (ANDRADE:  1973;  IVO:  1976;  PERRONE­MOISÉS:  1988)   e  municiada   pelos   elementos   da   semiótica   discursiva   (FIORIN:   2013,   2014).        

ANÁLISE      §24  No dia da festa da educação física , como rezava o programa (programa de arromba, porque  o  secretário  do  diretor  tinha  o  talento  dos  programas)  não  percebi  a  sensação  de ermo tão acentuada  em  sítios  montanhosos,  que  havia  de  notar  depois.  As  galas do momento faziam sorrir a paisagem. O  arvoredo  do  imenso  jardim,  entretecido  a  cores  por  mil  bandeiras,  brilhava  ao  sol  vivo  com  o  esplendor de estranha alegria; os vistosos panos, em meio da ramagem, fingiam flores colossais, numa  caricatura  extravagante  de  primavera;  os  galhos  frutificavam  em  lanternas  venezianas,  pomos  de  papel  enormes,  de  uma  uberdade  carnavalesca.  Eu  ia  carregado,  no  impulso  da  multidão.  Meu  pai  prendia­me   solidamente   o  pulso,   que   me   não   extraviasse.    

Este  parágrafo  inicia  propriamente  a  narração  sobre  a   festa  da  educação  física,  logo  após  a  descrição  da  “atmosfera  moral  da  meditação  e  do  estudo”  que  caracteriza  o  Ateneu.  Opõe­se  a  “sensação  de  ermo”  a  elementos  que  “faziam   sorrir  a  paisagem”  (note­se  aí  prosopopeia,  atribuindo  traços  humanos  a  elementos  inanimados,  uma  das  figuras  mais  amplamente  empregadas  no  romance),  como  o  arvoredo  “entretecido  a  cores”,  “vistosos  panos”,  “flores  colossais”,  “primavera”,  “os  galhos  frutificavam  em  lanternas  venezianas”,  “pomos  de  papel  enormes”  e  “uberdade  carnavalesca”.  Destaca­se  pela  preciosidade  da  imagem  a  ideia  de  “uberdade  carnavalesca”,  ou  seja,  a  fecundidade  e,  por  extensão,  fartura, 

abundância  relativa  ao  período  de  carnaval.  Cada  uma  das  imagens  traz  em  si  a  ideia  de  ornamentação   que   pinta   um   ambiente   festivo.   É  o  quadro   em   que   se   desenrola   toda   a  cena.     §25  Mergulhado  na  onda,  eu  tinha  que  olhar  para  cima,  para  respirar.  Adiante  de  mim,  um  sujeito  mais  próximo  fez­me  rir;  levava  de  fora  a  fralda  da  camisa…  Mas  não  era  fralda;  verifiquei  que  era  o  lenço.  Do chão subia um cheiro forte de canela pisada; através das árvores, com intervalos,  passavam   rajadas   de   música,   como   uma   tempestade   de   filarmônicas.   §26  Um  último  aperto  mais  rijo,  estalando­me  as  costelas, espremeu­me, por um estreito corte  de   muro,   para   o  espaço   livre.    

A  metáfora  de  estar  “mergulhado  na  onda”,  além  de  indicar  a  sensação  de estar imerso  em  uma  multidão  em  movimento,  tem  o  sentido  ampliado  ao  falar  da  necessidade  de  “olhar  para  cima”  para  respirar.  Nestes parágrafos, quatro planos sensoriais diferentes são evocados:  visão  (“verifiquei”),  olfato  (“cheiro  forte  de  canela  pisada”),  audição (“rajadas de música”) e  tato  (“espremeu­me”),  em  uma  pluralidade  de  impressões.  Qual  a  relevância  narrativa  da  fralda  que  na  verdade  era  um  lenço?  Por  que  cheiro  de  “canela  pisada”?  Tais  referências  parecem  ser  típicas  reminiscências  da  infância,  em  que  lembramo­nos  de  detalhes  aparentemente  aleatórios,  mas  que  trazem  toda  a  riqueza  e  a  especificidade  dos  momentos  marcantes.   A  descrição  do  “aperto  mais  rijo,  estalando­me  as  costelas”  demonstra  a  violência  da  situação,  contrastando  a  condição  de  impotência  e  fraqueza  do  narrador­personagem  diante  da   brutalidade   da   multidão.     §27  Em  frente,  um  gramal vastíssimo. Rodeava­o uma ala de galhardetes, contentes no espaço,  com o pitoresco dos tons enérgicos cantando vivo sobre a harmoniosa surdina do verde das montanhas.  Por  todos  os  lados  apinhava­se o povo. Voltando­me, divisei, ao longo do muro, duas linhas de estrado  com  cadeiras  quase  exclusivamente  ocupadas  por  senhoras,  fulgindo  os  vestuários,  em  violenta  confusão  de  colorido.  Algumas  protegiam  o  olhar  com  a  mão  enluvada,  com  o  leque,  à  altura  da  fronte,  contra  a  rutilação  do  dia  num  bloco  de  nuvens  que  crescia  do  céu.  Acima  do  estrado  balouçavam  docemente  e  sussurravam  bosquetes  de  bambu,  projetando  franjas  longuíssimas  de  sombra   pelo   campo   de   relva.    

