Rizoma e Autopoiésis: a dança entre o encontro dos corpos. Autonomia, agenciamento e interdependência

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FAV - Faculdade Angel Vianna
Monografia de Conclusão de Curso em Licenciatura Plena em Dança.

















Rizoma e Autopoiesis: a dança entre o encontro dos corpos.
Autonomia, agenciamento e interdependência.

















Orientador: Profa. Hélia Borges
Autor: Henrique de Castro Schuler
Rio de Janeiro, jun/2004



O objeto dessa monografia assume um caráter artístico-pedagógico na medida em que busca relacionar as áreas da performance, educação e criação de danças. Nesta abordagem são priorizados os processos dinâmicos das relações interpessoais — o que inclui a relação de transversalidade, transubjetividade e a interdependência indivíduo-ambiente.
A complexidade deste tema levou à escolha de uma conduta metodológica multidisciplinar, ao incluir conceitos relativos às artes, à filosofia, à biologia, à psicologia, à pedagogia; e a interação de várias mídias, criando uma relação sinestésica entre os elementos e códigos das linguagens, do teatro, do vídeo, da literatura e da música, como também entre os elementos das diversas manifestações das danças marcadas nos corpos dos participantes e surgidas das experiências intensivas nos laboratórios de improvisação.
Estas linguagens se entrelaçaram nas aulas dialogando com as experiências através do movimento improvisado. As aulas foram ministradas durante um semestre em três contextos específicos: aulas com 1h:30m no curso livre (com um grupo flutuante e heterogêneo no que diz respeito a faixa etária, sexo, classe social, grau de instrução, profissão e nacionalidade); aulas de 1h:15m no curso técnico em dança contemporânea (com grupo heterogêneo, mas com um maior grau de afinidades em relação às categorias acima listadas).
Este trabalho se destinou, inicialmente, aos estudantes de dança contemporânea dos cursos livre, técnico e da graduação em Licenciatura Plena de Dança Contemporânea da Escola e Faculdade Angel Vianna. Dando prosseguimento às experimentações junto aos alunos da instituição, foi realizada uma sessão aberta de improvisação constituindo uma síntese das práticas anteriores com duração de 3 horas, acompanhada de um debate e participação de um público heterogêneo. Para finalizar, o processo culminou num evento multimìdia1: uma performance interativa entre os alunos e o público, contando ainda com a participação de profissionais convidados nas áreas do vídeo, da música, do teatro, das artes plásticas, entre outros.
Nas aulas práticas que serviram para o desenvolvimento do texto monográfico experimentamos dispositivos de improvisação com ênfase no Contato Improviso. A opção por esse tipo de abordagem deve-se ao fato desta permitir uma experiência abrangente em relação à dança, dando espaço à manifestação de diversas matérias de expressão — estilísticas, individuais, culturais, sociais e políticas. Portanto adequada para acompanhar o caráter imprevisível, múltiplo e mutável dessa investigação. Os sentidos de coletividade e cooperação são também evidenciados nestas incursões via o movimento improvisado em grupo, dirigindo o foco de observação para as regiões fronteiriças (não no sentido de linha de demarcação ou de uma delimitação, mas como região movediça de trânsito e mutação: as interfaces entre os sujeitos; sujeitos e ambientes; as possíveis vias de mão dupla), para criar conexões instaurando o movimento e restaurando seus aspectos de vitalidade.
Acompanhar os movimentos mútuos sujeito-mundo em constante transformação é um dos mais importantes pressupostos na área da educação: seja no entrecruzamento de informações, na escolha e emprego de ferramentas pedagógicas e/ou na produção de novos modos de conhecer.
A finalidade desta monografia é desenvolver uma abordagem integrada dos aspectos prático e teórico com aplicação no ensino-aprendizado da dança. Esta abordagem prático-teórica propõe questões referentes às ações potencializadoras, à produção de conhecimento e à práxis criativa, estimuladas pelo que ocorre entre os corpos em movimento e o espaço que se instaura entre e a partir desses encontros na dança. Com ênfase na pesquisa em grupo — portanto nas relações que se estabelecem nas experiências em coletividade — houve sempre encorajamento para desenvolvermos o sentido de autonomia, agenciamento e interdependência concernentes às relações em sala de aula, com o ambiente da cena e na investida para pensar e articular elementos coreográficos.
Em todas essas instâncias nos propúnhamos constantemente investigar novas formas de movimento através do compartilhamento de informações para ampliar o vocabulário de movimento e o repertório gestual. Com isso podemos estimular a percepção e a inteligibilidade através de jogos com estes movimentos e elaborarmos e desenvolvermos nossos trabalhos com os materiais surgidos nas improvisações. Outra implicação neste processo foi o de se dispor a estar sempre pronto para redimensionar e acolher novas configurações de movimento de acordo com cada novo contexto instaurado. Buscamos, também, desenvolver os sensos de:
a) Autonomia, no engajamento do próprio corpo com o movimento e ao propô-lo novos desafios e tipos de conexões — anatômicas, fisiológicas, psíquicas, estéticas, sociais, etc.;
b) Agenciamentos, percebendo os desdobramentos das conexões engendradas nos encontros e nos contatos simultâneos com o próprio corpo, com os outros corpos e com todos os elementos em jogo durante as experiências com o movimento.
c) Interdependência, na compreensão do movimento como condutor dos fluxos de virtualidade (devires) entre os corpos e entre estes e o ambiente, concebendo o movimento como ponte de ligação, trânsito e manutenção de tensões dinâmicas entre os corpos.
Outro ponto consistiu em correlacionar a reflexão teórica e as atividades práticas, restaurando seu caráter de indissociabilidade.
Ao considerar o caráter da heterogeneidade no contexto coletivo, importa à nossa percepção estar alerta acerca das afinidades individuais para que as diferenças — pessoais, estilísticas, culturais, técnicas, estéticas etc. — sejam acolhidas como questões valiosas, favorecendo a comunicação e a emergência de novas matérias de expressão. As manobras pedagógicas neste trabalho propuseram estratégias visando um acolhimento de múltiplas manifestações da dança, levando sempre em conta os tópicos acima relacionados, nas relações do indivíduo e do mundo ao se reconhecerem mutuamente contextualizados na celebração da vida.
Esta pesquisa que se completa neste registro teórico, aponta a importância de se restituir o princípio da autonomia do corpo para redimensionar a noção de interdependência dos seus aspectos psicofísicos na produção de conhecimento. Reapropriá-lo, restaurando, ao mesmo tempo, sua tendência para agenciar-se, estabelecer conexões através do movimento e levar à ampliação dos atributos afectivo-percepto-motores nos processos ininterruptos de transformação mútua indivíduo-mundo.
No mundo já está sedimentada, através de séculos de tradição do pensamento ocidental, uma ênfase na comunicação através da palavra e a hierarquização da mente sobre o corpo; tratando-os como instâncias separadas, instituindo uma cisão que é duplamente semeada e acolhida ainda hoje como verdade absoluta pelo senso comum. Para a realização da tarefa de transvalorar esta realidade, a dança pode ser, por um lado, liberadora, porém corre-se o risco, por outro lado, de ela ser vivenciada de forma totalmente aprisionante e servir como instrumento de poder e controle da subjetividade pelas facetas tirânicas incutidas e cultivadas tanto por profissionais que lidam com o corpo como até mesmo por cada um de nós, a partir de uma escolha consciente ou não. Algumas práticas de abordagem do movimento e diversas concepções de dança operam nos corpos adestrando-os, domesticando-os, tornando-os dóceis, despotencializando-os e reforçando esta condição de não pertencimento do corpo, destituindo o indivíduo de sua existência criativa e instaurando a interdição de se viver o mais básico sentido no mundo: o sentido de estabelecer conexões. Em seus questionamentos e aplicação do Sistema Laban para contribuir com o melhoramento das práticas de ensino no sistema educacional vigente, Peggy Hackney faz notar que:

