Ritornelo e revolução: o momento musical em Angelopoulos e Jancsó. In: SOCINE Anais de Textos Completos (2015). pp. 665-669.

May 22, 2017 | Autor: Jocimar Dias Jr. | Categoria: Film Music And Sound, Film musicals, Theo Angelopoulos, Miklos Jancso
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Ritornelo e revolução: o momento musical em Angelopoulos e Jancsó1 Ritornello and revolution: the musical moment in Angelopoulos and Jancsó 2

Jocimar Dias Jr. (Mestrado – UFF) Resumo: Este trabalho busca analisar a presença de "momentos musicais" nos filmes dirigidos por Theo Angelopoulos e Miklós Jancsó, diante da recorrência da encenação de personagens cantando à capela -- sozinhos ou em grandes multidões. Em que medida estes realizadores se aproximam ou se distanciam do cânone do gênero musical? Quais relações podem ser estabelecidas entre o conceito de “ritornelo” (em Deleuze e Guattari) e estes momentos em que a música cantada adquire maior relevância narrativa? Palavras-chave: Momento musical, ritornelo, distopia, Angelopoulos, Jancsó. Abstract: This paper seeks to analyze the presence of “musical moments” in films directed by Theo Angelopoulos and Miklós Jancsó, once their characters often sing a capella (by themselves or in large groups) in many scenes. How do these filmmakers approach or take a distance from the musical film genre? How can we connect Deleuze and Guattari's concept of ritornello and these moments in which the music acquires more narrative relevance? Keywords: Musical moment, ritornello, dystopia, Angelopoulos, Jancsó.

Em uma das cenas mais marcantes de A Viagem dos Comediantes (1975) do cineasta grego Theo Angelopoulos, Electra (Eva Kotamanidou) presencia um verdadeiro “duelo musical” desenrolarse no interior de uma taverna. Neste plano-sequência, ao invés da agressão física, o embate político entre os partidários da direita monárquica e os representantes da esquerda comunista é travado musicalmente: de maneira alternada, os grupos entoam canções embebidas de seus fervorosos discursos ideológicos, à capela. A disputa termina com a derradeira expulsão dos comunistas desarmados, após um tiro para o alto dos monarquistas. Estes, numa valsa da vitória, passam a 1

Trabalho apresentado no XIX Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão: Ensaio e pensamento no audiovisual (painel), em 21/10/2015. 2 Jocimar Dias Jr. é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF), onde desenvolve pesquisa intitulada "Ritornelo e Revolução: O momento musical nos filmes de Theo Angelopoulos e Miklos Jancsó". E-mail: [email protected].

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ocupar completamente o espaço antes dividido. Petrificada ao pé da porta, Electra assiste a tudo, tal qual à um espetáculo musical. Encenação similar aparece em Salmo Vermelho (1972), dirigido pelo cineasta húngaro Miklós Jancsó. Perto do final do filme, dezenas de camponeses revoltosos descem uma colina abraçados e cantando (à capela) sobre o triunfo da luta dos trabalhadores, comemorando as recentes conquistas da revolução. Aos poucos, soldados desarmados vão se incorporando ao grupo, abraçando-os e reforçando o coro. Surge música instrumental que aos poucos se revela diegética: a banda dos militares passou a acompanhá-los. Após o discurso de um dos líderes do movimento, segue-se um grande plano geral no qual uma multidão de camponeses dança ao som da banda que ainda está a tocar; os militares voltam a se misturar com o povo e confraternizar. Porém, após o soar de uma trombeta, estes abandonam a festa, recuperam suas armas e formam um grande círculo ao redor dos trabalhadores, encurralando-os. A aparente cooperação revela-se uma emboscada, o momento musical é cruelmente interrompido: o plano termina com os corpos dos camponeses desabando inertes ao chão, após a enxurrada de tiros desferida covardemente pelo pelotão. A

