\"Rodrigo I e Rodrigo II: Assentamentos Sazonais Calcolíticos na Bacia do Alto Mondego\", Al-Madan, II Série, nº 17, Junho 2012, pp. 38-43
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RODRIGO I E RODRIGO II ASSENTAMENTOS SAZONAIS CALCOLÍTICOS NA BACIA DO ALTO MONDEGO
António Ginja (*)
* Munis, Arqueólogo licenciado pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Resumo: Distando cerca de 500 metros entre si, os sítios de Rodrigo I e Rodrigo II testemunham o modo de vida dos homens que durante o Calcolítico se dedicavam à pastorícia na bacia do Alto Mondego.
Para
exercer
esta
actividade,
pequenos grupos de indivíduos assentaram sazonalmente naqueles sítios, erguendo abrigos através do recurso a materiais perecíveis e alimentando-se essencialmente de farináceos. Da
sua
presença,
bem
como
das
suas
actividades, dão conta os aglomerados pétreos e pequenas covas escavadas no afloramento rochoso usados para sustentar os seus abrigos, assim como um amplo e diversificado conjunto de materiais arqueológicos, como cerâmica manual, mós de tipo ‘sela’, machados de pedra polida ou lâminas retocadas em sílex. Palavras-chave:
Assentamento,
Abstract: Around 500 meters from each other, the places of Rodrigo I e Rodrigo II witness the way of life of man who throughout the Calcolitic dedicated themselves to herding activity in the High Mondego valley. In order to perform this activity, small groups of individuals settled in certain seasons at these places, rising shelters with perishing materials and using essentially flour derives as food. Of their presence, as well as their activities, showcase the mass of rocks and the small pits dogged into the stone levelling used to support their shelters, as well as a vast and
diverse
collection
of
archaeological
materials, like manual ceramics, ‘saddle’ type millstones,
polished
stone
axes
or
silex
retouched plates. Pastorícia,
Key words: Settle, Herding Activity, Calcolitic.
Calcolítico.
A presença humana pré-histórica na região da bacia do Alto Mondego remonta comprovadamente ao Neolítico, como testemunham diversos monumentos megalíticos. Estes monumentos, geralmente implantados em locais proeminentes da paisagem local, aparecem tanto isolados, como é o caso de Caramêlo 1, Mazugueira 1, Marco da Anta, Tresufo, Tabuaça, Vale de Aboboreiras, Vales/Borralheira e Arquinha da Moura, como
agrupados em necrópoles, como sucede em Marmoirais, Salgueiro, Tojal Mau e Penela (SANTOS, 2008). Também certas manifestações de arte rupestre testemunham o período pré-histórico da região, como acontece, por exemplo, nas estações de Alagoa, Carregueira, Pata do Cavalo e Molelinhos, onde foram detectados petroglifos de diversificada natureza (SANTOS, 2008). É sobre esta herança cultural que se desenvolveu na região o povoamento calcolítico, do qual o sítio de Ameal VI é o exemplo mais paradigmático. Lentamente, novos dados, revelados noutros sítios, vão acrescentando ao cenário revelado naquele local novas perspectivas. Rodrigo I e Rodrigo II são dois destes novos sítios, trazendo, juntamente com os dados que há milénios guardavam, novas perspectivas sobre o modo de vida das populações calcolíticas da Bacia do Alto Mondego.
Os Sítios
Os sítios de Rodrigo I e Rodrigo II, nas imediações da povoação de Nagozela, foram
detectados
acompanhamento
no
âmbito
arqueológico
do das
obras de abertura do corredor da nova estrada nacional EN 230, que unirá as localidades de Tondela e Carregal do Sal, obra promovida pela Estradas de Portugal, S.A. O acompanhamento foi efectuado pelo arqueólogo da empresa Munis, Filipe Pina, responsável pela Local de implantação da sondagem do sítio Rodrigo I.
detecção dos sítios. À
superfície
foram
detectados
fragmentos de cerâmica e de materiais líticos em número considerável, tendo sido por este motivo adoptada a escavação de duas sondagens, enquanto medida de minimização de impacte arqueológico, face à impossibilidade de alteração do percurso da referida estrada. Os materiais, compatíveis com o período Calcolítico, encontravam-se dispersos pelas faces meridionais de duas pequenas encostas, que distavam entre si cerca de 500 metros.
