Roteirizar, Gravar, Editar. Os Efeitos da Edição sobre os Filmes Audiodescritos exibidos na TV Brasileira 1

June 6, 2017 | Autor: Monica Magnani | Categoria: Audiodescrição
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Roteirizar, Gravar, Editar. Os Efeitos da Edição sobre os Filmes Audiodescritos exibidos na TV Brasileira1 Mônica Magnani Monte2 ([email protected])

Resumo A audiodescrição (AD) é modalidade de tradução audiovisual – uma tradução intersemiótica, que traduz imagens em palavras. Seu objetivo primário é permitir o acesso à cultura e à informação para o público com deficiência visual. É recurso de acessibilidade recente nas emissoras brasileiras de televisão (TV), com a implementação regida por leis, mas ainda aplicado apenas na programação pré-gravada (séries, novelas dubladas, filmes), que costuma ser editada para caber na grade onde será exibida. No caso específico de filmes, esta edição é feita no estágio da pós-produção da AD. Isto significa que editar um filme audiodescrito é editar o roteiro da AD. Diante deste quadro, através de um corpus de dois filmes audiodescritos exibidos na TV, esta pesquisa investiga como a prática de editar a programação pré-gravada pode afetar a coesão, coerência e fluidez do roteiro de AD desses filmes, comprometendo (ou não) a fruição para o público com deficiência visual e/ou o entendimento das cenas ou da trama. Para validar a investigação, recorremos a teóricos nacionais e estrangeiros que inserem a AD nos Estudos da Tradução e estabelecem uma interface com os elementos da Narrativa Fílmica. Os resultados apontam para a relevância das pesquisas e testagens e da formação do profissional da AD. Também sugerem a necessidade de se repensar meios de adequação da AD à TV e vice versa. Palavras-chave: tradução audiovisual acessível (TAV); edição de roteiros de filmes audiodescritos exibidos na TV brasileira; perfil e formação do audiodescritor, mercado de audiodescrição para TV.

1. Introdução Desde 2011, a audiodescrição (AD) passou a ser obrigatória nas emissoras brasileiras de televisão (TV) com transmissão digital. A implementação deste recurso de acessibilidade na TV instaurou um divisor de águas na minha vida profissional, pois foi quando comecei a produzir roteiros de AD para emissoras de TV, num total de mais de 100 roteiros de AD até o momento. A AD de filmes se materializa sob a forma de uma locução adicional inserida nos espaços sem fala, descrevendo os elementos visuais significativos da trama para a compreensão de cenas, ambientes, personagens, efeitos visuais e sonoros. A oferta de filmes audiodescritos no mercado (geralmente feita no formato DVD acessível) ainda é pequena, 1

Artigo redigido a partir do Trabalho de Conclusão do primeiro curso brasileiro de Especialização em Audiodescrição, oferecido pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceira com a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD), 2015. 2 Especialista em Audiodescrição (UFJF/SNPD [Universidade Federal de Juiz de Fora / Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência], 2015), Especialista em Artes Cênicas (Faculdade da Cidade, 2001), Mestre em Língua Portuguesa (PUC-RIO, 1998), Bacharel em Letras/Tradução (PUC-RIO, 1994). É audiodescritora roteirista de filmes para emissoras de TV e portais onlines. Atua na área desde 2011, com mais de 100 roteiros de audiodescrição de filmes para TV. Recebeu o Prêmio de Melhor Roteiro de Audiodescrição, para o curta “Um Lance do Acaso”, de Beatriz Taunay, no Festival Ver Ouvindo 2015 (Festival de Filmes com Acessibilidade, Recife). Atriz em dublagem, teatro e TV, tradutora (Inglês/Português), revisora e produtora de audiolivros. Capacitadora para gravação de audiolivros visando a acessibilidade para a pessoa com deficiência visual. Narradora voluntária no Projeto Livro Falado durante a parceria IBC/FACHA e narradora de chamadas e livros para editoras. Narradora de audiodescrição.

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mas tem-se expandido e ganhado mais visibilidade. Em dezembro de 2014, a Instrução Normativa 1163 determinou que todos os projetos de produção audiovisual financiados com recursos públicos federais geridos pela Agência Nacional de Cinema (ANCINE) devem contemplar serviços de acessibilidade nos seus orçamentos. Em julho de 2015, foi sancionada a Lei Brasileira da Inclusão4 que, em seu Artigo 67, determina que a AD esteja entre os recursos disponibilizados pelos serviços de radiodifusão de sons e imagens. É fato, porém, que, no caso específico de filmes audiodescritos veiculados na TV, pouco se conhece acerca da cadeia de produção até sua efetiva exibição. Há quatro anos atuando neste mercado, percebi que a edição desses filmes é feita no estágio da pós-produção, ou seja, após a narração da AD ser gravada e mixada ao filme. Isso significa que a edição do filme também edita o roteiro de AD. Tal constatação me leva a fazer alguns questionamentos: 1. De que forma esta edição do filme afeta o roteiro de AD? 2. Quais seriam suas consequências para os espectadores com deficiência visual? 3. Em que medida esta edição pode (ou não) comprometer a coesão, a coerência e a fluidez do roteiro e, consequentemente, comprometer a fruição e/ou o entendimento das cenas ou da trama como um todo para estes espectadores? Estas ainda são perguntas sem respostas. E este artigo visa instaurar o debate salutar. Para tal, encontra-se dividido em quatro seções, além desta Introdução. Na primeira, situo a AD no escopo dos Estudos de Tradução. Na segunda, discorro sobre a AD na TV. Na terceira, analiso os efeitos da edição sobre o roteiro de AD a partir de trechos de dois filmes. Na quarta, além de enumerar as principais conclusões, aponto possíveis perspectivas para investigações futuras. 2. A Audiodescrição nos Estudos de Tradução – Novos Modos de Ver um Novo Mercado Sacks (2010) questiona em que grau a descrição, a imagem posta em palavras, pode funcionar como substituto para o ato real de ver ou para a imaginação visual pictórica. E afirma: Se de fato existe uma diferença fundamental entre a vivência e a descrição, entre o conhecimento direto e o conhecimento mediado do mundo, por que então a linguagem é tão poderosa? A linguagem, a mais humana das invenções, pode possibilitar o que, em princípio, não deveria ser possível. Pode permitir a todos nós, inclusive os cegos congênitos, ver com os olhos de outra pessoa. (p.210, grifos nossos)

Esta é a proposta básica da audiodescrição (AD): através da linguagem, ao transformar imagens em palavras, permitir que a pessoa com deficiência visual “veja” com os olhos de outra pessoa e, assim, incluí-la de forma plena e autônoma na sociedade, fazendo com que se sinta respeitada em seus direitos, como cidadão, consumidor e espectador dos mais diversos eventos culturais. Mas de que forma isso acontece? Para Jakobson (1991), toda experiência cognitiva pode ser traduzida e classificada em qualquer língua existente, distinguindo-se aí três maneiras de interpretar um signo verbal: ele pode ser traduzido em outros signos da mesma língua, numa tradução que chama de intralingual ou reformulação; em outra língua, que seria a tradução como usualmente a conhecemos, de um idioma para outro; ou em outro sistema de signos não verbais, que seria a tradução intersemiótica, ou transmutação, em que os signos estariam em meios semióticos 3

http://www.ancine.gov.br/legislacao/instrucoes-normativas-consolidadas/instru-o-normativa-n-116-de-18-dedezembro-de-2014 4 Lei 13.146, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm

