Roda que roda, à volta do quarto > pintura de Luísa Jacinto

June 8, 2017 | Autor: M. Lambert | Categoria: Estética, Historia del Arte, Pintura, Arte contemporáneo, Experiencia Estética
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QuaseGaleria - Roda que roda, à volta do quarto > pintura de Luísa Jacinto MNSR – Ações estéticas quase instantâneas > pinturas de Luísa Jacinto

É demasiado banal evocar a lucidez da Viagem à volta do meu quarto que Xavier de Maistre partilhou connosco para a eternidade. A viagem à roda de mim mesmo de Machado de Assis apropria-se ao caso das pinturas de Luísa Jacinto. O conto, datado de 1885, evoca uma série de autores que haviam desenvolvido tramas alusivas à figura do flâneur sentimental, mediatizada por Charles Baudelaire e, simultaneamente retoma com uma interpretação muito própria o conceito de Doppelgänger. Walter Benjamin viria, já no séc. XX, a adicionar ao conceito uma dramaticidade situacional de existência que se converteu em alegoria histórica e estética para as gerações vindouras. E tantos outros poetas e autores também, se confinarem a sua intencionalidade criadora. “…Cranz, citado por Tylor, achou entre os groenlandeses a opinião de que há no homem duas pessoas iguais, que se separam às vezes, como acontece durante o sono, em que uma dorme e a outra sai a caçar e passear. Thompson e outros, apontados em Spencer, afirmam ter encontrado a mesma opinião entre vários povos e raças diversas. O testemunho egípcio (antigo), segundo Maspero, é mais complicado; criam os egípcios que há no homem, além de várias almas espirituais, uma totalmente física, reprodução das feições e dos contornos do corpo, um perfeito fac-símile.”1

Significa esta minha ideia que a coleção de pinturas, aqui apresentadas, constitui uma parcela decidida pela artista, que assim sequencializou um pensamento de raiz introspetiva. Esta metodologia poiética cruza a fruição estética, implícita ao fazer deliberativo do autor ao seu contexto situacional, especificando o impulsiono que dá visibilidade a uma organização com estas caraterísticas. Fica instituído um friso que se alonga em linha marcada para a direção e altura do olhar do visitante. Desfralda uma concatenação de cenas individualizadas que podem ser interpretadas isoladamente ou cujos conteúdos iconográficos/semânticos se articulam entre si. Entendo estas pequenas telas + uma tela maior como unidades integrando a viagem à roda de si mesma que Luísa Jacinto empreendeu, numa analogia à ficção autobiografada de Machado de Assis. E, na continuação de uma tradição literária, filosófica e artística do autor que se centra sobre si, se desdobra e permite que cada sujeito que aceda às obras, potencie em si próprio. Assim, o conceito de Doppelganger é extrapolado para além da circunstancialidade e restrição mais literal que lhe possa assistir. Viaja até ao conceito de artista errante para cumprimento do seu destino, onde a deslocação para outros locais, abre espelhamento da sua exigência e rigor existencial. Talvez os rostos pintados pertençam ou não a alguém, os cenários na boa tradição hooperiana serão ou não vislumbre transfigurados de lugares vividos – senão pela artista, por alguém certamente, embora não se saiba. A ambiguidade de encenações resididas por figuras ou delas 1

Machado de Assis, “Viagem à roda de mim mesmo”, Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

ausentes, é território propicia a pequenos contos que poderiam concretizar uns Frisos [parafraseando as peças ínfimas literárias de Almada Negreiras para a revista Orpheu 1, no ano em que se comemora o 1º centenário]. Assim, aqui fica o 1º conto, tendo intenção eu de num exercício diário me comprometer a enviar à pintora tantos breves parágrafos quantas as telas em exposição…  dia 1º > tela 1ª [da esquerda para a direita e de fora para dentro da sala da Galeria] “…encolheu-se de tal maneira que a parede toda foi demais e preferiu deitar-se por cima do rodapé, aninhado e febril porque na véspera o tinham obrigada a ficar ao relento no recreio, viradas as costas para os outros meninos. Amuado, enroscou-se na “xinha” - almofada preferida que curava todas as aflições da alma e do estomago – e esperou que as imagens que estão dentro da sala adormecessem para não haver importunadores do descanso alheio.”  dia 2º > tela 2ª [da esquerda para a direita e de fora para dentro da sala da Galeria] "...vê se pegas nesse livro como se fossem as minhas mãos em decomposição. [ouviu-se essa voz desencarnada e feliz]; ela respondeu: "vou segurar as páginas leves até que o verniz nas minhas unhas acabe de secar." ele vociferou: "como alguém que lê páginas em branco com aroma de jasmim pode ser tão fútil?" ela insinuou: "as deusas olham-se ao espelho nas folhas dos livros."  3º conto light > dia 3º > tela 3ª [da esquerda para a direita e de fora para dentro da sala da Galeria] “…2ª voz: eis como os cumes nevados são modelados pela tinta a óleo; dissolvem-se quando o sol começa a aquecer. convém encomendar gelo suficiente para lhes garantir sobrevivência. pois ser cumes nevados sob chuva de calor é caso paradoxal. 1ª voz: vês lá ao fundo aquela figurinha que andava à procura de paisagem? 2ª voz: errado, como escreveu Bernardo Carvalho, nunca se anda à procura de paisagem mas sim de alguma pessoa. 1ª voz: não vejo a figura, mas reconheço a pessoa atrás do arvoredo.”  4º conto light > dia 4º > tela 4ª [da esquerda para a direita e de fora para dentro da sala da Galeria] [diálogo luso-americano no transiberiano de Blaise Cendrars] edward hopper [EH]: "que vê pela janela, senhora nostálgica por detrás da tela? senhora nostálgica por detrás da tela [SNPDT]: "porque lhe parece seja 1 janela?" [EH]: porque pinto janelas de quartos, comboios, restaurantes...just love those windows...percebe? [SNPDT]: "petulância. quero lá saber das suas windows que abrem e fecham como qualquer janela." [EH]: "pode ser um plasma e estar a TV sintonizada no Travel channel...ora veja lá...ou um wagon-lit...já viajou no transiberiano do Blaise Cendrars?" [SNPDT]: "sentei-me na cama. o transiberiano desdobrava a paisagem depois da curva do