Não  escapa  ao  ouvido  a  redondilha  maior  no  primeiro  período  do  parágrafo:  “Em  fre nte,  um  gra mal  vas tí ssimo”.  O  gramal  é  vastíssimo,  mas  a  “ala  de  galhardetes”  que  o  rodeia  evoca  a  ordem  militar  (ala:  conjunto  de  objetos  dispostos  de  maneira  ordenada  e 

simétrica;  galhardete:   pequena  bandeira  geralmente  de  forma  triangular  usada  como  insígnia  de   clube   desportivo,   unidade   militar,   embarcações,   etc).   Notemos  a  riqueza  sinestésica  da  imagem:  “ o  pitoresco  dos  tons  enérgicos  cantando  vivo   sobre   a  harmoniosa   surdina   do   verde   das   montanhas”.   Em   verso:    o   pito res co   dos   tons   en   ér gicos   cantando   vi vo   sobre   a  harmo nio sa  sur di na   do  v  er de   das   mon ta nhas    O   esquema   rítmico:    ­­­/­­­­/    9  ­­­/­­­­/    9  ­/­­/­­­/    9    É  fácil  notar o ritmo compassado da frase, que poderia por si só ser um pequeno poema,  em   que   os   tons   pitorescos   e  enérgicos   contrastam   com   o  harmonioso   verde   das   montanhas.   A  descrição  do  ambiente  segue:  a  “violenta  confusão  de  colorido”  das  roupas  das  senhoras  contrasta  com  os  bambus  que  “balouçavam  docemente  e  sussurravam”,  projetando  uma   grande   sombra   sobre   o  campo.     §28  Algumas  damas  empunhavam  binóculos.  Na  direção  dos  binóculos  distinguia­se  um  movimento  alvejante.  Eram  os  rapazes.  “Aí  vêm!  disse­me  meu  pai;  vão  desfilar  por  diante  da  princesa.”  A  princesa  imperial,  Regente  nessa  época,  achava­se  à  direita  em  gracioso  palanque  de  sarrafos.    

O  “movimento  alvejante”  é  a  movimentação  dos  rapazes  em  uniforme  branco  aproximando­se  para  o  desfile,  enquanto  são  observadas  pelas  “damas”, em uma sugestão da  situação   de   tensão   erótica   entre   as   moças   e  os   rapazes.   Pode­se  aventar  a  possibilidade  (tendo  em  vista  a  postura  republicana  do  Autor)  de  a  expressão  “gracioso  palanque  de  sarrafos”  ser  um  escárnio,  uma  vez  que  “sarrafo”  é  dicionarizado  como  “qualquer pedaço de pau alongado e fino”, em sentido pejorativo. Por ser 

um  palanque  da  realeza,  seria  natural  esperar  uma  figuração  de  requinte  e  bom  gosto,  mas  não   é  o  caso.    §29  Momentos  depois,  adiantavam­se  por  mim  os  alunos  do  Ateneu.  Cerca  de  trezentos;  produziam­me  a  impressão  do  inumerável.  Todos  de  branco,  apertados  em larga cinta vermelha, com  alças  de  ferro  sobre  os  quadris  e  na  cabeça  um  pequeno  gorro  cingido  por  um  cadarço  de  pontas  livres.  Ao  ombro  esquerdo  traziam  laços  distintivos  das  turmas.  Passaram  a  toque  de  clarim,  sopesando  os  petrechos  diversos  dos  exercícios.  Primeira  turma,  os  halteres;  segunda,  as  maças;  terceira,   as   barras.  