Ambos os sítios foram escavados por uma equipa de técnicos da empresa Munis, dirigida pelo arqueólogo António Ginja. As escavações contaram ainda com a consultoria científica do Prof. Doutor Domingos Cruz, do Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. O primeiro sítio a ser escavado, Rodrigo I, revelou
uma
grande
concentração
de
pedras de pequeno porte, dispersas por uma
área
de
cerca
de
m2,
5
não
estruturadas e assentes directamente sobre o afloramento rochoso de tipo saibroso. De
entre
exumada
este uma
fragmentos
de
aglomerado elevada
foi
quantidade
de
cerâmica
acabamento
grosseiro
doméstico,
dado
encontravam
pétreo
e
que
decoradas
manual de
carácter
poucas e
de
se Planta da sondagem do sítio Rodrigo I.
várias
apresentavam vestígios de fuligem. Ao nível da forma predominavam as taças rasas, as taças carenadas, as taças ovóides e os copos. De igual modo, foram detectados vários materiais líticos, como machados de pedra polida e pedras de polir em anfibolito, moventes e dormentes de mós manuais em granito, bem como percutores, bigornas e esferóides em quartzito e ainda escassos fragmentos de líticos retocados em sílex, entre os quais lâminas e um micrólito informe. Foram também detectados três fragmentos de bolota fossilizados. Como já referido, a maioria da cerâmica exumada
apresentava
as
suas
faces
isentas de decoração, não obstante o polimento ou mero alisamento a que Machado de pedra polida detectado em Rodrigo I.
nitidamente haviam sido sujeitas. Escassos fragmentos, contudo, exibiam decoração
espatulada (um dos quais provido de orifício para
sustentação),
um
fragmento
exibia
decoração puncionada e outro encontrava-se decorado com recurso a caneluras. O sítio de Rodrigo II, escavado posteriormente, revelou
algumas
semelhanças
face
aos
resultados de Rodrigo I, particularmente ao nível da área de dispersão (5 m2) e da tipologia dos
materiais
fragmentos
exumados.
cerâmicos
não
De
facto,
divergiam
os dos
detectados em Rodrigo I, nem ao nível da forma,
nem
ao
nível
dos
Planta da sondagem do sítio Rodrigo II.
acabamentos,
acrescentando apenas o penteado ondulado aos motivos decorativos constatados na primeira sondagem. A análise dos fragmentos cerâmicos revelou a predominância de taças carenadas, ovóides e rasas. Para além dos fragmentos correspondentes a recipientes, foi detectado igualmente um fragmento de peso de tear e ainda um pendente de formato circular, obtido a partir de um fragmento de cerâmica. Relativamente aos elementos líticos, apesar de surgirem em maior número, eram também tipologicamente semelhantes aos detectados em Rodrigo I: machados de pedra polida, e respectivos polidores, em anfibolito, mós manuais em granito (moventes e dormentes), percutores, bigornas e esferóides em quartzito e fragmentos de líticos retocados em sílex, entre os quais lâminas, um furador, uma agulha, um micrólito informe e uma raspadeira. A escavação de Rodrigo II revelou também um número significativo de pedras de pequeno porte, directamente assente sobre o afloramento rochoso, tal como havíamos detectado em Rodrigo I, embora em número bastante inferior e dispostas de forma mais dispersa. Em Rodrigo II identificámos ainda uma mancha de terra de cor negra que, apesar de não se encontrar delimitada por um alinhamento de pedras, interpretámos como Fragmento de dormente de mó manual detectado no sítio Rodrigo II, aplicado em cunha em orifício escavado no afloramento.
