ROVAI, Marta; MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. História oral testemunhal, memória oral, memória escrita. Entrevista com José Carlos Sebe Bom Meihy. In: História Agora, São Paulo, n. 9, p. 190-195, 2010.

June 7, 2017 | Autor: Du Meinberg Maranhão | Categoria: Historiography, Historia, Memoria, Historia Oral Y De Vida
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História oral testemunhal, memória oral e memória escrita e outros assuntos. Entrevista com o professor José Carlos Sebe Bom Meihy

Marta Gouveia de Oliveira Rovai1 e Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho2

No dia 27 de maio de 2010, o professor e oralista José Carlos Sebe Bom Meihy concedeu entrevista à História Agora – Revista de História do Tempo Presente. A proposta visava reflexões sobre pesquisas em história oral, em particular a abordagem do papel do Núcleo de Estudos em História oral da USP (NEHO-USP). A gravação, feita na sala do Neho, versou sobre a origem da prática de entrevistas em geral e em particular no Brasil. Falou-se também de questões teóricas, apontando-se para diferenças entre memória oral e memória escrita. A dinâmica da história oral foi tangida pela ótica evolutiva e, nessa linha, apresentou-se nova área de investigação na qual o professor vem trabalhando: a história oral testemunhal. Meihy é professor aposentado do Departamento de História da Universidade de São Paulo, co-fundador da Associação Brasileira de História oral, criador do Núcleo de Estudos em história oral (NEHO). Além de atuar de várias maneiras em publicações sobre temas ligados a história oral, tem notável volume de entrevistas fato que o distingue além da elaboração teórica. Na entrevista, foram destacadas a produção do NEHO, especialmente suas revistas, a começar pela pioneira Neho-História (1999 – 2001) que gerou, depois a Oralidades: Revista de história oral (atualmente no número 7), ambas da Universidade de São Paulo. Meihy como um dos precursores da história oral no Brasil é autor de diversos livros na área, entre os quais o Manual de História

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Doutoranda em História Social pela USP. Mestra em História pela PUC-SP. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em História Oral - USP. Contato: [email protected] 2

Doutorando em História Social – USP, mestre em História do Tempo Presente – UDESC, especialista em Marketing e Comunicação Social - Cásper Líbero, bacharel e licenciado em História – USP. Pesquisador do Núcleo de Estudos em História Oral - USP. Contato: [email protected].

oral e História oral: como fazer, como pensar, este em co-autoria com Fabíola Holanda. Eis o resultado da entrevista.

MARANHÃO F º./ ROVAI: Como a história oral no Brasil pode ser qualificada? MEIHY: Há, naturalmente, em todos os campos, uma eterna busca pelas origens. Em qualquer área, segundo a tradição ocidental, o início é elemento fundamental para a explicação sobre o desenvolvimento de qualquer matéria, assim, logicamente, ao abordar a questão da memória não poderia ser diverso. O ponto que se coloca no caso diz respeito ao começo de nosso envolvimento com oralidade e suas relações com o fenômeno mnemônico. Desdobramento disso, as relações da história oral com as demais disciplinas acadêmicas e outras práticas não exclusivas à Universidade também se alinham. Na mesma lógica, vale dizer que se perdem as garantias ou absolutos, pois divergem opiniões. Há múltiplas alternativas que se delineiam como semente. E não é pouco aguerrida a disputa pelo fundamento da história oral brasileira. Sou dos que admitem que nossa história oral tenha começado com atraso. Isso se evidencia em face dos avanços conseguidos em países como Itália, Reino Unido, México, ou culturas que não passaram pelos processos ditatoriais comuns à América do Sul e Central. Como professo que uma das etapas da história oral é a gravação - e a gravação é inevitavelmente documento - pode-se supor que lócus de quantos viveram sob regimes autoritários como: Argentina, Uruguai, Paraguai, Brasil, Chile, Peru e Colômbia, acabaram eclipsadas pela possibilidade de avanço natural da história oral. O direito de expressão - condição para a existência da história oral - tem que ambientar atos de diálogos gravados. Sem isso é inviável considerar a realização de entrevistas ou de fontes orais. História oral tem tudo a ver com democracia...

