“Rua de Pêro Alvito, Leiria – Notícias sobre a produção oitocentista de faiança”, Al-Madan Online, N.º 18, Tomo 2, pp. 136 a 138.

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RUA DE PÊRO ALVITO, LEIRIA NOTICIAS SOBRE PRODUÇÃO OITECENTISTA DE FAIANÇA

Mónica Ginja António Ginja MUNIS – Trabalhos de Arqueologia, Lda. [email protected]

Palavras-chave: Leiria, olaria, faiança coimbrã, século XIX. Key words: Leiria, pottery workshop, Coimbra’s styled faiança, XIXth century.

Resumo: A Rua de Pêro Alvito integra-se na mais antiga área de ocupação medieval extramuros de Leiria, o Arrabalde da Ponte. Durante uma intervenção arqueológica realizada no âmbito da construção de um edifício nesta rua, foram detectadas evidências de fabrico local oitocentista de faiança coimbrã, até então desconhecido na cidade de Leiria.

Summary: Pêro Alvito’s Street is located in the oldest medieval occupation’s area outside Leiria’s castle walls, the Arrabalde da Ponte. During an archaeological intervention carried out in the construction of a building in this street, evidences of local nineteenth century manufacture of Coimbra’s styled faiança were detected, fact until then unknown in the city of Leiria.

A INTERVENÇÃO

Entre Setembro de 2008 e Setembro de 2010, conduzimos na Rua Pêro Alvito, Leiria, uma intervenção arqueológica no âmbito da construção de um edifício habitacional.

A intervenção revestia-se de suma importância, dada a proximidade do local às muralhas do Castelo de Leiria, assim como do espaço que se julga ter sido ocupado pela desaparecida igreja medieval de Santiago. Das sondagens e do acompanhamento arqueológico resultaria a detecção de estruturas e espólio de cronologias compreendidas entre as épocas medieval, moderna e contemporânea, assim como evidências de produção local de faiança, até então desconhecida na cidade de Leiria.

Figura 1 – Excerto da CMP, folha n.º 297, com sinalização do local intervencionado, no Arrabalde da Ponte (a amarelo), assim como do antigo bairro de Santo Estêvão (a verde).

O ARRABALDE DA PONTE

Pela posição geográfica que ocupa no panorama nacional, Leiria assumiu, desde remota época, uma relevante importância social, simbolizada pelo seu Castelo, fundado por D. Afonso Henriques em 1135. Inicialmente instalada no espaço amuralhado, a população foi paulatinamente ocupando espaços extramuros, à medida que aumentava a estabilidade politica e militar do convulso Portugal da Reconquista. Os novos bairros extramuros, mais burgueses, mercantis e populares, cresceram em importância social, ditando o despovoamento do interior das muralhas do castelo (GOMES, 2004b). Na encosta norte do castelo, surge então um significativo núcleo populacional, em torno da igreja de Santiago, já edificada em 1195 (CRISTINO, 1983b). O local assumiu desde cedo a denominação de bairro de Santiago, ou Arrabalde da Ponte, por se localizar junto da Ponte Coimbrã. O bairro foi-se então desenvolvendo para norte, até

às margens do rio Lis, bem como para nascente, até ao Convento de São Francisco, acolhendo casarios senhoriais, mas também tecelagens, tinturarias, lagares, ferrarias e moinhos (GOMES, 2004b e CRISTINO, 1983b). Apesar do desenvolvimento urbanístico, o bairro foi contudo bastante fustigado pelas frequentes cheias do Lis, cuja força destrutiva significou a ruína da própria igreja de Santiago. Os danos foram potenciados pelas invasões francesas, sendo inevitável a sua demolição, corria o ano de 1811 (CRISTINO, 1983a). Desconhece-se até hoje o local exacto da sua implantação.

Figura 2 – Excerto da Planta de Leiria em 1809, com sinalização do local da intervenção e da igreja de Santiago.

