Rodolfo Walsh, Carta de Rodolfo Walsh a Francisco “Paco” Urondo, morto pela ditadura argentina a 17 de Junho de 1976

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Pela Boca para os ouvidos O Senhor Henri – esse recomeço para Henri Michaux – ganhou ainda uma nova forma. A editora Boca – Palavras que Alimentam produziu, em parceria com o Teatro Municipal da Guarda, a peça radiofônica O Senhor Henri, a partir do texto de Gonçalo M. Tavares. A peça, que foi difundida em 10 de setembro de 2010 pela Antena 2 e pela Rádio Altitude, foi agora publicada num pequeno volume ilustrado por Luís Henriques, acrescida de alguns prolegômenos críticos e de um CD acoplado, no qual se escuta uma leitura encantada de O Senhor Henri. O texto, lido integralmente em quase uma hora, ganhou outros ruídos e silêncios, metamorfoseado pela voz que o entoa. À leitura das palavras são acrescidos outros sons, os títulos são suprimidos, há intervalos e ecos. Desta vez, o Sr. Henri convida a escutar, isto é, a dispor-se a repetir um gesto que pouco espaço tem na barulhenta vida de todo dia. Isso tem uma dupla implicação. Por um lado, o texto lido convida a abandonar os olhos – ou o fascínio das imagens – e nos tornar cegos para imaginar – ou, ainda, convida a nos libertarmos das imagens para que outras possam nascer (trata-se, novamente, de recomeço). E por outro lado, implica ainda abrir os ouvidos (e fechar a boca), ficar em silêncio para ouvir a voz do outro. Ricardo Piglia lembra que os músicos contemporâneos comprovam que a cultura de massa não é uma cultura da imagem, mas do ruído – há uma profusão de sons inarticulados que misturam alaridos políticos, sirenes policiais, vozes televisivas e que formam uma espécie de inferno sonoro do qual mesmo Ulisses teria dificuldades em escapar. A peça radiofônica O Senhor Henri é talvez uma interrupção nesse matagal de ruídos. Isso porque a leitura cantada não é da ordem dos sons que escondem o silêncio e exigem a nossa desatenção para medir um tempo vazio e que passa rápido. Se é verdade o que nos diz o Sr. Henri – “nos dias que correm aprende-se por todos os lados do corpo” –, escutar o texto é aprender pelos ouvidos, acolher o som de um outro que nos toma repentinamente como seu destinatário. O som do Sr. Henri a pedir copos de absinto enquanto pronuncia seus pensamentos num bar torna-se uma espécie de força anárquica, um barulho desestabilizador, porque nos priva de alguns dos nossos vícios – a tentação do discurso, a sedução da imagem, a anestesia dos ouvidos. É para toda uma reconfiguração dos sentidos que a peça radiofônica nos convida: a palavra cantada (encantada) faz dançar o corpo sem órgãos de quem escuta.

Carta de Rodolfo Walsh a Francisco “Paco” Urondo, morto pela ditadura argentina a 17 de Junho de 1976 * Tradução de Eduardo Pellejero e Susana Guerra

Caro Paco, Os companheiros pediram-me que fizesse um retrato de ti. Era a última coisa que teria gostado de escrever, mas compreendo ser necessário que alguém comece a dizer algo da tua bela vida, antes que outros, com mais capacidade, possam estudá-la junto com a tua obra. A primeira coisa que vem à minha memória é a frase de um poeta guerrilheiro checo, morto pelos nazis, que deixou escrito: “Recordem-me sempre em nome da alegria”. Para nós, Paco, a alegria era muitas coisas de cada dia: a companheira, o filho e o neto, o baralho, um verso, um bagaço. Mas sobretudo era a certeza permanente, como uma febre do dia e da noite, que nos fazia acreditar que vamos vencer, que o povo vai vencer. É em nome dessa última alegria, a que tu não viste e eu não sei se vou ver, que escrevo para ti. Quiçá por aí consiga o teu retrato. Choramos-te, homens e mulheres, milicianos, aspirantes e oficiais maiores; quem poderia não te chorar? Mas isso foi só um momento, o trago amargo de um momento – como vai morrer Paquito, “que era o nosso sangue, a nossa alegria”. E, sim, tu podias morrer, como tudo aquilo que se oferece em sacrifício para que a Pátria viva. Texto original extraído de: Juan Gelman, “Urondo, Walsh, Conti: La clara dignidad”. In: Prosa de prensa. Buenos Aires: Zeta, 1997. p. 13-16.