Mas quais as marcas da originalidade da “nossa” história oral? MEIHY: Costumo dizer que a História oral no Brasil nasceu exilada, isto é “de fora para dentro”. Em decorrência de uma ditadura persistente como a nossa, de mais de duas décadas, os primeiros trabalhos publicados usando entrevistas com o viés do exílio foram escritos longe do Brasil, contando as experiências de homens e mulheres que tiveram que deixar o espaço nacional por razões políticas. Creio ser seguro vincular essa reflexão aos textos

fundadores, às matrizes teóricas de nosso proceder, pois isso garantiria alicerce ao debate que, de regra, se perde em competições inócuas. Ademais, some-se um compromisso que caracteriza a nossa história oral: a vontade/necessidade de transformar situações que, exatamente por evitar mudanças, se valem prioritariamente de discursos escritos como fonte. É nessa arena que se vincula a intimidade da história oral com a democracia. Uma não existe sem a outra, pelo menos em culturas como a nossa. É muito estranho ver analistas estrangeiros pretendendo explicar a vocação brasileira - ou latino-americana - para o nosso fazer da história oral, pois ignorando o contexto nativo tomam, sem pudor algum, como deles uma pauta que se explica por circunstâncias peculiares, nossas. Creio firmemente que elucidações sobre nossa condição de trabalho com a oralidade apenas possam ser estabelecidas se levarmos em conta a “nossa realidade”. Não estou dizendo que é improvável que estrangeiro estude ou interaja com nossa história oral, pelo contrário, mas garanto que se não prezar detalhes derivados da originalidade de nosso caso confundirão a árvore com a floresta. Sempre fico me perguntando, por exemplo, como podem valer as reflexões sobre memória feitas por autores estrangeiros sobre: índios, migrantes, mestiçagem, MST, entre outros temas. Esta ponderação convida a desdobramentos. É claro que as bases teóricas sobre oralidade ou memória são comuns, mas elas não explicam universalmente tudo.

Então podemos dizer que há um atraso no andamento da história oral brasileira? MEIHY: Uma das consequências de nosso jeito de encarar a história oral decorre exatamente da demora do florescimento da moderna concepção de oralidade no Brasil. Portanto, além de exilada, vale dizer que nosso procedimento na matéria cresceu também colonizado. Como não participamos do mesmo ritmo temporal do processo de amadurecimento da orientação teórica geral, da (re)definição dos objetos de estudos desse campo, nutrido depois da Segunda Guerra Mundial, tivemos numa primeira fase exatamente correspondente à abertura política dos anos de 1980 - uma onda de textos traduzidos, quase sempre de origem de culturas que não experimentaram ditadura recente como Itália, França ou mesmo os Estados Unidos. Em vistas disso, podemos dizer que “pegamos o bonde andando” e tivemos de “correr atrás do prejuízo”. Há uma relação íntima, direta, imbricada da história oral que fizemos com o processo mais amplo de redemocratização do país. São fios do mesmo novelo, linhas contínuas e capazes de costurar

compromissos da história oral que fazemos, distinguindo-a de outras que tiveram matrizes diversas. Não fujo de algo que nos é fundamental: os países que padeceram processos políticos repressivos demandam maneiras próprias da produção de projetos de história oral. É lógico que cabem espaços - típicos de qualquer processo intelectual - de aproximação de projetos de história oral não comprometida com a transformação. Temos, aliás, várias instituições respeitáveis que estão, por exemplo, atentas a produção de pesquisas de reverência institucional (as conhecidas histórias empresariais, por exemplo), mas isso está bem longe de ser a essência da história oral brasileira.

Quais as instituições fundadoras da história oral no Brasil? MEIHY: Esta pergunta implica dizer mais sobre nossas origens brasileiras. Começamos individualmente, nos anos de 1980, isolados, aqui e ali, com inquietações que mostravam a inviabilidade de se manter distante do presente que convocava explicações sobre fatos de nosso imediato. Lembremos, por exemplo, que a História que se ensinava nas academias apregoava distanciamento e neutralidade - seja pessoal ou de tempo - e isso deformava as possibilidades de reflexão sobre o que se convencionou chamar de realidade brasileira. Intuitivamente, áreas de estudos buscavam alternativas expressas de diferentes maneiras fossem na Sociologia, Antropologia, Etnografia. Alguns grupos, como por exemplo, o CERU, Centro de Estudos Rurais e Urbanos da USP, que tinha uma tradição germinada na prática de histórias de vida, começaram a desenvolver pesquisa mais conseqüente valendose de conceitos e termos como “metodologia de histórias de vida” ou “técnica de gravação”. Sem dúvidas, o pioneirismo no caso brasileiro cabe Maria Isaura Pereira de Queiroz, ainda na década de 1950, sob inspiração francesa. Maria Isaura vinha trabalhando com “técnicas de gravação” e em sintonia com registros de situações problemáticas expressas no comportamento social. Além disso, houve, mais tarde, um esforço abortado feito com o pessoal da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, pelo CPDOC, que em 1975 que, sob o financiamento da Fundação Ford, tentou trazer alguns especialistas norte-americanos e mexicanos para cá, com a proposta de difundir a prática de trabalho com entrevistas. Essa investida, contudo, em plena ditadura não frutificou. De toda forma, alguns textos pioneiros de Aspásia Camargo foram publicados. Passado tempo, depois, fase da abertura política, o CPDOC voltou a assumir a responsabilidade de ser referência na área em particular em projetos que analisam a elite política e econômica nacional. Oficialmente, contudo, vale

