Rondando o teatro - o ocidente e o oriente

August 24, 2017 | Autor: C. Pimentel de Al... | Categoria: Theatre Studies
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RONDANDO O TEATRO1 O ORIENTE - O OCIDENTE Jerzy Grotowski Introdução [por Patrice Pavis] Poucos artistas têm tido tão profunda influência sobre conceitos do teatro e atuação quanto Jerzy Grotowski. É difícil dizer "Até logo, Grotowski", como Rustom Bharucha faz em seu livro O Teatro e o Mundo, sem o reconhecimento das marcas profundas na paisagem artística intercultural. Richard Fowler dividiu seu trabalho em quatro períodos: Teatro de Performance (1959-1969); Teatro de Participação (1969-1975); Teatro das Fontes (1976-1982); e Drama Objetivo (de 1983 adiante). Este último está ainda sendo desenvolvido no trabalho atualmente realizado no Centro di Lavoro di Jerzy Grotowski em Pontedera, ao qual Georges Banu faz referência. Mesmo em seu período "clássico, antes de Holiday [peça teatral] e do Teatro das Fontes, Grotowski preocupava-se com a performance de outras culturas sem, contudo, lançar mão das reverências usuais, em particular ao nível da procura por uma autenticidade. Em sua produção de Shakuntala, por exemplo, ele quis "criar uma performance a qual daria uma imagem do teatro Oriental - não um teatro oriental autêntico, mas como os europeus o imaginavam-no" (T. Burzynski e Z. Osinski, Le Laboratoire de Grotowski, Editora Interpress, Varsoire, p.19). Desde o Teatro das Fontes, Grotowski vem estudando os rituais de varias culturas não-ocidentais. Ele parece estar à procura de uma "pré-cultura" na fonte destas culturas uma noção muito próxima da de "Pré-expressividade" de Eugênio Barba. Por outro lado, no texto que se segue, o qual surge de uma notável conferência conferida sobre o Teatro Oriental e Ocidental na Universidade de Roma, Grotowski previne-nos contra qualquer simplificação no ato de avaliar as diferenças entre o oriente e o ocidente; em fazendo esta ressalva, ele se revela de um modo particular e céptico em relação a princípios universais (dos tipos postulados por Barba em sua investigação da préexpressividade). Sem nunca realmente dizê-lo, Grotowski clama por uma etnolingüística que reflita termos utilizados na teoria da performance.

Fonte: GROTOWSKI, Jerzy. Around the theatre: the Orient – the Occident. In: PAVIS, Patrice. The intercultural performance reader. Londres: Routledge, 1996. pp. 231-241. 1

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[Texto de Jerzy Grotowski] A confusão se inicia no momento em que falamos de ocidente e oriente. Em que lugar o oriente começa? Certas pessoas consideradas orientais por outras não se vêem como ocidentais e vice-e-versa? E o que se diz de culturas ancestrais como a dos armênios? Orientais ou ocidentais? Pense sobre a cultura ancestral egípcia. É esta venerável tradição parte da África? E a respeito da África? Não está a África completamente fora de nossas noções de oriente e ocidente? Pessoas criadas na tradição cultural do Caribe, no Haiti, por exemplo, freqüentemente se vêem como nãoocidentais. "Nós não somos Ocidentais", eles dizem. "Nós viemos sob o sinal do Sol Nascente". Assim, embora eles sejam geograficamente ocidentais, consideram-se ligados ao oriente ou ao sol nascente. Enquanto esta é certamente uma reflexão de sua transferência cultural da África, com seus místicos pedidos a Ife, sagrado para os Yoruba, ela é também uma rejeição - "Nós não somos ocidentais". A distinção é igualmente nebulosa na Europa. Para nós, o berço da civilização está no Mediterrâneo, aquele enorme complexo cultural que se compõe de Hebreus, Gregos e raízes egípcias, além de outras influências. Quem poderá dizer que tal tradição é inteiramente ocidental ou oriental? No dia mais importante da cultura Helênica, em Alexandria, havia professores judaicos ensinando em grego e em egípcio! Professores chineses também. Havia uma maior quantidade de intercâmbio cultural do que nós podemos perceber. Então, como podemos estar certos das fontes verdadeiras do platonismo, ou mesmo do neo-platonismo? Podemos estar certos se eles eram puramente egípcios ou gregos? E a respeito de todas aquelas estórias dos grandes filósofos gregos em viagem para a Índia ou Oriente? Claramente, é importante sustentar a idéia de que esta noção de "oriente-ocidente" é muitíssimo problemática. Todavia, freqüentemente, quando algo desafia classificação e permanece teimosamente confuso, permanece ainda uma verdade implícita. A despeito de tudo, todos sentimos a existência de uma cultura ocidental - chamem-na de Euroamericana - e um complexo cultural asiático. Mas então um fato ainda mais causador de perplexidade surge: a questão da América Latina. Certamente, há uma cultura de origem ocidental lá, tanto européia quanto norte-americana, mas isto não é tudo. Há as formas pré-colombianas que têm penetrado totalmente o visual, o "performativo", estruturas espetaculares da vida católica no México, Peru, Colômbia e outros lugares do continente. As raízes étnicas destas formas são ameríndias. Com um inconsciente racismo, nós nos