desfiladeiro. ele morreu na viagem que nunca mais regressará." [EH]: "...sempre histórias de amor e morte. pinto a lentidão, a demora, a quietude. isso é sempre, fique na permanência. não se preocupe."

 5º conto light > dia 5º > tela 5ª [da esquerda para a direita e de fora para dentro da sala da Galeria] ... o beijo de Brancusi, o beijo de Auguste Rodin, o beijo de Picasso, o beijo de Toulouse Lautrec, beijo de Robert Doisneau, o beijo de Antonio Canova, o beijo de Munch, o beijo de Magritte, o beijo de Fragonard, o beijo de Marc Chagall, o beijo de Giotto, o beijo de Marina Abramovic, o beijo de Roy Lichtenstein, o beijo de Carolus-Duran, o beijo de Francesco Hayez, o beijo de Tamara de Lempicka, o beijo de Luísa Jacinto, o beijo de Theodore Jean Louis Gericault, o beijo de François Boucher, o beijo de François Gérard, o beijo de Fussli, o beijo de Peter Behrens, o beijo de Alfred Eisenstaedt, o beijo de Wim Delvoye, o beijo de Gustav Klimt, o beijo de Banksy, o beijo de Tino Sehgal, o beijo de Otto Gutfreund, o beijo de Franz von Stuck, o beijo de Gabriel Orozco... ...enfim: "você já beijou hoje?"...

 6º conto light > dia 6º > tela 6ª [da esquerda para a direita e de fora para dentro da sala da Galeria …como se pode comprovar pelas imagens abaixo, o pássaro ensaiou e levantou voo, assustando o espetador emancipado de jacques rancière. confortavelmente sentado no seu fauteuil, este exemplar leitor enredado em devaneios francófonos, viu-se confrontado com os simulacros e simulações de jean baudrillard quando a realidade real de paul watzlawick se tornou intolerável...um verdadeiro império do efémero, diria o compadre gilles lipovetsky... então, preferiu entrar num estado que supôs ser de suspensão (époche) husserliana. mas calculou mal e saiu-lhe em conta uma intuição criadora, mas tão criadora que nem jacques maritain saberia o que fazer com ela...nem sequer as estruturas antropológicas do imaginário do gilbert durand lhe valeram de nada. talvez, experimentando um solução tipo "coincidentia opositorum", bem ao estilo nicolau de cusa solucionasse? não. pensou: não, vale de nada. estou mesmo sentado numa rua de sentido único, não sei bem se viajar até berlim de 1900 me auxiliará a reencontrar a aura perdida. de repente, o espetador emancipado ouviu a voz longínqua de walter benjamin dizer: " seu pasmado, torne.se antes um espetador activo, já antoni tapiès sabia isso...e o dono da mala perdida em pau (fronteira entre as tortillas e a quiche lorraine) avançou grandiosamente pela praça do comércio afora…

 7º conto light > dia 7º > tela 7ª [da esquerda para a direita e de fora para dentro da sala da Galeria …"não estás mesmo a ver? repito: NÃO ESTÁS MESMO A VER???" estás a dizer adeus. lembro "o ultimo comboio para Lisboa" de Pascal Mercier. terá ele razão quando escreve: "comment peut-on dire adieu à quelqu'un qui a marqué notre vie pour

toujours..." ? [o nível em cima do topo da tela, parece garantir que tudo está na medida e no tempo certo. é só dar um jeitinho e fica tudo fantástico.] exceto...ultimo comboio significa estar escuro tremendo e ser noite. estar de frente para a noite sem lua cheia, noite de breu. noite tinta da china.por isso foi preciso colorir de riscas de lá o gorro o o cachecol e apeteceu-me tocar delicadamente no cabelo pois sempre gostei que ele deixasse crescer o cabelo que ás vezes é meio ondulado e noutras ocasiões é espetado como relva selvagem. isto porque eles eram um e outro. ambos amados muito. qual era este que não soube a minha mão alcançar e nem me viu? suspirando pelo congelamento do braço na composição noturna, um título repercutia dentro da minha cabeça "Es va fent més i més tard"...Antonio Tabucchi dixit.