garantir que o termo história oral foi usado pela primeira vez, em publicação, feita por Carlos Humberto Correa, da Universidade Federal de Santa Catarina, no ano de 1978. É bom retomar este nome ao falar de textos fundadores. O mesmo se diz de outra autora sempre esquecida e que foi fundamental para o estabelecimento da nossa história oral: Valentina da Rocha Lima que publicou um trabalho pioneiro, resultado de muitas entrevistas feita pelo Programa de História Oral do CPDOC com o nome de Getúlio Vargas, uma

história oral.

Como se deu o aparecimento efetivo da história oral na USP? MEIHY: Na USP, sob a égide da democracia, os primeiros resultados floriram de duas professoras do Departamento de História: Maria de Lourdes Janotti e Sueli Robles Queiroz, que fizeram um projeto importante sobre as memórias das famílias de escravas e de exescravos em São Paulo. Pessoalmente, comecei a investir nesse campo, influenciado por alguns livros, em particular pelo Brazilian Women Speak, de Daphne Patai. Sobretudo, impressionou-me nesse trabalho a liberdade da autora que, independente de discutir métodos ou critérios de pesquisa, avançava em conclusões sobre o papel da mulher no Brasil. Buscando fundamentos para resultados como aquele, procurei bases teóricas que me levaram aos Estados Unidos por um ano, onde entre trabalho de campo e leituras produzi livro Colônia Brasilianista:história oral de vida acadêmica. Combinando entrevistas com teoria busquei cruzar aspectos de história de vida, história oral temática e tradição oral. Além dos Estados Unidos, dediquei-me a ver a produção mexicana no Instituto Nacional de Antropologia y História, INAH, onde também atuei juntamente com Dolores Plá. Foi essa uma fase muito fértil da minha experiência. Diria que o primitivo ambiente de refutação à história oral no Brasil serviu de fermento para buscas que tinham que ser justificadas em um meio, de influência acadêmica francesa, onde a “ditadura do escrito” era a alternativa matriz dos trabalhos.

O senhor pode nos falar um pouco sobre o ambiente de fundação da ABHO? MEIHY: Depois que voltei para o Brasil, fecundei estudos na área, fiz alguns projetos, até que me senti capaz de oferecer o primeiro curso de história oral numa grade curricular, no

Departamento de História da Universidade de São Paulo. Isso se deu em 1990 e os alunos se entusiasmaram muito. Mediante o sucesso se iniciou uma atividade consequente aproximando discentes, levando-os à pesquisa de campo. Colegas de diferentes lugares, ao mesmo tempo, começaram trocar idéias, fermentar alternativas que resultaram na fundação da Associação Brasileira de História oral ABHO, nos anos 90. Na verdade, a primeira discussão para a fundação da ABHO aconteceu na USP, durante o Congresso América, de 1992, que reunia gente de todo o Brasil e da América Latina. Sobre essa iniciativa há um texto relevante publicado no CPDOC 30 anos, de autoria de Janaina Amado. Aproveitamos aquele congresso e fizemos uma reunião inaugural na Sala Caio Prado Jr. no Departamento de História da USP. Daí resultou a primeira pré-proposta e, em decorrência, o pessoal do CERU e da PUC/SP se alinhou e dava-se o germe da ABHO. Da PUC/SP, a colega Iara Khoury, participou bastante, assim como o CERU em particular a Alice Beatriz Lang que trabalhou no projeto de estatuto antes rascunhado por mim. Do Rio de Janeiro, Marieta Moraes Ferreira foi entusiasta e, além do pessoal de São Paulo e do Rio de Janeiro, juntou-se gente de Pernambuco, Antonio Montenegro entre outros. Acabamos, assim, fundando a Associação em 1994. A partir disso, tudo se organizou mais e melhor. Uma das consequencias foi a Revista de história oral, da qual fui o primeiro editor e mais tarde, na mesma Revista, no número 10 publiquei juntamente com Alice Beatriz Lang uma espécie de inventário dessa façanha. Daí em diante outras instituições caminharam segundo a própria cartilha. Como resultado natural de tudo isto, o CPDOC acabou se especializando dentro de uma linha própria; o CERU de outra vertente. O Centro de Memória da UNICAMP, com a Olga Von Sinson, assumiu um viés mais sociológico e o pessoal da PUC/SP bem como os colegas de diversas universidades do Rio de Janeiro e de outros estados optaram por caminhos próprios. Assim a história oral Brasileira foi se tecendo. Basicamente, este foi o cenário geral. Depois da fase de fundação, aos poucos me afastei da ABHO para assumir outros compromissos, em particular junto ao NEHO - USP. Hoje os vários grupos têm atividades mais ou menos independentes e cá e lá trocamos opiniões em mesas, encontros, congressos.