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A Pátria, Santa Fé, os rios, os poetas como tu, os companheiros, os metalúrgicos, os torturados, os gráficos, os perseguidos, os navais, os presos, os miúdos, os curas de aldeia, os combativos, os seareiros, os mecânicos, os favelados: tudo isso entrava na tua memória incomparável, na tua esperança. Nestes dias que passaram desde que te mataram, tenho me perguntado o que é o importante da tua vida e da tua morte, que coisa te distingue, que exemplo poderíamos extrair, que lição nos deu Francisco Urondo. Tenho uma resposta provisória nas coisas evidentes que pudeste ser e nas mais desconhecidas que escolheste. Chegaste aos quarenta anos com a fibra dos grandes escritores, que não é senão uma forma de olhar e uma forma de escutar antes de escrever. O problema, para um tipo como tu e um tempo como este, é que quanto mais fundo se olha e mais calado se escuta, mais se começa a perceber o sofrimento da gente, a miséria, a injustiça, a soberba dos ricos, a crueldade dos verdugos. Então já não é suficiente olhar, já não é suficiente escutar, já não é suficiente escrever. Podias ter ido embora. Em Paris, em Madri, em Roma, em Praga, em La Habana, contavas com amigos, leitores, tradutores. Podias sentar-te a ver desfilar na tua memória o largo rio da tua vida, a vida dos teus, colocá-los em páginas cada vez mais justas, cada vez mais sábias. Com o tempo, ninguém duvida, terias figurado entre esses grandes escritores que eram os teus amigos, o teu nome associado ao nome do teu país, pediriam a tua opinião sobre os problemas que agitam o mundo. Preferiste ficar, despojar-te, igualar-te aos que tinham menos, aos que não tinham nada. O que era teu era fruto do teu esforço, mas igualmente o consideraste um privilégio e ofereceste-o com um sorriso. Depois do que aconteceu em Garín1 incorporaste-te nas FAR 2, convidado por Carlos Olmedo, tão parecido a ti na tua trajetória de intelectual brilhante que renuncia a tudo para abraçar a causa do povo. Estiveste preso, já no fim da ditadura de Lanusse3 . Na prisão, sem esperá-la, regressou a literatura. Nessa noite de 25 de maio, quando o povo vitorioso assaltava os muros de Devoto 4 e centenas de companheiros 1 [N. do T.] Em julho de 1970, as Forças Armadas Revolucionárias (FAR) tomam Garín (povoação do norte de Buenos Aires), configurando a sua primeira operação armada. 2 [N. do T.] Forças Armadas Revolucionárias (FAR): organização armada argentina formada no final da década de 60; a sua ideologia original de base era marxista-leninista, mas definia-se como um grupo guevarista peronista inscrito no horizonte do nacionalismo revolucionário. 3 [N. do T.] Alejandro Agustín Lanusse: militar que ocupou de facto a presidência da Argentina entre 1971 e 1973. 4 [N. do T.] Prisão de Devoto: único estabelecimento penitenciário em funcionamento dentro do território da Cidade de Buenos Aires.

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celebravam a liberdade iminente, reuniste-te com os sobreviventes do fuzilamento de Trelew 5 e um gravador. Ouviste, enquanto na rua se alçava o rugido impressionante da multidão empurrando a porta: “Abram, foda-se, ou deitamo-la abaixo!”. Ouviste como nunca, atento a cada tremor da voz dos que ressuscitaram do espanto. Dirigiste essa história como de miúdo deves ter dirigido o bote, lá no rio, deixando-te levar pela sua corrente, com apenas um toque do leme – uma pergunta – para endireitar o rumo. Então foi mais certo do que nunca que escrever é ouvir. Desse impecável exercício de silêncio resultou La pátria fuzilada, 6 um livro que já não era teu, porque era de muitos. Depois da prisão passaste pela universidade, até que a reação se apoderou dela; pelo jornalismo, dirigindo o Notícias e mais tarde no El Auténtico, até que a Martínez7 e os seus sequazes fecharam o último jornal que não se calava perante os assassinatos da triple A8 e a perseguição dos trabalhadores. Já a bota militar estava perto. Já os generais treinados no Panamá esperavam a ordem da Esso, da ITT, da Ford. O Partido Montonero9 destinou-te a novos postos de combate. Foste ocupálos simplesmente. Estavas seguro da vitória final, como estamos todos. Como chefe militar, organizaste o resgate dos restos de Aramburu10 , Querias tornar novamente realidade uma das condições do juízo: “Regressarás com os teus quando Evita esteja na Argentina, junto ao seu povo”. Não tinhas ilusões sobre a sobrevivência pessoal. Em todo o caso, estavas preparado para a morte, como as dezenas de rapazes e raparigas que se arriscam diariamente numa operação. Ou melhor, dizias num dos teus poemas: “Ontem pela noite sonhei – continuava a dizer o soldado – que a minha filha e o meu neto nasciam simultaneamente para esse mundo que virá. Agora posso morrer em paz, mesmo que fosse melhor que isso acontecesse dentro de muito tempo”. Não foi tanto, quando te chegou o momento – num encontro de rotina [N. do T.] Os fuzilamentos de Trelew consistiram no assassinato de 16 membros de diferentes organizações armadas peronistas e de esquerda, na manhã de 22 de agosto de 1972. 6 [N. do T.] O livro, publicado originalmente em 1973, recopila os testemunhos de três sobreviventes dos fuzilamentos de Trelew – María Antonia Berger, Alberto Miguel Camps e Ricardo René Haidar. 7 [N. do T.] María Estela Martínez de Perón assume a presidência da Argentina no 1 de julho de 1974 na sua condição de vice-presidenta, depois da morte do seu esposo, o presidente Juan Domingo Perón. É deposta no 24 de março de 1976 por um golpe de Estado. 8 [N. do T.] Aliança Anticomunista Argentina (AAA): grupo paramilitar da extrema direita argentina. 9 [N. do T.] Montoneros: organização guerrilheira argentina identificada com a esquerda peronista; abraçou a luta armada entre 1970 e 1979. 10 [N. do T.] Pedro Eugenio Aramburu: militar e político argentino, governante de facto da Argentina entre 1955 e 1958. Em 1970 foi sequestrado e assassinado pela organização Montoneros. 5