As políticas e os processos governamentais na área da educação não estão funcionando! Seres humanos educados, confiantes, potencializados e espiritualizados não estão surgindo dos 12-16 anos sentados em carteiras, lendo livros, e ouvindo palestras. Temos sabido disso há muitos anos. E agora nós sabemos que isto não tem que ser assim. O que nos confronta com um desafio: Estaremos prontos para o risco de tomarmos uma atitude em relação a isto? Estaremos prontos para avaliar: Conhecimento pré-consciente? Conhecimento pré-verbal? Conhecimento corporal? Corpo como Inteligência? Expressões do seu corpo como gerador de conhecimento? Estaremos prontos para ensinar cada uma dessas esferas do conhecimento? Como você responderia esta questão? 2

O caráter imprevisível, dinâmico e inclusivo desta visão sobre o eixo ensino-aprendizado aqui discutida, tem sua importância justificada por promover, cada vez mais relações horizontais e uma abertura para diferentes modos de apreensão do mundo sem, no entanto, que as diversas formas de inteligibilidade se situem necessariamente isoladas umas das outras, mas sim que, quando postas em diálogo, estabeleçam conexões criando novas articulações entre os saberes, sejam eles informais ou acadêmicos. Esta horizontalidade será abordada em três instâncias relacionais:
1. professor-estudante
2. coreógrafo-bailarino
3. público-equipe cénica (técnicos e performers).
Desta forma, estes pares (em geral dicotomizados) serão problematizados para que a partir deles os espaços destas categorias revelem outras possibilidades de se pensá-los, mantendo-nos constantemente na atividade inventiva de reformatá-los, reeditá-los, considerando sempre o seu caráter de mutabilidade em conexão com o fluxo da vida. Portanto não seria uma simples mudança dessas configurações, mas uma transmigração através dos diferentes meios, maneiras, atitudes, caminhos, posicionamentos e interferências engendradas pelos processos relacionais. Isto tudo sempre sem perder de vista as singularidades específicas de cada acontecimento que ocorra entre esses três pares e seus prováveis e possíveis momentos de entrelaçamento.
O exercício de lidar com as diferenças, justifica a relevância do conteúdo dessa investigação na medida em que promove novas formas de interação nas relações socioculturais. É importante compreender essas mesmas diferenças como matéria fundamental de comunicação e possível mecanismo de dissolução dos preconceitos: códigos cristalizados, condutas prefixadas e/ou modelos preestabelecidos. O acolhimento dessas diferenças faz com que possam surgir, a partir dela, múltiplas estratégias de dinamização e atualização relativas às escolhas de procedimentos éticos, pedagógicos e estéticos envolvidos em cada novo contexto.
É também relevante atentar para a questão do desenvolvimento de uma percepção extra-cotidiana, não numa concepção transcendental, mas sim de deslocamentos e descolamentos da percepção ordinária, cujo foco em geral se mantém associado a uma conduta interpretativa, fixada e embotada, ora pelas tarefas rotineiras, ora pelas regras instituídas e/ou pelas verdades institucionalizadas. No próprio processo do desenvolvimento científico ao longo da história, observa-se a parcialidade das verdades e frequentes substituições de afirmações, válidas numa determinada época, por outras mais afinadas com o tipo de percepção desenvolvida naquela nova configuração decorrente do movimento do mundo. Com isso verificamos o componente de deslocamento e mutabilidade da compreensão do indivíduo e até mesmo de toda uma coletividade nas suas experiências cognitivas. Neste trecho de Caosmose, abaixo transcrito, Guattarri expõe sua visão sobre a importância de se assumir a experiência estética (exercício da invenção) num sentido ecológico, como possibilidade de trânsito dos fluxos intensivos.

(…) Não é um objeto "dado" em coordenadas extrínsecas mas um agenciamento de subjetivação dando sentido e valor a territórios existenciais determinados. Esse agenciamento deve trabalhar para viver, processualizar-se a partir das singularidades que o atingem. Tudo isso implica a ideia de uma necessária prática criativa e mesmo de uma pragmática ontológica. São novas maneiras de ser do ser que criam os ritmos, as formas, as cores, as intensidades da dança. Nada está pronto. Tudo deve ser sempre retomado do zero, do ponto de emergência cósmica. Potência do eterno retorno do estado nascente.3 (...)