Qual é a posição do NEHO frente aos demais grupos que praticam a história oral no Brasil?

MEIHY: A ABHO resultou oportunidade de apresentar trabalhos e de reunir interessados, e isso acontece a cada dois anos, nas reuniões nacionais e ano sim ano não nos encontros regionais. Diria que o NEHO está aprofundando o próprio caminho, um pouco distanciado, porque a nossa proposta é fazer “o que os outros não estão fazendo”, procurando representar a fase mais experimental da história oral brasileira. Sim, nossa luta tem sido esta. Em primeiro lugar, o NEHO parte de um conceito de história oral como um “conjunto de procedimentos”. Sob essa orientação, a entrevista não se confunde com história oral. O que caracteriza a história oral defendida pelo NEHO é a soma dos resultados em etapas sequentes e tudo se enfeixa na existência de um projeto. Diria que esta definição se tornou fator diferencial de outras aventuras. Até então, presidia no Brasil - e ainda há casos - que supõe a história oral como se fosse entrevista, sem levar em conta outros fatores. Nós fazemos questão do projeto como detonador de procedimentos. Não abrimos mão disto. Em segundo lugar, pensamos que a finalidade da história oral não é apenas a formulação de documentos, o que mostra um encaminhamento diferente de certas visões vocacionadas muito mais para a História como disciplina que se vale de recursos do que se supõe ser história oral. Queremos algo mais do resultado de entrevistas. Para o NEHO, vale mesmo é considerar questões da memória diferentemente da História. Memória e narratividade são nossos vetores para estudar oralidade, construção de identidade e comunidade. Outro ponto que o NEHO não abre mão, algo muito fixado no nosso compromisso, é, quando possível, a remessa às entrevistas inteiras: não nos parece legítimo usar entrevistas parciais, recortadas, jogando joga fora o que não interessa, usando apenas destaques recortados que, sempre, servem para “definir a alguma tese” suposta aprioristicamente. Outro ponto fundamental é a qualificação de gêneros que nos guiam em termos de procedimentos nas entrevistas.

Como o NEHO vê os gêneros em história oral? MEIHY: Distinguimos a história oral em quatro blocos fundamentais - até então a história oral era tida em três grandes gêneros: 1- história oral temática - que aborda temas em geral, tendo diretamente a ver com o envolvimento da pessoa em algum evento, como por exemplo, trabalho informal ou emprego doméstico. Nesses casos o tema reflete alguma tensão social, e para abordá-lo busca-se alguma objetividade e roteiro de perguntas. Outra forma é 2- história oral de vida, que parece uma saída bastante original para se estudar determinadas questões como trajetórias pessoais. Em casos como migração, pertencimento a

ordens religiosas, orientações sexuais, exílios, as etapas da vida e as decisões permitem melhor aferição se concatenadas ao andamento da experiência. Outra, 3- a Tradição oral que cuida de questões longa duração, mitos e explicações subjetivas da vida social. Nós procuramos, num artigo que está no número três da Oralidades: revista de história oral, intitulado Carta aos jovens oralistas, mostrar como se dá o encaminhamento de cada um desses gêneros. Recentemente, defini mais um campo de ação frente aos gêneros: 4- a história oral testemunhal, sendo este ligado às questões traumáticas, marcadas por pessoas que vivem dramas em suas vidas ou relações. Assim como na Alemanha se pensa a problemática do silêncio voltado ao pós guerra, na África do Sul as conseqüências da segregação pelo Apartheid, pergunta-se: e no Brasil, o que marcaria o destino dramático de populações e chegamos a conclusão de que, em nosso caso, tudo dependeria dos fluxos de deslocamentos de regionais como tem sido mostrado por pesquisadores como Zilda Yokoi. Isso confirmaria a necessidade de vínculos com o nosso meio físico-social e ao mesmo tempo garantiria função aos procedimentos de história oral.