um vestígio de fogueira. Detectámos ainda um
conjunto
de
três
concavidades
escavadas directamente no saibro. Uma destas concavidades, em particular, poderá ter servido para erigir uma estaca ou poste de pequena dimensão, dado que apresentava no seu interior, colocado em cunha, um dormente de mó de grandes dimensões, acompanhado por algumas pedras menores. Os materiais detectados em Rodrigo I e Rodrigo II estão sem dúvida relacionados com actividades quotidianas, como a produção de instrumentos e recipientes, a produção de farináceos e a tecelagem. A sua localização espacial, em encostas suaves, denuncia, por seu turno, o carácter agro-pastoril das comunidades ali instaladas (CARDOSO, 2007). Precisamente para as comunidades calcolíticas desta região, Senna-Martinez, que definiu o povoamento calcolítico da Bacia do Médio e Alto Mondego, defende “grande mobilidade, praticando uma pastorícia (de ovi-caprinos?), eventualmente já com transumância, completada por caça, recolecção e, possivelmente, horticultura” (SENNA-MARTINEZ, 1987, p. 83). Outros autores, como M. Ángeles del Rincón, vieram reforçar esta ideia através do argumento de que a procura dos produtos secundários, como leite, lã ou força de trabalho animal, implicaria o mantimento dos rebanhos até à idade adulta, obrigando precisamente à mobilidade em busca de pastos para esses rebanhos. A autora referida prefere, contudo, a expressão ‘transterminância’ em detrimento de ‘transumância’, reduzindo significativamente a área de circulação destas comunidades calcolíticas (RINCÓN, 1999, p. 240). Apesar dos elementos detectados em Rodrigo I e Rodrigo II serem concordantes com locais de assentamento, a ausência de estruturas construídas sugere tratarem-se de assentamentos de carácter rudimentar, eventualmente constituídos por estruturas perecíveis, das quais nenhum vestígio terá subsistido. Este tipo de assentamentos, de natureza mais provisória, enquadra-se precisamente num estilo de vida semi-nómada, perfeitamente compatível com a actividade de transumância ou trasterminância. Por outro lado, a grande quantidade de materiais cerâmicos e líticos exumados, tanto em Rodrigo I, como em Rodrigo II, também levanta uma questão relevante. Ela sugere uma das seguintes hipóteses: estarmos na presença de sítios ocupados por muitas pessoas num curto espaço de tempo ou de um sítio ocupado por um grupo pequeno, embora durante um longo período de tempo. A reduzida área de dispersão dos materiais (5 m2), leva-nos a considerar como mais provável a última destas hipóteses. Perante este cenário, admitimos a possibilidade de ambos os sítios Rodrigo I e Rodrigo II terem albergado um pequeno grupo de indivíduos durante um longo período de tempo. Dada a inexistência de estruturas construídas, especulamos que o devam ter feito de forma intermitente, reforçando a hipótese de estas comunidades terem vivido de uma forma semi-nómada.
Fica por esclarecer, no entanto, se os dois locais eram ocupados por dois grupos distintos em simultâneo, ou se um só grupo ocuparia alternadamente Rodrigo I e Rodrigo II. A primeira hipótese, contudo, implicaria uma grande proximidade entre dois grupos, o que não se articula com a forte territorialidade que se fazia sentir no período Calcolítico. Em suma, Rodrigo I e Rodrigo II testemunham um período da história humana em que pequenas comunidades circulariam dentro uma área geográfica perfeitamente definida. Esta circulação seria motivada pela procura das condições ideais para a exploração dos recursos pastoris, condições que encontrariam alternadamente em diferentes zonas e épocas do ano. Estariam assim obrigados a um estilo de vida semi-nómada, ocupando determinados locais sazonalmente. Como é sabido, este tipo de comunidades ocupava uma posição basilar dentro da estratificação demográfica do período Calcolítico, onde o topo era ocupado pelos povoados centralizadores, instalados em promontórios. A estes reportar-se-ia toda a população de um território mais ou menos vasto, de fronteiras bem estabelecidas e definidas pela compartimentação natural da paisagem (CARDOSO, 2007), pelo que será espectável que Rodrigo I e Rodrigo II estivessem articulados com algum povoado centralizador.
Os Materiais
Tanto em Rodrigo I, como em Rodrigo II, constatámos o recurso maioritário a cerâmicas com cozeduras de tipo oxidante, perfazendo respectivamente 66% e 71% da totalidade dos fragmentos exumados, em oposição aos 34% e 29% constituídos pelos fragmentos resultantes de cozedura redutora. Verificámos também que a maioria dos fragmentos cerâmicos, em ambos os sítios, exibia elementos não plásticos de pequena a média dimensão (Ø ≤ 1 mm), em detrimento dos fragmentos em que abundavam os elementos não plásticos de média a grande dimensão (Ø > 1 mm). Não se verificava qualquer relação entre o tipo de cozedura e o tamanho dos elementos não plásticos. Quanto à forma, como já foi referido, as cerâmicas constatadas em Rodrigo I e Rodrigo II eram muito semelhantes, abundando as taças, carenadas, rasas e ovóides, os copos e os vasos.
