Rolf Rauschenbach - Como governar a comunidade universalizante: o conceito de co-imunização de Peter Sloterdijk

August 14, 2017 | Autor: Vitor Lima | Categoria: Peter Sloterdijk
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Como governar a comunidade universalizante: o conceito de coimunização de Peter Sloterdijk Rolf Rauschenbach* Tradução de Vitor Ferreira Lima** RESUMO: Problema: a dinâmica atual da globalização levanta a questão de como as comunidades políticas e a humanidade enquanto entidade política global serão e deverão ser estruturadas. Ambas as posições extremas – idealista ou universalista hegemônica e cosmopolita –, bem como o particularismo pluralista fracassam em face dos desafios postos pela globalização. Visões democráticas novas e não excludentes a respeito de comunidades políticas no contexto da globalização precisam ser formuladas para responder às seguintes questões: “Quais são as estruturas de macro e de microentidades políticas em uma ordem glocalizada?”, “Quais deveriam ser os princípios norteadores para a governança dessas comunidades/entidades políticas?”. Método: as questões levantas neste artigo são dirigidas à discussão crítica a respeito dos escritos de Peter Sloterdijk. Em sua esferologia, Sloterdijk tem apresentado uma nova teoria sobre a emergência de comunidades, as quais ele analisa sobre um ponto de vista esferológico. Em “Du musst Dein Leben ändern”, ele formula uma nova teoria ética que pode servir como um campo de inspiração para uma teoria normativa para governança de uma ordem glocalizada. Resultado: este estudo fornece um novo entendimento do conceito de comunidade. Ao invés da tradicional dicotomia entre comunidade e sociedade, comunidades – ou esferas sociais – são apresentadas como fenômenos complexos e densos, que podem ser analisados em nove dimensões (chirotópica, phonotópica, uterotópica, thermotópica, erotópica, ergotópica, alethotópica, thanatotópica, nomotópica). Além disso, o conceito de esferas sociais é passível de expansão – forma a microesfera de um pequeno grupo de pessoas a esferas plurais, que hoje cobrem o planeta terra na forma de montanhas de espuma. Baseada nesta visão espacial, emerge uma teoria normativa da governança, inspirada nos princípios da imunologia. Palavras-chave: Universalização. Comunidade. Co-imunização. Peter Sloterdijk. ABSTRACT: Issue: The current dynamics of globalization raise the question of how political communities and humanity as the global polity as such will and shall be structured. Both extreme positions – idealistic or hegemonistic universalism and cosmopolitanism – as well as particularist pluralism fail to convince in view of the challenges globalization is posing. New, non-exclusionary and democratic visions of political communities in the context of globalization need to be formulated to answer the Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

92 following questions: What are the structures of micro and macro polities in a glocalized order? What should be the guiding principles for the governance of these polities/political communities? Method: The questions raised in this paper are addressed by critically discussing the writing of Peter Sloterdijk. In his spherology, Sloterdijk has presented a new theory about the emergence of communities, which he analyzes from a spherological point of view. In “Du musst Dein Leben ändern”, he formulates a new ethical theory, which can be used as inspirational ground for a normative theory for the governance of the glocalized order. Result: This study provides a new understanding of the conceptof community. Instead of the traditional dichotomy between community and society, communities – or, social spheres – are presented as complex and thick phenomena, which can be analyzed in nine dimensions (chirotope, phonotope, uterotope, thermotope, erotope, ergotope, alethotope, thanatotope, nomotope). Furthermore, the concept of social spheres is scalable – form the microsphere of a small group of persons to plural spheres, which nowadays cover the planet earth in the form of mountains of foams. Based on this spatial view, a normative theory of governance emerges, inspired by the principles of immunology. Keywords: Universalization. Community. Co-immunology. Peter Sloterdijk.

Introdução A escolha de qualquer conjunto de pressuposições ontológicas predetermina até certo grau como se definem o particular e o seu contexto. Isso se torna particularmente claro quando se debate a natureza das relações internacionais e da política internacional. Aqui, a questão ontológica pode ser traduzida em duas questões: “O que constitui atores na política internacional?”, “Qual é a natureza que tais atores mantém entre si?”. As implicações das respostas a essas questões são não só filosóficas, mas também relevantes na prática, já que pressuposições ontológicas guiam atores reais na política mundial em suas percepções e atos em relação a assuntos globais. A distinção clássica entre realistas e idealistas nas Relações Internacionais é baseada na pressuposição de que o domínio político pode se estruturar ou anarquicamente ou hierarquicamente. No filamento idealista, a imutabilidade da anarquia é rejeitada em favor de uma entidade política universal que a domestica e estabelece uma autoridade abrangente (PROZOROV, 2009, p. 216). De acordo com Prozorov, ambas as posições estão baseadas em uma ontologia política de identidade, que por definição não pode romper com o particularismo: os realistas afirmam