Como o NEHO aborda a relação entre entrevistado e entrevistador? MEIHY: Esta pergunta é complexa por mexer em vários campos. Procuramos discutir as relações éticas não apenas no tratamento com o entrevistado, mas também no cuidado com o destino das entrevistas. Aí temos mais um fator de diferenciação de alguns outros grupos: a questão do autor/autoria. Assumimos valentemente a defesa de um suposto vital para nós: não aceitamos sem críticas o termo “informante”, nem “ator social” ou “objeto de pesquisa” e nem mesmo “sujeito de investigação”. O que se pretende é valorizar o outro como “colaborador”. Daí a validade da decomposição semântica: ação de trabalhar juntos, colabor-ação. Isso subverte a ordem vinda das visões tradicionais das ciências sociais em que, no trato das entrevistas diria que autor é que faz a pergunta e vai com os questionários estabelecidos. De toda forma, a meta é trabalhar com redes diferentes que dialogam entre si. Não apenas considera-se a “linealidade” de argumentos de um grupo, mas busca-se ouvir as partes contrárias. Assim, por exemplo, em um projeto sobre tortura de presos políticos, não apenas interessa registrar narrativas de torturados, mas também de torturadores. Para isso se dar de maneira efetiva, é preciso trabalhar com redes. O resultado de um bom trabalho com redes implica em uma postura profissional. Não se advoga que o entrevistador seja simpático às causas dos participantes do projeto, mas, ele deve ter uma postura democrática,

profissional, capaz de habilitá-lo a ouvir o “outro”. Não se fala, é claro, de neutralidade, mas sim de compromisso com a revelação dos argumentos propostos no projeto.

Mas como podemos entender o significado das redes? MEIHY: Rede vincula-se a outros conceitos como colônia e comunidade de destino. Rede é a solução operacional, final, de um projeto. Suponhamos que alguém queira estudar o processo de adaptação dos nordestinos em São Paulo. Trata-se de um contingente de milhares de pessoas. Por lógico, seria impossível entrevistar todo contingente. Para tornar exeqüível o projeto, é preciso estabelecer parâmetros capazes de explicar a atitude do grupo migrado. No limite temos a comunidade de destino que dá sentido amplo ao movimento. Por comunidade de destino entende-se o argumento maior que motiva, no caso dos migrantes, o deslocamento - a seca por exemplo. Colônia é a parcela tangível do grupo que, no caso, seria o contingente migrado para a cidade de São Paulo. Rede - ou redes - seria formada pelo grupo abrangido pela pesquisa. O plural é sempre desejável, e os envolvidos devem apresentar suas especificidades. Um bom exemplo de rede, nesse caso, seria ouvir em sequencia os homens que vieram “com famílias” e em separado, os que vieram “sem famílias”; outra rede poderia ser das “mulheres que vieram por conta própria” e das “que vieram acompanhando os maridos”. A vantagem desse procedimento é dar sentido aos motivos íntimos de cada segmento. Seria um erro supor que todos os envolvidos tivessem os mesmos impulsos para as mudanças.

E como se aplica o conceito de História Oral Testemunhal? MEIHY: Este conceito, Eduardo e Marta, vocês estão dando em primeira mão. É exatamente o desenrolar de processos como deslocamentos, exílios, catástrofes, que implicou a formulação deste novo gênero, ou seja, da busca de fundamentos desse novo campo, o da história oral testemunhal. Como reforço do que foi dito, retomo que é preciso olhar situações ou de grupos em que o colaborador envolvido participou de forma traumática, como vítima, de alguma circunstância marcante. Não se fala apenas de casos políticos, pois há grupos que sofreram com terremotos, enchentes, pestes, enfim, situações que produziram traumas específicos. Mudanças do comportamento mnemônico em face de

tragédias são importantes para a requalificação da identidade e, mais do que isso do estabelecimento de políticas públicas. Nesse sentido, trabalhos atentos à memória em relação com circunstâncias trágicas são importantes. A sensibilidade na elaboração de projetos deste tipo é vital para se estabelecer vínculos entre o entrevistado e o público. Assim, o entrevistador ou autor do projeto deve ser clareza do impacto do trauma causado por uma situação extraordinária. Acredito que todo trabalho de história oral deva, obrigatoriamente, ter um sentido social de transformação e no caso da história oral testemunhal isto é básico. No momento, estamos atentos a um projeto especial, sobre as enchentes da cidade de São Luiz do Paraitinga, no estado de São Paulo. A idéia é mostrar como a destruição do centro histórico, em particular da Igreja Matriz levou a uma revisão sobre o papel da comunidade. A definição de políticas públicas é essencial para o desenvolvimento de ações práticas derivadas de experiências cidadãs e é a isto a história oral testemunhal se rende prioritariamente.