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diferentes, como na AD, que seria uma tradução do código visual para o verbal. Enquanto tradução de imagens em palavras, teria então a AD encontrado seu lugar? Até a década de 70/80, grande parte dos modelos de tradução era de cunho linguístico e tendia a se concentrar no nível da palavra ou da oração, com a preocupação principal de dar conta da equivalência linguística, ou seja, da transposição de significados estáveis do texto de partida para o texto de chegada, com claro predomínio da objetividade Saussuriana dos elementos puramente linguísticos, os quais flanavam acima de qualquer envolvimento ideológico. Na década de 90, com o advento do cultural turn nos estudos tradutórios, a tradução passa a ser considerada como “transferência” cultural ao invés de lingüística; o processo tradutório, como um ato de comunicação, e não mais uma “transcodificação”; e o texto traduzido, como parte integrante do mundo e não como um espécime isolado da linguagem. Portanto, para se analisar as inúmeras situações comunicativas de um texto traduzido, não basta considerar apenas aspectos estruturais, lexicais ou estilísticos; não basta se deter na estrutura da língua, isto é, no nível da oração, nas escolhas de léxico ou de registros. É preciso considerar a dimensão pragmática do contexto situacional e sociocultural, o uso que se faz da língua, nesse contexto, na cultura de chegada e também o uso estratégico que se faz desta língua. A linguagem passa a ser fenômeno profundamente social e histórico e, por isso mesmo, ideológico. A unidade básica de análise linguística volta-se para o enunciado, ou seja, elementos linguísticos produzidos em contextos sociais reais e concretos como participantes de uma dinâmica comunicativa. E a tradução claramente transcende o escopo da linguística meramente lexical. Qualquer modelo de tradução estaria, na verdade, lidando com a língua em uso em duas culturas distintas, criando, assim, um novo texto, em uma nova cultura. Barthes (1987) por sua vez, nos mostra que o texto em si é mais do que um diálogo com um outro texto. São várias vozes, vários sentidos, vários caminhos e viagens pelos espaços infinitos da linguagem e das visões de mundo de quem se debruça sobre ele. Essa polifonia leva o leitor a preencher as lacunas, os espaços vazios, e a pensar o que a obra significa para ele, para que a possa ressignificar. Assim, os sentidos são construídos a cada leitura. E o texto é recuperado a cada vez que é lido. Texto enquanto tecido que se produz em um entrelaçamento contínuo de vozes, lugares, poderes, contextos, ideologias. Esse mesmo deslocamento do texto que se move e se constrói a cada leitura pode ser observado ao nos debruçarmos sobre a AD quando a inserimos nos estudos da Tradução Audiovisual (TAV) como uma tradução intersemiótica, i.e., uma tradução de imagens em palavras. Na verdade, a visão que norteou os primeiros audiodescritores pressupõe um modelo de AD de cunho estritamente linguístico, transferindo significados imagéticos e mantendo-se fiel ao que se vê, que seria o “texto original”, “fielmente” traduzido na diretriz “descreva, objetivamente, apenas o que você vê”. No entanto, conforme demonstrado pelo cultural turn nos estudos tradutórios, assim como não existem traduções idênticas, não existirão roteiros idênticos de AD. As informações visuais priorizadas por um audiodescritor podem ser diversas das priorizadas por outro porque, seja ao traduzir ou audiodescrever colocamos ideias e informações em palavras. No caso da AD de filmes, traduzimos em palavras as informações visualizadas nas imagens. Só que o olhar é muito mais do que função fisiológica. É universo carregado de sentido. É linguagem carregada de força e impregnada de tudo o que somos e de como vemos o contexto em que estamos inseridos. Assim, o audiodescritor de filmes vai se aproximar do leitor de Barthes (1987), que interpreta e ressignifica as imagens e todos os elementos (visuais e auditivos) que vão tecendo a narrativa fílmica. Ele também é um observador do que vê, buscando compreender o filme como um todo para pinçar os elementos visuais mais significativos que proporcionem uma leitura

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lógica, coesa, coerente, fluida e fluente da obra para, então, reescrevê-la de forma que seu público alvo, a pessoa com deficiência visual, a (re)interprete. Suas escolhas sintáticas e lexicais devem, portanto, reconstituir, em palavras, a mesma carga imagética, acompanhando todas as curvaturas das cenas. O ritmo da cena deve guiar o ritmo do roteiro, para que se atinja a fruição da obra. Mas o tempo quase sempre exíguo para a inserção da AD exige precisão e concisão da informação; e mesmo quando diante de brechas sem fala mais generosas, o audiodescritor deve tentar solucionar seu maior desafio que, segundo Braun (2008), é selecionar as informações de forma a descrever o que considera essencial, sem subestimar ou sobrecarregar o seu público alvo. Deixá-lo usufruir também a experiência estética do filme refletida nos silêncios, na música, nos sons e nos efeitos, pois um filme vai além das imagens, e a forma como elas são captadas também importa e significa. E, como afirma Payá (2007), “é absolutamente imprescindível que o audiodescritor conheça e domine os códigos cinematográficos, uma vez que é o ‘idioma’ de seu texto de partida”5. As imagens em um filme podem ser apresentadas em tempo real, em flashback, intercaladas ou sobrepostas; os diálogos são acompanhados de movimentação cênica, gestual e expressões faciais. Elas formam um mosaico, um entrelaçar de imagens, palavras e sons variados. Formam uma narrativa que possui uma “liga”, uma tessitura que lhe confere coesão e coerência visual e verbal, segundo seus vários gêneros – musical, comédia, drama, ação, terror, policial, suspense, infantil, erótico, entre outros, cada qual com suas particularidades próprias. E sua audiodescrição deverá estar acessível para um público que é extremamente heterogêneo na forma como constrói suas imagens mentais do mundo. De fato, “os modos de ver” de uma pessoa cega perpassam por condições proporcionadas a partir da interação dela com o mundo e com os outros. Pesquisas e testagens com pessoas com deficiência visual denotam que, no caso da cegueira adquirida, elas constroem os conteúdos imagéticos com base em uma memória visual. Já pessoas cegas congênitas usam seus outros sentidos para construir esses conteúdos imagéticos a partir da interação com o mundo e com as pessoas que os cercam. (VILARONGA, 2010). E, por fim, há o público de baixa visão, que consegue vislumbrar vultos e cores e muitas vezes até acha desnecessário utilizar o recurso. No entanto, independente da forma como enxerga o mundo, é fato que a pessoa com deficiência visual necessita de experiências e interações em variados espaços de cultura e comunicação, vivenciando prazeres e saberes que certamente contribuirão para a formação de seu universo conceitual. Assim, embora seja necessário que esse público se familiarize com o recurso, também é preciso que o audiodescritor esteja capacitado a construir um discurso acessível a este público. Segundo Farias (2013), é necessário um processo de formação e especialização para que o audiodescritor refine seus conhecimentos linguísticos e tradutórios e também aprofunde sua capacidade de leitura de imagens. Após aprofundar conhecimentos e misturálos de forma criativa e expressiva à sua bagagem pessoal de mundo, ele talvez possa tornar-se um leitor de imagens apto a desconstruí-las e reconstruí-las com fluência e fluidez. Diante da diversidade humana, entretanto, que ultrapassa toda e qualquer deficiência, o audiodescritor nunca será plenamente capaz de construir as imagens da mesma forma que a pessoa com deficiência visual. Por isso, é extremamente importante a revisão do roteiro por um consultor com deficiência visual – um consultor-revisor, que vivencia a deficiência, que tenha a devida formação e a sensibilidade de perceber essa diversidade de construções imagéticas feitas pelo público alvo da AD, igualmente respeitando a diversidade inerente ao ser humano e à própria deficiência visual. O pretenso saber conferido pela visão deve respeitar o sabor da escuta. 5

es absolutamente imprescindible para el audiodescriptor conocer y dominar los códigos cinematográficos puesto que son el “idioma” de su texto de partida. (Payá, 2007, p.80)