inclinamos a identificar como sendo oriental toda cultura não-branca ou negra - algo muito impreciso se considerarmos a cultura do sul da Índia. Portanto, sendo etnicamente "amarela", a cultura pré-colombiana não seria oriental? Obviamente eu não considero somente este ponto-de-vista, mas estou certo de que alguns elementos da tradição précolombiana que sobreviveram na América Latina são mais próximos da cultura oriental do que da ocidental. E, ainda, há algo mais. Com freqüência é dito em convenções, mesmo em lugares comuns, a respeito da cultura latino-americana, que a mesma é espontânea. Você pode ver isto na maneira de as pessoas gesticularem, moverem-se, fazerem barulho, expressarem-se. Todos nós apresentamos a nossa imagem própria, e estas pessoas pintam uma auto-imagem de espontaneidade e de vida. Isto é um traço ocidental? Ocidentais gostam de pensar sua cultura como sendo racional e auto-controlada; logo, nós devemos responder NÃO `a pergunta. Seria então oriental? Claro que não. A cultura oriental é profundamente estruturada. Está evidente que a América Latina é um caso especial. Pense apenas na influência da cultura africana no Brasil. Toda ela é muito difícil de ser definida em termos de ocidente e oriente, e eu ainda mantenho a existência de ambos, ocidente e oriente. Se um fenômeno pode ser definido simplesmente em termos de "isto é isto, e apenas isto", ele existirá apenas em nossas cabeças. Mas se ele é uma existência em vidareal, nós nunca deveremos esperar defini-lo completamente. Suas fronteiras estão constantemente em mudança, ao passo que exceções e analogias permanecem absolutamente abertas. Eu falo a vocês agora não como um erudito ou um teórico, mas como um artesão, se me é permitido o uso deste termo. Com isto eu identifico o artesão do modo "performático" relacionado com uma vasta gama de artes/ações em que o homem se utiliza a si, diretamente, como instrumento. Estou fazendo uso apenas daquelas experiências práticas retiradas do meu trabalho. Não é uma questão de perguntar como certas coisas aparecem "aos olhos orientais" ou "aos olhos ocidentais". Além disto, quem são estes orientais e quem são estes ocidentais? Existe mais do que um Oriente, como também existe mais do que um Ocidente. Há muitos lestes e oestes. O importante é perceber como orientais e ocidentais reagem quando confrontados com as mesmas idéias como reagem na prática, na área "performática". Isto é que é uma revelação verdadeira. Começarei com duas imagens aparentemente simples: uma figura sentada e outra figura caminhando. Ocidentais, em geral, têm uma imagem na mente de um homem oriental sentado no chão, como a posição de Buda ou de lotus. Os ocidentais que trabalham com orientais freqüentemente tentam sentar-se como estes sentam, mas modelando-se a si mesmos apenas sobre aquela imagem da posição. Eu repito: eles imaginam

