Örn H. Bjarnason: Þar sem sprengjurnar féllu/Onde as bombas caíam — traduzido do islandês

July 28, 2017 | Autor: Luciano Dutra | Categoria: Icelandic Literature, Translation and literature, Brazilian Portuguese
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tradução do islandês

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örn h. bjarnason

reykjavík · mmxiv

þar sem sprengjurnar féllu – smásaga onde as bombas caíam – conto Örn h. Bjarnason höfundur autor

13. júní 2014

frumútgáfa edição príncipe

Ásta Júlía Arnardóttir · Igor Dutra prófarkalestur revisão

Helga Dögg Ólafsdóttir kápugerð capa

Luciano Dutra

hönnun · umbrot · portúgölsk þýðing projeto gráfico · diagramação · tradução

Arite Fricke

hönnuður merkis sagarana desenho da marca sagarana

Maiola Pro hannað af desenhada por Veroniku/a Burian leturgerð í bókinni tipografia no miolo do livro

Munken Print Cream 120 g/m2 frá da Arctic Paper pappír papel do miolo

Leturprent

prentun · bókband impressão · encadernação

978 9935 9212 2 2 isbn

Sagarana editora forlag ehf

laugavegi 170–72 · 105 reykjavík · íslandi islândia [+354] 846 2488 · [email protected] · facebook.com/sagarana © Alda Arnardóttir, Ásta Júlía Arnardóttir – 2014 © Luciano Dutra (portúgölsk þýðing tradução do islandês) – 2014 Bók þessa má ekki afrita með neinum hætti, svo sem ljósmyndun, prentun, hljóðritun eða á annan sambærilegan hátt, að hluta eða í heild, án skriflegs leyfis höfundarréttarhafa, þýðanda og útgefanda. prentuð á íslandi impresso na islândia · mmxiv gefin út publicado em í reykjavík, bókmenntaborg cidade da literatura da unesco

onde as bombas caíam

gugga e smári haviam sido colegas de trabalho alguns anos antes. Ela era bastante mais jovem que ele. Encontraram-se por acaso no Café Hressó. Ela tinha o rosto mais rendondo que ele já tinha visto na vida. Agora, estavam ali sentados em lados opostos da mesa e ela contava a ele sobre a época em que tinha dezoito anos e ela e uma amiga trabalharam num hospital em Copenhague. — A gente trabalhava no Hospital Nacional. E não é que a enfermeira-chefa lá era uma tremenda de uma rabugenta? Smári tentava prestar atenção no que ela dizia, mas sua mente fora tomada de assalto pela lembrança de que, quando ainda apenas um guri, ele morou bem perto daquele hospital, na época da segunda guerra mundial. Enquanto Gugga seguia contando a respeito da velha enfermeira, Smári ouvia o ribombos dos aviões e via a chuva rubra que iluminava o céu enegrecido. Logo o alarme de ataque aéreo soava e toda a família – os pais, o irmão mais velho e o irmão caçula de Smári – corria para o abrigo subterrâneo. Lá embaixo, tudo era caiado de branco. Naquele abrigo subterrâneo frio e úmido havia apenas uma iluminação débil. Eles se acomodavam em colchões no chão e se tapavam com um cobertor. Todos os moradores do prédio se abrigavam lá, a tensão pairava no ar, e em meio àquela tensão e àquele perigo, todos ficavam tão próximos entre si, ungidos de boa vontade naquela comunhão calorosa.

— A velha bruaca ficava o tempo todo implicando com a gente! — Gugga reclamou. Eles passavam a maior parte da madrugada no abrigo subterrâneo. De manhã, enquanto os aviões retornavam à Inglaterra, Smári corria apressado para a escola, tenso depois de uma noite sem dormir, exausto e de mau humor. A mãe preparava a merendeira para ele levar para a escola, e ele bem que pensava em comer alguma coisa na hora do recreio, mas no fim das contas não tinha apetite algum. — A gente morava a apenas dez minutos de ônibus do Paço Municipal — Gugga contou — e às vezes, quando estávamos de folga, a gente andava pelo calçadão Strøget para dar uma olhada nas vitrinas. Smári recordou a manhã em que a guriazinha do andar de baixo, que tinha o rosto arredondado como o da Gugga, desceu a rua correndo e tinha o vestido de linho rasgado e imundo. A voz dela estava rouca de tanto chorar, seus pezinhos miúdos de criança aparecendo debaixo do vestido, seus joelhos, pernas e mãos machucados e ensanguentados. — Mas como é que vocês foram parar em Copenhague? — Smári perguntou. — Ah tudo começou como uma brincadeira minha e da minha amiga — Gugga respondeu, com aquele rosto arredondado e fagueiro. Enquanto isso, a guriazinha do andar de baixo quase despencou da beira da calçada. O dono do bolicho da esquina, que sempre andava de jaleco branco, correu porta afora na direção da guria, e fez várias perguntas tentando descobrir o que acontecera com ela, mas ela estava tão transtornada que aqueles murmúrios abafados 24 | onde as bombas caíam