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Hoje, há um consenso acerca da importância da formação de profissionais para a prática da AD de forma a capacitá-los a tomar as decisões tradutórias que melhor se adequem ao produto que tiver em mãos. Ninguém nasce audiodescritor. É competência adquirida através de prática e de estudo. E a formação é imprescindível para se oferecer um produto de qualidade – para se aprender a ver palavras e escrever imagens. No tocante à elaboração de um roteiro de AD, tantos as diretrizes6 quanto as pesquisas acadêmicas (ARAÚJO, 2010), (SEOANE, 2013), (COSTA, 2014), (NÓBREGA, 2014), entre outros, sinalizam para o processo de carpintaria e maturação e apontam para uma clara divisão em etapas no momento de sua elaboração:  assistir ao filme e elaborar o roteiro;  ajustar o roteiro às brechas sem fala, ou seja, ajustar as descrições ao tempo disponível para inseri-las;  submeter o roteiro à outro roteirista vidente;  submeter o roteiro a um consultor com deficiência visual;  gravar o roteiro em estúdio;  editar e mixar a gravação à trilha original do filme;  revisar a gravação. Este seria então o modus operandi ideal de elaboração de um roteiro de AD para filmes. Braga (2013) ainda explicita a função do consultor: “[...] revisar o texto [sua compreensão], examinar o ritmo da narração e o sincronismo das imagens com as descrições de forma que as mesmas não se sobreponham aos diálogos” (p.141). A velocidade com que o mercado da AD na TV vem se expandindo, entretanto, joga o profissional de AD na prática, sem redes de proteção, porque a TV pauta-se por um ritmo industrial em todas as suas produções. Assim, enquanto as pesquisas acadêmicas demonstram a importância da maturação da escrita de um roteiro e de toda uma infraestrutura para sua realização, a prática mostra-se diversa no mercado televisivo. É preciso então entender o modus operandi da TV, verificar como se dá a inserção da AD neste grande universo imagético e buscar soluções para possíveis desencontros entre o ideal preconizado pela teoria e a efetiva prática da elaboração de roteiros de AD para este veículo. 3. A Audiodescrição na TV O mercado de AD para TV surge como fruto da necessidade de cumprimento da de uma Norma da Portaria 188/2010 do Ministério das Comunicações 7. O não cumprimento desta norma acarreta pesadas multas e sanções. Até o estágio atual, que determina a exibição de seis horas semanais de conteúdo audiodescrito apenas na TV aberta, ocorreram muitos atrasos e impasses, postergando o início efetivo da AD na TV para junho de 20118. Hoje, a expectativa é a de se atingir a cota de 24 horas semanais até 2020. A primeira emissora a oferecer o recurso foi o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), com o seriado “Chaves”, um dos seriados latino-americanos mais famosos em todo o mundo9. Os jornais noticiaram o fato e informaram a programação de algumas emissoras10. 6

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Ver documento do Media and Culture Department, do Royal National Institute of Blind People, que compila várias diretrizes estrangeiras. Disponível em: http://audiodescription.co.uk/uploads/general/RNIB._AD_standards.pdf

http://www.mc.gov.br/images/2011/6_Junho/portaria_188.pdf Para mais detalhes, ver http://www.blogdaaudiodescricao.com.br/a-saga-da-audiodescricao-no-brasil 9 https://www.youtube.com/watch?v=vAwugcNo_rM 10 http://www1.folha.uol.com.br/colunas/zapping/937425-sbt-adapta-chaves-para-telespectadores-cegos-pormeio-da-audiodescricao.shtml (é necessário ser assinante da Folha para ter acesso à matéria) 8

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Em reportagem veiculada no Fantástico, A TV Globo anunciou os programas que teriam o recurso, informando também que a AD só estaria disponível nas TVs com sinal digital11. As primeiras diretrizes para a elaboração de um roteiro de AD para TV foram definidas ainda em 2005 pela NBR 15.290 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Segundo esta Norma, “[...] a descrição em áudio de imagens e sons deve transmitir de forma sucinta o que não pode ser entendido sem a visão [...] deve ser compatível com o programa [...] a descrição subjetiva deve ser evitada”. A Norma ainda orienta que “em filmes de época devem ser fornecidas informações que facilitem a compreensão do programa”12. A complexidade da produção de um roteiro de AD para TV, entretanto, exige que se vá além dessas recomendações imprecisas e vagas para a sua boa prática. De fato, o aumento da demanda pelo recurso, inclusive na TV, levou vários países a estabelecerem suas próprias diretrizes visando auxiliar os audiodescritores no processo de elaboração de seus roteiros de AD. A Britânica é a mais antiga e data de 200013; a Espanhola foi elaborada em 200514 e a americana, em 200815. Todas abordam os princípios da AD e orientam o processo de elaboração do roteiro. Em 2010, o Media and Culture Department, do Royal National Institute of Blind People publicou um documento que se propõe a comparar e mapear as semelhanças das diretrizes existentes em seis países diferentes: Reino Unido, Grécia, França, Alemanha, Espanha e EUA16. É interessante observar que o documento respalda a argumentação de Remael e Vercauteren (2007), para quem as diretrizes sempre apontam para as questões básicas de “o que” e “como” descrever, “quando” e “quanto”. Em 2012, foi publicado o Relatório ADLAB17 – um estudo sobre a AD na Europa, que analisa, define e exemplifica diretrizes para audiodescritores. O Relatório é fruto de três anos de um projeto de pesquisa que resultou em um dos livros mais recentes sobre as novas perspectivas da AD, ilustrado com a análise da AD do filme de Quentin Tarantino “Inglorius Bastard” (2008). Os capítulos abordam várias questões pertinentes à elaboração de um roteiro de AD para filmes, como Inserção de Notas Introdutórias, Tratamento dos Elementos Verbais e Não Verbais, Intertextualidade, Coesão Textual, Caracterização de Personagens, Ambientação espaçotemporal, Referências Culturais, etc. O livro, em inglês, já está disponível para compra online no Google Play18. No Brasil, boa parte dos pesquisadores19 adota os modelos espanhol e/ou britânico na elaboração de roteiros de AD de filmes, que são submetidos a testes de recepção. Vale lembrar que a norma britânica sugere um roteiro mais centrado nos detalhes, enquanto a espanhola sugere um roteiro mais centrado nas ações. Há também quem paute seus roteiros pela norma americana – o único modelo com tradução para o Português, disponibilizada pela 11

https://www.youtube.com/watch?v=sZGzJDksicc ABNT NBR 15290:2005, disponível em: http://www.mprj.mp.br/documents/112957/6985444/NBR_15290_2005_Comunicacao_TV.pdf 13 ITC Guidance on Standards for Audio Description (Inglaterra, 2000), disponível em http://www.ofcom.org.uk/static/archive/itc/itc_publications/codes_guidance/audio_description/index.asp.html 14 AENOR UNE 153020 (Espanha, 2005), disponível para compra em: https://www.aenor.es/aenor/normas/normas/fichanorma.asp?codigo=N0032787%20&tipo=N&PDF=Si#.VcFc PPlVikp 15 Audio description coalition – Standards for Audio Description and Code of Professional conduct for describers (EUA, 2008), disponível em: http://www.nps.gov/hfc/acquisition/pdf/audio-description/shared/attach-a.pdf 16 http://audiodescription.co.uk/uploads/general/RNIB._AD_standards.pdf 17 Remael, Vercauteren e Reviers (eds.). 2014. Pictures painted in words. The ADLAB audio description guidelines. Disponível em: http://www.adlabproject.eu/Docs/adlab%20book/index.html 18 Maszerowska, Matamala & Orero, Pilar (ed.), 2014. Audio Description. New Perspectives Illustrated. Benjamin Translation Library, v. 112. Disponível para compra em: https://play.google.com/books 19 Aqui refiro-me a pesquisadores das universidades da Bahia, Ceará, Minas e Brasília, responsáveis pelas principais contribuições acadêmicas brasileiras (artigos e/ou dissertações) para o entendimento da AD. 12

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Revista Brasileira de Tradução Visual20. Um grupo de pesquisadores, profissionais da AD e pessoas com deficiência visual está envolvido em um Projeto de Norma Técnica de Acessibilidade na Comunicação – Audiodescrição, segundo diretiva da ABNT, visando ampliar o escopo da NBR 15.290 e consolidar uma diretriz nacional para o recurso de AD. Outro grupo, composto por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e profissionais da área, elaborou um Guia da Produção Audiovisual Acessível21, que servirá de referência para os realizadores do audiovisual no Brasil. O grupo teve o apoio do Ministério da Cultura (MinC), através da Secretaria do Audiovisual (SAv), que utilizará as normas sugeridas no referido Guia para futuros projetos. Destacamos aqui a orientação no tópico do referido Guia que aborda as “questões técnicas na elaboração de roteiros de audiodescrição para filmes e programas de TV”: Os roteiros de audiodescrição de produções audiovisuais precisam conter os seguintes elementos: tempos iniciais e finais das inserções da AD, as unidades descritivas, as deixas, ou seja, a última fala antes de entrar a AD e as rubricas, que consistem nas instruções para a narração da AD (p.10).