Quais as propostas do NEHO frente aos demais grupos que praticam história oral no Brasil? MEIHY: Temos buscado definir um novo parâmetro para a história oral que fazemos. Fica clara nossa vocação no sentido da produção de pesquisas originais, combinando fundamentos teóricos, temas novos, mas tudo respeitando a produção alheia com a qual mantemos diálogo. Isso, contudo, provoca discussão cruzada, pois tem muita gente insistindo em questões estabelecidas. Sim, pela nossa perspectiva, tanto é preciso evitar a repetição como a adaptação de pressupostos testados em outras realidades, em particular estrangeiras, eurocêntricas. Creio que a grande virtude da história oral reside exatamente em localizar temas interditos, enquadrá-los em situações específicas afinadas com os fundamentos culturais dos grupos abordados. Essa abordagem, aliás, se liga a questões decorrentes das chamadas “dívidas históricas”, como ressarcimento, reparação social, moral, chegando até às questões como cotas de estudo e trabalho. Com certeza, o NEHO não quer simplesmente repetir os outros e nem ficar no tolo revisionismo que tem assolado nossa produção crítica. Gente existe que se orgulha, por exemplo, em apontar ausências bibliográficas, falhas de citação.

Há outra decorrência que o NEHO advoga: o compromisso público, ou seja, nosso endereço é a História pública, quebrar um pouco esta “conversa” de pares que apenas dialogam entre si. A idéia é permear mais a sociedade, e para isto temos que nos valer de toda a parafernália eletrônica, como: vídeos, computadores, celulares e tudo que for possível para chegarmos ao coletivo. É preciso radicalizar o debate social e nos valermos também de novelas televisivas. Isso é bom porque se pode dimensionar o trabalho possível pela prática da história oral, colocando tudo em uma esfera mais abrangente, mais coletiva.

Quais as atitudes destacadas do NEHO? MEIHY: Diria que o primeiro esforço extra do NEHO foi publicar uma revista, a NEHOHistória. Confesso que há uma ponta de orgulho em reconhecer nessa investida a primeira ação voltada à publicação, no Brasil, de textos exclusivos de história oral. A NEHO-História veio antes da Oralidades: revista de história oral, nossa atual publicação. Gosto de lembrar a NEHO-História, pois pretendíamos deslocar o centro de gravitação dos autores traduzidos - que eram sempre os mesmos, europeus ou norte-americanos - e mostrar outros, de regiões com problemática mais próximas da nossa. Nesse sentido, aliás, o número 1 dessa revista tem uma entrevista com um oralista sul africano que participou do Congresso Internacional de História oral de 1994, aqui no Brasil, Jonathan Grossman, que considero revolucionária. Revendo o impacto dessa entrevista, percebo que foi ele quem jogou a semente da análise dos traumas na memória oral. Fico muito emocionado quando me lembro disto. Precisamos fazer todo este percurso, de 1994 a 2010 para, agora, retomar as propostas de outra revista. A Oralidades: revista de história oral começou tímidas, indecisa, mas a partir do número 3 ganhou caminho próprio e, pode-se dizer é o nosso espaço de diálogo com várias linhas de história oral. Mas há outras esferas de atuação. Veja que temos no NEHO dezenas de dissertações e teses defendidas na área exclusiva da oralidade. Isso é um avanço, pois se trata de uma atenção acadêmica exclusiva. Lembremos que os autores tornam-se propagadores de um procedimento de história oral que é, genuinamente, nosso.

Voltando a questão do trauma, esta é a mais nova e efetiva contribuição do NEHO à história oral, certo?

MEIHY: Sim, e é algo que vocês estão divulgando em primeira mão. O problema é o que em nosso meio intelectual o mito da democracia racial é muito mais forte do que se supõe. O mesmo se dá com a noção de “história incruenta” onde tudo teria se processado sem derramamento de sangue, na base do acordo e alianças. Quando a gente pensa em traumas no Brasil, quais são eles? Exemplo: temos 3 milhões de nordestinos em São Paulo, essa migração pode ser caracterizada como uma espécie de trauma, mas com feições próprias. Pela sutileza histórica, por não termos casos explícitos como o Holocausto, a qualificação do que é trauma nos é diferente, sutil, muito mais “histórico” e de “longa duração”. Diria que no momento estamos em fase de caracterização do que seria trauma no coletivo brasileiro.