de choro eram a única resposta que ela conseguia dar. Smári ficou sabendo mais tarde que a escola católica na alameda Frederiksberg Allé tinha sido bombardeada, matando oitenta e seis crianças e treze adultos soterrados nos escombros. Ele fazia um esforço para ouvir o que Gugga dizia, porém, recordações impertinentes e desconexas o acossavam cada vez com mais intensidade. Os ingleses estavam por trás daqueles bombardeios, sim, os ingleses que eram os aliados deles, segundo os pais e o irmão mais velho dele afirmavam. O irmão mais velho sabia de várias coisas que Smári não sabia, afinal, já tinha praticamente dez anos e gostava de meter o bedelho até mesmo onde não era chamado. Smári tinha apenas sete anos, mas já sabia que os alemães eram os inimigos. Eles marchavam por Copenhague e a guria do andar de baixo não saía à rua para brincar há varios dias, e de vez em quanto, Cristiano x, o rei da Dinamarca, cavalgava pela esplanada Strandboulevarden. O rei já estava velho, mas continuava bonito e tentava manter a cabeça erguida apesar de seu país encontrar-se sob ocupação inimiga. Sim, os alemães eram os inimigos, era a primavera de 1945 e quando lhes dava na veneta os alemães se locomoviam em caminhões pela cidade e atiravam nas pessoas que aguardavam o bonde nas paradas, dez cidadãos escolhidos aleatoriamente para cada alemão morto pela resistência dinamarquesa. Os alemães estavam perdendo a guerra e tinham pressa de matar a maior quantidade possível de gente antes que as armas fossem arrancadas de suas mãos. O rei vestia um dólmã azul marinho com dragonas örn h. bjarnason | 25

e alamares, além de um quépi em forma de barco. O cavalo do rei reluzia de suor sob o mormaço e as castanheiras ao longo da esplanada Strandboulevarden estavam a ponto de rebentar. Os homens descobriam a cabeça em sinal de respeito àquele homem velho, e o rei respondia ao gesto deles levando a mão até o quépi. Enquanto isso, a guria do andar de baixo não saía para pular corda ou sapata. Era como se a morte tivesse se instalado na rua onde moravam. Um médico veio examinar a guria, cuja melhor amiga era uma das crianças que haviam ficado soterradas sob os escombros. No fim, ela foi resgatada debaixo de um monte de tijolos, mas já estava sem vida. Sim, ela estava morta. No entanto, de alguma forma, a vida seguia, os guris continuavam trepando nas árvores da esplanada Strandboulevarden para roubar castanhas, e quando o rei cavalgava por lá, Smári sentia o cheiro do campo que se desprendia do cavalo real, do asfalto aquecido pelo sol e das árvores já carregadas de folhas. Cristiano x postava-se ereto no lombo do cavalo. Na ponte Østerbro, um bonde amarelo se arrastava pelo cruzamento, pachorrento e cazumbi, e por todos os lados os cliclistas passavam tocando suas campainhas, numa azáfama tremenda e nervosa. — Tenta evitar os trilhos, por favor! — gritou um estafeta que passava numa bicicleta cheia de encomendas a uma velhinha encarquilhada que cruzava a rua coxeando. Sim, os estafetas estavam sempre no maior apuro. Afinal, não tinham tempo a perder. E ali estavam eles dois, sentados à uma mesa do Café Hressó, Gugga bebia uma Diet-Pepsi e por um breve instante Smári teve vontade de contar a ela a respeito 26 | onde as bombas caíam