A dança se ensina? Ou se elabora a partir do nosso movimento em direção ao mundo e este, ao mesmo tempo, atravessa-nos povoado de forças e formas intensivas da vida?
O fenômeno do conhecimento se faz numa constante elaboração, reelaboração, intercâmbio, variações, isto é, faz-se numa dinâmica constante. Não seria o próprio movimento o aspecto manifesto desse processo?
Quando se penetra no universo da imaginação, da criação, da arte, onde não há lugar para a finalidade ou utilidade, onde se preservam espaços para os acidentes, para o acaso e para realidades inimagináveis, às vezes até mesmo para a irracionalidade, deparamo-nos com aspectos considerados opostos ou até mesmo irreconciliáveis. Este é o lugar onde se faz necessário transitar com a maior capacidade e incorporar a delicadeza, permitindo que nossa percepção e afetividade se instaurarem de maneira mais rica. Isto não significa que se está fazendo considerações românticas sobre seres predestinados à dança. Todo o ser humano dança, mas não acredito que a experiência da dança possa ser ensinada.
Nós educadores possuímos um aparato tecnológico de procedimentos criados para auxiliar na preparação do corpo e para proporcionar a compreensão acerca do movimento. Muitas vezes equívocos acontecem ao se acreditar na aplicação das técnicas de aprendizado da dança como fim em si mesmas no lugar de, através delas, estimular o movimento e consequentemente a autonomia e o desenvolvimento das potencialidades dos grupos, indivíduos, e suas múltiplas maneiras de dançar. O interesse aqui — partindo do sentido cinético seja pedagogicamente ou na eleição dos procedimentos estéticos para a composição de coreografias — é estabelecer uma interação com as pessoas ou grupos, para percebermos nossas características, afinidades, facilidades, limitações, explorando meios de intercambiar, desenvolver e aprimorar nossos movimentos:

São de fato as máquinas estéticas que, em nossa época, nos propõe os modelos relativamente mais bem realizados desses blocos de sensações susceptíveis de extrair um sentido pleno a partir das sinaléticas vazias que nos investem por todos os lados. É nas trincheiras da arte que se encontram os núcleos de resistência dos mais consequentes ao rolo compressor da subjetividade capitalística, a da unidimensionalidade, do equivaler generalizado, da segregação, da surdez para a verdadeira alteridade. Não se trata de fazer dos artistas os novos heróis da revolução, as novas alavancas da história! A arte aqui não é somente a existência de artistas patenteados mas também de toda uma criatividade subjetiva que atravessa os povos e as gerações oprimidas, os guetos, as minorias(...) 4

A técnica utilizada como já citei acima, foi o contato improviso. O desenvolvimento desta técnica tem circunstâncias sociais e culturais contextualizadas nos anos 60 e início dos anos 70 nos Estados Unidos. Steve Paxton foi a pessoa que recebeu os créditos como o iniciador do contato improviso. Suas ideias e ações foram capitais, não só para a formação como também para o desenvolvimento desta técnica. Em 1961 Paxton ingressou na companhia de Merce Cunningham. Este afirmava que qualquer movimento pode ser dança e qualquer corpo pode ser visto de alguma maneira como um "transmissor de ordem estética." Aos olhos de Paxton todas as companhias de dança no final dos anos 50 pareciam extremamente uniformes ao contrário da companhia de Cunningham que parecia mais variada. Ao mesmo tempo sentia que Cunningham não tinha ido tão longe quanto poderia em sua investigação do movimento ou de diferentes tipos físicos.
Robert Ellis Dunn, diretor musical que se associou a Cunningham e também colega de John Cage, compôs uma estrutura de aula de dança que se tornou como que o lugar de encontro e inspiração para muitos dos coreógrafos da Judson Church. Dunn freqüentemente colocava problemas baseados nos experimentos ocorridos na música. A apresentação de possibilidades de procedimentos pioneiros no trabalho de John Cage provocou em Paxton um movimento no sentido de procurar por caminhos que fizessem surgir novas formas de movimento — derivada de bases outras do que estas da estética estabelecida ou da forma tradicional do corpo treinado. Sobre isto Paxton observa:
Quando você é um bailarino, pode despender muitas horas por dia dançando, trabalhando na técnica que você escolheu e seguindo princípios estéticos de quaisquer danças na qual você estiver envolvido, mas ainda haverá o resto do tempo. O que o seu corpo estará fazendo? Como é que ele faz quando se desloca no dia-a-dia pela cidade? Sua mente está envolvida com os ensaios ou com alguma peça que você está construindo, mas como você administra seu trânsito entre os diversos lugares por onde passa? Como você sabe o jeito de enfiar a mão no bolso e tirar o dinheiro e se conduzir através dos corredores da estação do metrô sem dificuldades? Ainda haverá sempre um inacreditável reservatório de atividades totalmente separadas das atividades técnicas com as quais uma pessoa possa estar envolvida como performer de dança. Encarei isto como objetivo. Houve outro objetivo o qual foi derrubar a hierarquia que parecia surgir entre as pessoas quando um era coreógrafo(a) e outro era bailarino(a)... Isto me soava como formas socialmente muito determinadas ou como um fator de peso na concepção delas sobre os diversos estilos de dança.5

Paxton afirmava que os processos coreográficos usuais naquele tempo, eram ditatoriais (será que isto se aplica apenas ao passado?), uma condição que afetou não só o processo de fazer danças, mas a estética e, também o estilo. Através desta afirmação de Paxton podemos perceber sua forte afinidade com a crença de Cunningham.

Naquela época você se entregava totalmente, em sua motivação para dançar, para os professores ou coreógrafos. Suas motivações, seus recursos de movimento eram determinados, controlados por eles, e você se esforçava para se tornar o que eles eram. Os bailarinos sempre acabavam sem ser nem eles mesmos nem como seus mestres e sim uma versão aguada de seus professores e coreógrafos. Eu comecei procurando por caminhos que originassem uma dança e fizessem o movimento emergir entre as pessoas, eu estava interessado em ver movimento (em outras palavras, eu estava fazendo escolhas no mesmo instante que o acontecimento), porém sem que eu fosse uma figura de quem eles copiassem ou que controlasse-os verbalmente ou através de sugestões.6