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93 identidades particularistas, enquanto os idealistas tentam impor, em um padrão fundamentalmente hegemônico, um modelo particular de nível universal. Prozorov discute três estratégias de como superar esse impasse: universalismo genérico, alteridade temporal e aceitação da falência própria. Com Badiou, Prozorov argumenta que a diferença – e a identidade individual dai derivada – é a mais fundamental e também a mais trivial característica da condição humana (2009, p. 228) e, por essa razão, não faz sentido fundamentar a ética e a política nesse fato. Antes, “toda postulação ética tendo por base o reconhecimento do outro deve pura e simplesmente ser abandonada” (BADIOU, 2001, p. 25). Ao invés disso, Badiou propõe um universalismo genérico que neutraliza o conteúdo particular, ao argumentar que as peculiaridades são sempre o resultado de uma situação específica, não do sujeito em si. Como todo sujeito é individuado de modos infinitos, a ideia de individualidade como uma qualidade autocontida não pode ser mantida. A consequência disso é uma configuração – universal – radicalmente igualitária, já que todos os sujeitos estão submetidos a infinitas individuações. Na leitura de Prozorov, Agamben exemplifica esse argumento com seu conceito de amor como uma experiência de “viver em intimidade com um estranho” (AGAMBEN, 1995, p. 61), em que “o amante deseja o amado com todos os seus predicados, seu ser-tal-qual a si mesmo” (idem, 1993, p. 2). Sob a condição de universalismo genérico, a política mundial como antagonismo entre identidades singulares se torna irrelevante e gera uma comunidade de sujeitos igualitários com infinitas identidades e uma tendência a formar uma única humanidade integrada. O conceito de alteridade temporal deve ser visto sob a luz da alteridade espacial. No último caso, o sujeito deriva sua identidade do espaço em que ocupa e em contraste com o espaço que outros sujeitos dominam. Nessa perspectiva, a política é a disputa por espaço e pelas identidades a ele ligadas. A alteridade espacial é uma versão clássica da ontologia política identitária. No caso da alteridade temporal, identidades são baseadas em referências identitárias de outros tempos, normalmente do passado, possivelmente delas próprias em um estágio recuado no tempo. Aqui, o sujeito se diferencia de sujeitos do passado, não de sujeitos contemporâneos. Entretanto, Prozorov argumenta, com Kojève, que a alteridade temporal é sempre também alteridade espacial, já que qualquer Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

94 ação histórica requer alguma referência geográfica que é, então, relegada ao passado (PROZOROV, 2010, p. 10). Por essa razão, ele qualifica a alteridade temporal como uma quimera da alteridade espacial e a dispensa como uma estratégia identitária. A terceira estratégia para superar o impasse identitário discutida por Prozorov é o conceito de Agamben de falência (AGAMBEN, 2000, p. 142; PROZOROV, 2010, p. 18). Apesar do fato da falência estar no passado – e, portanto, uma referência a ele possa parecer uma alteridade temporal da forma acima exposta –, ela é uma experiência que ultrapassa o presente e não pode ser transcendida. No coração da abordagem de Agamben sobre a falência está a compreensão de que o sujeito é sempre também o que foi, ou, de modo mais sucinto, o sujeito é sempre também o outro. Desse ponto de vista, a política identitária é obviamente vã, já que contradiz a si própria. Consequentemente, por ordem de coerência, posições identitárias precisam ser abandonadas. São intenções deste artigo apresentar ainda outro argumento para resolver o impasse ontológico da política mundial e mostrar como essa solução pode ser traduzida em princípios governantes para a comunidade mundial. Para fazê-lo, exploraremos o conceito de co-imunização de Sloterdijk. Embora a estrutura ontológica desse argumento se pareça bastante com a abordagem de Badiou e de Agamben, sua derivação segue um caminho diferente. Sloterdijk formula uma ontologia que parte de uma observação de que a chegada à existência dos seres humanos se inicia no útero da mãe. O indivíduo nunca está sozinho, e, por essa razão, a divisão entre sujeito e os outros representa uma posição antropologicamente cega. Insistindo nesse fato, Sloterdijk propõe uma antropologia espacial dentro de esferas, criada e habitada por mais de um indivíduo. Esferas possuem tanto dimensões materiais quanto intangíveis. A formulação de esferas amplas e complexas permite a Sloterdijk criar um vocabulário mais perspicaz para o que é mais usualmente referido como globalização e universalização. De acordo com Sloterdijk, o governo da esfera global contemporânea, que ele na verdade caracteriza como espuma, deveria ser guiado por considerações imunológicas ou, como expressa ele, por co-imunização. Este artigo discutirá o argumento de Sloterdijk, respondendo às seguintes questões: • Qual é a estrutura básica das comunidades? (comunidades como esferas). • Qual é a política das comunidades? (política de eros e thymos). Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

95 • De onde emergiu o presente cenário comunitário? (paleopolítica e política clássica conduzindo à hiperpolítica). • Quais

deveriam

ser

os

princípios

governantes

para

a

comunidade

universalizante? (co-imunização). A resposta de Sloterdijk a essas questões é particularmente interessante, já que ele abraça a natureza paradoxal dos coletivos. Ele combina a dinâmica integrante e segregadora dos grupos sociais, afirmando tanto a dimensão particularista quanto a universalista, inerente a toda prática humana. O pensamento de Sloterdijk tem provocado vários debates acalorados nos feuilletons de língua alemã, porém tem também gerado pouca reação da academia (JONGEN VAN TUINEM & HEMELSOET, 2009) e da literatura sobre teoria das Relações Internacionais. Isso pode ter se dado também pelo fato de que, até agora1, apenas um número pequeno de suas traduções relevantes a esse tópico foram traduzidas para a língua inglesa. Último, porém não menos importante, há de se considerar o estilo de escrita de Sloterdijk. Ele confessadamente transita constantemente entre o pensamento filosófico clássico, de um lado, e modos de expressão poética, de outro. Isso não é um problema per se, até menos quando um autor tenta criar um vocabulário inovador para capturar a realidade. Entretanto, ao fazê-lo, ele põe um desafio ao leitor e torna mais difícil sua inserção em discursos estabelecidos. É o objetivo deste artigo sistematizar parte do pensamento de Sloterdijk a fim de facilitar sua recepção.

