Rousseau e a imaginação espectatorial

June 5, 2017 | Autor: Claudio Reis | Categoria: Imagination, Adam Smith, Jean-Jacques Rousseau, Jean Jaques Rousseau, Moral Sentiments
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1 ROUSSEAU E A IMAGINAÇÃO ESPECTATORIAL (Texto apresentado no Colóquio Internacional Rousseau 300 Anos Setembro de 2012) A crítica de Rousseau aos espetáculos é complexa: envolve uma diversidade de camadas e remete a questões que vão bem além da tradicional querela conservadora contra o teatro e sua influência sobre os costumes. Tem, por exemplo, uma dimensão política óbvia, na medida em que se insere na prolongada polêmica rousseauniana com o grupo dos philosophes (e com Voltaire em particular) e que reflete o envolvimento de Rousseau com questões de política interna e externa de sua Genebra natal. Tem uma dimensão estética, por sua inserção nos debates correntes em torno da dramaturgia, da arte do ator e da representação, por exemplo. E tem um alcance filosófico importante, tangenciando questões centrais para o pensamento rousseauniano, trazendo contribuições significativas para sua reflexão sobre a natureza da sociabilidade e da moralidade. Neste texto, são essas implicações da crítica ao teatro para a questão sobre a natureza da sociabilidade e da moralidade que vão me interessar. Muitos intérpretes de Rousseau já associaram a crítica ao teatro exposta na Carta a d’Alembert com a crítica mais ampla ao que poderíamos chamar de “teatralidade”, inclusive na vida social, crítica que Rousseau desenvolve em inúmeros lugares em suas obras (trata-se, de fato, de um de seus temas centrais)1. Não é meu objetivo aqui retomar os termos dessa crítica da teatralidade, mas é importante lembrar neste ponto o alcance que essa crítica pode ter: dado que a própria possibilidade da vida social está vinculada à transformação, por assim dizer, dos indivíduos em “espectadores” uns dos outros, criticar a teatralidade pode levar a pôr em cheque toda a vida social, atingindo-a em sua essência mesma. É bem conhecida a equação rousseauniana entre “tornar-se mau” e “tornar-se sociável”, o que é um dos possíveis desdobramentos de sua tese sobre a bondade natural do homem e do seu tratamento da figura modelar do “homem natural”. Isso implica 1

Para lembrar alguns: Marshall (1988), Fortes (1997), Garcia (1999), Prado Jr. (2008). O tema aparece também em comentários clássicos, como os de Starobinski (1971), Burgelin (1973) e Baczko (1970).

2 diretamente a discussão em torno do amor próprio, cuja complexidade vai bem além do contraste simplista que às vezes se quer estabelecer entre essa noção e a de amor de si. Não entrarei, no entanto, nessa discussão2. Meu objetivo aqui é mais restrito: a partir dessa crítica ao teatro em Rousseau, indicar um possível contraste entre o que chamaria de dois modelos do juízo moral, ambos, em alguma medida, presentes na obra rousseauniana. Um desses modelos explora a metáfora do espectador e vai ser amplamente (e exemplarmente) desenvolvido, por exemplo, na teoria dos sentimentos morais de Adam Smith, no final do século XVIII3. O outro modelo, por sua vez, elabora-se em torno da metáfora do contágio ou da expansão e se articula de forma importante com a teoria rousseauniana do sentimento. Ambos se tocam ao reservar a um sentimento peculiar – simpatia, piedade ou equivalente – e, em parte, à imaginação um papel-chave na descrição e na explicação de nossa experiência moral, mas se afastam significativamente, em um sentido que é justamente meu objetivo explorar aqui. ********************** A teoria moral de Adam Smith, como bem observa Jonas Barish, é uma “construção essencialmente teatral”, que “põe a condição espectatorial no centro da experiência moral”4. De fato, a metáfora teatral organiza toda a sua Teoria dos sentimentos morais. Para Smith, é sob os olhos dos demais que nos tornamos sujeitos morais. Essa ideia, no século XVIII, não é totalmente original5. Por um lado, é uma elaboração da velha metáfora do theatrum mundi. Por outro, é um aspecto do entrelaçamento peculiar que podemos observar, no setecentos, entre a teoria moral e a teoria social (ou, se quisermos, entre as questões sobre a moralidade e sobre a 2