que todos no Oriente sentam-se de uma certa maneira, sejam afegães, indus ou japoneses. Eles inferem que a mesma posição é adotada por um monge japonês e por um samurai japonês. Na realidade, muitas posições distintas de se sentar existem na cultura oriental. Mais ainda, a mesma "postura do Buda" pode ser adotada a fim de que você se mostre perfeitamente imóvel ou capaz de uma reação física imediata. Desta posição sentada você pode saltar rapidamente para uma prontidão de combate. Utilizando a versão indu da postura para obter imobilidade, você está tão estabilizado em suas pernas e na verticalidade de sua espinha que até mesmo se você cochilar um pouco poderá manter a posição. A forma sempre segue a função. A imagem da forma é o nosso modo de ver a forma, e às vezes a imagem engana. A forma não é a aparência da forma. As duas podem ser similares, mas a utilidade de ambas pode ser diferente. Por exemplo, um uso poderia ser estabilidade, imobilidade, enquanto outro uso poderia ser alerta e poder de movimento instantâneo. Agora peguemos o exemplo do trabalho de um ator. A ação é: andar alguns passos. Eu ouço um barulho; eu vou para a porta pedir silêncio; portanto, eu estou no ato de caminhar. Contudo, onde está a utilidade, a função, de minha ação? Se sou um ator ocidental no sentido mais convencional, a utilidade de minha ação é: abrir a porta, dar uma olhada na situação e pedir silêncio. A utilidade da ação, assim, não está na ação em si. A função está, por assim dizer, adiante de mim em tempo e espaço. Agora suponham que sou um ator treinado em uma tradição muito mais estruturada, como o teatro clássico chinês ou o teatro noh japonês. Estou frente à mesma situação e necessidade. Porém, neste caso a função de "caminhar" será um estudo/demonstração de como o caminhar é feito: a passagem de um pequeno elemento do caminhar a outro. Elemento-parada-elemento-parada. A questão aqui é: como eu caminho? Como o "caminhar" funciona? O que é a maneira de caminhar? Imaginemos que estamos assistindo Stanislavsky trabalhando durante seu período de ações físicas. Stanislavsky também considera a maneira de caminhar. Ele dirá ao ator: "Agora, escute. Sim, é verdade que seu objetivo é pedir silêncio, mas todas as suas reações, seu modo de escutar e ouvir, ou dar uma olhada na situação, tudo será transmitido por sua ação física; em outras palavras, por sua maneira de caminhar." No Método de atuação, a ênfase é transferida para a maneira de caminhar. A maneira de caminhar se tornará uma tela na qual são projetadas inter-reações, não interações, mas inter-reações entre a pessoa e seu meio ambiente. Mas para um ator do teatro clássico chinês ou da escola do noh japonês, esta maneira de caminhar é bem

diferente. Para ele, algo existe que é a essência do caminhar, a essência. Caso um ator se sinta atuando com a terminologia de Heidegger, diria que não apenas a ação de caminhar existe, mas também a "caminhada". O ator vai aplicar a "caminhada" à sua performance. É como se ele renunciasse sua própria subjetividade da ação, e se preocupasse com as leis da ação em si mesma: o que é caminhar? Aqui nós voltamos àquela desconexão de diferentes pequenos elementos. A linha será construída de quanta [a menor quantidade de energia possível] - não ondas como no processo de Stanislavsky de ações físicas. No budismo Theravada, existe até mesmo uma técnica de observar-se como alguém se move, também separando um elemento de movimento de outro. Portanto, falando asperamente, a ação é testemunhada. Isto está profundamente enraizado na cultura clássica oriental: você deve ver a ação ao mesmo tempo em que a executa (como na velha imagem indu de um pássaro assistindo enquanto um outro age). Retornando ao nosso ator, nós podemos dizer: ah, sim, funciona assim. Eu caminho, o que é o "caminhar"? O que significa, então, caminhar sem objetivo, sem ser capturado no objetivo de sua própria subjetividade? Caminhar, com o mero estudo do caminhar como utilidade? Nós poderíamos levantar a objeção que no teatro clássico oriental há pessoas que caminham cheias de fúria, ou que caminham gentil e liricamente, dependendo do personagem. Isto é verdade, mas é uma estrutura percebida, uma forma percebida, assim como o figurino no teatro oriental é uma forma percebida. Porém, o que o ator clássico oriental está estudando/demonstrando é o real funcionamento da lei: "a essência". Parece-me que em culturas onde há uma transição habitual da percepção ao hieróglifo, ou da visão para o signo, a mentalidade passa a reduzir a imagem de uma ação ao seu modus operandi. O estudo de uma ação por meio de uma separação de elementos de movimento produz signos de ação no lugar da ação propriamente dita. Comecemos pela posição "sentado" ou "caminhando à porta para pedir silêncio": estes são exemplos de ações no contexto de uma "estória" precisa. Mas vamos tomar o exemplo de uma simples ação "pedaço-da-vida" pelo que ela é exatamente, sem definir as circunstâncias ou a "estória precisa". O exercício-teste é "nadar no rio". "Tudo bem, eu sei como nadar", diz o ocidental, "mas de que maneira o farei? Não há água em nosso espaço de trabalho; logo, eu devo nadar sem nadar. Porém, como? Usando exclusivamente os mesmos elementos no chão?". Para um oriental de uma educação do Leste, a questão é colocada bem diferentemente: "Qual é o signo que mostra que estou nadando?". Se ele está trabalhando em seu próprio contexto cultural, tudo está bem. O signo já existe na forma pela qual todos o reconhecem. Contudo, se ele está entre estrangeiros,