Comunidades como esferas Do ponto de vista de Sloterdijk, o ponto ontológico inicial da existência humana é o ventre da mãe. A coexistência precede a existência. Ele inicia sua ontologia com o número Dois (2006, p. 147). Não existe ser sem ser-em-algum-lugar – inicialmente no útero. Vida é sempre vida-em-meio-à-vida (1998, p 551). Do começo, o ser humano é rodeado por algo que não pode aparecer como um objeto. Trata-se do indiscernível complemento da existência própria de cada um, com o que cada um forma um par. É à luz desse Urszene que Sloterdijk afirma que a investigação filosófica do ser humano significa explorar casais – sejam casais sociáveis ou o problemático e inacessível outro 1Este artigo foi originalmente escrito em 2011. (N.T.) Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

96 (1998, p. 487). Ele analisa o cenário no útero não apenas de uma perspectiva biológica, mas também sônica e, portanto, psicológica. É a câmara musical pré-natal que forja o senso de escuta, o senso que é o coração de toda a interação humana, seja de tipo íntimo ou público (1998, p. 530; 2006, p. 166). Com o nascimento da criança, ocorre a expulsão da esfera que se habitou durante a fase inicial da existência. Na visão de Sloterdijk, todas as atividades humanas que se seguem do nascimento são criações de outras esferas, tentando substituir a acolhedora experiência do útero. Em sua esferologia, Sloterdijk examina os modos pelos quais as esferas foram concebidas através da História. Embora as esferas possuam componentes materiais, é o intangível, o frágil, o compartilhado, o etéreo e o elusivo que representam sua essência. É por essa razão que Sloterdijk se esforça em mudar o foco da orientação tradicional a substâncias e objetos para uma perspectiva que captura o fluido, o flutuante e o sutil. É a relação, a “coisa” entre pessoas que está no coração de sua investigação. Entretanto, ele não limita sua análise ao meio de diálogo e à comunicação direta; ao invés disso, ele estabelece uma teoria antropológica de espaços compartilhados, de campos nos quais subjetividade e intimidade são geradas (2006, p. 137). Ao fazê-lo, ele estabelece fundamentalmente uma geografia da generosidade. Do ponto de vista de Sloterdijk, o espaço é um fenômeno social no sentido de que carrega significado somente quando é compartilhado com outros. Compartilhar significa ser generoso com o outro. Isso motiva Sloterdijk a investigar as estruturas de generosidade que criam espaços (2004, p. 884). O conceito de espaço, ele mesmo, é infinito. Para conter a infinitude e criar espaços nos quais compartilhar possa ser vivenciado, Sloterdijk sugere falar sobre esferas humanas. Como em Geometria, esferas humanas giram ao redor de ao menos dois polos. No caso de esferas humanas, esses polos são representados por seres humanos individuais povoando uma esfera e compartilhando seu espaço com outros (2006, p. 161). Com o estabelecimento de uma esfera humana, algumas barreiras entre o interior e o exterior são criadas. O espaço compartilhado é isolado do resto do espaço infinito. Dentro da esfera, o espaço pode ser manipulado. Essas manipulações podem resultar em climas específicos (2004, p. 309). Sloterdijk usa o termo clima não apenas para denominar um estado meteorológico, mas também para se referir a nove Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

97 dimensões, que juntas caracterizam o clima das esferas humanas (2004, p. 362): 1. Chirotopo: essa dimensão se refere ao mundo da mão. A emergência da mão humana, capaz de manipular seu entorno, transforma a esfera humana não somente através de interferências específicas feitas por seres humanos, mas também muda a percepção do entorno pelos seres humanos, já que eles começam a entender que sua esfera é, na verdade, modelável e, pelo menos, parcialmente resultado de suas presenças; 2. Phonotopo (ou logotopo): qualquer esfera humana tem uma dimensão sônica. Os sons produzidos pelas vozes e por outros instrumentos humanos criam uma esfera acústica que promove um senso de pertencimento e de identidade. Quanto mais diferenciados são os sons humanos, maior a complexidade de comunicação entre os membros de uma esfera humana; 3. Uterotopo (ou hysterotopo): como mencionado acima, as esferas são sempre concebidas como extensões do útero materno. A dimensão do uterotopo se refere às qualidades de uma esfera que produz um senso de proveniência de um mesmo lugar, possuindo a mesma origem; 4. Thermotopo: o thermotopo denomina a dimensão confortável de uma esfera. Ser parte de uma esfera implica ter acesso a vantagens que permitem ou acentuam a sobrevivência de habitantes da esfera; 5. Erotopo: o fato de diferentes indivíduos formarem uma esfera não implica que a relação entre eles seja homogênea e sem dinâmica. Ao contrário, há uma vívida interação entre esses indivíduos, cujas aprovações e desaprovações de outros membros individuais é constantemente comunicada e calibrada. Essas interações contribuem para a aclimatação erótica de uma esfera. Na seção seguinte, essa dimensão será diferenciada em componentes eróticos e thymóticos 6. Ergotopo (ou phalotopo): não há esfera humana sem propósito. Para servi-lo, alguma autoridade é requerida para fortalecer a função da esfera. A função mais básica de qualquer esfera é assegurar sua sobrevivência, mantendo um certo clima. Essa mantença é primeiro alcançada balanceando-se forças internas e, segundo, contrabalanceando ameaças ao clima interno decorrente de influências externas. A ação contrabalanceadora mais extrema é o serviço militar, em que a Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