daquela Copenhague que ele havia conhecido, para ato contínuo desistir. Havia uma distância abissal entre as recordações de ambos, o mesmo mundo porém épocas diferentes, acontecimentos diferentes, quiçá pessoas elegantes caminhando no calçadão Strøget na Copenhague que ela conhecera, e não a cidade sombria e a chuva rubra caindo do céu que Smári testemunhara. — A gente passou o verão inteiro em Copenhague. Mas de vez em quando, só de farra, a gente pegava um hidroavião até Malmö na Suécia e voltava a Copenhague de balsa à noitinha — Gugga contou com um tom de voz cálido e nostálgico. — Tu gosta de Diet-Pepsi? — Smári perguntou. Os olhos azuis e delicados como veludo dela fitavam-no do outro lado da mesa. Ele se sentia bem na presença daquela mulher, apesar de não poder contar a ela sobre a guriazinha que desceu a rua correndo e chorando, nem sobre os pilotos que cortavam um dobrado para voar até lá desde a longínqua Inglaterra e jogavam suas bombas em cima das cabeças de crianças que estavam aprendendo a ler e a fazer contas numa escola em Copenhague cujas professoras eram freiras católicas. — É refrescante — Gugga respondeu. Da janela do bolicho da esquina vinha um aroma de maçã e de sabão em flocos Persil, enquanto ao longe os tacões de ferro troavam na rua com calçamento de pedra. Já durante as noites, os alarmes de ataque aéreo, noite após noite, e o edifício ao lado apinhado de refugiados do leste da Alemanha, gurizinhos com lederhosen verdes e suspensórios que olhavam com olhos repletos de angústia e desconfiança. örn h. bjarnason | 27

À noitinha, a mãe de Smári contava histórias sobre a Islândia, sobre cavalos que corriam livres pelas campinas, sobre a imensidão azul, sobre montanhas muito mais altas do que a Torre Redonda ou que o Palácio de Christiansborg, sobre as estâncias nos vales férteis e sobre os barcos de pesca partindo do porto. Era lá que os pais dele haviam gastado vários pares de sapato em sua infância e era para lá que eles iriam voltar quando a guerra terminasse, tão logo aqueles soldados com seus pesados capacetes de aço e seus enormes coturnos de couro também voltassem para casa. — Vocês não íam ao parque de diversões Tívoli de vez em quando? — Smári perguntou. — Sim, sim, a gente também frequentava as discotecas da cidade, tanto a “Pussy Cat” quanto a “Bonaparte”. Já Smári aprendera a nadar no mar na praia de Bellavue, inicialmente apenas mergulho, passando depois para o nado de costas até chegar ao nado peito e até mesmo o crawl. Ele ainda lembrava da areia quente tocando nas solas dos pés e do sorvete de nugá num canudo de papel laminado, do gosto do sorvete mesclando-se com o gosto salgado do mar em seus lábios. — Eu trabalhava como auxiliar de enfermagem lá no hospital — Gugga contou — mas a velhota estava sempre nos meus calcanhares. Logo virando a esquina, um homem tinha sido executado a tiros por ter uma pistola escondida no sótão. Os judeus eram levados clandestinamente em pequenos barcos até a Suécia, assustados e encurvados no casario, a vida e a morte separadas apenas por um fio. 28 | onde as bombas caíam

Após o pôr do sol, Copenhague se tornava uma cidade fantasma, com suas janelas cobertas por persianas negras e cortinas grossas, e todos estavam proibidos de circular pelas ruas. O medo constante, e no entanto a candura e o amor que floresciam à sombra daquele medo, uma candura talvez mais intensa graças à angústia que os unia. Demorou bastante para que a guria do andar de baixo saísse de novo à rua para brincar. Ela tinha as bochechas pálidas e brincava em silêncio. Ela jamais voltou a sorrir durante aquela primaveira inteira, ou melhor, sorria quando muito com um sorriso amarelo, fantasmagórico, distante. E quando as amiguinhas dela pulavam sapata na calçada, ela ficava parada ao longe, apenas assistindo. Sua melhor amiga, a que sempre lhe emprestava a borracha de apagar e o apontador de lápis, morrera soterrada nos escombros. Bastou um lapso de segundo para roubar aquela vida e também a vida dela, que havia sobrevivido. Quem sabe ela viveria afinal a vida toda à sombra desse único acontecimento, alquebrada, ou talvez fortalecida, talvez até demais. Sim, Gugga estava sentada ali diante dele no Café Hressó, contando a ele a respeito de sua Copenhague — a mesma Copenhague dele, porém com recordações distintas. O dono do bolicho da esquina se chamava Olsen, cuja esposa às vezes ia até a rua e dava às crianças balas que ela tirava de um vidro, balas vermelhas guardadas numa baleira transparente de vidro. E a tensão constante, os dias sobre o fio da navalha, onde não havia lugar para a descontração a não ser na alta madrugada. As sirenas de ataque aéreo, aquelas sirenas amarelas, e as descidas örn h. bjarnason | 29