PRODUÇÃO OLEIRA EM LEIRIA

A actividade oleira em Leiria encontra-se documentada já no foral de 1195. Dois outros documentos, de 1255 e do século XIV, fazem respectivamente referência a fornos de loiça e a olaria associada a barreiro (CRISTINO, 1983b). O bairro tradicionalmente ocupado pelas olarias, denominado bairro de Santo Estêvão ou da Mouraria, cresceu a noroeste do morro do castelo enquanto núcleo urbano por especialização funcional ou social, como era de resto característico nas cidades medievais europeias. Desenvolvendo-se em torno de uma igreja homónima, que remonta pelo menos a 1211, no bairro de Santo Estêvão se instalaram os mouros

forros e mesteirais, que levavam a cabo actividades relativamente poluentes, como sejam forjas, olarias, lagares de vinho e de azeite (GOMES, 2004a). Alguns vestígios arqueológicos da actividade oleira são ali próximo conhecidos, como o forno escavado nas margas geológicas exumado na rua Nuno Alvares Pereira, com depósito de cerâmica de construção, chacota, trempes de oleiro, cerâmica vidrada e cerâmica comum, remontando aos séculos XVII e XVIII. Na mesma rua foi ainda escavado um depósito de estratos sedimentares, com grande quantidade de material cerâmico evidenciando defeitos de fabrico, trempes de oleiro e cerâmica de construção (BASÍLIO, DIAS e SANTOS, 2011).

PÊRO ALVITO: EVIDÊNCIAS DE PRODUÇÃO DE FAIANÇA

Não obstante ser conhecida a produção oleira em Leiria pelo menos desde, como vimos, finais do século XII, até à intervenção de Pêro Alvito era completamente desconhecida a produção de faianças na cidade, apontando-se Coimbra como o centro produtor mais próximo. Durante a intervenção arqueológica decorrida na rua de Pêro Alvito, foi detectado um nível estratigráfico com cerca de 30 cm de espessura, de onde foram exumados vários fragmentos de faiança, vidrados de chumbo, chacota, e ainda trempes, caixa e pilar de oleiro, num conjunto de 104 peças, datável da segunda metade do século XIX. Alguns dos fragmentos de vidrados de chumbo e de faiança, apresentavam defeitos ao nível da técnica de aplicação do esmalte e ao nível da fixação dos pigmentos decorativos, facto concordante com uma produção local.

Figura 3 – Registo fotográfico de fragmento de

Figura 4 – Registo fotográfico de fragmento de loiça decorada

loiça ‘ratinha’, exumada do nível estratigráfico

com listas concêntricas, exumada do nível estratigráfico com

com refugo de olaria, com falha ao nível

refugo de olaria, com falha ao nível da aplicação do castanho

decorativo. Fotografia de Luís Sebastian.

manganês. Fotografia de Luís Sebastian.

O referido nível estratigráfico terá a sua origem numa acção de entulhamento com refugo de produção, da responsabilidade de uma olaria local e provavelmente resultante de uma cova de extracção de barro. O enchimento de covas era procedimento obrigatório entre os que as abrissem para extracção de barro ou de terras, como de resto surge documentado já em 1855 no Código de Leis Municipais da Vila de Alcobaça (BERNARDA, 1992).

Figura 5 – Perfil estratigráfico do sector sudeste da área intervencionada. Nível estratigráfico com refugo de olaria identificado com o número 8.

Entre as faianças, que totalizavam 25% dos fragmentos detectados, predominavam as pastas brandas e homogéneas, em que escasseavam os elementos não plásticos, de esmaltes claros, sobretudo brancos, bem aderentes. Abundavam os fragmentos de loiça ‘ratinha’, estando igualmente representados, embora em menor número, as peças decoradas com listas concêntricas azul cobalto e castanho manganês. Destacavam-se as malgas e as taças carenadas, de pé anelar ou de fundo de ônfalo e de bordos rectos ou esvasados, assim como os pratos de pé anelar e bordos rectos.

Figura 6 – Registo gráfico de taça carenada de loiça ‘ratinha’, exumada do nível estratigráfico com refugo de olaria.