O motivo é plenamente justificável, posto que, como relata na sequência da orientação, “nem sempre o audiodescritor-roteirista será o audiodescritor-narrador. Portanto, esses elementos são importantes para auxiliar na gravação da voz e dar à narração o teor adequado a cada cena”. Mas será que o modus operandi da TV permite que tais orientações, que retratam condições ideais de trabalho, sejam de fato seguidas à risca? Lente que reflete o momento, a TV é uma fábrica de sonhos em um parque industrial, onde impera a agilidade ao oferecer informação e entretenimento por vezes em tempo real. E o espetáculo não para, embora seja sempre interrompido, fragmentado pelos comerciais. Apresentada em blocos, a programação pode ter diversos formatos (programas de variedades, telejornais, novelas, séries, entre outros), é regida por uma classificação etária e obedece a uma grade prévia de programação, que pode ser alterada de última hora, para noticiar o minuto. A grade considerada nobre, por exemplo, que ocupa o período de 20h à meia noite, sempre será mais fragmentada pelos comerciais do que a da madrugada. Assim, os filmes exibidos neste horário costumam passar por uma edição mais severa, mais repleta de cortes e recortes, para caber na grade. Como esta edição também atinge o roteiro de AD destes filmes, não há como fugir dos desencontros entre teoria e prática na elaboração do roteiro de AD para este veículo. Esses desencontros se iniciam nos prazos, em média de 48 a 72 horas para se elaborar o roteiro de um filme, cuja duração oscila entre 90 e 130 minutos. Esses prazos exíguos se refletem na forma de elaboração do roteiro, pois inviabilizam qualquer aprofundamento a respeito do estilo do diretor e das particularidades de sua obra, como postula Ballester (2007), e todo o processo de maturação apontado pelos vários estudos acadêmicos já mencionados. Inviabilizam também as recomendações encontradas em diretrizes e pesquisas acadêmicas sobre a inserção dos tempos iniciais e finais da AD e das deixas no corpo do roteiro. Como o filme já vem com o TCR aparente, o roteiro costuma ser montado no editor de textos Word, informando-se apenas minuto e segundo de entrada da AD – a “minutagem” (ou TCR) do filme. No máximo, quando necessário, são inseridas instruções para a narração (as rubricas). Quando a emissora faz alterações de última hora na grade, há chances de o roteiro ser feito quase em tempo real – são as famosas “emergências”, quando o 20 21

Disponível em http://www.rbtv.associadosdainclusao.com.br/index.php/principal/article/view/54 https://dl.dropboxusercontent.com/u/10004244/Blog/Normas%20T%C3%A9cnicas/guia_audiovisuais.pdf

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roteirista vai enviando por email trechos do roteiro já finalizado e o narrador vai gravando no estúdio. Alterações posteriores são inseridas na etapa da revisão feita no estúdio. Nesta cadeia (im)produtiva, o audiodescritor costuma ser mão de obra terceirizada. Ele não tem acesso ao cliente final, não dispõe de tempo hábil para revisar o roteiro e tampouco submetê-lo a um consultor. Ele sequer acompanha a gravação da narração da AD. A revisão pode ser feita pelo narrador – que não costuma ser um profissional da AD –, no momento da gravação, por um diretor do audiovisual ou passar pelo controle de qualidade da empresa/estúdio, via de regra feita por um profissional de Letras e/ou Comunicação, que também não costuma ser um profissional da AD. Assim, o modus operandi da elaboração de um roteiro de AD para a TV se resumiria a:  assistir ao filme e elaborar o roteiro, já ajustando às brechas sem fala;  entregar o roteiro para o estúdio. A partir desta etapa, não há mais qualquer envolvimento do audiodescritor. O estúdio grava, edita, mixa, revisa e entrega o produto final para a emissora, onde o filme é editado para caber na grade da programação. Na verdade, observamos vários tipos de edição: a feita pelo narrador e/ou pelo diretor no momento da gravação, pelo Controle de Qualidade do estúdio, após a gravação, e pela emissora, após a entrega do filme com a AD já mixada. Na emissora, ela é feita pelos editores de áudio e vídeo, via Pro Tools – uma ferramenta de produção de áudio muito utilizada na pós-produção de filmes e programas de TV, para sincronizar imagem e vídeo e fazer edição. Na edição do vídeo corta-se imagem e áudio. Ao comparar alguns roteiros de AD com os respectivos filmes audiodescritos já veiculados na TV, não observamos palavras cortadas ao meio; apenas orações, sugerindo que a edição do filme é feita com o canal da AD ligado. Na verdade, esta necessidade de enxugar o filme para caber na grade leva a cortes em todo tipo de sequências, tenham elas falas ou não, como no caso dos trechos com os créditos iniciais e os finais, que costumam ser sumariamente cortados, trechos com paisagens e trilhas sonoras, ou mesmo com ações, mas sem diálogos ou narrações. Cabe então reiterar que a pesquisa deteve-se apenas na edição feita pela emissora, depois que o filme é entregue já com a AD gravada e mixada. Assim, a partir de um corpus de dois filmes, procurou-se investigar como esses recortes afetam a AD dos filmes. 4. Metodologia 4.1 Corpus O corpus da pesquisa é formado por trechos de dois filmes: “Madagascar 3: Os Procurados” e “Código de Honra”. O critério de seleção foi a disponibilidade desses filmes na internet. A justificativa da seleção deve-se a cláusulas de confidencialidade e direitos autorais, que impedem a divulgação do material22, o qual contém logomarcas do estúdio, distribuidora e/ou da emissora na tela de abertura. Os dois roteiros de AD, de minha autoria, foram elaborados em 48 horas para um estúdio prestador de serviços para a Rede Globo de Televisão. Foram feitos no editor de texto do Word, com inserção apenas das minutagens (TCR) de entrada e de algumas rubricas consideradas pertinentes para auxiliar na narração (pronúncias de nomes, ritmo/velocidade da narração, sugestões de ênfases em palavras, notificações de sobreposições viáveis e/ou necessárias). O estúdio se encarregou do controle de qualidade do roteiro, da narração e da mixagem da AD ao filme – etapas que não acompanho. 22

Informações decorrentes de troca de e-mails, em abril de 2015, com a Globo Universidade, área de relacionamento da Rede Globo de TV com o meio acadêmico. Sediada em São Paulo, é o canal oficial da emissora para fins de pesquisas acadêmicas.

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Para efeitos da pesquisa, trabalhamos com filmes oriundos de gravações diretas da TV (para os filmes editados e efetivamente exibidos pela emissora) e baixados do youtube (os filmes dublados, na íntegra). Como as gravações diretas da TV foram feitas por terceiros, não foi possível precisar o tempo de exibição destes filmes, pois não sabemos se os trechos iniciais, aparentemente editados, foram resultantes de cortes da emissora ou da gravação da TV. Podemos apenas afirmar que os dois filmes sofreram uma edição relativamente pequena: “Madagascar” passou de 93 minutos para cerca de 74 minutos, e “Código de Honra”, de 100 para aproximadamente 87 minutos. As ADs desses dois filmes, entretanto, apresentaram resultados distintos diante das edições. Para analisar o impacto das edições nos trechos selecionados, primeiro contextualizamos esses trechos; em seguida, confrontamos a AD original com a AD editada, exibida na TV, e verificamos como a edição afetou a AD original. 4.2 Análise das edições de Madagascar “Madagascar 3: Os Procurados” (2012), desenho de animação exibido na grade do Temperatura Máxima da TV Globo, tem 93 minutos, com classificação livre para todos os públicos. É o terceiro da série, e se inicia com os personagens principais (o leão Alex – e seus amigos) abandonados na África pelos pinguins e pelos macacos. Saudosos do zoológico, eles partem atrás dos pinguins, que estão em Monte Carlo, e logo se metem em enrascadas, atraindo a atenção de Chantel Dubois, a grande vilã da história e capitã do controle de animais da cidade, que se entusiasma ao ter que caçar um leão (Alex), na verdade a grande meta de toda a sua vida. Para fugirem de Dubois e chegarem ao zoológico, Alex e seus amigos se escondem em um circo itinerante, onde as estrelas são um tigre, um jaguar fêmea e um leão marinho. Em meio aos dramas pessoais dos animais do circo e a vários números circenses, eles seguem viagem até um desfecho inesperado e sugestivo de mais uma continuação. Logo no início do filme, Marty acorda Alex de um pesadelo e diz ter uma surpresa para ele. A partir daí já observamos uma primeira edição, como demonstra o quadro a seguir, no qual cotejamos a AD da versão completa (versão baixada do youtube) com a editada, exibida na TV: TCR

AD Original (filme baixado do youtube)

01:31

Marty empurra Alex, que cai em uma ribanceira

01:37

Alex olha para prédios feitos de argila

02:00

Alex corre de braços abertos

02:22

Close na miniatura do leão Alex. Em um flashback, a cena muda para o zoológico de Nova Iorque, onde uma multidão ergue placas com o nome do leão. As pessoas usam uma grande luva amarela em forma de mão com o indicador em riste e o nome “Alex” gravado nela. Alex está de pé sobre um pedestal.