apressadas ao abrigo subterrâneo caiado de branco. Na manhã seguinte, a claridade diurna que se lançava como uma flecha afiada nos olhos exaustos de varar a noite em claro, o estômago vazio, a caminho da escola o soldado alemão que dava tapinhas na cabeça de Smári. — Ele é nosso inimigo — o irmão mais velho dele dizia. Mas talvez o soldado tivesse um filho pequeno em sua casa na Alemanha, pois em seus olhos havia carinho. A mão do soldado, quente como um gorro de crochê, se demorava na cabeça de Smári. Que achava difícil entender aquilo tudo. Quem de fato eram os inimigos, e quem eram os aliados? — Nunca converse com alemão algum! — o irmão dele sempre dizia. Os alemães eram os inimigos, apesar de terem sido os aliados do lado de lá do Canal da Mancha quem roubara o sorriso da guriazinha do andar de baixo. Smári não conseguia entender aquilo. — Se você conversar com algum alemão — o irmão ameaçava — eu nunca mais te levo comigo no cinema aos domingos. Pela rua vinha a carroça do leiteiro, puxada por dois cavalos enormes cujas batidas dos cascos se ouviam até a outra ponta da rua. — Os cavalos islandeses são completamente diferentes. São menores e muito mais bonitos do que os daqui. Além disso, eles também sabem toltar e galopar à toda, e não apenas andar a trote e a meio galope como os daqui — a mãe dele contou. Apesar disso, os cavalos dinamarqueses até que eram simpáticos, com um cheiro forte de couro que rescendia 30 | onde as bombas caíam

dos aperos, o ajudante dava-lhes aveia direto de um saco de estopa enquanto o leiteiro levava os engradados com garrafas de leite à leiteria. Sim, eu tive uma boa infância, Smári pensou. Uma infância sobre o fio da navalha, cheia de fortes emoções, na qual sempre acontecia algo. — No hospital também havia um rapaz insuportável — Gugga disse — tínhamos a mesma idade, mas o salário dele era bem maior. Eu achava aquilo injusto. Os cascos dos cavalos eram do tamanho de tampas de panelas e os cavalos levavam viseiras de couro sobre as têmporas para diminuir-lhes o campo de visão e evitar que se assustassem com a azáfama citadina. — Além disso, aquele rapaz também era um baita fanfarrão. Eu realmente não aguentava ele! — Gugga exclamou. As garrafas de leite tilintavam contra os engradados de ferro quando a carroça do leiteiro dobrava na próxima esquina. Sim, Smári vivera sua infância sobre o fio da navalha. Nada de sombra e água fresca, mas sim fio de navalha ou raio de sol afiado ao alvorecer. Foi quando Smári aprendeu que a vida é injusta. — Sim, a gente fazia a maior farra lá em Copenhague — Gugga disse — muitas vezes a gente atravessava a cidade de sul a norte e de oeste a leste andando de bonde ou trem. A mãe deles contava uma infinidade de histórias sobre a Islândia, aquele país do lado de lá do oceano, totalmente cercado por minas e submarinos, histórias de cavalos que corriam livres com suas crinas sinuosas ou voavam na ponta dos cascos só para sentir a resistência do vento. E todas aquelas pessoas, a avó que vestia o traje típico örn h. bjarnason | 31