  As  imagens  tais  como  “todos  de  branco”,  “alças  de  ferro”,  “laços  distintivos  das  turmas”  e  “toque  de  clarim”  evocam  um  treinamento  militar.  A  pontuação  e  o  ritmo  bem  marcados  da  última  frase  do  parágrafo  (“Primeira  turma,  os  halteres;  segunda,  as  maças;  terceira,  as  barras”) insinua o ritmo característico das ordens militares. Portanto, apesar de ser  uma  apresentação  de  alunos  em  uma  escola,  todo  o  percurso  figurativo  remete  ao  universo  marcial.    §30   Fechavam   a  marcha,   desarmados,   os   que   figurariam   simplesmente   nos   exercícios   gerais.   §31  Depois  de  longa  volta,  a  quatro  de  fundo,  dispuseram­se  em  pelotões,  invadiram o gramal  e,  cadenciados  pelo  ritmo  da  banda  de  colegas, que os esperava no meio do campo, com a certeza de  amestrada  disciplina,  produziram  as  manobras  perfeitas  de  um  exército  sob  o  comando  do  mais  raro  instrutor.    

“Fechavam  a  marcha”,  “pelotões”,  “ritmo  da  banda  de  colegas”,  “a  certeza  de  amestrada  disciplina”,  “manobras  perfeitas  de  um  exército”  e  “instrutor”  são  expressões  tipicamente  militares  que  deixam  claro  o  caráter  ordenado  e  sincronizado  do  desfile,  com  a  valorização   das   ideias   de   simetria,   ritmo   e  hierarquia.    §32  Diante  das  fileiras,  Bataillard,  o  professor  de  ginástica,  exultava  envergando  a  altivez  do  seu  sucesso  na  extremada  elegância  do  talhe,  multiplicando  por  milagroso  desdobramento  o  compêndio  inteiro  da  capacidade  profissional, exibida em galeria por uma série infinita de atitudes. A  admiração  hesitava  a  decidir­se  pela  formosura  masculina  e  rija  da  plástica  de  músculos  a  estalar  o  brim  do uniforme, que ele trajava branco como os alunos, ou pela nervosa celeridade dos movimentos,  efeito  elétrico  de  lanterna  mágica,  respeitando­se  na  variedade  prodigiosa  a  unidade  da  correção  suprema.  

 

O  nome  do  professor  é  relaciona­se  à  palavra  francesa   bataille ,  batalha,  reforçando  o  tom  bélico  da  cena.  Novamente  a  frase  se  destaca  tanto  pela  riqueza  da  imagem  quanto pela  cadência   do   ritmo.   Em   verso:    exul ta va   enver gan do   a  alti vez   do   seu   su ce sso   na   extre ma da   ele gâ ncia   do  t  a lhe,  multipli can do   por   mila gro so   desdobra men to     Notemos   o  esquema   rítmico:    ­­/­­/­­/    9  ­­­/    4  ­­/­­/­­/    9  ­­­/    4  ­­­/    4  ­­­/    4    A  sequência  de  palavras  de  sentido  expansivo,  com  vogais tônicas abertas, provoca um  acúmulo  semântico  que  desenha  o  professor  de  ginástica  como  um  personagem  superviril,  espécie  de  semideus.  Não  sabe­se  o  que  admirar  mais:  se  a  “formosura  masculina  e  rija  da  plástica  de  músculos” ou a “nervosa celeridade dos movimentos”. Há uma sobreposição entre  duas  qualidades:  a  beleza  da  forma  (“plástica”)  e  a  habilidade  dos  movimentos  (“correção  suprema”),  em  um  elogio  altamente  erótico.  A  referência  ao  “efeito  elétrico  de  lanterna  mágica”  provavelmente  diz  respeito  aos  primeiros  cinematógrafos  que  projetavam  imagens  em   movimento,   e  quis   simbolizar   um   movimento   rápido   e  volátil.    §33  Ao  peito  tilintavam­se  as  agulhetas  do  comando,  apenas  de  cordões vermelhos em trança.  Ele  dava  as  ordens  fortemente,  com  uma  vibração  penetrante  de  corneta que dominava à distância, e 

sorria  à  docilidade  mecânica  dos  rapazes.  Como  oficiais  subalternos,  auxiliavam­no  os  chefes  de  turma,   postados   devidamente   com   os   pelotões,   sacudindo   à  manga   distintivos   de   fita   verde   e  canutilho.    