Um dos tratamentos mais interessantes dessa complexidade está em Dent (1988). Smith (1984). Ver ainda Griswold Jr. (1999), Raphael (2007). O livro de Smith é publicado pela primeira vez em 1759, 1 ano antes, portanto, da Nova Heloísa e 3 antes do Contrato social e do Emílio. Smith conhecia o Discurso sobre a origem da desigualdade, sobre o qual escreveu uma espécie de resenha. Os pensamentos de Smith e Rousseau opõem-se em diversos pontos fundamentais, o que torna ainda mais interessante a reflexão sobre alguns dos pressupostos comuns de suas psicologias morais, herdados de seu background filosófico comum. 4 Barish (1981), p. 244. Ver também Marshall (1986). 5 A figura do “espectador” desempenha um papel importante também nas éticas de Francis Hutcheson e de David Hume, duas referências importantes para a formação do pensamento moral de Smith. Nessas teorias, a ênfase no espectador (e não no agente) como referência para a teoria do juízo moral correspondia simultaneamente, segundo Raphael (2007), a uma tendência empirista (contrastando com a ênfase no agente que seria dada por teorias de pendor racionalista) e a uma estratégia para refutar as éticas que pressupunham uma psicologia egoísta. 3

3 sociabilidade), que encontramos em inúmeros pensadores de época, para os quais não se pode explicar como a vida moral é possível para o homem sem, ao mesmo tempo e apelando para os mesmos mecanismos, explicar o estabelecimento de laços sociais entre os indivíduos. Esse ponto em comum entre a explicação da sociabilidade e a explicação da moralidade remete, fazendo um esboço um pouco grosseiro, à peculiar sensibilidade dos indivíduos à apreciação por parte dos outros, que se manifesta, por exemplo, no desejo de reconhecimento, de aprovação e, no limite, de admiração. A esse desejo, Arthur Lovejoy, em seu Reflections on Human Nature, chamou de approbativeness – que designa o gênero mais amplo a que pertence, por exemplo, aquilo a que os teóricos do século XVIII frequentemente se referiam com o nome de “amor próprio”6. A posição central que a psicologia do amor próprio veio a assumir nas explicações dos fenômenos da sociabilidade e da moralidade remete, por sua vez, à forma peculiar como essas questões foram postas e abordadas pelos filósofos pelo menos desde o século XVII7. Em linhas gerais – e mais uma vez correndo o risco de simplificações grosseiras –, a questão era a de pensar, a partir da perspectiva do indivíduo, como é possível que surja uma ordem moral, social e política. A perspectiva do indivíduo aqui é uma chave importante: a princípio, esse ponto de vista desvela antes uma perspectiva de desordem do que de ordem. Como é possível que indivíduos, movidos pelo interesse básico em si mesmos, gerem mais do que conflito e desordem? É preciso que haja uma “força”, de algum tipo, que faça a ordem surgir independentemente das intenções individuais (ou que “use” as intenções individuais, por natureza autocentradas, de modo a produzir uma ordem). Pierre Nicole, em um conhecido ensaio intitulado De la charité et de l’amour-propre (1675), desenvolve em direção interessante essa tese (que, no seu caso, como se sabe, tem raízes pascalianas). Argumenta que nada é mais parecido à caridade em seus efeitos do que o amor próprio, embora caridade e amor próprio, por suas naturezas, oponham-se radicalmente. Em determinada altura do ensaio, faz uma analogia entre o “mundo espiritual formado pela concupiscência” e o “mundo material formado pela natureza”, usando categorias da física cartesiana. Indivíduos, impulsionados pelo amor próprio, formam “grandes turbilhões” (como os Estados e os reinos, diz

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Lovejoy (1961). Ver, sobre isso, Reis (1999).

