ROCHA, F.A.. Adoniram Barbosa Poeta da Cidade: A trajetório e obra do radioator e cancionista - Os Anos 50. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2001.

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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas

Adoniran Barbosa poeta da cidade: Trajetória e obra do Radioator e Cancionista - Os anos 50.

Francisco A . Rocha

Dissertação apresentada como exigência parcial ao Departamento de Historia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do titulo de Mestre em História, sob a orientação do Prof.

Dr.

ARNALDO DARAYA. CONTIER

São Paulo 2001

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Abstract This research investigates the career and the work of the radio actor and popular Brazilian musician Adoniran Barbosa, having the city of São Paulo as its context, particularly in the years of 1950. We consider the artist and this moment to be emblematic, because they are representative of all a significant thematic in our late history. The poetics of Adoniran is understood in this context of consolidation of the modern urban-industrial society in the “paulista” metropolis as an “invention of a certain way of being “paulistano”. This thematic axis suggests some thinking of this musician’s work as a representation of some uses of this urban space placed as “resistance” to the language of power. In this sense, his poetics subverts the official representation of São Paulo which focalizes it as the metropolis of the progress / city of work.

Resumo Esta dissertação investiga a trajetória e obra do radioator e cancionista Adoniran

Barbosa,

tendo

como

contexto

a

cidade

de

São

Paulo,

particularmente, os anos 1950. Consideramos o artista e este momento emblemáticos, pois são representativos de toda uma temática significativa em nossa recente história. A poética de Adoniran é apreendida neste contexto de consolidação da moderna sociedade urbana industrial na metrópole paulista, como “invenção de certo jeito de ser paulistano”. Este eixo temático sugere pensar a obra deste cancionista como representação de certas práticas do espaço que se colocam como “resistência” à linguagem do poder. Neste sentido, sua poética subverte certa representação oficial de São Paulo que a focaliza como a metrópole do progresso/cidade do trabalho.

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“Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo.” Michel de Certeau

“O continuum da história é o dos opressores. Enquanto a representação do continuum iguala tudo ao nível do chão, a representação do descontínuo é o fundamento da autêntica tradição” Walter Benjamim

“Todo relato é um relato de viagem – uma prática do espaço.” Michel de Certeau

“As canções populares são um meio natural das cidades grandes sentirem-se a si mesmas.” Caetano Veloso

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Venho por meio Destas maus traçadas linhas comunicar-lhe que fiz um samba pra você No qual quero expressar Toda a milha gratidão

Adoniran Barbosa

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Agradecimentos

Muitas pessoas, direta ou indiretamente, contribuíram na realização deste trabalho; a todos a minha gratidão. Em primeiro lugar, agradeço ao professor Arnaldo D. Contier, pela orientação e por todo o apoio recebido. Sou grato também às suas aulas que freqüentei no curso Música e Modernidade. Lembro que este momento foi fundamental como um estímulo ao estudo e à pesquisa. A Bernadete pela simpatia e boa vontade com que me auxiliou na pesquisa dos documentos no acervo do extinto Museu Adoniran Barbosa. A Carminha da Biblioteca Kennedy pela disposição com que me ajudou no levantamento de parte da documentação. A todos aqueles que se dispuseram a conversar sobre Adoniran: João Carlos Botezeli (Pelão), José Nogueira, Paulo Vanzolini, Raul Duarte e Toninho, pessoas que entrevistei. Ao Elifas Andreato que me acolheu na equipe de pesquisa da Coleção História do Samba, devo a todos os amigos com quem ali trabalhei uma proximidade maior com este gênero da nossa música. Fica aqui também a minha gratidão ao jornalista Arley Pereira por todo apoio recebido. A Dona Antonieta pela generosidade, pelos seus ensinamentos e pelo auxílio valioso na revisão do texto. Ao Nilton pelo trabalho realizado na diagramação das páginas. Ao grande amigo e músico Edu pelas conversas estimulantes e pela gravação do CD que consta como anexo desta dissertação. A amiga Ângela, apaixonada pela música brasileira, um agradecimento especial pelo apoio e pelo empréstimo de importantes documentos. Agradeço, ainda, à minha família e aos amigos Leonardo, Oiram, Kazu, Marcelo e Soraya, Paulo e Sandra pelo apoio e pelas indicações valiosas. A todos os amigos da comunidade em especial ao Pe. Paulo, Dona Imaculada e Sr. Francisco, Janice, Regina, Valquiria pela acolhida e pelo carinho. Especialmente, todo o meu reconhecimento e amor à Cristina pelo estímulo e pela ajuda valiosa na realização deste trabalho.

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ÍNDICE I - Introdução Adoniran: a invenção de certo jeito de ser paulistano A Vida Urbana é O Novo Paradigma da Era do Progresso Na Era do Progresso, a Era do Rádio Adoniran, o poeta da Metrópole Capitulo I Representação da Metrópole: São Paulo – os anos 1950 Um Samba-Exaltação no IV Centenário Isto é São Paulo São Paulo – a cidade que mais cresce no mundo Da Cruz de Anchieta aos Blocos de Cimento Armado Histórias das Malocas

35 36 47 52 57 77

Capitulo II Adoniran o narrador da metrópole Um artista afinado comas vozes da cidade De João Rubinato a Adoniran Barbosa Adoniran: O Sambista e a arte de narrar A história de Iracema Um Samba ambulante

102 103 113 125 130 135

Considerações finais

146

Fontes e Bibliografia

152

Anexos

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I - Introdução

Fig. 1 – Adoniran Barbosa – Rua São bento centro de São Paulo, 1978

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I INTRODUÇÃO Adoniran: a invenção de certo jeito de ser paulistano. “... É uma dessas perdas que esvaziam São Paulo. Adoniran era uma rara personalidade, além de um grande músico. Por isso, inventou certo jeito de ser paulistano que faz dele um dos grandes poetas da noite na cidade, como Álvares de Azevedo, Mário de Andrade, Paulo Vanzolini, João Antônio, Gregório Gruber.”1

Antonio Candido

Este comentário do crítico Antonio Candido, feito por ocasião da morte de Adoniran Barbosa em 1982, nos parece muito significativo para o estudo que empreendemos aqui. Isto porque objetivamos analisar a trajetória e obra do radioator e cancionista Adoniran Barbosa no contexto da metrópole de São Paulo, particularmente, nos anos 50. A partir da reflexão sobre a presença do artista no rádio paulista, bem como da análise de suas composições musicais, pretendemos identificar os traços de determinada

narrativa construída no

momento em que a cidade se apresenta como ícone da modernidade brasileira – a São Paulo dos arranha-céus e das chaminés, expressão maior do progresso, da afirmação

do desenvolvimentismo e da possibilidade de

superação do “atraso” do país. Adoniran Barbosa é apreendido em sua poética – especialmente na radiopeça

Histórias

das

Malocas

e

nas

canções

aqui

analisadas,

respectivamente no primeiro e segundo capítulos – como construção de certa idéia do “urbano”. Tal idéia se assenta em determinadas representações que narram a metrópole

através de um olhar que capta exatamente aquilo que é

silenciado pelo discurso oficial, anunciante da São Paulo do progresso e do trabalho. O artista, como narrador da metrópole, traduz a modernidade a partir de uma percepção que se alimenta de um sentido do cotidiano, negado pela 1

Extraído da matéria: LAMENTAMOS, Morreu o Sr. João Rubinato. Jornal da Tarde, São Paulo, 24/11/1982. p. 19.

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racionalidade propulsora da transmutação do espaço da cidade – valor de uso – em metrópole – valor de troca. Ou seja, parte-se do pressuposto de que esta poética, inscrita no universo da cultura popular, apropria-se do

urbano,

inventando uma narrativa do moderno. Entendemos que tal narrativa fundamenta uma cotidianidade à margem das imposições da ordem dominante. A fala de Antonio Candido, transcrita na epígrafe, é tomada como uma referência fundamental para empreendermos tal análise. Pois, para o crítico, trata-se de considerar a inventividade de certo jeito de ser paulistano como eixo central da poética de Adoniran Barbosa. Eis, portanto, a questão norteadora do nosso trabalho: compreender a trajetória e obra deste artista a partir de um fazer poético que sinaliza certa forma de estar e de se apropriar da cidade, construindo, assim, uma narrativa considerada por nós como um lugar privilegiado das elaborações da memória, especialmente aquela relativa a determinados grupos com os quais o artista estava identificado. Data dos anos 1950 a produção mais significativa do compositor, ou seja, os sambas que marcaram o seu estilo singular: Saudosa Maloca (1951), Samba do Arnesto (com Aloncin – 1953), As Mariposas (1955), Iracema (1956) entre outros. Este período representa, ainda, a consagração do Adoniran radioator. Foi nesta época que ele atuou como Charutinho,

personagem

central do programa Histórias das Malocas escrito por Osvaldo Moles e que marcou a presença de Adoniran Barbosa no rádio paulista. Esta radiopeça, considerada uma das maiores audiências da Rádio Record, foi ao ar durante mais de dez anos. De 1955 até 1966, manteve-se em primeiro lugar na audiência da cidade, entrando em declínio a partir de 1967, ano em que morreu Osvaldo Moles. Cabe ainda lembrar a sua participação em filmes como: Esquina da Ilusão ( de Ruggero Jacobi); O Cangaceiro (de Lima Barreto); Candinho ( de Abílio Pereira de Almeida, com Mazzaropi) e A Carrocinha (com Mazzaropi e direção de Agostinho M. Pereira) – todos realizados em meados dos anos 50.

*

*

*

3

Filho de imigrantes italianos, João Rubinato nasceu em Valinhos, no interior do estado, no ano de 1910. No início dos anos trinta mudou-se para São Paulo e, em 1935, iniciando a sua vida artística nas rádios da capital, passou a usar o pseudônimo Adoniran Barbosa. Em sua atuação como radioator e como compositor de inúmeros sambas produziria uma instigante crônica desta cidade. Buscou retrata-la no momento em que o processo de industrialização e a formação de uma sociedade de massas se intensificam no país e o cenário urbano de São Paulo configura-se como lugar e símbolo destas transformações. A metrópole ícone do progresso expressa, então, em sua fisionomia os desdobramentos socioeconômicos e culturais decorrentes do processo de modernização e industrialização do Brasil. Tomando o conceito de biografia, tal qual o define Hannah Arendt, ressaltamos na poética deste artista a consubstancialidade entre a sua biografia e obra. Para a filósofa, este conceito assume uma importância particular; referese à história de vida, que integra o conjunto de atos e palavras de uma pessoa – a ação e o discurso através dos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros e podem distinguir-se. Segundo Arendt:

Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais. Se existe relação tão estreita entre ação e discurso é que o ato primordial e especificamente humano deve, ao mesmo tempo, conter resposta à pergunta que se faz a todo recém-chegado: ‘Quem és? ‘ Esta revelação de quem alguém é esta implícita tanto em suas palavras quanto em seus atos(...) (Arentd, 1981 p. 191) (O grifo é nosso.)

Mas só podemos saber quem um homem foi se conhecermos a história da qual ele é o herói:

A história real, em que nos engajamos durante toda a vida, não tem criador visível nem invisível porque não é criada. O único ‘alguém’ que ela revela é o

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seu herói; e ela é o único meio pelo qual a manifestação originalmente intangível de um ‘quem’ singularmente diferente pode tornar-se tangível ex post facto da ação do discurso.(...) O herói revelado pela história não precisa ter qualidades heróicas (...) A conotação de coragem, que hoje reputamos qualidade indispensável a um herói, já está, de fato, presente na mera disposição de agir e falar, de inserir-se no mundo e começar uma história própria. (Arentd, 1981, pp. 198 e 199)

Ainda, segundo a filósofa, a história de vida, que tem o sentido de dar a conhecer ao mundo

quem essa pessoa era, se manifesta, sobretudo, na

esfera pública, único lugar em que os homens podem mostrar quem realmente e inconfundivelmente são. Nesta perspectiva, a história de vida de Adoniran Barbosa se confunde com a sua obra. O agir e o falar que integram a história protagonizada por João Rubinato, nitidamente estão sinalizados na trajetória e obra do artista Adoniran Barbosa. Não como um movimento de simples transcrição do vivido; mas, como um gesto de criação, de inventividade capaz de representar em sua poética uma história na qual ele é o herói. Assim estão, como

veremos,

intrinsecamente ligadas sua biografia e sua obra, dirigindo nossa apreciação dentro da trajetória singular deste radioator e cancionista que buscou recolher do universo urbano a matéria-prima de sua poética. Seu intuito parece ter sido decifrar e redesenhar o espaço das ruas, dando sentido às vozes de determinados grupos com os quais sua obra se identificou; especialmente as vozes dos grupos excluídos frente a uma São Paulo que se expandia com a industrialização. Em sua obra, as contradições que produziram uma “São Paulo das chaminés que marcam o progresso do Brasil” ganham contornos interessantes e nos instigam a refletir sobre a cultura popular urbana no contexto

da

progressiva modernização do país. Pois, como analisou Válter Krauche, a obra deste artista:

...por mais ‘ tradicional ‘ que pareça, faz parte do moderno. Não se trata de uma manifestação do passado, da ‘velha guarda’ simplesmente. Além de sua epidérmica simplicidade muitas vozes se movimentam. Vozes do passado e do

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presente que se misturam. São vozes da cidade, daqueles que com ela se identificam durante certa época de sua história. São aqueles que habitam cortiços, malocas e bairros que lhes deram um sotaque próprio, que poderia ser definido um tanto imprecisamente como ítalo-paulistano-caipira. (Krausche, 1985, pp. 8-9)

Este compositor de sambas e radioator, identificado pela crítica como autêntico retratista do cotidiano da metrópole, celebrizou

inúmeros

personagens em programas humorísticos, tais como: Barbosinha Mal-educado da Silva, Zé Conversa, João Rubinet, entre outros. No entanto, como já mencionamos, o ápice de sua passagem pelo rádio deu-se em Histórias das Malocas, consagrando sua parceria com o produtor e escritor Osvaldo Moles na Record. Em nosso trabalho, consideramos a análise deste programa como um recorte fundamental da reflexão sobre a presença de Adoniran Barbosa no rádio paulista. Não só porque esta radiopeça foi um sucesso de audiência e, portanto, é um marco em sua atuação no rádio, mas, sobretudo porque aí, o artista protagonizou o personagem Charutinho. Para o sociólogo Krausche, este personagem representa o encontro do ator/sambista:

Aí, todo o humor, toda a fala cotidiana paulistana encontraram-se, tanto no programa como nos sambas de Adoniran. O próprio ator encontrava a voz, o timbre de sua personagem maior, que era a voz mesma do ator: ‘Charutinho’, o malandro malsucedido do Morro do Piolho. Pensem em Adoniran falando ou cantando: descobrirão Charutinho. Sedimentava-se a máscara de Adoniran Barbosa: o ator participava do ser músico e vice-versa. (Krausche, 1985, p 25)

O próprio programa foi inspirado em um dos seus sambas, Saudosa Maloca. Esta composição havia sido lançada no ano de 1951. Na voz do compositor passou despercebida pelo público. Mais tarde, em 1955, a gravação dos Demônios da Garoa resultou em um grande sucesso, selando a partir deste momento, a ligação

do compositor com este grupo musical.

Animado pelo sucesso deste samba e inspirado pela narrativa de sua letra, 6

Osvaldo Moles concebeu a radiopeça em que Adoniran figurava na voz de Charutinho. * O primeiro capítulo

*

*

desta dissertação investiga questões relacionadas

às representações da metrópole paulista elaboradas sob a égide do discurso dominante. Percebe-se nesta forma de construção da identidade de São Paulo e de sua “gente”, um tom apologético, típico de uma visão auto-congratulatória que, nos anos 50, marcou o ufanismo legitimador do processo de intensa metropolização em curso na cidade. Ainda nesta parte, analisamos a radiopeça Histórias das Malocas , buscando identificar neste programa determinadas formas da narrativa da modernidade pelo popular – formas estas que, a nosso ver, constroem-se como contraponto ao discurso oficial. A análise da radiopeça Histórias das Malocas deu-se a partir de uma série de “scripts” bem como de um registro sonoro que documenta as falas dos personagens centrais – Charutinho (Adoniran Barbosa) e Dona Terezoca (Maria Tereza) – e um elenco de composições de Osvaldo Moles e Hervê Cordovil, espécie de trilha sonora deste programa. Trata-se do “LP” Histórias das Malocas – Esterzinha de Souza. O texto de Osvaldo Moles, na contracapa deste disco, trouxe também indicações importantes para nossa reflexão. Quanto à abordagem do discurso oficial, promovedor de determinada representação da metrópole paulista, ela se fez, em um primeiro momento, a partir do samba de Lauro Miller: História Paulista. Este samba está registrado em uma gravação de Silvio Caldas, por ocasião do IV Centenário de São Paulo em 1954. A canção foi tomada como referência para investigarmos a construção do paulistanismo ufanista balizador de certas representações da moderna metrópole de São Paulo, aspecto este claramente exaltado nas comemorações dos 400 anos da cidade. Na medida em que a composição de Lauro Miller se inseria neste contexto comemorativo, isto nos levou a outros documentos, particularmente, inúmeras propagandas de empresas paulistanas publicadas nas edições especiais dos jornais – O Estado de São Paulo, Folha da Manhã, O Tempo, Diário de São Paulo, A Gazeta de São Paulo – alusivos ao 25 de Janeiro de 7

1954. Ainda neste ponto, o texto de Guilherme de Almeida, apresentando o “LP” – Isto É São Paulo na Voz de Silvio Caldas – onde está gravado o samba História Paulista, mostrou-se extremamente significativo como exemplo desta fala legitimadora do paulistanismo exaltado na canção de Lauro Miller. Desta forma,

objetivamos

avançar

em

nossa

reflexão,

identificando

nestes

documentos a presença de um discurso que aponta a modernidade em São Paulo. Entendemos que este discurso tem duas faces. Por um lado, representa a cidade como metrópole do progresso – chaminés e arranha-céus. E por outro lado, como a cidade do trabalho – imputando ao povo paulista as virtudes de uma “gente laboriosa”, cuja obra maior se espelha no dinamismo do crescimento urbano-industrial, promovedor da

cidade como maior centro

econômico do país. A análise da visão auto-congratulatória da metrópole paulista expressa nesta perspectiva de apologia ao processo de metropolização em curso na cidade nos anos 50, apresentou-se como fundamental para refletirmos sobre a narrativa

inscrita, tanto no programa Histórias das Malocas, quanto nos

sambas de Adoniran Barbosa, que são o cerne da segunda parte de nosso trabalho. Se o samba de Lauro Miller – História Paulista – evidencia os traços de um paulistanismo ufanista, em consonância com o que

apontamos como

discurso oficial, a radiopeça Histórias das Malocas e os sambas de Adoniran Barbosa expressam o avesso desta representação. Aqui, o que se traduz do enredo urbano são determinadas contradições, decorrentes deste processo paradoxal

de construção da modernidade. Claramente, se percebe, nesta

radiopeça e nas composições deste sambista, uma estratégia de apropriação da cena urbana que se coloca à “margem” do sentido imposto pelo discurso enaltecedor do processo de

metropolização em marcha na cidade de São

Paulo. Isto posto, emerge a questão de como abordar a modernidade em nossa História recente. O sociólogo José de Souza Martins chama a atenção para a complexidade deste problema que, segundo ele, estaria relacionado ao modo anômalo e inacabado como a modernidade se propõe num país como o Brasil e na realidade descompassada da nossa América Latina. Para este autor a modernidade não é só o moderno e, menos ainda, o modernismo. Em nosso 8

contexto ela seria constituída ao mesmo tempo por temporalidades que não são as suas. A diversidade dos tempos históricos que se combinam nessa modernidade difícil, como observam Canclini e Shelling, incorpora a cultura popular que pouco ou nada tem de moderno; mas insisto, incorpora também efetivas relações sociais datadas, vestígios de outras estruturas e situações que são ainda, no entanto, realidades e relações vivas e vitais. E que anunciam a historicidade do homem nesses desencontros de tempos, de ritmos e de possibilidades, nessas colagens. (Martins, 2000, p. 22)

A partir destas considerações Martins sinaliza determinada perspectiva da abordagem do popular neste contexto:

... penso que é metodologicamente necessário conduzir a investigação da modernidade brasileira pela via oposta à tese do popular que nela se incorpora para dar-lhe cores de identidade. Minha proposta é a de que a questão da modernidade no Brasil fica mais bem compreendida se investigarmos o modo como o moderno e os signos da modernidade são incorporados pelo popular. Nessa mediação é que se podem observar as dificuldades da modernidade. ( Martins, 2000, p. 35)

Consideramos que estas observações delimitam um campo importante para a nossa reflexão. Por um lado, porque explicitam o sentido difuso da modernidade em nosso contexto. Por outro lado, porque indicam uma perspectiva interessante de investigação do moderno; ou seja, aquela que problematiza a modernidade a partir de sua incorporação pelo popular. Como veremos, ao longo deste trabalho, a obra de Adoniran Barbosa, nitidamente, expressa determinadas formas de apropriação dos signos da modernidade por uma poética articulada ao universo da cultura popular urbana.

* No

segundo

capítulo

* de

nosso

* trabalho

nos

preocupamos,

especialmente, com a análise da produção musical de Adoniran Barbosa, de

9

seus depoimentos e da crítica jornalística acerca

de sua trajetória e obra.

Nossa atenção volta-se para uma série de canções datadas dos anos 1950. Como já afirmamos, inscrevem-se neste período os sambas reveladores de certo estilo que passou a identificar o cancionista. Particularmente, os sambas: Saudosa Maloca, Joga a Chave (com Oswaldo França), Conselho de Mulher (com Osvaldo Moles e João B. Santos), Samba do Arnesto (com Alocin), As Mariposas, Apaga o fogo Mané, Samba no Bexiga, Iracema, Abrigo de Vagabundos, Pafunça (com Osvaldo Moles), Tiro ao Álvaro (com Osvaldo Moles) foram tomados como referência de nossa reflexão. No que diz respeito à produção musical do artista, posterior a esse período, mas igualmente importante na sua trajetória, como: Trem das Onze (1964), Samba Italiano (1965), O Casamento do Moacir (com Osvaldo Moles – 1967) Mulher Patrão e Cachaça ( com Osvaldo Moles – 1968), Despejo na Favela (1969), Acende o Candieiro (1972), Véspera de Natal (1974), Viaduto Santa Efigênia (com N. Caporrino – 1974), Uma Triste Margarida (1975), Vide Verso Meu Endereço (1975)2, também embasou a nossa reflexão, uma vez que nestes sambas apresentam-se os mesmos traços identificadores da poética do compositor. No entanto, como veremos, duas canções assumem um lugar central em nossa análise: Saudosa Maloca e Iracema. Como fonte documental para o estudo das músicas, escolhemos o registro discográfico, sejam as gravações do compositor ou dos seus interpretes,

priorizando aquelas realizadas pelo próprio Adoniran Barbosa.

Nossa preocupação centrou-se, basicamente, na narrativa das letras entoadas no elenco de canções que foram objetos de nossa análise. Isso não quer dizer que não observamos os elementos musicais inerentes a estas canções. Eles são pertinentes, na medida em que nos apoiamos no conceito que Luiz Tatit, em sua obra O Cancionista – Composição de Canções no Brasil, atribui a esta forma de expressão. Ou seja, aquele que considera esta linguagem como resultante de um gesto que equilibra a melodia no texto e o texto na melodia. Assim, observamos que a canção existe na inter-relação destes elementos, definindo o cancionista como o sujeito praticante de uma arte, onde o encanto deriva exatamente da união de letra e melodia no corpo da canção. Embora 2

Ver Anexo 2 as letras das canções de Adoniran Barbosa citadas. 10

todo o arcabouço teórico, no qual se baseiam as análises de Tatit, se inscreva no campo da semiótica, o que foge ao nosso propósito de abordagem das canções de Adoniran Barbosa, suas reflexões, como podemos observar, oferecem contribuições importantes no âmbito do estudo da música popular. Nesta parte de nosso trabalho, também foram abordados depoimentos do próprio artista, seja na sua forma escrita ou gravada. Eles contêm relatos de sua biografia e também reflexões do compositor sobre a sua obra. Outros depoimentos, que embasaram a nossa análise, referem-se a alguns nomes do meio musical e radiofônico que foram por nós entrevistados ao longo desta pesquisa. Ainda neste segundo capítulo da dissertação, foram analisados artigos de revistas e jornais da época que documentaram a produção musical do sambista, os programas de rádio nos quais ele atuou, a sua passagem pelo cinema e pela televisão e, também, fatos relacionados a sua vida privada. Tais documentos nos possibilitaram refletir, mesmo que de maneira aproximada, sobre a recepção de sua obra, ou seja, a maneira como se construiu a figura deste artista paulistano, a partir da produção de um discurso (representações) legitimador de sua obra e de sua atuação, principalmente como radioator e compositor de samba. Lembramos que a produção artística não é portadora de apenas uma significação que lhe é intrínseca, aquela que o artista quis imprimir-lhe , mas, sobretudo, das que foram acumuladas nos usos dessa obra feitos pelas mais diversas leituras. Neste nível da investigação, o historiador Arnaldo Contier nos apresenta contribuições fundamentais. Pois o autor, em diversos textos, tem desenvolvido uma reflexão interdisciplinar no sentido de articular: história e música. Em linhas gerais, esses textos objetivam analisar a música, considerando os aspectos técnico-estéticos relativos a esta linguagem, bem como, discutir as razões políticas, ideológicas e econômicas da utilização de uma obra e a sua respectiva decodificação pelos diferentes grupos ou segmentos sociais em determinados contextos históricos.

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A Vida Urbana é o Novo Paradigma da Era do Progresso “Eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés.... Eram máquinas e tudo na Cidade era só máquina.”

Mário de Andrade

É certo que os versos de Mário de Andrade anunciam a modernidade ao constatá-la na paisagem urbana de São Paulo. O historiador Nicolau Sevcenko localiza nos anos 20 o intenso crescimento e urbanização da cidade que a transformariam em uma metrópole

moderna.

Centro de convergência da

riqueza gerada pela economia cafeeira, o povoado de São Paulo, que até meados do século XIX se configurava como um pequeno vilarejo da era colonial,

tornou-se uma cidade marcada por um alucinante ritmo de

metropolização. Para Sevcenko a São Paulo metrópole, tendo eliminado seu passado, nasceu como uma incógnita. Seus únicos signos de identificação não eram elementos estáveis, mas processo em curso vertiginoso: fusão, crescimento, aceleração, especulação. Seu símbolo oficial eram dois ramos cruzados de café, mas, para a população em geral, era uma locomotiva em aceleração máxima. (Sevcenko, 2000, p. 85)

O ritmo da locomotiva acelera-se ainda mais nos anos 30, quando a “capital do café” transfigurou-se na metrópole industrial. Este período é representado pelos planos de intervenção urbana orquestrado pelos prefeitos: Fábio Prado (1935-38) e Prestes Maia (1938-45). Na época, uma série de obras promove a remodelação da cidade. No governo municipal de Fábio Prado, iniciam-se as seguintes construções: o Estádio Municipal, o novo viaduto do Chá, os viadutos Major Quedinho e Martinho Prado, a avenida 9 de Julho, a Biblioteca Municipal e a avenida Ibirapuera. Na administração Francisco Prestes Maia a transfiguração do desenho urbano promovido pelo Plano de Avenidas é intensa. Além de estruturar o sistema viário para permitir o tráfego motorizado, o Plano também se situa na perspectiva de renovação e 12

ampliação do centro comercial, incentivando o mercado imobiliário e a verticalização. (Bonduki, 1983) No contexto da construção da moderna metrópole industrial a expansão urbana é alucinante e a

cidade, que no início dos anos 20 tinha

uma

população em torno de 500 mil habitantes, atinge um pouco mais de um milhão de habitantes em meados dos anos 30. Os mitos da cidade do trabalho, que não pode parar, voltada para o progresso e para o futuro, surgiram neste período de intensa urbanização. Nos anos 40, a cidade consolida-se como um grande centro industrial e conta no início desta década com um milhão e 500 mil habitantes.

Fig.2 – Centro de São Paulo, Praça da Sé – 1940 – O intenso movimento de pedestre e os automóveis dão ares de modernidade à paisagem urbana de São Paulo. Ao fundo, a construção da catedral que se prolongou durante décadas até a sua inauguração, estando ainda inacabada, em 25/01/1954.-Foto de Hildegard Rosenthal.

No período pós-ditatorial, com o fim do Estado Novo em 1945, a perspectiva de uma sociedade urbano-industrial se apresenta como superação de tudo aquilo que representava o nosso “atraso”. Além disso,

o Brasil

persegue um projeto político de desenvolvimento auto-sustentado. A

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construção de Brasília simboliza esta idéia, uma obra que pretendia ser a alavanca propulsora da redenção econômica nacional. No entanto,

como

observa Sevcenko, se Brasília seria o símbolo, a realidade era São Paulo. A cidade que contava com cerca de 239.820 habitantes em 1900, saltou meio século depois para 2.662.728, tornando-se a maior metrópole brasileira e, ao mesmo tempo, o maior centro industrial latino-americano, gerando sozinha mais de 50% de toda a produção industrial do país. Substituindo-se à cafeicultura, a industrialização constituiria agora o fundamento da prosperidade paulista, com a sua sede na capital, já em adiantado processo de conurbação com

os

municípios

limítrofes,

num

complexo

processo

expansivo

multidirecional que originou a chamada ‘grande São Paulo’. (Sevcenko, 2000, p. 104.)

Portanto, os anos 50 focalizam a metrópole paulista como o lugar da moderna sociedade industrial brasileira, em cujo contexto expressam-se os desdobramentos socioeconômicos e culturais resultantes deste processo.

Na Era do Progresso, a Era do Rádio Nos anos 30, o Brasil adentra a Era da Comunicação de Massas. O rádio, a indústria fonográfica, o cinema e outros meios são os veículos dessa revolução. O rádio já existia entre nós desde os anos 20, mas é a partir da década de 30 que se consagra como um meio de comunicação de massas, passando a apresentar uma programação bastante variada no intuito de se transformar em um fenômeno social, com milhares e milhares de ouvidos cativos, os fãs. É a chamada Era do Rádio. Surgiam, assim, ídolos e mitos populares, em sua maioria cantores do rádio. São Paulo, no início dos anos 30, conta com 12 emissoras de rádio. Por outro lado, a indústria fonográfica se beneficia com o impacto do rádio; o público compraria mais discos, pois multiplicam-se os astros e estrelas promovidos pelos programas radiofônicos. Dessa forma, ampliou-se o espaço para a música, principalmente no que diz respeito à música popular. É

14

importante sinalizarmos que a presença deste gênero musical na programação das rádios foi fundamental para ampliação da audiência e a popularização das emissoras. Nos anos 50, o rádio há muito já havia se consolidado como um veículo de comunicação de massas. Em meados desta década havia 17 emissoras de rádio funcionando em São Paulo, entre elas a Rádio Record que mantendo uma ampla audiência, tinha condições para enfrentar a concorrência da TV (funcionando em São Paulo desde 1950 e, no Rio, desde 1951) que começa a atrair grande parte dos recursos da publicidade antes dirigidos para o rádio. *

*

*

A biografia de Adoniran Barbosa, como já mencionamos,

está

intimamente ligada ao meio radiofônico, mais precisamente à Rádio Record, seja representando diversos personagens em programas de humor, ou mesmo, ocupando este espaço para a divulgação de seus sambas, quer na sua própria voz ou nas vozes de seus intérpretes. Tanto na sua atuação como radioator ou como sambista é possível vislumbrar em seu trabalho as tensões que se configuraram em sua obra, no momento em que pretendeu narrar o cotidiano da metrópole. O próprio compositor, em seu depoimento para o Museu da Imagem e do Som (1981), se definiu como um observador dos tipos da rua. Esta mesma idéia aparece na análise do musicólogo Zuza Homem de Melo; segundo ele, Adoniran: Era um tipo popular. Andava muito pelas ruas... a voz rouca que ele sabia usar como quisesse, o olhar vivo. Um tipo fino e malandro....Foi por meio desse olhar vivo que ele viu o que viu e contou o que contou. Contou para São Paulo como São Paulo era. De tal forma que, à exceção de Paulo Vanzolini, nenhum outro compositor da MPB pode ser tão identificado com a cidade, os bairros, ruas e praças paulistanas.... A primeira façanha de Adoniran Barbosa é ter descoberto o sotaque da música paulistana, com os devidos méritos ao sempre admirado produtor da Rádio Record Osvaldo Moles e ao conjunto vocal Demônios da Garoa, também originais da Record. A fusão do que cada um percebeu que existia na cidade, do que havia de som pelas ruas, é que deu na obra admiravelmente fotográfica de Adoniran Barbosa. Uma obra não só 15

descritiva, mas reflexiva, cheia de idéias sui generis, de observações e de conclusões que ficavam à beira da tragédia ou da comédia, tanto faz. Uma obra onde as melodias simples, naturais, quase sempre em tonalidades menor e sempre tendendo para o modo menor, fluíam como as próprias ruas da cidade: para cima e para baixo, mudando de direção, largas e estreitas.3

Observa-se que a biografia de Adoniran Barbosa reiteradamente o constrói como um artista do Rádio. Portanto,

trata-se aqui de pensar sua

presença no meio radiofônico afinada com certa audiência (as camadas populares da metrópole paulista) para a qual estava voltada a programação da Record. Estas afirmações, de pronto, nos lançam no campo de determinados problemas complexos ligados à questão do popular e dos meios de comunicação de massas. Mais adiante, retomaremos estas questões ainda que brevemente. Adoniran Barbosa, poeta da Metrópole Ao urbano

analisar

o

fenômeno

contemporâneo,

caracte-

rístico das sociedades industriais, Olgária Matos (1982)

identifica a

passagem do espaço qualitativo da cidade, no qual o homem ainda podia se reconhecer, ao espaço quantitativo e abstrato da metrópole, no qual o indivíduo vive um processo de fragmentação de sua identidade. Trata-se, segundo ela, da transmutação da cidade como valor de uso, em metrópole, isto é, valor

de

mecanismos

troca, que

segundo

os Fig. 3. Vista aérea da Av. São João – meados dos anos

atuam

no exaltado como símbolo de progresso – Revista

50.O intenso ritmo de crescimento de –São Paulo é Manchete – 1954. .

3

Extraído da matéria: MELLO, Zuza Homem de. Sotaques e tipos de um homem popular. O Estado de São Paulo, São Paulo, 28/11/1982. p. 43.. 16

processo de trabalho e que determinam a onipresença do trabalho abstrato na sociedade. Assim, o tempo que comanda a lógica da linha de produção da fábrica – o presente da repetição mecânica do mesmo gesto, sem história e carente de recordação habita a paisagem da metrópole, cujo espaço reflete o domínio deste presente produtivista da economia de mercado. Projetando-se a si mesma como este tempo espacializado, tal paisagem urbana irá se constituir pela concepção de um espaço homogêneo e rápido, onde as mercadorias (pessoas e objetos) possam circular. Diante desta racionalidade, o individual , o qualitativo e o heterogêneo são excluídos do espaço urbano. O mapa da metrópole, ao contemplar esta ideologia, realiza-se como expressão da modernidade, onde o que está em jogo é o processo de liquidação do indivíduo autônomo, a fragmentação de sua identidade. A presença do espaço quantitativo, como valor de troca, configura a metrópole como impessoal e sem memória. O seu espaço não se oferece como suporte do passado e das lembranças, pois está voltado para o futuro, o progresso, num contínuo processo de transformação. Dessa forma, presente neste cenário urbano não

se reporta

a modernização

à memória individual ou

coletiva. Neste espaço, a identidade não encontra o suporte material de sua história. Se há permanência, esta se refere aos próprios fluxos contínuos da metrópole, à sua permanente metamorfose. Adoniran Barbosa, vivendo na cidade de São Paulo até 1982, ano de sua morte, teve a sua biografia inscrita neste mapa em constante transmutação. Diante do cenário urbano que dia-a-dia se transformava, impondo novas relações aos seus habitantes, o seu fazer artístico investiu em certa narrativa do cotidiano da cidade. As vozes dos personagens que habitam tanto os seus sambas quanto os programas de rádio em que o artista atuou revelam as contradições deste processo de transformação, em curso na metrópole paulistana. O que nos atrai na obra de Adoniran .Barbosa é a possibilidade de redescobrirmos os traços de uma cidade, ou melhor, de um estilo de narrativa do enredo urbano no contexto da modernidade. Uma poética afinada com as vozes daqueles que neste contexto habitavam o “espaço da exclusão”. Em suma, a arte de Adoniran é sobretudo a crônica da cidade que ele vivenciou. Sua escrita subverte a ordem imposta pelo esforço de modernização na 17

medida em que narra através do olhar do excluído. Nesse sentido, legitima a experiência dos grupos que sofrem as contradições decorrentes desta ordem. Tal narrativa nos parece fundamental para dar um sentido à história destes grupos e para construir formas que legitimem sua memória que, neste caso, se traduzem pela própria obra do compositor4. Ao inventar-se como artista, tal qual nos lembra Antonio Candido: Adoniran é um grande compositor e poeta popular, expressivo como poucos; mas não é Adoniran nem Barbosa, e sim João Rubinato, que adotou o nome de um amigo funcionário do Correio e o sobrenome de um compositor admirado. A idéia foi excelente, porque um artista inventa antes de mais nada a sua própria personalidade, e porque, ao fazer isto, ele exprimiu a realidade tão paulista do italiano recoberto pela terra e do brasileiro de raízes européias.5

Adoniran passou a compor o texto e as tramas deste personagem e de outros que ele recortou da multidão, das ruas da metrópole, para encenarem a crônica de seus destinos, recriando sua verdade na arquitetura deste espaço em transformação, onde circulam negros, imigrantes italianos e retirantes nordestinos, numa polifonia de vozes, expressão das mais diversas heranças culturais, de onde nos parece emerge a síntese de sua obra. *

*

*

4

A historiadora Maria Izilda Santos de Matos assinala que a produção historiográfica contemporânea vem se apoiando na diversidade de documentação, o que tem possibilitado o enriquecimento da pesquisa nesta área do conhecimento. Neste sentido, a autora observa que a produção musical se apresenta como um corpo documental interessante, pois se configura como um dos poucos documentos sobre os setores relegados ao silêncio, focalizando a expressão de sentimentos e certas temáticas raras em outros registros. Assim, diz Matos: “Trata-se de uma documentação muito rica e pouco explorada pela análise histórica, com grande potencial para a revelação do cotidiano, das sensibilidades e das paixões, como algo que, todos os diais, penetra pelos ouvidos e está na boca de todos. Ao mesmo tempo que é uma manifestação artística, também apresenta aspectos da vivência cotidiana de seus produtores e ouvintes. Assim, se o compositor capta, reproduz, explora, enfim, “fisga” representações que circulam no cotidiano, essencialmente elementos de uma experiência social vivida, por outro lado, o seu público pode ou assumir o papel, as idéias e os sentimentos expressos pelo compositor, ou então rejeitá-los, bem como suas representações do feminino, do masculino, de suas relações e vivências urbanas. (Matos, 1999, p. 32) 5 Extraído do texto de Antonio Candido, Adoniran Barbosa – publicado na contracapa do “LP” Adoniran Barbosa. São Paulo, Gravadora Odeon, 1975.