98 sobrevivência do coletivo é defendida como objetivo fundamental; 7. Alethotopo (ou mnemotopo): cada esfera humana tem sua própria referência à verdade, seus modos próprios de processar experiência e falsificar informação para criar memórias. A manutenção de verdades e memórias específicas determina a dimensão alethotópica do clima de uma esfera; 8. Thanatotopo (ou theotópica, iconotópica): como uma extensão da alethotópica, a thanatotópica é a dimensão da esfera humana que hospeda os mortos, ancestrais, fantasmas e deuses. Essa dimensão o que está além da esfera, porém é considerada parte dela; 9. Nomotopo: essa dimensão denomina o conjunto de regras implícitas e explícitas que estruturam a interação dos indivíduos dentro da esfera. A aderência a esses princípios é motivada por experiências mútuas de coerção. Sloterdijk conceitualiza a esfera humana como uma estufa de nove dimensões na qual os seres humanos são capazes de sobreviver e consequentemente podem desenvolver complexidades além das suas heranças animais. Cada uma das nove dimensões pode atingir diferentes graus de implicitude e explicitude. Fazer explícita uma dimensão – em outras palavras, formular uma teoria a seu respeito – requer um mecanismo de compromisso, já que os membros da esfera precisam concordar qual teoria eles estimam apropriada. Enquanto teorias podem ser ferramentas para acentuar anda mais a performance de uma esfera, elas também representam perigo, já que o processo de explicitar um ingrediente implica o questionamento do até então não questionado e assenta potenciais conflitos (2004, p. 496). Para o propósito deste artigo, podemos sintetizar e dizer que Sloterdijk concebe comunidades como esferas humanas. Comunidades sloterdijkeanas são definidas por nove dimensões que formam juntas um clima específico. Um indivíduo por si só não é capaz de sobreviver. Ele depende de ser parte de uma esfera povoada por outros. O ponto de partida ontológico de Sloterdijk é, portanto, impensável sem o outro, já que é a forma colaborativa do outro que fornece uma influência positiva para o clima dentro de uma esfera.

Política de eros e thymos Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

99 Como afirmado acima, Sloterdijk define as comunidades como coletivos criadores de esferas. Esferas são caracterizadas por complexidades e fragilidades, inseridas em um ambiente dinâmico, senão hostil. Fazer política significa produzir e manter um clima específico dentro de uma esfera (1999, p. 1007). Embora Sloterdijk diferencie esse clima em nove dimensões, ele enxerga duas forças psicodinâmicas fundamentais atuando: eros e thymos. Os relatos de Sloterdijk sobre eros, a primeira força psicodinâmica, são um tanto escassos. É eros que mostra o caminho aos “objetos”. De uma perspectiva erótica, os objetos supostamente preenchem o vácuo criado pela ausência do útero. A possessão de objetos produz um sentimento de completude (2005b, p. 30). As forças eróticas oscilam entre o impulso de acumular objetos egoisticamente, de um lado, e de compartilhá-los altruisticamente, de outro. Em termos políticos, a necessidade de acumular pode ser traduzida na tentativa de dominar outros indivíduos, objetos e territórios, enquanto que mecanismos de compartilhamento levam a atitudes de solidariedade. Eros tem a ver com o que se tem, thymos tem a ver com o que se quer ser. Thymos refere-se ao orgulho, à coragem, à magnanimidade, à necessidade de justiça, aos sentimentos de dignidade e honra, à indignação e à vingança (2005b, p. 27). Sloterdijk concebe o thymos à moda platônica e sublinha sua paradoxa peculiaridade no fato de que uma pessoa (ou coletividade) possa desenvolver sentimentos de orgulho não apenas em relação aos outros, mas também em relação a si mesma. Isso acontece quando uma pessoa (ou coletividade) não está satisfeita com sua própria conduta e se sente envergonhada (2005b, p. 41). Para manter o excedente thymótico dentro de uma esfera, indivíduos (ou coletividades) tendem a fazer um juízo de diferenciação entre eles próprios e os outros para criar um excesso de autoestima positiva (2005b, p. 38). Isso pode ser alcançado por duas estratégias diferentes: ou negando ou afirmando o outro. No primeiro caso, Sloterdijk se refere a mecanismos de vingança, nos quais o objetivo maior é agredir o outro de tal modo que a autoestima própria possa ser reestabelecida. Ao fazê-lo, uma humilhação pode ser compensada. No segundo caso, o respeito próprio é reposto através de um ato de misericórdia. Ao perdoar-se o outro por haver transgredido o thymos próprio, não apenas liberta-se da maldição como também devolve-se a liberdade àquele que, de outro modo, permaneceria culpado. No segundo Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