4 Nicole), assim como as partes da matéria, agindo umas sobre as outras, formam, no limite, os vastos turbilhões que explicam a ordem do movimento do mundo8. Mostrar que o amor próprio (à primeira vista intrínseca e essencialmente comprometido com a desordem) pode ser visto, por outro lado, como dando origem a uma ordem (ainda que a ordem da concupiscência) é especialmente engenhoso. A teoria dos sentimentos morais de Adam Smith (mas também sua teoria econômica, exposta na Riqueza das Nações) elabora essa tese, ajustando alguns aspectos que lhe pareciam inaceitáveis (nesse sentido, sua discussão com Mandeville, que defendia uma versão “paradoxal” do papel da psicologia do amor próprio na explicação da vida social e moral, é especialmente interessante e instrutiva9). O ponto de partida é o que poderíamos chamar de “fato da separação”. Laços morais e sociais se estabelecem entre indivíduos que estão não apenas fisicamente, mas também, à primeira vista, psicologicamente separados. Indivíduos, supõe-se, são egoístas e egocêntricos: não apenas seus interesses os separam, mas, também, há a questão da assimetria entre o acesso que cada um tem a suas próprias experiências e o que tem às experiências dos demais. Se os indivíduos não forem capazes, em algum sentido e em alguma medida, de apreender adequadamente o mundo de outro (o que implica apreender o outro como sujeito de experiências como as suas próprias), então o estabelecimento do tipo de laço próprio às relações morais e sociais (que pressupõem, por exemplo, determinadas expectativas e exigências recíprocas) seria impossível. Smith, como é bem conhecido, propõe que essa distância entre os indivíduos pode ser, de alguma forma, transposta graças ao que chamou de simpatia. A simpatia não é simplesmente compaixão ou benevolência, entendendo essas coisas como impulsos altruístas, que contrabalancem ou anulem os efeitos mais perniciosos do egoísmo. A simpatia é, antes de mais nada, o nome que dá à capacidade dos indivíduos de apreenderem os outros como “seres como nós”. Nesse sentido, “simpatia” não nomeia

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Nicole (1999), p. 381-415. Na Teoria dos sentimentos morais, a discussão com Mandeville, embora ecoe em diversas partes do texto, está sobretudo concentrada no Capítulo IV da Seção II da Parte VII da obra; ver Smith (1984), p. 306-314. 9

5 primariamente uma paixão ou um sentimento, mas, antes, uma faculdade estreitamente relacionada com a imaginação10. Efetivamente, diz Smith, nossos sentidos são limitados: nunca nos levam para além de nossa própria experiência. É apenas pela imaginação, diz ele, que somos capazes de nos pôr na situação do outro. Esse “pôr-se na situação do outro” é essencial: não se trata de apreender (de sentir em mim) os sentimentos do outro, mas, por assim dizer, de entrar na situação do outro, de imaginar-me na situação do outro. Sentir simpatia exige o intermédio da representação, da imaginação. O mecanismo envolvido é análogo ao que nos leva a nos identificar com personagens literários ou históricos: pela imaginação, diz Smith, nós nos tornamos a pessoa mesma cujas ações são representadas para nós11 (impossível não lembrar aqui algumas experiências de Rousseau, desde suas leituras infantis de Plutarco até as incorporações de personagens que narra em diversos momentos de suas Confissões). A analogia entre o papel da imaginação na leitura e nas situações morais e sociais sugere, finalmente, que, estejamos diante de um texto ou de uma outra pessoa, estamos, finalmente, diante de uma espécie de ficção12. Essa sugestão ganha contornos mais interessantes e mais ricos quando levamos em conta que essa relação espectatorial, mediada pela imaginação, é simétrica, ou seja, está sujeita a um efeito de “espelhamento”, por assim dizer (se o espectador se identifica com o ator, também o ator se identifica com o espectador). O ator sabe que está diante de um espectador e, em geral, quer sua simpatia. Sabe também que essa simpatia depende de um ato de imaginação do espectador e que nunca será completa (a relação espectatorial, por mais que a imaginação preencha a distância entre ator e espectador, nunca supera completamente o fato da separação). Isso faz com que a simpatia tenha uma “função social”, sugere Smith, na medida em que atores e espectadores se esforçam, nesse jogo de conquista da simpatia e de facilitação do mecanismo da imaginação, a “sintonizar” mutuamente sua expressão, por parte do ator, e sua apreensão, por parte do espectador. Ao ator, em particular, cabe afinar (Smith fala em moderar) suas paixões, de modo a se