 8º conto light > dia 8º > tela 8ª [da esquerda para a direita e de fora para dentro da sala da Galeria] ...por mais que tente olhar não vejo. ...por mais que queira entender, não compreendo. por mais que queria desculpar, não esqueço. [retomando: tenho ascendência figurada e gosto de indícios de paisagem em campo de pintura colorida na densidade da sombra.] [and again: ninguém me disse que o meu cabelo era farto e quase da cor da terra argilosa. porque ninguém me olha as costas e vê as espigas da colheita, a lembrança de um verão que teve o sacrifício da voz interrompida. sorrindo, lembrou-se da cena do rei dos álamos cavalgando com o filho adentro a floresta. goethe dixit, goethe fecit...]

 9º conto light > dia 9º > tela 9ª [da esquerda para a direita e de fora para dentro da sala da Galeria] [diálogo a 3 vozes - Sangespracht] voz A (masculina - tenor): "voltei. estive a desenhar na praia toda a tarde," voz B (masculina - baixo): "areia entrou-te na garganta. estás a falar-me de castelos de areia demolidos na laringe." voz A: "alisei a maresia; tornei-a flat com uma espátula como vi no meu sonho de milarepa." voz B: "porque autorizaste o mar a escrever-te coisas invisíveis na alma? o mar descontentoute o sonho de milarepa." voz A: "seduzi o meu olhar para celebrar gauguin, milarepa porque álvaro lapa os convocou na sua pintura. acho que foi um sopro dos deuses sobre mim, em estado de suspensão." voz B (lendo): "...essa forma de milarepa [iogue e poeta tibetano], que se converte (transmuta) em gauguin, assumindo-se em substância pictural “auto” na pintura de álvaro lapa..." voz A: "foi um momento em que o arquétipo desceu sobre mim. e eu conduzi a pintura sem ter destino achado." voz C (feminina soprano): "epifania da pintura. privilégio e veneração dos mitos."

 10º conto light > dia 10º > tela 10ª [da esquerda para a direita e de fora para dentro da sala da Galeria] milarepa precisou refugiar-se das vozes que ouvira remoendo em meio dos papéis. virou costas gerindo com precisão a amplitude dos seus gestos. lembrou-se da lenda de orpheu e, apesar do ímpeto para olhar atrás de si, conteve-se e avançou. o caminho ramificava-se a cada passo estóico que dava. mais e mais se aproximava de uma floresta pintada em cor de incandescência extrema. quase sentia o calor das chamas na espessura a sua pele, como se de uma paixão se tratara. na realidade a floresta em chamas pintadas era uma parede de fundo onde se destacava a representação imaginada de uma casa. milarepa pensou como seria confortável - ou não - entrar sem bater com a cabeça no chão do cansaço que abeirava a exaustão. a casa era demasiado pequena, quase seria uma cabana. outra vez gaston bachelard...e sua poética do espaço, com essa mania das gavetas, dos cantos, das escadas, dos sótãos....mesmo quando parado quieto a congeminar sobre a alma das casas, o filósofo ia no devaneio (que isso de falar em deriva já estava uma palavra desgastada de moda...) enfim: a casa recheada de sons e cheiros antigos continuava a seduzi-lo pois nunca lá entrara. olhar a casa era apropriar-se das suas memórias e ficar em paz.

 11º conto light > dia 11º > tela 11ª [da esquerda para a direita e de fora para dentro da sala da Galeria] estou tão cansada que saltei para dentro da parede. de dentro da parede entrei na pintura. dentro da pintura mergulhei no livro. fiz isso tão convicta que as folhas abriram-se. "no sense". tudo é "non sens". o gato olhava-me fixamente e pensei que estaria infeliz por não me ouvir falar. pois que a voz estava perdida nas folhas e o meu olhar dentro da alma da mesa com a toalha vermelha do tempo da minha Mãe. eu fui assim, triste e alheada de todos quando o amor partiu e eu desconhecia que se podia sobreviver. o quadro subiu para a parede sozinho. estabeleceu-se e reside e resiste. dormi tranquilamente no permeio das folhas; os ácaros domesticados não me provocaram alergia. tudo se vai resolver, acho. afinal...não sou eu na pintura. o meu cabelo não é ruivo. "engano meu, má fortuna, amor ardente..." (Camões dixit)

Maria de Fátima Lambert

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