Nos anos 50 podemos ainda observar o interesse em relação à fenomenologia e ao Zen, oposição em relação aos eventos heroicos e ao vocabulário simbólico tradicional, e o interesse pelos pedestres, o dia-a-dia, o aqui e agora; o que preparava uma nova direção política para os anos 60.
Ivone Rainer era uma das mais influentes entre os membros deste movimento e apresentava-se sempre com Paxton. Ela, assim como Paxton, enfatizava as possibilidades abertas pelas concepções de arte defendidas por Marcel Duchamp e John Cage: O tema do dia-a-dia, o papel do acaso e do indeterminado e a receptividade a qualquer material como um possível veículo para a arte.
Rainer destacava a articulação de duas correntes de significado político perceptíveis no "movimento Cage-Duchamp." A primeira derivada do Zen e envolvia uma aceitação de todos os acontecimentos. A segunda envolvia uma atitude "antigenius, antimasterpiece". Por um lado o movimento Cage-Duchamp encorajou a aceitação de um destino de ordem totalmente aleatória, e por outro lado, o movimento encorajou a resistência ao status quo e ao caminho no qual as estruturas sociais são naturalizadas e promulgadas. Estas duas correntes estariam reunidas no contato improviso, o qual parecia abraçar ambas as atitudes para a expressão dos eventos: permitir à dança acontecer e reconhecer que qualquer pessoa pode dançar.
Era notável a influência das ideias feministas para a transformação da dança dos anos 50 e através dos anos 60; O questionamento e o discernimento sobre as injustiças sexuais e sociais largamente existentes na cultura dos anos 50 se revelavam da mesma forma na dança. Naquela época o papel do coreógrafo era reservado só aos homens. No início dos anos sessenta, operou-se uma mudança expressiva em várias danças onde homens e mulheres faziam os mesmos movimentos, os quais eram indiferenciados em relação ao gênero, ignorando na dança as diferenças entre o homem e a mulher.
Em seu livro Sharing the dance, Cynthia Novack expõe as implicações políticas e a importância do aspecto social contidos no movimento eram também questões tratadas no contato improviso de forma consciente e com a preocupação de integrar tais aspectos na dança. Naquela época este movimento abria um espaço na performance para um comportamento informal e com especial interesse nos acontecimentos imprevisíveis e na dinâmica dos fluxos de movimento.
Como membro do The Grand Union, Paxton perseguiu seus interesses aplicando a improvisação para facilitar interações e respostas físicas para com isto poder permitir às pessoas participarem igualmente, sem empregar hierarquias arbitrárias no grupo. Ele era claramente comprometido com o desenvolvimento de novas configurações sociais na dança. Ele observava:

Muitas formas sociais eram usadas durante os anos de 1960 para realizar a dança. No ballet, a tradição hierárquica da corte era mantida. Na dança moderna (Grahan, limon, Lang, etc.), a mesma forma social era usada, no lugar de monarcas as influências partiam de magos. Os dançarinos pós-modernos (Cunningham, Marcicano, Waring), mantinham uma ditadura alquímica, transformando materiais comuns em ouro, mas continuando a delinear a organização das companhias de dança através dos mesmos recursos do balé clássico e do balé moderno. Isto era o star system. Era difícil fazer o povo entender outros sistemas, mergulhados como estamos na exploração da personalidade e da aparência em cada aspecto do teatro. Portanto, esta pobreza básica da compreensão por parte da audiência é um freio à formas singulares que tem emergido, como aquelas já vistas nos trabalhos de Robert Wilson, Judith Dunn, Barbara Lloyd e The Grand Union.7

Numa entrevista, Paxton comenta que o contato improviso se desenvolveu derivando em uma porção de novas técnicas e estilos, espalhando-se através do planeta desde os anos 70 até os dias de hoje como uma rede.
Na aplicação do contato improviso neste trabalho, exploramos os dispositivos mais básicos no que diz respeito ao próprio contato físico entre os corpos (toques variados como: puxar, empurrar, apoiar, acariciar, etc.); ainda nesta instância da fisicalidade dá-se o contato com os objetos e o espaço onde o corpo se desloca e também a expansão desse conceito para conteúdos subjetivos como os de ordem afectiva e intelectiva (contato com a variação do humor, com a memória da experiências com o movimento, com função de ordenação no aspecto processual de articular em forma de linguagem estas experiências).
A integração destas duas vias de contato veio contribuir para a discussão das relações entre os estudantes e performers, suavizando as barreiras corporais, promovendo trocas de informação, intensificando o processo de comunicação e da compreensão dos dispositivos do corpo e dos mecanismos e códigos típicos da dinâmica das relações em grupo; dinamizando os papeis assumidos no grupo ao alternar as posições de liderança. Esses contatos eram em geral experimentados, percebidos e expressos no movimento e articulados em rodas de conversa que intercalavam todos os encontros e que, no momento seguinte ou nos próximos encontros eram trabalhados no intuito de se desconstruí-los para explorá-los em outras diversas possibilidades de construção. Essas referências de uma suposta organização em etapas não significa que estas sempre aconteciam nessa ordem ou sequer ordenadas numa lógica linear; por vezes o caminho era o inverso, ou irregular, ou em sobreposição, entre outras configurações.
No par professor-estudante o contato entrou no jogo não mais funcionando para corrigir os corpos, mas para procurando estabelecer uma comunicação direta e horizontal, numa ação de ruptura das fronteiras hierárquicas, espaciais (pois na configuração de aulas do CI os lugares no espaço e entre os corpos são democratizados, não havendo lugares a priori ou de destaque (mestre, assistente, monitor, e estudante gênio) e/ou atuais, pois, ao contrário, vêm atualizar, no "aqui e agora" a cumplicidade de não ratificarmos um jogo de poderes entre aqueles que detém um conhecimento prévio e os que carecem desse conhecimento e pagam para consumi-lo. Outro fator é a abolição de um modelo a ser copiado do professor ou dos estudantes mais habilidosos, fazendo-nos perceber que as danças se compõem de um jogo de tensões onde o movimento de tudo e todos estão implicados na escolha de cada elemento e em suas relações na composição.
Já no par coreógrafo-performer, o contato se deu também através do esclarecimento sobre as diversas estruturas disponíveis e de uma ampliação da abertura para acolher as formas singulares com que cada performer compreende essas estruturas, escolhe como relacioná-las e como articulá-las.
O par público-artista se revela como uma das fronteiras mais tenazes e que é assombrado pelo mais poderoso dos fantasmas: o fantasma do palco italiano. Os integrantes de uma plateia assim distribuída são os seres invisíveis habitantes do além da quarta parede, do buraco negro. Numa das aulas comentaram: mas é muito complicada esta ideia do público virar artista e do artista virar público. Esclareceu-se, em seguida, que a questão a ser pensada era a da fronteira. O artista continuaria sendo artista e o público, público. A diferença consiste neste diálogo em forma direta, ou seja, a dança sendo incorporada não só pelos olhos, mas invadindo o corpo através de todos os sentidos e agindo diretamente através do sentido cinético como é próprio do dançar. Esta forma de participação e ação do público são aqui imprescindíveis para instaurar o acontecimento da performance.
Prescinde-se de uma partitura dura, pois o interesse aqui se volta para a invenção de partituras flexíveis (sem dúvida um paradoxo: parte-dura flexível), caracterizadas por estarem em processo constante, fazendo-se e interferindo nas escolhas seguintes, mas que ao mesmo tempo possibilitem a constituição de territórios intensivos. Quando, ao mesmo tempo público, performers, músicos, organizadores de eventos e eu mesmo demandamos mais estrutura, não seria antes para resguardarmo-nos das modulações de intensidade, da experiência de transitoriedade e mudança, do que para instituir estruturas prévias, pré-partituras, sejam de: execução de frases de movimento pré-fabricadas, gestos, jeitos, trejeitos e posturas pré-classificadas; ou trilha musical ou sons e ruídos pré-selecionados e/ou até músicas pré-compostas; ou uma iluminação pré-programada em suas cores, temperaturas, aberturas, intensidades, ângulos, durações? E quanto ao público, no lugar de uma visão pré-moldada-emoldurada-enquadrada, em busca de estilos oficializados, curados, juramentados? De uma concepção fixa de corpo e de sua localização passiva no espaço? Indolência, apatia, indulgência, acomodação, instauradas pelas institucionalizações dos teatros, espaços culturais sejam de ordem arquitetônica ou arquitetados com materiais sutis de hierarquização e educação escolar ou doméstica, marcadas pela presença de uma grande parcela da sociedade excluída da possibilidade de ter acesso à informação, ou ainda pelo fato de receberem uma educação normatizante e/ou elitizada. A imbricação de todos esses elementos pode levar à criação de edificações comportamentais reativas ou de distanciamento crítico com base em seus conhecimentos sobre o dançar ou sobre a arte em geral, reconhecidos e validados pelas elites e seus inseparáveis guetos.
Porém, outro acontecimento se dá quando não identificamos nenhuma origem, nenhum "prefácio", nenhum "prelúdio". A coisa acontece quando se assume um projeto comum, um processo que vem da vida e continua nela e para ela, um Prometeu em todos, no momento preciso quando se dá a invenção de problemas que implicam na articulação dos corpos com os espaços, os tempos, as velocidades, os fluxos e a interação entre as forças dos múltiplos centros gravitacionais. Guattari propõe seus novos paradigmas estéticos no seu livro Caosmose:

(...) para além das relações de força atualizadas, a ecologia do virtual se proporá não apenas a preservar as espécies ameaçadas da vida cultural, mas igualmente a engendrar as condições de criação e de desenvolvimento de formações de subjetividade inusitadas, jamais vistas, jamais sentidas. Significa dizer que a ecologia generalizada — ou a ecosofia — agirá como ciência dos ecossistemas, como objeto de regeneração política, mas também como engajamento ético, estético, analítico, na iminência de criar novos sistemas de valorização, um novo gosto pela vida, uma nova suavidade entre os sexos, as faixas etárias, as etnias, as raças (…) 8

Durante a minha formação entrei em contato com diversas filosofias, técnicas, estéticas e abordagens sobre o corpo, o movimento e a dança. Nesse percurso incorporei alguns desses procedimentos ao meu trabalho. Meu conhecimento acerca dos fundamentos do movimento do corpo, suas implicações, funcionais, expressivas e somáticas, veio primeiro através de aulas de improvisação com a labanista Maria Dusschenes, em 1986 e dos meus estudos com Angel Vianna, precursora junto a Klaus Vianna da abordagem corporal, inaugurada no Brasil, denominada Consciência pelo Movimento. Paralelamente, entre 1987-92, tive meu primeiro contato com os Bartenieff Fundamentals em aulas ministradas por Regina Miranda e em 1997/98 com a Bolsa Virtuose do Ministério da Cultura pude aprofundar e oficializar minha formação como analista de movimento (na área de coreografia) no Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies em NY. A principal ferramenta que elegi para organizar as experiências informais e os procedimentos pedagógicos aqui adotados foi o Sistema Laban de Análise do Movimento. Este é um sistema que possui várias aplicações nos seguintes campos do conhecimento: dança, teatro, educação física, antropologia, biologia, cinesiologia, fisioterapia, zoologia e psicologia, os quais são todos saberes afins ao movimento humano.
Rudolf Von Laban elaborou um sistema baseado em suas teorias e observações sobre o movimento. Este sistema oferece um significado que vai além de uma teoria desvinculada da vida ou de um vocabulário de dança e/ou da educação através da dança. Trata-se de um instrumento teórico-prático que serve a todos os campos acima citados.
O Sistema Laban, ao se articular com os aspectos subjetivos e às experiências singulares de cada indivíduo, serve como guia em suas investigações e funciona como uma ferramenta para observar, analisar e registrar o movimento.
É bom lembrar aqui que o Sistema Laban, apesar de ser um instrumento de extrema complexidade e eficácia em suas funções, é uma criação do homem e assim como o homem que se transforma ao longo da história, de sua evolução pessoal e do processo de co-evolução com o universo, ele também é passível de sofrer transformações e reformulações conforme a percepção de quem dele se aproprie e pelos diferentes contextos em que é utilizado.