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Sobre tudo isso, ver Griswold Jr. (1999), especialmente capítulo II. Ver, por exemplo, Smith (1984), Capítulo V, Seção I, Parte II, p. 74/75. 12 Marshall (1986), p. 171. 11

6 tornar mais facilmente apreensível pelo espectador. E nesse esforço, tornando-se espectador de seu espectador, acaba tornando-se igualmente espectador de si mesmo13. O efeito de espelhamento, que decorre dessa condição de estarmos constantemente nos vendo sob os olhos dos demais e nos imaginando em seu lugar, tem como resultado a internalização do olhar do espectador. Somos ao mesmo tempo atores e espectadores de nosso próprio “personagem”. É importante perceber que esse efeito de espelhamento é resultado, afinal, de duas condições essenciais para entendermos a situação em que estamos em nossas relações sociais e morais: de um lado, estamos separados, distanciados, sem acesso direto ao outro; por outro, ansiamos por sua simpatia e seu reconhecimento – ou seja, ansiamos pela superação da distância. Na situação em que a simpatia opera, em suma, pessoas estão diante umas das outras como atores e espectadores, separados por uma distância teatral (separados tanto uns dos outros como de si mesmos, na medida em que aquele desdobramento nos transforma em espectadores de nós mesmos). Ao mesmo tempo, a simpatia promove, em algum grau, a possibilidade de “transporte”, de “transferência” (e, mesmo, de identificação, em alguns casos) – mas isso apenas “imaginativamente”. É nesse espaço imaginário que se estabelecem os laços de sociabilidade e as relações que nos definem como sujeitos morais (como atores e como juízes). Em certa medida, a introdução da figura do “espectador imparcial” no modelo espectatorial proposto por Smith é uma compensação para essa teatralidade que parece caracterizar essencialmente a vida social e moral, que se desenrola, segundo o modelo, naquele espaço imaginário que se constitui no cruzamento dos vários olhares dos atores e dos espectadores, com o efeito de espelhamento tipicamente implicado nas relações que aí se estabelecem. No entanto, se os eventuais excessos da teatralidade ficam compensados, o modelo espectatorial permanece intocado (na verdade, aparece reforçado) com a introdução dessa figura peculiar14.

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Ver, por exemplo, Smith (1984), Capítulo IV, Seção I, Parte I, p. 19-23. Também é relevante a discussão sobre a consciência na Parte III. Esses efeitos de espelhamento não deixam de evocar a estrutura da obra Rousseau juge de Jean-Jacques: Dialogues, que implica, toda ela, uma concepção espectatorial do funcionamento do juízo moral. 14 Não seria possível desenvolver aqui os detalhes da argumentação que sustenta essa tese – argumentação que Marshall (1986) apresenta em seu estudo sobre Smith e cuja conclusão reproduzimos: “In The Theory of Moral Sentiments, sympathy comes to mean both theater and the only means of defeating