100 caso, a contabilidade do olho-por-lho é abandonada e substituída por uma economia “trans-capitalista” de generosidade e doação. Empreender uma mudança do modo de vingança para o de perdão permite também reverter a perspectiva, passando-se de um ponto de vista orientado ao passado para um ponto de vista orientado ao futuro. (2005b, p 53). Baseado nessas considerações, em termos gerais, Sloterdijk caracteriza o político dentro de uma esfera da seguinte maneira (2005b, p. 36): • Grupos políticos são assembleias sob pressão thymótica endógena; • Ações políticas são resultados de diferenças em pressões thymóticas dentro e fora de esferas; • Campos políticos são formados pelo pluralismo espontâneo de forças autoafirmadoras. Eles mudam suas relações entre si de acordo com uma fricção inter-thymótica; • Opiniões políticas resultam de operações simbólicas impulsionadas pelos recursos thymóticos de um coletivo; • Retórica – a arte de manipulação emocional de uma assembleia política – é a ciência aplicada do thymos; • Lutas por poder dentro de um corpo político são sempre também motivadas por considerações thymóticas dos protagonistas e de seus seguidores. Para evitar total desestabilização, mecanismos para remediar os perdedores precisam funcionar. Na primeira seção deste artigo, concluímos que Sloterdijk concebe comunidades como esferas humanas com um específico e favorável clima. Podemos agora adicionar a essa definição que o clima dessa esfera depende do jogo entre duas forças psicodinâmicas: eros e thymos (1999, p. 1010). Administrar eros e thymos é uma tarefa complexa, já que eles precisam permanecer separados e juntos em equilíbrio. Somente nessas circunstâncias, uma esfera pode ser preservada. Os habitantes continuam a ser protegidos contra hostilidades do lado de fora e enfrentam condições favoráveis que os permitem evoluir em direção a maiores complexidades. É nesse ponto que Sloterdijk introduz o conceito de imunização. Para especificar a função das esferas, ele argumenta que elas são veículos de aprendizado, produzindo Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

101 imunização para seus membros. A imunização providencia mecanismos de autodefesa. Ela se origina como um conceito dos campos biológico e médico. Sloterdijk argumenta que as esferas humanas não são somente para favorecer a imunização biológica de seus membros, mas também são projetadas para produzir sócio-imunizações e psicoimunizações. Todas as três imunizações estão funcionalmente interconectadas entre si. Sloterdijk resume instituições jurídicas, solitárias e militares sob o conceito de práticas sócio-imunizadas; elas tem como objetivo prevenir confrontos danosos com o outro. Somados a esse confronto “real”, indivíduos e coletivos também enfrentam ameaças “virtuais” aos seus estados mentais e psicológicos, como questões existenciais, o destino desconhecido e a mortalidade fundamental. Práticas psico-imunológicas como a religião e outros rituais místicos permitem lidar com essa ameaça através de modos simbólicos (2009, pgs. 23 e 709). A preservação de uma esfera depende, portanto, da habilidade de seus membros de constantemente controlar o clima dentro dela, de modo a assegurar suas bio-, sócio- e psico-imunizações. Através do tempo, as esferas humanas evoluíram das formas mais simples até as mais complexas. Sloterdijk divide esse processo histórico em três estágios: o estágio de microesferas (bolhas), o estágio de macroesferas (globos) e, finalmente, o estágio de esferas plurais (espumas) (1993; 1998; 1999; 2004). Suas correspondentes entidades políticas, políticas e polícias de eros e thymos são resumidas na tabela abaixo: Estágio esférico

Entidades políticas Política

Microesferas (bolhas) Clãs, hordas

Paleopolítica

Macroesferas (globos)

Política clássica

Tribos formais, reinos, impérios, estados-nações

Polícia de eros e thymos Eros: compartilhar com o outro Thymos: predominantemente ausente Eros: dominação do outro Thymos: no nível individual, o thymos é reprimido; no nível coletivo, o sentimento de agressividade é dominante

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102 Esferas plurais (espumas)

Humanidade

Política do mercado Eros: dominação do mundial outro Thymos: superioridade baseada no ressentimento Hiperpolítica Eros: unificação com o outro Thymos: superioridade baseada na generosidade

Tabela 1: Os três estados esferológicos, suas entidades políticas, suas políticas e polícias de eros e thymos

Paleopolítica O primeiro estágio se inicia em tempos longínquos, quando nossos ancestrais animais aos poucos tornaram-se humanos, e termina quando coletividades humanas assumem estruturas formais. Durante o estágio da paleopolítica, coletivos humanos são povoados por um pequeno número de pessoas, e a sua vantagem tecnológica sobre a natureza é insignificante. Por essa razão, a sobrevivência do indivíduo ainda depende a curto prazo totalmente do coletivo. A essência da paleopolítica é a repetição de homens por homens. Nesse processo, o primeiro desafio é o nascimento bem-sucedido e a sobrevivência do recém-nascido. Em contraste com a maioria dos animais, recémnascidos humanos continuam dependendo do suporte dos pais por muitos anos. A vantagem desse conjunto de características é a moldabilidade da criança; a desvantagem se encontra na dependência em relação aos pais e a outros amparos. A formação do homem enquanto um ser social ocorre dentro das esferas da família, dos clãs e das hordas que funcionam como incubadoras sociais. Essas esferas fornecem o clima de nove dimensões necessário para provocar o complexo processo de aprendizado no qual as habilidades sociais possam ser adquiridas (1993, p. 14). O contexto mais amplo de esferas paleopolíticas é o espaço aberto e vasto. Cada microesfera funciona por si mesma, com pouca ou nenhuma interação com outros coletivos. É devido a esse contexto que as forças psicodinâmicas de eros e thymos ainda aparecem em termos simples. A necessidade erótica de possuir é limitada, já que o espaço é abundante. Objetos feitos pelo homem estão disponíveis apenas em pequena Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

103 quantidade, porém, como até a sobrevivência de curto prazo depende de esforços conjuntos, um comando diferenciado de propriedade faz pouco sentido e, portanto, emerge neste estágio somente na medida em que é preciso definir relações sociais básicas entre os membros de uma esfera, incluindo determinados direitos e responsabilidades. Por essa razão, as forças eróticas produzem um clima de compartilhamento, mesclando e unindo membros de um modo aparentemente natural. Embora tenha que ser assumido que certo tipo de auto-consciência emerja já no estágio das microesferas, fenômenos thymóticos são ainda muito limitados. Isso pode ser deduzido do fato de que a interação entre diferentes bolhas humanas é muito rara. O coletivo paleopolítico não experimenta a si mesmo no contexto de outros coletivos; o outro é a natureza.