18

Em nosso estudo procuramos resgatar alguns traços da história social e cultural do período, particularmente os anos 1950, a partir da análise da “cultura popular urbana” que aqui se produziu, no momento em que o rádio se projetava como um meio de comunicação de massas, recriando os espaços de produção e de divulgação dessa cultura. Adoniran Barbosa é pensado como eixo desta análise, pois sua obra o identifica como um dos representantes dessa cultura, uma obra que, como mencionamos, expressou determinadas vozes no cenário de uma São Paulo que se modernizava. Um artista intimamente ligado ao rádio, no momento em que este meio se tornou um fenômeno social no Brasil. Tanto na sua carreira como radioator ou como sambista, a sua obra esteve em consonância com uma determinada audiência das rádios paulistanas. Ao se projetar para esta audiência , ele procurou se manter dentro de uma estética afinada com a sensibilidade de seu público. Nesse sentido, haveria um esforço em se construir como uma voz que respondia à expectativa de identificação desse público. Portanto integrou-se ao projeto radiofônico que, neste momento, buscava ampliar a sua audiência, tornando-se um veículo popular.

Muito mais do que orquestrar o

comportamento de seu público, o rádio voltou a sua antena para captar o gosto destes grupos, mantendo-se como um canal de identificação no território em que eles habitavam. Como nos lembram as reflexões de Michel Maffesoli, os meios de comunicação de massas funcionam como uma espécie de espelho de identificação dos grupos, para os quais eles se projetam. Assim, ao contrário da teoria crítica que tem tendência a julgar o caráter “ideológico”, ou seja, nocivo das produções culturais de massa, ou ao contrário de um pensamento conservador que só verá aí uma ocasião de lucro, a atenção ao cotidiano permite lembrar que elas se adaptam às preocupações da vida presente, mais do que as modelam. (Maffessoli, 1996, p.113)

Portanto, os meios modernos de comunicação se ligam à integração e à construção da identidade na metrópole, promovendo um consumo simbólico compartilhado, sendo um dos aspectos da criação de um sentido comum de cotidianidade. No limite, como sugere Canclini (1998), a noção de cultura massiva surge quando as sociedades já estavam massificadas.

19

Isto posto, cabe reiterar que, através da análise da obra de Adoniran, observam-se certas práticas inscritas no universo da cultura popular. Tais práticas representam

determinadas formas da construção do sentido

do

cotidiano experimentado pelas classes subalternas, neste contexto da metrópole paulista. A poética deste compositor é analisada como construção de certa memória que nos remete à narrativa das práticas do homem comum, cujo sentido se reveste como resistência, isto é, a criação de

outras

representações da cidade e da experiência do moderno, frente ao discurso oficial que representa São Paulo como a cidade do progresso e do trabalho. Consideramos a hipótese de que o artista, ao inventar um jeito de ser paulistano, como sugere Antonio Candido, cria no plano poético a possibilidade de narrar o enredo da modernidade paulistana, construindo determinadas representações da metrópole afinadas, sobretudo, a uma estética e a uma sensibilidade referenciadas no universo da “cultura popular”. *

*

*

As atividades de investigação deste trabalho, sobre a trajetória e obra de Adoniran Barbosa, a sua presença no meio radiofônico e a relação do seu trabalho com o contexto da história social e cultural da metrópole paulistana nos anos 50, incluem: -

no primeiro capítulo: a análise de documentos alusivos ao IV Centenário da cidade de São Paulo (1954) bem como do programa radiofônico

Histórias

das

Malocas,

onde

Adoniran

Barbosa

protagonizou o personagem Charutinho. -

no segundo capítulo: nos detivemo-nos sobre a

produção musical

do artista; sobre a análise de matéria jornalística que noticiou a sua carreira de radioator e de sambista e sobre os

depoimentos do

próprio compositor e de pessoas ligadas ao meio artístico musical e radiofônico. Privilegiamos, aqui,

uma abordagem interdisciplinar, articulando a

análise do fenômeno comunicacional, representado por Adoniran Barbosa e o contexto histórico e social em que ele atuou. Consideramos que sua atuação tem necessariamente um sentido expandido. Ou seja, como radioator atuou em

20

programas de rádio; no entanto, é também possível analisá-lo através da noção de

“ator social”, isto é, aquele que condensa , através de suas atuações

dramáticas, as representações sociais que o caracterizam e o definem. Assim, Adoniran se integra e expressa o universo cultural do seu público, pois,

sua

obra indica

Isto

aspectos significativos de

certa

teatralização do social.

posto, nossa análise se desdobra a partir de um referencial teórico apoiado nas idéias de Michel de Certeau. Ele observa a cultura comum e cotidiana como apropriação (ou reapropriação) de uma realidade, como desvio, como práticas que subvertem a ordem dominante. Diante da realidade dos poderes e das instituições, Certeau enfatiza a idéia de micro-resistência que compõe o cotidiano do homem ordinário. Ao propor uma reflexão sobre as práticas comuns, Certeau objetiva explicitar: ...as

combinatórias

de

operações

que

compõem

também

(sem

ser

exclusivamente) uma “cultura” e exumar os modelos de ação característicos dos usuários, dos quais se esconde, sob o pudico nome de consumidores, o estatuto de dominados (o que não quer dizer passivos ou dóceis). O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada. (Certeau, 1998, p. 38)

Tal inventividade se percebe nas astucias táticas das práticas ordinárias, no uso que a multidão anônima, o homem comum faz dos produtos culturais, dos produtos comprados no supermercado, dos relatos e legendas que o jornal distribui e mesmo do espaço urbano. Para Certeau, estas práticas eqüivalem a uma poética – no sentido de criar , inventar, gerar – mas, escondidas porque ela se dissemina nas regiões definidas e ocupadas pelos sistemas da ”produção” (televisiva, urbanística, comercial etc.) A

uma

produção

racionalizada,

expansionista

além

de

centralizada,

barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de “consumo” : esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (Certeau, 1998, p.39) 21

Estas afirmações nos suscitam a reflexão

de que

a poética

do

sambista e radioator Adoniran Barbosa estaria imbricada aos traços de uma cultura manifesta nas práticas da inventividade do cotidiano, em uma São Paulo sob o impacto da modernização industrial. A respeito do processo da metamorfose da cidade em metrópole e de sua transfiguração como espaço de troca, as considerações teóricas apontadas por

Olgária Matos lançam luzes para o encaminhamento de

algumas

questões fundamentais para o nosso trabalho. Uma vez que é flagrante, no estilo de Adoniran, a narrativa do enredo urbano no contexto da modernização dessa cidade. No âmbito destas idéias, a filósofa nos remete à obra de Walter Benjamim. Isto nos possibilita trabalhar algumas questões relacionadas à arte de narrar e à figura do narrador no contexto da modernidade. Também, como dissemos, consideramos relevante para esse trabalho certas aproximações como as idéias propostas por Luiz Tatit, embora, caiba reiterar, nossas reflexões não compreendem o campo da semiótica. No âmbito da interrelação História e Música e esta articulação ocupa o eixo central de nossa pesquisa nos baseamos principalmente nas análises sugeridas pelo

historiador Arnaldo Contier que, como já afirmamos, tem

desenvolvido trabalhos significativos dentro desta perspectiva interdisciplinar. *

*

*

Alguns trabalhos sobre Adoniran Barbosa e mesmo sobre a música popular na metrópole de São Paulo

nos ajudaram a sinalizar o percurso

empreendido por esta dissertação. Entre eles, cabe, especialmente, destacar a obra de Walter Krausche (1985), Adoniran Barbosa – Pelas Ruas da Cidade. Trata-se de um texto elaborado para uma “coleção de bolso” , cujo formato baseia-se na publicação de textos “rápidos”, abordando a biografia de nomes do teatro, da música, da literatura, da filosofia etc. Assim, não caberia ao autor uma análise mais sistemática sobre o sentido da obra deste radioator e cancionista. No entanto, Krauche, implicitamente,

nos aponta para uma

perspectiva interessante ao insistir na relação da poética de Adoniran e o

22

contexto de construção da modernidade em São Paulo. Como ele próprio afirma, trata-se da história de um artista que interiorizou e cantou a cidade e que

viveu intensamente a contradição do “pogréssio”. Nesta perspectiva,

enfatiza o autor, o entendimento da trajetória e obra de Adoniran inscreve-se em um contexto de profundas transformações da cidade de São Paulo. Aí ele retira do movimento da multidão seus flashes poéticos, exaltando o prosaico. Além destas reflexões sugestivas, este

trabalho nos oferece

contribuições importantes, na medida em que o livro traz

uma

biografia

cuidadosa sobre a passagem do artista pelo rádio, cinema, televisão e particularmente pela música. O texto ainda nos apresenta alguns registros fundamentais como, por exemplo, uma cronologia da vida do artista, datando acontecimentos importantes de sua trajetória; um levantamento discográfico das gravações dos sambas de Adoniran, quer na sua própria voz, ou na de seus intérpretes e a relação datada de suas composições. Um outro trabalho sobre o artista diz respeito a tese de Maria Aparecida Bento (1990) – Um Cantar Paulistano: Adoniran Barbosa. A autora situa a trajetória e obra deste cancionista no contexto relativo ao processo de formação de nossa sociedade urbano-industrial (1930 -1982), priorizando o entendimento da obra deste artista, a partir de sua intrínseca relação com determinados aspectos ligados às transformações da metrópole paulistana. No entanto, a análise da autora passa ao largo de questões fundamentais que estariam imbricadas a esse contexto histórico, propriamente dito. Embora como ela mesma sugere, sua intenção seria discutir: ...a presença de Adoniran Barbosa nos meios de comunicação e o reflexo de sua obra na cultura, bem como na sociedade paulistana, focalizando o período de 1930 a 1982. (Bento, 1990, p.10)

Cabe assinalar que Bento constrói a trajetória de Adoniran Barbosa a partir de uma cuidadosa compilação de artigos de jornais e revistas que documentaram a sua carreira. Sobretudo, destaca-se, evidentemente,

a

23

presença do artista no rádio e na música popular. Não obstante, a passagem do ator pelo cinema e pela televisão também é aqui analisada. Em relação à sua participação no rádio, Bento enfatiza a importância do produtor e escritor Osvaldo Moles, nesta fase da vida artística do “compositor de Saudosa Maloca”. Para ela, Moles teria explorado, com muita sensibilidade, através de seus textos, toda a criatividade deste radioator que, moldando a sua voz, deu “vida” aos mais diversos personagens inspirados no cotidiano da metrópole paulistana. A partir de um eixo teórico embasado na semiótica, este trabalho desenvolve a análise das composições musicais do artista em questão, objetivando, assim, inferir sobre os traços característicos de determinado cantar paulistano, sintetizados no discurso verbal-musical deste compositor. Bento, refletindo sobre o contexto histórico no qual viveu o artista, considera que ele incorpora em sua música “a movimentação da vida popular” de uma cidade que se alastra pelo progresso que, por sua vez, contribuiu para modificá-la. Assim conclui:

O elemento agregador deste coletivo é a justa afinação de seu discurso rítmicomelódico, com o seu texto verbal, embrenhado de palavras que recriam um sotaque singular. Tal sonoridade, que parece uma mistura de italiano com ‘português falado errado’, entra em paralelo com o conteúdo semântico da narrativa. Conta estórias trágicas de atropelamento, despejo, abandono, demolição, desamor, desemprego e, curiosamente, parodia a estrutura sonora verbal-musical. (...) na medida em que o primeiro, em muitas composições, conta a tristeza e o segundo apresenta uma dimensão alegre contagiada ritmicamente pela síncopa. ( Bento, 1990, p. 219)

Estas observações nos parecem muito pertinentes, sobretudo esta questão da paródia – fato que nos remete ao traço de humor presente em determinadas composições deste sambista. Em Adoniran este aspecto implica um “jogo” entre os elementos verbais, relativos à entonação coloquial e aos elementos musicais. Observamos, porém, que este traço do humor não pode

24

ser tomado como um elemento estrutural da obra deste cancionista. Algumas interpretações de seus sambas, especialmente aquelas realizadas pelo grupo vocal-instrumental Demônios da Garoa, acabaram por matizar este traço mais humorístico e caricatural dos sambas de Adoniran. Assim, de certa forma, acabam influenciando a nossa escuta. Além disso, algumas construções da fala coloquial presentes nestas composições criam certo estranhamento e facilmente nos remetem a uma visão do cômico. Como já foi dito, a autora não traz para a análise uma leitura mais consistente sobre a trama histórico-social onde se encontram o artista e a sua obra. Não obstante, considera esta articulação como uma chave fundamental para se compreender este “cantar paulistano” que ela identifica em Adoniran Barbosa. Isto, portanto, cria alguns “vazios” ao longo do texto, reduzindo a reflexão aos elementos formais do “discurso” inscritos na obra deste compositor. Sobre a análise do Adoniran Barbosa radioator, Bento focaliza o programa Histórias das Malocas . A partir dos “scripts” desta radiopeça, ela busca entender este texto de Osvaldo Moles, atribuindo ao mesmo um caráter de crítica social. O humor deste programa se depreenderia, sob o seu ponto de vista, de uma construção caricatural da realidade dos habitantes da favela do Morro do Piolho. Portanto, através do exagero, não só se deflagrava o cômico, quanto se tornavam visíveis as contradições que marcavam a ordem social na São Paulo dos anos 1950. Para a autora, Adoniran e Osvaldo Moles – um ator radiofônico especializado em diversos tipos, o outro o produtor radiofônico, especializado em diversos personagens – na medida em que trabalhavam com registros de cenas e personagens do cotidiano paulistano, teriam promovido um encontro entre o rádio e o cotidiano desta metrópole. Adoniran, neste contexto, é visto como uma espécie de ponte entre a rua e o rádio. Cabe sinalizarmos que estas observações, já indicadas na obra de Walter Krauche, apontam para uma perspectiva que julgamos fundamental para a nossa análise, pois tocam no cerne de nossa questão, ou seja, aquela

25

que identifica neste artista uma poética intrinsecamente associada a certas práticas cotidianas que ele vivenciou ao longo de sua história. O livro de Bruno Gomes Adoniran – um sambista diferente, nos oferece uma biografia deste artista, destacando fatos de sua vida privada, de sua carreira de ator e sobretudo do Adoniran compositor de sambas. Bruno, não trabalha aqui nenhuma análise mais significativa sobre a obra deste artista. O texto se compõe de uma narrativa pautada por certa “linearidade” da história deste ator e sambista. Não obstante, este livro contribui com uma compilação importante sobre as composições de Adoniran, apresentando as letras destas canções, as datas em que foram feitas e informações sobre as suas gravações. Trabalhos recentes do historiador José Geraldo Vinci de Moraes sugerem uma análise interessante sobre o processo de produção e difusão da música popular urbana em São Paulo, abrangendo o final do século XIX até os anos 1930. Em seu livro Sonoridades Paulistanas o historiador elabora um mapeamento acerca dos círculos de difusão, produção e vivência da música em São Paulo. Ele observa, também, determinados nexos entre as festas religiosas e a produção da música popular paulista. Neste texto, o autor preocupa-se em documentar a história musical da cidade, desde o final do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Portanto, em um momento anterior ao advento do rádio ou de outras formas de reprodução sonora. Como bem indicou o historiador Elias Thomé Saliba na apresentação deste livro, trata-se de abordar a música popular em uma São Paulo transfigurada pelo crescimento da economia cafeeira. Este contexto, explica o historiador, refere-se a um quadro de intensa fermentação cultural, decorrente de um cenário cosmopolita peculiar, marcado por valores e tradições culturais européias, sobretudo italianas, convivendo em uma cidade de identidade instável, ainda saturada de usos africanos e costumes caipiras. A partir desta pesquisa, Moraes nos deixa algumas indicações sobre as “sonoridades paulistanas” que emergiram na cidade na passagem do século. Uma música que, segundo ele, se depreende de uma experiência sociocultural difusa, conseqüência da composição social cosmopolita de São Paulo que

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gerou uma série de experiências sociais cotidianas muito próprias e específicas.

Nesta trama de tensões sociais estavam envolvidas as práticas culturais dos negros, índios, brancos, ‘acaipirados’ e imigrantes dos mais variados perfis. Nos confrontos e encontros no tecido urbano contraditório, transitando entre o universo rural e o mundo das representações urbanas, estas diversas experiências se misturam, fundindo-se num amálgama cultural muito particular. (Moraes, 1995, pp. 183 e 184)

Assim, conclui o historiador:

... a realidade cultural e musical paulistana se constituía permeada por uma polifonia de experiências culturais das camadas populares e de sons que brotavam das diversas práticas presentes no espaço urbano. A cidade apresentava

uma

face

extremamente

fragmentada

e

de

múltiplas

características, onde as trocas, transições, misturas e fusões se efetivavam constantemente, não permitindo a estruturação de uma identidade e de um caráter único, de resto inconcebíveis nos modos de produção e difusão da cultura popular. (Moraes, 1995 , p. 185)

Este aspecto da cultura musical, resultante de fusões e misturas que constitui a polifônica trilha sonora de São Paulo da belle époque, se prolongaria, segundo Moraes, nas décadas seguintes. Assim, ele observa que se a memória coletiva paulistana, construída nestes momentos, pudesse ser sintetizada em apenas um indivíduo, este seria sem dúvida alguma João Rubinato. Neste sentido tais considerações são muito oportunas. Pois, para este historiador, Adoniran Barbosa, em função de aspectos de sua biografia e de sua música, sintetizaria as representações e os sons deste caráter singular da produção da música paulistana. Não apenas porque tematizou histórias do cotidiano popular desta cidade mas, especialmente, porque a sua trajetória e a

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sua característica de compositor e cantor continham e fundiam os diversos elementos desta cultura popular urbana. Tal fusão explicita-se tanto no seu texto, quanto na sua melodia. Como indica o autor, Adoniran Barbosa em sua linguagem misturava o italianismo paulistano com a típica fala acaipirada. Além disso, Moraes observa

uma característica peculiar dos sambas deste

compositor, um samba que não segue a tradição do forte ritmo da percussão, sendo melhor assimilado pelos pequenos conjuntos regionais. Em seu outro trabalho Metrópole em Sinfonia, Moraes segue investigando as “trilhas” da canção popular urbana paulistana, agora em um novo contexto – a São Paulo dos anos 1930 que, nesta década, configura-se como a “capital da indústria nacional”. Neste momento, a cidade

assume

características de uma metrópole industrial, marcada, sobretudo, por uma lógica excludente do crescimento urbano. Associado a este quadro socioeconômico, o autor sinaliza a presença do rádio e do disco, delimitando novos espaços de produção e difusão da cultura popular. Nesta década, também, se configurou o que hoje genericamente chamamos de música popular brasileira. Moraes chama a atenção para o fato de que São Paulo, de certa forma, teve o seu papel neste processo, embora a historiografia a esse respeito silencie a participação da “metrópole industrial” na construção desta “sonoridade brasileira”. Não é nosso objetivo, aqui, entrarmos no mérito desta questão. No entanto, parece-nos importante esta perspectiva, uma vez que se desloca o eixo destes estudos que, em geral, focalizam o Rio de Janeiro como o centro irradiador da “música brasileira”. Como

dissemos,

em

seu

trabalho

anterior,

Moraes

propõe

o

mapeamento da diversidade musical existente na São Paulo das primeiras décadas do século XX. O autor infere a partir daí uma espécie de polifonia sonora como traço característico da música paulistana. Nos anos trinta, diz ele, esta “sonoridade paulistana” começou a se consolidar. Este

aspecto da

diversidade cultural iria implicar em uma tradição singular dentro da radiofonia desta cidade. Para o autor, o incessante ritmo de crescimento urbano e a emergência dos meios de comunicação, atuando

em conjunto com certas tradições

28

paulistanas dos imigrantes e migrantes de diversas origens, foram definidores da formação da canção paulistana. É certo que este trabalho apresenta inúmeras contribuições em relação ao estudo da cultura popular urbana e a da música em São Paulo. No que diz respeito ao nosso tema, indicamos a relação que o autor propõe entre certa genealogia poética/musical paulistana e a obra de Adoniran Barbosa. Ao analisar um conjunto de “modinhas paulistanas” recolhidas por Alcântara Machado entre o final dos anos 1920 e início dos anos 1930, Moraes indica determinados elementos significativos para a compreensão da cultura e da música popular paulistana. Estas

“modinhas”

apresentam

em

sua

estrutura

um

caráter

excessivamente narrativo, com assuntos e temáticas trágicas, baseados nos fatos diários e reais que ocorriam na cidade. Como observa o autor, trata-se de histórias com começo, meio e fim, relatando traços do cotidiano da cidade que começava a se consolidar com as contradições características de grande metrópole.

Ao lado dos aspectos modernizantes, embelezadores e agitados da metrópole do café, despontavam os elementos degenerativos e contrastantes que também são parte constitutivas das grandes cidades: a violência, os delitos, a morte, a miséria etc. Deste modo, na cidade que crescia com incrível rapidez consolidando-se na década de 1930 como a maior cidade do país, homicídios e suicídios de diversas origens e causas, associados a delitos de toda ordem, eram acontecimentos recorrentes. Boa parte deles eram originados no binômio que esquentava e apimentava o fato jornalístico: amor/paixão não resolvido e o sexo. Mas não faltam casos de traição (feminina ou masculina), sedução (feminina ou masculina), abandono do lar ou de crianças desamparadas, sadismo, destino cruel, tragédias coletivas, velhos e crianças maltratadas, tudo isso envolvido por um clima generalizado de pobreza e miséria. São esses os fatos urbanos narrados pelas ‘modinhas paulistanas’ e, portanto, seus temas centrais. (Moraes, 1997, pp. 190 e 191)

29

A partir disso, Moraes aponta a presença da tradição das “modinhas paulistanas” na obra dos dois compositores mais emblemáticos da cidade de São Paulo – Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini.

O perfil de boa parte da obra dos dois autores assemelha-se muito ao apresentado por essas canções paulistanas dos anos 30 e ultrapassam o conhecido regionalismo paulistano dos compositores, já bastante comentado pela crítica, e permite-nos apontar que não trata-se apenas de simples coincidências.

Na

realidade

as

condições

históricas

e

culturais

que

colaboraram na tipificação do perfil musical dos compositores, já apareciam embrionárias, embora fortemente reveladoras, na década de 1930, período em que a cidade alcançava novo surto de crescimento urbano, indicando a consolidação de sua face metropolitana e constante transformação. (Moraes, 1997, p. 328)

Neste sentido, o historiador conclui que as diversas características dessas “modinhas”, criadas nas ruas e fundadas na oralidade, migraram para o universo do rádio, revelando-se nos programas, na linguagem radiofônica e na música. Portanto, o trabalho de Moraes nos dá algumas indicações importantes para vincularmos as composições de Adoniran Barbosa à narrativa histórico-musical que, a grosso modo, estaria implicada em certa tradição da cultura urbana paulistana originária da cultura oral.

*

*

*

Esta pesquisa baseou-se nas seguintes fontes:

documentos orais,

registros sonoros em discos e outros meios, VTs, revistas, jornais, periódicos e entrevistas. Em relação à documentação oral, trabalhamos com os depoimentos do próprio artista, de músicos populares e profissionais do rádio (locutores,

30

radialistas, programadores etc.) arquivados no Museu de Imagem e do Som de São Paulo e na TV Cultura, bem como, de entrevistas realizadas pelo pesquisador. Esta documentação nos foi pertinente, na medida em que estes depoimentos revelaram-se como

registros significativos da

memória da

comunidade musical e radiofônica paulistana à qual estava integrado Adoniran Barbosa.

Além

disso,

nestes

depoimentos

emergem

considerações

significativas sobre aspectos de sua biografia, de suas composições e de sua presença no rádio. Um documento escrito, de enorme interesse para esta pesquisa, diz respeito aos

“scripts” da radiopeça Histórias das Malocas . Esta

documentação foi pesquisada no acervo do extinto Museu Adoniran Barbosa, abrigado no prédio da Secretário de Esporte e Turismo do Estado de São Paulo. Trata-se de uma documentação essencial para encaminharmos a análise deste programa que foi um marco da atuação de Adoniran Barbosa na Rádio Record. A partir destes “scripts”, podemos abordar as estruturas narrativas das cenas, a construção dos personagens (heróis e anti-heróis) e as situações dramatizadas que recriavam os fatos cotidianos. Notamos que, neste momento, o rádio, muito mais que a televisão, catalisa e difunde elementos de um imaginário social compartilhado. Os registros sonoros, gravados em discos e CD’s ou em outros meios são

um

campo

fundamental

de

nossa

investigação.

Através

deles,

promovemos a análise das composições musicais focalizadas por esta dissertação, bem como, a análise do programa radiofônico Histórias das Malocas . Aqui destacamos os seguintes LPs e CDs:



LP: Histórias das Malócas – Esterzinha de Souza. São Paulo, Chantecler, s/d. Este documento contém algumas composições assinadas por Osvaldo Moles e Hervê Cordovil relativas a esta radiopeça e também falas de dois personagens centrais do programa: Charutinho e Dona Terezoca.

31



O primeiro LP gravado por A. Barbosa: Adoniran Barbosa. São Paulo, EmiOdeon, 1973



segundo LP gravado por A. Barbosa: Adoniran Barbosa. São Paulo, EmiOdeon, 1975. Destacamos na contracapa deste disco um texto de Antonio Candido, comentando o estilo e a importância da obra do artista.



terceiro LP, com a participação de Carlinhos Vergueiros, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Elis Regina, Gonzaguinha entre outros. São Paulo, Emi-Odeon, 1980.



LP: Saudades de Adoniran. São Paulo, Continental/Alvorada, s/d. – com reproduções de registros realizados por A . Barbosa, pelos Demônios da Garoa e por Wilson Miranda. Neste disco, encontram-se a primeira gravação de Saudosa Maloca, feita por Adoniran em 1951, além de um trecho do programa Histórias das Malocas, de 1956, e entrevistas com A . Barbosa.



disco Adoniran & Vanzolini. São Paulo, Abril Cultural, série História Música Popular Brasileira, 1982.



CD: Adoniran Barbosa – Documento Inédito. São Paulo, Estúdio Eldorado, 1984. Aqui, encontramos registros de depoimentos do artista que se entremeiam às interpretações que ele faz de seus sambas.



Em relação aos seus intérpretes mais importantes, Os Demônios da Garoa, destacamos o LP: Os Demônios da Garoa Interpretam Adoniran Barbosa. São Paulo, Chantecler.



CD: Isto É São Paulo – Na Voz de Silvio Calda., São Paulo, RGE, s/d - foi utilizado por nós como um registro para empreendermos a análise de certa canção

depositária

do

paulistanismo-ufanista

que

marcou

as

comemorações do IV Centenário. Em relação a registros em VTs destacamos o seguinte documento:

32



MPB – Especial de 29/11/1972 – Programa realizado pela TV Cultura em que Adoniran, além de interpretar suas músicas, relata uma série de acontecimentos ligados a sua trajetória artística. No que diz respeito aos jornais, revistas e periódicos estes documentos

escritos foram investigados no intuito de resgatarmos as análises, reflexões e opiniões sobre a carreira e a obra de Adoniran Barbosa e sobre o universo radiofônico em que ele atuou. Cabe assinalar que parte desta documentação foi pesquisada junto ao acervo do extinto Museu Adoniran Barbosa. 6 Ainda no âmbito desta fonte documental, foram utilizados edições de jornais e revistas referentes à data do IV Centenário de São Paulo em 1954, como subsídio para análise de determinada forma de representação da capital paulista empreendida pelo discurso oficial. A análise do contexto da cidade de São Paulo, ao qual se inserem a trajetória e a obra de Adoniran Barbosa, apoiou-se em registros de memoralistas, além de em material iconográfico, sobretudo fotografias que retrataram a São Paulo dos anos 40, 50 e 60. Em relação aos registros fotográficos destaca-se a série Flagrantes de São Paulo de Alice Brill, pesquisada junto ao acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo MAC-USP. Trata-se de uma série de imagens datada de 1954. Esses registros captam o cotidiano da metrópole sobre uma perspectiva que se coloca na contramão das representações que celebram a São Paulo do progresso.

6

Inaugurado em 23 de novembro de 1984, por iniciativa de D. Matilde Barbosa o Museu Adoniran Barbosa funcionou até o fim de 1989, quando deixou de existir, perdendo o seu espaço físico. O acervo é composto por mais de duas mil fotos, além de arquivos com artigos de jornais, revistas, partituras musicais, brinquedos em miniaturas fabricados pelo compositor e objetos de uso pessoal que foram reunidos durante quarenta anos por D. Matilde, esposa de Adoniran. Durante o tempo em que recebeu a visitação do público, o museu funcionou dentro do cofre do Espaço Turístico, pertencente à Secretaria de Esporte e Turismo do Estado. Esse órgão público ocupa a antiga sede do Banco de São Paulo e está localizado na praça Antônio Prado, Centro.

33

CAP. 1

REPRESENTAÇÕES DA METRÓPOLE:

São Paulo – os anos 1950

Fig. 4 Publicada na Revista O Cruzeiro – 1954. Vista aérea do Edifício Altino Arantes inaugurado em 1947, conhecido como Edifício do Banespa, ícone da modernidade paulista. Na legenda, um texto exalta a intensa verticalização de São Paulo:”O paulista significa, hoje como ontem, ritmo de progresso de crescimento , delírio de conquistar o céu com os seus gigantes de ferro e cimento armado.”

34

CAPÍTULO 1 REPRESENTAÇÕES DA METRÓPOLE: São Paulo – os anos 1950 “São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo”.

Esta frase

emblemática deu o tom das comemorações do IV Centenário da metrópole paulista, em 1954. Para os setores dominantes, cujos interesses orquestraram o intenso processo de expansão da cidade, esta idéia será exaltada como progresso. Eis o sentido para o qual convergiam as representações que na época se impuseram como a “autêntica” identidade de São Paulo e de sua gente. Investir, portanto, na reflexão das múltiplas direções possíveis a partir deste discurso, se mostrou como um caminho fértil para esta dissertação. Vale observar que tal discurso legitima

o desenvolvimento de um processo

histórico, cujo resultado mais contundente é a configuração de um espaço urbano marcado por profundas contradições sociais e econômicas. A nosso ver, a poética de Adoniran inscreve-se no âmbito das tensões socioculturais decorrentes do processo de metropolização em curso na São Paulo dos anos 1950. Com isso, a data do IV Centenário se coloca em nosso trabalho como uma referência fundamental. Para os setores dominantes, a comemoração dos quatrocentos anos da cidade será oficializada como um momento privilegiado de exaltação do paulistanismo que passa a fundamentar

determinadas

representações da metrópole paulista. Esta refletiria a obra grandiosa de uma civilização assentada sobre os trilhos do progresso e da modernidade. Em um primeiro momento, a gravação do samba História Paulista subsidiou todo um percurso de nossa análise. Nesta composição, revelam-se os traços de um discurso oficial que traduzirão São Paulo como a cidade do progresso e do trabalho. Este samba inscreve-se no âmbito de certo “espírito cívico” exaltado nas comemorações do IV Centenário e filia-se à estética dos chamados sambas-exaltação. Este modelo de canção popular compreende determinadas relações entre música e política idealizadas

no contexto do

Estado Novo. Nesse sentido, a análise de História Paulista nos leva representação de

à

nação-povo forjada neste período de nossa história. A 35

legitimidade deste samba, como um “autêntico” representante da identidade paulistana, perpassa, portanto, determinados nexos que o situam nesta tradição do ufanismo-nacionalista da Era Vargas. Enquanto,

o

samba

História

propagandístico que imprime uma visão

Paulista

articula-se

ao

aparato

auto-congratulatória da metrópole

paulista, percebemos que a poética, na qual se inscreve a obra de Adoniran, delineia-se como um contraponto ao discurso oficial. Neste sentido, investimos na reflexão da radiopeça Histórias das Malocas como uma espécie de dissonância a estas representações oficiais

da modernidade paulistana.

Lembramos que nos anos 1950, está em curso no Brasil um processo de transformações marcado pela intensa industrialização, pela urbanização, pelas migrações internas e

pelos novos padrões de consumo e produção. A

metrópole paulista é o espaço por excelência da sociedade que emerge em face destas transformações. De um lado, São Paulo, palco da modernidade, legitima-se como o lugar o progresso e do trabalho. Estas balizas fundamentam certa identidade da metrópole e daqueles que a habitam. Por outro lado, a poética de Adoniran, afinada ao universo de uma “cultura popular”, transita neste contexto urbano subvertendo a lógica de seus valores. Um Samba-Exaltação no IV Centenário As notas musicais em desenho melódico ascendente emolduram os acordes maiores executados por um naipe de metais. O som destes instrumentos de sopro, o rufar de tambores e a percussão dos pratos criam uma atmosfera solene, o arranjo conduz o ouvinte à expectativa de uma celebração majestosa. No ápice desta introdução imponente - pausa, o clima fica suspenso - simultaneamente soam com delicadeza os acordes do piano e a voz

do

“seresteiro do Brasil” , Silvio Caldas, entoa neste momento os

primeiros versos de História Paulista, uma composição de Lauro Miller: Chega Anchieta ao topo do imenso planalto Pouco depois ali mesmo um colégio ergueu Depois de uma prece elevou suas mãos para o alto São Paulo se fez cidade e cresceu

36

Ao final de cada verso, entremeiam-se novamente os instrumentos de sopro. Quando chegamos ao final desta estrofe, a voz do seresteiro, ao entoar as últimas vogais, sustenta as notas mais altas do desenho melódico até aí desenvolvido – pausa - o arranjo agora em ritmo de samba nos leva para um outro momento da canção. A partir daí, a orquestra

imprime um colorido

vibrante e o samba contagia os corações e os corpos dos ouvintes. Sobre este suporte sonoro, Silvio Caldas canta a continuação da epopéia do mito fundador da cidade: Tivemos os heróicos bandeirantes Procurando as esmeraldas Para enfeitar a nossa história Depois, os intrépidos paulistas Perderam se nas conquistas De triunfos e de glorias E um dia Em São Paulo entre paulistas Na colina do Ipiranga sob um sol primaveril D. Pedro empunhando a sua espada Proclama a Independência do Brasil7

Novamente ao findar a última estrofe, a palavra Brasil é entoada de forma ascendente e a orquestra faz soar os metais enfatizando o traço grandiloqüente das pompas do arranjo. A concepção do arranjo, o desenho melódico e a temática de História Paulista

nos remetem ao samba Aquarela do Brasil8. Há aí uma nítida

analogia em relação a esta composição de Ari Barroso e também uma referência ao arranjo de Radamés Gnattali para a primeira gravação deste samba feita por Francisco Alves em 1939. Se ainda considerarmos o fato de que Silvio Caldas foi um dos grandes intérpretes de Ari Barroso e gravou Aquarela do Brasil em 1942, com a mesma roupagem que lhe emprestou o 7

Composição de Lauro Miller, gravada no LP “Isto é São Paulo – Na Voz de Silvio Caldas” – Este LP foi lançado por ocasião do IV Centenário de S. Paulo em 1954. Anexo 1 – CD – trilha 1. 8 Anexo 1 – CD – trilha 2 37

maestro Radamés, então História Paulista, na voz do “seresteiro do Brasil” , sugere ao ouvinte os traços familiares de um determinado repertório musical. O fato é que Aquarela do Brasil tornou-se o paradigma dos chamados sambas-exaltação, composições estas que embalaram o ufanismo da alma brasileira conduzido pelos acordes do Estado Novo sob a regência de Getúlio Vargas. Através do DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda - o Estado atuava fortemente nos diversos setores da cultura, incluindo a música popular, censurando e estimulando os compositores a criarem letras exaltando a pátria, o trabalho e a família. A presença da ditadura varguista no campo da música foi, assim, assinalada por Valter Krausche: O Estado Novo absorvia a música e a folia populares; garantia os trilhos e exigia que caminhassem na linha; um Estado “disciplinador” e “musical” ao mesmo tempo: não foi à toa que instituiu o canto orfeônico nas escolas; também não foi à toa que Villa-Lobos foi chamado para reger corais constituídos por milhares de crianças durante os festejos cívicos. Nessa linha impôs a grandiloqüência, cantando para o país inteiro o que ele possuía de bom e de belo: surgia o “samba-exaltação”, cujo melhor exemplo foi “Aquarela do Brasil” (1939), de Ari Barroso. Muitas vezes esse canto em alto e bom som, era visto pelos compositores como algo normal, “natural”, para se perceber até que ponto a voz possante do Estado Novo havia sido interiorizada

pelos

artistas...) (Krausche, 1983, p. 51)

Portanto, no contexto político que resultou dos acontecimentos de outubro de 1930, o projeto do governo Vargas adentrou o campo musical, fato este que se intensificou a partir de 1937 com a instalação do Estado Novo. Além do ufanismo nacionalista que caracterizou os sambas-exaltação, a ideologia do trabalhismo, um dos aspectos de legitimidade do populismo de Vargas, também se utilizou da canção popular como veículo de sua difusão. Através de sambas e marchas carnavalescas, alguns compositores passaram a enaltecer o valor do trabalho opondo-se a outras narrativas que tradicionalmente articulavam-se a estes gêneros musicais.