02:35

Alex se vira e vê Melman, também de luva. Gloria pisca o olho e aponta o indicador da luva dela para Alex. Marty ergue a pata. Também usa uma luva. Alex exibe duas luvas. Ele salta até os amigos. Ele passa do riso ao choro quando a cena volta para o grupo na África, diante da réplica da cidade em argila

AD Editada (filme gravado da TV)

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Na versão completa do filme, após dizer que tem uma surpresa para Alex e puxálo pelo braço, Marty venda-lhe os olhos com as patas e o conduz pela savana africana. Alex bate a cabeça em um galho, é empurrado por Marty e rola uma pequena ribanceira, onde encontra seu presente de aniversário: uma réplica em argila da cidade de Nova Iorque. Nela, seus amigos ocupam os lugares dos monumentos históricos e verbalizam quais são esses monumentos. Feliz, Alex corre entre as ruas da cidade de argila e para diante da réplica do zoológico. Saudoso, ele relembra os velhos tempos. Cenas em flashback mostram os animais, felizes em suas jaulas, cercados pelo público que clama por Alex. A cena retorna à savana africana, onde Alex está triste e choroso. Glória pede que ele sopre as velas de seu bolo de aniversário, de onde surgem os lêmures. Na versão editada, que efetivamente foi ao ar, vemos dois cortes. No primeiro, de quase 15 segundos, após agarrar Alex pelo braço, Marty grita “Chega mais” e, em seguida exclama “Feliz aniversário”. Corta-se a ação de conduzir Alex pela savana e o momento em que ele rola ribanceira abaixo. Na sequência, Alex já arregala os olhos diante dos prédios feitos de argila e exclama: “Nossa! É Nova Iorque!”. Em seguida nomeia os monumentos representados por cada amigo (Glória é a estátua da Liberdade, Melman é uma ponte) e, tocando na réplica em argila, pergunta se foram os amigos que fizeram “isso”. Aqui ocorre o segundo corte, que elimina as cenas de flashback, um trecho de quase um minuto. A cena passa então para a fala de Alex, dizendo que a surpresa o alegrou, mas também o deixou triste e saudoso. Para o público sem deficiência visual, não observamos perdas de coesão e coerência, fluência ou fluidez no primeiro corte, pois este público literalmente vê Alex arregalar os olhos diante dos prédios feitos de argila. Já para o espectador com deficiência visual, falta uma descrição da cena que o situe diante desta réplica em argila dos principais pontos turísticos e do zoológico de Nova Iorque. Sem ela, ele perde o referencial imediato de ambientação espacial e da surpresa de Alex, manifesta em suas exclamações. O que Alex vê, que o deixa estupefato? Tal informação só será recuperada mais à frente (em 03:19 no filme na íntegra), quando Marty literalmente explica que é uma cidade feita de argila. Até lá, resta ao espectador com deficiência visual fazer as devidas inferências apenas a partir das falas dos personagens, da trilha e dos ruídos. Já as cenas em flashback, que remetem o grupo às lembranças do zoológico e foram suprimidas na edição, podem ter sido encaradas como informação que nada acrescenta e que, portanto, não faz falta23. No entanto, é um longo trecho sem fala. Assim, aparentemente, instaura-se um conflito entre os objetivos da edição e da AD, pois o que para a emissora se revela uma brecha preciosa para enxugar o filme, para o audiodescritor é uma brecha preciosa para inserir a AD. Uma nova edição ocorre após a explosão de um carro, como vemos no quadro a seguir, que coteja a AD da versão completa (versão baixada do youtube) com a editada, exibida na TV:

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TCR

AD Original (filme baixado do youtube)

10:20

O carro vermelho explode / Em meio às chamas, surge o vulto da mulher de quepe, pilotando uma moto

10:26

Ela tem cabelos curtos, ruivos e cacheados. Na

AD Editada (filme gravado da TV) O carro vermelho explode

no jargão da TV são as “barrigas”: aquela fase de um produto audiovisual em que nada acontece, que está ali apenas para preencher espaço. Aqui podemos também considerá-la como um trecho que não acrescenta informação nova à narrativa.

11

placa da moto, close de um círculo com uma faixa vermelha sobre uma pata e as palavras “controle de animais” [rápido]

10:44

Dubois, a mulher de quepe, fareja o ar e arregala os imensos olhos azuis. De quatro, fareja o chão. Um dos ajudantes admira-lhe o traseiro grande e empinado e um colega o estapeia. Dubois ergue as sobrancelhas finas, arregala os olhos e sorri. Ela sente o cheiro dos animais

11:04

O furgão segue pela rua

Na versão completa do filme, o furgão, pilotado por um pinguim e utilizado na fuga de Alex e seus amigos de um cassino, arrebenta uma porta de aço, cai sobre um carro vermelho e passa por cima dele, acelerando pela rua. O carro vermelho explode e, em meio às chamas, surge um vulto de uma mulher de quepe, pilotando uma moto. Em seguida, um close revela as feições da mulher (descrita no roteiro de AD). Na sequência, um novo close detalha uma placa na frente da moto, onde se lê “controle de animais” acima de um círculo com uma faixa vermelha sobre uma pata (também descritos no roteiro de AD). Um policial aborda a mulher pelo nome e ficamos sabendo que é a capitã Dubois. Pelo close da frente da moto, inferimos ser a capitã do Departamento de Controle de Animais da cidade. Dubois estapeia o policial, fareja o ar, fica de quatro e fareja o chão. Um dos ajudantes admira-lhe o traseiro grande e empinado e um colega o estapeia. Ainda de quatro, Dubois ergue as sobrancelhas finas, arregala os olhos e sorri ao sentir o cheiro dos animais. Toda a ação ocorre em um trecho de quase 40 segundos, divididos em aproximadamente 14 segundos sem fala, com uma trilha sonora ao fundo, a interrupção do policial que nomeia a mulher e novo trecho sem fala, de cerca de 15 segundos, repleto de ações. Na versão editada, de novo não há perdas de coesão e coerência, fluência ou fluidez para o público sem deficiência visual. Com a edição, após a explosão do carro vermelho, a cena passa para o furgão em fuga pelas ruas da cidade, com Dubois e sua equipe no seu encalço. Na sequência da perseguição, há um momento em que um dos pinguins levanta a ficha de Dubois no computador e ficamos então sabendo que é a capitã Chantel Dubois, do departamento de controle de animais, e que tem uma ficha impecável. Aqui, novamente observamos a prática de usar as brechas sem fala do filme para “enxugá-lo” na edição. No entanto, nas brechas aqui analisadas temos dois closes (do rosto da capitã e da moto) e a AD fornece ao seu público alvo informações significativas para a construção do perfil da vilã da trama – uma mulher astuciosa, quase cruel, que consegue farejar os animais. Além disso, a personagem é nomeada neste trecho, em 10:36, e só volta a ser nomeada em 12:39. Com a edição, parece erro do roteirista a nomeação feita bem antes do que seria devido, uma vez que as diretrizes existentes recomendam nomear o personagem só depois que ele é efetivamente nomeado na cena. Quanto à descrição de Dubois, observamos que, se o roteirista acompanhasse a edição feita na emissora, a descrição de suas feições poderia ter sido deslocada para outro trecho, quando, por exemplo, ela salta de moto entre dois telhados, ou um pouco mais adiante, quando ela desvia de um ataque dos macacos no velho avião. Em qualquer um desses momentos, entre as minutagens de 14:34 a 14:50, ou entre 14:57 e 15:08 haveria brecha hábil para tal, já que são trechos em que há closes de Dubois e nos quais foram feitas a AD de seu biotipo. Observamos outra edição em uma mudança de cena, que passa da reunião de Alex com a trupe do circo, para uma enfermaria de hospital, como vemos no quadro a seguir, que coteja a AD da versão completa (versão baixada do Youtube) com a editada, exibida na TV:

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TCR

AD Original (filme baixado do youtube)

AD Editada (filme gravado da TV)

43:35

Os ajudantes de Dubois estão em leitos de hospital, com braços, pernas e até o rosto engessados.