Política clássica Com o passar do tempo e graças ao progresso tecnológico, comunidades expandiram para escalas maiores: de tribos formais até reinados, impérios e estadosnações. É o período da política clássica. Para refletir o tamanho maior das esferas humanas, Sloterdijk fala agora de globos enquanto contêineres holísticos. As políticas de eros e thymos se tornam mais complexas e mais explícitas. É o período de emergência da noção clássica de política. A dimensão erótica da política clássica está concentrada na dominação e acumulação (1993, p. 26). A criação de comunidades maiores não ocorre naturalmente, é o resultado de estruturas de poder socialmente produzidas que vão muito além da natureza das hierarquias de famílias, clãs e hordas. Inicialmente, essas estruturas de poder aparecem na forma de pura violência física. Porque a onipresença do poder físico é dispendiosa, os agentes de violência são, cada vez mais, aquartelados e substituídos por representantes não violentos de poder. Esses representantes não violentos mostram poder de maneira simbólica. Métodos pedagógicos que emergem no decorrer da política clássica treinam tanto os representantes quanto os indivíduos das macroesferas a entender e lidar com o poder simbólico (1993, p. 32). Isso leva à questão de como as forças thymóticas funcionam na política clássica.

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104 Elas precisam ser diferenciadas entre o domínio individual e o domínio coletivo. Para construir esferas humanas para além de bolhas paleopolíticas, o indivíduo necessita separar-se de seu contexto social inicial e adquirir uma identidade da estrutura de poder mais ampla (2004, p. 263). A aderência à identidade de uma macroesfera humana requer aceitação do rebaixamento próprio a uma posição subordinada com a finalidade de aumentar a grandeza do coletivo. É por essa razão que tendências egocêntricas são mais e mais reduzidas; e a submissão, enquanto o objetivo final para o indivíduo, promovida (2005b, p. 31). Entretanto, quanto mais bem-sucedida a construção de uma esfera humana mais ampla, mais dificultosa é a mantença da atitude de submissão de seus membros. Isso se deve à economia da escala que proporciona ao indivíduo recursos que não são requeridos para a sobrevivência de curto prazo e que criam momentos de liberdade (2004, p. 278). A longo prazo, a política clássica tende a se tornar vítima de seu próprio sucesso. No domínio coletivo, forças thymóticas não são reprimidas; ao contrário, são alimentadas para gerar sentimentos agressivos de superioridade sobre outros coletivos (2005b, p. 38). Está em jogo, na política clássica, que coletivos humanos comecem a entender que eles não estão sozinhos no mundo. Com a percepção de outros coletivos, a comparação entre eles é inevitável e resulta no estabelecimento de relações internacionais. A partir desse momento, a identidade de uma macroesfera humana também é determinada pela confirmação (ou pela sua falta) da identidade desse coletivo por outros grupos (2005b, p. 39). Ao exigir reconhecimento do outro, está-se aplicando um teste a ele. Aquele que se recusa a reconhecer o outro será confrontado pela sua raiva, já que o outro se sentirá desestimado (2005b, p. 43). A competição na política clássica é, portanto, dupla: competição erótica sobre territórios, pessoas e recursos e competição thymótica, por reconhecimento de superioridade coletiva. No estágio da política clássica, instituições sócio-imunológicas e psicoimunológicas são expandidas e consolidadas. No domínio sócio-imunológico, a emergência de instituições de bem-estar social pode ser observada, bem como a de instituições militares e de outras agências dedicadas a questões de autonomia e segurança. No domínio psico-imunológico, toma lugar a formalização de práticas espirituais em instituições religiosas, como as igrejas. Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

105 É bem conhecido que, quando aplicada a uma escala global, a mistura clássica entre políticas eróticas e thymóticas (dominação do outro e sentimento de superioridade agressiva) representa um coquetel explosivo que já levou a inúmeras catástrofes produzidas pelos humanos (2009, p. 704). Para evitar a crise global final, Sloterdijk propõe a hiperpolítica como alternativa.