38

Se no campo da música popular, este contexto histórico inaugurou determinadas relações entre esta expressão da cultura e o poder9, arquitetando uma nova temática para as letras e imprimindo aos arranjos um traço grandiloqüente10, como por exemplo em: Canta Brasil canção de David Nasser e Alcir P. Vermelho, gravada por Francisco Alves (1941) - que também exibia o mesmo clima de samba apoteótico de Aquarela do Brasil. Por outro lado, esta matriz ideológica há muito já era fomentada por aqueles que pretendiam implementar o ensino do canto orfeônico no Brasil. Sobre este aspecto, Arnaldo Contier menciona uma diretriz romântica de conotações cívico-patrióticas, presente desde o início do século XX, embasando a argumentação e a prática dos defensores do ensino do canto coral nas escolas brasileiras. Assim, esta pedagogia visava despertar, nas crianças, o amor à Pátria. Em seu trabalho, o autor cita o fragmento de um discurso extremamente emblemático, proferido por João Gomes Júnior, na qualidade de paraninfo da turma de 1921, da Escola Normal de São Paulo. É interessante observar como esta oratória poderia ser adaptada perfeitamente como letra de um samba-exaltação:

9

José Miguel Wisnik em Getúlio da Paixão Cearense ( Villa Lobos e o Estado Novo). In: O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira – Música – Enio Squeff e José Miguel Wisnik. São Paulo, Brasiliense, 1982 - chamou atenção para este aspecto: “...Durante o Estado Novo, o samba, que tradicionalmente sustentava a apologia da boêmia e do ócio malandro, dialoga ambiguamente com o poder, aquiescendo muitas vezes no elogio da ordem e do trabalho. Ganhando nessa época o tom eloqüente do sambaexaltação, ele proclama o Brasil como usina do mundo, faiscante forja de aço do futuro, segundo um ethos heróico pouco comum em sua história.” Obs: O autor aqui faz referência ao samba Brasil Usina do Mundo (João de Barro e Alcir P. Vermelho), um misto de ufanismo, nacionalismo e trabalhismo. “Dias de luz, hão de ser/ Sempre os teus / Brasil, usina do mundo / As águas moveram as rodas (...)/ As forjas lançaram fagulhas(...)/ E junto às fornalhas gigantes / o malho empunhando, / Homens de mãos calejadas trabalham cantando (...) / É a voz do Brasil/ que trabalha cantando feliz. 10 O arranjo do maestro Radamés Gnattali para Aquarela do Brasil denota uma clara influência das chamadas Big Bands. Após a crise de 1929, o Jazz se transforma, o folclore de Louisiana cede lugar aos temas correlatos a um cancionismo urbano, a improvisação conhece um período de classicismo, onde os músicos procuram o virtuosismo, a elegância na frase e a exaltação do “swing”. O público não se contenta mais com os exercícios de estilo dos solistas das pequenas formações. Eles estão atraídos pelos sons de massa das grandes orquestras, que se apresentam com uma estrutura razoavelmente fixa: 3 a 5 trompetes, 2 ou 3 trombones, 5 ou 6 saxofones e uma seção rítmica. Esta fórmula entusiasmará o público. Dentre estas orquestras, destacaram-se as de Duke Ellington, Benny Goodman, Dizzy Gillespie, Glenn Miller entre outras. Nos anos 30, as Big Bands padronizaram um estilo: “...a improvisação coletiva reduziu-se a simples frases repetitivas, uma base sólida que permitia aos músicos tomar pulso firme da melodia, das harmonias e do padrão rítmico antes de ir adiante nos caminhos de seus solos individuais. Os principais temas para essas improvisações eram o ‘pop’ e, mais do que tudo, os ‘ blues’ de doze compassos, cujos acordes e forma todos conheciam e que permitiam liberdade total para o seu desenvolvimento. O ‘blues’, assim adaptado, tornou-se a base tanto para números rápidos quanto para lentos...” (Hobsbawm, 1990,p. 121). A partir de 1945, as Big Bands entraram em declínio. 39

“... não vos esqueçais de que deveis cantar com os vossos alunos as canções dolentes e melancólicas da nossa terra, que virão despertar neles o amor pelo Brasil. Sim! Cantai com eles a nossa terra, a opulência das nossas florestas, os arreboes (sic) sangrentos e cheios de saudade dos nossos crepúsculos, as glórias imorredouras da nossa raça, a pompa sempre risonha e florida da nossa eterna primavera e os cantos tão cheios de doçura de um povo que, tendo nascido nas mais formosa das terras, tem também no coração a mais ardente e a mais bela das paixões – a música. Tudo na nossa terra é Musical.”11

Adiante Contier nos fala da fundação do primeiro orfeão no Brasil, criado na década de 1920 em Piracicaba por Fabiano Lozano, para este compositor o ensino e a prática do canto coral se fundamentava estritamente em sua implicação cívica. Autor de numerosos trabalhos dedicados ao ensino do canto orfeônico, F. Lozano:

“defendia

a

íntima

conexão

música-civismo

como

um

componente

imprescindível na formação do cidadão brasileiro. ... Em geral, as canções eram de teor ufanista, sempre exaltando a nação: Dia da Pátria (texto de Thiers Cardoso); Terra de Santa Cruz; Meu Brasil (Ó terra do Brasil, terra colossal, de belezas mil...); Viva o Brasil; Amo-te, Brasil. Cantavam-se muitas canções dirigidas à juventude, tais como Estudante do Brasil, À Mocidade Acadêmica (...Viva o trabalho feito com amor!...). (Contier, 1998 p.15)

Segundo Contier, com a Revolução de 30, mediante o apoio político do governo,

tornou-se possível implantar o ensino do canto orfeônico nas escolas do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e outros estados. Os temas dessas músicas, de um lado, apoiavam-se no folclore nacional e, de outro, na exaltação da pátria, do trabalho, do civismo. (Contier, 1998 p.16)

11

In: CONTIER, Arnaldo D. Passarinhada do Brasil: canto orfeônico, educação e getulismo. Bauru, SP, EDUSC, 1998. pp. 11 e 12.

40

A partir daí, o autor procura analisar as implicações entre canto orfeônico, educação e getulismo, mostrando de que forma a Música atuou como elemento propagandístico durante o governo Vargas e mesmo como esta conjuntura política era favorável ao desenvolvimento de determinadas concepções sobre a música brasileira, entre elas, as que eram apregoadas por Villa Lobos: Consciente ou inconscientemente, Villa-Lobos sentiu que a conjuntura política de 1930 era muito favorável ao desenvolvimento de suas idéias sobre a música brasileira. No dia 3 de maio de 1931, Villa-Lobos realizou uma grande concentração cívico-artística no parque Antártica, em São Paulo, sob o apoio e patrocínio do interventor João Alberto... Neste espetáculo cívico-artístico, ele conseguiu reunir 60.000 pessoas, aproximadamente... De acordo com as próprias palavras de Villa-Lobos: “... Foi o meio pelo qual a música pôde penetrar em todas as camadas sociais, e dada a sua qualidade estritamente brasileira – porque desde o início procurei dar uma feição nacional aos programas elaborados para uso das escolas – o canto orfeônico tornou-se desde então, um fator importantíssimo de difusão do sentimento de patriotismo e do desenvolvimento da consciência nacional, entre a massa popular e entre as novas gerações.”

Na verdade, a propaganda

dirigida às massas no sentido de atraí-las para as figuras de Villa-Lobos ou de Getúlio Vargas acabou se tornando um novo recurso bastante eficaz para a sacralização do conceito de brasilidade nos campos da música e da política.

(Contier, 1998 pp. 19-20) O próprio Ari Barroso, como veremos a seguir, designa este sentido de brasilidade como ponto inspirador de

Aquarela do Brasil. Corria o ano de

1939 – aliás, o mesmo ano em que foi criado o DIP – , segundo o compositor, uma

noite chuvosa o prendeu em sua casa, no bairro do Leme, Rio de

Janeiro.12 Neste clima do aconchego familiar,

em um

dado momento de

profunda sintonia com os valores grandiosos da nossa terra, ele pôde, junto ao piano, conceber a idéia de libertar o samba das tragédias da vida.

12

Este relato consta no livro de Sérgio Cabral - No Tempo de Ari Barroso. Rio de Janeiro, Lumiar Editora, s/d. p. 179

41

“Senti, então, iluminar-me uma idéia: a de libertar o samba das tragédias da vida, do sensualismo das paixões incompreendidas, do cenário sensual já tão explorado. Fui sentindo toda a grandeza, o valor e a opulência da nossa terra, gigante pela própria natureza. Revivi, com orgulho, a tradição dos painéis nacionais e lancei os primeiros acordes, vibrantes, aliás. Foi um clangor de emoções. O ritmo original, diferente, cantava na minha imaginação, destacando-se do ruído forte da chuva, em batidas sincopadas de tamborins fantásticos. O resto veio naturalmente, música e letra de uma só vez. Grafei logo na pauta e no papel o samba que produzira, batizando-o de Aquarela do Brasil.... Senti-me outro. De dentro de minh’alma, extravasara um samba que eu há muito desejara, um samba que, em sonoridades brilhantes e fortes, desenhasse a grandeza, a exuberância da terra promissora, da gente boa, laboriosa e pacífica, povo que ama a terra em que nasceu. Esse samba divinizava, numa apoteose sonora, esse Brasil glorioso.”13

É interessante notar que esta fala de Ari Barroso datada de 1958, em entrevista concedida à jornalista e historiadora Marisa Lira, enfatiza a idéia de Aquarela do Brasil

como

uma espécie de matriz referencial para os

compositores, quando se trata de expressar os sentimentos mais elevados de nossa brasilidade. Para tanto, ele sinaliza a necessidade de um gesto de libertação, devendo-se esvaziar o samba do sentido de uma narrativa

que

possa liga-lo à sua própria história, ou seja: a das tragédias da vida, a das paixões incompreendidas, a do cenário sensual. O momento desta descoberta, segundo a experiência relatada por Ari Barroso, é sublime, porque representa a possibilidade do “novo” e da “originalidade”. Ao romper-se a continuidade de uma narrativa histórico-musical,

vislumbra-se no horizonte o alvorecer do

“novo tempo”, da “nova criação”. No entanto, se o gesto de libertação implica em anular as relações que até então inspiraram o compositor, sinalizando o marco zero de uma nova trilha, por outro lado, este ato resulta na eclosão do autêntico sentimento

da grandeza da pátria. O samba apartado das

circunstâncias cotidianas e desobrigado das paixões efêmeras, se potencializa como um novo samba, sincopado nas batidas de tamborins fantásticos, expresso em 13

acordes vibrantes, um samba condensador das sonoridades

In: CABRAL, Sérgio – Op. Cit. p. 179

42

brilhantes e fortes que é a própria expressão da exuberância da terra e do povo brasileiro. Assim, o compositor aponta para um sentido de maravilhamento diante da presença desta expressão sonora, uma aparição que é, em si mesma,

não o samba, mas a presença da exuberância de uma terra

promissora, algo inusitado, pois habita profundamente enraizado em sua alma, um encanto que se apresenta, em forma de samba, apoteose sonora, divinizando o Brasil glorioso - o samba sublimado é, em si mesmo, a aquarela do Brasil. A concepção de brasilidade expressa no

discurso do compositor

corresponde a essa matiz romântica de conotações civico-patrióticas de que nos fala Arnaldo Contier, ajustando-se, assim, à representação de nação-povo e à versão de História forjadas nos anos 30 no contexto do governo varguista. O regime de 1937 tratou de formar uma ampla opinião pública a seu favor, ...pela censura aos meios de comunicação e pela elaboração de sua própria versão da fase histórica que o país vivia. A preocupação do governo Vargas nesse sentido vinha desde seus primeiros tempos, quando em 1931 surgiu o Departamento Oficial de Publicidade. Em 1934, foi criado no Ministério da Justiça o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, que funcionou até dezembro de 1939. Nessa data, o Estado Novo constituiu um verdadeiro ministério da propaganda (o famoso DIP...), diretamente subordinado ao presidente da República, que escolhia seus principais dirigentes.

(Boris,

2000, pp. 375 – 6. )

Assim, nas várias manifestações dirigidas ao grande público ou através de publicações destinadas a um círculo mais restrito, o Estado Novo procurou transmitir sua versão da história do país. No âmbito da história mais recente, ele se apresentava como a conseqüência lógica da Revolução de 1930. Fazia um corte radical entre o velho Brasil desunido, dominado pelo latifúndio e pelas oligarquias, e o Brasil que nasceu com a revolução. O Estado Novo teria realizado os objetivos revolucionários, promovendo através da busca de novas raízes, da integração nacional, de uma ordem não dilacerada pelas disputas partidárias a entrada do Brasil nos tempos modernos. (Boris, 2000, p. 376. ).

43

Ou seja, a Revolução de 1930 e a posterior consolidação de seus propósitos, segundo os ideólogos do regime instaurado em 1937, com o Estado Novo, passaram a ser simbolizadas como um marco zero do nosso devir histórico. Não se trata de um lapso daquilo que fomos e somos, mas da reinvenção das tradições nacionais que agora, potencializadas pelo “novo tempo”, passam a compor a versão oficial da história do país, fato este que será legitimado na reedição de uma “autêntica” identidade brasileira. Nesta perspectiva analítica, Lilian M. Schwarcz nos fala

da reabilitação da terra tropical e sobretudo do

mestiço como ícones de nacionalidade no contexto deste período histórico: Era a cultura mestiça que, nos anos 30, despontava como representação oficial da nação. Afinal, como qualquer movimento nacionalista, também no Brasil a criação de símbolos nacionais nasce ambivalente: um domínio em que interesses privados assumem sentidos públicos. O próprio discurso da identidade é fruto dessa ambigüidade que envolve concepções privadas e cenas públicas, na qual noções como povo e passado constituem elementos essenciais para a elaboração de uma nacionalidade imaginada. Nesse sentido, a

narrativa oficial se serve de elementos disponíveis, como a história, a

tradição, rituais formalistas e aparatosos, e por fim seleciona e idealiza um “povo” que se constitui a partir da supressão das pluralidades. (Schwarcz, 1998, p. 192).

Segundo a autora, a partir dos anos 30, “no discurso oficial “o mestiço vira nacional”, ao lado de um processo de desafricanização de vários elementos culturais, simbolicamente clareados. Esse é o caso da feijoada, naquele contexto destacada como um “prato típico da culinária brasileira” ...Era, portanto, numa determinada cultura popular e mestiça que se selecionavam os ícones desse país: da cozinha à oficialidade, a feijoada saía dos porões e transformava-se num prato tradicional. (Shwarcz, 1998. pp. 192-3)

44

Entre outros exemplos do uso político da cultura aqui citados destacamos: o samba (nos anos 30 o samba sai da marginalidade para ser exaltado como autêntica expressão de brasilidade). Cabe ainda lembrar que as escolas de samba e desfiles passam a ser oficialmente subvencionados a partir de 1935 e em 1937 por decreto, elas foram obrigadas a escolher temas da história oficial do Brasil, cristalizava-se, assim, o samba-enredo. (Krausche, 1983) Os versos de Ari Barroso, em Aquarela do Brasil,

inscrevem-se na

ordem destes novos símbolos representativos da construção de brasilidade nos anos 1930: Brasil Meu Brasil brasileiro Meu mulato inzoneiro Vou cantar-te nos meus versos Ô Brasil, samba que dá Bamboleio que faz gingar O Brasil do meu amor Terra de nosso senhor Brasil, Brasil Pra mim, pra mim Oi, abre a cortina do passado Tira a mãe preta do cerrado Bota o rei Congo no congado Brasil, Brasil Deixa cantar de novo o trovador À merencória luz da lua Toda a canção do meu amor Quero ver essa dona caminhando Pelos salões arrastando O seu vestido rendado Brasil, Brasil Pra mim, pra mim Oi, Essas fontes murmurantes Onde eu mato a minha sede E onde a lua vem brincar Oi, este Brasil lindo e trigueiro

45

É o meu Brasil Brasileiro Terra de samba e pandeiro Brasil, Brasil Pra mim, pra mim

14

Como bem observou Lilian Shwarcz, este processo de construção do que seria o sentido de brasilidade, não se deu de maneira aleatória ou meramente manipulativa. Segundo ela, no Brasil dos anos 30, dois grandes núcleos aglutinam conteúdos particulares de nacionalidade: o nacional-popular e sobretudo a mestiçagem, não tanto biológica, porém, cada vez mais cultural. É nesse contexto também que uma série de intelectuais ligados ao poder público passam a pensar em políticas culturais que viriam ao encontro de “uma autêntica identidade brasileira”. Com esse objetivo é que são criadas ou reformadas diversas instituições culturais que visam “resgatar” (o que muitas vezes significou “inventar”, ou melhor, “selecionar e recriar”) costumes e festas, assim como um certo tipo de história. ( Shwarcz, 1998, p. 193)

A tradição construída nos anos 1930, entorno de determinadas concepções acerca da nação e do povo15, repercutiu no campo da música popular, gerando um novo eixo de uma narrativa histórico-musical, onde Aquarela do Brasil sinaliza um exemplo paradigmático. Correspondendo a 14

Em 1943, este samba de Ari Barroso integrou a trilha sonora de “Alô, amigos” de Walt Disney. Este filme que foi realizado dentro dos propósitos da “Política da Boa Vizinhança”, implantada pelo presidente Franklin Roosevel, apresentava pela primeira vez o personagem “Zé Carioca”. Segundo Lilia M. Schwarcz uma versão internacional da mestiça malandragem brasileira.. Cabe ainda observar que com o sucesso do filme, Aquarela do Brasil ganhou uma repercussão internacional, afirmando-se como autêntica representação do samba brasileiro. Além, desta composição, No Tabuleiro da Baiana, divulgada por Carmem Miranda, também representou um grande sucesso de Ari Barroso no exterior. Entusiasmado com o êxito da sua música, o próprio compositor excursionou por vários países. Em suas apresentações exigia que uma bandeira brasileira fosse colocada à vista, como se a orquestra por ele regida fosse a embaixatriz do samba. 15 José Murilo de Carvalho em sua obra Pontos e Bordados - Escritos de História e Política. Belo Horizonte , Ed. UFMG, 1998, analisando como as imagens da nação brasileira variaram ao longo do tempo ( desde a independência até o Estado Novo) de acordo com as visões da elite ou de seus setores dominantes, mostra como no contexto do governo Vargas engendrou-se um grande esforço no sentido de se construir uma visão positiva do povo. “O Brasil era o povo brasileiro, às elites cabia tirar desse povo e de sua cultura a inspiração de brasilidade.(...) nunca um governo adotara como postura oficial a valorização do popular sobre o erudito, do povo sobre a elite. O modelo de Brasil não estava mais na Europa ou nos Estados Unidos, nem mesmo na canibalização de valores externos, como queria Oswald de Andrade. Estava em nossa própria história, em nossos heróis, em nossas tradições, em nosso patrimônio, em nosso povo.” p.260

46

esta filiação estética, o samba História Paulista de Lauro Miller recria estes traços referenciais; pois, trata-se de expressar, como sugeriu Ari Barroso, a grandeza, a exuberância da terra promissora, da gente boa. laboriosa e pacífica de nossa pátria, que neste caso estaria representada por São Paulo. Composta na década de 50 por ocasião do IV Centenário da cidade, em 1954, História Paulista configura-se como um samba-exaltação, reverenciando com este espírito cívico o gesto celebrativo dos quatrocentos anos da metrópole paulista.

Isto é São Paulo. A arte e o acontecimento, diz Jean Starobinski: ...aclaram um ao outro; têm valor de indício um em relação ao outro, mesmo quando, ao invés de se confirmarem, se contradizem. (Starobinski, 1989, p. 19)

Consciente ou inconscientemente, Lauro Miller irá

associar ao

acontecimento do IV Centenário os valores fundadores de um sentido de brasilidade, de um sentimento cívico que, como dissemos,

remete a

determinados traços do que se convencionou chamar de samba-exaltação. Certo é que nos primeiros anos da década de 1950, a memória deste aspecto da

trajetória da música popular, fundada na república getulista, ainda se

mostra atual para estes compositores. Por outro lado, o momento histórico, iniciado com o fim do Estado Novo em 1945, representou não uma ruptura com o passado, mas uma mudança de rumos, mantendo-se muitas continuidades. Esta razão explica a vitória de Getúlio Vargas nas eleições de 1950 e a sua volta à presidência da República de 1951 até o dia 24 de agosto de 1954, data do seu dramático suicídio. Neste contexto, fortemente marcado pela figura do ex-ditador

o cenário nacional ainda é e pela herança do projeto

estado-novista que buscou transformar o Brasil econômica, política, social e culturalmente. Desse modo, o ufanismo-nacionalismo, uma das peças de sustentação do discurso getulista, ainda possui um

largo trânsito entre a

população. Ou seja, o sentimento de agregação e pertencimento a uma terra

47

grandiosa e farta, o que deveria produzir orgulho nos seus filhos, como bem traduziu Maria Helena R. Capelato (1998, p. 246) ao se referir a tal discurso nacionalista, ainda ressoa, neste momento, fortemente no imaginário social. 16 O paulistanismo manifesto no samba de Lauro Miller filia-se a essa imagem positiva do país, de sua gente e de sua história incentivada pela visão cívico-patriótica que se articulou sob a égide do projeto estado-novista. Assim, paulistanismo e brasilidade conjugam-se em História Paulista, revelando os traços de uma forma de representação e significação da identidade da metrópole paulista, amplamente exaltada nas comemorações do IV Centenário. Nesta perspectiva, o modelo narrativo tecido pelo compositor ao vincular-se à história oficial e promover a fusão de

determinados ícones

– Anchieta,

Bandeirantes, D. Pedro – com as imagens enaltecedoras de certa concepção de

progresso – conquistas, triunfos e glórias – reafirma a definição da

identidade da cidade, forjada na perspectiva do progresso exaltador de uma São Paulo industrial, crescente, um farol brilhando para o futuro. Estas imagens que pretendem simbolizar, não apenas a metrópole paulistana, mas o Brasil moderno, representariam o coroamento de uma longa história marcada por ações heróicas ou patrióticas motivadoras do orgulho cívico. Percebe-se, assim,

nos versos de História Paulista a ambivalência

destes símbolos que apontam para si o sentido de um paulistanismo. Como mostra Lilia M. Shwarcz, ao analisar o caráter desta forma de criação

16

Em seu livro Multidões Em Cena – Propaganda Política no Varguismo e no Peronismo, Maria Helena R. Capelato (1998) propõe um estudo comparado entre o varguismo e o peronismo, tendo como eixo a análise da propaganda política construída e divulgada no Estado Novo brasileiro (1937-1945) e na política peronista (1945-1955). Esse aparato propagandístico desenvolvido na Europa, por conta do nazifascismo, foi reapropriado pelo regime brasileiro e argentino, reconfigurando-se a essas conjunturas históricas particulares. Com isso, Capelato desenvolve uma reflexão sobre o caráter autoritário da propaganda veiculada através dos meios de comunicação, educação e produção cultural com o objetivo de conquistar as grandes massas. A montagem deste sistema de propaganda, nos moldes criados pelo nazismo e pelo fascismo, diz a historiadora: “... representou uma tentativa de reformular os mecanismos de controle social considerado inadequados aos novos tempos. Valendo-se das técnicas sofisticadas de comunicação com o objetivo político, os representantes do varguismo e do peronismo procuraram canalizar a participação das massas na direção imposta por esses regimes. Procurando impedir a expressão de conflitos e manifestações autônomas com sentido de oposição, negou-se o princípio da pluralidade da vida social, característica das experiências democráticas, substituindo-o pela proposta de construção de uma sociedade unida e harmônica.” (Capelato, 1998, p.19) É importante assinalar que este caráter autoritário, expresso na forma e no conteúdo das propagandas que viabilizaram a consolidação destes regimes, reaparece neste contexto por nós abordado. Nesse sentido, podemos ler certos traços deste modelo de publicidade no aparato propagandístico que impulsionou as comemorações do IV Centenário.

48

simbólica, trata-se de um domínio onde interesses privados assumem sentidos públicos. A história e a definição da identidade paulistana, construídas sob a égide deste modelo narrativo, se impuseram

como representativas do discurso

oficial, objetivando, deste modo, legitimar o paulistanismo-ufanista que se depreende de uma “autêntica” representação da cidade de São Paulo e que largamente foi celebrado nas comemorações do IV Centenário. O próprio título do disco em que este samba foi gravado – Isto É São Paulo –,

refere-se a uma expressão corrente na época, cuja significação

expressa as razões do porque me ufano de São Paulo17. Na contracapa deste “LP” o texto de Guilherme de Almeida, apresentando o disco

traz algumas

indicações que reforçam esta visão auto-congratulatória da capital paulista. ISTO É SÃO PAULO... Será Mesmo? Sim. Por que? Porque São Paulo é a Cidade do Trabalho. Ora, aquele que conduz um “bull-doozer”, que abate uma árvore, que serra um toro, que bate uma estaca, que assenta um dormente, que planta um poste, que carrega uma saca, que empedra um alicerce, que atea uma fornalha, que desanda um malho, que impulsiona um torno, que maneja um tear, que rebita um pino... canta para ritmar os movimentos do seu corpo que o suor lubrifica. É a alegria do trabalho.

17

O jornalista Daniel Linguanotto em: IV Centenário de São Paulo. Revista Manchete, RJ, 23 de Janeiro de 1954, aponta para este caráter ufanista implícito na expressão: Isto é São Paulo. “Um dos traços dominantes do caráter paulistano, chamado por Saint Hilaire “raça de gigantes”, é a crença nas imensas possibilidades, no que se assemelha muito ao ianque. O paulistano ama a sua cidade e adora encontrar superlativos para defini-la. Muito antes do carioca apelidar o Rio de “Cidade Maravilhosa”, nos bondes de São Paulo havia a legenda: “O maior parque industrial da América Latina”. A partir de 1940, o paulistano tem usado e abusado do slogan segundo o qual São Paulo é “a cidade que mais cresce no mundo”. Toda a vez que ocorre um fato excepcional, que traga glória à sua cidade, o paulistano exclama orgulhosamente: “Isto é São Paulo!”...” p.32 49

Por isso esta cidade canta. E a sua cantiga do trabalho, ora indelevelmente fixada nas onze faixas que este disco enfeixa, é a lírica oferenda que São Paulo manda a todo o Brasil. ...na música e letra de um paulista – Lauro Miller – e na voz do “Seresteiro do Brasil” – Silvio Caldas -, esta gravação gravou. Aqui está, pois, na bem popular linguagem musical e literária, um romântico documentário “cittadino”. É a enternecida e melodiosa mensagem de São Paulo a todo o Brasil. Possa ela, levada pelas pétalas da rosa-dos-ventos - Norte, Sul, Leste, Oeste -, fazer bater num mesmo e fraternal compasso os setenta milhões de corações brasileiros! Porque... ...porque “ISTO É SÃO PAULO”.

É patente na fala de Guilherme de Almeida a tentativa de reconhecer nas composições de Lauro Miller a expressão da “autêntica” identidade de São Paulo, a partir do fato de que elas entoariam a alegria de uma cidade que trabalha cantando. Se no princípio paira alguma dúvida sobre a possibilidade de um conjunto de canções associarem-se ao elenco das imagens denotativas do Isto é São Paulo, tal não se sustenta, pois, estas composições derivam da alegria do trabalho, da funcionalidade de ritmarem os movimentos dos corpos dos diversos atores que encenam a epopéia da Cidade do Trabalho. Tal imagem vislumbrada pelo escritor e a sua expressão sonora – indelevelmente fixada no disco - originam-se de uma concepção harmoniosa do mundo do trabalho. Por isso, esta visão romântico-ufanista que, ao descrever o gesto de cada operário, suprime do gesto o sujeito, construindo, assim, a idealização de um cenário por onde transita uma gente feliz e laboriosa - um povo orgulhoso de si e de sua obra, cuja expressão mais concreta seria a própria cidade. A faina desta gente, afirma Guilherme de Almeida, apenas deixou-se captar por este romântico documentário “cittadino” , por ser ele a manifestação de sua mais genuína cantiga do trabalho. Sem dúvida, aqui há um evidente paralelo com o modelo apregoado por Ari Barroso. O gesto poético que pretende, através do samba, desenhar a grandeza, a exuberância da terra promissora, da gente boa, laboriosa e 50

pacífica, somente é realizável na sublimação do sentido de uma

narrativa

histórico-musical que, como afirmou o compositor de “Aquarela do Brasil”, possa libertar o samba de sua própria história, tradicionalmente marcada pelas tragédias da vida, pelas paixões incompreendidas e pelo cenário sensual. Por isso, Guilherme de Almeida insiste em convencer o ouvinte de que algumas canções podem ser tomadas como a melodiosa mensagem de São Paulo a todo Brasil, partindo da idéia de que a “Cidade do Trabalho” traz em si o sentido da canção, que é legítima quando esvaziada de qualquer outro significado, senão aquele expressivo da pulsação emanada do labor dos operários enquanto moldam a obra grandiosa da metrópole industrial. Cabe ainda ressaltar

a cumplicidade entre: música e letra de um

compositor paulista / voz do Seresteiro do Brasil, imprimindo a idéia de que a cantiga de São Paulo possa ser ouvida e cantada por todo o país. Pelo menos, esta seria a vontade do crítico: “fazer bater num mesmo, fraternal compasso os setenta milhões de corações brasileiros! ...porque “ISTO É SÃO PAULO”. Notase, aqui, o caráter de representação do “nacional” atribuído à metrópole paulista, ou seja, a idéia de que esta cidade possa vir a sintetizar o sentido de certa concepção de nacionalidade.18

18

Luís Lopes Diniz Filho & Vagner de Carvalho Bessa - In: Vocação e nacionalismo: as visões do urbano no pensamento do Estado Brasileiro (1930-1961). Espaço e Debates, São Paulo, Neru, Ano XI, N º 34, 1991.p. 104 - analisando como determinadas representações do urbano se articularam ao discurso político no Brasil de 1930 – 1961, verificam que “em certos períodos da história política brasileira, as representações sobre o urbano encontram nos discursos sobre a nacionalidade uma importante mediação. As concepções que buscam “dizer a nação” servem-se de certas leituras do espaço urbano enquanto elemento de valorização de um determinado projeto político, dado que a legitimação da nacionalidade institui-se a partir de uma percepção singular da idéia de modernidade, para daí extrair o conteúdo do nacional, ou, pelo contrário, produzir certas leituras ( valorativas ou não) da cidade a partir de um determinado modo de pensar a nação....Durante a Primeira República, havia um amplo predomínio de concepções ruralistas de país, às quais, entretanto, já começava a ser contraposto um discurso que valorizava a sociedade urbana, plena de dinamismo, em detrimento de um Brasil agrário atrasado material e espiritualmente... A ascensão dessa ótica dualista problematiza a questão da identidade nacional, conquanto um dos aspectos básicos desse movimento foi um lento e errático processo de superação de concepções que postulavam um destino agrícola para o País, através de um identificação nacional com o rural, para uma visão que colocava a generalização das formas de convívio urbano como escopo de um projeto de construção nacional.” A partir do Estado Novo o ruralismo, outrora dominante, começou a ceder lugar a uma visão do país identificada com a urbanização. Na década de 1950, a representação do urbano corresponde à hegemonia de um discurso que articula modernização, nacionalismo e urbanização no âmbito do pensamento do Estado brasileiro. Nesse sentido ele sustenta um nacionalismo identificado com um padrão de desenvolvimento do tipo urbano-industrial.

51

São Paulo – a cidade que mais cresce no mundo É importante assinalar que o paulistanismo-ufanista presente na composição de Lauro Miller e reiterado na fala de Guilherme de Almeida depreende-se de um contexto marcado pelo intenso crescimento da metrópole paulista. Se o processo de modernização da cidade de São Paulo tem início na década de 1920, como analisou Nicolau Sevcenko19, na década de 1950, a cidade já havia se consolidado como um grande centro industrial e consequentemente o mais importante centro sócio-econômico brasileiro. É de uma certa perspectiva desta geografia urbana que se percebem as imagens tecidas no samba História Paulista e acentuadas no texto de Guilherme de Almeida. Alguns aspectos a seguir nos aproximam da dinâmica do crescimento da metrópole de São Paulo, fato este que será tomado como legimitador do discurso oficial preocupado com a “autêntica” identidade da capital paulista. No final dos anos de 1950, Roger Bastide, apontando os contrastes entre as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, referiu-se ao processo de verticalização como um traço fundamental da paisagem paulistana. A mão do arquiteto aqui substitui a mão de Deus. Porque foi Deus que fez o Rio de Janeiro, jogando indiscriminadamente as montanhas contra o mar e o mar sôbre as montanhas. Foi o homem quem fêz São Paulo, e sente-se nesta cidade reviver a vontade sobranceira do bandeirante paulista; não se trata mais de conquistar uma terra desconhecida para ofertâ-la a Portugal, nem de arrancar o ouro ao pedregulho dos rios: trata-se agora de escalar o céu, de prender as nuvens aos cimos dos edifícios de vinte, de trinta, de quarenta andares, dos esmagar as tôrres das igrejas velhas ou as chaminés longínquas das fábricas modernas sob enormes movimentos de cimento. numa obsessão de verticalidade. E, aproveitando todos os recursos da ciência atual, nestes gigantes que rivalizam entre si, cada qual querendo erguer-se o mais alto possível, abrem imensas janelas, que entrelaçam o vidro ao cimento, que se arredondam em balcões, e, no ponto mais alto, já em cima, florescem, arrancados à terra, jardins que substituem os tetos. (Bastide, 1959, p.129)

19

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo, Cia das Letras, 1992. 52

São Paulo verticalizada se consagraria como a imagem definidora de sua identidade de metrópole moderna, por outro lado, este aspecto articula-se a uma visão exaltadora do ritmo de crescimento urbano intensificado a partir da década de 1940 e que é tomado como representativo de certa concepção de modernidade e progresso. Para se ter uma idéia da dinâmica da expansão urbana inscrita como ícone da cidade de São Paulo, basta atentarmos para o fato de que entre 1920 e 1940, a população mais que duplicou: saltando de um número de aproximadamente 500 mil habitantes para 1.301.926 habitantes. Na década de 1950 a cidade já atingia a casa dos 2.116.721 de habitantes.20 No ano do IV Centenário,21 as estatísticas apontam uma população de 2.700.000, este número chegaria a aproximadamente 3.000.000 em 1960.

Fig. 5 Cartão Postal comemorativo dos 400 anos de São Paulo mostra a metrópole dominada por arranhacéus. A foto corresponde à vista aérea do centro da cidade. Observam-se o vale ao Anhangabaú, os viadutos do Chá e Santa Efigênia.

20

Dados obtidos na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros – IBGE – Rio de Janeiro – 1958. Vol. XXX As estatísticas na época mostram São Paulo como a primeira cidade do Brasil, superando o Rio de Janeiro - 2.3000.000 habitantes. Com seus 2.700.000 habitantes, São Paulo é apontada como a quarta cidade da América ( Nova Iorque 8.160.000 hab./ Chicago 3.750.000 hab./ Buenos Aires 3.150.000 hab.) e a décima primeira do mundo. Comparando o crescimento populacional entre diversas cidades no período de 1940 a 1950, concluí-se que, enquanto São Paulo cresceu 66,90%; Los Angeles cresceu 30,00%; Buenos Aires, 26,00%; Rio de Janeiro, 21,30%; Chicago, 10,42% e Nova Iorque 9,45%. (Dados publicados nas revistas: O Cruzeiro, RJ, 25/01/1954 e Manchete, RJ, 23/01/1954 )

21

53

Cabe lembrar que a partir da década de 1930, a imigração estrangeira perde sua importância e a demanda de mão de obra criada pelo maciço surto industrializante será atendida pela migração interna. Somente no ano de 1939 chegaram à capital paulista por volta de 90.000 nortistas e nordestinos. No ano de 1941, São Paulo já é o maior centro industrial da América Latina, com 4.000 fábricas.22 No final desta década, este número elevou-se para 15.318 estabelecimentos industriais, empregando 389-202 operários, atingindo aproximadamente 22.700 indústrias em meados da década de 1950 e empregando 498.300 operários. 23 Outro aspecto interessante que está relacionado a esse intenso processo de metropolização, diz respeito à evolução de determinados equipamentos como cinemas, emissoras de rádio, teatros e bibliotecas em São Paulo deste período. No início dos anos de 1940, a cidade contava com dezesseis bibliotecas públicas, 8 emissoras de rádio, 42 cinemas, e 4 teatros. Em 1945, o Departamento Estadual de Estatística registrava os seguintes números: 37 bibliotecas públicas, 12 emissoras de rádio, 90 cinemas e cinco teatros. No ano de 1956, registra-se a existência de: 114 bibliotecas públicas, 17 emissoras de rádio, 166 cinemas e 15 teatros.24 Em 1958, existiam em São Paulo

3

emissoras de televisão.25 No ano do IV Centenário, o jornalista Daniel Linguanotto afirmava que: ...Anualmente, abrem-se 5 ou 6 cinemas, com capacidade para 2 mil espectadores cada, engrossando o contingente de 120 outros existentes. Mesmo assim a população acaba se comprimindo na porta, em filas quilométricas, obrigando a sessões que começam às 10 horas da manhã e terminam às 2 da madrugada26.

22

Em Nosso Século - A Era de Vargas, 1930-1945. São Paulo, Abril Cultural, 1980. p.121. Segundo Pasquale Petrone em A Cidade de São Paulo no Século XX, In: A Evolução Urbana de São Paulo – V Coleção da “Revista de História” – São Paulo, Col. da Revista de História, 1955. p. 109 , a imigração nacional passa ser um elemento importante na evolução da metrópole paulista a partir dos anos de 1940. O autor cita os seguintes números referentes à entrada de imigrantes nacionais em São Paulo: 1950 – 100.123; 1951 – 208.515; 1952 – 252.808. 23 Indicações compostas a partir de dados publicados em: O Cruzeiro, RJ, 23/01/1954 e Enciclopédia dos Municípios Brasileiros – IBGE – Rio de Janeiro – 1958. Vol. XXX 24 Dados coletados no Anuário Estatístico do Estado de São Paulo: Ano 1942/ 1945/1957. 25 Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, op. cit. p. 228. 26 LINGUANOTTO, Daniel. IV Centenário de São Paulo. Revista Manchete, Rio de Janeiro, 23/01/1954, n º 92. p. 31.

54

Escrevendo na década de 1950 e mostrando a expansão do lazer na metrópole paulista das últimas décadas, Ernani Silva Bruno diz que:

...os locais de diversão, de passeio e de atividades esportivas se multiplicaram de forma notável, mesmo fora da cidade e a grandes distâncias de sua área central... representado por Santo Amaro, com suas reprêsas, e a zona da Cantareira. Santo Amaro com seus bares e restaurantes rústicos. Na Serra da Cantareira o Horto Florestal, lugar de repouso que o paulistano pode procurar nos domingos e feriados....Intensificou-se de outra parte o prestígio do cinema como diversão principalmente da maioria da população. Depois da supremacia do República (na praça da República), do Roial (na Sebastião Pereira) e mais tarde do Odeon (na Consolação) e do Paramount (na avenida Brigadeiro Luís Antônio) – pioneiro do cinema falado – casas exibidoras de maior luxo e confôrto foram inauguradas na cidade, apresentando sessões que vão do meio-dia à meia noite. Mas ao lado do cinema, cada vez mais numerosos no centro e nos bairros, alguns circos conservam uma tradição de divertimento muito paulistano. (Bruno, 1984, p. 1364)

Adiante continua o autor, falando da intensificação

das

atividades esportivas que:

...tiveram um incremento excepcional e culminaram com a construção do monumental Estádio Municipal do Pacaembú (1938-1940) ...Os esportes amadores tiveram desenvolvimento extraordinário sobretudo a partir da criação da Diretoria de Esportes, em 1939, depois convertida no Departamento de Esportes do Estado de São Paulo, cujo relatório de 1952 revelava a existência, na cidade de 484 campos de futebol, 14 quadras de bola ao cesto, 42 retângulos para voleibol, 115 quadras de tênis, 7 pistas para atletismo, 8 piscinas, 18 canchas de bochas (esporte introduzido em São Paulo pelo elemento italiano), 7 campos de malha (jogo principalmente do gosto da colônia portuguesa), 10 ringues de pugilismo, 2 campos de basebol (o esporte preferido pelos japonêses e seus descendentes), 3 estandes de tiro ao alvo, 4 picadeiros para hipismo e 8 ginásios. (Bruno, 1984, p. 1367)

55

Segundo Bruno, esses dados se referiam às praças de esporte27 utilizáveis para competições oficiais. Para acompanhar a expansão demográfica de São Paulo a partir dos anos de 1920, Richard M. Morse mostra a grande expansão do setor da construção civil: ...foi fenomenal o surto de construções da cidade. Em 1920 houve 1875 novas construções, em 1930: 3922, em 1940: 12490 e em 1950: 21600. (Morse, 1970, p. 365)

Ainda dentro do campo das estatísticas da construção civil, o jornalista Jorge Ferreira, aponta alguns números surpreendentes. Computando-se os últimos cinco anos (1948-1952) teremos um total de 94.491, com a média diária de 52 construções. Se nos fixássemos no tempo “útil” de trabalho (25 dias mensais, 8 horas diárias), teríamos em São Paulo o índice de 8 construções por hora28.