43:44

Pilotando a moto vermelha, Dubois entra

Pilotando a moto vermelha, Dubois entra

43:51

Dubois sorri, fica séria e encara os ajudantes adormecidos

Dubois sorri, fica séria e encara os ajudantes adormecidos

Na versão completa do filme, temos um trecho de quase 10 segundos sem fala, quando a câmera passeia pelos ajudantes de Dubois, deitados em leitos de um hospital (mais precisamente, em uma enfermaria). Um deles tem a perna engessada, outro, de óculos escuros, tem parte do rosto enfaixado, e um terceiro está com o rosto todo enfaixado, só com o nariz pontudo de fora. De repente, Dubois irrompe na enfermaria pilotando sua moto vermelha. Ela salta da moto e anuncia que encontrou o leão. Seus ajudantes, no entanto, estão adormecidos. Elas os encara, sorri, fica séria, atira nas lâmpadas do teto e deixa apenas uma acesa, bem acima dela, que a ilumina feito um holofote de palco. Dubois então abaixa os braços e a cabeça e começa a cantar a música ne me quite pas. Na versão editada do filme, a cena se inicia com Dubois pilotando a moto enfermaria adentro e segue, sem mais cortes. De novo observamos a opção de editar o filme nos trechos sem fala. Tal procedimento não afeta a compreensão da cena para o espectador sem deficiência visual, pois, na sequência, as informações sobre o estado dos ajudantes são visualmente retomadas à medida que vão despertando ao som da canção e, pouco a pouco, livram-se das faixas e do gesso com chutes e socos, e arrancam os curativos. Já não podemos afirmar o mesmo para o espectador com deficiência visual, que tem como pista auditiva apenas o ruído de uma moto e a AD, que informa: “pilotando a moto vermelha, Dubois entra”. Como houve uma mudança de cena, da reunião de Alex com a trupe do circo para o hospital, a primeira pergunta que pode vir à mente do espectador com deficiência visual é: “Onde Dubois entrou?”. Esta perda do referencial de lugar pode gerar uma lacuna no entendimento da cena para o público alvo da AD. Além disso, mais uma vez, revela-se problema que poderia ser sanado caso o roteirista acompanhasse a edição. A título de ilustração, a AD poderia ser alterada para, por exemplo: “pilotando a moto vermelha, Dubois entra em uma enfermaria”. E, em seguida: “Dubois sorri, fica séria e encara os ajudantes engessados, adormecidos nos leitos”. 4.3.Análise das edições de “Código de Honra” “Código de Honra” (2011), filme exibido na grade do Supercine da TV Globo, é um drama jurídico de 100 minutos, baseado em fatos reais e com classificação etária para 14 anos. Aborda o caso da seringa segura, mostrando como o escritório Danziger & Weiss encarou o caso contra a máfia de suprimentos de produtos médicos. É protagonizada pelos advogados, sócios e amigos Mike Weis e Paul Danziger, que têm histórias de vida completamente diferentes. Mike é viciado em drogas pesadas e Paul leva uma vida familiar estável, com a mulher grávida do primeiro filho. Os dois aceitam o caso de uma enfermeira contaminada pelo vírus HIV através de uma agulha infectada. Ela defende a comercialização de uma inovadora agulha segura e retrátil, impedindo assim sua reutilização, e Mike e Paul decidem levar o caso aos tribunais. Abraçar esta causa é entrar em uma batalha jurídica contra um grupo de saúde, que na verdade encobre a enorme máfia da indústria farmacêutica.

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Paralelamente à batalha judicial, vemos a luta pessoal de Mike, uma mente brilhante movida pelas drogas, em uma nítida rota de autodestruição. Uma das edições ocorre em um trecho de aproximadamente 13 segundos sem fala, quando Paul e Mike se aproximam de um galpão onde trabalha Dancort, engenheiro que fabrica as seringas seguras. O quadro a seguir coteja a AD da versão completa (versão baixada do youtube) com a editada, exibida na TV. Nele verificamos ainda edições feitas no estúdio, mas que fogem à discussão aqui proposta.

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TCR

AD Original (filme baixado do youtube)

AD Editada (filme gravado da TV)

15:42

Em um outro dia, Paul e Mike chegam a uma fábrica. Paul carrega uma maleta e usa gravata, camisa e calça sociais. Mike usa jaqueta de couro sobre gravata e camisa estampadas e calça de brim. Eles entram em um grande galpão cheio de caixas empilhadas. Uma máquina produz agulhas em série. Um homem a manuseia

Eles entram em um grande galpão cheio de caixas empilhadas. Uma máquina produz agulhas em série. Um homem a manuseia

Na versão completa do filme, a cena, que vai 15:42 a 15:55 mostra os dois sócios chegando à fábrica de Dancort e entrando no galpão onde ele produz as seringas. Na sequência, a partir de 15:56, Paul se apresenta a Dancort, que olha para Mike e pergunta: “ele também é advogado?”. Paul então diz que Mike é sócio dele. Mike e Dancort se cumprimentam e a cena muda para o escritório do engenheiro. Na versão editada, o trecho sem fala e a AD inserida neste trecho (que descreve Paul e Mike) são cortados. Assim, o espectador com deficiência visual fica sem entender o motivo da pergunta de Dancort, uma vez que é uma pergunta pautada por informações estritamente visuais: os trajes de Mike. Ele e Paul têm temperamentos e estilos de vida radicalmente opostos e isso também se reflete no modo como se vestem. Nesta primeira visita a Dancort, Paul carrega uma maleta e usa gravata, camisa e calça sociais – traje sóbrio, culturalmente associado a um advogado. Já Mike usa jaqueta de couro marrom sobre gravata e camisa estampadas e calça de brim – traje casual, despojado e colorido. Ao olhar para Mike, o cliente fica confuso e pergunta se ele também é advogado. De fato, no decorrer deste filme, estruturamos a diferença entre os personagens não só por suas ações, mas também pela descrição física e pelo figurino, sempre que possível. Mike tem cabelo arrepiado, cheira cocaína, tem várias tatuagens pelo corpo, usa roupas coloridas e despojadas, sua casa é o retrato do caos, com a papelada de trabalho em caixotes ou espalhada pelo chão. Já Paul está sempre barbeado e com o cabelo penteado, tem hábitos metódicos, veste-se com sobriedade, mora em uma casa bem decorada. Essas informações vão sendo fornecidas à medida que aparecem, inseridas nos intervalos sem fala, que é o ambiente de trabalho da AD. Cortá-las impede que a AD cumpra o seu papel de traduzir as imagens de forma que o espectador com deficiência visual possa construir seu entendimento da cena e da narrativa fílmica como um todo. Em outro momento, a edição mostra como um único corte pode gerar perda de sincronia entre a imagem e a AD, resultando em informação incorreta. No quadro a seguir, cotejamos a AD da versão completa (versão baixada do youtube) com a editada, exibida na TV: TCR

AD Original (filme baixado do youtube)

AD Editada (filme gravado da TV)

28:09

Detalhe de arranha-céus vistos de baixo cima. Na calçada, Paul e Dancort olham um prédio alto e envidraçado. caminhonete, Mike e Susie dormem. Em sala de reuniões, Paul e Dancort olham grande mesa ovalada de mármore

28:36

Homens de terno e gravata entram na sala de reuniões e tomam seus lugares à mesa. Uma mulher se junta a eles

28:40

para para Na uma uma

A imagem mostra os arranha-céus de baixo para cima. Na calçada, Paul e Dancort olham para um prédio alto e envidraçado. Na caminhonete, Mike e Susie dormem. Em uma sala de reuniões, Paul e Dancort olham uma grande mesa ovalada. Uma mulher se junta a eles.