islandês e o avô que era seleiro. O avô era um homem sossegado e caprichoso, que não tinha as unhas encracadas e tinha as mãos sempre bem limpas quando não estava trabalhando, segundo a mãe de Smári contava. O avô fazia parte do coral da igreja luterana independente e tinha uma voz grave e aveludada. Já a avó paterna tocava piano e sabia fazer cobertores enormes, agulhada por agulhada, e era uma senhora esbelta cujo pescoço parecia um alfinete. A avó fora criada num ambiente de fidalguia e só usava vestidos costurados sob medida na Dinamarca. O avô dele tinha vários cavalos e levou três deles a uma cavalgada até o extremo oeste, partindo da rua Vesturgata até a estância de Geitháls, junto com o alfaiate Eythór e o dentista Sigurður. E chegaram numa amplidão azul onde havia uma ave que parecia parada no ar, imóvel, apesar de de fato estar voando, e que na época da postura tinha a má catadura de voar direto na cabeça das pessoas. A tal ave se chamava andorinha-do-mar-ártica e seus ovos eram deliciosos, segundo a mãe dele, apesar de ser preciso cuidar para que não estivessem chocos. Porém, ela contava sobretudo histórias de cavalos, sim, os cavalos islandeses eram pelo menos tão formosos quanto o cavalo que o rei cavalgava pela esplanada Strandboulevarden para demonstrar aos alemães que ainda conseguia manter a cabeça erguida e se fazer respeitar. Cavalos que bufavam e batiam com os cascos no chão, suarentos sob o sol ou lustrosos de garoa, as ruas molhadas de chão batido, e outra vez o sol que voltava a brilhar, uma completa bonança, campinas verdejantes, o café no termo enrolado com uma meia de lã grossa e trazido numa mala de 32 | onde as bombas caíam

garupa, pão feito em casa, broas com manteiga abundante e lascas grossas de queijo. Os cavalos davam pulinhos e mordiscavam o pasto naquela soalheira estival enquanto os homens tomavam o seu café. Uma ave cujo nome era maçarico-galego se pavoneava, saltitando pela pradaria sobre as patinhas finas e com seu bico comprido, ao passo que os homens tinham rostos prateados. Mas será que tinham mesmo? Ao chegar nesse ponto, a credibilidade da história era posta em questão. Então, a mãe deles puxava um álbum de fotografias de uma gaveta para comprovar o que dizia. Não, as fotografias não mentem. As coisas de fato tinham se dado dessa forma. A família de Smári perambulava pela Europa desde bem antes do início da guerra, indo de país em país, de cidade em cidade, Hamburgo, Heidelbergue, Frederikshavn e outras, até irem por fim dar em Copenhague, onde ficaram retidos quando a guerra estourou. Durante esses anos todos, não tinham ninguém nem nada mais com que contar além de uns aos outros e as histórias sobre aquele país ao qual haviam de voltar assim que a guerra terminasse. Smári ainda lembrava como era bom se aconchegar junto ao sovaco do pai que, esparramado num divã, lia seus compêndios de engenharia, que continham vários tipos de fórmulas e croquis, enquanto a mãe passava roupa em pé no meio da sala, um aroma de frescor rescendendo debaixo do ferro quando este tocava na roupa de cama recém lavada. E as histórias não se acabavam, a mãe de Smári tinha uma memória praticamente infalível, e contou-lhes sobre a vez que provara uma sopa de rabo de vaca, que também levava ovo, no Parque Nacional de Thingvellir no festival örn h. bjarnason | 33

do milênio da Islândia em 1930, além de carne de ovelha e batatas caramelizadas. Para não dizer que estava perfeita, a sopa estava um pouco salgada demais, ela disse, já a carne de ovelha estava tenra e deliciosa. Na rua ao lado, um sabotador foi preso e despachado para um campo de concentração na Alemanha, enquanto os soldados marchavam ao longo da esplanada Strandboulevarden numa demonstração de poder. As tripas do pai dele roncavam, mas ali, na altura do sovaco, era só tranquilidade, o cheiro do pai lembrava o cheiro dos aperos dos cavalos da carroça do leiteiro, o pai seguia lendo seus manuais de engenharia, meticuloso e determinado. Certa vez, ele e os irmãos deram uma escapada até o porto, mas o caçula, desavisado, acabou dando com a língua nos dentes. À noite, quando o pai deles chegou do trabalho, cagou cada um deles a pau, meticuloso e determinado. Depois mandou que fossem para a cama sem sequer jantar. Assim era a pedagogia daquela época, singela e direta. Isso foi antes de as sutilezas da psicologia entrarem em cena. Sim, simplesmente cagavam-nos a pau. Na Islândia, esse mesmo método pedagógico era aplicado tanto às cavalgaduras quanto às crianças marotas, dando bons resultados em ambos. Os irmãos nunca mais foram até o porto, a ardência que sentiram na bunda na ocasião foi suficiente para que aquela fosse a única vez que tivessem de ser cagados a pau. Ou quem sabe era preciso cagá-los a pau mais amiúde? Sempre que possível, os pais dele ouviam à rádio britânica bbc, na qual um locutor com uma voz cansada e obscura falava em sangue, suor e lágrimas, enquanto o pai dele tinha o ouvido colado no rádio. 34 | onde as bombas caíam