7 O modelo espectatorial desenvolvido na teoria dos sentimentos morais de Smith, em suma, implica uma teatralidade forte, com amplas consequências para a compreensão da sociabilidade e da moralidade. Rousseau, como se sabe, é extremamente sensível à teatralidade da vida social. Sua abordagem, no entanto, a princípio, não se afasta do modelo predominante no século XVIII, que enfatiza, justamente, a approbativeness como mecanismo básico de sociabilização (e de “moralização”) do indivíduo, mas, justamente por essa extrema sensibilidade aos aspectos teatrais de nossa experiência social e moral, com o potencial de perigo que representa para a integridade do indivíduo, acaba dirigindo-se para uma outra direção. No núcleo da explicação que Rousseau fornece da possibilidade da vida social e moral está implicado um jogo complexo entre os conceitos de amor de si, piedade e amor próprio. Dos três, vai-me interessar aqui o conceito-chave de piedade, que se ramifica, em algum sentido, em direção aos outros dois. Há nuances na forma como Rousseau examina, em suas diversas obras, a piedade. A formulação inicial, no Discurso sobre a origem da desigualdade, atrela a piedade estreitamente ao amor de si. Piedade (entendida como a “repugnância natural a ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes”) e amor de si (entendido como o princípio que nos porta a interessar-nos ardentemente por nosso próprio bem-estar e por nossa própria conservação) são “dois princípios anteriores à razão” 15 e estão ligados um ao outro, de tal maneira que o primeiro funciona como um freio do segundo (não podemos nos esquecer que essa tese se insere no contexto da polêmica de Rousseau contra Hobbes)16. Já aí, Rousseau aponta para a necessidade de identificação para que o circuito da piedade se feche. É preciso, ele diz, que o “animal espectador” (e é significativo que ele use a palavra “espectador”) se identifique com o “animal sofredor”. No Discurso sobre a origem da desigualdade, sabemos, Rousseau sustenta que essa identificação será tanto mais forte quanto menos desenvolvida estiver a reflexão. A reflexão (e o jogo de espelhamento que Smith identifica no mecanismo da simpatia é ou implica uma forma de theater. It is only through theater that we can escape the intolerable situation that theatricality itself creates” (p. 192) 15 Rousseau (1959-1995), v. 3, p. 125/126. 16 Op. Cit., p. 153 ss.

8 reflexão) cria afastamento, e a piedade, como princípio anterior à razão, tem uma certa imediaticidade. É um impulso (Rousseau fala de um “puro movimento da natureza”) que elimina as distâncias – mas, também, não cria, propriamente, laços entre os indivíduos (a piedade não constitui um princípio de sociabilidade natural). Efetivamente, para que laços sejam estabelecidos, é preciso que alguma distância exista e seja significativa. Mas abrir essa distância é abrir justamente a brecha para o cultivo do amor próprio. Aqui se abre toda uma outra perspectiva que apenas evoco, mas que não seria neste espaço possível explorar adequadamente. Um segundo tratamento da piedade, ligeiramente diferente, aparece no Ensaio sobre a origem das línguas. Se no Discurso sobre a origem da desigualdade a ênfase era na conexão entre amor de si e piedade, que aparecia, assim, como “virtude natural”, como um impulso natural primordial, pré-racional, inconsciente mesmo, no Ensaio sobre a origem das línguas ela já aparece como “afecção social”. Essa passagem de “virtude natural” para “afecção social” se dá, justamente, pelo intermédio da imaginação. Lá diz Rousseau: “A piedade, embora natural no coração do homem, permaneceria eternamente inativa sem a imaginação que a põe em marcha” 17. A imaginação, ausente no tratamento dado à piedade no Discurso sobre a origem da desigualdade, entra em cena – e, ao mesmo tempo, “monta” a cena. Rousseau diz um pouco mais adiante, na mesma passagem citada: “Aquele que não imagina nada só sente a si mesmo; está só no meio do gênero humano”. O espaço aberto pela imaginação, como em Smith, é justamente o espaço das relações espectatoriais – é o espaço da cena, do teatro da vida social. Há ainda um terceiro tratamento da piedade no Livro IV do Emílio – não por acaso o livro que vai tratar do desenvolvimento das afecções sociais. No Emílio, a piedade é descrita como “o primeiro sentimento relativo que toca o coração do homem segundo a ordem da natureza”18. Mais uma vez, na abordagem do Emílio, Rousseau aponta o papel desempenhado, nessa relação, pela imaginação (“Alguém só se torna sensível quando sua imaginação se anima e começa a transportá-lo para fora de si mesmo”19). Mas, ao mesmo tempo, enfatiza o aspecto “natural”, “impulsivo” da piedade. A piedade, entendida como “sentimento relativo”, inclui um elemento quase maquinal, 17