partir

destas

duas

descrições, que

aproximações

podem-se

estabelecer

entre

Angelopoulos e Jancsó, para além da recorrência do plano-sequência? Ambos os cineastas utilizamse da música à capela – geralmente canções populares, folclóricas ou de protesto – para encenar as transformações políticas em suas narrativas históricas. Planos estáticos e de longa duração por vezes transferem a atenção do que se vê para o que se ouve. Destaca-se o conteúdo das canções justamente pela recusa ao uso da música de fundo: o resultado são personagens que cantam suas posições ideológicas, à capela ou acompanhados estritamente de música diegeticamente justificada. Oscilando entre um registro “realista” e uma encenação intensamente alegórica, tais performances musicais desdramatizadas interpelam diretamente a plateia, buscam produzir uma inquietação e um distanciamento crítico por parte do espectador – em termos brechtianos mesmo, uma música que funciona como comentário à trama e que “deve resistir fortemente à incorporação suave que geralmente se espera dela” (BRECHT, 1948 In: BRANDT, 1998, p. 245). A partir do conceito de “momento musical” de Amy Herzog, poderíamos considerar estas cenas como “momentos musicais”, ou seja, momentos em que a hierarquia entre imagem e som inverte-se, e a música passa a exercer uma “força dominante” sobre a obra fílmica, chamando atenção para si mesma e para seu conteúdo (HERZOG, 2010, p. 6). Mais simples e ao mesmo tempo

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mais abrangente que a ideia de “número musical”, este conceito serve-nos para analisar obras que propõem intertextualidades com o denominado gênero musical sem necessariamente encaixar-se no cânone do mesmo, ou que inclusive o questionam ou o subvertem. É o caso destes filmes que, por exemplo, ao negarem o acompanhamento sonoro extradiegético das canções, negam a transição suave para o número musical – a deixa para a canção (cue-for-a-song), introdução instrumental apontada como componente sintático importante da estrutura do musical (ALTMAN, 1987). Outra convenção que estes filmes parecem recusar é a suposta sensação de utopia que permeia as narrativas dos musicais. Para Richard Dyer, nos musicais americanos, há constante oposição entre as partes não-musicais (representativas, que se assemelham à “realidade”) e as partes musicais (não-representativas, utópicas). O entretenimento do espectador é alcançado com êxito através da “sensação de utopia” dos números musicais, que resolvem os conflitos da narrativa através de respostas utópicas aos mesmos. Assim, em contraponto à manipulação e à falsidade da vida cotidiana, temos personagens que cantam seus sentimentos abertamente uns aos outros (transparência emocional); ao invés de individualismo e fragmentação, todos cantam e dançam juntos de maneira coreografada (sensação de coletividade, comunidade), entre outros exemplos. Estas resoluções são escapistas e ilusórias, na medida em que os “males do capitalismo” são remediados por respostas que se inserem na própria lógica capitalista da sociedade (DYER, 2002). Acredito que tanto Angelopoulos quanto Jancsó utilizam-se da antecipação da repetição de certos padrões tão somente para introduzir uma diferença que subverte o que era esperado, através de mecanismos de distanciamento brechtiano – seja a ausência de acompanhamento sonoro, a desdramatização, ou mesmo a interrupção brusca da performance. Criam performances musicais marcadas pela incompletude, pela falha: “imagens musicais falhadas” (“failed musical image”), cujo desconforto produzido provoca “indeterminação e significados não-fixos” e permite “a geração de leituras críticas e pensamento criativo” (HERZOG, 2010, p. 4). Assim, a sensação de utopia que poderia ser experimentada é desestabilizada, questionada e, por fim, substituída por uma sensação de distopia: convida-se a uma espectatorialidade incômoda e reflexiva, através do olhar crítico e melancólico dos cineastas sobre a história de seus países (Grécia e Hungria, respectivamente). Por fim, uma aproximação entre “momento musical” e o conceito de “ritornelo” parece pertinente. Tanto Angelopoulos quanto Jancsó filmam momentos de instabilidade política, de questionamento da ideia de nação, de acirramento dos embates ideológicos. É através das canções

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que os personagens agenciam seus territórios, articulam suas ideias, se mobilizam ou se confrontam. Seriam estes momentos musicais “ritornelos”? O conceito de “ritornelo” é definido em linhas gerais por Gilles Deleuze e Félix Guattari como “todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais” (2012, p. 139) e no qual o componente sonoro (música, canto, melodia) possui um papel de destaque nos agenciamentos territoriais (territorializações, reterritorializações e desterritorializações). Um exemplo de ritornelo dado pelos autores é a melodia que o pássaro canta enquanto está construindo seu ninho – mas também é ritornelo todos os agenciamentos que rodeiam este fenômeno, como buscar os galhos que serão matéria-prima da estrutura que será edificada. Importante atentar que tais agenciamentos não são estanques nem acontecem de forma gradual e evolutiva, mas estão em constante articulação e sopreposição uns nos outros:

Não são três momentos sucessivos numa evolução. São três aspectos numa só e mesma coisa, o Ritornelo. [...] O ritornelo tem os três aspectos, e os torna simultâneos ou os mistura: ora, ora, ora. Ora o caos é um imenso buraco negro, e nos esforçamos para fixar nele um ponto frágil como centro. Ora organizamos em torno do ponto uma "pose" (mais do que uma forma) calma e estável: o buraco negro tornou-se um em-casa. Ora enxertamos uma escapada nessa pose, para fora do buraco negro (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 123). Podemos ler vários níveis de agenciamentos sonoro-territoriais sendo encenados ao longo dos filmes – estes não se restringem às cenas de grandes multidões em protesto, onde o conflito territorial estaria mais evidente, mas também estão presentes nas sequências mais intimistas. Em A Viagem dos Comediantes, Crisótemis (Maria Vassiliou) despe-se para o mercador como forma de pagá-lo por uma garrafa de óleo, cobrindo os seios, a jovem começa a cantar uma leve canção em busca de reconforto, claramente sem qualquer talento ou vontade de fazê-lo, enquanto o mercador se masturba de costas para a câmera. O contraste entre o conteúdo da música e a situação de constrangimento e humilhação vivida pela personagem produz um efeito angustiante. A personagem, tal

qual

uma

criança

no

escuro

se

tranquiliza

dos

seus

medos

cantarolando,

busca

desesperadamente por “um centro estável e calmo, estabilizador e tranquilizante, em meio ao caos” e, através das canção, cria “muros sonoros” para si mesma, se pensarmos nos termos de Deleuze e Guattari (2012., p. 122). Na sequência final de Salmo Vermelho, após a supressão completa da revolução pelas forças militares, é cantarolando sozinha o hino contra a opressão dos trabalhadores

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que Nagy Mária (Andrea Drahota) encontra forças para empunhar a pistola roubada e desferir os derradeiros tiros contra o exército: a luta ainda não havia acabado, só esperava para renascer. Se há algo na “forma” destes filmes que de alguma maneira corrobora o “conteúdo”, então poderíamos levantar a hipótese de que os momentos musicais seriam falhos, interrompidos, porque os agenciamentos territoriais estão sendo constantemente perpassados e sobrepostos por outros agenciamentos, motivos e contrapontos territoriais. Um certo grau de incompletude faz parte dos ritornelos, dos fluxos contínuos de (des-/re-)territorialização espacial e ideológica que acontecem ao longo da narrativa, e este aspecto aparece de alguma maneira na encenação. Tentei apresentar aqui neste pequeno artigo os principais pontos de partida e inquietações desta pesquisa ainda em andamento, cujo principal desafio será pensar de que maneiras o conceito de ritornelo como ferramenta teórica ajuda a levantar questões sobre os momentos musicais interrompidos destes filmes e suas representações distópicas, revisitando a obra de Angelopoulos e Jancsó com ênfase no uso do som por estes dois cineastas.

Referências ALTMAN, Rick. The American Film Musical. Indianapolis: Indiana University Press, 1987. BORDWELL, David. “Angelopoulos, ou A Melancolia”. In: Figuras traçadas na luz: A encenação no cinema. Campinas: Papirus, 2008. BRECHT, Bertold (1948). "The Modern Theatre is the Epic Theatre: Notes to the Opera Rise and Fall of the Town of Mahagonny (1930)" e "A Short Organum for the Theatre". In: BRANDT, George W. Modern Theories of Drama. Oxford University Press, 1998. FAINARU, Dan. Theo Angelopoulos: Interviews. Jackson: University of Mississipi Press, 2001. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. "Acerca do ritornelo". In: Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2, vol. 4. São Paulo: Editora 34, 2005. DYER, Richard. "Entertainment and Utopia". In: COHAN, Steven (org.) Hollywood Musicals, The Film Reader. New York: Routledge, 2002. HERZOG, Amy. Dreams of Difference, Songs of the Same: The Musical Moment in Film. Minnesota: University of Minnesota Press, 2010. HORTON, Andrew. The Films of Theo Angelopoulos: A Cinema of Contemplation. Princeton: Princeton University Press, 1997. RUCINSKI, Krzysztof. History as Ritual: Camera Movement and Narrative Structure in Films of Miklós Jancsó. Dissertação (Mestrado) – Concordia University, Montreal, Quebec, 2004.

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