Ritmos, tropos e figuras em Raul Pompéia_ pequena análise d\'O Ateneu
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
Ritmos, tropos e figuras em Raul Pompéia: pequena análise d'O Ateneu Trabalho apresentado à disciplina C ultura & Literatura Brasileira: Império Professor Doutor Jean Pierre Chauvin Luís Guilherme Marques Ribeiro – 8544335 São Paulo 2 de dezembro de 2016
INTRODUÇÃO O presente trabalho consiste em na análise do percurso figurativo de uma notável cena do primeiro capítulo d’ O Ateneu , a narração da “f esta da educação física ” (§ 24 a §40) . Pretendese explorar os efeitos estilísticos da expressão, para além do plano do conteúdo, como os recursos fônicos, métricos, rítmicos e sintáticos, bem como as figuras de pensamento e tropos retóricos. Não se trata de simples exercício de identificação e classificação, mas numa análise que procure mostrar as funções desses recursos na produção de sentido do texto, repousando a atenção no que podese chamar de “dimensão poética” da prosa de Raul Pompéia. Tratase de um exercício de imersão analítica, “ao rés do texto”, parágrafo a parágrafo, balizada por certa referência crítica (ANDRADE: 1973; IVO: 1976; PERRONEMOISÉS: 1988) e municiada pelos elementos da semiótica discursiva (FIORIN: 2013, 2014).
ANÁLISE §24 No dia da festa da educação física , como rezava o programa (programa de arromba, porque o secretário do diretor tinha o talento dos programas) não percebi a sensação de ermo tão acentuada em sítios montanhosos, que havia de notar depois. As galas do momento faziam sorrir a paisagem. O arvoredo do imenso jardim, entretecido a cores por mil bandeiras, brilhava ao sol vivo com o esplendor de estranha alegria; os vistosos panos, em meio da ramagem, fingiam flores colossais, numa caricatura extravagante de primavera; os galhos frutificavam em lanternas venezianas, pomos de papel enormes, de uma uberdade carnavalesca. Eu ia carregado, no impulso da multidão. Meu pai prendiame solidamente o pulso, que me não extraviasse.
Este parágrafo inicia propriamente a narração sobre a festa da educação física, logo após a descrição da “atmosfera moral da meditação e do estudo” que caracteriza o Ateneu. Opõese a “sensação de ermo” a elementos que “faziam sorrir a paisagem” (notese aí prosopopeia, atribuindo traços humanos a elementos inanimados, uma das figuras mais amplamente empregadas no romance), como o arvoredo “entretecido a cores”, “vistosos panos”, “flores colossais”, “primavera”, “os galhos frutificavam em lanternas venezianas”, “pomos de papel enormes” e “uberdade carnavalesca”. Destacase pela preciosidade da imagem a ideia de “uberdade carnavalesca”, ou seja, a fecundidade e, por extensão, fartura,
abundância relativa ao período de carnaval. Cada uma das imagens traz em si a ideia de ornamentação que pinta um ambiente festivo. É o quadro em que se desenrola toda a cena. §25 Mergulhado na onda, eu tinha que olhar para cima, para respirar. Adiante de mim, um sujeito mais próximo fezme rir; levava de fora a fralda da camisa… Mas não era fralda; verifiquei que era o lenço. Do chão subia um cheiro forte de canela pisada; através das árvores, com intervalos, passavam rajadas de música, como uma tempestade de filarmônicas. §26 Um último aperto mais rijo, estalandome as costelas, espremeume, por um estreito corte de muro, para o espaço livre.