Este momento de aceleração do processo de urbanização paulista – compreendido entre meados da década de 1940 até meados da década de 1950 – configura-se, segundo Maria Adélia Aparecida de Souza (1994),

como

uma fase de enorme caos urbano, decorrente de um crescimento incontrolado. Este é o período em que São Paulo consolida-se como importante centro sócio-econômico. Inaugura-se o prédio do Banco do Estado de São Paulo (1947), um marco importante da cidade. Isso posto, é processo

de

importante reafirmar que neste contexto de intenso

metropolização

impuseram-se

determinadas

formas

de

representação da cidade que se traduzem como discurso oficial, legitimando o processo de modernização resultante do industrialismo e da aceleração da 27

Nicolau Sevcenko analisa as práticas esportivas como um dos signos da cultura moderna, mostrando como nestas práticas manifesta-se uma percepção de tempo fragmentária, descontínua e acelerada, enfim uma experiência enraizada no estilo de vida característico da megalópole moderna. “Fosse como simples exercício, como metáfora, como ritual ou celebração, o esporte tanto viria preencher o vazio da ruptura abrupta ocorrida na rotina cotidiana das comunidades, como traria o potencial de novas alternativas de adaptação e um novo repertório de atitudes congeniais a um mundo em imprevisível fermentação” In: SEVCENKO, Nicolau – Op. Cit. p. 49. 28 FERREIRA, Jorge. IV Centenário da 1 ª Cidade do Brasil. Revista o Cruzeiro, Rio de Janeiro, 23/01/1954, n º 15. p. 32. 56

expansão urbana. No centro destas representações, acentua-se uma identidade simbólica de São Paulo como a “cidade do progresso”. Esta imagem fundamenta a visão auto-congratulatória da metrópole paulista e, por outro lado, articula-se a outras representações que pretendem dar conta da construção de certa identidade da cidade e de seus habitantes. A partir de determinadas matérias de imprensa e anúncios publicitários coletados em edições de jornais e revistas relativas à data da comemoração do IV Centenário de São Paulo, apreende-se um recorte significativo dessa construção simbólica. Nas representações da cidade, elaboradas

pela

publicidade e por esses textos, circularam determinados ícones relativos ao imaginário que compunha o discurso comemoracionista dos quatrocentos anos da capital paulista. Assim, a análise destes documentos, a ser realizada a seguir, amplia a compreensão do que já foi assinalado em relação ao sambaexaltação - História Paulista. Tanto a canção de Lauro Miller, como estes documentos, sedimentam

certas

representações oficiais da metrópole

paulistana, pois tratava-se de empreender, com o mesmo espírito cívico, a celebração desta data. Da Cruz de Anchieta aos Blocos de Cimento Armado Na época do IV Centenário, São Paulo, como já afirmamos, havia se consolidado como pólo industrial mais importante do país, sediando a indústria automobilística e os setores fabris dinâmicos. Na perspectiva do discurso oficial, esta data será tomada como suporte da afirmação de uma visão enaltecedora do processo de metropolização vivido pela cidade. Com isso, o sentido da comemoração do seu aniversário, em 1954, delineia-se pela oficialidade como cerimonial de consagração de uma São Paulo moderna, representada pelas chaminés e pela verticalização, exaltadas como ícones do progresso, os quais legitimavam a ordem dominante. Sobre este aspecto ufanista que plasmou determinadas representações da cidade, Lúcio Kowarick e Nabil Bonduki (1994, p. 153) afirmam que os setores dominantes, ancorados nessa visão auto-congratulatória da metrópole, passam a exaltar o processo de remodelação urbana vivido por São Paulo como sinal de progresso e, portanto, um exemplo de modernidade. 57

“São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo”. Este é o paradigma do progresso que se depreende do ufanismo das elites (industriais, comerciantes, políticos), contagiando os meios de comunicação e cooptando

a

classe média. O fragmento a seguir do memoralista Miguel Milano é um exemplo emblemático desta visão que, no afã do progresso e da modernidade, ordena e justifica a frenética remodelação deste espaço urbano. A cidade ascendeu rápida como um sonho. Agricultura, indústria, comércio, ciências, letras e artes evoluíram de maneira assombrosa! Liberta das amarras que a prendiam a um sentimentalismo piegas, meteu a picareta no passado, metamorfoseando-se por completo, e ei-la presente aos nossos olhos deslumbrados com um milhão e meio de habitantes e cento e quarenta mil prédios crivados de chaminés, de fábricas e de soberbos arranha-céus. São Paulo! Qual te vi e qual te vejo! Te conheci velhinha, quando eu era criança, e vejo-te completamente rejuvenescida, agora que sou velho! Duro contraste. Seguimos caminhos diametralmente opostos: Tu para a vida e eu para a morte. Quão diferente da vida dos homens é a vida das cidades...29 Nesta perspectiva, a narrativa histórica que se pretende guardiã da memória da cidade e ,portanto, de sua identidade opera a partir dos princípios de uma ordem progressiva e progressista. Para a história que se constrói como sentido de uma

linearidade evolutiva, a data assume o caráter de

representação de um marco no tempo que se articula a uma concepção cumulativa e finalista. “A data é, nessa perspectiva, um número-índice, o elo mais ostensivo de uma cadeia dotada de sentido. (...) O antes é a semente, o germe, a raiz do depois. (...) As datas seriam marcos, alto-relevos no bronze dos tempos, pedras miliares de um caminho árduo onde até as pedras testemunham. A História não se

29

Miguel Milano, Os fantasmas da São Paulo antiga, 1949. Citado por João Emílio Gerodetti & Carlos Cornejo In: Lembranças de São Paulo – A Capital Paulista nos Cartões-Postais e Albuns de Lembranças. São Paulo, Solaris Edições Culturais, 2000, p. 85. 58

repete: eis uma das máximas gratas à visada teleológica do tempo.” (Bosi, 1994. p. 21)

É certo que estamos falando aqui de uma idéia de progresso originária do século XVIII e seus desdobramentos no século XIX. Convém lembrar que esse cânon está enxertado em certezas maiores que remetem à idéia de progresso, vinda das Luzes, e à idéia de evolução formulada no século XIX. Progresso e evolução: conceitos forjados embora por linhas filosóficas distintas, acabaram convergindo, como o fizeram o positivismo, com a sua lei dos três estados, o darwinismo e o spencerismo. São todas doutrinas que se vieram tangenciando e integrando ao longo dos séculos XIX e XX até constituírem uma espécie de senso comum e de linguagem corrente do homem culto médio de nossos diais. A imagem ilustrada da Humanidade formada de um Homem único, que permanece homem enquanto evolui de geração em geração; ou então a figura da corrida em que o atleta passa a tocha às mãos do companheiro e sucessor, que, por seu turno, fará o mesmo depois de cumprido o seu percurso: eis símbolos recorrentes da crença no progresso contínuo. (Bosi, 1994, p. 22).

Anunciando os quatrocentos anos de existência da cidade, a matéria a seguir, publicada no jornal O Tempo, indica claramente essa linha evolutiva como fator essencial da identidade de São Paulo. Ao mesmo tempo,

o

industrialismo e a verticalização são balizados como ponto de chegada de uma civilização, cuja história se revela assentada

nos trilhos do progresso. O

próprio título do artigo, de pronto, denota essa idéia: Em quatro séculos, São Paulo mostrou ao mundo a pujança de seu povo – Floresta de chaminés disputa os céus aos gigantescos edifícios de cimento armado.30

30

Matéria não assinada publicada no Jornal O Tempo – Suplemento Especial da Comemoração do IV Centenário –São Paulo, 24/01/1954. p. 17.

59

Assim, o texto prossegue mostrando como a evolução da história da cidade – desde a sua fundação até o momento presente – sinaliza o êxito de um povo que em sua trajetória caminhou rumo ao progresso e à civilização. Há quatrocentos anos, num desafio à natureza, o homem fez florescer exatamente no trópico de Capricórnio uma civilização industrial que hoje o slogan proclama o: “maior centro industrial da América Latina”. Isto é São Paulo, a forja do Brasil, que completa 4 séculos de existência. Procuraremos nesta reportagem descrever o progresso econômico alcançado pela gente de Piratininga, que, neste espaço de tempo, mostrou sua pujança e arrojo. Não existe uma linha constante na ascensão do seu progresso. Em nossa capital, em todos os setores da atividade humana, tudo vai em progressão geométrica. Verdadeira floresta de chaminés anda disputando os céus aos edifícios de cimento armado que se espalham por todos os recantos da metrópole num desafio ao próprio homem.

Esta visão progressista, construída

em termos de uma evolução

contínua, articula-se a partir da evocação de uma “realidade” pretérita que, como referência da

“realidade” atual,

promoveria a confirmação da

grandiosidade do progresso que se vê encarnado no presente da metrópole. Vem cabendo a São Paulo o papel de grande significação no desenvolvimento econômico do país, colocando-o em primeiro plano com aproximadamente 50% da produção industrial brasileira, transformando-o ainda em um dos maiores centros manufatureiros da América Latina. Em 1593, segundo Afonso E. Tounay, residiam em SP dois carpinteiros, um ferreiro, dois alfaiates, dois tecelões, um sapateiro e um oleiro. Dois séculos após, isto é, ao fim do período colonial, o número de artífices, passou para dez carpinteiros, vinte e um alfaiates, dezesseis sapateiros, quatro ferreiros, quatro ouríveres, seis cabeleireiros, quatro celeiros e quatro padeiros todos munidos de carta de ofício e com representação na Câmara local. (...) Já em 1950 é assinalado em São Paulo a existência de vinte e quatro mil e quinhentos e dezenove estabelecimentos industriais (...)

Tal dinâmica do crescimento urbano, engendrada por esta linha evolutiva contínua, celebra

uma previsão gloriosa do futuro paulista que 60

reclama para si um lugar visível no seio das civilizações modernas. Neste sentido, seria legítima a adjetivação inferida à cidade. A São Paulo que se constrói sob a égide do progresso e, por isso mesmo,

assemelha-se às

grandes nações, é veloz, fabulosa, maravilhosa e dinâmica: Isto é um pouco da história econômica de São Paulo a décima quarta cidade do mundo em população, que cresce à medida de cem mil almas por ano, razão porque se prevê para 1957 uma população de quatro milhões de habitantes e em 2050 de oito milhões. Constrõem-se, atualmente, no município paulista seis prédios por hora, ocupando-se para isso de 25 a 30 metros quadrados por minuto de construção. Surgem novos bairros, reclamando mais transporte, novas ruas para serem asfaltadas, novas redes telefônicas e de águas e esgotos para serem estendidas. Esta é São Paulo, a cidade que mais cresce no universo. Veloz, fabulosa, maravilhosa, dinâmica, caminhando sempre para frente e para o alto, nessa incessante febre de progresso à procura de um grande lugar de destaque no concerto das maiores nações do mundo. Aguardemos o futuro que não nos decepcionará.

Não obstante, a explicação para a grandeza desta obra leva em conta uma visão da metrópole paulista como o lugar do trabalho. Ou melhor, trata-se de perceber as realizações do progresso como vinculadas às virtudes do paulistano, cujo valor maior se traduz pela sua

capacidade de trabalho.

Portanto, se a cidade representa um exemplo concreto da realização de uma história comprometida com a razão do progresso, ela também se revela como expressão palpável das virtudes do homem que

realiza um “modelo de

civilização na terra de Piratininga”. O habitante de São Paulo , desta forma, tem

uma imagem

positiva de si mesmo, construída a partir de certas

representações que o integram à dinâmica da vida moderna. São Paulo nestes quatro séculos de existência mostrou ao mundo a pujança de seu valor. O valor do homem que produz e anda apressado, consultando o seu relógio que funciona rigorosamente acertado com os outros dos locais de trabalho, para continuar a contribuir para nossa grandeza e a emancipação econômica do Brasil.

61

A tática de construir e definir a identidade da metrópole paulistana, a partir da concepção da cidade como resultante da “ marcha do progresso” , é central em toda a documentação representativa do discurso comemoracionista oficial.31 Como já afirmamos, refere-se, entre outros aspectos, de uma estratégia que, ao

articular o passado com o presente, apropria-se de certa

representação do

passado como referência

legitimadora de uma visão

ufanista da “realidade atual”. Assim, a elaboração da imagem da “São Paulo do progresso” pres supõe a manipulação de certas representações

do passado que,

reeditadas em função da construção de uma memória social da cidade e de sua gente, serviram aos propósitos dos setores que deram o tom oficial da comemoração dos quatrocentos anos da capital paulista. Nesse sentido, o que está em jogo aqui é a construção de um afirmação implica em

dispor de

paulistanismo. Portanto, a sua

uma historiografia capaz de legitimar os

valores decorrentes deste fato e, por conseguinte, sinalizar determinados ícones que possam ser tomados como motivo de orgulho, lançando as bases dos valores do caráter paulista.

31

Ao analisar o IV Centenário de São Paulo, focando as relações entre imaginário comemorativo e a construção de uma memória coletiva, Silvio Luiz Lofego chama atenção para este aspecto. Segundo Lofego, a afirmação de São Paulo como modelo de nacionalidade, especialmente após a II Guerra, irá demandar todo um esforço no sentido de sustentação dessa imagem. Assim, o apelo ao econômico será tomado como suporte da representação de uma São Paulo símbolo de nacionalidade. Por outro lado, o momento da comemoração do IV Centenário será visto como um lugar privilegiado da construção e afirmação desta imagem. “Neste sentido, a força econômica consistia numa referência constante à prosperidade de seu povo. E é justamente no processo no qual se forjam essas imagens é que residem os aspectos mais instigantes da questão, pois não se tratava apenas construir uma bandeira de efeito externo, antes era preciso construir uma auto-imagem, uma memória capaz de espelhar a construção hegemônica da capital do estado de São Paulo. No entanto, essa auto-imagem necessitava de um campo simbólico para fomentar a memória que se pretenderia forjar. O IV Centenário da Cidade, a ser comemorado em 1954, apresenta-se como um espaço privilegiado desse processo.... Ao adentrar os anos 50, a sociedade paulistana reelabora sua perspectiva norteadora e se prepara para a comemoração dos quatrocentos anos de sua existência, editada na forma de grande espetáculo. Os valores construídos no passado, agora consolidam-se principalmente no campo da produção cultural. A locomotiva, o espírito bandeirante, o pioneirismo eram, então, parte de um alicerce a sustentar novas investidas que fossem portadoras de uma identificação que espelhasse o novo tempo que se iniciava. A sondagem das fontes indica que, ao chegar aos 400 anos ,São Paulo vai sendo preparada para espelhar-se numa memória única, a da grandiosidade. Na impressa, os aspectos que poderiam ser projetados, como problemas, inerentes a grandes aglomerados urbanos, transforma-se em orgulho, enobrecidos ao erguerem-se no pedestal da prática econômica. Dessa maneira, a imagem da locomotiva, símbolo da liderança paulista, encontra seu ícone da predestinação nas imagens forjadas do passado. O evento é construído para ser a divisão entre dois pólos, de um lado o passado que o torna legítimo, de outro o futuro que se insinua e, portanto, também, o legitima.” ( Lofego, 2000. pp. 302-303) 62

São figuras recorrentes em uma gama de documentos que operam no âmbito dessa historiografia, especialmente, o padre Anchieta e o bandeirante. O primeiro aparece como referência à fundação da cidade. Trata-se, aqui, de identificá-lo com o gesto que determina a gênese do que viria ser a São Paulo grandiosa. Não obstante, o personagem e o gesto são revestidos de uma aura religiosa, imputando um caráter legítimo à cena primordial, representada, entre outros aspectos, pela fé e pela esperança. Quanto ao bandeirante, atribuem-se à sua imagem os traços do herói desbravador, do pioneirismo e da coragem. Além disso, ele seria a referência primeira do sentido da nacionalidade no espírito paulista, uma vez que, decorreria do “seu ímpeto” a expansão do território do Brasil e, portanto, a grandeza da pátria. Sobre o bandeirantismo e a sua utilização política, o historiador Arnaldo Contier enfoca as teses de Cassiano Ricardo, intelectual-burocrata do Estado Novo, que defendia a idéia de que no movimento dos bandeirantes (séculos XVII e XVIII) estariam as raízes da formação deste Estado, procurando demonstrar, assim, a singularidade deste regime, marcado por uma “ordem democrática” que o distinguia de outros regimes políticos vigentes em alguns Estados contemporâneos: fascismo, nazismo, socialismo e liberalismo. Assim, diz o historiador, Cassiano Ricardo utiliza documentos do século XVII para localizar, no movimento das Bandeiras, a gênese

de uma autêntica

democracia. Nessa perspectiva, o tema A Marcha para o Oeste representa a imagem da Nação, o sentido de nossa brasilidade. Em seu artigo sobre o Estado Novo e o seu sentido bandeirante, Cassiano usou uma série de imagens fundamentadas nos seguintes eixos dicotônicos: região Centro-Oeste X região litorânea, bandeirante/senhor de engenho, república paulista / monarquia portuguesa, democracia-governo forte/fascismo italiano ou comunismo russo. Assim, as verdadeiras raízes do Estado Novo estariam historicamente plantadas no governo forte e na democracia que, após um interregno liberal (séculos XIX e inícios do XX), acabaram retomando o sentido da brasilidade, que estava na Marcha para o Oeste. (Contier, 1998 p.56).

Referindo-se aos traços de uma vida comunitária, onde famílias bebem no mesmo copo, elementos de origem fidalga trabalham modestamente em 63

serviços manuais etc, Contier assinala que Cassiano Ricardo irá atribuir aos bandeirantes um modelo de convívio social sem antagonismos ou conflitos. Além disso, diz o historiador: Ele comparava o bandeirante ao operário – homem ligado a um determinado ofício mecânico -, tentando mostrar a existência de relações muito próximas entre a democracia e a pobreza, a solidariedade e a mestiçagem. O Brasil verdadeiro deveria se ligar, na atualidade (1940), à região Centro-Oeste, berço da democracia totalitária, que deveria ser retomado pelos agentes do poder.

(Contier, 1998 p.57)

Estas observações de Contier são muito pertinentes, pois, como podemos perceber, estes mesmos aspectos, aqui assinalados, sobre a instrumentalização política da figura do bandeirante neste período histórico do Estado Novo, serão reapropriados pelo discurso oficial do IV Centenário. Aqui, uma questão importante a reiterar é que essas imagens do passado, ao fundamentar a memória oficial, legitimariam a ordem presente. No que diz respeito à relação entre a construção da memória social e o poder, Paul Connerton é taxativo em afirmar que o controle da memória de uma sociedade condiciona largamente a hierarquia do poder.

Podemos afirmar, portanto, que as nossas experiências do presente dependem em grande medida do conhecimento que temos do passado e que as nossas imagens do passado servem normalmente para legitimar a ordem social presente. ( Connerton, 1993, p. 3)

Em recente pesquisa sobre o espaço da comemoração e os processos sociais de construção da memória, Silvio Luiz Lofego baseia-se nas reflexões de Connerton para analisar a cerimônia comemorativa do IV Centenário. Segundo sua análise, Connerton abre uma perspectiva interessante para este estudo na medida em que:

Sua preocupação centra-se em pensar como o passado é encontrado pelo presente,

como os sujeitos se reconhecem no presente, cujas identidades 64

dependem do estado anterior, quando constatamos que as imagens do passado legitimam geralmente uma ordem social presente. Nesse caso, quando o passado é encenado num ato, tal como uma atividade cultural, as lembranças que este ato evoca assumem o caráter de uma tradição cultural e neste, afirma Connerton, alimentam a memória social, inserindo-se nas cerimônias comemorativas. (Lofego, 2000. p 306)

Neste sentido, conclui o autor, a articulação da análise de Connerton com as cerimônias do aniversário de São Paulo é estratégica para este campo de investigação, uma vez que: ...tal evento não representa um corte radical em sua memória, como se direcionam os estudos sobre a memória da nação francesa nos anos da Revolução. Não se apresenta como uma negação explícita ao passado, mas como memória que pretende recuperá-lo, e ao fazê-lo demarca a fronteira do novo, reservando ao passado “glorioso” os lugares para se eternizarem. (Lofego, 2000. p. 307)

O anúncio publicitário32 a seguir apresenta um exemplo significativo dessa estratégia da construção da memória da metrópole e de sua gente. Trata-se de aproximar duas representações da cidade captadas na linha do tempo de sua evolução. Nesta linearidade de sua história, indicam-se os 400 anos da “cidade aniversariante”, imputando determinados significados a duas datas: 1554 – 1954. A primeira é sinalizada pela cena primordial onde se sobrepõem duas imagens arquetípicas: o ninho em cujo centro se desenha um ovo e a construção da igreja simbolizada pela cruz. A outra, desenhada em primeiro plano, refere-se ao ícone da modernidade paulista em 1954 – o edifício do Banco do Estado de São Paulo. Símbolo da São Paulo moderna, essa imagem traduz os valores representativos do progresso, atribuídos à verticalização da cidade, bem como, sugere determinados valores inscritos nas representações do capital econômico. Pois, trata-se de apresentar a cidade através de um edifício que abriga a sede de um banco, identificando-se, assim, a metrópole paulista como “a capital do capital”. Portanto, os elementos aí inscritos operam na perspectiva da construção de uma imagem auto-congratulatória da metrópole paulista, apropriando-se do passado que, a partir de certa encenação, o resgata como o princípio gerativo da evolução daquilo que se transmutaria na metrópole 32

É interessante observar como através de mensagens publicitárias depreendem-se certos elementos fundamentais da constituição do imaginário social. Aliás, segundo Baczko: “...o impacto dos imaginários sociais está ligado diretamente à sua possibilidade de difusão. Isto é, aos instrumentos de difusão ou inculcação de valores e crenças”. (Baczko, 1984. p.36)

65

grandiosa. Ou seja, o gesto fundador contido na imagem da humilde igrejinha de Anchieta é traduzido como um monumento de um presente magnífico.

Fig. 6 Publicado no jornal O Estado de São Paulo - 25/01/1954

O mesmo pode ser dito sobre o anúncio da Drogasil abaixo. Aliás, nesta publicidade confrontam-se as mesmas imagens. Aqui, também, as representações do progresso são afirmadas aludindo à gênese de um princípio deflagrador de um presente glorioso. Na cena primordial, o texto deste anúncio identifica os elementos dinamizadores da grandeza paulista. Estes sinais são recortados, ali, em um espaço marcado por uma aura do sagrado. “Com essa enternecedora pobreza – era o mês de Janeiro do Ano do Senhor de 1554 – teve São Paulo de Piratininga o seu presépio e natal numa escola que era também ENFERMARIA... E se, na “cidade que mais cresce no mundo”, tanto se faz grande a função de escola, também se havia de fazer grande a de enfermaria...” A escola e a enfermaria traduzem-se como elementos desta marcha do progresso. Por fim, conclui o texto: “... o progresso paulistano (precisou) de uma instituição que o pudesse prover de todos os medicamentos que os modernos laboratórios produzem e a ciência de hoje prescreve. E aqui se fundou o indispensável estabelecimento. E teve êle o nome de – Drogasil. Portanto, o acesso aos medicamentos que a ciência prescreve é exaltado como um índice do progresso. Cabe lembrar que, por esta época, gradativamente vão se substituindo, no Brasil, os remédios com base nos

66

produtos naturais, de origem vegetal ou animal pelos farmacoquímicos que passam a ser legitimados como símbolos da modernidade científica.33

Fig. 7 Publicado no Diário de São Paulo – 25/01/1954 Operando no campo desta concepção de progresso, a propaganda de uma empresa de seguros – A Equitativa –

homenageia no IV Centenário a

nova geração de paulistas que nascia no dia 25 de Janeiro de 1954.

33

A esse propósito, Mello & Novais (2000, p.574) observam que no final dos anos 1940, os antibióticos combateram com sucesso, especialmente, duas doenças que eram o terror dos brasileiros, a tuberculose e a sífilis. O Brasil, assinalam os autores, paulatinamente se tornou o paraíso para indústria farmacêutica, na medida em que, combinava dois quadros de moléstias distintos: as “doenças do atraso”, antes de tudo infecciosas, decorrentes em boa medida, da má alimentação, como, por exemplo, a diarréia e as “doenças do progresso”, as cardiovasculares, a hipertensão, o câncer etc.

67

... Como os heróis olímpicos, o Passado transmite ao paulista que nasce neste dia o facho simbólico de suas glórias, para que o cidadão de amanhã o conduza pelos caminhos do futuro, reavivando-o com o calor de sua juventude e a luz de seu ideal imorredouro. Voltemos o espírito e o coração para a nova geração que nasce

hoje

e

assumamos

o

compromisso - que é nossa melhor homenagem a São Paulo – de cuidar, com o maior desvêlo, dêsses novos Bandeirantes para que, Paulistas de amanhã, possam ser ainda mais dignos da terra gloriosa que lhes serviu de berço.

Fig. 8 Publicado no O Estado de São Paulo – 25/01/1954

Percebe-se aqui a imagem sugerida por Bosi – a figura da corrida em que o atleta passa a tocha às mãos do companheiro sucessor – como expressão da crença no progresso contínuo. A seguir, o anúncio da Companhia Fabricadora de Peças aponta para uma relação que se percebe explicita entre a construção da identidade de São Paulo como símbolo do progresso e a sua legitimação fundamentada em certa visão do trabalho. Fazendo uma referência à cruz que, como símbolo da fé, sinaliza a fundação da cidade, o texto deste anúncio reverencia na atualidade as chaminés que “furam os céus de São Paulo e que simbolizam a força de um povo e a sua Fé no trabalho. Éis a razão que subscreve o desenvolvimento da “... imponente metrópole que se projeta no mundo como símbolo de progresso”.

68

Fig. 9 Publicada no jornal O Estado de São Paulo- 25-01/1954

No campo desta ordem progressiva e progressista, a noção de tempo ancora-se em uma visão seqüencial dos acontecimentos que se desdobram na linha evolutiva do progresso rumo ao ápice da civilização (Bosi, 1994). Se por um lado, o progresso é a materialização de um tempo que se apreende nas obras realizadas pelos homens, na medida em que avançam nos estágios da

69

civilização, por outro lado, o impulso deste mesmo progresso está atrelado à determinada forma de se dispor

do tempo. Assim, o seu uso

apenas

é

legítimo enquanto constrói a obra de civilização. Em outras palavras, trata-se aqui de uma noção de

tempo organizada no âmbito das necessidades

impelidas pelo produtivismo industrial. O tempo potencializado por este uso “legítimo” é traduzido pelo trabalho que avança em sua eficiência, na medida em que produz cada vez mais em um intervalo menor. Nesta perspectiva,

se a metrópole de São Paulo encarna

a mais

legítima representação do progresso, o paulista, portanto, se define como aquele que. indubitavelmente,

dispõe do tempo em prol do impulso rumo à

civilização. Estas considerações conduzem ao delineamento da identidade do habitante desta cidade a partir de articulações significativas entre progresso e trabalho. Portanto, “o jeito de ser paulistano”, legitimado pela ordem dominante, é tecido por representações derivadas da lógica que ordena o mundo do trabalho/produção na sociedade industrial. A propaganda da Empresa Brasileira de Relógios “Hora” S.A. aponta para estas representações

ao desvendar os segredo dos paulistas – não

perder tempo! Essa idéia pressupõe uma valoração do dispor do tempo; isto é, o tempo válido, dentro da ordem que comanda o progresso, é aquele voltado para as realizações do trabalho. Aqui, ainda cabe considerar que o tempo do não-trabalho somente será legítimo como descanso restabelecedor das energias que, uma vez recarregadas, retomam as atividades. É nesse sentido, que a mensagem deste anúncio publicitário

atribui o progresso da terra

paulista às virtudes do seu povo que organiza o tempo em função do trabalho e, portanto, do progresso. ... O segrêdo do extraordinário progresso de nossa terra não tem sido outro que o trabalho com tôdas as suas imposições: pontualidade, divisão e aproveitamento máximo do tempo...

70

Fig. 10 Publicado no Diário de São Paulo – 25/01/1954

A idéia de uma São Paulo que “pulsa no ritmo do progresso” opera como um dos principais índice simbólicos de sua identidade. A observação de Roger Bastide capta, no fluxo da multidão apressada, a síntese daquilo que passou a representar o “jeito de ser paulistano”. Não se pode flanar em São Paulo. A multidão que vai para o trabalho, ou que volta para casa, arrasta-nos em seu turbilhão. A qualquer hora do dia, só há na rua homens apressados que nos impõem a cadência de seus passos.” ( Bastide, 1959, p. 130) 71

Ao analisar as transformações por que passou o Rio de Janeiro nas primeiras décadas deste século, o historiador Nicolau Sevcenko mostra como um dos signos da modernidade – a velocidade – passa a compor o estilo de vida

de seus

distinção

habitantes e, por outro lado, é tomada como um sinal de

daqueles que se julgam

afinados com o progresso. Algumas

expressões, como por exemplo o “andar à americana” ou o “passo inglês”, referem-se ao novo hábito de caminhar apressado pelas ruas, encenando o ritmo intenso da vida moderna em sincronia com a velocidade das novas máquinas urbanas. Outro modo elegante de referir-se ao hábito inovador de caminhar pelas ruas sozinho e às pressas era chamá-lo de “andar à americana”. Diferentemente da curiosidade escrutinadora do flâneur

ou do envolvimento afetivo com a

paisagem urbana, típico da dérive, o que caracteriza o “passo inglês” ou o “andar à americana” é sobretudo a atitude de total desprendimento por tudo e por todos que estão ao redor. Esse ato de introversão implica ao mesmo tempo uma possibilidade de concentração em outros assuntos alheios àquele lugar e àquelas pessoas, ganhando tempo pessoal, que é portanto entendido como mais importante que a realidade adjacente imediata, e numa sincronização com o ritmo acelerado dos novos equipamentos tecnológicos. (Sevcenko, 1998, p. 551)

A relação entre progresso e trabalho, articulada sob esta perspectiva produtivista, toma a cidade como palco, onde o ritmo acelerado do processo do crescimento urbano retrata-se

como um ícone de progresso e de

modernidade. Disso depreende-se o sentido da representação da identidade da metrópole paulistana como

“a cidade que mais cresce no mundo”.

A

propaganda da construtora Ocian é um exemplo interessante desse imaginário que articula a idéia de progresso ao ritmo do crescimento urbano. Contra a verdade do cronômetro não há o que argumentar.

72

Fig. 11 Publicado no jornal Folha da Manhã – 25/01/1954

O cidade expresso inscritas

imaginário de

São nas

nestes

da Paulo,

imagens anúncios

publicitários, insere-a as

grandes

entre

capitais

do

mundo – uma vez que ela se igualaria em seu progresso a estas cidades. O anúncio da indústria

Dober

&

Irmão

deixa claro que este fato resulta do trabalho da obreira gente paulista. Fig. 12 Publicado no jornal O Estado de São Paulo – 25/01/1954

73

Esse caráter épico da narrativa da grandeza de São Paulo atribui ao paulista a imagem do herói, representando-o como o artífice desta “próspera construção do progresso”. Portanto, ele habita a sua própria obra. Por outro lado, ela passa a referenciar os traços fundamentais de sua imagem como “trabalhador incansável da metrópole que mais cresce no mundo” . Presta-se, assim, um tributo ao habitante da metrópole, reconhecendo a sua “legitima” identidade, a partir de uma categoria de valor apreendida por certa concepção de trabalho.

Fig. 13 Publicado no jornal A Gazeta de São Paulo – 25/01/1954

Podemos perceber neste anúncio que tal concepção aproxima-se de uma referência ao trabalhismo do estado novista. Você que – no campo, na fábrica, na oficina, no escritório, no consultório – em todas os setores do trabalho humano – construiu com seu labor a metrópole que é o orgulho do Brasil...

74

Ou seja, a idéia de que a nação irmanada, entre outros aspectos, pela exaltação ao trabalho, empenha-se na construção da grandeza da pátria. Neste sentido, observa-se no cerimonial de comemoração do IV Centenário um lugar privilegiado para a encenação dos valores ligados ao trabalhismo, fomentando, assim,

a cooptação da sociedade

a favor do

processo de metropolização que estava em curso na capital paulista. Aqui, se recordaria os espetáculos cívicos promovidos pelo Estado Novo. Como bem sinalizou Arnaldo Contier,

ao analisar o sentido da

estetização da política, considerando as performances dos corais regidos por Villa Lobos na época do Estado Novo, estes espetáculos constituíam-se em um importante lugar onde se empreendia a politização das massas populares em prol de determinado projeto de transformação do país. No caso brasileiro, a estetização da política ligou-se a esses espetáculos artístico-cívicos, almejando despertar, no homem brasileiro, o espírito de renúncia às coisas materiais, mediante a exaltação do trabalho, da fé, da disciplina e do amor pelo Brasil. (Contier, 1998, p.38)

A partir destes documentos, imagens de

percebe-se nitidamente como estas

uma São Paulo moderna e progressista estão imbricadas a

determinadas representações da cidade e de seus habitantes que buscam legitimar esta geografia urbana em gestação. Nesta perspectiva, observamos que o discurso que deu o “tom” das comemorações do IV Centenário caracteriza-se por uma consubstancialidade entre determinada concepção de progresso e trabalho. Se, por um lado, a “autêntica” identidade da metrópole paulista inscreve-se como uma “obra do progresso”, por outro lado,

a

representação do homem da terra de Piratininga, naquilo que determina o seu “legítimo caráter” e o seu modo de estar-no-mundo, não pode ser outra senão aquela que o identifica como um incansável operário desta civilização moderna.

75

Na contramão do discurso ufanista, a fotógrafa Alice Brill, flagrando São Paulo, no ano do seu IV Centenário, revela uma paisagem urbana marcada por contraste.

Fig 14 Alice Brill Barraco, c.1954 da série: flagrantes de SP.

Fig 15 Alice Brill, Bexiga, c.1954 da série: flagrantes de SP. 76

Histórias das Malocas

Fig. 16 Publicada na Folha de São Paulo, Janeiro/1968. (sem identificação do lugar).

A imagem acima e o texto abaixo foram publicados no jornal Folha de São Paulo, em janeiro de 1968, como anúncio publicitário da Companhia Ultragaz. Nem deu tempo pra cantar saudade. Mato Grosso acordou numa metade de quarto e foi tomar café (quentinho, na hora, fácil... ULTRAGAZ tava lá) num pedaço de cozinha. E bronquear não resolve: é atacar logo uma reforma – que o progresso agora empurra a

77

gente. Lá em Jaçanã só se pensa no metrô, que há de chegar, sim, zunindo, num contínuo vaivém. Se eu perder o trem das 11, tem logo outro daqui a pouco. E o Arnesto, contente com o viaduto, convida pra nôvo samba (êle mora no Brás) e desta vez não vai mancar. Faz questão de uma birita pra quem cresce com a cidade, pra quem ajuda a fazê-la mais confortável e humana. Tem muita gente vibrando com o nôvo samba do Brigadeiro. Nóis também vai.

ULTRAGAZ é quem acende a chama no bôlo de aniversário. PARABÉNS, CIDADE DE SÀO PAULO! OBRIGADO, PREFEITO FARIA LIMA

É certo que, aqui, novamente, vamos encontrar os traços de uma representação do urbano que se congratula com aquelas concepções inscritas no discurso oficial do IV Centenário, tal como apontamos anteriormente. No entanto, o que nos chama atenção nesta homenagem da Ultragaz à São Paulo e ao seu prefeito Faria Lima34, são algumas referências feitas a Adoniran Barbosa. No texto foram citados três sambas deste compositor: Saudosa Maloca (1951), Trem das Onze (1964) e Samba do Arnesto (1953 – com Aloncin). Estas composições são evocadas, conduzindo a atenção do leitor para as vantagens do progresso. Esses benefícios se tornam visíveis na proporção em que se verificam determinadas intervenções no mapa da cidade. Neste sentido, muita gente vibra “com o nôvo samba do Brigadeiro”. A idéia de cooptar os sambas de Adoniran como justificativa do “samba do Brigadeiro”, implica em uma maneira sectária de se reportar aos seus temas, bem como à sua popularidade. Por esta época, Adoniran Barbosa já havia se consagrado como o “criador do samba paulista”. Entre os seus

34

A gestão Faria Lima ocorre entre 1965-1969. É marcada por uma política de intervenção urbana que se enquadra nos pressupostos do modelo econômico orquestrado pelo regime militar. As mudanças patrocinadas pelo golpe militar refletem-se no cenário da Grande São Paulo de forma singular. A capital paulista se tornou a sede do “milagre brasileiro”. Esta política econômica, ao viabilizar a maximização do lucro, a partir de políticas nitidamente elitistas e excludentes, promove na Metrópole um padrão de modernização que intensificou a tradicional segregação sócio-econômica já existente em períodos anteriores. Segundo Kowarick e Bonduki, a partir de 1965, São Paulo passou a ser objeto de intensos investimentos que remodelaram o espaço urbano de maneira radical. “Expressão disto é o conjunto de políticas colocadas em prática a partir da administração Faria Lima (1965-1969), que originou inúmeras vias expressas, pontes, viadutos, alargamento e abertura de novas avenidas, destinado a criar um sistema viário capaz de receber uma frota que aumentou num período de 30 anos, de 160 mil veículos na capital em 1960 para mais de 3,6 milhões.” (Kowarick e Bonduki, 1994, p. 159)

78

grandes sucessos estava o Trem das Onze, considerado um dos maiores êxitos da música popular brasileira. Quanto à Saudosa Maloca, este samba tornou-se sucesso em todo o Brasil, no ano de 1955, com a gravação do grupo vocal-instrumental Demônios da Garoa. Neste mesmo disco, também, estava gravado o Samba do Arnesto. A composição Saudosa Maloca refere-se à narrativa de três personagens (Mato Grosso, Jóca e o próprio sambista) que vivem a experiência do despejo devido à demolição da casa em que se abrigavam e que cedeu lugar a um grande edifício. Neste sentido, Saudosa Maloca é lembrado como uma espécie de hino destas transformações em curso na metrópole paulista. É certo que a perspectiva dada por Adoniran à sua poética, como veremos mais detidamente no segundo capítulo, constrói-se exatamente no avesso do que foi apropriado pela propaganda da Ultragaz, aqui apresentada. Numa tática

diametralmente oposta a esta apologia, encontramos a

ironia ao progresso como um dos

elementos reveladores da poética de

Adoniran Barbosa. Suas composições nem sempre evidenciam uma estrita problemática socioeconômica. Isto é, em certas músicas são

as relações

cotidianas mais prosaicas que conduzem à narrativa. Neste sentido, o texto a seguir é relevante. Trata-se do samba Conselho de Mulher de Adoniran Barbosa em parceria com Osvaldo Moles e João B. dos Santos, datado de 1953. Em uma

gravação realizada

pelo artista, em seu segundo “LP” de 1975, na

abertura, Adoniran, declamando um texto de Osvaldo Moles, tece algumas reflexões a cerca da existência humana, mais propriamente: “da condição do homem”. Este, depois que Deus inventou a mulher, passa a trabalhar para ela. Mas, por fim, o sambista conclui: se Deus decidir mudar o curso desta história, que lhe tire o trabalho, a mulher, não.