Ora, explorar as "possibilidades" de um sistema significante implica precisamente colocar-se um limite, submeter-se à lógica do instrumento, endossar o seu projeto industrial, e o que faz um verdadeiro poeta dos meios tecnológicos é justamente subverter a função da máquina, manejá-la na contramão da sua produtividade propaganda. 9

As formas de se expressar através da dança têm se transformado ao longo da História e seus desdobramentos estão relacionados aos espaços arquitetônicos; aos regimes de poder; aos hábitos culturais e/ou às organizações sociais e aos fluxos que atravessam e marcam os corpos de signos referentes àquele contexto específico. Atualmente, vivemos em um tempo cuja diversidade cultural reúne desde culturas semi-primitivas ainda não cooptadas pelo inexorável processo de globalização até aquelas que dominam os requintes tecnológicos da cibernética.
Hoje as estradas, ferrovias, telégrafos estão praticamente obsoletos. Não transitamos mais só entre dois pontos do espaço, mas podemos estar em todos os pontos simultaneamente em tempo real. Em meio a esse fluxo, se há uma configuração que traduza esse estado de coisas seria a configuração de uma rede ou de um rizoma. Hoje, também temos as mega-urbes com seus espaços de labirintos, cidades conectando-se em suas fronteiras, as super-populações, os corpos com extrema proximidade física acompanhados do individualismo e da ausência de intimidade. Os micro-movimentos psicofísicos (surgidos da relação permanente desses corpos, ainda que não percebidos), interferem: na configuração do próprio corpo, do corpo do outro e dos outros corpos (humanos ou não) e inclusive provocam desdobramentos de nossos próprios corpos no compartilhamento e criação desses espaços através dos quais eles se conectam. São estas percepções menos evidentes que sempre estamos registrando, mas em geral num grau de apreensão mais sutil.
Além da importância de despertar nosso potencial perceptivo e revermos as considerações acerca do lugar da intuição, na mão dupla implicada no eixo ensino-aprendizado, é urgente reconhecermos que nossos padrões psicofísicos, tanto de ordem filogenética como ontogenética, estão comprometidos nesta tarefa mútua de conhecermos o mundo e também elaborá-lo e sermos elaborados em forma de pensamento — estejamos na posição ou em trânsito entre educadores-educandos, sujeitos-objetos, etc.10
Como suporte conceitual para o desenvolvimento deste trabalho foram utilizadas as ideias de rizoma 11 — termo da botânica apropriado por Deleuze em sua filosofia para pensar os fluxos e as peculiaridades da sociedade contemporânea — e a ideia de autopoiesis12 empregada na área da biologia pelos cientistas Maturana e Varela, os quais sustentam, por sua vez, a ideia de autonomia e interdependência entre os seres vivos e o meio ambiente como co-criadores num movimento co-evolutivo. A aplicação desses conceitos no presente trabalho visa proporcionar e sustentar uma abordagem que se afine às expressões de caráter dinâmico e de vitalidade na dança.

Não se trata aqui de uma simples configuração gestaltista, cristalizando a predominância de uma "boa forma". Trata-se de algo mais dinâmico, que gostaria de situar no registro da máquina, que oponho aqui a da mecânica. E foi na condição de biólogos que Humberto Maturana e Francisco Varela formularam o conceito de máquina autopoiética para definir os sistemas vivos. Parece-me que sua noção de autopoiese, como capacidade de auto-reprodução de uma estrutura ou de um ecossistema, poderia ser proveitosamente estendida às máquinas incorporais da língua, da teoria, da criação estética. O jazz, por exemplo, se alimenta ao mesmo tempo de sua genealogia africana e de suas reatualizações sob formas múltiplas e heterogêneas. E será assim enquanto ele viver. Mas como toda máquina autopoiética, pode também morrer por falta de realimentação possível ou derivar em direção a destinos que o tornem estrangeiro a ele mesmo 13

Virgínia Kastrup esclarece em seu livro A Invenção de Si Mesmo e do Mundo, as concepções de Maturana e Varela sobre o caráter processual dos seres e de suas relações com o ambiente:
Maturana e Varela não falam do tempo ou de tendências, tampouco trabalham com o conceito metafísico de élan vital, mas a idéia de evolução como deriva natural corresponde, no contexto de sua biologia, à sustentação de uma processualidade de base, anterior à consideração de organismo e meio como realidades distintas. Organismo e meio são, antes, movimentos que coisas, antes processos que entidades previamente individuadas, e é sobre a base dessa processualidade bifurcante e criadora que o movimento evolutivo tem sua continuidade assegurada. O que me parece importante é que, com a suspensão da ideia de que o organismo e meio seriam termos prévios à sua relação, e dada sua consecutiva inserção num devir, Maturana e Varela restauram o criacionismo, inimigo mortal que o evolucionismo pretendia ter para sempre eliminado da biologia. Por intermédio desses autores, o criacionismo ressurge, mas trata-se agora de um criacionismo ateu, sem instância criadora: autocriação, autoposição, autopoiese. 14

O conceito de rizoma se agregou a este trabalho a partir das aulas de estética ministradas pelo professor Mauro Costa para o segundo período do curso de licenciatura plena em dança contemporânea da faculdade Angel Vianna em 2001, onde nos foi pedido, para o encerramento do semestre, um trabalho escrito sobre o tema com o título: Por onde vai o meu rizoma.
Ao produzir e depois ler o texto que se configurou em forma de poesia, pude compreender de forma mais clara os seis princípios conceituais que atravessam a ideia que Deleuze desenvolveu a partir do rizoma como análogas à estrutura morfológica e às dinâmicas de comportamento do vegetal da botânica; sua compatibilidade com as transfigurações assumidas no mundo contemporâneo em suas feições mutáveis, transitórias, dessacralizadas, des-hierarquizadas, interligadas como uma rede sem ponto de origem, ou um ápice arborescente e que pode se romper e se reconectar sem comprometer seu eterno fluxo de proliferação.
Os princípios destes dois conceitos, afinados com as demandas da atualidade, serviram também como suporte para lidarmos com os problemas implicados nos processos de empreendimento artístico e da produção de conhecimento. Optei por fazer aqui uma alternância de trechos de textos dos quatro autores, onde estão expostos recortes dos seis princípios rizomáticos e, também dos que considerei como principais características dos sistemas autopoiéticos. Podemos notar, entre eles, coincidências relativas às ideias de processualidade e interconectividade ao mesmo tempo que a noção de autonomia.