A metáfora de estar “mergulhado na onda”, além de indicar a sensação de estar imerso em uma multidão em movimento, tem o sentido ampliado ao falar da necessidade de “olhar para cima” para respirar. Nestes parágrafos, quatro planos sensoriais diferentes são evocados: visão (“verifiquei”), olfato (“cheiro forte de canela pisada”), audição (“rajadas de música”) e tato (“espremeume”), em uma pluralidade de impressões. Qual a relevância narrativa da fralda que na verdade era um lenço? Por que cheiro de “canela pisada”? Tais referências parecem ser típicas reminiscências da infância, em que lembramonos de detalhes aparentemente aleatórios, mas que trazem toda a riqueza e a especificidade dos momentos marcantes. A descrição do “aperto mais rijo, estalandome as costelas” demonstra a violência da situação, contrastando a condição de impotência e fraqueza do narradorpersonagem diante da brutalidade da multidão. §27 Em frente, um gramal vastíssimo. Rodeavao uma ala de galhardetes, contentes no espaço, com o pitoresco dos tons enérgicos cantando vivo sobre a harmoniosa surdina do verde das montanhas. Por todos os lados apinhavase o povo. Voltandome, divisei, ao longo do muro, duas linhas de estrado com cadeiras quase exclusivamente ocupadas por senhoras, fulgindo os vestuários, em violenta confusão de colorido. Algumas protegiam o olhar com a mão enluvada, com o leque, à altura da fronte, contra a rutilação do dia num bloco de nuvens que crescia do céu. Acima do estrado balouçavam docemente e sussurravam bosquetes de bambu, projetando franjas longuíssimas de sombra pelo campo de relva.
Não escapa ao ouvido a redondilha maior no primeiro período do parágrafo: “Em fre nte, um gra mal vas tí ssimo”. O gramal é vastíssimo, mas a “ala de galhardetes” que o rodeia evoca a ordem militar (ala: conjunto de objetos dispostos de maneira ordenada e
simétrica; galhardete: pequena bandeira geralmente de forma triangular usada como insígnia de clube desportivo, unidade militar, embarcações, etc). Notemos a riqueza sinestésica da imagem: “ o pitoresco dos tons enérgicos cantando vivo sobre a harmoniosa surdina do verde das montanhas”. Em verso: o pito res co dos tons en ér gicos cantando vi vo sobre a harmo nio sa sur di na do v er de das mon ta nhas O esquema rítmico: // 9 // 9 /// 9 É fácil notar o ritmo compassado da frase, que poderia por si só ser um pequeno poema, em que os tons pitorescos e enérgicos contrastam com o harmonioso verde das montanhas. A descrição do ambiente segue: a “violenta confusão de colorido” das roupas das senhoras contrasta com os bambus que “balouçavam docemente e sussurravam”, projetando uma grande sombra sobre o campo. §28 Algumas damas empunhavam binóculos. Na direção dos binóculos distinguiase um movimento alvejante. Eram os rapazes. “Aí vêm! disseme meu pai; vão desfilar por diante da princesa.” A princesa imperial, Regente nessa época, achavase à direita em gracioso palanque de sarrafos.
O “movimento alvejante” é a movimentação dos rapazes em uniforme branco aproximandose para o desfile, enquanto são observadas pelas “damas”, em uma sugestão da situação de tensão erótica entre as moças e os rapazes. Podese aventar a possibilidade (tendo em vista a postura republicana do Autor) de a expressão “gracioso palanque de sarrafos” ser um escárnio, uma vez que “sarrafo” é dicionarizado como “qualquer pedaço de pau alongado e fino”, em sentido pejorativo. Por ser
um palanque da realeza, seria natural esperar uma figuração de requinte e bom gosto, mas não é o caso. §29 Momentos depois, adiantavamse por mim os alunos do Ateneu. Cerca de trezentos; produziamme a impressão do inumerável. Todos de branco, apertados em larga cinta vermelha, com alças de ferro sobre os quadris e na cabeça um pequeno gorro cingido por um cadarço de pontas livres. Ao ombro esquerdo traziam laços distintivos das turmas. Passaram a toque de clarim, sopesando os petrechos diversos dos exercícios. Primeira turma, os halteres; segunda, as maças; terceira, as barras.