O  plano  de  leitura  erótico  ganha  novos  elementos  que  o  reforçam:  “Dava  ordens  fortemente”,  “vibração  penetrante”,  “dominava”,  “sorria  à docilidade mecânica dos rapazes”.  Os  elementos  do  campo  semântico  da  ordem  militar  e  os  elementos  do  campo  semântico  da  dominação  sexual  se  sobrepõem  em  uma  dupla  possibilidade  de  leitura,  desenvolvendo­se  sobre  a  oposição  /força/   versus   /fraqueza/,  ou  /ordem/   versus   /obediência/.  A  hierarquia  é  representada  pelos  distintivos:  “cordões  vermelhos  em  trança” para o professor e “distintivos  de   fita   verde   e  canutilho”   para   os   chefes   de   turma.    §34  Acabadas  as  evoluções,  apresentaram­se  os  exercícios.  Músculos  do  braço,  músculos  do  tronco,  tendões  dos  jarretes,  a  teoria  toda  do  corpore  sano  foi  praticada  valentemente  ali,  precisamente,  com  a  simultaneidade  exata  das  extensas  máquinas.  Houve  após,  o  assalto  aos  aparelhos.  Os  aparelhos  alinhavam­se  a  uma  banda  do  campo,  a  começar  do  palanque  da  Regente.  Não  posso  dar  ideia  do  deslumbramento  que  me  ficou  desta  parte.  Uma  desordem  de  contorções,  deslocadas  e atrevidas; uma vertigem de volteios à barra fixa, temeridades acrobáticas ao trapézio, às  perchas,  às  cordas,  às  escadas;  pirâmides  humanas  sobre  as  paralelas,  deformando­se  para  os  lados  em  curvas  de  braços e ostentações vigorosas de tórax; formas de estatuária viva, trêmulas de esforço,  deixando  adivinhar  de  longe  o  estalido  dos  ossos  desarticulados;  posturas  de  transfiguração  sobre  invisível  apoio;  aqui  e  ali  uma  cabecinha  loura,  cabelos  em  desordem  cacheados  à  testa,  um  rosto  injetado  pela  inversão  do  corpo,  lábios  entreabertos  ofegando,  olhos  semicerrados  para  escapar  à  areia  dos  sapatos,  costas  de  suor,  colando  a  blusa  em  pasta,  gorros  sem  dono  que  caíam  do  alto  e  juncavam  a  terra;  movimento,  entusiasmo  por  toda  a  parte  e  a  soalheira,  branca  nos  uniformes,  queimando  os  últimos  fogos  da  glória  diurna  sobre  aquele  triunfo  espetaculoso da saúde, da força, da  mocidade.    

O  começo  do  parágrafo  forma  outra  sequência  que,  se  espalhada  em  verso,  encaixa­se  no   metro   e  mantém   certa   regularidade   rítmica.     Aca ba das   as   evolu ções ,   apresen ta ram­se   os   exer cí cios.   Mús culos   do  b   ra ço,   mús culos   do  t  ron co,   ten dões   dos   ja rre tes,  

a   teoria  t  o da   do  c  o rpore  s  a no   foi   prati ca da   valente men te   al i  precisa men te,   com   a  simultanei da de   e xa ta   das   ex ten sas  m   á quinas.    ­­/­­­­­/    9  ­­­/­­­­/    9  ­­­­/    5  ­­­­/    5  ­/­­/    5  ­­­­/­­/­­/    11  ­­­/­­­­/­/    11  ­­­/­­­­­­/    11  ­/­­­/­/    8    Os  exercícios  são  aproximados  semanticamente  à  noção  de  /ordem/  do  movimento  reificado  das  máquinas,  mas  em  seguida,  nos  aparelhos,  para  deslumbramento  do  narrador­personagem,  uma  sequência  de  adjetivos  relacionados  à  ideia de /caos/ se desenrola  (“desordem  de  contorções”,  “vertigem”,  “deformando­se”,  “trêmulas”,  “desarticulados”,  “transfiguração”,  “cabelos  em  desordem”,  “caíam”),  pintando  uma  cena  agitada,  movimentada,  confusa,  mas  um “triunfo espetaculoso da saúde, da força, da mocidade”. Com  as  descrições  dos  corpos  masculinos,  agregam­se  elementos  do  plano  de  leitura  erótico:  “curvas  de  braços  e  ostentações  vigorosas  de  tórax”,  “formas  de  estatuária  viva”,  “lábios  entreabertos   ofegando”,   “costas   de   suor,   colando   a  blusa   em   pasta”.    §35  O  Professor  Bataillard,  enrubescido  de  agitação,  rouco  de  comandar,  chorava  de  prazer.  Abraçava  os  rapazes  indistintamente.  Duas  bandas  militares  revezavam­se ativamente, comunicando  a  animação  à  massa  dos  espectadores.  O  coração pulava­me no peito com um alvoroço novo, que me  arrastava  para  o  meio  dos  alunos,  numa  leva  ardente  de  fraternidade.  Eu  batia  palmas;  gritos  escapavam­me,   de   que   me   arrependia   quando   alguém   me   olhava.    