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e bateste-te. Eles eram demasiados nessa tarde aziaga. Um coronel insultou-te num comunicado, os jornais não se atreveram a publicar o teu nome, pretendiam enterrar-te como um cão quando te recuperámos. Era o fim de uma parábola. São os pobres da terra, os trabalhadores sequestrados pelo Exército assassino e a Marinha mercenária, os torturados, os presos que fuzilam simulando combates. São as massas as que sepultarão os teus verdugos no caixote de lixo da História. Hoje podemos novamente pronunciar o teu nome, Francisco Urondo, poeta e guerrilheiro. Não sou ninguém para dizer qual foi o teu melhor livro, o teu melhor conto, a melhor linha dos teus poemas. Nós, Paco, não somos críticos literários, acreditamos que serão as massas as que irão assumir ou recusar as obras de arte. Mas penso que a tua obra literária, tão inseparável da tua vida, vai ajudar-nos a resolver esta pergunta tão trilhada sobre o que pode fazer um intelectual revolucionário. Pode falar com o seu povo pondo em diálogo o melhor da sua inteligência e da sua arte; pode narrar as suas lutas, cantar as suas penas, predizer as suas vitórias. Isso já é por si só suficiente, isso já justifica. Mas tu nos ensinaste que não lhe está proibido dar mais um passo, converterse ele próprio num homem do povo, partilhar o seu destino, partilhar a arma da crítica com a crítica das armas. Obrigado por essa lição. Rodolfo Walsh, Julho de 1976.

Dar a palavra / Dar a vida Notas para a releitura da carta de Rodolfo Walsh a Francisco “Paco” Urondo sobre o sentido do intelectual revolucionário Eduardo Pellejero

O fim da experiência das vanguardas históricas, o fracasso das principais tentativas de estabelecer o socialismo como uma alternativa efetiva ao capitalismo reinante e as numerosas derrotas sofridas pela resistência política e intelectual nos últimos cinquenta anos cobriram a noção do engajamento de uma opacidade inusitada. Não só não compreendemos hoje como alguém pode ter exigido alguma vez da arte um compromisso com a emancipação dos homens; é-nos difícil compreender como alguns artistas puderam dar as suas vidas por isso. Houve, contudo, uma época na qual a arte era considerada um momento particular da procura de uma liberdade sem determinação e não se compreendia fora dela. Evidentemente, nem todos os que se pronunciaram sobre o tema coincidiam no modo de conquistar essa liberdade e muito menos na forma pela qual a arte podia chegar a contribuir nessa empresa (do qual são paradigmáticas as polémicas entre Benjamin e Adorno, entre Bataille e Sartre). Mas a afirmação da liberdade era um imperativo para a arte, aquém dos programas (estéticos) e dos projetos (políticos) que os movimentos e os partidos forjavam na tentativa de dar-lhe uma forma concreta. Sem liberdade, a arte carecia de sentido para eles; sem arte, a liberdade não podia ser afirmada com plenitude. Os escritores nem sempre eram conscientes dessa dupla implicação – o que explica que alguns se declarassem engajados e outros se desligassem de qualquer forma de compromisso. Mas essa rara consciência levou certos escritores a viver essa imbricação até o extremo de não poder separar a experiência estética da liberdade da sua necessária inscrição

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