As imagens tais como “todos de branco”, “alças de ferro”, “laços distintivos das turmas” e “toque de clarim” evocam um treinamento militar. A pontuação e o ritmo bem marcados da última frase do parágrafo (“Primeira turma, os halteres; segunda, as maças; terceira, as barras”) insinua o ritmo característico das ordens militares. Portanto, apesar de ser uma apresentação de alunos em uma escola, todo o percurso figurativo remete ao universo marcial. §30 Fechavam a marcha, desarmados, os que figurariam simplesmente nos exercícios gerais. §31 Depois de longa volta, a quatro de fundo, dispuseramse em pelotões, invadiram o gramal e, cadenciados pelo ritmo da banda de colegas, que os esperava no meio do campo, com a certeza de amestrada disciplina, produziram as manobras perfeitas de um exército sob o comando do mais raro instrutor.
“Fechavam a marcha”, “pelotões”, “ritmo da banda de colegas”, “a certeza de amestrada disciplina”, “manobras perfeitas de um exército” e “instrutor” são expressões tipicamente militares que deixam claro o caráter ordenado e sincronizado do desfile, com a valorização das ideias de simetria, ritmo e hierarquia. §32 Diante das fileiras, Bataillard, o professor de ginástica, exultava envergando a altivez do seu sucesso na extremada elegância do talhe, multiplicando por milagroso desdobramento o compêndio inteiro da capacidade profissional, exibida em galeria por uma série infinita de atitudes. A admiração hesitava a decidirse pela formosura masculina e rija da plástica de músculos a estalar o brim do uniforme, que ele trajava branco como os alunos, ou pela nervosa celeridade dos movimentos, efeito elétrico de lanterna mágica, respeitandose na variedade prodigiosa a unidade da correção suprema.
O nome do professor é relacionase à palavra francesa bataille , batalha, reforçando o tom bélico da cena. Novamente a frase se destaca tanto pela riqueza da imagem quanto pela cadência do ritmo. Em verso: exul ta va enver gan do a alti vez do seu su ce sso na extre ma da ele gâ ncia do t a lhe, multipli can do por mila gro so desdobra men to Notemos o esquema rítmico: /// 9 / 4 /// 9 / 4 / 4 / 4 A sequência de palavras de sentido expansivo, com vogais tônicas abertas, provoca um acúmulo semântico que desenha o professor de ginástica como um personagem superviril, espécie de semideus. Não sabese o que admirar mais: se a “formosura masculina e rija da plástica de músculos” ou a “nervosa celeridade dos movimentos”. Há uma sobreposição entre duas qualidades: a beleza da forma (“plástica”) e a habilidade dos movimentos (“correção suprema”), em um elogio altamente erótico. A referência ao “efeito elétrico de lanterna mágica” provavelmente diz respeito aos primeiros cinematógrafos que projetavam imagens em movimento, e quis simbolizar um movimento rápido e volátil. §33 Ao peito tilintavamse as agulhetas do comando, apenas de cordões vermelhos em trança. Ele dava as ordens fortemente, com uma vibração penetrante de corneta que dominava à distância, e
sorria à docilidade mecânica dos rapazes. Como oficiais subalternos, auxiliavamno os chefes de turma, postados devidamente com os pelotões, sacudindo à manga distintivos de fita verde e canutilho.