Rousseau (1959-1995), v. 5, p. 395/396. Rousseau (1959-1995), v. 4, p. 505. 19 Op. Cit., p. 506. 18

9 como o apego que liga a criança à sua nourrice, que é, diria Rousseau, um simples efeito expansivo do amor de si mesmo20. Esse primeiro movimento expansivo já é um movimento que leva o indivíduo, por assim dizer, “para fora” de si mesmo, mas de maneira significativamente diferente do que acontece na dinâmica do amor próprio (ou, em geral, na dinâmica das relações espectatoriais), em que esse “sair de si” aparece, finalmente, no limite, como alienação. Lembremos que um dos mais graves efeitos dessa alienação é a perda de contato consigo mesmo – o indivíduo “alienado” só sente sua própria existência por intermédio da opinião dos outros (é, por assim dizer, tragado pela teatralidade típica e própria da approbativeness). Essa aparição da ideia de expansão é estratégica. Imaginação supõe a distância espectatorial: a imaginação, sendo a faculdade que permite passar por sobre essa distância, supõe justamente a existência dessa distância, que condiciona a teatralidade das relações sociais, com todo o potencial que isso implica. Pela imaginação, o indivíduo sai de si mesmo. Cobrir essa distância como espectador implica pôr-se no lugar do outro – implica, portanto, deslocar-se, e esse deslocamento tem sempre os seus riscos (risco de perder-se na opinião, risco de afastar-se da fonte de valor, que está no coração). A ideia de expansão mantém a referência à superação da distância, sem, porém, perder de vista o contato consigo mesmo: ao expandir-se, afasta-se de si sem sair de si, e, mais importante, sem perder contato consigo mesmo. Seria preciso perguntar-se aqui o que é que se expande e o que é esse “consigo mesmo” com o que se mantém ainda o contato. Em última instância, isso é o sentimento da existência. Não me deterei a explorar essa noção fundamental da filosofia rousseauniana, mas é preciso dar alguma atenção aqui à noção de sentimento. Mais geralmente, o que vai me interessar é uma noção introduzida em uma passagem especialmente interessante dos Dialogues. Nessa passagem, Rousseau introduz a ideia de uma sensibilidade moral, que pode se manifestar de mais de uma maneira. Posta em conexão com a questão que está me interessando aqui, a sensibilidade moral pode ser vista como uma resposta aos problemas postos pelo modelo espectatorial do juízo moral.

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Op. Cit., p. 492.