trabalhando com americanos ou europeus, encontra um dilema pela frente: qual gesto, posição ou forma é conveniente utilizar para significar que se trata de uma questão de "natação"? Se ele está alerta e aberto a novas situações, pesquisará imediatamente uma busca pela essência, o modus operandi dos movimentos da natação sem recurso algum de signos gestuais. Porém, nós falaremos agora de casos excepcionais. Imaginem-se no papel de um instrutor, diretor, ou especialista prático, e suponham que estão trabalhando neste exercício-teste com um ator ocidental e com um outro ator oriental. Geralmente as primeiras tentativas executadas pelos dois atores são errôneas. "Nadar" é uma situação da vida na qual, sobretudo, devemos confiar no impulso. Primeiramente, parece mais fácil para o ator ocidental entender isto. Se ele possui alguma reverência ao teatro falado, ele se mantém preso a seus gestos, mas por baixo de tudo ele sabe que lhe falta alguma coisa: "Sim, eu sei como dizer as palavras e fazer os gestos, mas a verdade é que a vida é algo mais, alguma coisa que surge de dentro." Pressionado, o nosso ator somará impulsos somente para esquecê-los imediatamente e lançar-se dentro de um clichê psico-analítico (nadando no útero de sua mãe) ou de um narcisismo prático ("impulsos não são importantes - eu posso executá-los da melhor maneira, mas são os movimentos de crawl [estilo de natação] que contam, e eu sou ótimo nisto!). Para o oriental, por outro lado, o começo é extremamente difícil. Você pede-lhe impulsos e ele lhe dá signos. Você observa seu corpo trabalhando e diz, "Escute, você está construindo uma máscara em sua face; você está movendo-se apenas nas extremidades, suas pernas, seus pés, suas mãos. Seu corpo está sem vida, você tenta apenas as posições que você conhece, e parece incapaz de mudá-las. Seus gestos estão bloqueando seus impulsos porque eles os estão precedendo. Ele então pergunta-lhe, "O que são impulsos?". Você diz que um impulso é um "pedaço" de energia, uma simples projeção de energia. Ele entenderá, mas continuará a buscar um "fraseado simples" de símbolos, um "fraseado simples" de signos, e saltará do fraseado sobre o impulso como se o aspecto da vida "na vida" nunca lhe tivesse ocorrido. Ele apresentará seus movimentossignos e dirá, "Eu estou nadando." Muito bem, você o leva às margens de um rio e sugere que ele use seus movimentossignos da natação para que os mesmos o levem à margem oposta do rio. Logo surge o choque: "Oh, você quer dizer realmente nadar?" Sim e Não. É uma simples questão de encontrar o impulso de nadar, e então sua essência, seu modus operandi, e então suas formas... Bem, agora surge a questão se o que denominamos "teatro" no Ocidente pode ser comparado com o teatro oriental. São a mesma coisa? E existe ainda uma terceira