— Eles são nossos aliados — o pai dele dizia — sim, logo os ingleses virão nos libertar. E foi exatamente o que aconteceu. A paz foi assinada e os ingleses de fato vieram com seus quépis Montgomery de través na cabeça, e os copenhaguenses correram às ruas carregando flâmulas. Parecia que os festejos não teriam mais fim. Todos que haviam colaborado com os alemães foram presos e algumas dinamarquesas tiveram seus cabelos raspados. Sim, as que de fato tinham sido vistas aos beijos ou algo assim com os soldados alemães. — Essas aí não passam de umas baitas de uma faceiras, umas sirigaitas de marca maior! — vituperava Olsen, o dono do bolicho da esquina. Sim, as tais mulheres tiveram as cabeças raspadas e depois foram arrastadas até às ruas onde os transeuntes cuspiam nelas. De fato, as coisas agora estavam em ponto de ebulição. Quem eram mesmo os aliados? — Smári se perguntava — Então agora é moda os dinamarqueses cuspirem uns nos outros? Isso aconteceu num dia quente de maio, as dinamarquesas de cabeças raspadas vestiam vestidos de linho cor de rosa e algumas calçavam pantufas, pois tinham sido arrancadas de casa sem qualquer aviso prévio. Afinal de contas, aquelas pessoas carregando flâmulas tinham uma enorme urgência de cuspir nelas. E apesar de a paz já ter sido assinada, os tiroteios prosseguiam em alguns pontos isolados da cidade, nos pátios dos fundos que separavam casas e prédios, nos terraços, detrás de chaminés. Membros da resistência que tinham vindo liberar a cidade trocavam tiros com os compatriotas que haviam colaborado de alguma forma örn h. bjarnason | 35

com os alemães, e corpos volta e meia despencavam dos telhados naquele bonito dia de maio. Aquilo tudo era realmente muito emocionante e divertido, a não ser pelo fato de a guriazinha do andar de baixo já não rir mais – ela sorria apenas sorrisos amarelos. O tempo passou e logo o outono chegou trazendo aquele dia tão ansiado em que a família iria navegar oceano afora num navio enorme de volta à Islândia. O navio fez uma escala em Gotemburgo na Suécia, onde os pais de Smári compraram para ele um relógio de verdade, com pulseira marrom de couro e tudo. — Para que de agora em diante sempre saibas a hora exata. Então, não tens mais desculpa para chegar atrasado nas aulas! — o pai exclamou. Ai… não me diga que na Islândia também tem escola… — Smári pensou. A mãe dele nunca mencionara esse fato em suas histórias. Então ele, que mal acabara de aprender dinamarquês, agora teria que aprender a ler e a escrever também em islandês? Quando é que ele ia ter um pouco de sossego, afinal? Bem, pelo menos aquilo ainda ia demorar um pouco, o navio surrava as ondas e o oceano por vezes se encapelava, franzindo o sobrolho, suas cristas ficando quase da mesma altura dos mastros do navio. Quando o mar dava uma trégua, o ecônomo do navio deixava Smári brincar de garçom: ele colocava o guardanapo de linho branco pendendo de um dos braços, como tinha visto os garçons fazer, e então levava pãezinhos e café num termo prateado para o capitão lá no alto da ponte de comando. A família de Smári dividia a cabina com uma família alemã que fugira da fome e dos escombros de Berlim, e 36 | onde as bombas caíam