Hiperpolítica A paleopolítica e a política clássica são formas históricas de governo. Seu holismo agressivo e centralmente orquestrado provou ser uma estratégia política inadequada, quando aplicada a uma escala global, já que leva inevitavelmente a conflitos insolúveis. Em decorrência disso, alternativas precisam ser formuladas. Isso é ainda mais verdadeiro quando se leva em conta que a paisagem das esferas está atualmente alcançando um novo estágio: a humanidade está entrando, depois das microesferas – bolhas – e das macroesferas – globos –, no estágio das esferas plurais – ela vive, agora, em espumas. Sloterdijk caracteriza as espumas humanas como aglomerações de um sem número de bolhas. Cada uma das bolhas representa uma microesfera, fornecendo o conforto de nove dimensões que seus habitantes precisam para sobreviver (2004, p. 55). O número de habitantes de microesferas continua a ser pequeno: casais, famílias ou outros grupos de novas pessoas povoam as bolhas. De um lado, cada bolha é uma produtora autorreferencial de intimidade. De outro lado, devido ao fato de que bolhas compartilham suas paredes com outras bolhas, elas se encontram em uma situação paradoxal de co-insulamento. Apesar do fato de que as bolhas vizinhas estão o mais próximo possível, elas permanecem inalcançáveis umas em relação às outras. A interação entre as bolhas não é baseada em comunicação direta; trata-se do efeito de infiltrações miméticas de padrões similares, bens contagiantes e símbolos (2004, p. 61). Dentro da espuma, não existe perspectiva privilegiada; qualquer perspectiva é limitada e parcial. Essa configuração tem implicações teóricas: é impossível – e indesejável – formular e abranger supervisões de mundo (2004, p. 62). Tudo o que pode ser dito é que a humanidade forma um número de montanhas de espuma, com nenhuma instância

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106 central. Sloterdijk discute duas formas fundamentalmente diferentes de governo para esferas plurais: política de mercado mundial versus hiperpolítica. Do seu ponto de vista, é a última que é capaz de fornecer imunização sustentável para a humanidade. Com a política de mercado mundial, as esferas plurais são reduzidas a uma ideal supertigela, na qual indivíduos se encontram e realizam suas transações em termos iguais. Os atores do mercado mundial tentam transformar todas as necessidades humanas em produtos comerciais para substituir o conforto acolhedor da esfera de casais, famílias e outros grupos menores. O pensamento do mercado mundial é um esforço de regresso à macroesfera totalizante, típica da política clássica. Entretanto, Sloterdijk argumenta que tal retorno está fadado ao malogro. Uma supertigela, consistindo apenas de superfície, não é capaz de produzir intimidade, o escudo esférico de nove dimensões que os humanos precisam para sobreviver. Além disso, é inconcebível como e por que as ricas complexidades, acumuladas em espumas através dos tempos possam ou devam ser reduzidas em uma supermonoesfera (2005a, p. 231). A estrutura erótica do mercado mundial é definida pelo esforço individual de dominar todos os outros para ganhar vantagens competitivas e dispor de ainda mais recursos de opressão. A mesma configuração egoística é refletida nas práticas thymóticas no mercado mundial: o mercado mundial em si não é capaz de fornecer referências thymóticas, já que é projetado apenas para o trânsito e para transações. Os indivíduos socialmente atomizados procuram sentimentos de superioridade ao negar ou rebaixar seus companheiros. Não é preciso dizer que tal configuração não é capaz de produzir os recursos imunológicos necessários para sustentar as necessidades de longo prazo da humanidade. As considerações de Sloterdijk sobre a hiperpolítica não são sistematizadas. Ao introduzir esse conceito, ele define hiperpolítica em termos bastantes vagos, insistindo que a política clássica não é mas adequada. Em tempo, ele já está preocupado com o número crescente de “últimos homens” – a figura nietzschiana para um indivíduo sem descendência biológica (1993, p. 76) – e insiste na importância da sustentabilidade (1993, p. 79). Em seus últimos escritos, ele continua a trabalhar com as questões de hiperpolítica, entretanto sem utilizar esse termo explicitamente. O termo é mantido Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

107 neste artigo, já que permite uma clara caracterização das diferentes estratégias políticas discutidas por Sloterdijk. Com a hiperpolítica, a espumosa realidade é abarcada. Os conceitos holísticos representados em metáforas animalescas, corporais e arquiteturais de corpos políticos são abandonadas e a configuração poliesférica, multisituacional e associacional das espumas é aceita. De acordo com a hiperpolítica, é senso comum que não há perspectiva do olho de deus; cada um é confinado em sua bolha, com acesso limitado ao resto da espuma (2004, p. 293). O confinamento não é percebido como um encantamento, já que é a bolha que assegura a sobrevivência a curto prazo de seus habitantes. Entretanto, a hiperpolítica acentua a percepção dos habitantes de que suas perspectivas precisam ser expandidas para além de suas microesferas. Já que o acesso direto ao exterior é limitado, a hiperpolítica induz a um processo de aprendizagem que permite processar observações de segunda ordem de acentos eróticos e thymóticos que vibram dentro da espuma (2005a, p. 223). O resultado desse processo de aprendizado é uma racionalidade que objetiva balancear os polos opostos de eros e thymos, um código de conduta para uma realidade que continua a ser multimegalomaníaca e interparanóica, entretanto em níveis não destrutivos. Como não há hierarquias, o controle sobre forças psicodinâmicas não pode ser centralizado. É de responsabilidade de todas as bolhas contribuir para o equilíbrio geral. A hiperpolítica tem a ver com equilíbrio, assumir o comando de conflitos relevantes e evitar confrontos excessivos. Além disso, significa confrontar processos entrópicos, principalmente a destruição do meio ecológico (2005b, p. 355). Embora Sloterdijk descarte um tipo de universalismo holístico, ele é a favor da universalização enquanto uma reflexão semântica da expansão do mundo em processo de globalização. Universalização não é um objetivo em si mesmo, antes é um processo de maturação e de civilização (2004, p. 308; 2005a, p. 414; 2005b, p.355). É nesse contexto que Sloterdijk advoga uma segunda ecumenia. Por ecumenia, ele se refere ao conceito grego de oikuméne, cujo significado é de mundo habitado (1999, p. 986; 2004, p. 265). Durante a primeira ecumenia, a base para o tratamento igual entre seres humanos não fora suas necessidades iguais. Os filósofos antigos perceberam os indivíduos ontologicamente unidos por um abrangente mundo secreto (1999, p. 987). Na segunda ecumenia, o mundo secreto é substituído pelo medo de uma crise global. Do Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