79

Progréssio, Progréssio Conselho de Mulher 35 (Adoniran Barbosa, Osvaldo Moles e João B. dos Santos - 1953) Quando Deus fez o homem/ Quis fazer um vagolinho que nunca tinha fome /E que tinha no destino/ Nunca pegar no batente/ E viver folgadamente/ O homem era feliz enquanto Deus ansim quis/ Mas depois pegou o Adão/ Tirou uma costela e fez a mulher/ Desde então o homem trabalha pr’ela/ Vai daí, o homem reza todo dia uma oração: “Se quiser tirar de mim uma coisa de bão/ Que me tire o trabalho/ A mulher não” Progréssio, progréssio Eu sempre escuitei falar Que o progréssio vem do trabaio Então amanhã cedo nois vai trabaia Progréssio Quanto tempo Nois perdeu na boemia Sambando noite e dia Cortando uma rama sem parar Agora, escuitando o conselho da mulher Amanhã vou trabalhar Se Deus quiser Breque: Mas Deus não quer

Como vimos, o sambista insinua a possibilidade do batente. A princípio, ele se diz convencido da relação entre o progresso e o trabalho. Assim, é legítima a sua promessa: amanhã, irá ao encontro da labuta. Além do mais, ele se diz convencido, também, de que o tempo da boemia, do ócio, do descompromisso é um tempo perdido. Uma outra razão para o trabalho pode ser pensada como o próprio conselho da mulher. Com tudo isso, ele dá a entender que cumprirá, de fato, a sua promessa. No entanto, uma vontade que 35

Anexo 1– CD – , trilha 3

80

lhe é superior, o impede de realizar este dito – Amanhã vou trabalhar / Se Deus quiser / Mas Deus não quer (breque). Vejamos como Krausche refere-se a este samba: Não sem ironia o samba enaltece aquilo que gera o ‘progréssio’: o ‘trabaio’. Promete o fim da boêmia. O novo ritmo da industrialização e da urbanização é aceito sem discussão; as ‘muié’ parecem ter razão. O ouvinte conhecedor das peças pregadas por Adoniran – ‘Charutinho’ fica desconfiado: algo não está muito certo nesse samba – a forma ‘ítalopaulistano-caipira’ de cantá-lo, imprimindo-lhe um caráter cômico, esconde alguma surpresa. Mas eis que se encerra a melodia... e nada. Todos irão trabalhar no dia seguinte em nome do progresso. Contudo, em última instância surge o breque: ‘Mais Deus não qué!...’ (Krausche, 1985, pp. 53 e 54)

O que, aparentemente, no samba, pode sugerir a apologia dos valores do trabalho e, consequentemente, do progresso, é desmontado no final com a brecha que as últimas frases da canção deixam para a inserção do breque – “Mas Deus não quer”. Como observa Krausche, o breque parece estar fora do samba. Além de sugerir certo rompimento com a melodia (algo falado, ou quase falado), ele está colocado no seu término. Contudo, faz parte dele, surpreendendo-o. Assim, conclui o autor, estamos no samba que traz consigo o seu avesso, que é o avesso da exaltação do progresso. Eis o jogo, a brincadeira, que se insinua na construção deste samba. Podemos observar, aqui, um contraponto ao modelo sugerido por Ari Barroso. Em seu discurso, como vimos, histórico-musical,

poderia

o samba,

liberto de sua própria narrativa

traduzir a exuberância da terra promissora, da

gente boa, laboriosa e pacífica e ser a expressão mais legítima de um povo que ama a terra em que nasceu. De certa forma, esse mesmo modelo é reiterado por Guilherme de Almeida. O samba, diz o escritor, é legitimo como representação de um povo que canta para ritmar os movimentos do seu corpo que o suor lubrifica. É a alegria do trabalho. Por isso, o samba é a expressão desta cidade que canta. É certo que estas falas configuram-se na linha de um discurso oficial que busca imprimir determinada representação de nação-povo. Grosso modo,

81

elas estão

imbricadas

a uma concepção de progresso e modernidade,

fomentada no curso do processo de consolidação da nossa sociedade urbanoindustrial. Neste ponto, percebemos que o samba Conselho de Mulher cria um sentido de resistência à ordem dominante. Sua poética insinua-se no campo dos signos desta modernidade, dos “valores positivos” que aí se legitimam. No entanto, ao se apropriar destes signos, cria uma espécie de dissonância. Este momento dissonante, reiteramos, corresponde a um lugar estratégico no corpo desta canção – o breque. Aí estão, a astúcia e a habilidade com que o cancionista transita no campo da ordem dominante (progresso/trabalho). Aqueles que participam da audiência desta canção sabem, exatamente, o que isto significa; inserem-se no jogo desta poética; compartilham desta forma de representação de mundo. Assim, colocam a expectativa neste desfecho – o breque. Aguardam, porque este é o momento do riso, do cômico. O humor já está indicado na primeira palavra do texto – “progresso”. Pois, na forma como ela é apropriada pelo cancionista, o progresso vira – progréssio. Porém, o riso espera o breque. Se ele for suprimido, este samba até pode ser metamorfoseado numa espécie de exaltação do valor mais caro desta ordem burguesa, ou seja,

aquele

que fundamenta uma sociedade marcada pela

obrigação geral do trabalho. Como nos lembra Certeau: Em nossa sociedade, ausência de trabalho significa absurdo; deve-se eliminála, para que prossiga o discurso que incansavelmente articula as tarefas e constrói o relato ocidental do ‘há sempre alguma coisa a fazer’. (Certeau, 1998, p. 294)

Isso posto, na narrativa do samba Conselho de Mulher, encontramos uma tática que investe no humor ao transitar, de forma sutil e astuciosa, em um território vigiado pelos valores da ordem dominante. Valores, estes, inerentes a uma ordem burguesa caracterizada pela imposição do trabalho e por uma hierarquia legitimada no sucesso econômico.

82

Viagem costeira pela vida dos humildes Este traço cômico, que se depreende da poética de Conselho de Mulher, de

pronto

nos

conduz

ao

programa

Histórias

das

Malocas.

Como

mencionamos, este programa foi uma das maiores audiências da Rádio Record, entre meados da década de 50 até meados dos anos 60. Escrito e produzido por Osvaldo Moles,36 esta radiopeça estreou em novembro de 1955. Durante mais de dez anos, foi ao ar todas as sextas-feiras às 21:00 horas, com reprise aos domingos às 12:00 horas. Como esclarecemos, na introdução desta dissertação, a fase da carreira de Adoniran Barbosa como radioator está ligada à sua parceria com Osvaldo Moles. Intérprete dos textos deste radiocontista, Adoniran irá se projetar como um grande interprete cômico do rádio, especialmente, a partir de sua atuação no programa Histórias das Malocas. Segundo matéria publicada no jornal o Estado de São Paulo, este programa consagrou a carreira dessa dupla no gênero humorístico do rádio paulista.

36

Na chamada era de ouro do rádio brasileiro, os programas humorísticos ganharam destaque. Segundo Miriam Goldfeder, enquanto a produção cômica do Rio de Janeiro destacou-se pela sátira política, a produção humorística em São Paulo explorou o campo da sátira social. Este pouco trabalhado pelo humor carioca, mas fértil pelas possibilidades críticas que abria, teve em Osvaldo Moles um de seus melhores produtores. (Goldefeder, 1977) Osvaldo Moles nasceu em Santos no ano de 1913. Jornalista por vocação, cedo entrou para a imprensa. Aqui na capital trabalhou no São Paulo Jornal, no Diário Nacional, além de redator do Estado da Bahia. Em 1936, ingressou na Rádio Tupi como redator, passando, depois, a programador, ocupação que absorveu a sua vida literária. Cronista, contista, escreveu em O Tempo, a secção Lotação para o Sonho; publicou em 1962, seu livro de crônicas Piquenique classe C. No começo da década de 1940, foi contratado pela Record. Aí produziria uma série de programas humorísticos, nos quais atuou Adoniran Barbosa. A pareceria Osvaldo Moles/Adoniran Barbosa data deste período. Depois de passar pela Rádio Bandeirantes, no início dos anos 50, voltou para a Record, onde permaneceu até 1967, ano de sua morte. Em 1956, a Revista do Rádio, assim se referiu a Osvaldo Moles: “(...) É o mais cobiçado produtor do rádio paulista, pois trata-se de um verdadeiro crânio na redação. Escreve desde programa humorístico até o gênero dramático, sempre grandes programas.(...)” Ainda nesta matéria, a revista apresenta Osvaldo Moles como o programador mais laureado do rádio paulista, um verdadeiro colecionador de “Roquete Pinto”. Para Raul Duarte, também considerado um dos grande nomes da Record, Moles foi uma das presenças mais importantes do rádio paulista. Segundo ele, este escritor de programas radiofônicos era dotado de uma grande sensibilidade: “O Osvaldo Moles era jornalista, ele era muito culto, mas não cursou nenhuma universidade .O Osvaldo Moles tinha uma sensibilidade fora do comum, e era formidável. O Moles foi uma das grandes injustiças que eu procuro sanar essa omissão. A turma esqueceu quem foi o Osvaldo Moles e não pode esquecer, eu já pedi para darem uma placa de rua para o Osvaldo Moles, porque ele merece mais do que muita gente” (Depoimento concedido ao pesquisador em 15/12/1998)

83

Dos programas humorísticos do nosso rádio, o melhor, atualmente, é sem dúvida ‘Histórias das Malocas ’. Seu autor, Osvaldo Moles, e seu principal interprete, Adoniran Barbosa, conseguiram, com ele, a consagração definitiva nas respectivas carreiras. Não é fácil vir mantendo há anos o mesmo nível de uma produção humorística. Mas isso tem sido conseguido por Osvaldo Moles. E muito menos fácil é manter um bom nível de interpretação sem altos nem baixos durante tanto tempo, mas essa proeza vem sendo feita por Adoniran Barbosa, que é, em nossa opinião, o melhor ator cômico do rádio paulista na atualidade. 37

Fig. 17 Adoniran e seu principal parceiro, Osvaldo Moles.

No segundo capítulo, discutiremos a relação entre o radioator/ compositor como um ponto

fundamental no entendimento da poética de

Adoniran. Bruno Gomes, ao escrever sobre a trajetória do compositor de Trem das Onze, fala da fecunda parceria entre Moles e Adoniran:

O sucesso de Saudosa Maloca em 1955, cantada pelos Demônios da Garoa, foi um impulso a mais no talento de Osvaldo Moles e na popularidade de 37

Extraído da matéria Humorismo pelo rádio. O Estado de São Paulo. s/d.

84

Adoniran (...) O tema social dos seres infelizes que habitavam os prédios abandonados e ficava arrasados com as demolições, sem rumo e sem lugar para dormir, reacenderam as pretensões criadoras do então apenas ator Adoniran Barbosa. Por outro lado, os programas escritos por Osvaldo Moles eram da melhor qualidade. Mas havia necessidade de manter destacado o tipo Charutinho com aquele sotaque caipira italianado, estropiando com graça as palavras do nosso idioma. Os paulistas gostavam de rir com as piadas dos programas, mas não aceitavam ver naquilo algo que merecesse ser perpetuado ou que parecesse com eles. Muitos até julgavam que aqueles tipos eram uma péssima propaganda negativa do linguajar do povo paulista, que estava desta forma mal representado. (Gomes, 1987, p.30)

Se houve críticas à linguagem utilizada por Moles e mesmo à forma como ele retratava os personagens, inspirados no espaço do cotidiano das ruas, dos subúrbios e das favelas da metrópole,

tal desaprovação, com

certeza, não se relaciona à grande parte da audiência desta radiopeça. Segundo Raul Duarte, a preocupação da Record sempre foi atrair as camadas populares. Para ele, Osvaldo Moles representa um escritor de muita sensibilidade, capaz de criar estes programas que cativam o povo.

A Record queria atingir, principalmente, a classe popularesca. A Record sempre cortejou o povo, o povão. A gente tinha de dar tratos à bola para criar uma idéia que envolvesse os personagens que fascinavam o povão. Eu até que não fazia muito, quem fazia mais era o Moles.38

Adiante, ele enfatiza: era necessário ter uma sensibilidade afinada com o gosto desta audiência:

Para perceber o que era do gosto popular?

Isso é uma questão de

sensibilidade, a gente via e experimentava. A gente queria conquistar a massa e a massa não é feita da elite, a massa é feita do povão.

39

38

Raul Duarte – Depoimento concedido ao pesquisador em 15 de Dezembro de 1998. Raul Duarte foi um dos iniciadores da Rádio Record. Toda a sua vida profissional esteve ligada a esta emissora, onde desempenhou as mais variadas atividades: radialista, diretor artístico, programador e produtor. No início dos anos 1950, integrou a equipe responsável pela estruturação da TV Record. 39 Idem 85

Especificamente sobre a radiopeça Histórias das Malocas, ele nos fala da genialidade do escritor Osvaldo Moles, capaz de criar uma linguagem que, se aproximando do “linguajar crioulo”, fascinava o povo. Segundo ele, o sucesso deste programa manteve-se durante anos, e isso deve-se à sensibilidade do seu criador.

O programa Histórias das Malocas escrito pelo Moles tinha uma importância na Record porque ele tinha uma freguesia fixa. Era como se fosse uma novela e todas as vezes que ele se apresentava,

ele tinha uma freguesia fixa. O

Adoniran Barbosa era a estrela maior do programa. Era um programa voltado para a camada popular. O linguajar crioulo, o Moles tinha uma facilidade muito grande de apreender e aplicar em situações que ele mesmo escrevia e fez sucesso durante muitos anos. O Moles era o produtor do programa Histórias das Malocas, ele escrevia e dirigia. Era ele quem dirigia. Eu não me lembro qual era o patrocinador, mas sempre houve interesse comercial por estes programas. O rádio, você tinha uma grande desvantagem que você não tinha cenário, você tinha que visualizar de acordo com a sua imaginação. O Moles

tinha

sensibilidade e ele era um sujeito muito observador. Ele procurava transpor todo aquele clima que ele via, que ele sentia, ele punha nos programas dele. Ele tinha muita habilidade, muita sensibilidade e muito talento para fazer isto.40

A poética desta radiopeça, sob o nosso ponto de vista, define-se por esta tática de criar o humor, explorando a habilidade, a finta, o senso de oportunidade, enfim, a astúcia com que os seus personagens – moradores da favela do Morro do Piolho – esgueiram-se pelo campo da ordem dominante, subvertendo seus valores. Vejamos, por exemplo, um diálogo entre dois personagens centrais deste radioconto:

Terezoca – Pois é... Deus fez o mundo... Os anjo fizero os passarinho... Os muleque fizero as arapuca. Charutinho – Os engenheiro fizero as casa e as ponte. Terezoca 40

– Despois veio os trabaiadô e fizero as rua.

Idem, op. Cit.

86

Charutinho – Vieram os chanfé e fizero os lotação. Terezoca

– Depois viero os sabido e fizero os barcão.

Charutinho – Depois vieram os vagabundo... E eles falaram, ansim. Sabe o que nois faiz? Nois num faiz nada. Terezoca –

A Terra aqui de baxo apretence aos que trabaia.

Charutinho – Sim, mais os vagabundo, sem teto, é os proprietário do céu. Hum. Ô véia, manja a lua no céu. Dá só uma manjada. A lua parece um arremendo branco, nas carça azul do céu.41

É evidente no texto de Osvaldo Moles uma “dose” de lirismo, ao nosso ver, articulado à maneira como ele traduz a realidade do mundo dos excluídos, ou seja, permeada por um idealismo romântico. No entanto, estes elementos não anulam o sentido de transgressão presente na fala dos personagens ao ironizarem os valores da ordem burguesa. Se a terra pertence aos que trabalham, aqueles que não fazem nada, ou seja, alheios à imposição da labuta, herdariam o céu. Se tomarmos os dois lugares referidos no texto – a terra e o céu – de um lado como metáfora do trabalho, da opressão, do peso de uma vida regrada pelo produtivismo e de outro lado, como metáfora do ócio, da liberdade, do hedonismo, então se configura o sentido de oposição aos padrões instituídos. Lembremos que o anúncio da Cia Fabricadora de Peças referia-se ao progresso de São Paulo como atributo da força de um povo e de sua fé no trabalho. É interessante observar como Osvaldo Moles constrói os seus textos, a partir de com

elementos contrastantes a

tudo aquilo que fundamenta a

legitimidade da moderna sociedade de consumo, cujos valores predominantes tomam a metrópole como palco de sua encenação. O texto a seguir, publicado na contracapa do “LP” Histórias das Malocas – Esterzinha de Souza, dirige a nossa atenção para as linhas de um “mapa”, que nos guia ao mundo das malocas, onde tais elementos são explicitados: “HISTÓRIAS DAS MALOCAS ” - A maloca é o maior esfôrço que o nada já conseguiu fazer para chegar a ser casa. Um nadinha de chão batido coberto de 41

Gravado no “LP” Histórias das Malocas – Esterzinha de Souza. Chantecler, SP – s/d. Anexo 1 – CD – , trilha 5

87

quase nada... e um nome popular: “Hotel das Estrêlas”. É a “máquina de morar” estável e móvel. Porque pode ser que a enchente, o dono do terreno, a Prefeitura ou por qualquer outra intervenção, o maloqueiro tenha que: “botar a casa debaixo do braço” e procurar outro pouso. E isso é feito. Porque a maloca mais confortável consta de quatro caibros, umas traves, algumas latas de banha em que se bateu até voltarem ao seu estado natural de fôlha. E tudo tão reduzido que quando alguém entra... a cama sai. Cama? É somente uma esteira ou fôlha de jornal. Cômodo único em que se faz cozinha, refeitório, dormitório, banheiro, vida social, vida insocial etc. E se, entra mais alguém para dormir (que êles chamam de “pegá a páia”) pode o “ cara ” dormir aqui dentro... mas tem que ir “puxá o ronco ” lá fora senão não dá, velhinho...42

Percebe-se nesta representação da maloca – a casa –

um lugar

provisório, improvisado, à deriva diante das adversidades concernentes às forças da natureza – enchentes – ou àquelas relativas à ordem social e política dominante – dono do terreno / Prefeitura. Habita-se, assim, em um lugar itinerante, frágil, onde a estratégia para fixar um endereço implica em transformar o nada, a escassez, em um abrigo capaz de delimitar, no espaço minguante, as configurações de um “lar” – cômodo único em que se faz cozinha, refeitório, dormitório, banheiro, vida social, vida insocial etc. Se pensarmos que neste momento a cultura dominante promete as benesses da sociedade de consumo e, portanto, da abundância, a maloca representa, antes de mais nada, o contraste visível e concreto a esta civilização moderna. Mais adiante, neste mesmo texto, Moles dá a entender que seus personagens habitam uma realidade concreta, têm endereços localizáveis como: a favela da Vila Prudente, a favela do Vergueiro ou do Morro do Piolho. No entanto, suas identidades são criações poéticas que sintetizam tipos: Charutinho, Dona Terezoca, Chico Lingüiça, Pé de Chinelo, e surgem como um espelhamento dos habitantes da grande cidade.

Nêsse ajuntamento de taperas – onde casa nova já nasce em ruínas – nêsse conglomerado irregular, como dentadura de “bahiano” mordendo a paisagem, é 42

Osvaldo Moles – Publicado na contracapa “LP” Histórias das Malocas – Esterzinha de Souza. Chantecler, SP – s/d.

88

que vão nascendo os tipos da última escala da humanidade. Pode ser Favela da Vila Prudente, a Favela do Vergueiro ou o Morro do Piôlho, onde nascem os tipos do Charutinho, eterno perseguido pela “cana” ou dona Terezoca, velha de 74 que vai fazer 73 em janeiro e que é campeã da “pernada”, do “rabo-dearraia” e da “capoeira”. São tipos dêstes contos gaiatos, pitorescos , às vêzes, trágicos mas todos êles com formato de draminha.43

O trecho abaixo, narrado por Charutinho, fez parte da abertura do programa em 1956. Novamente aqui, pretende-se situar o ouvinte no ambiente por

onde

transitam

os

personagens

Concomitantemente a fala do narrador,

das

Histórias

das

Malocas.

uma melodia de fundo cria uma

atmosfera lírica. O próprio texto e a interpretação de Adoniran enfatizam este sentido. Eis aí como se configura a idéia destes contos, às vezes trágicos, mas todos eles com formato de draminha, como assinalou Moles. No entanto, como já mencionamos, este lirismo não subverte o humor que, articulado à idéia de uma sátira social, explora, a partir de contrastes com os valores da sociedade moderna, o cômico.

Esta é a minha maloca, manja. Mais esburacada que tamborim de escola de samba na quarta-feira de cinzas. Onde a gente enfia a mão no armário embutido e encontra o céu. E o chuveiro e um buraco de goteira no “teiado” de zinco. “Das veiz” a gente toma banho em bacia e se enxuga com a “toaia” do vento. E quando não tem aguá a gente se enxunga mesmo é antes de tomar banho. Maloca tão pequena, que a gente dorme lá dentro e tem que vim puxar o ronco aqui fora... não cabe os dois. Maloca é tão “miseravê”, que só acende o fogo pra fazer churrasco, quando pega fogo na mobília. Maloca onde na guerra contra os “mosquito”, os “mosquito” é que ganharam a guerra. Maloca onde a riqueza é... um jacá de “vaziesa”..., uma cesta de fome... e um pacote de gemido. Maloca onde as crioulas “usa” gilete no cabelo, “pa fazê” barba na barriga dos “entrometido”. Maloca onde eu cresci de teimoso que eu sou. Aqui tão tuas histórias, tua gente e tua “paisage” humana. 44 43

Idem, op. cit.

44

Extraído do “LP” Saudade de Adoniran – Na interpretação de Demônios da Garoa, Wilson Miranda e Adoniran Barbosa. Alvorada, São Paulo – s/d. Anexo 1 – CD – trilha 4. 89

Fig. 18 Trupe do programa História dos Malocas, juntamente com pessoas do público, em um circo no subúrbio de São Paulo- 1959 – No fundo placa: Hoje Charutinho.

A seguir, apresentamos um fragmento de um "script" de Histórias das Malocas. Partindo da leitura de tais scripts, é possível se ter uma idéia da estrutura do programa, bem como de determinados aspectos significativos de sua linguagem. No fragmento aqui apresentado, Moles

enfatiza o

anti-

trabalhismo45, essencialmente, este valor irmana os personagens das Histórias das Malocas em um consenso geral. Exceção feita ao personagem Trabucão. Este, representante

da lei, insere-se no enredo destas histórias como o

guardião da ordem e dos valores instituídos.

.

Vejamos a seguir, esta parte do "script" do programa (os grifos são nossos):

45

Ao analisar o programa radiofônico História das Malocas, Miriam Goldefeder (1977) enfatiza este sentido de transgressão como fundamental nos textos de Osvaldo Moles. Para a autora, a favela é apresentada como o último reduto da solidariedade social, ao mesmo tempo em que se cria um espaço para a discussão do “anti-trabalhismo”, filosofia básica assumida pelos seus habitantes. Escreve a Goldfeder: “A valorização de uma micro sociedade, de suas normas e valores romperia, sob nosso ponto de vista, com as regras definidas pela ética dominante. O papel corrosivo do humor encontrava aí uma das suas manifestações mais significativas.”

90

Locutor:

E a Rádio Record de São Paulo – estação PRB 9 – passa a apresenta neste momento, como em tôdas as 6as, feiras, às 21 horas...

Virgínia:

HISTÓRIAS DAS MALOCAS.

Locutor:

Um programa escrito por OSVALDO MOLES.

Virgínia:

Viagem costeira pela vida dos humildes.

Locutor:

No papel de CHARUTINHO – o popularíssimo astro do Cinema, do Circo, do Disco e do Rádio: ADONIRAN BARBOSA.

Barbosa:

- Aqui, Gerarda!

Virgínia:

Com os quatro maiores comediantes do Rádio e da Televisão: MARIAMÉLIA – MARIA TERESA – LÉA CAMARGO E VALERY MARTINS.

Locutor:

Com VENÂNCIO MARTINS – OSVALDO DE BARROS – DJALMA AMARAL E DE MARTINI.

Virgínia:

Ensáios de OSVALDO DE BARROS.

Locutor:

Apresentação de VIRGÍNIA DE MORAIS e...

Virgínia:

Para “Histórias das Malocas” de hoje, OSVALDO MOLES escreveu um radioconto original intitulado:

Locutor:

Este é o título: RICO SÓ CONHECE POBRE EM DIA DE ELEIÇÃO.

Virgínia:

E, para dar início a HISTÓRIAS DAS MALOCAS de OSVALDO MOLES – aí vem o nosso narrado JORGE DE MAGALHÃES.

Locutor:

Sob o caloroso aplauso do auditório, vamos trazer JORGE DE MAGALHÃES.

Jorge:

O Charutinho estava assim, na forma de costume, sem fazer nada... meio dormindo ao sol no alto do Morro do Piôlho, quando veio se bamboleando, muito saudável e cheia de prosa, a morena Pafuncinha...

Maria:

Alão chicréte de onça! Qui qui tá fazeno aí caboca aberta chuchano o dedão do pé? ...

Barbosa:

Ah... Tô descansando...

Maria:

Escuita! Ocê num fica cansado de nunca fazê nada, não?

Barbosa:

ô fico!...

Maria:

I o que ocê faiz quano fica cansado de num fazê nada?

Barbosa:

Quano eu fico cansado de forga... eu discanso.

Maria:

Tisiu!... Tú tem a duença do Janjão: cumê, sim – trabaião não!

Barbosa:

O que ocê falô aí pela boca?

Maria:

Trabaiá!

Barbosa:

Trabaiá? Num posso. Eu tenho muntas ocupação cá vagabundagem, cumé que eu vô trabaiá? 91

Maria:

Tisião! Ocê si alembra quano ocê arrumô aquele emprego de mastigá marmelada pá duente?

Barbosa:

Uhn! Selviço pesado... Cansava munto os quêxo! Feiz calo na 46

mandibras. (...)

Assim, torna-se mais claro observar, através destas falas do personagem Charutinho, como a representação do trabalho constitui-se na poética desta radiopeça. Cabe ainda assinalar que, sempre no final destes contos, Charutinho deixa uma mensagem em forma de ditado popular. Como por exemplo: -

É como diz o deitado: Pobre só ganha eleição pá covero de cemitério.

-

É como diz o deitado: Pobre nunca pega automóver... É sempre o automóver que pega ele.

-

É como diz o deitado: Quando Deus dá o sapato... o diabo dá o calo!

-

É como diz o deitado: Quando Deus dá a comida...o diabo tira a dentadura!47

Estas falas condensam certa poética que se volta, nitidamente, para uma estética afinada à sensibilidade popular. Moles recria, através de seus textos, uma linguagem cotidiana, com a qual o homem comum se identifica. Assim, sua poética, mediada pelo rádio, adapta-se às preocupações da vida presente da metrópole. Neste sentido, a observação abaixo Adoniran Barbosa sobre o processo de criação deste radiocontista é significativa. Ele nos lembra que recolhia nas ruas uma gíria nova e a entregava ao escritor. “E ele que não era bobo, muito pelo contrário, inteligentíssimo, fazia aquilo render e até criava palavras novas. Moles foi o maior do mundo.”48

Esse reconhecimento da importância de Osvaldo Moles, também é testemunhado pelo compositor Paulo Vanzolini. Em suas reflexões sobre o 46

MOLES, Osvaldo. Rico só conhece pobre em dia de eleição. “Script” radiofônico. Rádio Record – PRB – 9. São Paulo, 2/5/59. 47 Extraído, respectivamente, dos seguintes “scripts” radiofônicos escritos por Osvaldo Moles: “Rico só conhece pobre em dia de eleição”;(02/05/59) “Pobre só faz estação de água quando mora na Água Rasa” ((6/12/63); “Pé de pobre não manja tapete” (13/03/64); “Viva a criação da purga nacioná” (13/09/63) 48 Adoniran Barbosa. Citado por GOMES - 1987, p. 30.

92

desenvolvimento do samba, ele afirma a influência do rádio na configuração deste gênero da música popular. Segundo o compositor, o samba, como se conhece e como é feito, tenha ele nascido onde se queira, é basicamente um produto do rádio e do profissionalismo. Embora, não seja a nossa intenção polemizar aqui este ponto de vista, é importante deixar claro que o encontro samba/rádio pode ser pensado sob uma outra perspectiva: aquela que aborda o samba como um instrumento de popularização deste veículo, e não o contrário, como parece ser a perspectiva de Vanzolini. Não obstante, as observações deste compositor seguem a seguinte análise: na década de 1940, ele relata a cena da boemia paulistana e destaca, neste momento, uma preocupação maior com o samba e com suas “intimidades”. Também, por esta época, diz ele, apareceu um fenômeno importante, o monólogo teatral. O primeiro que eu conheci era de Luís Peixoto: ‘No dia que eu vim ao mundo/se arreuniu tudo quanto era vagabundo/ da orgia. E nesse dia houve festa e batucada/que acabou de madrugada/ em alta pancadaria’. Isso foi depois musicado por Ari Barroso, mas começou a vida honestamente como monólogo. Aqui em São Paulo foi muito importante Osvaldo Moles – uma figura tão importante como esquecida. Moles teve muitos imitadores, entre os quais este que assina e o J. Rubinato, que vende sob o pseudônimo de Adoniran Barbosa. Era uma linha, um tanto piegas, de versos sobre crioulos de cortiço: um tipo esplêndido era Cride, o Nego Aço, escrito e interpretado pelo grande Fiori Pagano (Sobrinho). Dessa linha de monólogo saiu muita coisa boa, como Saudosa Maloca.49

Ressalta-se, aqui, a presença de Osvaldo Moles como uma espécie de balizamento que teria inspirado estes dois grandes nomes do samba em São Paulo.

49

Extraído da matéria Sem o rádio o samba não sairia do morro, assinada por Paulo Vanzolini. Revista HOMEM, no. 3 – out/1975. 93

Letra de Samba O dialogo abaixo ocorre entre Charutinho e Terezoca. A conversa diz respeito à elaboração da letra de samba. Estas falas são representativas

de

uma

determinada concepção que, sob o nosso ponto de vista, revelam os mecanismos de construção de uma

poética que se apresenta

também na obra de Adoniran. Fig. 19 Capa do LP Histórias das Malócas

- Me diga uma coisa Charutinho? O qual que é a receita para fazer uma letra de samba? - Bom, pá escrevê uma boa letra de samba, a gente tem que ter uma condição principal. - É saber fazer as rimas, é ? - Não. Pá escrevê uma boa letra de samba, sentida... humana... A gente tem de sê, em primeiro lugal... narlfabeto. Só se for nalfabeto, escreve bem. 50

Como assinalamos os personagens, interpretados por Adoniran Barbosa e Maria Tereza, discutem sobre os jeitos de compor um samba. Ou melhor, sobre as formas de uma determinada “escrita” – a letra – participar da composição de um “bom” samba. A receita, aparentemente simples, surpreende – Só se for nalfabeto, escreve bem. O paradoxo entre a escrita da boa letra e a condição de analfabeto, traz, em um primeiro plano, a comicidade deste diálogo burlesco, interpretado por estes dois personagens “ habitantes das malocas”. Porém, em um plano mais sutil destas falas, o humor engendra-se a partir do fato de o personagem Charutinho, conhecedor da arte do samba, negar o óbvio – a capacidade de fazer rima, como condição primeira da escrita da boa letra. Não obstante, ao mesmo tempo em que destoa daquilo que já é dado como certeza, ele, 50

Gravado no LP – Histórias das Malocas – Esterzinha de Souza c/ Orquestra – Reg.: Ciro Pereira. CHANTECLER – São Paulo – s/ data. Anexo 1 – CD – trilha 6.

94

imediatamente, apela para um consenso ao adjetivar a boa letra de samba como “sentida” e “humana”. Estas representações, legitimadas na tradição de um amplo repertório musical, criam certo sentido de cumplicidade com o ouvinte. No entanto, depois deste “acordo” , ele desconcerta, desestabiliza o interlocutor e promove a graça, dando o recado em tom de ditado popular: “para escrever bem uma letra de samba, em primeiro lugar, tem que ser analfabeto.” Grosso modo, o que pode ser um preconceito contra os compositores de samba, impondo a eles a condição do desconhecimento da linguagem escrita para a produção de sua arte, pode estar camuflando a revelação de um saber que se inscreve na arte do sambista. De fato, o domínio da palavra escrita não é o elemento primordial desta arte. Ao propor a análise da canção popular, Luiz Tatit observa que o encanto do efeito estético, produzido pela junção da letra e da melodia numa canção, diz respeito às maneiras como o cancionista associa a melodia da canção com a melodia da fala, a entoação. Assim, a articulação da fala coloquial, em sua efemeridade, combina-se com a continuidade da voz cantante do cancionista, que busca um equilíbrio entre os elementos lingüísticos e os musicais. Segundo o autor, a canção não pode prescindir da fala, que é a sua matéria-prima, a entoação que se redesenha e se estabiliza na melodia. A canção, como obra estética, realiza-se na intenção da perenidade; a busca da conservação de sua forma é garantida pelas leis que desenham a sua melodia. Os elementos desprezados nas manifestações da linguagem oral, que parte da interinidade da substância sonora, são agora valorizados pela linha melódica da canção. A partir desses aspectos, Tatit define o cantar como: (...) uma gestualidade oral, ao mesmo tempo contínua, articulada, tensa e natural, que exige um permanente equilíbrio entre os elementos melódicos, lingüísticos, os parâmetros musicais e a entoação coloquial. (Tatit, 1996, p. 9)

Nesta perspectiva o autor assemelha o cancionista ao malabarista,. aquele que em sua gestualidade equilibra: (...) a melodia no texto e o texto na melodia, distraidademente, como se para isso não despendesse qualquer esforço. Só habilidade, manha e improviso. (Tatit, 1996, p. 9)

95

Como um gesticulador, o cancionista manobra sua oralidade e cativa, melodicamente, a confiança do ouvinte. É neste sentido que Tatit assinala o fato de que: Compor uma canção é procurar uma dicção convincente. É eliminar a fronteira entre o falar e o cantar. É fazer da continuidade e da articulação um só projeto de sentido. Compor é, ainda, decompor ao mesmo tempo. O cancionista decompõe a melodia com o texto, mas recompõe o texto com a entoação. (Tatit, 1996, p. 11)

Isto posto, notamos que o cancionista, em seu fazer artístico, não, necessariamente, requisita um capital cultural relativo ao universo da cultura letrada. Uma vez que sua habilidade está em produzir a fala ao canto, sua obra pode até renunciar à escrita, mas não pode prescindir da cultura oral, das representações de mundo que, entre outros suportes, fixam-se em narrativas orais. Estas considerações assinalam um ponto importante para avançarmos na análise do diálogo entre os personagens Charutinho e Terezoca. Ao afirmar o paradoxo entre a boa letra de um samba e a condição de se ignorar o código escrito, caminha-se no campo de um discurso ambíguo, mas, por outro lado, delimita-se a relação de oposição entre dois universos culturais: cultura popular / cultura letrada ou oficial . Como indicamos, as falas destes dois personagens estão gravadas no disco Histórias das Malocas – Esterzinha de Souza. Na verdade, os diálogos entre Charutinho e Terezoca funcionam, ao longo deste “LP”, como apresentações de um elenco de dez canções, todas assinadas por Osvaldo Moles e pelo maestro Hêrve Cordovil e interpretadas pela cantora Esterzinha de Souza51. No que diz respeito ao diálogo aqui analisado ele funciona como abertura do samba, cuja letra transcrevemos abaixo:

51

Como já afirmamos, o disco História das Malocas alude ao programa radiofônico do mesmo nome. Trata-se de um registro sonoro de algumas falas de dois personagens centrais do programa, intercalando sambas, toadas e sambas canções interpretados por Esterzinha de Souza. Na contracapa do “LP”, Osvaldo Moles, assim se refere a esse disco: “O talento do compositor Hervê Cordovil, a personalidade do orquestrador Ciro Pereira e a interpretação de Esterzinha de Souza – com as apresentações de Charutinho (Adoniran Barbosa) e de Dona Terezoca (Maria Teresa) fazem dessa ‘HISTÓRIA DAS MALOCAS” uma das mais vivas e artísticas seqüências de narrativas faladas e musicais – as mesmas que consagram o programa do mesmo nome no Rádio e na TV.” Obs: Cabe lembrar que este programa basicamente foi apresentado no rádio, a sua ida para a TV Record em 1959-1958, não foi bem sucedida. A tradução de seu formato radiofônico e portanto sonoro para um formato televisivo e portanto no domínio das imagens foi um fiasco. “Imaginem só o diretor Randal Juliano pintando Adoniran de preto para interpretar “Charutinho”. (Krausche, 1985, p. 77-8) 96

Letra de Samba52 Quem vai pra escola de samba se matricular Não precisa saber ler, escrever ou multiplicar Letra de samba não tem caligrafia Letra de samba não tem datilografia O que o samba tem que ter Vou lhe dizer pra você É cabrocha gingando Sacolejando, derretendo o gelo Provocando muita dor de cotovelo Quem vai pra escola de samba pra ser bacharel Não precisa de lápis Não precisa nem de papel Letra de samba não quer papel nenhum Nem quer caneta Park 51 O que o samba tem que ter...