Princípios rizomáticos e sistema autopoiético:

rizomático — 1º e 2º princípios de conexão e heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem. A árvore linguística à maneira de Cshomsky começa ainda num ponto S e procede por dicotomia. Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço linguístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas. (...) Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, linguísticos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cognitivos: não existe língua em si nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais 15

autopoiético — A característica mais peculiar de um sistema autopoiético é que ele se levanta por seus próprios cordões, e se constitui como diferente do meio por sua própria dinâmica, de tal maneira que ambas as coisas são inseparáveis.
O que caracteriza o ser vivo é sua organização autopoiética. Seres vivos diferentes se distinguem porque têm estruturas distintas, mas são iguais em organização. 16

rizomático — 3º princípio da multiplicidade: é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. 17

autopoiético — O reconhecimento de que aquilo que caracteriza os seres vivos é sua organização autopoiética, permite relacionar uma grande quantidade de dados empíricos a respeito do funcionamento celular e sua bioquímica. A noção de autopoiese, portanto, não está em contradição com esse corpo de dados. Ao contrário, apoia-se neles e se propõe, explicitamente, a interpretar esses dados a partir de um ponto de vista específico, que destaca o fato de que os seres vivos são unidades autônomas. (...) Não estamos propondo que os seres vivos são os únicos entes autônomos; certamente não o são. Porém, é evidente que uma das propriedades mais imediatas do ser vivo é sua autonomia. Propomos que o modo, o mecanismo que faz dos seres vivos sistemas autônomos, é a autopoiese, que o caracteriza como tal. (...) É claro que o fato de que os seres vivos têm uma organização não é exclusivo deles, mas sim comum a todas as coisas que podem ser investigadas como sistema. Entretanto, o que lhes é peculiar é que sua organização é tal que seus únicos produtos são eles mesmos. Donde se conclui que não há separação entre produtor e produto. O ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis, e isso constitui seu modo específico de organização. 18

rizomático — 4º princípio de ruptura a-significante: contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas, ou que atravessam uma estrutura. Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retomado segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. (...) todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de desterritoralização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não param de se remeter umas às outras. É por isto que não se pode contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau. 19

autopoiético — O aparecimento de unidades autopoiéticas sobre a superfície da Terra delimita um marco na história do nosso sistema solar. É preciso que isto seja bem compreendido. A formação de uma unidade determina sempre uma série de fenômenos associados às características que o definem, o que nos permite dizer que cada classe de unidades especifica uma fenomenologia particular. Assim, as unidades autopoiéticas especificam a fenomenologia biológica como uma fenomenologia que lhes é própria, e que tem características diferentes da fenomenologia física. Isso se dá não porque as unidades autopoiéticas violem nenhum aspecto da fenomenologia física — já que, por terem componentes moleculares, devem satisfazer ás leis físicas — mas porque os fenômenos que geram, em seu funcionamento como unidades autopoiéticas, dependem de sua organização e de como esta se realiza, e não do caráter físico de seus componentes. Estes apenas determinam seu espaço de existência. 20

rizomático — 5º e 6º princípios da cartografia e da decalcomania: um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele é estranho a qualquer ideia de eixo genético ou de estrutura profunda. Um eixo genético é como uma unidade pivotante objetiva sobre a qual se organizam estados sucessivos; uma estrutura profunda é, antes, como que uma sequencia de base decomponível em constituintes imediatos, enquanto que a unidade do produto se apresenta numa outra dimensão, transformacional e subjetiva. (...) Toda lógica da árvore é uma lógica do decalque e da reprodução. Tanto na linguística quanto na psicanálise, ela tem como objeto um inconsciente ele mesmo representante, cristalizado em complexos codificados, repartido sobre um eixo genético ou distribuído numa estrutura sintagmática. Ela tem como finalidade a descrição de um estado de fato, o reequilíbrio de correlações intersubjetivas, ou a exploração de um inconsciente já dado camuflado, nos recantos obscuros da memória e da linguagem. Ela consiste em decalcar algo que se é dado já feito a partir de uma estrutura que sobrecodificada ou de um eixo que suporta. A árvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques são como folhas da árvore.
Diferente é o rizoma, mapa e não decalque. Fazer o mapa, não o decalque. A orquídea não reproduz o decalque da vespa, ela compõe um mapa com a vespa no seio de um rizoma. Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos 21, para sua abertura máxima sobre os planos de consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como Obra-de-arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas. (...) Um mapa tem múltiplas entradas ao contrário do decalque que volta sempre "ao mesmo". Um mapa é uma questão de performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida "competência".22

autopoiético — Assim, se uma célula interage com uma molécula X, incorporando-a a seus processos, o que acontece como consequência da interação não está determinado pelas propriedades dessa molécula, e sim pela maneira como ela é "vista" ou tomada pela célula, ao incorporá-la à sua dinâmica autopoiética. As mudanças que possam ocorrer nela, em consequência dessa interação, serão as determinadas pela sua própria estrutura como unidade celular. 23

Durante as experiências nas aulas e nas performances, a reflexão através de conversas que partiam da experiência com o movimento, serviram-nos para despertar nossa autonomia para percebermos a articulação do movimento do corpo como interdependente com o movimento do pensamento. Eles não são a mesma coisa, mas aspectos interativos e interdependentes na constituição ôntica do indivíduo. Conforme Virgínia Kastrup:

A invenção não opera sob o signo da iluminação súbita, da instantaneidade. Esta é somente sua fenomenologia, a forma como ela se dá à visibilidade. A invenção implica uma duração, um trabalho com restos, uma preparação que ocorre no avesso do plano das formas visíveis. Ela é uma prática de tateio, de experimentação, e é nessa experimentação que se dá o choque, mais ou menos inesperado, com a matéria. Nos bastidores das formas visíveis, ocorrem conexões com e entre os fragmentos, sem que esse trabalho vise recompor uma unidade original, à maneira de um puzzle. O resultado é necessariamente imprevisível. A invenção implica o tempo. Ela não se faz contra a memória, mas com a memória, como indica a raiz comum a "invenção" e "inventário". Ela não é corte, mas composição e recomposição incessante. A memória não é aqui uma função psicológica, mas o campo ontológico do qual toda invenção pode advir. Não é reserva particular de um sujeito nem se confunde com o mundo dos objetos. Ela é condição mesma do sujeito e do objeto. 24