108 ponto de vista de Sloterdijk, a crise global é a única instituição capaz de redirecionar as forças psicodinâmicas de maneira colaborativa (1999, p. 985; 2005a, p. 224). É a crise global que pode elevar a consciência através das espumas de que a política clássica se tornou obsoleta (2009, p. 699). Em vez de estratégias agressivas, o único modo de lidar com a crise global é se empenhar em negociações sem fim nas quais forças eróticas e thymóticas são constantemente reequilibradas (1999, p. 985; 2005a, p. 224). A questão não é a do equilíbrio entre eros e thymos, as duas forças psicodinâmicas precisam ser enfaticamente abarcadas. O desafio é desviar o foco erótico da dominação de pessoas e territórios e da egoística acumulação de objetos para um modo de compartilhamento e fusão e, ao mesmo tempo, desviar o foco thymótico de base ressentida para o de superioridade generosa. A liberdade de buscar os próprios interesses precisa ser balanceada pela habilidade de doar recursos eróticos e thymóticos para o outro, de modo que ele também se liberte (2005a, p. 412). A consequência de atitude tão generosa é que o outro não aparece mais como aquele que fora e que está em dívida, mas como aquele que poderia se tornar um apoio (2005b. p. 354). A segunda ecumenia põe o chão para uma nova percepção das necessidades imunológicas dos seres humanos. Em verdade, essas necessidades nunca mudaram fundamentalmente. Com a expulsão do útero, cada ser humano precisa de abrigo para sobreviver. Como afirmado acima, esse mecanismo não se limita ao controle de ameaças biológicas. Seres humanos também dependem de recursos sócio- e psicoimunológicos; sua produção depende, entretanto, de vias colaborativas. Na paleopolítica, essa colaboração ocorre naturalmente; pode ser interpretada como continuação do altruísmo animal de práticas de criação e como a emergência do altruísmo cultural (2009, p. 710). Na política clássica, a colaboração é restrita dentro das entidades políticas clássicas de tribos formais, reinados, impérios e estados-nações. A imunização é, então, um privilégio exclusivo dos membros de uma específica entidade política. A colaboração além dos limites de uma entidade política clássica é vista como um desperdício de recursos ou simplesmente como um risco assumido; conceitos racistas são um exemplo óbvio dessa perspectiva. Em vez de colaborar com outras entidades políticas, coletivos estrangeiros são percebidos como ameaças para a imunização própria ou utilizados como local de descarga para qualquer elemento não Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 91 a 111]

109 bem-vindo dentro do confinamento próprio. Já que a imunização da humanidade está agora ameaçada pela crise mundial, a política clássica se torna tão obsoleta quanto a paleopolítica. A negação e a desconsideração do outro se mostram estratégias autodestrutivas. É a essa luz que Sloterdijk extrapola o conceito de imunização para o de coimunização. Ele argumenta que, embora o comunismo tenha se equivocado por um sem número de enganos, ele seguiu uma intuição válida. Complexas formas sociais de vida somente podem ser sustentadas por práticas universais, cooperativas e ascéticas. A prosperidade das espumas humanas depende de macroestruturas de co-imunização. Os membros dessas estruturas não são passageiros em um navio de tolos, navegando sob a estrela do universalismo abstrato; eles são transformados em colaboradores responsáveis pela construção da arquitetura global da co-imunização (2009, p. 713).

Conclusão Sloterdijk proporciona a partir de seu conceito de espumas humanas uma visão inovadora da configuração espacial da comunidade universalizante. Partir de um projeto de bolhas, povoadas por pequenos números de pessoas e ar condicionadas por suas forças eróticas e thymóticas, permite a ele resolver o impasse ontológico de forma antropológica. Ao enfatizar na história da humanidade e na emergência de entidades políticas cada vez mais complexas, a política e a polícia permitem a ele resumir os princípios governantes de comunidades universalizantes no conceito de co-imunização. A ideia básica de co-imunização é que seres humanos dependem de recursos bio-, sócioe psico-imunológicos, que só podem ser gerados por vias colaborativas. A negação do outro resulta automaticamente na redução da própria imunização. Com o conceito de co-imunização, a pura base identitária da política mundial pode ser abandonada e substituída por uma abordagem não exclusivista. A necessidade por identidades não é negada pelo conceito de co-imunização, mas as dinâmicas thymóticas são contidas de modo que não provoquem confrontos destrutivos dentro de bolhas e espumas. Em verdade, os modos colaborativos de coexistência implicados pelo conceito de co-imunização precisam ser abastecidos pelo orgulho thymótico do doador

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110 generoso e carecem ser alimentados pelo prazer erótico do compartilhamento e da fusão.

*Rolf Rauschenbach é Mestre em Ciências Políticas e Relações Internacionais e Doutor em Ciências Políticas pela Universität St. Gallen; Pós-Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected]. **Vitor Ferreira Lima é pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA) e estudante de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: [email protected].

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