10 Vou me permitir aqui citar a passagem dos Dialogues em que Rousseau introduz a noção, embora seja um trecho um pouco longo: Há uma sensibilidade física e orgânica, que, puramente passiva, parece ter por fim apenas a conservação de nosso corpo e a de nossa espécie por meio das direções do prazer e da dor. Há uma outra sensibilidade, que eu chamo ativa e moral, que é apenas a faculdade de ligar nossos afetos [affections] a seres que nos são estranhos. Essa, da qual o estudo dos pares de nervos não dá o mínimo conhecimento, parece oferecer com relação às almas uma analogia bastante clara com a faculdade atrativa dos corpos. Sua força é proporcional às relações que sentimos entre nós e os outros seres, e, segundo a natureza dessas relações, ela age tanto positivamente por atração, quanto negativamente por repulsão, como um ímã por seus pólos. A ação atrativa é obra simples da natureza que procura estender e reforçar o sentimento de nosso ser; a negativa ou repulsiva, que comprime e encolhe o do outro, é uma combinação que a reflexão produz. Da primeira nascem todas as paixões amáveis e suaves, da segunda, todas as paixões odiosas e cruéis. (...) A sensibilidade positiva deriva imediatamente do amor de si mesmo. É muito natural que aquele que se ama procure estender seu ser e seus gozos e apropriar-se por ligação [attachement] daquilo que ele sente dever ser um bem para ele: isso é um puro ato de sentimento, para o qual a reflexão não contribui em nada. Mas tão logo esse amor absoluto degenera em amor-próprio e comparativo, ele produz a sensibilidade negativa (...).21 A analogia com o campo magnético é muito significativa. À descontinuidade e à distância que dá sentido à metáfora espectatorial substitui-se uma imagem de continuidade e de integração. A sensibilidade moral positiva, que circula, quase como uma substância, entre os indivíduos, é mais (ou faz mais) do que a simpatia no modelo espectatorial de Smith, sem intermediações (o papel da imaginação, inclusive, é transformado, diminuído mesmo). O próprio modelo espectatorial parece problematizado, na medida em que a distância que definia a diferença entre a posição do ator e a do espectador desaparece. Mas essa problematização é interessante para Rousseau. Mais do que isso: dada a ambiguidade que está inscrita no modelo espectatorial, com sua abertura para a teatralidade, essa problematização, do ponto de vista de Rousseau, é um resultado desejado e bem-vindo. Se o Emílio, ao tratar da piedade, alude já à ideia de expansão, não é, no entanto, em suas grandes obras teóricas que Rousseau vai desenvolver mais extensamente a noção. É, na verdade, em seu romance que a noção de expansão, associada à 21

Rousseau (1959-1995), v. 1, p. 805/806

11 sensibilidade moral positiva, vai ganhar destaque – mais do que isso, vai funcionar como um princípio organizador da obra. Em particular, Julie, o foco em torno do qual se desenrola toda a ação do romance, pode ser vista como a personificação mesma da sensibilidade moral positiva. Se, no modelo espectatorial, a situação paradigmática é a ilustrada pelo palco, em que atores estão diante de espectadores, espelhando-se por sobre uma distância que torna justamente possível o estabelecimento da relação, nesse modelo alternativo da expansão podemos pôr como situação paradigmática a célebre descrição, na terceira carta da quinta parte da Nova Heloísa, da matinée à l’anglaise22. A passagem é bem conhecida: SaintPreux descreve a Milord Édouard o prazer delicado e sutil de uma cena doméstica na casa dos Wolmar. O ponto a que me interessa chamar atenção é o da “suave influência” da “alma expansiva” de Julie, que, diz Rousseau, “triunfa sobre a própria insensibilidade”. A insensibilidade aqui é o traço característico do personagem de M. de Wolmar, e esse triunfo da sensibilidade moral positiva de Julie é significativo. Wolmar, o observador desapaixonado, encarna uma das versões mais radicais do espectador imparcial que se poderia imaginar. Wolmar, de fato, não é, a rigor, um espectador, embora sua apresentação como observador seja correta e acurada. Ao mesmo tempo (e por outro lado), Wolmar seria o espectador ideal, no sentido de que, diante do espetáculo (seja o da cena, seja o da vida social), não se deixaria perder no jogo ambíguo da teatralidade. E isso simplesmente porque estaria como que imune (graças à sua insensibilidade peculiar) aos efeitos colaterais nocivos da dinâmica da simpatia. Wolmar representa, no romance, uma figura especial de autoridade: a autoridade terapêutica. Mas sobre essa autoridade sobrepõe-se a de Julie – seu “suave império”, tantas vezes evocado em diversas cartas. Wolmar já triunfava sobre a teatralidade (embora pagando o preço da insensibilidade). Julie triunfa sobre Wolmar: sua vitória sobre a teatralidade é dupla. Com o exemplo de Julie e da matinée à l’anglaise, entendemos melhor a crítica ao teatro. Rousseau dizia que no teatro acredita-se reunir as pessoas quando, de fato, lá elas são isoladas. O que não funciona na situação teatral é o mecanismo da expansão: o espectador é, sim, levado para fora de si mesmo pela imaginação; mas a expansão 22

Rousseau (1959-1995), v. 2, p. 557-561.