categoria, da qual a tradição Yoruba africana é um exemplo. Para alguns teóricos ocidentais, este é um outro exemplo de teatro clássico, mas em realidade feito de ritual, quer dizer, ações diretas de participação, ou etnodrama. Isto é totalmente diferente do que nós queremos dizer por teatro no lado ocidental, onde há um texto escrito a ser teatralizado, com atores falando, movendo-se e apresentando a imagem e a estória prevista pelo autor. Contudo, o etnodrama é diferente na África, na Ásia e no Caribe. Existem papéis e personagens no ethnodrama? Certamente existem. No Zar etíope, por exemplo, os chefes da cerimônia, Mamma Zar e Papa Zar, são personagens no sentido funcional: eles realizam A funcão. Nas formas africanas e haitianas de Voodoo há muito mais personagens, mas isto porque há mais funções. E qual daqueles personagens, no mais profundo sentido da palavra, apenas surge no momento da famosa possessão ou transe? O deuscobra que entra e pilota o corpo do possuído é um personagem, e não está, todavia, à serviço de uma função. Ele é O personagem. Vamos continuar com os personagens do teatro clássico oriental. Há um personagem, "o personagem", e a pessoaestrutura da peça, o tipo. No teatro europeu o personagemestrutura literário é criado pelo escritor, mas o personagem-estrutura da peça é criado pelo ator (ou conjuntamente entre o diretor e o ator). O ator pode criar um personagem baseado na sua observação de outros, mas raramente ele dirá, "Sou eu, o ator, com minha vida, minhas experiências, minha inteligência. Ele [personagem] sou eu e é deste eu que eu estou criando este personagem." Tudo isto é muito natural, porque na cultura ocidental nós estamos muito preocupados com a noção do "eu". Isto significa que nós precisamos de nossa consciência para fazer um autoretrato. A consciência retrata seu auto-retrato; a consciência conta a si mesma estórias sobre si. Este é o modo como ocorre conosco no ocidente, e se nossa consciência fosse desprovida de possibilidades de dizer estórias sobre si mesma, ele se tornaria louca - pelo menos é no que as pessoas acreditam. Na cultura oriental é geralmente acreditado que não é bom para a consciência criar problemas sobre seu "eu" (no sentido de criar seu auto-retrato) se não quiser sonhar afastada de sua vida, como uma tola. Em determinadas formas de teatro clássico oriental, um personagem não é atuado por um mesmo ator, mas por alguém fazendo movimentos e outro alguém dizendo, ou melhor, cantando o texto. Apenas imaginem uma analogia ocidental: um ator seria o Hamlet em movimento; outro seria o Hamlet falando. Qual é o personagem neste caso? E quem está criando o personagem? O primeiro ou o segundo ator? No teatro clássico oriental tal problema não surge porque o

personagem é recebido totalmente. Para o ator clássico oriental, para o dançarino-cantor (portanto, talvez não o ator), o personagem, a estrutura de atuação e a forma do papel, é herdada. Ela está lá antes de o ator chegar. Assim, o ator oriental não tem que criar personagens. Mas não é permitido a ele nenhuma criatividade? Há alguns americanos e europeus que consideram o oriente como o campo de forças primárias, pacífico e excitante, atuação em completa espontaneidade. Artaud é um exemplo disto com a sua descrição do teatro balinês. De onde ele obteve a impressão de espontaneidade? Ela veio do fato de que a ação é bem preparada, extremamente estruturada,, e que as formas são funcionalmente energéticas, reais projeções formais de energia. Como resultado, o observador de fora vê espontaneidade. Alguém pode dizer a si mesmo que energia é "cósmica", mas sabe-se também que a energia é um atributo pessoal do ator. Seriam estas duas possibilidades diferentes? Há alguns ocidentais que pensam que se o ator oriental não pode criar personagens, e se toda a estrutura do trabalho é bem mostrada, o ator oriental não é portanto criativo, ou o ator oriental é meramente um instrumento. Ou o ator oriental não pode produzir trabalho personalizado algum. Uma conclusão tola. Não é por acaso que no Oriente, em todas as artes, incluindo as artes marciais, muita ênfase é posta sobre a energia, e que as técnicas são discutidas em termos de energia. Grandes atores ocidentais sabem improvisar enquanto mantém uma certa fluidez de ação. Eles podem até mesmo fazer uso de um texto escrito, sem alterá-lo, enquanto improvisam ações (no sentido que Stanislavsky dá ao termo). No Oriente, tudo torna-se mais uma questão de improvisar as aplicações da energia, de descobrir formas como as funções energéticas. Os elementos, as formas/detalhes, são muito precisos - ao ponto de os mesmos se tornarem movimento, gesto e signos vocais. Mas dentro desta estrutura, a ordem dos detalhes pode ser alterada de uma maneira sutil, os acentos rítmicos mudados, a duração das "paradas" entre os detalhes modificada, e até mesmo uma maior complexidade ser alcançada. O ator é capaz de observar "como as coisas estão indo", "como é feito", e descobrir as surpresas do momento (inclusive se permitindo a surpreender-se). As formas são redescobertas como canais. A energia flui em seu caminho próprio, indefinido... "Encantamento". Em sua famosa transmissão de rádio, Para Acabar com o Julgamento de Deus, Artaud reestrutura a linguagem para produzir um extraordinário e horrível estertor - com a seguinte característica particular: Artaud, como ator, explode a linguagem, faz com que a linguagem sofra uma explosão, uma explosão melódica. Ele explode, às vezes pára, e há uma violenta junção de material suprimido e escondido. O outro caso: um oriental