Durante  o  clímax  da  apresentação,  enquanto  o  professor  “chorava  de  prazer”  e  as  bandas  “ativamente”  mantinham  a  “animação”  do  público,  há  um  momento  de  euforia  do 

narrador,  “um  alvoroço  novo”,  pois  ele  se  identifica  com  toda  a  agitação  e  nutre  um  sentimento  de  pertencimento  (“leva  ardente  de  fraternidade”)  em  relação  aos  alunos. Mas há  uma  disforia  entre  a  ação  e  a  intenção,  na  medida  em  que  o  narrador  deixa  escapar  sua  volição,  mas  sente­se  reprimido  pelos  olhares  dos  alunos.  Sua  compleição  frágil  e  seu  temperamento  tímido  tornam­o  vulnerável  à situação social, de modo que suas expansões são  refreadas.     §36  Deram  fim  à  festa  os  saltos,  os  páreos  de  carreira,  as  lutas  romanas  e  a  distribuição  dos  prêmios de ginástica, que a mão egrégia da Sereníssima Princesa e a pouco menos do Esposo Augusto  alfinetavam  sobre  os  peitos  vencedores.  Foi  de  ver­se  os  jovens  atletas  aos  pares  aferrados,  empuxando­se,  constringindo­se,  rodopiando,  rolando  na  relva  com  gritos  satisfeitos  e  arquejos  de  arrancada;  os corredores, alguns em rigor, respiração medida, beiços unidos, punhos cerrados contra o  corpo,  passo  miúdo e vertiginoso; outros, irregulares, bracejantes prodigalizando pernadas, rasgando o  ar  a  pontapés,  numa  precipitação  desengonçada  de  avestruz,  chegando  estofados,  com  placas  de  poeira   na   cara,   ao   poste   da   vitória.    

Depois  da  exibição,  os  atletas  aparecem  já  com  outro  aspecto,  mais  condizentes  com  a  imagem  de jovens que brincam, “empuxando­se, constringindo­se, rodopiando”, em contraste  com  a  aristocrática  figura  da  “Sereníssima  Princesa”  com  sua  “mão  egrégia”,  premiando  os  vencedores.  Outro  contraste  é  o  dos  jovens  “corredores”,  de  “passo  miúdo  e  vertiginoso”,  e  os  jovens  “irregulares”,  “rasgando  o  ar  a  pontapés,  numa  precipitação  desengonçada  de  avestruz”,  deixando  claro  que,  para  além  da  aparência  homogênea  da  apresentação,  há  toda  uma   pluralidade   de   tipos,   corpos,   habilidades   e  personalidades.     §37  Aristarco  arrebentava  de  júbilo.  Pusera  de  parte  o  comedimento  soberano  que  eu  lhe  admirara  na  primeira  festa.  De  ponto  em  branco,  como  a  rapaziada,  e  chapéu­do­chile,  distribuía­se  numa  ubiqüidade  impossível  de  meio  ambiente. Viam­no ao mesmo tempo a festejar os príncipes com  o  risinho  nasal,  cabritante,  entre  lisonjeiro  e  irônico,  desfeito  em  etiquetas  de  reverente  súdito  e  cortesão;  viam­no  bradando  ao  professor  de  ginástica,  a  gesticular  com  o  chapéu  seguro  pela  copa;  viam­no  formidável,  com  o  perfil  leonino  rugir  sobre  um  discípulo  que  fugira  aos  trabalhos,  sobre  outro  que  tinha  limo  nos  joelhos,  de  haver  lutado  em  lugar  úmido,  gastando  tal  veemência  no  ralho,  que   chegava   a  ser   carinhoso.    