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Na versão completa do filme, Paul e Dancort olham da rua para o prédio imponente onde vão se reunir com a equipe do advogado que representa uma indústria farmacêutica. Mike e sua assistente chegaram cedo, cheiraram cocaína e adormeceram no carro, estacionado na garagem do prédio. Paul e Dancort chegam à sala de reuniões e admiram uma grande mesa ovalada de mármore. Vários homens trajando terno entram na sala e tomam lugar à mesa. Em seguida, uma única mulher se junta a eles. Assim, observamos que o pronome pessoal no plural (“eles”) refere-se, na verdade, mais à equipe assistente do advogado do que a Paul e Dancort. Na versão editada, chama a atenção o corte preciso de 18 segundos (de 28:22 a 28:40), sugerindo que a edição foi feita com o canal da AD ligado: Primeiro corta-se um predicativo (“ovalada”) e depois uma oração inteira (“Homens de terno e gravata entram na sala de reuniões e tomam seus lugares à mesa”). A próxima oração (“Uma mulher se junta a eles”) é colada à primeira. Assim, a cena editada informa que Paul e seu cliente estão em uma sala de reuniões, olham para uma grande mesa ovalada e uma mulher se junta a eles. O espectador com deficiência visual pode inferir que o pronome pessoal no plural refere-se apenas a Paul e Dancort, uma vez que a edição elimina a AD que informa a entrada da equipe na sala. Mas a informação visual permanece, revelando que a mulher se junta, na verdade, aos outros membros da equipe – os homens trajando terno. Este tipo de edição que gera falta de sincronia entre a imagem e a AD e ainda resulta em informações equivocadas não só impede que a AD cumpra seu papel como também suscita questionamentos acerca da qualidade do trabalho do audiodescritor. A próxima edição ocorre em um trecho de pouco mais de dois minutos, repleto de ações, falas e mudanças de ambientação espacial (cenas), como vemos no quadro a seguir, que coteja a AD da versão completa (versão baixada do youtube) com a editada, exibida na TV: TCR

AD Original (filme baixado do youtube)

AD Editada (filme gravado da TV)

34:04

De sobretudo sobre camisa e calça preta, Mike aborda um homem na rua

De sobretudo sobre camisa e calça preta, Mike aborda um homem na rua

34:18

Ele compra drogas. A cena é vista pelo vidro fumê de um carro estacionado em uma ponte logo acima

Ele compra drogas. A cena é vista pelo vidro fumê de um carro estacionado em uma ponte logo acima

35:09

De novo, a cena é vista pelo vidro fumê de um carro estacionado

De novo, a cena é vista pelo vidro fumê de um carro estacionado

35:15

Mike olha relógios e roupas em um camelô

35:23

Ele pega dinheiro na carteira. O carro estacionado parte. Vista [IMAGEM] de baixo para cima da fachada de um prédio. O sol brilha no céu azul em meio a fiapos de nuvens. A cena muda para um tribunal. De um lado, Price e toda a sua equipe. De outro, Paul está só e olha para trás, para a porta.

35:46

Mike entra. Vicky, a enfermeira com HIV, e os filhos, estão na assistência

35:59

O careca que passou um envelope pardo a Price também está na assistência.

O carro estacionado parte. imagem...

O careca que passou um envelope pardo a Price também está na assistência.

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36:07

Mike vira-se e sorri para Vicky

Mike vira-se e sorri para Vicky

Na versão completa do filme, Mike aborda um homem na rua para comprar drogas e a cena é vista pelo vidro fumê de um carro estacionado nas proximidades. Mike fala ao telefone com Dancort e passeia pelos quiosques de camelôs, onde olha um relógio e um terno de grife, que o camelô diz ser um Armani. A cena muda para a fachada do tribunal, mostra as nuvens se deslocando pelo céu azul, denotando passagem de tempo, e depois passa para o interior do tribunal onde, de um lado vemos Price e sua equipe e, do outro, Paul, que está só e se vira para trás, olhando para a porta. A cena também mostra a enfermeira que contraiu o vírus do HIV, na assistência com os filhos. Mike chega, senta-se ao lado de Paul, que pergunta se ele está de smoking. Mike responde que é um Armani, sugerindo que ele o comprou no camelô. A câmera focaliza um homem careca, de terno, na assistência, e volta para Mike, que toma notas. De repente, Mike se vira e sorri para a enfermeira. O trecho que mostra a fachada e o interior do tribunal, o céu azul com nuvens e a chegada de Mike, até ele sentar ao lado de Paul, é um trecho sem fala, de 24 segundos (de 35:28 a 35:52). Aqui, além de mencionar a fachada do prédio e descrever o céu, a AD nomeia a enfermeira. Depois que Mike senta-se ao lado de Paul, eles trocam algumas palavras e a cena volta a ficar sem falas por mais 18 segundos (de 35:58 a 36:11). É a brecha que a AD encontra para mencionar a presença de um homem careca de terno, que é feita por dois motivos: Primeiro, em uma cena anterior no escritório de Price (o advogado de uma indústria farmacêutica), este homem lhe passou um envelope. Segundo, em um diálogo posterior, também com Price, este mesmo homem afirma que a situação pode tomar rumos desagradáveis se não for contida, sugerindo que ele é o elo com a máfia dos medicamentos. Só essas duas ocorrências, fornecidas pela estrutura narrativa do filme, já nos levariam a apontar sua presença na assistência. E a linguagem cinematográfica nos fornece mais uma pista da relevância da presença deste homem na assistência, pois mostra nitidamente seu rosto e retira o foco do rosto de duas pessoas perto dele. Assim, mesmo sem descrever o recurso de enquadramento fornecido pela linguagem cinematográfica, ele reforça a decisão do audiodescritor de acusar a presença do homem careca na assistência, conforme observamos na Figura a seguir.

Figura ilustrativa da utilização de um recurso da linguagem cinematográfica.

A figura retrata uma cena do filme. De terno e gravata escuros, o homem careca que esteve no escritório de Price está sentado em um dos bancos da assistência de um tribunal. Ele está sério, com o olhar fixo em um ponto. Perto dele, há dois homens sentados – um no

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banco de trás e outro no banco da frente. O enquadramento da câmera focaliza o rosto homem careca com nitidez. Já os dois homens perto dele estão com os rostos desfocados. A versão editada apresenta uma sucessão de cortes e recortes, que comprometem a coesão e a coerência da AD. A edição manteve uma informação considerada relevante: a de que Mike é visto comprando drogas. No entanto, optou por cortar o passeio de Mike pelos quiosques de camelôs, a descrição do dia e da fachada do prédio. Por ser uma edição delicada, onde se manteve uma única oração de uma longa sequência narrativa, observamos os seguintes efeitos sobre a AD: Primeiro, ao fundo, ouve-se parte da AD que foi cortada, mas perde-se o referencial da mudança de ambientação espacial (em 35:23). A cena muda da rua para o tribunal, sem nenhum referencial desta mudança, apenas a palavra “assistência”, como é possível observar na sequência das ADs na versão editada: “o carro estacionado parte”; “o careca que passou um envelope pardo a Price também está na assistência”. Em segundo lugar, elimina-se a AD que nomeia Vick, mas mantém-se a seguinte, em que ela é identificada apenas pelo nome, sem fazer conexão com o fato de ser a enfermeira com HIV. Por fim, como a AD que menciona o homem careca vinha após a que nomeia a enfermeira, a AD utilizou a conjunção coordenativa aditiva “também”, que funciona, ainda, como advérbio de inclusão. Seu uso sinaliza para uma relação de interdependência entre as duas orações: “Vick está na assistência e o careca também está”. Esta interdependência se perde ao se cortar uma das orações, gerando quebra na fluência e coerência do todo. Aqui levantamos a hipótese de que, talvez, textos mais telegráficos e/ou bem mais enxutos, sem grandes detalhamentos, sejam mais adequados para atender as demandas deste veículo que corta, recorta, e volta a juntar as cenas em um único trecho da narrativa fílmica. Estes e outros trechos, analisados na pesquisa original, revelam, portanto, os vários problemas recorrentes e decorrentes de uma edição feita na etapa de pós-produção da AD, sem o acompanhamento de um profissional na área. 5.Considerações Finais Esta pesquisa, pautada pela prática da roteirista e embasada pela teoria de estudiosos da AD que a inserem nos Estudos da Tradução e estabelecem uma interface com elementos da Narrativa Fílmica, teve como objetivo analisar se a edição pode (ou não) afetar a coesão, coerência e fluidez do roteiro de AD e comprometer a fruição e o entendimento de cenas ou da trama. De um modo geral, a edição parece ser uma das linhas não tão tênues que separa a TV do Cinema. Afinal, nos casos em que o enxugamento do filme para caber na grade da programação lhe confere uma nova roupagem, o espectador, com ou sem deficiência, se vê privado da possibilidade de fruição da estética cinematográfica, observada nos enquadramentos, planos e montagens. A edição pode também privar todo e qualquer espectador de sequências inteiras que são cortadas, ficando disponíveis apenas no telão do cinema. A TV revela-se, portanto, um outro veículo, com outra linguagem. São outros modos de ver. A partir da constatação de que, na TV, editar um filme com AD é editar o roteiro de AD, os achados revelam o corte preciso, quase cirúrgico da edição, que recorta e junta palavras e orações, sugerindo que ela é feita com o canal da AD aberto. Os filmes escolhidos, talvez por serem de gêneros diferentes (drama e aventura), apontam para resultados diversos diante da edição no roteiro de AD. Em filmes de ação e aventura, recortar trechos que não acrescentam informação nova parece conferir uma roupagem mais ágil à trama. Já em filmes com uma trama psicológica mais densa, qualquer recorte pode causar uma aparente desordem na narrativa fílmica, uma vez que os mínimos gestos e as menores ações são importantes à compreensão do todo. Mesmo assim, independente do gênero, em vários momentos o