O plano de leitura erótico ganha novos elementos que o reforçam: “Dava ordens fortemente”, “vibração penetrante”, “dominava”, “sorria à docilidade mecânica dos rapazes”. Os elementos do campo semântico da ordem militar e os elementos do campo semântico da dominação sexual se sobrepõem em uma dupla possibilidade de leitura, desenvolvendose sobre a oposição /força/ versus /fraqueza/, ou /ordem/ versus /obediência/. A hierarquia é representada pelos distintivos: “cordões vermelhos em trança” para o professor e “distintivos de fita verde e canutilho” para os chefes de turma. §34 Acabadas as evoluções, apresentaramse os exercícios. Músculos do braço, músculos do tronco, tendões dos jarretes, a teoria toda do corpore sano foi praticada valentemente ali, precisamente, com a simultaneidade exata das extensas máquinas. Houve após, o assalto aos aparelhos. Os aparelhos alinhavamse a uma banda do campo, a começar do palanque da Regente. Não posso dar ideia do deslumbramento que me ficou desta parte. Uma desordem de contorções, deslocadas e atrevidas; uma vertigem de volteios à barra fixa, temeridades acrobáticas ao trapézio, às perchas, às cordas, às escadas; pirâmides humanas sobre as paralelas, deformandose para os lados em curvas de braços e ostentações vigorosas de tórax; formas de estatuária viva, trêmulas de esforço, deixando adivinhar de longe o estalido dos ossos desarticulados; posturas de transfiguração sobre invisível apoio; aqui e ali uma cabecinha loura, cabelos em desordem cacheados à testa, um rosto injetado pela inversão do corpo, lábios entreabertos ofegando, olhos semicerrados para escapar à areia dos sapatos, costas de suor, colando a blusa em pasta, gorros sem dono que caíam do alto e juncavam a terra; movimento, entusiasmo por toda a parte e a soalheira, branca nos uniformes, queimando os últimos fogos da glória diurna sobre aquele triunfo espetaculoso da saúde, da força, da mocidade.
O começo do parágrafo forma outra sequência que, se espalhada em verso, encaixase no metro e mantém certa regularidade rítmica. Aca ba das as evolu ções , apresen ta ramse os exer cí cios. Mús culos do b ra ço, mús culos do t ron co, ten dões dos ja rre tes,
a teoria t o da do c o rpore s a no foi prati ca da valente men te al i precisa men te, com a simultanei da de e xa ta das ex ten sas m á quinas. // 9 // 9 / 5 / 5 // 5 /// 11 /// 11 // 11 /// 8 Os exercícios são aproximados semanticamente à noção de /ordem/ do movimento reificado das máquinas, mas em seguida, nos aparelhos, para deslumbramento do narradorpersonagem, uma sequência de adjetivos relacionados à ideia de /caos/ se desenrola (“desordem de contorções”, “vertigem”, “deformandose”, “trêmulas”, “desarticulados”, “transfiguração”, “cabelos em desordem”, “caíam”), pintando uma cena agitada, movimentada, confusa, mas um “triunfo espetaculoso da saúde, da força, da mocidade”. Com as descrições dos corpos masculinos, agregamse elementos do plano de leitura erótico: “curvas de braços e ostentações vigorosas de tórax”, “formas de estatuária viva”, “lábios entreabertos ofegando”, “costas de suor, colando a blusa em pasta”. §35 O Professor Bataillard, enrubescido de agitação, rouco de comandar, chorava de prazer. Abraçava os rapazes indistintamente. Duas bandas militares revezavamse ativamente, comunicando a animação à massa dos espectadores. O coração pulavame no peito com um alvoroço novo, que me arrastava para o meio dos alunos, numa leva ardente de fraternidade. Eu batia palmas; gritos escapavamme, de que me arrependia quando alguém me olhava.
Durante o clímax da apresentação, enquanto o professor “chorava de prazer” e as bandas “ativamente” mantinham a “animação” do público, há um momento de euforia do
narrador, “um alvoroço novo”, pois ele se identifica com toda a agitação e nutre um sentimento de pertencimento (“leva ardente de fraternidade”) em relação aos alunos. Mas há uma disforia entre a ação e a intenção, na medida em que o narrador deixa escapar sua volição, mas sentese reprimido pelos olhares dos alunos. Sua compleição frágil e seu temperamento tímido tornamo vulnerável à situação social, de modo que suas expansões são refreadas. §36 Deram fim à festa os saltos, os páreos de carreira, as lutas romanas e a distribuição dos prêmios de ginástica, que a mão egrégia da Sereníssima Princesa e a pouco menos do Esposo Augusto alfinetavam sobre os peitos vencedores. Foi de verse os jovens atletas aos pares aferrados, empuxandose, constringindose, rodopiando, rolando na relva com gritos satisfeitos e arquejos de arrancada; os corredores, alguns em rigor, respiração medida, beiços unidos, punhos cerrados contra o corpo, passo miúdo e vertiginoso; outros, irregulares, bracejantes prodigalizando pernadas, rasgando o ar a pontapés, numa precipitação desengonçada de avestruz, chegando estofados, com placas de poeira na cara, ao poste da vitória.