deseja ensinar a um ocidental um mantra. Um mantra, visto como encantamento, é, se posso assim dizer, um encantamento des-subjetivizado, e também uma disciplina extremamente rigorosa e repetitiva. Com o fito de transmitir este encantamento ao ocidental, o oriental concentra-se na melodia até o ponto onde ele destrói o rigor e precisão corporal de seu próprio mantra. Finalmente, ele ensina como cantar o encantamento/mantra. Para ser verdadeiro, o mantra não deve ser cantado; ele não é um canto, mas um certo modo de falar, não de cantar; uma certa maneira vibratória de falar. Para obter esta forma vibratória, é necessário manter-se numa posição precisa, para então entender completamente como prestar atenção às diferentes partes do corpo, não apenas como centros de vibração mas também como centros de energia. Há uma espécie de circulação de atenção. Deve-se prestar atenção às modalidades respiratórias (não necessariamente de uma maneira manipulativa), e é somente quando esta tão falada precisão corporal é alcançada que a forma vibratória de energia do encantamento emerge. Um oriental tentará freqüentemente ensinar isto rapidamente a um ocidental, por meio de adestrá-lo a produzir melodia mais um certo ardor, como se ele estivesse empurrando-o em direção aos encantamentos de Artaud. Há um profundo mal-entendido dos dois lados. O professor oriental olha o indivíduo do Oeste e diz a si mesmo, "Para ele, isto é suficiente." Há inúmeras diferentes abordagens do fenômeno performático em termos técnicos. Eu posso apenas enumerar algumas delas: 1. A espinha - A abordagem ocidental exige a tão conhecida maleabilidade. Em teoria (e somente em teoria), o organismo pode performar qualquer movimento desejado. No Oriente, a maleabilidade é mais direta; ela é uma questão de flexibilidade, de movimentos precisos tais quais os saltos na Ópera de Pequim. Nas artes marciais, contudo, uma reação imediata ao novo e desconhecido é exigida. No Oriente - e isto é o mais revelador - a espinha está relacionada com a circulação de energia e com os centros de energia. Há nisto uma afiada dissociação entre repouso e movimento (a espinha imóvel e a espinha em sua ação exteriorizada); 2. Respiração - No Ocidente, procuramos por uma média estatística relacionada ao modo de respirar. No Oriente, um modo de respiração manipulado (elaborado, não-usual, influenciado) é freqüentemente aplicado, e, portanto, qualquer pessoa usa uma técnica manipulada e correta de respirar. Obviamente, estas "únicas" técnicas são muitas e várias, dependendo das tradições de onde