E como é formado o NEHO? Como as pessoas se integram nos debates? MEIHY: Como grupo de estudos pretendemos sempre envolver alunos de graduação, de pós-graduação, docentes e demais interessados, gente do mundo não acadêmico também. É claro que o NEHO como grupo tem uma reposição natural dos envolvidos, mas os pontos avançados vão ficando, há um centro cumulativo de debates que é também evolutivo. As pessoas vão deixando suas marcas os avanços vão sendo continuados. Quando se fala em história oral do NEHO incorporam-se as experiências passadas. Estas discussões estão transparentes nas dissertações, teses. E isto é o que interessa: o que permanece. Eu fico muito feliz quando vejo trabalhos como o das mulheres negras na escola de samba, estudos sobre o negro no futebol, greves na polícia, detalhamentos de culturas emigratórias. Temos algum sucesso já, e veja que é difícil falar de história do MST sem citar o NEHO. À tudo isso deve-se somar nosso papel no Departamento de História da USP. É relevante recordar que quando começamos a falar em história oral as pessoas riam, brincavam, perguntavam “mas o que é história oral? “História é escrita, a História nasceu com a escrita”. Até colegas que hoje fazem História oral brincavam: “O que vocês discutem em congressos de História oral? Discute-se: o tamanho da fita, a marca do gravador?”. Havia um descrédito absoluto. Para chegar ao ponto atual tivemos de passar por um crivo severo. Foi-nos preciso desenvolver rigor em relação a conceitos, procedimentos, a discussões filosóficas e fundamentos epistemológicos sobre se a história oral. Um dos debates mais árduos que enfrentamos foi sobre o estatuto da história oral.

Poderia falar um pouco sobre os conceitos operacionais usados na história oral que o NEHO pratica? MEIHY: Sim, em primeiro lugar coube definir o estatuto da história oral. Isso nos custou bastante, pois até então era tudo muito nebuloso: técnica, metodologia, ferramenta, disciplina? Outra das questões centrais foi a passagem do oral para o escrito. Isto porque as pessoas num Departamento tradicionalmente progressista como se diz ser o nosso se assumem “antipositivistas”, mas no tocante às entrevistas, todos, cobram fidedignidade absoluta, como se fosse possível o oral corresponder ao escrito. É muito comum pessoas tratarem o oral como “duplo do escrito” e vice versa, como se não fossem códigos diversos. É até irônico, mas é corriqueiro pessoas tratarem a transcrição das entrevistas “como elas aconteceram, palavra por palavra”, com os defeitos da narrativa e tudo mais. Na melhor das hipóteses esta versão corresponderia aos interesses de lingüistas e não de analistas sociais em sentido amplo e político da matéria. Nós logo tivemos de trabalhar com a qualificação da transcrição, associada à colaboração. A questão da transcriação foi um tema fecundo para nós. Muitos avanços foram conseguidos graças ao empenho do professor Alberto Lins Caldas, teórico que ajudou muito neste refinamento. De minha parte assumi o conceito de transcriação emprestado dos irmãos Campos, que, por sua vez, partem do sentido de “tradução” que, segundo a raiz etimológica, significa “traição”. É curioso notar que entre nós, no Brasil em geral, preside ainda um debate inocente, onde as pessoas pensam que o código falado tem correspondência exata ao escrito. No oral há características próprias - há risos, comportam-se silêncios, eleva-se o tom de voz, junta-se a voz com o gesto - e estas correspondências não são traduzidas como se pretende no código escrito. Aqui firmamos um princípio: nem tudo que é oral é escrito, nem tudo que é escrito é oral. E na passagem de um “estado de linguagem” para o outro temos que decidir: mexe-se ou não se mexe na narrativa. Ou somos fidedignos segundo o conceito mais positivista possível, ou não. Sinceramente, estou cansado de ouvir frases como esta “a pessoa não disse isto deste jeito”.

A história oral do NEHO então é recurso narrativo? MEIHY: Não apenas. A história oral que praticamos tem ainda outros supostos, pois devemos sempre partir de fundamentos: história oral de quem, como e por quê? Veja que há,

para nós, um comprometimento constante com a transformação. Para “quem” se faz história oral; “como” e “por que” fazer? Para o NEHO, a história oral deve se endereçar sempre à história pública, gerar índices de valorização da experiência coletiva, e para isto precisamos do argumento da entrevista e que ele tenha dimensão social. A entrevista não é a soma de palavras ditas pelas pessoas. As pessoas querem dizer alguma coisa, e as palavras são apenas um meio de expressão. E para isto a gente cultiva a importância da entrevista inteira e não de recortes. Assume-se que o colaborador tem uma mensagem que se revela além de informações pontuais. Somos contra a prática de fragmentação aleatória de “partes importante”, fragmentos do que a pessoa disse numa entrevista, às vezes de horas. Mas há critérios para operar: sempre as entrevistas guardam uma “mensagem central”, uma espécie de “moral da história” à que chamamos de tom vital. E o tom vital permite refazer a entrevista a partir de eixos temáticos. Frente à definição do “core” da entrevista pode-se arrumar tudo em favor da mensagem moral que a entrevista encerra. Este é um trabalho subjetivo. A reorganização da entrevista, a transcriação implica objetivar algo que é subjetivo. Este é, aliás, o motivo que permite refazer a narrativa - que ainda não estará “resolvida”, porque depois do trabalho de “edição”, deve-se voltar à pessoa para fazer a conferência e autenticar. É fundamental que o colaborador se identifique com o resultado.