Principais formas cerâmicas exumadas em Rodrigo I (coluna da esquerda) e Rodrigo II (coluna da direita). De cima para baixo: copo, taça rasa de pequena dimensão, taças ovóides, taças carenadas, taças rasas e vaso.
Relativamente ao acabamento das superfícies, constatámos que a maioria dos recipientes cerâmicos apresentava as superfícies alisadas ou polidas, sendo residuais os fragmentos decorados. Em Rodrigo I apenas 4% dos fragmentos exibiam decoração, sendo esta de tipo puncionada (originando linhas paralelas de pequenos orifícios), canelada e espatulada. Um dos fragmentos de superfície espatulada exibia também cordões verticais resultantes de decoração repuxada, para além de um orifício, aparentemente destinado à sustentação do recipiente. Em Rodrigo II, onde os fragmentos decorados eram residuais (apenas 5 num universo total de 1214), a decoração era essencialmente penteada (dando origem a linhas paralelas onduladas), salvo a excepção de um único fragmento de superfície espatulada.
Principais tipos decorativos detectados em Rodrigo I e Rodrigo II. Da esquerda para a direita: fragmento com decoração espatulada e repuxada, fragmento com decoração puncionada, fragmento com decoração canelada (Rodrigo I) e fragmento com decoração penteada (Rodrigo II).
Ainda relativamente aos materiais cerâmicos, foram detectados em Rodrigo II um fragmento de peso de tear e um pendente decorativo circular, obtido a partir de um fragmento cerâmico, testemunhando a ocorrência, respectivamente, de actividade de tecelagem e de cuidados estéticos neste sítio.
Peso de tear fragmentado (à esquerda) e pendente decorativo (à esquerda), ambos exumados de Rodrigo II.
Quanto aos materiais líticos, foi exumado de Rodrigo I e Rodrigo II um conjunto bastante diversificado, constituído tanto por peças fragmentadas como por peças completas, entre as quais se contavam mós manuais (dormentes de tipo ‘sela’ e moventes de secção circular e semicircular), polidores de cerâmica e de machados, percutores, bigornas, esferóides, machados de pedra polida e utensílios líticos retocados, no essencial constituídos por lâminas e raspadeiras. Em ambos os sítios foram igualmente detectados, em grandes quantidades, núcleos em sílex e em quartzo
leitoso,
denunciando
a
produção
de
utensílios líticos no próprio local. Para além do granito, muito comum na região, também o quartzito (seixos rolados), o anfibolito, o sílex, o quartzo leitoso e o quartzo hialino se encontravam entre os materiais utilizados para dar forma aos materiais detectados.
Conjunto de machados de pedra polida exumados de Rodrigo II.
Machado em pedra polida recolhido em Rodrigo I (em cima) e líticos retocados exumados em Rodrigo II (em baixo), da esquerda para a direita: fragmento de lâmina de bordos curvilíneos – eventualmente pertencente a uma foice – lâmina de bordos rectos e raspadeira
Bibliografia:
ÁNGELES DEL RINCÓN, M. (1999) – “El Calcolítico y la Edad del Hierro”, pp. 197 – 315, Coord. Ignacio Barandiarán et al, in Prehistoria de la Península Ibérica, Editorial Ariel, Barcelona. CARDOSO, J. L. (2007) – Pré-História de Portugal, Universidade Aberta, Lisboa. CRUZ, M. D. (2007) – Cerâmica Utilitária - Normas de Inventário, ed. Instituto dos Museus e da Conservação, Lisboa. FERREIRA, S. D. (2003) – “Os copos no povoado calcolítico de Vila Nova de São Pedro”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, vol. 6, n.º 2, Lisboa, pp. 181–228. SANTOS, A. T. (2008) – Uma Abordagem Hermenêutica-Fenomenológica à Arte Rupestre da Beira Alta: o caso do Fial (Tondela, Viseu), Centro de Estudos Pré-Históricos da Beira Alta, Viseu, (Estudos Pré-Históricos, Vol. XIII). SENNA-MARTINEZ, J. Carlos (1995) – “O Povoamento Calcolítico da Bacia do Médio e Alto Mondego – algumas reflexões”, pp. 82-100, Coord. Michael Kunst, in Origens, Estruturas e Relações das Culturas Calcolíticas da Península Ibérica, Actas das I Jornadas Arqueológicas de Terras Vedras, IPPAA, Lisboa.
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