a mãe de família puteava os filhos o tempo todo, nervosa que estava em sua situação de refugiada, ou talvez porque os guris tivessem mesmo o bicho carpinteiro. O casal, que tinha dois filhos, conseguira trabalho numa propriedade rural no interior da Islândia. Smári lembrava bem disso, e também lembrava da claridade espetacular que viu quando entraram na baía de Faxaflói, onde fica a cidade de Reykjavík, já passada meia-noite naquele início de novembro, a expectativa estampada no rosto de cada passageiro. No cais, um monte de parentes se reunira para recebê-los, ambas as avós e um dos avôs de Smári, o outro avô tinha ido tentar a sorte na América no início dos anos de 1920. Tios, tias, primos e primas também aguardavam por eles no cais. Os pais de Smári não viam a sua gente fazia quase doze anos, o avô tinha cabelos bem grisalhos e as costas bem empertigadas. Além de um semblante tão sisudo quanto o do pai de Smári e de Cristiano x, rei da Dinamarca. No bolso do colete, o avô trazia um cebolão de ouro, que pendia de uma corrente também de ouro presa numa das casas de botão do colete. O velho fumava um charuto. E apesar do semblante sisudo, o rosto dele não escondia o gáudio naqueles olhos azuis metálicos. O avô também tinha mãos enormes. Smári achou o máximo ganhar todos aqueles parentes assim duma sentada só. Uma das avós vestia o traje típico islandês, exatamente como nas histórias que ele ouvira da mãe. A fumaça do charuto e a algazarra deixaram Smári com sono. Sua outra avó, a que só vestia vestidos costurados sob medida na Dinamarca, também se encontrava ali. Mas o mais maravilhoso de tudo foi que örn h. bjarnason | 37

Smári viu uma laranja pela primeira vez em sua vida justamente naquela ocasião, apesar de, é claro, já conhecer as laranjas de uma ilustração que tinha visto no livro O negrinho Sambô da escocesa Helen Bannerman. Uma mulher de vestido preto, avental e quépi brancos parou na frente dele, trazendo nas mãos uma tijela enorme cheia de frutas diversas. Smári pegou uma laranja. Porém, não teve a audácia de comer logo a laranja: guardou-a debaixo do travesseiro ao se deitar. Foi só no dia seguinte, bem depois do meio-dia, que ele pelou a casca da laranja, lenta e provocativamente, e os irmãos assistiram com inveja enquanto ele comia a sua laranja, pois já tinham comido as suas na noite anterior. Sim, afinal de contas, as laranjas são azedas, mais azedas que as maçãs e muito, mas muito mais azedas que as peras, que são tão doces. — Fizemos aquilo só de farra — Gugga repetiu — foi pura farra da gente escapar naquele verão até Copenhague. Em Copenhague ficaram todos os amigos de brincadeiras, dos quais eles se despediram para nunca mais voltar a ver. Mas aquilo era o de menos. Várias vezes eles tiveram que dar adeus aos amigos de brincadeira em suas peripécias pela Europa, já estavam acostumados com aquilo, e no fim das contas tinham uns aos outros. Ah… e os cavalos. O pai deles não tardou em adquirir alguns cavalos, e como era quentinho dentro da cavalariça. Os cavalos entendiam Smári apesar de ele só se dirigir a eles em dinamarquês. Ao voltar das cavalgadas, os cavalos soltavam uma fumacinha pelas ventas, e a geada cobria os vidros, os cavalos comiam bastante afobados quando lhes davam feno. Sim, eles tinham ótimo apetite, exatamente 38 | onde as bombas caíam

como o pai deles, que de fato tinha ótimo apetite, como todos na família do pai. De vez em quando deixavam Smári e os irmãos montar nos cavalos antes de serem alimentados, eles tinham o pelo bem alto, pois era inverno, e era reconfortante escutar os estampidos debaixo dos cascos deles quando suas ferraduras com cravos batiam na neve socada. Havia muitas crianças no bairro onde a família dele se instalara, e os guris tiravam sarro deles porque eles só falavam em dinamarquês, mas até aí tudo bem. Na Dinamarca, eles tinham sido alvo de chacota por serem islandeses. Agora, eram alvos de chacota por serem dinamarqueses. Às vezes as coisas são assim. Smári se deu conta que era melhor aprender islandês bem rapidinho, tentar esquecer a Dinamarca e ser como os demais guris do bairro: pendurar-se na traseira dos carros, mascar chiclé, espichar o chiclé da boca e enrolá-lo em volta do indicador, jogar futebol, fazer bolas de neve para jogar nos chapéus dos transeuntes e lutar esgrima em cima do telhado da casa. Mas sobretudo, nunca mais falar dinamarquês e nunca mais falar de Copenhague dali em diante. Às vezes ele tinha dificuldade para entender quando alguém falava em islandês. Na casa ao lado, morava uma velhinha que volta e meia puteava as crianças da janela. — Cruzes! — ela exclamava. Ou então: —ö Bah, mas cruz credo, vocês não têm vergonha nessa cara deslavada de vocês, não? tssc tssc, barbaridade… E assim ela continuava sem parar. E Smári tinha muita dificuldade para entendê-la. örn h. bjarnason | 39