Depois da exibição, os atletas aparecem já com outro aspecto, mais condizentes com a imagem de jovens que brincam, “empuxandose, constringindose, rodopiando”, em contraste com a aristocrática figura da “Sereníssima Princesa” com sua “mão egrégia”, premiando os vencedores. Outro contraste é o dos jovens “corredores”, de “passo miúdo e vertiginoso”, e os jovens “irregulares”, “rasgando o ar a pontapés, numa precipitação desengonçada de avestruz”, deixando claro que, para além da aparência homogênea da apresentação, há toda uma pluralidade de tipos, corpos, habilidades e personalidades. §37 Aristarco arrebentava de júbilo. Pusera de parte o comedimento soberano que eu lhe admirara na primeira festa. De ponto em branco, como a rapaziada, e chapéudochile, distribuíase numa ubiqüidade impossível de meio ambiente. Viamno ao mesmo tempo a festejar os príncipes com o risinho nasal, cabritante, entre lisonjeiro e irônico, desfeito em etiquetas de reverente súdito e cortesão; viamno bradando ao professor de ginástica, a gesticular com o chapéu seguro pela copa; viamno formidável, com o perfil leonino rugir sobre um discípulo que fugira aos trabalhos, sobre outro que tinha limo nos joelhos, de haver lutado em lugar úmido, gastando tal veemência no ralho, que chegava a ser carinhoso.
Aristarco aparece em seu lado jovial, preparado para a festa, “de ponto em branco”, ou seja, bem arrumado, e com “chapéudochile” (variante do chapéu panamá), conseguindo
dividirse em vários espaços (“ubiquidade impossível de meio ambiente”). A descrição do seu “risinho nasal, cabritante, entre lisonjeiro e irônico” figurativiza a personalidade frívola e interessada, dúbia, que pode estar ou não falando a verdade, a depender da interpretação da situação. O riso “cabritante” é uma figura inusitada que atribui uma qualidade de cabra, os pequenos saltos da cabra, ao riso, para referirse a um riso entrecortado. Outro elemento contraditório, que traz um sentido novo à personagem, é o absurdo do trecho: “gastando tal veemência no ralho, que chegava a ser carinhoso”, que evoca uma figura paterna, severa e carinhosa, em aparente contradição. §38 O figurino campestre rejuvenescerao. Sentia as pernas leves e percorria celerípede a frente dos estrados, cheio de cumprimentos para os convidados especiais e de interjetivos amáveis para todos. Perpassava como uma visão de brim claro, súbito extinta para reaparecer mais viva noutro ponto. Aquela expansão vencianos; ele irradiava de si, sobre os alunos, sobre os espectadores, o magnetismo dominador dos estandartes de batalha. Roubavanos dois terços da atenção que os exercícios pediam; indenizavanos com o equivalente em surpresas de vivacidade, que desprendia de si, profusamente, por erupções de jorro em roda, por ascensões cobrejantes de girândola, que iam às nuvens, que baixavam depois serenamente, diluídas na viração da tarde, que os pulmões bebiam. Ator profundo, realizava ao pé da letra, a valer, o papel diáfano, sutil, metafísico, de alma da festa e alma do seu instituto.