Aristarco  aparece  em  seu  lado  jovial,  preparado  para  a  festa,  “de  ponto em branco”, ou  seja,  bem  arrumado,  e  com  “chapéu­do­chile”  (variante  do  chapéu  panamá),  conseguindo 

dividir­se em vários espaços (“ubiquidade impossível de meio ambiente”). A descrição do seu  “risinho  nasal,  cabritante,  entre  lisonjeiro  e  irônico”  figurativiza  a  personalidade  frívola  e  interessada,  dúbia,  que  pode  estar  ou  não  falando  a  verdade,  a  depender  da  interpretação  da  situação.  O  riso  “cabritante”  é  uma  figura  inusitada  que  atribui  uma  qualidade  de  cabra,  os  pequenos  saltos  da  cabra,  ao  riso,  para  referir­se  a  um  riso  entrecortado.  Outro  elemento  contraditório,  que  traz  um  sentido  novo  à  personagem,  é  o  absurdo  do  trecho:  “gastando  tal  veemência  no  ralho,  que  chegava  a  ser  carinhoso”,  que  evoca  uma  figura  paterna,  severa  e  carinhosa,   em   aparente   contradição.    §38  O  figurino  campestre  rejuvenescera­o.  Sentia  as  pernas  leves  e  percorria  celerípede  a  frente  dos  estrados,  cheio  de  cumprimentos  para  os  convidados  especiais  e  de  interjetivos  amáveis  para  todos.  Perpassava como uma visão de brim claro, súbito extinta para reaparecer mais viva noutro  ponto.  Aquela  expansão  vencia­nos;  ele  irradiava  de  si,  sobre  os  alunos,  sobre  os  espectadores,  o  magnetismo  dominador  dos  estandartes  de  batalha.  Roubava­nos  dois  terços  da  atenção  que  os  exercícios  pediam;  indenizava­nos  com  o  equivalente  em  surpresas  de vivacidade, que desprendia de  si,  profusamente,  por  erupções  de  jorro  em  roda,  por  ascensões  cobrejantes  de girândola, que iam às  nuvens,  que  baixavam  depois serenamente, diluídas na viração da tarde, que os pulmões bebiam. Ator  profundo,  realizava  ao  pé  da  letra,  a  valer, o papel diáfano, sutil, metafísico, de alma da festa e alma  do   seu   instituto.   

Os  conceitos  que  se  ligam  a  Aristarco  são  todos  de  ordem  expansiva:  “irradiava”,  “magnetismo  dominador”,  “surpresas  de  vivacidade”,  “profusamente”  etc.  Mas uma imagem  chama   a  atenção   pela   construção.   Notemos   como   ficaria   em   verso:     Roubava­nos   dois   terços   da   atenção   que   os   exercícios   pediam;   indenizava­nos   com   o  equivalente   em  surpresas   de   vivacidade,   que   desprendia   de   si,   profusamente,   por   erupções   de   jorro   em   roda,   por   ascensões   cobrejantes   de   girândola,   que   iam   às   nuvens,   que   baixavam   depois   serenamente,   diluídas   na   viração   da   tarde,  

que   os   pulmões   bebiam.    Não  é  o  metro,  a  rima  ou  o  ritmo  que  chamam  a  atenção,  mas  a  riqueza  de  cada  imagem,  que  isoladas  em  versos  (brancos,  livres)  se  destacam.  Neste  “poema”  é  descrita em  uma  metáfora  pirotécnica  a  efusão  da  expressividade  de  Aristarco,  desprendendo  “erupções  de  jorro  em  roda”,  ou  seja,  lançando­se  para  todos  os  lados,  “por  ascensões  (subidas,  elevações)  cobrejantes  (que  se  movimentam como cobras) de girândola (utensílio pirotécnico  usado  para  queimar  muitos  foguetes  ao  mesmo  tempo)”.  Tais  ascensões  sobem  às  nuvens,  baixam,   diluem­se   nos   ventos   da   tarde   e  são   absorvidas   pelos   pulmões   (os   pulmões   bebiam).        §39  Uma  coisa  o  entristeceu,  um  pequenino  escândalo.  Seu  filho  Jorge,  na  distribuição  dos  prêmios,  recusara­se  a  beijar  a  mão  da  princesa,  como  faziam  todos  ao  receber  a  medalha.  Era  republicano  o  pirralho!  Tinha  já  aos  quinze  anos  as  convicções  ossificadas  na  espinha  inflexível  do  caráter!  Ninguém mostrou perceber a bravura. Aristarco, porém, chamou o menino à parte. Encarou­o  silenciosamente  e  —  nada  mais.  E  ninguém  mais  viu  o  republicano!  Consumira­se  naturalmente  o  infeliz,  cremado  ao  fogo  daquele  olhar!  Nesse  momento  as  bandas  tocavam  o  hino  da  monarquia  jurada,   última   verba   do   programa.    