Fig. 20 Adoniran no samba em uma birosca na periferia se São Paulo, 1956

Se o personagem Charutinho nega a articulação da escrita como fundamental para a construção da poética do samba, isto nos leva a crer que os prérequisitos, para aqueles que se movimentam em direção a este fazer artístico, compõem-se de certas habilidades alheias ao código da cultura oficial letrada. 52

Anexo 1 – CD – trilha 6 ( Após o diálogo Charutinho e Terezoca, Esterzinha de Souza canta “Letra de Samba”). 97

Assim, tudo aquilo que se refere a este nível da cultura não compreenderia a arte do sambista. O ler, o

escrever, o

multiplicar , a gama de valores

associados às palavras caligrafia, datilografia e mesmo o signo de prestígio e poder representado pela caneta Park 51 não dizem respeito aquilo que o samba precisa ter e, portanto, não se configuram como representação de sua prática. Neste sentido, “escola” não se traduz, aqui, como um lugar das formas institucionalizadas da transmissão do conhecimento e

de modelos

formalizados nos manuais da cultura letrada. O jogo implícito é o da subversão do significado oficial desta palavra. Ao nomeá-la como “escola de samba”, há uma apropriação do código dominante. No entanto, tal operação significa transformá-la em algo que ela não é na cultura oficial, ou seja, um lugar da prática da cultura popular. Nesta inversão, Osvaldo Moles fala do samba,

desdenhando de certas representações da

cultura dominante, ao mesmo tempo em que recorre a um de seus índices mais emblemáticos – a cabrocha gingando – para legitimá-lo em um campo alheio aos meios de compartilhar o saber, senão aqueles relacionados a uma prática cultural fundamentada em experiências do universo

das classes

subalternas. Dentro desta narrativa tradicional do samba, Noel Rosa já havia sinalizado em

1932: Foste linchado lá num samba em Catumbi / Porque

tocaste no pandeiro o Guarani.

53

Um ano depois, Noel escreveria um samba

que passou a ser uma referência na história deste gênero musical – Feitio de Oração.54 Na segunda estrofe desta composição, ele afirma categoricamente:

... Batuque é um privilégio Ninguém aprende samba no colégio Sambar é chorar de alegria É sorrir de nostalgia Dentro da melodia ...

Não se trata aqui de polemizarmos um lugar visível onde esta arte possa ser “ensinada”, pois, o próprio Noel na ultima estrofe de Feitio de Oração explica: o samba não “vem do morro nem lá da cidade”. 53 54

Palpite – Eduardo Souto e Noel Rosa - 1932. Feitio de Oração – Vadico e Noel Rosa - 1933

98

O samba na realidade Não vem do morro nem lá da cidade E quem suportar uma paixão Sentirá que o samba então Nasce no coração

O que gostaríamos de assinalar aqui, não é esse traço mais subjetivo e romântico expresso nos três últimos versos dessa estrofe. Chamamos a atenção para o fato de que, ao descartar o morro e a cidade como possíveis “endereços” do samba, Noel insinua o sambista como portador deste “lugar”, ou seja, o samba não se fixa em um espaço onde possa ser dito ou ensinado, tal qual o fazemos com os objetos da cultura letrada. No mundo do sambista, vale a prática. Com isso, a cabrocha gingando de que nos fala Osvaldo Moles, em Letra de Samba, é o espelhamento desta prática. Assim, “quem vai pra escola de samba”, não vai em busca de algo que já não possua. O samba, de antemão, habita aquele que o deseja. Ainda, referindo-nos a Noel Rosa, indicamos aqui um outro samba que, de certa forma, tem a ver com a nossa questão. Trata-se de Filosofia, uma parceria de Noel com André Filho e que foi gravada por Mário Reis em 1933. Vejamos o que diz o seu texto: O mundo me condena E ninguém tem pena Falando sempre mal do meu nome. Deixando de saber Se eu vou morrer de sede Ou se eu vou morrer de fome Mas a filosofia Hoje me auxilia A viver indiferente assim Nesta prontidão sem fim Vou fingindo que sou rico Pra ninguém zombar de mim Não me incomodo Que você me diga

99

Que a sociedade é minha inimiga Pois cantando neste mundo Vivo escravo do meu samba Muito embora vagabundo Quanto a você Da aristocracia Que tem dinheiro Mas não compra alegria Há de viver eternamente Sendo escrava dessa gente Que cultiva a hipocrisia

Tomado como uma espécie de manifesto, esta letra de Noel Rosa coloca o samba como a sustentação de sua “filosofia”, que sintetiza uma crítica incisiva aos preceitos da sociedade burguesa e uma opção categórica pelo samba como expressão de sua liberdade frente a essa ideologia. É certo que, novamente aqui, observa-se um sentido de oposição entre dois mundos. De um lado, o mundo que é desdenhado pelo compositor como representação de uma sociedade “hipócrita” pautada pelos valores materiais e, de outro lado, a representação do mundo do próprio cancionista que resiste em seus propósitos ao ironizar a sociedade que o ignora. Outra vez, o samba é evocado como um elemento de contraposição entre dois universos. Ainda falando deste samba de Noel Rosa, lembramos que ele sinaliza um momento importante na carreira de Adoniran. Em 1933, depois de muita insistência, o compositor de Trem das Onze consegue não ser “gongado” no programa de calouros da Rádio Cruzeiro do Sul, cantando Filosofia55. Portanto, Adoniran iniciou a sua carreira no rádio através deste samba de Noel. Este “manifesto do sambista”, aí representado, bem exemplifica a trajetória deste compositor. Adoniran viveu “escravo do seus sambas”. Em 1982, quando a imprensa noticiou a sua morte, ele havia cumprido um destino semelhante ao da maioria dos sambistas de sua geração, morreu pobre.

55

Anexo 1 – CD – trilha 7 (Fala de Adoniran e sua interpretação do samba filosofia.)

100

CAP. 2

Adoniran o narrador da metrópole

Fig. 21 Adoniran Barbosa – Praça da Sé, 1978

101

CAPÍTULO 2 ADONIRAN O NARRADOR DA METRÓPOLE Uma cidade respira quando nela existem lugares de palavra, pouco importa sua função oficial – o café da esquina, a praça do mercado, a fila de espera nos correios, a banca do jornaleiro, o portão da escola na hora da saída. (Certeau & Giard, 1994, p. 338)

Os sambas de Adoniran Barbosa insinuam a memória de determinados lugares de palavra. A cidade aí “respira” através de uma narrativa. Ela está no samba através daquilo que é dito (um conteúdo), mas também se inscreve pela maneira de dizê-la (um ato). É este o observação de

sentido que nos parece indicar a

Antonio Candido, referindo-se a este cancionista como um

poeta da cidade de São Paulo, ao inventar um jeito de ser paulistano. Tal invenção está no ato de dizer a cidade, possível no samba quando ele é a expressão de um jeito de ser que dela se apropria e nela habita. Seu ato criativo pulsa a partir de uma atenção perceptiva voltada para a linguagem comum. Adoniran é, sobretudo, poeta da oralidade. Como ator afinou a sua escuta para apreender determinadas vozes e moldar os tipos que foram protagonizados por ele em programas radiofônicos. Como compositor de sambas apurou seu ouvido para recolher na

entoação coloquial a matéria-

prima de sua arte, pois, como nos lembra Tatit (1996, p. 9), o maior recurso do cancionista é o processo entoativo que estende a fala ao canto. Neste sentido, reiteramos, o artista define-se por uma prática inscrita no campo da fala. Em Adoniran, o ator e o sambista fundem-se em sua voz, assumem a mesma máscara. Diz respeito a uma poética construída por sua sensibilidade de “apanhador de vozes”, um artista que escavou na paisagem sonora da metrópole paulistana o sentido de sua arte.

102

Um artista afinado com as vozes da cidade O relato do produtor fonográfico e programador de rádio José Nogueira, lembrando de sua convivência com o artista, ilustra de forma bastante interessante esta idéia de um Adoniran afinado com as vozes que circulavam pela cidade. ...Era aquela companhia todo dia, conversa todo dia, rindo muito com ele, ouvindo as histórias dele. Ele sempre tinha histórias... estava sempre ligado no que acontecia na cidade. (...) Quando eu falo assim ‘ligado nas coisas da cidade’... é que um homem como ele, viveu esta cidade desde o início. Bem como mostra este disco que é o “Documento Inédito”. Ele falando onde que ele nasceu, onde que ele trabalhou, primeiro a Rádio Record onde ele trabalhou e tal... que ele foi gongado em programa de calouro, esta história toda dele que está no disco...então ele tinha uma presença dentro da cidade, de “sacar” as coisas com muita facilidade. Uma vez, no mês de junho, mais ou menos... início de junho, ele chegou para mim e falou assim: – Nogueira, você sabe o que vai acontecer agora? – Como é que eu vou saber o que vai acontecer agora? – Vai acontecer que você encontra as pessoas na rua. Elas esfregam as mãos uma na outra. E uma fala assim: – Que frio! Hein? E a outra fala: – Pior é a umidade. Então ele já sabia os diálogos. Já tinha ouvido anos após anos. E já sabia que o diálogo que ia acontecer em São Paulo ia ser este: – Que frio! Hein? – É, mas o pior é a umidade. Então ele “sacava” tudo. Era muito inteligente o Adoniran. Um espírito fantástico. São as coisas que eu lembro, assim, do Adoniran. 56

Entendemos que Adoniran construiu-se como um artista da voz, por isto “deu ouvidos” a estes

murmúrios que habitavam os lugares por onde ele

circulou. Aí, ele pratica a sua poética, surpreendendo na fala do homem comum o sentido de um cotidiano, a impressão de um lugar e de seus sujeitos. 56

José Nogueira Neto – Depoimento concedido ao pesquisador em 14/12/1998. Observamos que o CD – Adoniran Barbosa – Documento Inédito - gravado pelo selo Eldorado (São Paulo, 1984) teve a direção de produção de José Nogueira Neto e Aluízio Falcão. Neste disco algumas falas do próprio Adoniran, narrando aspectos de sua carreira artística, aparecem entremeadas a uma série de sambas que estão aí gravados. 103

Nestas vozes ele capta o dito mas, sobretudo, liga-se à maneira de dizer. Sua sensibilidade volta-se para o ato (dizer) que singulariza o ator de uma voz. Tal prática compõe o cerne de sua

profissão de radioator57. Neste

sentido, o depoimento de Raul Duarte, falando da relação entre o artista e o produtor Osvaldo Moles, é revelador: O Adoniran Barbosa começou no rádio pensando que ele era cantor, o que é um desastre, como cantor ele não serve pra coisa nenhuma, ele apenas cantarola pra mostrar alguma coisa dele (...)

Osvaldo Moles que era um

grande talento que trabalhava conosco, nosso companheiro que merecia estar como nome em placa de rua, para ninguém esquecer da passagem dele pelo rádio, ele via no Adoniran Barbosa uma outra faceta que o próprio Adoniran não via. Ele via a voz do Adoniran e dizia assim: – Você tem um bom registro e tal... E ele foi descobrindo vozes que o Adoniran podia fazer de italianado, voz de crioulo, e tal... E criou vários tipos... o Moles criou vários tipos através do Adoniran Barbosa, que era um ótimo comediante. (...) O Adoniran Barbosa foi uma grande peça para o Osvaldo Moles. O Moles ficava horas com ele procurando ver cada possibilidade que ele encontrava no registro de voz do Adoniran...ele criava um tipo... muito tempo ele fez isto. (...) A gente cada um tinha um “box”. Aí o Adoniran ficava no box, onde estava o Moles, sentava lá e o Moles falava assim: – Vá falando aí que eu quero ver você fazendo, como é que você inflexiona isso aqui assim e tal...aí dava a idéia e o Moles criava um outro tipo... ele fez vários tipos. Ele fez uma dupla de chofer que era inspirada, numa dupla que existia mesmo no “Ponto Chic”. E o Moles criou Noé e PernaFina, o Adoniran era o Perna-Fina. Era uma dupla de chofer de taxi que existia no Largo do Paissandu.58 57

Observamos que a consagração do artista no meio radiofônico se fez primeiramente pela sua atuação em programas de rádio-teatro. Depois de ter circulado por diversas rádios em São Paulo, trabalhando como cantor, Adoniran ingressa na rádio Record, no início dos anos 40. Ali, interpretando os textos de Osvaldo Moles, tornou-se um dos maiores atores cômicos do rádio paulista: “... O Moles, que fazia o programa Casa da Sogra, criou um tipo pra mim, o malandro Zé Cunversa. Agradei, e ele inventou outros personagens: Zé Cunversa e Catarina – que eu fazia com a Maria Amélia –, Moisés Rabinovic, judeu das prestações, Jean Rubinet, galã do cinema francês, Richard Morris, professor de inglês, Dom Segundo Sombra, cantor de tango-paródia, o Perna Fina, chofer italiano, Comendador Giglio Magnagati, etc. Depois a Record contratou o Gilberto Martins e ele produziu o programa Escola Risonha e Franca, e para esse programa ele criou o personagem, moleque Barbosinha Mal-Educado da Silva. Foi um sucesso. O programa era de auditório e começava às 6 horas. As 3 horas já tinha uma fila enorme na Rua Quintino Bocaiúva.”(A. Barbosa) Em 1955, sua consagração maior, interpreta Charutinho no programa História das Malocas. Obs: essa fala de Adoniran foi extraída da Nova História da Música Popular Brasileira –Adoniran Barbosa & Paulo Vanzolini. S. Paulo, Abril Cultural, 1978, p.4.

58

Raul Duarte – Depoimento concedido ao pesquisador em 15 de Dezembro de 1998. 104

Percebe-se, assim, que o compositor

é primeiramente um artista do

rádio. É neste contexto, na sua relação com este veículo e com determinada linguagem que aí se

desenvolvia, que podemos identificar os elementos

fundamentais de seu trabalho, seja como intérprete dos textos de Osvaldo Moles ou como compositor de sambas. Aliás, como já indicamos, há uma espécie de fusão entre estas duas faces (radioator e cancionista) que, ao nosso ver, assina-la o estilo de Adoniran. A análise de Krausche aborda de forma muito interessante este aspecto da imbricação do radioator com a produção musical do sambista. Ele nos lembra que somente nos anos 1950 a música de Adoniran aconteceu com vitalidade. Na década de 1940, ele foi acima de tudo ator, fato que teria sido fundamental em sua trajetória. Para o historiador,

Adoniran atuou como

mediador entre a rua e o rádio. Além disso, ele observa que o músico teria sido, de certa forma, prefigurado pela performance do radioator. E foi sendo ator, intermediário entre a rua e o rádio, criando e inspirando tipos radiofônicos, imprimindo às ondas sonoras as falas e as entonações de certos bairros característicos da cidade. Por esse caminho, foi cultivando todo um modo de falar e sentir, fundamento de sua linguagem de sambista. Ser ator acabou se revelando um componente de ser músico. Adoniran não aprendeu simplesmente com o rádio, mas com o encontro que ele mesmo promoveu entre o rádio e o cotidiano de sua grande “aldeia”. (Krausche, 1985, p. 24)

Nesta possibilidade do fluir da rua para o rádio, de fazer de sua arte esta espécie de ponte, Adoniran construiu-se como um poeta da oralidade. Em outras palavras, sua percepção ateve-se às sonoridades da metrópole, onde ele, como um “apanhador de vozes”, praticou a arte de ator e sambista. Trata-se de uma poética imbricada à cultura popular urbana fomentada neste contexto da frenética metropolização de São Paulo, no período pósguerra. Em Adoniran flagramos o popular na modernidade. Pois, como nos lembram Certeau & Giard (1997), considerar a cultura como ela é praticada, não naquilo que se valoriza pela representação oficial ou pela política econômica, implica atentarmos para a

oralidade que, juntamente, com a

criatividade prática e os atos da vida cotidiana a sustentam e a organizam.

105

Tais aspectos evocariam o que comumente se identifica como cultura popular que, em nossa cultura urbana e industrial,

são

tidos como ilegítimos ou

negligenciáveis pelo discurso da modernidade. Na realidade, aqui é importante fazermos uma ressalva. Para estes autores, a idéia de cultura popular não se sustenta em função de fronteiras que geralmente aparecem articuladas a este conceito. Isto porque se trata de um território amplamente colonizado pelas instituições políticas oficiais, que buscam embalsamar estas práticas, justamente para celebrar assim sua legitimidade. Deve-se ter cautela com aquilo que aparece legendado com este nome “cultura popular”. Desta maneira, os autores propõem nossa atenção para a

dirigirmos a

proliferação de criações anônimas e efêmeras que

irrompem com vivacidade em nosso cotidiano, mas que

não se deixam

capitalizar. Ou seja, o que está em jogo aqui é a criatividade das pessoas ordinárias. Uma criatividade que se exerce nas práticas cotidianas onde se combinam a astúcia, a sutileza, a flexibilidade do espírito, a atenção vigilante, o senso de oportunidade, enfim, habilidades diversas que se depreendem de uma experiência longamente adquirida. Para além da ordem dominante da produção e do consumo instituída em nossa sociedade, o cotidiano, como nos fala Certeau, se inventa “com mil maneiras de caça não autorizada”. Portanto, considerando esta perspectiva, podemos falar em uma cultura popular quando este conceito se estende à idéia de uma cultura comum e cotidiana. Esta, como apropriação (ou reapropriação) da ordem dominante, mobiliza práticas que se configuram como micro-resistências, as quais fundam, por sua vez, micro-liberdades e assim, como

observam estes autores,

deslocam as fronteiras verdadeiras da dominação dos poderes sobre a multidão anônima. Eis como no campo de uma ideologia irredutível da escrita, da produção e das técnicas especializadas movimenta-se uma cultura fundamentada nas tradições orais, na operatividade (criatividade prática) e no ordinário (atos da vida cotidiana). A partir desta perspectiva, podemos entender a poética de Adoniran Barbosa como um registro revelador da cultura comum e cotidiana que se insinua em pleno centro da modernidade brasileira – a cidade de São Paulo dos anos 50.

106

São Paulo: espetáculo de riqueza e miséria O contexto da metrópole paulista nos anos 50 é marcado por profundas contradições, resultantes da industrialização e do crescimento urbano caótico. Como vimos, na primeira parte desta dissertação, o ufanismo das classes dominantes dá o “tom” do sentido desta modernidade. Este apoia-se na ideologia de exaltação do progresso, vislumbrado em um processo de intensa remodelação da cidade. No decurso desta transfiguração, observam Kowarick e Bonduki (1994) , destacam-se a consolidação do padrão periférico de crescimento urbano, a substituição do sistema de transporte coletivo baseado no bonde pelo ônibus, o enorme crescimento do número de veículos decorrente da implantação da indústria automobilística em território nacional, com a conseqüente estruturação da cidade em função deste meio de transporte, a rápida e massiva renovação das edificações gerada pela verticalização e por novas formas de intervenção dos empreendedores. Associa-se a este acelerado crescimento urbanístico um quadro de explosão demográfica. No início da década de 1950, a população paulistana é de 2,2 milhões de habitantes e abriga mais de 500 000 mineiros e 400 000 nordestinos ( dos quais cerca de 190 000 baianos, 63 000 pernambucanos, 57 000 alagoanos e 30 000 cearenses).59 Esse contingente era quase metade da população paulistana que, por sua vez, descendia de imigrantes, em sua maioria italianos, e de ex-escravos. Ou seja, o grande

crescimento

populacional, neste período, tem suas causas na migração interna. Nos anos 50, calcula-se que 24% da população rural brasileira, cerca de 8 milhões de pessoas, migraram para as cidades60 – o destino: os grandes centros urbanos do país, especialmente, São Paulo, centro do progresso industrial. Estas cifras aumentariam ainda mais nas décadas seguintes.

59

Dados obtidos em Nosso Século, vol. 8 (II). São Paulo, Abril Cultural, 1980. p. 160.

60

Dados citados por Mello & Novais, 1998, p. 581. 107

Fig. 22 Estação Rodiviária da Praça Júlio Prestes no começo da década de sessenta. gente vindo e indo de todas as regiões do país.

Entre 1945 e 1964, avança o processo de industrialização, com a instalação de setores tecnologicamente mais avançados, que exigiam investimentos de grande porte; as migrações internas e a urbanização ganham um ritmo acelerado. Neste período, está em marcha a construção de uma economia moderna, incorporando os padrões de produção e de consumo próprios dos países desenvolvidos. Fabricávamos quase tudo: do aço que era utilizado na construção dos arranha-céus altíssimos equipados com elevadores nacionais, aos cosméticos que davam os novos ares da beleza feminina. Um novo sistema rodoviário cortava o Brasil de ponta a ponta, com algumas estradas de padrão internacional, as primeiras a Via Dutra, ligando São Paulo ao Rio de Janeiro, a Via Anchieta, de São Paulo a Santos, e a Via Anhanguera, de São Paulo a Jundiaí e, depois, até Campinas. Produzíamos automóveis, utilitários, caminhões, ônibus e tratores. (Mello & Novais, 1998).

108

A

metrópole

paulista é o espaço por

excelência

sociedade

da que

emerge em face a este

processo

marcado pela intensa industrialização, pela urbanização,

pelas

migrações internas e pelos novos padrões de

consumo.

Fig. 23 Alice Brill, Filas 1954 da série: Flagrantes de São Paulo.

Uma

sociedade caracterizada por profundas contradições. Estas, sobretudo, são visíveis na periferia deste grande centro industrial. O padrão periférico de crescimento urbano, como analisam Kowarick & Bonduki (1994), reserva para o trabalhador que estava sendo despejado e expulso de sua moradia situada em bairro central e bem servido de equipamentos urbanos e para o migrante atraídos pela cidade do “progresso” um loteamento sem água, sem luz, com ruas intransitáveis. O progresso e o moderno terminavam nas longas e intermináveis filas de ônibus das praças Clóvis ou do Correio, na zona central da cidade, iluminadas pelo néon da Coca-Cola, do Açúcar União e do Jeep Willis. A partir daí, era a espera, o ônibus lotado, o barro, a luz de vela e a água de poço contaminada. (Kowarick & Bonduki 1994 p. 154),

Nítidos, também, são os contrastes apresentados pela estrutura social configurada a partir das

novas oportunidades de investimento e trabalho,

resultantes do avanço do capitalismo industrial. Como sugerem Mello & Novais (1998), basta comparar os três tipos sociais que foram os protagonistas da industrialização acelerada e da urbanização rápida: o imigrante estrangeiro, o migrante rural e o negro urbano e seus descendentes para se perceber aí a conformação de uma sociedade marcada por uma desigualdade extraordinária.

109

Os imigrantes ou filhos de imigrantes (italiano, libaneses, sírios, eslavos, alemães, portugueses, judeus, japoneses, espanhóis) já estavam em São Paulo, o centro da industrialização, há várias gerações. Os autores observam que em 1950, pouquíssimos eram grandes empresários. Mas alguns tinham conseguido passar a donos de pequenos negócios, muitos trabalhavam por conta própria, ou já tinham uma tradição de trabalho na indústria. Além disso, valendo-se da expansão da rede pública de ensino, puderam dar educação formal a seus filhos e alguns já tinham naquela época chegado à universidade.61

Assim,

conquistavam

novas

posições

sociais

que

a

industrialização e a urbanização iam criando.

O dono do pequeno negócio, até o mascate, torna-se médio ou grande empresário, na industria, no comércio, nos serviços em geral. Muitos dos que já eram trabalhadores especializados convertem-se em donos de pequenas empresas. Pais e mães ficam orgulhosos com seus filhos ‘formados’, médicos, dentistas, engenheiros, jornalistas, advogados, economistas, administradores de empresa, publicitários etc., e acompanham suas carreiras, muitos delas meteóricas, como funcionário de empresa ou profissional liberal. ( Mello & Novais, 1998, p. 584)

Quanto aos negros, analisam os autores, estes continuaram ocupando os estratos inferiores da sociedade. A herança da escravatura ainda se faz presente. Após a Abolição, a massa dos negros das cidades continuou

61

Uma nota publicada na coluna social da edição especial do Jornal Folha da Manhã de 24 e 25 de Janeiro de 1954, congratulando-se com a turma dos engenheirandos da Escola Politécnica da USP, deste ano, ilustra, de forma muito peculiar, este aspecto das novas oportunidades de ascensão social assinalado pelos autores. NOVOS ENGENHEIROS PARA A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO A turma de engenheirandos que acaba de receber o seu diploma e que festejou este acontecimento com o baile no Club Roms, no dia 16, tem a gloria de iniciar a sua carreira da maneira mais auspiciosa que é possível em véspera das nossas comemorações do IV Centenário, iniciam sua vida prática, e como a sua carreira é a de construir, em nenhuma época poderia ser tão bem iniciada como este instante em que a cidade progressista, que mais rapidamente se desenvolve no mundo, continua, após quatro séculos, uma existência vertiginosa e dinâmica, são estes os engenheiros civis de 1954, que deixam a Escola Politécnica em tão belo momento.

110

abandonada à sua própria sorte, relegada aos trabalhos mais “pesados” e mais precários, muitos vivendo de expedientes, amontoados em habitações imundas, favelas e cortiços, mergulhados, também, no analfabetismo, na desnutrição e na doença. Até 1930, poucos haviam conseguido se elevar às funções públicas mais subalternas, ou ao trabalho especializado mais valorizado, de marceneiro, costureira, alfaiate etc. Nos anos 50 este panorama sofre

algumas alterações, possibilitando ao negro uma condição mais

competitiva no mercado de trabalho. Não obstante, enfatizam os autores, o valor do trabalhador negro ainda referencia-se nas marcas da escravidão e do descaso dos ricos e poderosos. Ou seja, era muito mais baixo que o do imigrante estrangeiro, o que impunha limites estreitos à sua ascensão social. Este segmento, na verdade, estava bem mais próximo do migrante rural. Dessa forma, concluem, os negros, embora tenham “melhorado de vida”, em sua esmagadora maioria, ficaram confinados ao trabalho subalterno, rotineiro e mecânico.

Fig. 24 Alice Brill,. Camelô na Lapa 1954 da série: Flagrantes de São Paulo.

111

Fig. 25 Alice Brill, Construção 1954 da série: Flagrantes de São Paulo.

Sobre os que

saíram da área rural atraídos pelo sonho da cidade

grande, dizem os autores, estes, também, conhecem certa melhora em sua condição de vida. Vejamos como é analisada a trajetória deste grupo social. Dos que se elevaram até o empresariado, a maioria ‘saiu do nada’ ; pouquíssimos vieram de ‘profissões liberais’ ; poucos, de postos de trabalho qualificado. Mas são incontáveis as mulheres, antes mergulhadas na extrema pobreza do campo, que se tornaram empregadas domésticas, caixas, manicures, cabeleireiras, enfermeiras, balconistas, atendentes, vendedoras, operárias, que passaram a ocupar um sem-número de postos de trabalho de baixa qualificação, alguns de qualificação média. Incontáveis são, também, os homens, desprezados pela sorte, que se converteram em ascensoristas, porteiros, vigias, garçons, manobristas de estacionamento, mecânicos, motoristas de táxi, até operários de fábrica. Alguns chegavam a trabalhadores especializados

na

construção

civil,

pedreiros,

encanadores,

pintores,

eletricistas, ou na empresa industrial, uma minoria, às profissões liberais. (Mello & Novais, 1998, p. 584)

112

Grosso modo, estes elementos nos dão uma idéia dos aspectos fundamentais do

desenvolvimento da

sociedade urbano-industrial em São

Paulo do pós-guerra. Como observamos na primeira parte de nosso trabalho é surpreendente o ritmo do crescimento da cidade neste período. No curso dos desdobramentos deste processo,

um contexto marcado por dramáticas

desigualdades sociais e econômicas configura a imagem da “metrópole que mais cresce no mundo”.

Fig 26 Alice Brill, Feira Livre, 1954 da série: Flagrantes de São Paulo. De João Rubinato a Adoniran Barbosa Neste “palco” de uma São Paulo marcada por profundas contradições, o radioator e cancionista Adoniran Barbosa inventa-se como poeta da cidade. Seu gesto encena uma arte que, como dissemos, busca recolher, na polifonia sonora da metrópole, determinadas vozes com as quais ele estava identificado. Poeta da oralidade, seu trabalho guarda a memória de determinadas falas. São fragmentos

sonoros de um

espaço onde circulam negros, retirantes

nordestinos e imigrantes. Falas que ele diria do povo:

113

Olha eu não tenho nem formação de instrução secundária. Maloca se liga com o meu fraseado. De acordo com minha instrução, entende? É ligado com o povo, eu falo do modo do povo e, se o povo gostou da minha música, é porque eu tô certo. Esse negócio de falar errado não é fácil. Precisa saber falar errado. Muitas vezes o errado é o certo. É a mesma coisa que uma pessoa forçar falar tudo direitinho, perfeito, sai artificial, né, feio, fica sem graça. Todo mundo fala errado e não adianta botar mil Mobrais que não muda nada... mas falar errado também é difícil... Se aparece uma palavra errada na música, mas ela fica boa pro ouvido, eu deixo. ( A. Barbosa - 1978 )62 (O grifo é nosso.)

Nesta perspectiva, também se posiciona a análise do musicólogo Zuza Homem de Mello. Sua voz, ou melhor, as dezenas de vozes de Adoniran, ouvidas nos velhos rádios elétricos da época, eram carregadas dos sons das conversas nos corredores da rádio, nos botequins da Quintino63, nos campos de futebol de várzea, nos jogos de bocha, nas cantinas, nos bairros populares, nos erros de concordância dos italianos e dos caipiras. Aos poucos, o radioator foi-se abastecendo para compor uma obra musical, para transformar sons esparsos e aparentemente sem função, em sambas, no samba da cidade. Adoniran foi deixando de interpretar e torna-se criador.64

Estes sons esparsos e aparentemente sem função, indicados por Mello, guardam particularidades de timbre, fluência, acentuação, pronúncia, enfim, nuances constitutivas da

musicalidade das vozes. Nesta paisagem sonora

caminha este sambista. Na linguagem cotidiana, naquilo que é dito e na maneira de dizer, ele recolhe e recria narrativas. Sua escuta tão afinada à palavra viva – palavras que andam passando de boca em boca, como nos fala Certeau (1998), citando o poeta dinamarquês Grundtivig – abriga em sua música, de

maneira muito peculiar, traços destas vozes que circulam na

linguagem cotidiana. Assim, elas ressoam em sua poética, transfiguram-se no

62

Fala de Adoniran Barbosa em AJZENBERG, Bernardo. Malandragem é Fome. Última Hora, São Paulo, 03/02/1978. pp. 6 e7. 63 O autor refere-se a rua Quintino Bocaiúva no centro de São Paulo onde estava localizada a Rádio Record. 64 Mello, Zuza Homem de, op. cit..

114

corpo da canção, inscrevendo-se no desenho melódico, e permanecem “andarilhas” no canto daqueles que entoam seus sambas.

Fig. 27 Alice Brill, Cafezinho. 1954 da série: Flagrantes de São Paulo.

Antes de avançarmos na análise que estas observações apontam, é importante sinalizarmos alguns aspectos da trajetória deste compositor. Estas indicações foram construídas, sobretudo, a partir de depoimentos do próprio artista65. Chama-nos a atenção a maneira como ele procura aproximar o sentido de sua arte da narrativa de sua história de vida. Em vários relatos estes planos se fundem e o artista parece “encenar” aquilo que está sendo dito. Como se a trama da história vivenciada só fosse dizível, através da voz afinada ao longo da sua vida de artista do rádio. Uma voz que ele foi moldando enquanto desenvolvia a sua arte de narrar. Em um de seus depoimentos, quando lhe perguntaram sobre a voz de um de seus personagens, respondeu:

65

O “tom” da fala do compositor nestas entrevistas sugere um caráter narrativo. Ou seja, Adoniran se prende a uma forma de dizer as suas memórias que se articula à sua arte de narrar. Neste sentido o tempo, a construção das frases e a inflexão da voz (nos depoimentos gravados) se conformam a uma intenção narrativa. No entanto, a maneira como a maior parte destas entrevistas foram feitas, geralmente em busca da notícia e da informação, acaba truncando a fala do entrevistado, impedindo o fluir da riqueza de suas histórias. É preciso lembrar que Adoniran, como enfatizou o produtor José Nogueira, é, principalmente, um contador de histórias. 115

A voz do Charutinho, ah! era essa aqui mesmo, hoje era essa aqui. Só que era mais forte um pouco. Essa a voz dele, essa aqui mesmo. Do Charutinho é essa aqui mesmo. 66

Fig.28 Adoniran nos Estúdios da rádio Record, 1960

O mesmo timbre e a mesma inflexão, que deram voz ao personagem, assemelham-se ao desenho da voz que agora conta a história do artista. Sobre suas músicas,

estes

relatos, insistentemente,

indicam uma

proximidade com as experiências que o cancionista viveu, como se a narrativa da memória do que foi vivenciado traduzisse o samba e vice-versa. Há momentos em que esta fala o surpreende. Aí, ele nos questiona: dá samba? Não? É interessante o percurso que vai se delineando ao longo de sua história de vida. Adoniran foi um sujeito de muitas profissões até ingressar no meio radiofônico, no começo dos anos 1930. Como dissemos, ele nasceu em 1910, no interior de São Paulo, em Valinhos. Foi o sétimo filho de um casal de imigrantes italianos.

66

Extraído do depoimento de Adoniran Barbosa para o Museu da Imagem e do Som de São Paulo – 1981.

116

Meu pai era imigrante da Itália, Treviso. Uma das primeiras imigrações. E foram para Valinhos. Não carpi café, não. Trabalhar com sabão, fazê sabão, com os Milane. Os Milane eram ricos, já. Empregaram meu pai pra fazê sabão, lá. Meu pai sabia fazê sabão. E minha mãe lavava roupa pra eles, pra todos lá... E minha mãe também tinha vindo da Itália... Eu era o caçula. Tinha três irmãs e três irmãos.67 Em 1918, mudou-se com a família para a cidade de Jundiaí (SP). Nesta época trabalha, ajudando o pai no carregamento de vagões da São Paulo Railways. Depois emprega-se como entregador de marmita do Hotel Central e, posteriormente, tornou-se varredor em uma fábrica de tecidos. Nesta cidade também freqüentou o grupo escolar: ...naquele tempo não tinha jardim de infância, eu freqüentava era as ruas da infância. Bunito! Dá samba, não? Durou pouco a brincadeira, pois daí a uns par de meis mudamos pra Jundiaí e la me enfiaram num grupo escolar. Fiquei lá dentro a muque, só até o terceiro ano. As aulas eram de manhã, e de tarde ia ajudar meu pai a carregar vagão na Estrada de Ferro São Paulo Railways – hoje Santos a Jundiaí: tijolos, telhas, lenha. Naquele tempo eu já dizia: “Vamo, João tem muita lenha para carregar”. Pra você ver que esse negócio de dizê: “tem muita lenha”, “é uma lenha”, não é coisa tão nova assim.

68

Com quatorze anos, em 1924, juntamente com a família mudou-se para Santo André (SP). Aí exerceria a profissão de tecelão, encanador, pintor e até garçom na casa do então ministro da Guerra, Pandiá Calógeras. Tamos agora lá por 1926, 27. Fiquei um tempão desempregado, dureza, dureza. Tavam procurando um empregado doméstico. Um amigo chegou, pegou, falou e me disse: “João, vai naquela casa, tão querendo um garção”. Aí eu falei pro meu amigo: “Magina, seu, eu garção?” Nem sei nem o que é isso”. Mas fui e comecei a trabaiá no outro dia. 69

67

Idem. op. cit. Extraído da Nova História da Música Popular Brasileira – Adoniran Barbosa & Paulo Vanzolini. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 2.

68

69

Idem, p. 3. 117

Adoniran conseguiu ficar como garçom. Quem lhe ensinou o trabalho foi a filha do dono da casa onde se empregou. Mas o ministro transferiu-se para o Rio e ele ficou desempregado novamente. Nesta época ingressou no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, onde aprendeu a profissão de metalúrgicoajustador. Mas o trabalho com esmerilhamento de ferro fundido acabou prejudicando seus pulmões e novamente ele se viu desempregado. Outros empregos vieram: loja de ferragens, uma agência da Ford, vendedor ambulante de meias e loja de tecidos na Rua 25 de Março. Aí eu era entregador das compras que as madamas faziam lá. Nessas caminhadas passava sempre na Rádio Cruzeiro do Sul, no Largo da Misericórdia. Fiquei conhecendo o Paraguaçu, Januário de Oliveira e muita gente boa daquele tempo. (...) Mas eu ainda não tinha entrado no meio artístico. Vivia batucando e cantando e tinha feito algumas músicas. (...) Depois parei de fazer porque eu trabalhava no comércio e não dava. Mas aos sábados tinha a hora do calouro. Cismei e todo sábado me arriscava. Era eu começá e lá vinha o gongo. Mas eu não desistia. Um sábado, o homem do gongo devia de está distraído e consegui chegar até o fim num samba do Noel, o ‘Filosofia’. (...) Daí me contrataram para cantar. Quem me convidou foi o Paraguaçu. 70

Quando ingressou na Rádio Cruzeiro do Sul, era o ano de 1933. Neste momento já estava morando em São Paulo desde 1932; o seu endereço: uma pensão na Ladeira Porto Geral no centro da cidade. Em 1935, ganha o primeiro lugar no concurso de músicas carnavalescas da Prefeitura de São Paulo com a marcha Dona Boa, uma parceria com J. Aimberê. Até 1941, perambula por várias emissoras, recebendo cachês: São Paulo, Difusora, Cosmos e Cruzeiro do Sul. Nestes anos compõe com vários parceiros uma série de

sambas e marchas. Mas ainda está longe dos sambas que o

consagrariam como compositor na década de 1950, a exemplo de: Saudosa Maloca, Samba do Arnesto, Iracema etc. No início da década de 1940 entra na rádio Record e nesta emissora, passa a trabalhar como radioator. Ao longo desta década, consagra se como um dos maiores comediantes do rádio paulista, interpretando os textos de Osvaldo Moles. 70

Idem. op. cit.. pp. 3 e 4. 118

No fim de 1941, fui parar na Rádio Record, levado pelo Otávio Mendes. Trabalhava com ele fazendo novela e rádio-teatro. O programa de rádio-teatro se chamava ‘Serões Domingueiros’. Então eu funcionava como ator. Acabei ficando só na Record, onde fiquei amigo de Osvaldo Moles, Raul Duarte, Teófilo de Almeida Sá (...) O Moles, que fazia o programa ‘Casa da Sogra’, criou um tipo para mim, o malandro Zé Cunversa. Agradei, e ele inventou outros personagens. 71

Por conta de sua atuação nestas radiopeças, em 1950, foi eleito pelo jornal Radar melhor intérprete

cômico

do

rádio

paulista. Em 1951, conquista, na mesma categoria, o primeiro de uma

série

de

cinco

prêmios

Roquete Pinto de sua carreira – espécie de Oscar radiofônico da época e, por isso, muito cobiçado

Fig. 29 Adoniran e José Rubens - Humoristas da Rádio Record- 1940, Acervo Museu Adoniran Barbosa

pelos artistas. As revistas e o jornais se refém ao artista como “milionário criador de tipos”. Nesta década, suas composições musicais conhecem um grande sucesso. Depois da gravação de Saudosa Maloca em 1955, pelos Demônios da Garoa, deixaria de ser apenas o campeão do humorismo, o Charutinho do programa Histórias das Malocas , passando a ser identificado como o “mais autêntico representante do samba paulista”. Cabe ainda lembrar sua presença no cinema, neste momento da carreira. Em 1953, o jornal A Gazeta Esportiva assinala sua participação em um novo filme: Depois de aparecer com inteiro sucesso em ‘O Cangaceiro’ , de Lima Barreto, e ‘Esquina da Ilusão’, de Ruggero Jacobi, Adoniran Barbosa, ‘o milionário criador de tipos cômicos’, surgirá brevemente em novo celulóide da Vera Cruz, intitulado ‘O Candinho’, de Abilio Pereira, ao lado de Mazzaropi. O consagrado

71

Idem, op. cit., p. 4. 119

artista, que tem brilhado no cinema e no microfone da Rádio Record, interpretará o papel de professor Pancrácio (...)72.