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espectador com deficiência visual é compelido a fazer inferências sobre diversas cenas editadas apenas com base nas falas dos personagens, na trilha e nos ruídos. Nesses momentos, a edição não permite que a AD cumpra o seu papel de traduzir as imagens em palavras e conferir a acessibilidade. Semelhante ao olhar que Alves, Teles e Pereira (2011) lançam sobre o audiodescritor, observamos que o profissional de edição literalmente edita o que vê, visando priorizar a informação que considera mais relevante à compreensão e apreciação da trama. Ou ainda, tal qual quando associamos o audiodescritor ao leitor de Barthes (1987), vemos que o editor também interpreta e ressignifica as imagens e todos os elementos (visuais e auditivos) que vão tecendo a narrativa fílmica. Ele observa e busca compreender o filme como um todo para pinçar os elementos que considera mais relevantes a uma leitura fluente da obra como um todo. Ou seja, o editor também interpreta essas imagens ao cortar e recortar a cena. No entanto, aí reside um dos maiores desencontros entre o ofício do editor e do audiodescritor roteirista, pois, segundo nossos achados, o editor vê os trechos sem fala como brechas relevantes e preciosas para os cortes e recortes, enquanto o audiodescritor vê esses mesmos trechos como brechas igualmente relevantes e preciosas para inserir informações que tornem o filme acessível ao seu público alvo. Em muitas das situações, observamos que as perdas de coesão, coerência, fluência e fluidez decorrentes da edição poderiam ser contornadas se um profissional da AD acompanhasse a edição na emissora. Elaborar o roteiro de AD após a edição do filme para caber na grade seria uma hipótese. No entanto, a agilidade da TV e a fluidez das grades da programação inviabilizam esta opção. Sem dúvida, os achados requerem um corpus maior, mais pesquisas e testes de recepção. Pesquisas que investiguem como é feita a revisão nos estúdios e como efetivamente se processa a edição nas emissoras; testes de recepção com o filme audiodescrito antes e depois da edição da emissora, para confirmar se certas edições seriam percebidas de forma semelhante, ou não, pelo público com e sem deficiência visual. Estes seriam alguns dos possíveis desdobramentos para pesquisas futuras. É igualmente importante que tanto os usuários quanto os profissionais deste recurso de acessibilidade conheçam a realidade do mercado da AD de filmes para TV e, por extensão, da programação pré-gravada de um modo geral, pois, apesar de ser um mercado em franca expansão, percebe-se, ainda, uma clara falta de sintonia entre a edição feita pela TV e a audiodescrição. Afinal, a edição corta onde a audiodescrição insere, ou seja, a edição ocorre justo no ambiente de trabalho do recurso – os trechos sem fala – instaurando aí um conflito de objetivos em áreas de trabalho que deveriam ser complementares. Se editar é preciso e inevitável, se a TV é um veículo pautado por um ritmo de trabalho industrial, pela agilidade da tela que tudo vê, é preciso que ela também enxergue o audiodescritor e a acessibilidade que ele instaura com seu ofício. O ideal seria que as emissoras tivessem um departamento interno, exclusivo para a produção de conteúdo acessível. Esta junção de saberes só aumentaria a probabilidade de se fazer um trabalho mais amplo, que atingisse seus objetivos sem se ater a gostos pessoais ou ficar engessado por leis que precisam ser cumpridas. Sem isto, resta ao audiodescritor se instrumentalizar para ser capaz de tomar as melhores decisões e encontrar meios de driblar esses cortes e recortes que incidem justamente sobre o ambiente de trabalho da AD. E os achados sugerem que, talvez, roteiros mais enxutos e menos detalhados possam atender melhor a este nicho específico de mercado, visando minimizar os prejuízos de uma acessibilidade que não se cumpre na sua totalidade. Esperamos que esta pesquisa contribua para se (re)pensar o status da AD na cadeia de produção da TV, instaurando novas formas de ver e pensar a AD neste veículo, buscando viabilizar a acessibilidade plena nesta grande tela onde a vida espoca em flashes e

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reflete um mundo cada vez mais imagético. Afinal, a TV é olhar que reflete o mundo, a sociedade, o indivíduo – ela atua do macro ao microcosmo. Tal alcance gera responsabilidade social. No entanto, contemplar a diversidade ainda se mostra uma pauta em aberto. Referências Bibliográficas: ALVES, Soraya; TELES, Veryanne; PEREIRA, Tomás. Propostas para um modelo brasileiro de audiodescrição para deficientes visuais. Revista Tradução e Comunicação. N. 22, 2011. Disponível em: http://sare.unianhanguera.edu.br/index.php/rtcom/article/view/3158 Acesso em 09maio2015. ARAÚJO, Vera L. S. A formação de audiodescritores no Ceará e em Minas Gerais: Uma proposta baseada em pesquisa acadêmica. In: MOTTA, Lívia M. V. M. e FILHO, Paulo R. Audiodescrição: Transformando Imagens em Palavras. São Paulo: Secretaria do Direito da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, 2010, p. 93-105. BALLESTER, Ana. Directores en la sombra: personajes y su caracterización en el guión audiodescrito de Todo Sobre Mi Madre (1979). In: JIMENEZ HURTADO, Catalina. (ed.) Traducción y acessibilidad. Subtitulación para sordos y audiodescripción para ciegos: nuevas modalidades de traducción audiovisual. Frankfurt: Peter Lang, 2007, p. 133-152. BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987 BRAGA, Klístenes B. Filme de Arte acessível. A Audiodescrição de O Grão. In: ARAÚJO, Vera L. S.; ADERALDO, Marisa F. Os novos rumos da pesquisa em Audiodescrição no Brasil. Curitiba: CRV, 2013, p.135-149. BRAUN, Sabine. Audiodescription research: state of the art and beyond. Translation studies in the new millennium, v. 6, p. 14-30, 2008. Disponível em: http://epubs.surrey.ac.uk/303022/1/fulltext.pdf Acesso em 10maio2015 COSTA, Larissa M. Audiodescrição em Filmes: História, Discussão Conceitual e Pesquisa de Recepção. Tese de Doutorado em Letras/Estudos da Linguagem. Faculdade de Letras, PUC-Rio, 2014, disponível em: http://www2.dbd.pucrio.br/pergamum/tesesabertas/1012057_2014_pretextual.pdf Acesso em 10maio2015 FARIAS, Sandra R. R. Audiodescrição e a poética da linguagem cinematográfica: um estudo de caso do filme Atrás das Nuvens. Tese de Doutorado em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/13023/3/SANDRA%20REGINA%20ROSA.pdf JAKOBSON, Roman. Aspectos Linguísticos da tradução. Linguística e comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1991. JIMENEZ-HURTADO, Catalina.; RODRÍGUEZ, Ana.; SEIBEL, Claudia. Un corpus del cine. Teoria y practica de la audiodescriptión. Granada: Tragacanto, 2010. NÓBREGA, Jéssica B. Comparação Entre Dois Tipos de Roteiro de Audiodescrição - Um Estudo Descritivo e Exploratório. Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada. Centro de Humanidades, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2014. Disponível em:

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