vêm. Em contraste, nas artes marciais a abordagem é mais aberta ao desconhecido. 3. O centro - No Ocidente, a orientação predominante está no "centro" psicológico, "o interior", a memória emotiva, as emoções, etc. No Oriente, o "centro" é mais técnico. Ele está associado com o centro de gravidade (o qual se considera conectado com a fonte de energia vital, como no caso do hara entre os japoneses). Parece-me que a abordagem oriental e a ocidental são complementares. Contudo, nós não devemos tentar uma síntese de um sincretismo "performativo"; antes, devemos tentar transcender as limitações das duas abordagens. Por exemplo, é geralmente dito que o hara está sempre localizado no estômago. Mas o hara pode, às vezes, está nas costas, na cabeça, às vezes nas pernas, dependendo da situação. Pensem em um combate! Hara está em todo o lugar, o que equivale a dizer em lugar nenhum. O hara perfeito não tem moradia... Se um oriental deseja produzir um teatro ao estilo oriental, muito freqüentemente ele terá a convenção como uma forma recebida e, por meio da manutenção desta forma, finaliza o trabalho com signos de ações no lugar de ações... Em 1962, vi na China uma peça de Ostrovsky, um escritor russo do século dezenove, performada na convenção realística. Os atores chineses tomaram a convenção como uma forma prontamente recebida. Tinham criado signos de ações realísticas, e tinham aplicado o movimento de uma ação lugar-comum como eles aplicariam um gesto simbólico. Um ocidental fazendo teatro "oriental" está ou "livre" - e portanto como um macaco imitando o seu mestre, executando pseudo-signos sem precisão ou aplicabilidade, tentando encontrar as "forças" manifestadas pelo ator/medium, etc., a imaginação afetiva - ou ele está um balinês quase perfeito, embora nem um pouco convincente. E ainda há importantes lições as quais devemos aprender uns dos outros tanto orientais quanto ocidentais. Nós devemos transcender nossas respectivas limitações e chegar junto a um terceiro aspecto básico de objetivo, se é que ouso colocar as coisas deste modo. Mas nós devemos também estar muito cuidadosos para não confundir sopa com pedra, como no velho conto da camponesa para quem um cigano, tendo fervido uma pedra na água, implorou um pouco de sal para dar sabor, depois um pouco de manteiga, um pouco de tempero e, finalmente, alguns vegetais. O cigano fez por convencer a camponesa, após lançar fora a pedra e beber o líquido, de que ela havia realmente lhe visto preparando uma sopa de pedra. Brecht na Ásia (e na Europa também) não passa geralmente de um teatro distanciado verbalmente, o que quer dizer, chato. As formas

não têm utilidade energética, não têm vida. Porém, para Brecht diretor (e ele foi um perfeito cigano a este respeito!), o distanciamento ou Verfremdungseffekt, com o auxílio da narrativa e outros recursos, serviu como uma pedra da qual ele foi capaz de fazer uma sopa muito saborosa. O problema da terminologia, ou melhor, das traduções confusas das terminologias, é terrível. As traduções de termos orientais não são apenas múltiplas (para um mesmo termo), como também altamente interpretativas. Os orientais também, em contato com ocidentais, afogam-se em confusões terminológicas. Freqüentemente estes mal-entendidos são realizados de uma maneira ainda pior por um espírito panecumênico(como entre os hindus!), que transforma as orientações ocidentais em orientações orientais... "É a mesma coisa, é a mesma coisa." Bem, eu sinto muito. Pode ser a mesma coisa algumas vezes, mas na maioria das vezes uma coisa não tem nada a ver com a outra. De acordo com os tradutores, a palavra "consciência" existe em qualquer lugar. É bem possível que estejam certos, mas idéias a respeito de "o que é a consciência" não podem ser as mesmas. As muitas palavras são descaminhos. Há textos orientais que falam do "coração". Alguns tradutores interpretam isto como "consciência", outros como "mente", outros, "espírito", outros, "mentalidade", e nenhum destes termos é sinônimo do outro. Ocidentais tradicionalmente associam a consciência com a cabeça ao invés de com o coração. Deploravelmente, isto é verdade; contudo, aí é que está o fato. Com todas estas palavras - coração, cabeça, espírito, mentalidade, mente, consciência - surge muita confusão! Há também analogias equivocadas. O famoso "vazio", no pensamento oriental, "vacuidade", "nada", "o oco", etc. E há analogias entre místicos ocidentais - Meister Eckart, por exemplo, que é muito estimado pelos orientais. Certas pessoas (especialmente orientais) dizem que Meister Eckart e Budismo Mahayana são a mesma coisa. Mas não o são, absolutamente. A noção de vazio (ou nada, ou o oco, etc.) é fortemente ligada no ocidente à renúncia. Não é por acaso que Tauler, um discreto discípulo de Eckart, discursou sobre o estado de nulidade. Deve-se renunciar, eliminar; eliminar, renunciar; até finalmente a alma nua ficar facea-face com... Há, nisto tudo, o vazio, o oco, o nada. Contudo, para um budista Mahayana, o vazio possui outros campos de referência. Vamos falar de um artesão, um artista-artesão, o qual poderia utilizar a terminologia acima descrita. Para ele, geralmente, "vazio" significa apenas um espaço que não esconde nada, a dimensão de uma passagem clara e nãoobscura. Isto poderia significar um "canyon", o vale profundo, um intervalo entre duas montanhas. Também poderia