— Vão para o diabo que os carregue, seus pestinhas! — a velhota xingava-os. Aquele era o jeito normal de ela se expressar, e todos os moradores do bairro tinham enorme carinho por ela, que simplesmente estava velha e cansada da vida. Smári tentou esquecer de Copenhague, porém, ainda lembrava da guriazinha do andar de baixo, aquela que voltara da escola chorando, com os joelhos sangrando e o vestido rasgado. Ele também lembrava de várias outras coisas das quais nunca falava; a chuva rubra que caía do céu e seus pés de criança tocando na areia quente da praia e o sorvete de nugá num canudo de papel laminado. Ou da casa de veraneio na praia e talvez da chuva e de como era reconfortante estar vestindo uma boa capa de chuva quando chovia e da enorme floresta bem perto dali, repleta de lebres e cervos, e dos barquinhos a remo na praia. Ao voltar da casa de veraneio, eles iam até a estação de trem numa charrete puxada por alazões enormes. Como era possível esquecer tudo aquilo? — Sim, gosto, acho Diet-Pepsi refrescante — Gugga respondeu. Smári estava de bem com a vida, mas amava sobretudo o fato de viver no fio da navalha, uma vida pontiaguda e dolorida, a sensação a um só tempo suave e pungente que faz com que a gente sinta a própria existência até o limite. — Pois eu prefiro Diet-Coke — ele retrucou. E os dias continuaram passando e de vez em quando o pai dele voltava após uma longa cavalgada trazendo para casa um cheiro de lombo de cavalo, rédeas e esterco, além de suor ainda fresco. De vez em quando, o pai chegava 40 | onde as bombas caíam

acompanhado dos companheiros de cavalgada, calçados com botas de couro de cano alto até a altura do joelho e calças de montaria enfunadas em volta das coxas, os rostos límpidos depois de tanto ar fresco e de ter que haver-se com aqueles cavalos baguais. A mãe dele lhes oferecia sopa de carne de ovelha para comer, enquanto lá fora as estrelas clareavam a noite de inverno. — Muito boa a tua sopa de carne de ovelha! — o pai dele exclamava — pena que não tão boa quando a da minha mãe… Não, a sopa de carne de ovelha dela nunca ficava totalmente perfeita, por mais que ela se esforçasse. Sim, o pai dele sempre providenciava para que nunca ficasse. Depois de jantar, os companheiros de cavalgada do pai seguiam para suas casas e a família toda então assistia ao teleteatro na Televisão Nacional. A mãe se sentava com uma cesta de vime a seus pés para dobrar meias, colocando uma dentro da outra, enquanto o pai se esparramava de través no divã e, se ouvisse algo engraçado na televisão, ria até se acabar, ria-se com o corpo todo, com a barriga e também com a gordura da nuca, as bochechas se agitando e as lágrimas escorrendo pelos cantos dos olhos. Sim, o pai dele era daquele jeito mesmo, e quando achava algo divertido, ele se divertia como mais ninguém, apesar de em geral ser um sujeito sisudo. Mas como é que ele iria contar aquilo tudo à Gugga? Aquilo devia ser um mundo tão alheio para ela, um mundo tão distante do parque de diversões Tívoli, das discotecas e dos hidroaviões da Copenhague dela. Com certeza ela não iria entender nada daquilo. Mas apesar örn h. bjarnason | 41

disso, reconfortáva-lhe o fato de ela estar ali, sentada com ele naquele café, conversando sobre Copenhague. Por outro lado, também podia ser que ela compreendesse tudo aquilo muito bem, afinal, ela tinha aqueles olhos azuis delicados como veludo, tão abertos e receptivos na cabeça dela que ele até teria dificuldade de encontrar as palavras para descrever aquilo tudo, pelo menos ali, no Café Hressó, onde eles se encontravam. Gugga terminou seu copo e ele sua xícara e então eles saíram caminhando lado a lado pela rua Austurstræti. Era um dia de verão e havia muita gente na rua, muitos apenas zanzando de um lado para o outro, outros parados junto ao Banco da Pesca, outros andavam empertigados e sérios, certamente indo pagar alguma dívida antiga ou contrair alguma dívida nova. Talvez eles se encontrassem novamente noutra ocasião qualquer, e então Smári poderia contar a ela a respeito da Copenhague dele, do sofrimento que ele vivera naquela cidade e também da alegria que experimentara em meio àquele sofrimento.

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