Os conceitos que se ligam a Aristarco são todos de ordem expansiva: “irradiava”, “magnetismo dominador”, “surpresas de vivacidade”, “profusamente” etc. Mas uma imagem chama a atenção pela construção. Notemos como ficaria em verso: Roubavanos dois terços da atenção que os exercícios pediam; indenizavanos com o equivalente em surpresas de vivacidade, que desprendia de si, profusamente, por erupções de jorro em roda, por ascensões cobrejantes de girândola, que iam às nuvens, que baixavam depois serenamente, diluídas na viração da tarde,
que os pulmões bebiam. Não é o metro, a rima ou o ritmo que chamam a atenção, mas a riqueza de cada imagem, que isoladas em versos (brancos, livres) se destacam. Neste “poema” é descrita em uma metáfora pirotécnica a efusão da expressividade de Aristarco, desprendendo “erupções de jorro em roda”, ou seja, lançandose para todos os lados, “por ascensões (subidas, elevações) cobrejantes (que se movimentam como cobras) de girândola (utensílio pirotécnico usado para queimar muitos foguetes ao mesmo tempo)”. Tais ascensões sobem às nuvens, baixam, diluemse nos ventos da tarde e são absorvidas pelos pulmões (os pulmões bebiam). §39 Uma coisa o entristeceu, um pequenino escândalo. Seu filho Jorge, na distribuição dos prêmios, recusarase a beijar a mão da princesa, como faziam todos ao receber a medalha. Era republicano o pirralho! Tinha já aos quinze anos as convicções ossificadas na espinha inflexível do caráter! Ninguém mostrou perceber a bravura. Aristarco, porém, chamou o menino à parte. Encarouo silenciosamente e — nada mais. E ninguém mais viu o republicano! Consumirase naturalmente o infeliz, cremado ao fogo daquele olhar! Nesse momento as bandas tocavam o hino da monarquia jurada, última verba do programa.
A indisciplina de Jorge, apesar de ser repreendida severamente, é tratada pelo narrador nos seguintes termos: “Era republicano o pirralho! Tinha já aos quinze anos as convicções ossificadas na espinha inflexível do caráter!”, ou seja, o republicanismo (“convicções ossificadas”) é identificado a uma virtude moral (“espinha inflexível do caráter”), em, contraste com a severa admoestação de Aristarco. Naturalmente, se pensarmos na inclinação republicana do autor, Raul Pompéia, compreendemos o simbolismo de negarse a beijar a mão da nobreza. A metáfora “Consumirase naturalmente o infeliz, cremado ao fogo daquele olhar!” tem como elemento inusitado o “naturalmente”. De que se trata essa natureza? Por que naturalmente? Por causa do ambiente de simpatia à monarquia, hostil a manifestações republicanas, onde o “fogo” dos olhares e dos julgamentos consumiriam “naturalmente” uma iconoclastia como essa. No trecho “Nesse momento as bandas tocavam o hino da monarquia jurada, última verba do programa”, a palavra “verba” aparece em sua acepção jurídica: cada uma das cláusulas elencadas num documento ou escritura. O acoplamento de “verba” a “hino da
monarquia jurada” reforça a ideia de institucionalidade e naturalização do regime monárquico no evento, reforçando o caráter subversivo do garoto republicano. §40 Começava a anoitecer, quando o colégio formou ao toque de recolher. Desfilaram aclamados, entre alas de povo, e se foram do campo, cantando alegremente uma canção escolar.
Concentramse no parágrafo três termos relacionadas à ideia de /fim/: “anoitecer” (fim do dia), “toque de recolher” e “se foram do campo” (fim da festa). Tal concentração, aliada à ideia de /ordem/ (“entre alas de povo”) e /felicidade/ (“cantando alegremente”) encerra a cena da festa da educação física.
BIBLIOGRAFIA ALI, M. Said. Versificação Portuguesa , São Paulo, Edusp, 1999 ANDRADE, Mário de. Aspectos da Literatura Brasileira . 4. e d. São Paulo: Ed. Martins, 1972.
CANDIDO, Antônio. O estudo a nalítico do poema . São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1996. FIORIN, José Luiz. F iguras de retórica . São Paulo: Contexto, 2014. FIORIN, José Luiz. E lementos de Análise do Discurso . 15. ed. São Paulo: Contexto, 2013. IVO, Ledo. O universo poético de Raul Pompéia . Rio de Janeiro: Livraria São José, 1963. PERRONE–MOISÉS, L. O Ateneu: retórica e paixão . São Paulo: Brasiliense, 1988. PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética . São Paulo, Ateliê Editorial, 2006. POMPÉIA, Raul. O Ateneu: crônica de saudades . São Paulo, Editora FTD, 1996.
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