ser um buraco no centro de uma roda, o qual é apenas um buraco mas que permite o funcionamento de toda a roda... Vamos tentar ir adiante. Ocidentais estão sempre preocupados com suas buscas por selecionar e fixar fenômenos, e com o relacionamento causal entre tais fenômenos. Imaginemos uma longa linha de formigas: de uma certa distância, ela parece-se com uma fina cobra movendose. Um ocidental vendo este fenômeno desejará vê-lo mais de perto. Ele diz a si mesmo: "É uma linha de formigas, não ondas mas quanta; deve haver algum relacionamento causal entre estes elementos." Para um oriental com noção de vazio, o começo da experiência é parecido. Mas, para ele, o que conta, acima de tudo, é que o fenômeno aparece e desaparece. Voilà, não há continuidade, e como é que a "cobra muito fina" se move? Por causa do espaço vazio entre as formigas. Portanto, enquanto o ocidental põe toda a sua concentração no fenômeno por ele selecionado, o oriental leva em conta as potencialidades: algo poderia acontecer, se ainda não aconteceu. Há o "oco", a percepção esférica das potencialidades significando o "nada". Tudo é possível, mas não ainda, não já. Potencialidades. O mais simples, mais profundo, mais bem concebida imagem de tudo isto é - a superfície perfeitamente parada, "vazia", do lago do qual um peixe subitamente pula. Fenômeno. Estrondo. Há, então, um mal-entendido sobre as palavras - o Koan. No Zen, você tem uma frase absurda que você deve decifrar de alguma maneira, até mesmo se não houver como decifrá-la. Você fica completamente devorado pelo problema; você perde a noção, e finalmente seu mestre dá-lhe uma pancada com seu sapato ou com sua bengala e você recebe uma iluminação. Um Koan poderia perguntar "Com o que parecia sua face antes de seu pai nascer?" ou "Como você aplaude com apenas uma mão?"... Certos japoneses que têm-se exposto à cultura do ocidente adoram contar estórias de koan, e eu às vezes me pergunto se eles notam que - ditas como anedotas - eles as transformam em estórias muito pobres. Mas, talvez, a vida cria o koan? Um dia nós somos pegos em uma armadilha, capturados em uma viela escura e sem caminho para escapar. Nós não podemos encontrar solução. Estamos capturados pela vida inteira até a morte. Mesmo quando pensamos que nós escapamos, em realidade nós continuamos capturados de outra maneira. Finalmente, temos que encarar nossa dificuldade. Mover-se em direção ao "sim" - catástrofe; mover-se em direção ao "não" - catástrofe; mover-se para frente - catástrofe; mover-se para trás catástrofe; para cima ou para baixo - catástrofe. No entanto, fazendo isto, nós estamos desistindo das potencialidades desconhecidas. E isto é o koan - um poderoso suporte de nossa própria natureza (ou, talvez, a Natureza mesma?)presente para lidar com nossos apuros. É certo que nós não temos solução, porque em nossos corações

sabemos que nada existe. Porém, nele há todas as gloriosas potencialidades! Haverá sempre algumas coisas que fazemos sem realmente sabermos como ou porquê. Mas elas são únicas ao serem nossas próprias respostas, individuais portanto, e únicas em serem cheias de potencialidades, não-individuais portanto. É este julgamento que conta, não a sentença. Traduzido do original para o inglês por Maureen Schaeffer Price

Notas: - Este texto é uma revisão da palestra conferida no Congresso Sobre Teatro Ocidental e Oriental no Estúdio Central de Teatro, Instituto de Teatro e Espetáculo, Universidade de Roma, 24 de setembro de 1984, subseqüentemente publicado no Asian Theatre Jounal 6 (1), 1989,pp. 1-11. - Jerzy Grotowski é Diretor do Work Center of Jerzy Grotowski no Centro de Experimentação e Pesquisa, Pontedera, Itátlia, e professor na Escola de Belas Artes, Universidade da Califórnia, Irvine. - Maureen Schaeffer Price, Chefe do Departamento de Drama da Escola de Punahou, em Honolulu, publicou traduções científicas para a Cambridge University Press e Hawaii.s Bishop Museum. Fonte: GROTOWSKI, Jerzy. Around the theatre: the Orient – the Occident. In: PAVIS, Patrice. The intercultural performance reader. Londres: Routledge, 1996. pp. 231-241.

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