12 daquela matéria afetiva fundamental, que estabelece propriamente um laço, um attachement, entre os indivíduos, isso está ausente. A ilusão teatral, por mais completa e eficaz, mantém sempre presente uma distância entre espectador e ator. Em contraste, a festa como espetáculo rompe com essa ilusão, e abre espaço para que o mecanismo da expansão funcione. A festa, toda ela, é um fenômeno de contágio ou de expansão, em tom diferente da matinée à l’anglaise (no romance, o episódio das vindimas seria mais ilustrativo desse outro tipo de expansão), mas essencialmente semelhante. A ausência da expansão implica, por sua vez, uma deficiência importante na “apreensão” (moral) da situação em que está o indivíduo. Embora Rousseau não elabore esta conclusão, seria possível dizer que o modelo espectatorial, aplicado ao juízo moral, é, na perspectiva que parece estar desenvolvendo em sua obra, necessariamente limitado – muito embora esteja presente em suas reflexões sobre a moralidade e a sociabilidade desde o começo, mesmo que sempre cercado de reticências. O surgimento de um outro modelo, centrado na ideia de expansão, reflete diretamente a crescente importância que assume, para Rousseau, o sentimento e a sensibilidade para a compreensão do fenômeno moral e social – pois se essa centralidade já era reconhecida no modelo espectatorial desenvolvido, por exemplo, por Smith, no modelo da expansão isso se torna ainda mais acentuado e decisivo, ao mesmo tempo em que aponta para novas direções e abre novas possibilidades. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Baczko, Bronislaw. Rousseau: Solitude et communauté. Paris: Mouton, 1970. Barish, Jonas. The Anti-theatrical Prejudice. Berkeley/Los Angeles: University of Califórnia Press, 1981. Burgelin, Pierre. La philosophie de l’existence de J.-J. Rousseau. 2ª Ed. Paris: Vrin, 1973. Dent, N. J. H. Rousseau. Oxford: Blackwell, 1988. Fortes, Luiz Roberto Salinas. Paradoxo do espetáculo: Política e poética em Rousseau. São Paulo: FAPESP/Discurso Editorial, 1997. Garcia, Claudio B. As cidades e suas cenas: A critica de Rousseau ao teatro. Ijuí: UNIJUI, 1999. Griswold Jr., Charles L. Adam Smith and the Virtues of Enlightenment. Cambridge: Cambridge UP, 1999.

13 Lovejoy, Arthur. Reflections on Human Nature. Baltimore: The Johns Hopkins Press, 1961. Marshall, David. The Figure of Theater: Shaftesbury, Defoe, Adam Smith and George Eliot. Nova York: Columbia UP, 1986. Marshall, David. The Surprising Effects of Sympathy: Marivaux, Diderot, Rousseau and Mary Shelley. Chicago: University of Chicago Press, 1988. Nicole, Pierre. Essais de morale. Paris: PUF, 1999. Prado Jr., Bento. A retórica de Rousseau. São Paulo: Cossac Naify, 2008. Raphael, D.D. The Impartial Spectator: Adam Smith’s Moral Philosophy. Oxford: Clarendon Press, 2007. Reis, Claudio A. Unidade e liberdade: O indivíduo segundo Jean-Jacques Rousseau. Brasília: Finatec/UnB, 2005. Rousseau, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. 5 vol. Paris: Gallimard, 1959-1995. Smith, Adam. The Theory of Moral Sentiments. Indianápolis: The Liberty Fund, 1984. Starobinski, Jean. Jean-Jacques Rousseau: La transparence et l’obstacle. Paris: Gallimard, 1971.

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