A  indisciplina  de  Jorge,  apesar  de  ser  repreendida  severamente,  é  tratada  pelo narrador  nos  seguintes  termos:  “Era  republicano  o  pirralho!  Tinha  já  aos  quinze  anos  as  convicções  ossificadas  na  espinha  inflexível  do  caráter!”,  ou  seja,  o  republicanismo  (“convicções  ossificadas”)  é  identificado  a  uma  virtude  moral  (“espinha  inflexível  do  caráter”),  em,  contraste  com  a  severa  admoestação  de  Aristarco.  Naturalmente,  se  pensarmos na inclinação  republicana  do  autor,  Raul  Pompéia,  compreendemos  o  simbolismo  de  negar­se  a  beijar  a  mão  da  nobreza.  A  metáfora  “Consumira­se  naturalmente o infeliz, cremado ao fogo daquele  olhar!”  tem  como  elemento  inusitado  o  “naturalmente”.  De  que  se  trata  essa  natureza?  Por  que  naturalmente?  Por  causa  do  ambiente  de  simpatia  à  monarquia,  hostil  a  manifestações  republicanas,  onde  o  “fogo”  dos  olhares e dos julgamentos consumiriam “naturalmente” uma  iconoclastia   como   essa.  No  trecho  “Nesse  momento  as  bandas  tocavam  o  hino  da  monarquia  jurada,  última  verba  do  programa”,  a  palavra  “verba”  aparece  em  sua  acepção  jurídica:  cada  uma  das  cláusulas  elencadas  num  documento  ou  escritura.  O  acoplamento  de  “verba”  a  “hino  da 

monarquia jurada” reforça a ideia de institucionalidade e naturalização do regime monárquico  no   evento,   reforçando   o  caráter   subversivo   do   garoto   republicano.    §40  Começava  a  anoitecer,  quando  o  colégio  formou  ao  toque  de  recolher.  Desfilaram  aclamados,   entre   alas   de   povo,   e  se   foram   do   campo,   cantando   alegremente   uma   canção   escolar.    

Concentram­se  no  parágrafo  três  termos  relacionadas  à  ideia  de  /fim/:  “anoitecer”  (fim  do  dia),  “toque  de  recolher”  e  “se  foram  do campo” (fim da festa). Tal concentração, aliada à  ideia  de /ordem/ (“entre alas de povo”) e /felicidade/ (“cantando alegremente”) encerra a cena  da   festa   da   educação   física.       

BIBLIOGRAFIA     ALI,   M.   Said.   Versificação   Portuguesa ,  São   Paulo,   Edusp,   1999  ANDRADE,   Mário   de.   Aspectos   da   Literatura   Brasileira .  4.   e d.   São   Paulo:   Ed.   Martins,   1972.  

CANDIDO,   Antônio.   O  estudo  a  nalítico   do   poema .  São   Paulo:   Humanitas/FFLCH/USP,  1996.  FIORIN,   José   Luiz.  F   iguras   de   retórica .  São   Paulo:   Contexto,   2014.  FIORIN,   José   Luiz.  E   lementos   de   Análise   do   Discurso .  15.   ed.   São   Paulo:   Contexto,   2013.  IVO,   Ledo.   O  universo   poético   de   Raul   Pompéia .  Rio   de   Janeiro:   Livraria   São   José,   1963.  PERRONE–MOISÉS,   L.  O     Ateneu:   retórica   e  paixão .  São   Paulo:   Brasiliense,   1988.  PIGNATARI,   Décio.   O  que   é  comunicação   poética .  São   Paulo,   Ateliê   Editorial,   2006.  POMPÉIA,   Raul.   O  Ateneu:   crônica   de   saudades .  São   Paulo,   Editora   FTD,   1996.   

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