CONSIDERAÇÕES

Os vestígios detectados corroboram a produção de faiança na cidade de Leiria, pelo menos desde a segunda metade do século XIX. As faianças detectadas em Pêro Alvito demonstram indubitavelmente uma produção local de tradição coimbrã, com destaque para a loiça ‘ratinha’. A localização exacta da olaria de onde estes fragmentos sejam oriundos é por agora desconhecida, embora o bairro de Santo Estêvão constitua uma forte probabilidade, face à longa tradição de olarias nesta área da urbe leiriense. Deslocados da zona ocupada por aquele bairro, os fragmentos detectados na rua de Pêro Alvito podem resultar de uma acção de enchimento de covas de extracção de inertes, que, como visto, seria à época obrigatória, senão em Leiria, certamente em Alcobaça, ali tão perto.

A produção de faiança de tradição coimbrã em Leiria poderá enquadrar-se no desenvolvimento socioeconómico que marcou Portugal a partir do último quartel do século XVIII, posteriormente impulsionado pela revolução liberal de 1834 (CASTRO, 1991). Na região de Leiria desenvolveram-se a partir de então significativas actividades industriais. Na Estatística do Distrito Administrativo de Leiria, publicada em 1855, refere-se a existência de 21 fábricas e 53 oficinas de cerâmica, 28 fábricas de curtumes e 63 fornos de cal na região de Leiria (MENDES, 1991).

BIBLIOGRAFIA

BERNARDA, J. (1992) – A arte do oleiro. In Cerâmica de Alcobaça: duas gerações. Alcobaça: Museu de Alcobaça. 1992. p. 9-14. BERNARDES, J. O. (1981) – Leiria no século XIX, aspectos económicos, Assembleia Distrital, Leiria. BASÍLIO, l., DIAS, G., SANTOS, R. (2011) Requalificação do Centro Alto Histórico de Leiria. Relatórios de Progresso 4 e 5 (Março e Abril). CARREIRA, A. M. C. (1995) – ‘Valores estético-urbanísticos de Leiria setecentista’, II Colóquio sobre História de Leiria e da sua Região, vol. I, Câmara Municipal de Leiria, Leiria, p. 85 -94. CASTRO, A. (1991) – ‘Leiria e a sua Região no Processo Histórico Português’, Colóquio sobre a História de Leiria e da sua Região, Câmara Municipal de Leiria, Leiria, p. 295-340. CRISTINO, L. C. (1983a) – ‘A igreja de Santo Agostinho’, Sep. de Mundo da Arte, 14, Imprensa de Coimbra, Coimbra, p. 8-16. CRISTINO, L. C. (1983b) – ‘A Vila de Leiria em 1385’, Jornadas sobre Portugal Medieval, Câmara Municipal de Leiria, Leiria, p. 171-221. GOMES, S. A. (2004a) – ‘Oficinas artísticas no bispado de Leiria nos séculos XV a XVIII’, Oficinas Regionais, Actas do IV Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte, Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Tomar, Viseu. GOMES, S. A. (2004b) – Introdução à História do Castelo de Leiria, Câmara Municipal de Leiria, Leiria. MARGARIDO, A. P. (1988) – Leiria, história e morfologia urbana, Câmara Municipal de Leiria, Leiria. MENDES, J. A. (1991) – ‘O Património Industrial como Componente da Historio Local’, Colóquio sobre a História de Leiria e da sua Região, Câmara Municipal de Leiria, Leiria, p. 365-375. SEBASTIAN, L. (2010) – A produção oleira de faiança em Portugal (séculos XVI-XVIII), Dissertação de Doutoramento em História com especialidade de Arqueologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.

TEIXEIRA, C. e ZBYSZEWSKI, G. (1968) – Notícia explicativa da Folha 23 – C: Leiria, Carta Geológica de Portugal, Serviços Geológicos de Portugal, Direcção-Geral de Minas e Serviços Geológicos, Secretaria de Estado da Indústria, Ministério da Economia, Lisboa.

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