Fig. 30 Adoniran interpreta o “Homem Arsenal”, Filme O Cangaceiro, 1953

É certo que os empregos e os lugares por onde passou,

antes de

ingressar no rádio, foram provavelmente úteis no desenvolvimento de sua profissão de radioator e compositor. Lembremos que ele, “caipira”, quase analfabeto e sem nenhum conhecimento no meio artístico e radiofônico “veio se aventurar em São Paulo”, como nos conta, no início da década de 1930. Gostava de samba: Sinhô, Noel Rosa, Luís Barbosa, entre outros. Este último se destacou pelas suas interpretações de samba de breque e foi também o introdutor do chapéu de palha como acompanhamento rítmico, nos programas de rádio e em gravações. O Barbosa de seu pseudônimo foi inspirado neste sambista e o Adoniran, no nome de um amigo que trabalhava nos correios. João Rubinato, como ele mesmo diz, para cantor de samba, não ia pegar. Ouvia “rádio galena”, sintonizava as estações do Rio e o samba o influenciou. 72

ADONIRAN, Barbosa. A Gazeta Esportiva, São Paulo, 05/09/1953. p. 23. 120

Vez ou outra, compunha alguns sambinhas, mas nada que achasse bom. Foi, como tantos outros artistas seduzidos pelo rádio, achou que tinha talento e vislumbrou a possibilidade de se tornar cantor do rádio. Morando ainda em Santo André, vinha para São Paulo onde se apresentava amadoristicamente na rádio Fontoura. Depois, tentando a sorte nos

programas de calouros,

conseguiu ingressar em um emissora de maior porte, a Cruzeiro do Sul. Gozado, eu queria entrar no rádio, mas não entrava. Você conheceu o Antonio Rago

73

? É o do violão. Ele acabou entrando nessa. E ele falou assim pra mim:

– Adoniran, na Praça Manuel da Nóbrega tem uma estação de rádio lá, Fontoura. Tá no ar sem ordem ainda do governo, mas irradia, não tem ordem ainda. Vamo lá? Então ele ia de violão. Eu morava em Santo André e vinha pra São Paulo, sempre. Conheceu o Laurindo de Almeida74? Violão, morava em Santo André, meu vizinho. João do Banjo, o Aragão do Pandeiro e eu vinha pra cá com eles. E nós fomos lá no estudinho cantar samba. Não tinha nada profissional, tudo comecinho nosso, tudo comecinho nosso.

Mas foi aí a

primeira vez que eu fui lá ver, microfone, cantar perto. Nem prefixo tinha a rádio. Aí eu comecei a ir nas estações grandes: Cruzeiro do Sul, Rádio Cosmos...Trabalhava de graça, porque não tinha tutu. Eu defendia como corretor de anúncio. 75

Um pouco adiante, o compositor nos fala da grande dificuldade que foi para ele fazer parte do meio radiofônico. Ninguém queria nada comigo, mas nada. Agora, uns e outros querem. Mas onde eu ia, eles iam tudo embora. Eu sempre que ia atrás. Ninguém nunca me 73

Antonio Rago nasceu em São Paulo em 1916. Filho de imigrantes italianos, viria a se tornar um dos maiores violonista da época. Em 1936, como integrante do conjunto Regional do Armandinho, começou a atuar na Rádio Record. Com Armandinho e Zezinho (mais tarde conhecido como Zé Carioca , integrante do Bando da Lua que acompanhou a cantora Carmem Miranda nos EUA. Walt Disney inspirou-se em sua figura para criar o Zé Carioca.) formava o trio de violões deste conjunto que fez sucesso durante algum tempo. Trabalhou com músicos famosos, a exemplo de Francisco Alves. Além de seu trabalho em regionais, Antonio Rago compôs valsas e boleros. (Compilado da Enciclopédia da Música Brasileira. S. Paulo, Art. Ed. Ltda., 1977.) 74 Laurindo de Almeida, nasceu em Miracatu (SP). Excelente violonista, em 1936, se apresenta nos cassinos do Rio de Janeiro. Nesta época, ao lado de Garoto, passa a trabalhar na Rádio Mayrink Veiga. Em 1947, morando nos EUA, foi contratado como violonista da orquestra de Stan Kenton. Chegou a ser considerado um dos melhores do jazz em seu instrumento. (Compilado da Enciclopédia da Música Brasileira. S. Paulo, Art. Ed. Ltda., 1977.) 75 Extraído do depoimento de Adoniran Barbosa para o Museu da Imagem e do Som de São Paulo – 1981.

121

convidou para ir junto. Tinha assim uma rodinha de amigos, de dia, qualquer canto, tudo amigo. Nunca ninguém dizia: – Vamos tomar café? Vamos? Eu que ia atrás. Ninguém falava pra mim: – Vamo? Ô bocó?

Eu que ia atrás.

Nunca ninguém quis nada comigo. Eu sempre fui bonzinho, nunca fiz mal pra ninguém. Mas não sei o que tinha a minha cara que ninguém ia com a minha cara. Gozado isso, viu. Agora me chamam. Agora tudo bem. Mas que coisa esquisita, isso. Como foi difícil.76

Somente nos anos 40, com seu ingresso na Record, é que sua carreira no rádio começou a se consolidar, não como cantor de samba, mas emprestando sua voz, como já mencionamos, na interpretação

dos mais

variados tipos que eram criados pelo produtor e escritor Osvaldo Moles. O Adoniran sambista só seria reconhecido mais tarde com o sucesso de suas composições na interpretação dos Demônios da Garoa.

Os Demônios da Garoa

Este conjunto vocalinstrumental surgiu em São Paulo em 1943. Apresentase nas emissoras de rádio da capital , principalmente a Record,

tornando-se

campeão do Carnaval de 1951, com o samba Malvina de Adoniran Barbosa. No ano seguinte, foi mais uma

Fig. 31 Antônio Gomes Neto, Cláudio Rosa, Francisco Paulo Galo e Arthur Bernardo

vez campeão do Carnaval, com Joga a Chave – composição de Adoniran e Osvaldo França. Por esta época, gravaram músicas de outros compositores. No entanto, os maiores sucessos foram os sambas de Adoniran Saudosa

76

Idem, op. cit. 122

Maloca e Samba do Arnesto77, lançados em 1954, no programa de Manuel da Nóbrega, na Rádio Nacional de São Paulo, e gravados no ano seguinte. Estas interpretações consagrariam o estilo do grupo, que caricaturava a “batucada” dos engraxates que trabalhavam no trecho entre as praças da Sé e Clóvis Bevilacqua, no centro da cidade. Além disso, o grupo enfatizava determinados traços da linguagem utilizada por Adoniran, como por exemplo, expressões da fala acaipirada misturada a certo italianismo, presentes nas letras de suas canções. Estes traços da interpretação dos Demônios, nitidamente, articulamse à idéia de focalizar estas composições numa perspectiva do cômico, aproveitando os breques para jogar com humor gaiato e caricatural78.

O

primeiro “LP” do conjunto, lançado em 1958, reunia Saudosa Maloca, Iracema, As Mariposas79, todas de Adoniran Barbosa. Em 1965, foram os vencedores do carnaval do IV Centenário do Rio de Janeiro, novamente com uma música deste compositor, Trem das Onze80. Foi o maior sucesso do grupo e um dos maiores êxitos da música brasileira. Numa eleição promovida pela Rede Globo de televisão, por conta do aniversário de São Paulo em 25 Janeiro de 2000, o Trem das Onze foi eleita pelo público como a música que melhor representa São Paulo.81

77

Anexo 1 – CD – , trilha 10. Algumas críticas reprovam as interpretações que o grupo imprimiu à obra de Adoniran Barbosa. O tom demasiadamente engraçado que fica das gravações dos Demônios da Garoa, banalizaria o sentido de uma crítica social que se depreende de outras interpretações como, por exemplo, as gravações do próprio compositor. Para o produtor J. C. Botezelli, (produtor do primeiro LP individual de Adoniran - 1973), os Demônios da Garoa exageravam na caricatura, tornando as músicas apenas engraçadas, quando o compositor as pretendia críticas. A gravação do samba Iracema feita pelo próprio compositor (Documento Inédito – SP , Eldorado, 1984) de fato tem este caráter sugerido por Botezelli. Por outro lado, a maneira como Os Demônios da Garoa interpretam este samba, faz com que um trágico atropelamento na avenida São João pareça piada de humor negro. Diz Botezelli: “O que os Demônios da Garoa fizeram com a música do Adoniran, não é a música verdadeira do Adoniran. Se isso servia para virar sucesso, tudo bem, mas o Adoniran era uma pessoa que fazia músicas tristes e não gozadas, críticas e não de galhofas, de humorismo. Ele conhecia bem a favela do Vergueiro, ele conhecia muito bem a cidade.” (Depoimento concedido ao pesquisador em 27/07/1999) Independentemente destas críticas, a parceria Adoniran Barbosa/Demônios da Garoa se configurou como uma das uniões musicais mais famosas da música brasileira. 79 Anexo 1 – CD – , trilha 11 80 Anexo 1 – CD – , trilha 9 81 Informações compiladas a partir da Enciclopédia da Música Brasileira. S. Paulo, Art. Ed. Ltda., 1977; Folha de S. Paulo de 20/04/1984 -Para Conhecer melhor Adoniran - por Dirceu Soares e Estado de S. Paulo de 12/02/2000 – Demônios da Garoa perdem Arnaldo Rosa – por Mauro Dias. 78

123

A vitória deste samba no concurso carioca foi noticiada nos jornais da “metrópole do progresso” com grande furor. Nas entrelinhas, respondia-se à crítica de Vinícius de Moraes que havia identificado a capital paulista como o túmulo do samba. Não só São Paulo “dava samba”, quanto havia feito a proeza de fisgar em terras cariocas o primeiro lugar no concurso comemorativo dos quatrocentos anos do Rio de Janeiro. Ainda mais, em se tratando de uma composição, cujo autor era tido como um autêntico retratista das coisas de São Paulo, a exemplo de Noel Rosa para a cidade do Rio de Janeiro. Vejamos como foi noticiado pelo jornal o Estado de São Paulo a vitória do samba de Adoniran no concurso carnavalesco carioca em 1965.

Samba bom de Charutinho ganha dois milhões no Rio

Mato Grosso nunca mais quis brigar depois que seu nome apareceu num samba do amigo Adoniran, o ‘Saudosa Maloca’. Arranjou trabalho, deixou de beber. Mas não pode fugir ao destino de bêbado e morreu intoxicado por 12 garrafinhas de cerveja preta, numa comemoração com amigos. O branco Adoniran continua por aí, é o crioulo Charutinho do programa ‘Histórias das Malocas ’, faz seus sambinhas de vez em quando e neste ano tomou um fogo a semana passada, quando ficou sabendo que era o primeiro paulista a ganhar o prêmio de dois milhões no Carnaval do Rio, com um samba paulista, o ‘Trem das Onze’. Conta vantagem, fala no povo que sabia a longa letra de cor e cantava nos bailes, mesmo quando as orquestras não o tocam.

O sucesso de Trem das Onze definitivamente consagrava o seu compositor como o maior representante do “samba paulista”.

124

Fig. 32 Alice Brill, Bexiga 1954 da série: Flagrantes de São Paulo .

Adoniran: o sambista e a arte de narrar Em muitas falas Adoniran se pronuncia no intuito de demarcar o seu estilo, recorrendo à determinada idéia de "povo” para identificar a sua poética e mesmo legitimá-la. Aqui, dois aspectos se destacam: constrói as letras

a forma como ele

e os temas abordados por estes textos. O compositor

reiteradamente diz inspirar-se no “linguajar do povo”, recriando a partir destas falas as letras de seus sambas. Assim, ele justifica em sua música expressões como: nóis fumus e não encontremos ninguém, nóis peguemus, din din donde etc. Aliás, ele observa que o encanto da “arte popular” estaria relacionado à 125

maneira como o artista se reporta à fala característica do “povo”. Sobre os temas de seus sambas, eles estariam, segundo o compositor, articulados às histórias e acontecimentos com os quais o “povo” se identifica. Neste sentido, Adoniran diz buscar uma temática muito próxima da vida da gente comum. Meus sambas não nascem com horas marcadas, não são conseqüências de inspirações. Eles nascem por si, por mim, pelas coisas. Contam de uma São Paulo grande, falam das gentes simples, humanas, das malocas, dos malandros, de gente boa. Não pretendo agredir ninguém com meus sambas... Eles não falam de grandes paixões, mas mostram os problemas e o cotidiano das pessoas da cidade grande, das muitas lutas e poucas vitórias. Sei que sou uma pessoa diferente – até os títulos das minhas músicas são diferentes – e sei também que ninguém me conhece. É que não tive nenhuma instrução. O que sei hoje, aprendi na vida. Meu jardim de infância foi a rua.

82

É este o mapa que o compositor oferece a nossa escuta, de tal forma a conduzi-la na paisagem sonora, onde ele diz transitar a sua poética. Para o compositor, seus sambas voltam-se para uma audiência: o “povo”. Em muitas de suas entrevistas ele insiste: “faço samba para o povo. Por isso, faço letras com erros de português, porque é assim que o povo fala”83. No entanto, estas frases pouco nos revelam dos caminhos que se insinuam no plano de suas composições. Aliás, abrem demasiadamente o foco, perdendo de vista as trilhas que poderiam nos aproximar de sua arte. Mas há uma outra frase que, entendemos, representa a síntese de seu estilo: “Pra falar errado, é preciso 82

Fala de A. Barbosa em BENICCHIO, Marlene. . Samba do Metro. Última Hora, São Paulo, 20/06/1975. p. 5. 83 Como observou jornalista Eduardo Martins, no jornal o Estado de São Paulo (1984), o estilo de Adoniran Barbosa sofreu o patrulhamento dos críticos que viam nessa forma de expressão do artista uma ameaça à cultura. No âmbito deste debate, inscreve-se as circunstâncias em que Vinícius de Moraes se referiu à São Paulo como “o túmulo do samba”. Em entrevista ao Jornal Última Hora (07/10/1973) Adoniran mencionou este fato: Ah, foi quando fiz o Arnesto e ele dizia que o Arnesto era errado. Sabe como é? ‘Arnesto nos convidou / pr’um samba / e ele mora no Brás / nos fumos...’ Sabe como é. Ele esculachou como meu samba na ‘Cigarra’. Foi lá nessa revista que ele disse que São Paulo não pode nunca fazer samba. Ah, provei depois que pode. Mas o Sérgio Porto respondeu por mim pra ele: faz samba sim, Adoniran faz samba sim. Adoniran faz samba paulista. Ele não fala em morro, faz samba paulista, da terra dele. O “Samba do Arnesto”, com todos “os seus erros de português”, não pôde ser gravado no primeiro LP individual de Adoniran, em 1974. A proibição foi homologada pela censura da época: “não era admissível a utilização do mau vernáculo nos meios de comunicação”. (O Estado de São Paulo, 24/11/1982) 126

saber falar errado.” Ou seja, para nós,

Adoniran não se resume a um

transcritor da fala cotidiana, da gente comum. Para além deste gesto, está implícito um conhecimento que se depreende de certa maneira de fazer, articulada à

inventividade deste compositor. Neste sentido, menos do que

produzir um “arquivo da fala do povo”, ele interage nestes lugares de palavra, onde circulam conversas, histórias portadoras de experiências, de existências vividas,

que aí são intercambiadas pelo homem comum. Tais idéias

fundamentam a nossa reflexão sobre a obra deste sambista. Nelas percebemos a expressão de seu gesto poético. São movimentos reveladores de uma inteligência e inventividade capazes de bricolage de vozes, determinadas

criar, a partir de uma

narrativas. Histórias que guardam uma

relação de cumplicidade com o “lugar” , onde sua arte buscou seus ouvintes.

O narrador De certa forma, podemos falar em Adoniran, a partir do conceito de narrador presente em Walter Benjamim (1985). Para o filósofo, a arte de narrar está ligada à nossa capacidade de trocar experiências. Assim, a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. (Benjamim, 1985, p. 203)

No entanto, tal perspectiva nos coloca a seguinte questão. Como exercer a arte da narrativa numa sociedade onde as ações da experiência estão em baixa? Onde as experiências estão deixando de ser comunicáveis? Para

Benjamim que diagnosticou a expulsão da narrativa da esfera do

discurso vivo, o surgimento do romance, no início do período moderno, é o primeiro indício de uma evolução que vai culminar na morte da narrativa. O romance separa-se da narrativa na medida em que está vinculado ao livro. Portanto, sua difusão está relacionada à invenção da imprensa, enquanto a narrativa liga-se à tradição oral. O narrador, como dissemos,

insere-se no

127

contexto vivo do intercâmbio de experiências. Em contrapartida, o romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive. (Benjamim, 1985, p. 201)

Enquanto o romancista é impermeável ao conselho, as narrativas denotam uma dimensão utilitária. Essa utilidade, como observa Benjamim, pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida. De qualquer maneira, ele nos lembra que o narrador é um homem que sabe dar conselho. Mas em um mundo onde as experiências não circulam, o conselho recobre-se pelo anacronismo. Em conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação). O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: a sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção. (Benjamim, 1985, pp. 200 e201)

Se, por um lado, o filósofo observa que o surgimento do romance indica o declínio da narrativa, por outro lado, ele assinala que, com a consolidação da burguesia, a imprensa assumi

um papel fundamental e, neste contexto,

destaca-se uma nova forma de comunicação – a informação. Esta, por fim, imprime a ameaça definitiva do desterro da narrativa em nossa sociedade. Assim, conclui que a difusão da informação é hoje responsável por esse declínio. Todos os dias, diz Benjamim, recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. Cada vez mais se torna rara a arte de narrar. Hoje, o narrador parece expulso de nosso convívio.

128

Enclausuradas na sociedade da escritura, num mundo que se vale da imprensa para espelhar a si mesmo, as vozes portadoras das histórias que se abrigavam em nosso cotidiano se tornam cada vez menos audíveis. Se a narrativa implica um nexo à oralidade, como exercer a arte de narrar em um contexto cada vez mais colonizado pela ordem da instrumentalidade escriturística, da informação? A análise de Certeau (1998) a cerca da oralidade traz algumas contribuições significativas para enfocarmos esta questão. Segundo o autor, a instituição da moderna ordem escriturística, possibilitada pela imprensa, foi acompanhada pelo duplo isolamento do “povo” – em relação à burguesia – e da “voz”– em relação à escrita. Assim, diz o historiador, alimenta-se a crença de que bem longe dos poderes econômicos e administrativos, “o Povo fala”. Tal verdade não se sustenta na análise de Certeau. Mesmo porque, nesta perspectiva, corre-se o risco de trabalhar com um conceito de cultura popular que a defini a partir de seu isolamento frente à cultura urbana e moderna. Portanto, ele observa a necessidade de voltarmos nossa atenção, exatamente, para este campo onde as vozes foram afastadas pela imposição da economia que, nas sociedades modernas, se titularizou sob o nome de escritura. A oralidade, conclui, se insinua no centro da economia escriturística. Essas vozes não se fazem mais ouvir, a não ser dentro dos sistemas escriturísticos onde reaparecem. Elas circulam, bailando e passando, no campo do outro. (Certeau, 1998, p. 222)

Isto posto, considerar a poética de Adoniran Barbosa, a partir de uma prática articulada à arte de narrar, significa pensá-la, sobretudo, como transgressão. Isto porque, ao

recortar

estes

sons

esparsos

e

aparentemente sem função, na expressão do musicólogo Zuza Homem de Mello, faz transitar, no contexto dominado pela ordem

Fig 33 Alice Brill, Avenida São João 1954 da série: Flagrantes de São Paulo.

129

escriturística,

a oralidade. Além disso, as

sambas, como já dissemos, articulam à

vozes que habitam os seus

reportam-se a certas narrativas. Portanto,

construção de uma memória, cujo sentido mais evidente se

relaciona a determinado acontecimento. Entretanto, naquilo que é

menos

visível, refere-se a uma memória do gesto, com o qual a comunidade de ouvintes apropria-se da narrativa – o samba – , assumindo-a

como

representação da sua própria experiência. Lembramos que a identidade de um grupo (comunidade), também se revela a partir da escolha de um determinado repertório.

A história de Iracema

Iracema (Adoniran Barbosa) 84 Iracema Eu nunca mais eu te vi Iracema, meu grande amor, foi embora Chorei Eu chorei de dor porque Iracema, meu grande amor foi você Iracema Eu sempre dizia Cuidado ao travessar essas ruas Eu falava Mas você não me escutava não Iracema, você travessou contramão E hoje ela vive lá no céu E ela vive bem juntinho de Nosso Senhor De lembrança, guardo somente suas meias E seus sapatos Iracema, eu perdi o seu retrato

84

Anexo 1 – CD – trilha 8 (após a fala). 130

parte declamada: Iracema, fartavam vinte dias Pra o nosso casamento Que nóis ia se casá Você travessô a São João Vem um carro te pega E te pincha no chão Você foi pra assistência, Iracema O chofer não teve curpa, Iracema Paciência, Iracema, paciência

O samba Iracema foi composto no ano de 1956. Sua história retrata um fato

cotidiano da grande metrópole – um atropelamento. Como vimos, a

história acontece em uma das “avenidas ícones” da cidade de São Paulo, a São João.85 Aliás, este lugar se faz presente em duas canções tomadas como espécie de hino da cidade: Ronda ( Paulo Vanzolini – 1951) e Sampa (Caetano Veloso – 1978). Subjacente à narrativa inscrita em Iracema, há uma outra história onde o autor nos revela a maneira como este samba surgiu. Para nós, este relato se configura como uma chave para entendermos o Adoniran Barbosa sambista que, se valendo de sua arte de narrar, constrói a sua poética ao investir-se como o narrador da metrópole.

85

A Avenida São João na época era o centro da boemia paulistana. Raul Duarte nos dá uma descrição muito interessante do lugar onde a vida boêmia acontecia – a Prainha, um trecho da Av. São João, entre a Av. Ipiranga e o Largo do Paissandu. “A Boemia era na Av. São João, Ponto Chic, Largo do Paissandu, Rua Amador Bueno, o mulherio tava lá... Lá tinha os restaurantes, o Ponto Chic, o restaurante Palhaço, o restaurante Pierrot, o Café Jeca, depois tinha o Ponto Chic, os cabarés, o Imperial, era na rua Dom José de Barros e o Ponto Chic reunia tudo quanto era notívago de São Paulo. Era jogador profissional, jogador de futebol, artista, rufião... lá nasceu o sanduíche Bauru... (...) O Ponto Chic era uma espécie de navio escola do garoto que ia entrar pra conhecer a noite de São Paulo, ele tinha de passar pelo Ponto Chic, fazer o vestibular lá. Lá era freqüentado por esta turma toda e os boêmios, os produtores de rádio viviam lá também, até de madrugada. A Av. São João tinha os bares, os restaurantes... não chamava lanchonete, era bar antigamente. (...) Na Prainha, como a gente chamava...Na Av. S. João, naquele pedaço que vai da Ipiranga até o Largo do Paissandu. Ali circulava a boemia de SP. O pessoal do Teatro, eles iam cear... O Teatro Santana era um lugar em que a gente apresentava os artistas que vinham do Rio de Janeiro, mas tinha o Teatro Apolo, o Coliseu... e depois, os atores e as atrizes iam cear na Av. S. João, o lugar dos desordeiros também era ali... o movimento da noite, lá, era bem grande e se conheciam: o pessoal do rádio, o pessoal do teatro, o pessoal do esporte...era um grupo que se misturava muito bem...” (Depoimento concedido ao pesquisador em 15 de Dezembro de 1998.) 131

Acompanhemos a descrição que o autor faz sobre as circunstâncias que o levaram a compor este samba: Iracema foi que eu vi no jornal. Cuitada, eu vi. E não foi na São João, foi na Consolação. Foi no dia em que eu li deste desastre. Como eu li a notícia, fiquei... E falei, aqui vai dar um sambinha. Foi o primeiro samba errado que eu fiz. Iracema.

86

A tática de escavar na notícia, o samba, comporta um movimento. O sambista se apropria da notícia, não daquilo que ela é – informação –, mas de um novo sentido que ele lhe atribui. Isto já traz em si um ato de criação. Se a notícia “dá samba”, não é que o samba aí se encontre, mesmo porque este lugar lhe é negado. Quem transgride esta fronteira é o próprio sambista, ao provocar na escrita, a oralidade (o samba), ao transitar da informação para uma narrativa. Podemos observar aqui o que Certeau assinala como microresistência. Tal gesto indica este movimento. Insinua a inventividade onde os sujeitos deveriam se comportar como leitores inertes do mundo, ou seja, ali onde a imprensa ordena o consumo passivo de um cotidiano que é dado pela informação, o compositor cria um acontecimento – o samba e uma narrativa que é a sua substância. Torna singular, através de sua canção, o que foi apresentado de maneira massificada pela notícia – informação. Opera na contramão de uma sensibilidade que achata a possibilidade de uma narrativa. Cabe ainda observar que, ao singularizar e imprimir um conteúdo afetivo à informação, ele transgride o sentido de banalização e conseqüente apagamento da singularidade que os fatos, mais cotidianos, podem ter para a memória

coletiva.

Esse

conteúdo

fundamenta

a

relação

de

consusbstancialidade entre o compositor/ samba/ audiência. Neste sentido é que dissemos que a comunidade de ouvintes, ao se apropriar de determinado repertório, como representação de sua própria experiência, o transforma em suporte de sua memória. Portanto, prefigurando o samba, a partir desta tática que o inventa, o compositor transgride o sentido do cotidiano imposto pela modernidade, ao mesmo tempo que o recria, através deste fazer poético. Lembremos que o jeito 86

Fala de Adoniran Barbosa gravada no CD Documento Inédito – São Paulo, Eldorado, 1984. Anexo 1 – CD – trilha 8. 132

de ser paulistano anunciado pela frase emblemática da Empresa Brasileira de Relógios “Hora” S.A, identifica as razões da pujança da metrópole paulista no seu IV Centenário: “Segredo dos Paulistas: Não Perder Tempo”. Esta sentença norteia o comportamento do paulistano, adequando-o aos preceitos da vida moderna. Nesta perspectiva a notícia, como informação, é um instrumento sincronizado às exigências deste homem dinâmico. Ele, leitor do jornal, pode, em um tempo breve, informar-se do universo que o circunda. Assim, orienta as suas ações no contexto desta civilização marcada pelo signo da velocidade. O samba de Adoniran integra-se ao contexto moderno, ao apropriar-se dos seus signos – um atropelamento na Avenida da metrópole. No entanto, subverte esta ordem ao provocar uma outra leitura. Esta identifica o estilo do compositor, na medida em que revela a sua forma especifica de estar-nomundo e de tornar o mundo inteligível para si mesmo. Benjamim, citando Paul Valéry, observa que na modernidade a narrativa declina, pois, neste contexto, não se cultua nada que não possa ser abreviado. Iracema caminha no contra-fluxo deste tempo. Aí subsiste como narrativa, como suporte da memória de um acontecimento que se estende em uma outra temporalidade.

Para além do fluxo que

organiza e disciplina a vida no

contexto da metrópole, o sambista investe na sua história. Quem dela participa é redimido do anonimato. Atores de uma história ganham um nome87. Seus rostos

revelam-se nos traços singulares que o compositor surpreende na

multidão anônima. Se no enredo do samba o protagonista perdeu o retrato de Iracema, de uma forma mais deliberada, através dos objetos que ela usava, permanecem as marcas de sua presença. Diferentemente da fotografia que pode ser retocada e construída como artifício de uma outra realidade, estes objetos evocam de forma inconfundível a memória de Iracema e de seu destino. Aliás, esse destino anima a história com a qual o “eu” narrador está comprometido, bem como aqueles que a ouvem. Metáfora destas experiências de perda na cidade grande, esta canção imprime um sentimento de desalento frente ao irremediável da dor da separação. Se por um lado, a tonalidade menor, o desenho da melodia e a 87

Em inúmeros sambas Adoniran recorre ao nome para identificar os seus personagens. Aí comparecem: Moacir, Inês, Pafunça, Joca, Mato-Grosso, Iracema, Teresa, João, Mané, Sr. Narciso, Sr. Gervásio entre outros. 133

cadência lenta do samba comportam este sentido88, por outro lado, o trecho declamado sugere certa resignação frente ao acontecimento deflagrador da narrativa. No entanto, essa resignação não é aqui sinônimo de passividade, mas uma tática para resistir ao curso inexorável dos acontecimentos. Trata-se de mais uma manobra desta poética que se impõe de uma maneira singular na adversidade. Além de sinalizar o texto entoado no canto, a voz que declama, em sua singularidade de timbre, fluência, acentuação e pronúncia, identifica o seu sujeito, diz quem é o narrador desta história. Ele é portador de um saber relacionado à experiência que esta narrativa sustenta. Diante da

relação

efetiva das forças, isto é: a metrópole que se impõe com o seu trânsito (ruas, avenidas, automóveis etc.) e os transeuntes que em um lapso são tragados por este fluxo, a fala do narrador sintetiza um conselho:

“Paciência, Iracema,

paciência. Esta idéia sugere o tempo da espera. Um gesto que não necessariamente representa a imobilidade frente aos fatos de um cotidiano que oprime. Como assinala Certeau (1998), refere-se à memória “popular” daqueles que não têm lugar mas têm o tempo – “Paciência”.

88

Melodia e texto, neste samba, articulam-se no campo de um processo que podemos identificar como passionalização. Este conceito é trabalhado na obra de Luiz Tatit – O Cancionista . SP, Edusp, 1996. Na construção de modelos que possam abranger a análise da canção popular brasileira, Tatit apresenta três processos que estariam presentes em maior ou menor grau no corpo de uma canção: a figurativização, a tematização e a passionalização. Tais processos são tomados como referências fundamentais em relação à análise da construção do sentido que se imprime em uma canção. Aqui interessa discutir como o autor analisa o processo de passionalização, uma vez que esta composição de Adoniran apresenta determinados traços que a vinculam a essa idéia. Em linhas gerais o autor configura este processo da seguinte forma: - O andamento que imprime um aspecto fundamental da canção caracteriza-se pela desaceleração nas canções que explicitam a passionalização. A opção por este tipo de andamento promove o destaque do contorno melódico. Este efeito está relacionado à maior duração das vogais e extensão da tecitura e dos saltos intervalares. A tensividade se desloca para o campo da freqüência. Aqui, Tatit nos fala do sentido deste processo: “Trata-se, pois, de um leve deslocamento de tensividade em favor da freqüência, contribuindo para transformar todo o caráter da canção e fazer com que a continuidade progressiva da melodia se desacelere e se esvazie dos estímulos somáticos próprios da ação humana. É quando o cancionista não quer a ação, mas a paixão. Quer trazer o ouvinte para o estado em que se encontra. Neste sentido, ampliar a duração e a freqüência significa imprimir na progressão melódica a modalidade do [ser].” (p. 10). Ainda como compreensão deste processo, o autor sugere que a passionalização melódica seria um campo sonoro compatível com conteúdos de narrativas que falam de tensões ocasionadas pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto de desejo. - Cabe observar que a aplicação deste modelo envolve um grau de aprofundamento do instrumental de análise que não é o nosso caso aqui. Pois, isto demandaria a elaboração de diagramas que são construídos com base na estrutura melodia/texto da canção. É a partir daí que se pode construir todo um “mapa semiótico” de uma canção. A grosso modo, reportamo-nos a estas indicações, considerando uma reflexão relativa ao que conseguimos inferir, ouvindo as gravações destes sambas que aqui são analisados. 134

Um samba ambulante Ao narrar a sua história de vida, Adoniran relata que teve diversas profissões: tecelão, pintor, encanador, serralheiro etc. Em dado momento, ele nos diz que tentou ser vendedor ambulante: Bolei ser mascate. Vendia meias e retalhos nas ruas, por aqueles bairros pobres. Andava o dia inteiro. Ajudava o serviço cantar um pouco. Sem querer, fui fazendo uns sambas, enquanto andava. E peguei esse jeito de compor andando, até hoje. 89

Fig 34 Alice Brill, Habitações 1954 da série: Flagrantes de São Paulo.

O artista nos fala de uma relação entre o caminhar e a sua poética. Aqui poderíamos pensar na idéia de um samba que busca enunciar o que seus passos errantes desenham na cidade. Traçado de um mapa, cujas linhas se dissipam e movem-se à deriva. Neste fluir, elas não deixam para o corpo, enredado pelas ruas que o fazem rodar e girar segundo uma lei anônima, a legibilidade do texto que ele escreve. Como observa Certeau (1998), a 89

Extraído da Nova História da Música Popular Brasileira – Adoniran Barbosa & Paulo Vanzolini. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 3. 135

cidade-panorama, traduzida pela vista da torre de um edifício, fixa um texto transparente à sua opaca mobilidade permitindo leitores, essa ficção, por outro lado, se esvai lá em baixo, onde cessa a visibilidade e vivem os praticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência eles são caminhantes, pedestres, Wandersmänner, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um “texto” urbano que escrevem sem poder lê-lo. Esses praticantes jogam com espaços que não se vêem; têm dele um conhecimento tão cego como no corpo-a-corpo amoroso. Os caminhos que se respondem nesse entrelaçamento, poesias ignoradas de que cada corpo é um elemento assinado por muitos outros, escapam à legibilidade. Tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada. (Certeau, 1998, p.171)

Tais práticas, continua Certeau, remetem a uma maneira de fazer, a uma experiência poética do espaço e a uma mobilidade opaca e cega da cidade habitada. Nesse sentido, estas práticas do espaço são estranhas à lógica funcionalista que disciplina o uso do espaço da cidade. A racionalidade urbanística, privilegiando o progresso, toma a cidade como lugar de transformações e apropriações, como objeto de intervenções. Mas, sob esta estratégia que organiza o espaço urbano, o autor indica alguns procedimentos multiformes, resistentes, astuciosos que escapam à disciplina, no entanto, sem ficarem fora do campo onde ela se exerce. A linguagem do poder “se urbaniza”, mas a cidade se vê entregue a movimentos contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder panóptico. A Cidade se torna o tema dominante dos legendários políticos, mas não é mais um campo de operações programadas e controladas. Sob os discursos que a ideologizam, proliferam as astúcias e as combinações de poderes sem identidade legível, sem tomadas apreensíveis, sem transparência racional – impossíveis de gerir. (Certeau, 1998, p. 174)

Nesta perspectiva, conclui o autor; no espaço que se quer disciplinado e visível pela racionalidade urbanística, insinua-se uma cidade transumante, ou

136

metafórica.90 Ao nosso ver, estas reflexões nos aproximam daquilo que Antonio Candido assinala sobre a inventividade da poesia de Adoniran Barbosa. Acompanhemos uma passagem do crítico publicada na contracapa do segundo “LP” deste sambista. Com os seus firmes 65 anos de magro, Adoniran é o homem da São Paulo entre as duas guerras, se prolongando no que surgiu como jibóia fuliginosa dos vales e morros para devorá-la. Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante da sua anti-voz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta dos outros tempos, ele é a voz da Cidade. Talvez a borboleta seja mágica; talvez seja a mariposa que senta no prato das lâmpadas e se transforma na carne noturna das mulheres perdidas. Talvez João Rubinato não exista, porque quem existe é o mágico Adoniran Barbosa, vindo dos carreadores de café para inventar no plano da arte a permanência da sua cidade e depois fugir, com ela e conosco, para a terra da poesia, ao apito fantasmal do trenzinho perdido da Cantareira.91 90

Sobre o estudo do imaginário urbano na sociedade contemporânea, o livro de Cristina Freire Além dos Mapas – Os monumentos no imaginário contemporâneo. São Paulo. Sesc, Anablume, 1997, apresenta uma análise muito significativa sobre a cidade de São Paulo, articulando dois monumentos públicos da cidade - o monumento a Ramos de Azevedo e o prédio monumento – MASP – ao imaginário da metrópole. Esta idéia de uma cidade metáfora articulada às práticas do espaço urbano, é indicado pela pesquisadora como resultante de um sentido que extrapola o uso funcionalista do espaço. A cidade, diz Freire, irrompe de uma realidade espessa de sentidos particulares que configuram os “lugares” no âmbito de relações afetivas. Estes lugares derivam de experiências subjetivas, são nomeados por elas e a partir delas. Assim, frente à impetuosa transmutação da metrópole que vai excluir do seu mapa os suportes das lembranças evocadoras da memória destes lugares, Freire nos fala de uma cidade invisível , resistente no enunciado das pessoas comuns, praticantes deste espaço. 91 Extraído do texto de Antonio Candido, Adoniran Barbosa – publicado na contracapa do “LP” Adoniran Barbosa. São Paulo, Gravadora Odeon, 1975. Obs: Explicitamente, no texto o autor refere-se a dois sambas de Adoniran: As Mariposas e o Trem das Onze. O primeiro diz respeito à analogia entre a gravata de borboleta que Adoniran usava e o tema deste samba: “As mariposa, quando chega o frio/ Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra se esquentar/ Elas roda, roda, roda, despois se senta/ Em cima do prato da lâmpida pra descansar/ Eu sou a lâmpida/ E as mulhé é as mariposa/Que fica dando vorta em vorta de mim/ Tud’as noites, só pra me beijar. Em relação ao segundo, Trem das Onze, há no samba uma citação do bairro Jaçanã: “...moro em Jaçanã/ Se eu perder esse trem/ Que saí agora às onze horas/ Só amanhã de manhã”. Esse bairro durante muito tempo foi servido pela Estrada de Ferro Sorocabana, ramal da Cantareira. O trenzinho da Cantareira começou a circular em 1893. A primeira estatística da Cantareira, em 1896, indicava um movimento anual de 100 mil passageiros. Em 1964, o Governo Estadual desativou essa linha que transportara mais de duas gerações. (“Trem ficou no samba e na saudade” - Suplemento de Turismo, do Estado de São Paulo – 29/12/67) No ano de 1966, na gestão Faria Lima, a estaçãozinha de Jaçanã foi demolida. “..É o progresso, diziam. E lá no bar “Flor do Jaçanã”, um alto-falante gritava bem alto: ‘Adeus, Cantareira, Adeus. Nunca mais ouvirei apito seu. Acabaram com a sua tradição os engenheiros que fizeram o progresso da Nação.’ Os ‘Demônios da Garoa’ é que cantavam através do disco. Cantavam essa e aquela do ‘moro em Jaçanã, se eu perder esse trem que sai agora, às onze hora, só amanhã de manhã....” ( “Na estaçãozinha do Jaçanã, cada tábua que caía, doía no coração.” - Diário da Noite, São Paulo, 21/06/1966. p. 8)

137

Fig 35 Alice Brill, Viaduto do Chá 1954 da série: Flagrantes de São Paulo.