Então é na passagem do oral para o escrito que vocês radicalizam o conceito de transcriação? MEIHY: Sim. Daí a sugestão de se diferenciar as memórias orais das escritas. A oral é a memória livre, espontânea, aquela expressa a partir do estímulo dado pelo interlocutor e ao qual não se tem as preocupações cabíveis quando se escreve. A memória escrita demanda o uso de outros sentidos, principalmente do tato que reorganiza a lógica expressiva. Ao escrever, não se está apenas usando o ouvido e o olhar. O tato é um sentido poderosíssimo que exige coordenação diferente dos demais. Esta é uma resposta “científica”. A passagem do oral para o escrito, curiosamente, só é problemática nos meios acadêmicos. Sempre, a pessoa entrevistada quer se identificar com o sentido e com a entrevista e quando a vê transcrita, quer se identificar com o conteúdo, com a mensagem e não com a gramática. Nós não fazemos entrevista para lingüistas, é preciso repetir. Não temos a preocupação de identificar se a pessoa fala corretamente ou não, se o sotaque dela afetou a narrativa. Não quero saber se o índio fala certinho ou não. Busca-se o sentido da entrevista em sua essência.

Sim, isso pode se dar independentemente do vinculo oral expresso. Um exemplo clássico é a entrevista da Rigoberta Menchú, que falava errado até como forma de resistência em aprender o espanhol, a língua do colonizador. Nesse caso, na história do projeto, a entrevistadora, Elisabeth Burgos, manteve por volta de 10% desses erros ao longo da entrevista, avisando ao leitor sobre essa característica da índia entrevistada. Imagine a entrevista toda, que tem cerca de 200 páginas, com todos os erros. Ninguém iria ler!

Como a história oral praticada no NEHO se relaciona com o passado? MEIHY: Trabalhamos com e no “tempo presente”. Hoje temos a liberdade de fazer pesquisas que dizem respeito ao nosso tempo vivencial. Ao trabalhar com história oral invertemos o suposto daquela História que começava no tempo distante, mas que tinha um limite, por exemplo, na chamada “era Vargas”. Além disto, dispensamos o pressuposto da neutralidade e do distanciamento. Na história oral não, responde-se às questões nosso momento. Eu por exemplo, sou filho de imigrantes, tenho em mim a problemática da identidade nacional. Para uma resposta adequada, devo atender o fato da subversão analítica e posso buscar, a partir de mim, as raízes de meus dilemas. Assim, o procedimento tentado é de “cá para lá”, um “ir e vir” capaz de explicar o porquê das investigações. E isto leva a eleição de novos temas como: mulher, corpo, criança, futebol, coisas que estão aqui na história, agora.

O tempo presente não compromete a noção de História e de conhecimento histórico? MEIHY: Claro que sim. Gradativamente caminhamos para a formulação da história oral como uma disciplina. É fácil contestar a solides da história oral como matéria ligada disciplina História: chegue-se a um psicólogo e pergunte - por que você faz História oral e não Psicologia Oral, ou para o sociólogo - por que você não faz Sociologia Oral? Isto é um jeito de provocá-los. Primeiro história oral não é apenas “História”, e não se usa a oralidade para alimenta-la, por meio da formulação de documentos. Por outro lado, para ser disciplina, tem se que ter um objeto de estudo, método, procedimento, enfim uma proposta, epistemológica de qualificação estatutária. Para fugir do chavão de que quem faz História

oral é “historiador oral” ou “sociólogo/antropólogo/psicólogo que faz história oral”, criamos a terminologia oralista, que acompanha a valorização da oralidade. Atualmente há um modo diferenciado de produção de texto. Temos uma parafernália toda disposta à feitura de novos documentos e com base nesta possibilidade de fabricação de documentos, juntamos novas tensões filosóficas como o vínculo entre a identidade e memória. A identidade e a memória são objetos de várias ciências como Sociologia, História. Mas cada área aborda essas questões de jeito diferente. De toda forma, temos que entrar no mérito da questão para defender o crescente fluxo que aposta na independência da história oral. Então garante-se que o objeto da história oral seria a memória oral, para dela buscar as construções de identidades e comunidades. Não basta mais dizer que identidade e memória são “líquidas”. Precisamos garantir que há formas de estudá-las. Meu texto A radicalização da História oral procurou ser provocativo exatamente por indicar estas questões. Defendo que memória oral é a matéria da história oral.

O que pode nos dizer do futuro da história oral no Brasil? MEIHY: Não me preocupo com o futuro da História oral no país, pois o caminho está aberto e com ótimos profissionais. Temos temas postos e pessoas articuladas para enfrentálos. A história oral no Brasil é um caminho sem volta.

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