A dinâmica do ensino-aprendizado não reside no problema a priori, pré-dado, preexistente, mas na invenção de problemas, na criação de si mesmo em relações conectivas com o outro, concebendo a invenção como gerador de inteligência, e a inteligência aqui compreendida não como acúmulo de informações, erudição, mas como expansão da percepção para articular e criar cada vez mais relações, num jogo transversal entre a multiplicidade dos fluxos de sinais que nos atravessam e com os quais atravessamos os outros, os objetos e o ambiente.
Portanto, o valor da inclusão do conhecimento informal (adquirido nas vivências empíricas) para o processo cognitivo associado às ferramentas tecnológicas do conhecimento formal, permite a nós estudantes, estudiosos e adeptos do movimento, reconhecer, organizar e também saber produzir novas conexões entre as funções psíquicas — da memória, da imaginação e do pensamento crítico — e realizar de maneira potencializadora as interconexões entre estas funções, os sistemas corporais e as demandas de todos e de cada um. Este é um terreno de contornos não muito claros e estáveis, possuindo um caráter cambiante, onde aspectos de extrema subjetividade se alternam com questões de ordem objetiva, não só dos indivíduos ou grupos implicados, como também da relação entre eles e na relação deles com as suas danças, com os seus movimentos; e falando de maneira ainda mais abrangente, com a vida.
A inegável complexidade do fenômeno humano está, sem dúvida, sintetizada em um de seus aspectos mais representativos, o de autoproduzir-se através de seus agenciamentos com as outras formas de vida e com o mundo. O questionamento e a investigação destes aspectos pelo viés acadêmico da ciência, do recorte, da sistematização; é sem dúvida de grande importância, pois estes dispositivos estimuladores na produção de conhecimento possibilitam-nos sermos agentes diretos no processo de construção da vida e na sua constante necessidade de reelaboração. É de fundamental importância compreender também o extremo grau de complexidade que o mundo contemporâneo tem assumido com o processo de globalização, e o surgimento de novos e complexos sistemas de organização com o advento das pesquisas na área da física quântica, das experiências com partículas subatômicas, a teoria do caos, a geometria fractal, etc. Tudo isso me faz absorver a ideia de que todas as essas visões sobre a realidade fazem parte de um grande e mesmo acontecimento, que tudo se relaciona e está em estreita conexão, reafirmando o sentido de solidariedade e a necessidade da realização de alianças de toda ordem.








































1 Cineato é um evento multimídia que se propõe a apresentar performances relacionando a linguagem de vídeo com
outras expressões artísticas. Este evento teve suas primeiras edições no Espaço Cultural Sérgio Porto, mudando-se em
seguida para o espaço Odisséia onde foi realizada nossa performance em 1 de julho de 2004.


2 Hackney, Peggy CMA MovingWisdom: The role of the body in learning 1988:26


3 Guattari. Caosmose 2000:19


4 Guattari. Caosmose 2000:115


5 Novack C. Sharing the Dance 1990:53


6 Novack C. Sharing the Dance 1990:54 — nota transcrita de um livro de Sally de 1984: "Numa entrevista com Sally
Banes, Paxton expressou um interesse similar em saber como o movimento poderia 'emergir': 'Meu sentimento sobre
criar o movimento e submetê-lo à processos casuais os quais levariam ao movimento a partir do acaso, era o
passo que se fazia necessário para se ir mais adiante. Esta escolha final, de criar movimento, sempre acompanharam
minha lógica de alguma maneira. Se você teve o processo casual, por que não poderia fazê-lo por todo o tempo?' "


7 Novack C. Sharing the Dance 1990:58


8 Guattari. Caosmose 2000:116


9 Machado. Máquina e Imaginário 1983:15


10 (...) o bloco de percepto e afecto, através da composição estética, aglomera em uma mesma apreensão transversal o sujeito e o objeto, o eu e o outro, o material e o incorporal, o antes e o depois... em suma, o afecto não é questão de representação de discursividade, mas de existência. Guattari. Caosmose 2000:118


11 Deleuze, Gilles - Guattari, Félix. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia.
Vol. 1- Editora 34. SP 2000.


12 Maturana/Humberto — A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana
Ed. Palas Athena SP 2003.


13 (Guattari. Caosmose 2000:118-119)


14 (Kastrup. A invenção de si mesmo e do mundo 1999:119)


15 (Deleuze/Guattari, Mil Patôs 2000:15)


16 (Maturana/Humberto. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana 2003:55)


17 (Deleuze/Guattari, Mil Patôs 2000:16)


18 (Maturana/Humberto. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana 2003:55-57)


19 (Deleuze/Guattari, Mil Patôs 2000:18)


20 (Maturana/Humberto. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana 2003:59-61)


21 O corpo sem órgãos (CsO = 0) é mais um dos conceitos trabalhados por Deleuze/Guattari para pensar e localizar o
aspecto processual do corpo, seu ininterrupto fluxo que está sempre escapando de uma configuração única e
determinada. Seria o nosso corpo criativo, de resistência às capturas dos modelos impostos pelo status quo. Um
corpo anterior, sem organização prévia mas aberto às infinitas possibilidades de organização. Ou ainda um corpo
transitório entre as várias organizações possíveis de se instaurar. (Deleuze/Guattari. Mil Platôs, Capitalismo e
Esquizofrenia. Vol. 3 1999:9-29)


22 (Deleuze/Guattari, Mil Patôs 2000:21)


23 (Maturana/Humberto. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana 2003:61)


24 ( kastrupe. A invenção de si e do mundo 1999:23)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS



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COHEN, Bainbridge Bonnie. Sensing, Feeling and Action. The Experimental Anatomy of Body-Mind Centering. The colected articles of Contac Quarterly Dance Journal, USA 1980-1992.

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HACKNEY, Peggy, CMA. Moving Wisdom: The role of the body in learning
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JUNG, C. G. O Desenvolvimento da Personalidade In Obras completas, vol XVII
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KASTRUP V. A invenção de si mesmo e do mundo:
uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição
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LABAN, Rudolf Von. Mastery of Movement Publishers PLAYS INC, Boston 1960

LABAN, Rudolf Von. Modern Educational Dance
Northcote House Publishers Ltd. United Kingdon 1988.

MACHADO, Arlindo. Máquina Imaginário Edusp, SP 1993.

MATURANA, Humberto/VARELA, Francisco R. A Árvore do Conhecimento:
as bases biológicas da compreensão humana
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NOVACK J. Cynthia. Sharing the Dance, Contact Improvisation and American Culture.
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PRESTON-DUNLOP, Valery. A Handbook for Dance in Education
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