Eis aí a cidade metáfora que se revela na poética de Adoniran. Se a linguagem do poder assume a cidade como tema, esquadrinhando e disciplinando o uso do seu espaço, o poeta a tematiza, precisamente, a partir daquilo que é recalcado por esta visão progressiva e progressista. Neste gesto, ele inventa um samba que, em sua cadência, evoca o enunciado de um movimento dessas práticas do espaço de que nos fala Certeau. Os jogos dos passos, como bem diz este historiador, moldam espaços. Tecem lugares. Nesta perspectiva, eles nos remetem às práticas cotidianas, do espaço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade. Mas estes jogos não se deixam apreender em sua singularidade efetiva num campo localizável, a prática não se faz conhecer no traçado de uma mapa urbano. Certamente, os processos do caminhar podem reportar-se em mapas urbanos de maneira a transcrever-lhes os traços (aqui densos, ali mais leves) e as trajetórias (passando por aqui e não por lá). Mas essas curvas em cheios ou em vazios remetem somente, como palavras, à ausência daquilo que passou. Os destaques de percursos perdem o que foi: o próprio ato de passar a operação de ir, vagar ou ‘olhar as vitrines”, noutras palavras, a atividade dos

138

passantes é transposta em pontos que compõem sobre o plano uma linha totalizante e reversível. Só se deixa então captar um resíduo colocado no nãotempo de uma superfície de projeção. (Certeau, 1998, p.176)

Neste sentido, se o samba de Adoniran revela a fala de seus passos, não se trata do espelhamento de um

desenho arquitetado nos traços e

trajetórias que configurariam o mapa objetivo dos seus percursos. Sua poética não se esgota nessa “superfície de projeção”. Mesmo porque, enfatiza Certeau, essas fixações constituem procedimentos de esquecimento. O traçado vem substituir a prática. Manifesta a propriedade (voraz) que o sistema geográfico tem de poder metamorfosear o agir em legibilidade, mas aí ela faz esquecer uma maneira de estar no mundo. (Certeau, 1998, p.176)

Portanto, se o seu samba reporta a uma prática urbana, ele condensa uma forma de reapropriação deste espaço e, com isso, denota uma maneira de estar no mundo que, em sua poética, representa-se como memória de uma forma de habitar a cidade. Trata-se, portanto, de uma resistência frente ao modo de gestão da cidade articulado à determinada visão de progresso, a qual nos referimos no capítulo 1 desta dissertação. A imposição de um sistema urbanístico, organizando o espaço como valor de troca, segundo os mecanismos que operam na ordem produtivista vai configurar a metrópole como impessoal e sem memória. (Matos, 1982) Assim, na perspectiva do progresso, seus suportes materiais são excluídos, apagando-se os rastros das lembranças. Quando nos voltamos para o discurso que, nos anos 1950, fundamenta o processo de intensa transformação da cidade, fica evidente que São Paulo será tomada como palco desta racionalidade urbanística. Em nome do “progresso visível”, no âmbito do discurso oficial, legitima-se a sua representação como: “a cidade que mais cresce no mundo”. Neste ponto, o texto a seguir é emblemático. São Paulo é um viçoso brôto de 400 anos! Nas ruas e logradouros centrais não há um capela, uma casa, um muro de taipa, uma ruína sequer a anunciar ancianidade. Um único prédio que seja, com mais de 100 anos! Todo o seu passado arquitetônico foi varrido. A famosa ‘picareta do progresso’ tem 139

friccionado continuamente as suas faces, desfazendo as marcas do tempo. Vive a cidade muito mais em função do futuro do que das glórias arquitetônicas do passado. O orgulho dos paulistas jamais será o de possuir a Igreja de São Francisco, como os baianos e sim o de construir 6 casas por hora e sustentar o título de ‘cidade que mais cresce no mundo’.92

Como “voz da cidade”, a poesia

de

Adoniran

resiste.

Seus sambas habilidosamente contam histórias, narrativas que nos

guiam

pelas

ruas

metáfora”.

neste de

caminhar

sua

“cidade



eles

teimosamente insistem, jogam com

as

geografia

imposições urbana,

desta não

à

Fig 36 Alice Brill, Vale do Anhagabaú 1954 da série: Flagrantes de São Paulo.

margem desta ordem, mas no centro de seu discurso. Por isso, o artista inventa um jeito de ser paulistano. Astuciosamente, ele evoca a memória para narrar uma prática do espaço, construindo no plano poético – o samba – a representação da cidade que ele vivencia. Mais uma vez, referindo-nos a Certeau, não se trata, aqui, de pensar essa memória como relicário do passado, a memória, diz o autor: “vive de crer nos possíveis, e de esperá-los, vigilante, à espreita.”(Certeau, 1998, p. 163) Ao nosso ver, estas observações aproximam-se daquilo que Antonio Candido assinala sobre a resistência de uma cidade viva que a poética desse artista evoca. A fidelidade à música e a à fala do povo permitiram a Adoniran exprimir a sua Cidade de modo completo e perfeito. São Paulo muda muito, e ninguém é capaz de dizer aonde irá. Mas a cidade que nossa geração conheceu (Adoniran é de 1910) foi a que se sobrepôs à velha cidadezinha caipira, entre 1900 e 1950, e que desde então vem cedendo 92

Extraído da matéria:– LINGUANOTTO, Daniel. IV Centenário de São Paulo: 400 Anos Sem Rugas Revista Manchete, Rio de Janeiro, 23/01/1954, n º 92. p. 15 140

lugar a uma outra (...) Esta cidade que está acabando, que já acabou com a garoa, os bondes e o trem da Cantareira, o Triângulo, as cantinas do Bexiga, Adoniran não a deixará acabar; porque graças a ele, ela ficará, misturada vivamente com a nova mas, como o quarto do poeta, também ‘intacta, boiando no ar’. 93 Nesta perspectiva, o samba de Adoniran não é um dizer sobre a prática do espaço, ele é um dizer dessa prática. Assim, enuncia os lugares tecidos pelo seu

caminhar,

reapropriação

pelo da

seu

modo

cidade.

de

Nessa

enunciação, irrompe uma narrativa do urbano que, em sua obra, configura-se como uma memória, tal qual nos fala Candido.

A História da Saudosa Maloca O texto a seguir é um relato do compositor sobre a história do samba Saudosa Maloca94. Nesta narrativa, como veremos,

já irrompe o samba. Ele já

existia na história que agora é lembrada pelo compositor.

Fig 37 Alice Brill, Engraxate

1954 da série:

Flagrantes de São Paulo Acervo MAC-USP

Ah, eu tinha um cachorrinho, o Peteleco. De noite saía para dar um passeio com ele pela Rua Aurora. Onde é hoje o Cine Áurea era o Hotel Albion, que acabou sendo demolido. O prédio ficou abandonado uma porção de tempo. Uns e outros sem compromisso, que pra ganhá pra cachaça e pro sanduíche faziam biscates nas feiras, lavavam carro ou eram engraxates, de noite se escondiam lá dentro, pois não tinham onde dormir. Eu conhecia todos – o Mato 93 94

Antonio Candido, op. cit. Anexo 1 – CD –, trilha 4 (após a fala) 141

Grosso, o Joca, o Corintiano. Eu visitava eles, junto com o Peteleco, naquela moradia. A gente batia papo, se entendia e se queria bem. No dia que começô a demolição do casarão, cheguei lá e num vi mais nenhum dos meus amigos. Sumiram, fiquei triste e tive a idéia de fazer um samba para eles. Tava na rua andando, do Viaduto do Chá para a Quintino Bocaiúva, e o samba foi saindo, letra e música junto.

Fig 38 Alice Brill, Após a Demolição 1954 da série: Flagrantes de São Paulo.

O fato gerador deste acontecimento, a demolição de um prédio. Depois disso, a memória deste fato e do seu significado habitam o samba. Ali, resistem, transfiguram-se em “palavra viva”, andarilhas, passando de boca em boca, no canto daqueles que entoam esta canção. A história deste samba pertence a essa gente miúda, sem eira nem beira, que vão compondo as franjas do cenário da modernidade. Essa gente fica fora do enquadramento dado pela perspectiva da “São Paulo do Progresso e do Trabalho.” Mas eles se esgueiram, astuciosamente jogam com a lógica do espaço disciplinar, habilidosamente ocupam a cena principal. Recalcados pela lógica dominante que os nomeia como “detritos” (anormalidade, desvio etc.) de uma administração funcionalista, inscrita na ordem do progresso, eles espreitam,

142

aguardam. Vencidos da história, recorrem a um saber compartilhado pela experiência do homem comum; aí, mais uma vez, resistem. Em Saudosa Maloca Adoniran surpreende a periferia no centro. Aqueles que entoam este samba evocam esta memória. Se o senhor não está lembrado Dá licença de contar Que aqui onde agora está Esse adificio alto Era uma casa velha Um palacete abandonado Foi aqui, seu moço Que eu, Mato Grosso e o Joca Construimos nossa maloca Mas um dia Nem quero me lembrar Veio

os

homens

com

as

ferramentas O dono mandou derrubar Peguemo tud’a nossas coisas E fumos pro meio da rua Apreciar a demolição Que tristeza que eu sentia Cada táuba que caía Doía no coração Mato Grosso quis gritar

Fig. 39 Alice Brill, Praça da República do Chá

Mas em cima eu falei:

1954 da série: Flagrantes de São Paulo

‘Os homi está com a razão Nois arranja outro lugar’ Só se conformemos Quando o Joca falou: ‘Deus dá o frio Conforme o cobertor’ E hoje nois pega paia Nas grama do jardim E pra esquecer

143

Nois cantemos assim: ‘Saudosa maloca Maloca querida Dindin d’onde nois passemo Dias feliz de nossa vida’

A contrapartida da demolição da maloca, como vimos, é o infortúnio daqueles que ali viviam. Despejados, diz a narrativa, resta a eles a grama de um jardim. Não obstante, para os vencidos da história, também, resta

o

samba. Eles o entoam para esquecer, não o acontecido, pois o motivo de sua narrativa é esta memória, mas sim a infelicidade inscrita neste enredo. Eis o jogo que se insinua na trama de uma história onde em princípio, os lugares já se encontram definidos. Cada um em seu lugar, dita a lógica que define os lugares e comanda a configuração deste território por onde transita a poética de Adoniran Barbosa. Em recente trabalho sobre a obra deste cancionista, a historiadora Maria Izilda Santos de Matos chama a atenção para determinados aspectos destas experiências urbanas que a obra de Adoniran condensa: A cidade mostra-se violenta em seu crescimento, as transformações urbanas são irreversíveis, cria uma visão idílica de um tempo-espaço perdido frente ao progresso, é um tipo de inconformismo que se aproxima da resistência e aponta à denúncia, apregoa a paciência, explicita a dor e as tensões da violência urbana. (Matos, 1999, p. 44)

Não é mero acaso o grande sucesso de Saudosa Maloca gravado pelo grupo Demônios da Garoa em 1955. Há aí uma proximidade com o ano do IV Centenário que, como vimos, representou a exaltação da São Paulo das chaminés, da verticalização, enfim dos ícones do progresso, os quais legitimavam a ordem dominante. Nesta linha, dissemos que o samba História Paulista gravado por Silvio Caldas representa a trilha sonora desta visão ufanista. Ou seja, nas palavras de Guilherme de Almeida, a lírica oferenda que São Paulo manda a todo Brasil. No entanto, o samba História Paulista não se perpetuou na memória do “povo”. Por outro lado, Saudosa Maloca ainda

144

participa do repertório do homem comum. Não custa lembrar, este samba é o avesso dessa lírica-exaltação a São Paulo. No ano de 1998, visitando o Jardim da Luz, nos deparamos ali com um grupo de sambistas anônimos interpretando este samba de Adoniran. O ato enunciativo na voz desses cantadores afirma a permanência desta canção, ao mesmo tempo em que, apropriando-se do samba no gesto de sua entoação, legitima a poética do compositor e a poética da voz cantante. A inventividade daquele é, também, a inventividade dos que cantam. Assim, a escolha de um repertório não é aleatória; ela implica em uma opção tática, astuciosa; ela serve à construção destas metáforas que remetem às práticas comuns de que nos fala Michel de Certeau. Certo é que este jogo não é tão explícito. Ele se camufla na sinuosidade. Naquilo que se canta, nem sempre é visível a intenção do cancionista. Mas a escolha de Saudosa Maloca, a possibilidade de sua permanência na memória do homem comum e, por outro lado, o esquecimento das composições de Lauro Miller do disco Isto é São Paulo – na voz de Silvio Caldas (representante do discurso oficial), contribuem para intuirmos os traços de profunda afinidade dos sambas de Adoniran com o seu público e, a partir das

idéias

de

Certeau,

argumentarmos

a

favor

dos

aspectos

das

representações das astúcias, das táticas do homem ordinário no contexto deste espaço urbano, como constitutivos da obra deste artista.

145

Considerações Finais Em recente pesquisa realizada na ocasião do aniversário da cidade, Adoniran Barbosa surge, entre personalidades da política paulistana como Maluf ou Marta Suplicy ou ainda celebridades populares da TV como Ratinho ou Silvio Santos, como a “personalidade que mais tem a cara de São Paulo”95. Considerando que os outros estão em atividades e Adoniran faleceu em 1982, esse dado torna-se bastante revelador ao fornecer essa confirmação positiva da permanência desta figura no imaginário social paulistano. Essa

presença

torna-se

metáfora

de

certa

resistência

que,

paralelamente ao poder oficial ( político ou da mídia), se sobrepõe aos poderes oficiais e constituídos, para anunciar a cidade como um terreno de criação que se estende para além dos poderes manifestos. Uma criação inscrita na cotidianidade do homem simples, aqui representado por Adoniran, que permanece em lugar privilegiado na memória dos habitantes desta cidade. Suas músicas, como Saudosa Maloca ou Trem das Onze, são capazes de reunir, num só coro, pessoas de diferentes idades ou extratos sociais. Terem conhecido ou não esse personagem em vida, através de suas participações em programas de rádio ou TV e no cinema, parece não fazer qualquer diferença. Sua poética, que procuramos analisar em algumas de suas características ao longo deste trabalho , deixou traços significativos e duradouros em nossa memória cultural. Não por acaso também o filme Candinho (1954), foi restaurando este ano pela Cinemateca brasileira. Neste filme, realizado por Abílio Pereira de Almeida com Mazzaropi e Marisa Prado, Adoniran faz o papel do prof. Pancrácio, filósofo do povo.

Procurando Adoniran O relato a seguir é de um motorista de táxi de São Paulo. Trata-se de uma história que nos foi narrada em maio do ano 2000. Ela comparece aqui, nestas considerações finais, porque guarda determinado parentesco com os sambas de Adoniran. Sobretudo, ela nos fala destes lugares de palavra onde o 95

Ver Folha de São Paulo . 25 de janeiro de 2001 , p.. C-3.

146

compositor “bebia os seus sambas”. Vejamos o que diz este motorista “anônimo” que há mais de quarenta anos dirige pelas ruas da metrópole. Hoje, já não é bom dirigir um taxi. Quem vê a gente atrás do volante, imagina que isto aqui é só diversão. Mas, hoje, os passageiros entram no taxi e já vão falando no telefone celular. Alguns ficam no computador. Eles fizeram do taxi o seu escritório. Ninguém mais conversa. Porque, quando a gente conversa, a gente se lembra dos passageiros. Às vezes, faz até amizade. Um dia, um sujeito esqueceu um pacote aí no banco detrás. Passado um tempo, eu resolvi abrir. Era uma calça. Como não servia para mim, eu resolvi deixar no porta-malas do carro. Um dia, eu estava almoçando num restaurante lá no centro., Eu sempre almoçava por lá. Do meu lado, sentou um senhor e nós conversamos... sabe... conversa de almoço, conhecido de bar. Lá pelas tantas ele me perguntou: - O senhor... não é motorista de taxi? Eu estou lembrando do senhor. Eu... não deixei um pacote no banco do seu taxi? Era uma calça que eu tinha mandado fazer. Eu achei que ele estava me enrolando, porque eu tinha contado a história do pacote no bar. Então eu perguntei pra ele como era a calça. Ele disse que ela era assim, desse jeito e tal. Eu ainda estava desconfiado. Então eu perguntei pro sujeito sobre o que a gente tinha conversado durante a corrida. E ele disse: - A gente conversou sobre isso, assim e tal... Aí eu fui me lembrando do sujeito. Então eu entreguei a calça pra ele. No fim, ele me pagou o almoço. Hoje? Hoje é diferente, ninguém mais conversa. Então a gente não lembra mais dos passageiros.

Adoniran, como vimos, tinha uma relação muito íntima com a cidade. Este ator, velho boêmio, entrava em cena com sua roupa alinhada, gravata borboleta e chapéu. Assim, caminhava pelas ruas, especialmente do centro, lugar que ele mais freqüentou. Nesta sua prática do urbano, contracenava com a cidade, recolhendo nesta

paisagem metropolitana a temática dos seus

sambas. ... o samba é igual em qualquer lugar do Brasil Os meus só são diferentes por causa dos temas que eu pego... Mas eu gosto de usar temas que ninguém 147

usaria para fazer samba... Eu fiquei conhecido mais por ser o primeiro a cantar São Paulo. Nem podia ser de outra forma. Afinal, cresci, vivo e quase não saio daqui. Se fizesse samba de outro lugar não dava. E nesse ponto, há um detalhe importante. Compor sobre o Rio de Janeiro, por exemplo, é muito fácil. O Rio é uma cidade muito bonita que inspira bastante, e tem vários lugares cujo nome já são meio samba, de tão sonoros, tem muita poesia... Em São Paulo, nada disso. Alguém consegue encaixar Vila Alpina, Vila Inhocuné... em samba. Não dá, eu reconheço. Mas gosto tanto da cidade que acabo dando um jeito. Foi por isso que fiquei conhecido. Agora, para cantar São Paulo eu resolvi aproveitar tudo que a cidade oferecia. Então entram na letra, gíria, ruas, bairros, muita coisa do cotidiano da cidade.96

Em uma de suas últimas entrevistas, dois anos antes de sua morte, o cancionista se lamentou da “impossibilidade” de seu samba. O mapa de suas lembranças não dispunha mais dos marcos que identificaram os lugares referenciais do corpo de sua obra. Me mandaram achar São Paulo e eu não achei. Me mandaram achar o Bexiga e não existia mais, a não ser alguma coisinha ali pela 13 de Maio, rua Fortaleza. O Brás é quem te viu e quem te vê. Mas já não sofro mais, estou calejado. 97

Mesmo diante deste fato, o artista continuou investindo em seu estilo, na singularidade de seu fazer artístico. Se a inspiração para o samba já não estava mais presente, Adoniran, nos últimos anos de sua vida, dedicou-se à arte de confeccionar miniaturas, com sucatas recolhidas em suas andanças de boêmio vespertino. Nas mãos do artista, estes fragmentos ganharam a forma de um parque de diversões, de um trenzinho que anda sobre os trilhos, com vagões e passageiros, de uma bicicleta. O gesto de recompor sua memória, através destes objetos, torna possível a expressão de sua biografia, diz ao mundo quem essa pessoa era, revela sua identidade particular e reescreve a narrativa de sua história de vida. Esta intimamente ligada a um estilo próprio de 96

Extraído da matéria: Uma grande festa para os 70 anos do Chaplin do samba paulistano de Maria Rocha Lopes, publicada no Jornal da Tarde em 09/08/1980. 97 Idem

148

pertencer à cidade de São Paulo, resulta de um investimento contínuo na produção e criação de “um jeito de ser paulistano”, explicitado na perspectiva de seu gesto artístico, de seu olhar sobre a metrópole. Assim, praticou a sua arte nos limites dessa criação, inventando-se a si mesmo como poeta da cidade, tal como indicou Antonio Candido.

Fig. 40 Adoniran Bairro do Bexiga - 1978

149

Fig. 41 Brinquedos construídos por Adoniran.

150

Fontes e Bibliografia

151

Fontes Orais -

Adoniran Barbosa ................................depoimento registrado no

acervo

MIS – SP -

Arley Pereira...................................depoimento concedido ao pesquisador em 03/12/1998

-

João Carlos Botezeli (Pelão) .......depoimento concedido ao pesquisador em 27/07/1999

-

José Nogueira .................................depoimento concedido ao pesquisador em 14/12/1998

-

Paulo Vanzolini.................................depoimento concedido ao pesquisador em 05/12/1998

-

Raul Duarte.......................................depoimento concedido ao pesquisador em 15/12/1998.

-

Toninho (Demônios da Garoa)..........depoimento concedido ao pesquisador em 03/12/1998.

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MATOS, Olgária. A Cidade e o Tempo: Algumas Reflexões sobre a Função Social das Lembranças. ESPAÇO E DEBATES, n º 7, out. / dez. 1982. MÁXIMO João & DIDIER Carlos. Noel Rosa: Uma Biografia. Brasília, UnB, 1990. MELLO, João Manuel Cardoso de & NOVAIS, Fernando A.. Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna. In: Lilia M. Schwarcz org. HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL – Vol. 4, São Paulo, Cia. das Letras, 1998. MORAES, José Geraldo Vinci de – Sonoridades Paulistanas – Final do Século XIX ao Início do Século XX. Rio de Janeiro, FUNARTE, 1995. ___________________________ Metrópole em Sinfonia – História, Cultura e Música Popular em São Paulo nos Anos 30. São Paulo, USP. 1997, tese de doutorado. PRADO Maria Lígia Coelho. Davi e Golias: as relações entre Brasil e Estados Unidos no século XX. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.) Viagem Incompleta: A Experiência Brasileira (1500-2000) – A Grande Transação. São Paulo, Ed. SENAC São Paulo, 2000. PETRONE, Pasquale. A Cidade de São Paulo no Século XX, In: A Evolução Urbana de São Paulo – V COLEÇÃO DA “REVISTA DE HISTÓRIA” – São Paulo, Col. da Revista de História, 1955. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo, Cia das Letras, 1992. __________________. A Capital Irradiante: Técnica, Ritmos e Ritos do Rio. IN: Nicolau Sevcenko org. HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL – Vol. 3. São Paulo, Cia. das Letras, 1998.

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__________________. Pindorama Revisitada: Cultura e Sociedade em Tempo de virada. São Paulo, Peirópolis, 2000. SHWARCZ, Lilia Moritz. Nem Preto Nem Branco, Muito Pelo Contrário: Cor e Raça na Intimidade. In: Lilia M. Schwarcz org. HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL – Vol. 4, São Paulo, Cia. das Letras, 1998. SOUZA, Maria Adélia Aparecida de. A Identidade da Metrópole: A Verticalização em São Paulo. São Paulo, Hucitec / Edusp, 1994. STAROBINSKI, Jean. 1789: Os Emblemas da Razão. São Paulo, Cia das Letras, 1989. TATIT, Luís. O Cancionista: Composição de Canções no Brasil. São Paulo, Edusp,1996. VIANA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed. /Ed. UFRJ, 1995. WISNIK, José Miguel. Getúlio da Paixão Cearense ( Villa Lobos e o Estado Novo). In: O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira – Música – Enio Squeff e José Miguel Wisnik. São Paulo, Brasiliense, 1982

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Créditos das Ilustrações Fig. 01 Acervo do extinto Museu Adoniran Barbosa. Fig.02 Hildegard Rosenthal – In Hildegard Rosenthal: Cenas Urbanas. São Paulo, Instituto Moreira Sales, 1999, p. 39. Fig. 03 Revista Manchete, 23/01/1954, n. 92. Fig. 04 Revista O Cruzeiro, 23/01/1954, n. 15. Fig. 05 In: GERODETTI João Emílio & CORNEJO Carlos. Lembranças de São Paulo – A Capital Paulista nos Cartões-Postais e Albuns de Lembranças. São Paulo, Solaris Edições Culturais, 2000. Fig. 06 O Estado de São Paulo, 25/01/1954. Fig. 07 Diário de São Paulo, 25/01/1954 Fig. 08 O Estado de São Paulo, 25/01/1954. Fig. 09 O Estado de São Paulo, 25/01/1954. Fig. 10 Diário de São Paulo, 25/01/1954 Fig. 11 Folha da Manhã, 25/01/1954 Fig. 12 O Estado de São Paulo, 25/01/1954. Fig. 13 A Gazeta de São Paulo, 25/01/1954 Fig. 14 Acervo MAC - USP Fig. 15 Acervo MAC - USP Fig. 16 Folha de São Paulo, jan. 1968. Fig. 17 In MPB Compositores – Adoniran Barbosa. vol. 7. São Paulo, Ed. Globo, 1996. Fig. 18 Acervo do extinto Museu Adoniran Barbosa Fig. 19 Chantecler Fig. 20 In MPB Compositores – Adoniran Barbosa. vol. 7. São Paulo, Ed. Globo, 1996. Fig. 21 Acervo do extinto Museu Adoniran Barbosa Fig. 22 Melhoramentos Fig. 23 Acervo MAC - USP Fig. 24 Acervo MAC – USP Fig. 25 Acervo MAC - USP Fig. 26 Acervo MAC - USP Fig. 27 Acervo MAC - USP 163

Fig. 28 Acervo do extinto Museu Adoniran Barbosa Fig. 29 Acervo do extinto Museu Adoniran Barbosa Fig. 30 Acervo do extinto Museu Adoniran Barbosa Fig. 31 In MPB Compositores – Adoniran Barbosa. vol. 7. São Paulo, Ed. Globo, 1996. Fig. 32 Acervo MAC - USP Fig. 33 Acervo MAC - USP Fig. 34 Acervo MAC - USP Fig. 35 Acervo MAC - USP Fig. 36 Acervo MAC - USP Fig. 37 Acervo MAC - USP Fig. 38 Acervo MAC - USP Fig. 39 Acervo MAC - USP Fig. 40 Acervo do extinto Museu Adoniran Barbosa Fig. 41 Elifas Andreato In Encarte do LP Adoniran Barbosa. São Paulo, EMI Odeon, 1980.

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ANEXO 1 Registros Sonoros - gravação em CD (Vide contracapa da tese) trilha 1 História Paulista (Lauro Miller, 1954) grav. de Silvio Caldas – CD (remasterização) Isto é São Paulo: Na Voz de Silvio Caldas. São Paulo, RGE, s/d. Trilha 2 Aquarela do Brasil (Ary Barroso, 1939) grav. de Silvio Caldas – CD (remasterização) Os Grandes Sambas da História. v. 4. São Paulo, BMG, 1997. (Encarte da coleção – HISTÓRIA DO SAMBA. São Paulo, Ed. Globo, 1998) Trilha 3 Conselho de Mulher ( Adoniran Barbosa, Osvaldo Moles e João B. dos Santos, 1953) grav. de Adoniran Barbosa – CD (remasterização) Adoniran Barbosa . Col. RAÍZES DO SAMBA. São Paulo, EMI – Odeon, 1999. Trilha 4 Fala de Adoniran ( trecho de Histórias das Malocas – Rádio Record de São Paulo, 1956 - texto de Osvaldo Moles) e Saudosa Maloca (Adoniran Barbosa 1951) grav. de Adoniran Barbosa - 1951. LP Saudades de Adoniran, São Paulo, Continental / Alvorada. s/d. Trilha 5 Diálogo: Dona Terezoca e Charutinho (texto de Osvaldo Moles) - LP Histórias das Malocas – Esterzinha de Souza c/ Orquestra – Reg.: Ciro Pereira. São Paulo, Chantecler. s/ d. Trilha 6 Diálogo: Dona Terezoca e Charutinho (texto de Osvaldo Moles s/d.) e Letra de Samba (Osvaldo Moles e Hervê Cordovil s/d.) grav. Esterzinha de Souza - LP Histórias das Malocas – Esterzinha de Souza c/ Orquestra – Reg.: Ciro Pereira. São Paulo, Chantecler. s/ d.

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Trilha 7 Fala de Adoniran sobre o início de sua carreira e Filosofia (Noel Rosa e André Filho, 1933) grav. de Adoniran Barbosa. CD Adoniran Barbosa – Documento Inédito. São Paulo, Estúdio Eldorado,1984. Trilha 8 Fala de Adoniran sobre o samba Iracema e Iracema (Adoniran Barbosa -1956) grav. de Adoniran Barbosa. CD Adoniran Barbosa – Documento Inédito. São Paulo, Estúdio Eldorado,1984 Trilha 9 Trem das Onze (Adoniran Barbosa, 1964) grav. Demônios da Garoa.

LP Os

Demônios da Garoa Interpretam Adoniran Barbosa. São Paulo, Chantecler. s/ d. Trilha 10 Samba do Arnesto (Adoniran Barbosa e Aloncin, 1955 ) grav. Demônios da Garoa. LP Os Demônios da Garoa Interpretam Adoniran Barbosa. São Paulo, Chantecler. s/ d. Trilha 11 As Mariposa (Adoniran Barbosa, 1955) grav. Demônios da Garoa.

LP Os

Demônios da Garoa Interpretam Adoniran Barbosa. São Paulo, Chantecler. s/ d.

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ANEXO 2 Letras das canções de Adoniran Barbosa citadas Joga a Chave (Adoniran Barbosa e Oswaldo França, 1952) Joga a chave, meu bem Aqui fora tá ruim demais Cheguei tarde, perturbei teu sono Amanhã eu não pertubo mais Faço um furo na porta Amarro um cordão no trinco Pra abrir pro lado de fora Não pertubo mais teu sono Chego à meia-noite e cinco Ou então a qualquer hora As Mariposas (Adoniran Barbosa, 1955) As. mariposa, quando chega o frio Fica dando vorta em vorta da lâmpida. pra se esquentar Elas roda, roda, roda, despois se senta Em cima do prato da lâmpida pra descançar Eu sou a lâmpida E as mulhé é as mariposa Que fica dando vorta em vorta de mim Tud'as noite, só pra me beijar Samba do Arnesto (Adoniran Barbosa e Alocin, 1955) 0 Arnesto nos convidou Pr'um samba, ele mora no Brás Nóis fumos, não encontremos ninguém. Nóis voltemos com uma baita de tu-na reiva Da outra vez nóis não vai mais (Nóis não semos tatu) Noutro dia encontremo com Arnesto Que pediu desculpa mas nói não aceitemos Isso não se faz, Arnesto Nóis não se importa Mas você devia ter ponhado um recado na porta

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Apaga o Fogo Mané (Adoniran Barbosa, 1956) Inês saiu dizendo que ia Comprar um pavio pro lampião "Pode me esperar, Mané Eu i à volto i à" Acendi o fogão Botei água pra esquentar E fui pro portão Só pra ver Inês chegar Anoiteceu e ela não voltou Fui pra rua feito louco Pra saber o que aconteceu Procurei na central Procurei no hospital e no xadrez Andei a cidade inteira E não encontrei Inês Voltei pra. casa triste demais 0 que Inês me fez Não se faz E no chão Bem perto do fogão Encontrei um papel escrito assim Pode apagar o fogo Mané Eu não volto mais Pode apagar o fogo Mané Eu não volto mais Um Samba No Bexiga (Adoniran Barbosa, 1956) Domingo nois fumo Num samba no Bexiga Na Rua Major Na casa do Nicola À mezza notte o’clock Saiu uma baita de uma briga Era só pizza que avoava Junto com as bracciola Nóis era estranho no lugar E não quisemo se meter Não fumos lá pra brigar Nóis fumos lá pra comer

Na hora agá se enfiemo Debaixo da mesa Fiquemos ali que beleza Vendo o Nicola brigar Daí há pouco Escuitemo a patrulha chegar E o Sargento Oliveira falar: “Não tem importância Vou chamar duas ambulância” Carma pessoar A situação aqui tá muito cínica Os mais pió vai pras crínicas.

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Pafunça (Adoniran Barbosa e Osvaldo Moles, 1958) Pafunça, Pafunça Pafunça, que pena Pafunça Que nossa amizade virou bagunça Pafunça, acabou-se a sopa Que tu dava pra eu morfar Pafunça, acabou-se a roupa Que eu te dava pra lavar Hoje vivo no abandono Um vira-lata sem dono E pra me judiar, Pafunça Nem meu nome tu pronuça O teu coração sem amor Se esfriou, se desligou Inté parece, Pafunça Aqueles alivadô Que tá escrito: “Não fununça” E a gente sobe a pé E pra me judiar. Pafunça Nem meu nome tu pronunça Tiro Ao Álvaro (Adoniran Barbosa e Osvaldo Moles, 1960) De tanto levar Frechada do teu olhar meu peito até Parece Sabe a que Táubua de tiro ao á1varo Não tem mais onde furar (Não tem mais) Teu olhar mata mais do que bala de carabina Que veneno, estricnina Que peixeira de baiano Teu olhar Mata mais que atropelamento de automóver Mata mais Que bala de revórver

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Trem das Onze (Adoniran Barbosa, 1964) Não posso ficar Nem mais um minuto com você Sinto muito amor Mas não pode ser Moro em Jaçanã Se eu perder esse trem Que sai agora às onze horas Só amanhã de manhã Além disso, mulher Tem outra coisa Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar Sou filho único Tenho minha casa pra olhar Não posso ficar Samba Italiano (Adoniran Barbosa, 1965) Gioconda, piccina mia, va "brincare" nel mare, nel fondo, ma attenzione com i "tubaroni ", ha visto, hai capito, mio San Benedito? Piovve, piovve, Ha tempo che piovve qui, Gigi E io, sempre io, sotto Ia tua finestra, E voi senza me sentire Ridere, ridere, ridere Di questo infelice qui Ti ricordi, Gioconda Di quella sera. in Guarujá Quando el mare te portava via E me chiamaste: "aiuto, Marcelo La tua Gioconda ha paura di questa onda!"

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0 Casamento o Moacir (Adoniran Barbosa e Osvaldo Moles, 1967) A turma da favela convidaram-nos Para irmos assistir 0 casamento Da Gabriela com o Moacir Arranjemos uma beca preta E um sapato branco Bem apertado no pé E se apreparemos para ir Na catedral Lá da Víla Ré Quando os noivos estava no altar 0 padre começou a preguntar Umas coisas assim em latim: "Qualquer um de vodes aqui presente Têm arguma cosa de falar contra esses bodes? "Seu padre, apara o casamento

0 noivo é casado Pai de sete arrebento Fora o que está pra vir 0 pai é esse aí: 0 Moacir Que vexame A noiva começou a soluçar Porque o noivo Não passou No exame nupcial Já acabou-se a festa Porque nóis descobriu 0 Moacir era casado Cinco vez lá no estado do Rio 0 Moacir era casado Cinco vez lá no estado do Rio

Mulher, Patrão e Cachaça (Adoniran Barbosa e Osvaldo Moles, 1968) Num Barracão da Favela do Vergueiro Onde se guarda instrumento Ali, nóis morava em três: Eu, Violão da Silveira, seu criado Ela, Cuíca de Souza E o Cavaquinho de Oliveira Penteado Quando o Cavaco centrava E a Cuíca soluçava Eu entrava de baixaria E a ximangada sambava Bebia, saculejava Dia e noite Noite e dia No barracão Quando a gente batucava Essa Cuíca marvada Chorava como ela só Poi ela gostava demais do meu rítimo E bem baixinho gemia Gemia assim Como quem tem algum dodói Tudo aquilo era pra mim

Gemia e me olhava assim Como quem diz "alô, my boy!" E eu, corno bom violão Carregava no bordão Caprichava o sol maior Mas um dia, patrão Que horror! Foi o rádio que anunciou Com fundo musical: Dona Cuíca de Souza Com Cavaco de Oliveira Penteado Se casou Me deu uma coisa na caquete Eu ia pegar o Cavaco 0 Pandeiro me falou Não seja bobo, não se escacha Mulher, patrão e cachaça Em qualquer canto se acha Não seja bobo, não se escracha Mulher, patrão e cachaça Em qualquer canto se acha

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Acende o Candieiro (Adoniran Barbosa, 1972) Acende o candieiro, ó nega Aluimeia o terreiro, ó nega Vai avisar o pessoa, Que hoje vai ter ensaio geral (Vai nega, vai) Vai depressa Maria Antes que fique tarde Daqui a pouco escurece Não dá pra avisar ninguém Na volta não esquece . De falar com Dona Irene E passar pelo armazém Trazer um pacote de vela E um litro de querosene Desta vez não pode acontecer 0 que aconteceu da outra vez Foi uma coisa incrível 0 ensaio parou porque, faltou combustível Véspera de Natal (Adoniran Barbosa, 1974) Eu me lembro muito bem Era véspera de natal Cheguei em casa A criançada chorando A minha nega zangada Mesa vazia não tinha nada Saí fui comprar bala mistura Comprei também um pãozinho de mel E cumprindo a minha jura Me fantasiei de Papai Noel Chamei a minha nega do lado Eu vou subir no telhado e descer pela chaminé Enquanto isso você Pega a criançada e ensaia o “jingo bel” Ai meu Deus que sacrifício O orifício da chaminé era pequeno Pra me tirar de lá Foi preciso chamar os bombeiros 172

Viaduto Santa Efigênia (Adoniran Barbosa e N. Caporrino, 1974) Venha ver Venha ver Eugênia Como ficou bonito 0 Viaduto Santa Efigênia (Venha ver) Foi aqui que você nasceu Foi aqui que você cresceu Foi aqui que você conheceu 0 seu primeiro amor Eu me lembro que uma vez

Você me disse Que o dia que demolissem o viaduto De tristeza, você usava luto Arrumava sua mudança Ia embora pro interior Quero ficar ausente 0 que os olhos não vê 0 coração não sente

Vide Verso Meu Endereço (Adoniran Barbosa, 1975) Venho por meio Destas mal traçadas. linhas Comunicar-lhe que fiz um samba pra você No qual quero expressar Toda minha gratidão E agradecer de coração, Tudo que você me fez Com o dinheiro que um, dia você me deu Comprei uma cadeira Lá na Praça da Bandeira Ali vou me defendendo Pegando firme dá pra. tirar mais de mil por mês Casei e comprei uma casinha lá no Ermelindo Tenho três filhos lindos Dois são meus Um de criação Eu tinha mais coisas pra lhe, contar Mas vou deixar Pra. uma outra ocasião Não repare a letra A letra é de minha mulher Vide verso meu endereço Apareça quando quiser

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