Ruínas Pobres, Cidades Mortas

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Ruínas Pobres, Cidades Mortas[1]

Denilson Lopes[2]

Dizem-me pelo computador que há Copa e manifestações. Lá fora ouço
garotos e garotas saindo do colégio gigantesco que fica na esquina. Não
vejo o outro lado da rua onde morei há quase 20 anos. As árvores cresceram
até taparem a vista da janela do terceiro e último andar onde estou agora
novamente. Sem vontade de ler revejo o final de Amor à flor da pele (2000),
de Wong Kar Wai. Ando pelas ruínas de Angkor Vat, por esses espaços de onde
não vim. Por que eles me tocam tanto? Um mundo de pequenas coisas e gestos
me faz sentir falta do que nunca tive e do que talvez não queira viver.
Nenhum interesse por monumentos em ruína pelo mundo e que poderia visitar.
O que faz falta é um sentimento de apagamento. Ou ainda uma sensação
contraditória: desejo de caminhar sem mais fazer parte e, ao mesmo tempo,
ficar imerso. Espera sem expectativa. Como dizia o velho Brecht, nas suas
elegias finais (única coisa que ele escreveu de que gosto): nada me poderá
faltar quando eu mesmo faltar. Já ando pela grama que cresce sobre o
colégio ao lado. Nova Iorque já é ruína como viu Anselm Kiefer. Vozes
juvenis ecoam em paredes que em breve cairão.

Aqui tudo parece
Que era ainda construção
E já é ruína
(Caetano Veloso, "Fora de Ordem")


Uma vez mais parece que a modernização urbana se coloca em pauta, não
só no Rio de Janeiro e em São Paulo, como na passagem do século XIX para o
século XX, bem como em várias cidades brasileiras, produzindo reações de
movimento socais. Nesse contexto, não deixa de ser curiosa a presença de
ruínas urbanas em Matéria de composição (2013), de Pedro Aspahan, e HU
(2011), de Pedro Urano e Joana Traub Csekö, entre outros filmes, como
contraponto a um discurso modernizador que retorna.

Contudo, longe das grandes cidades e da dinâmica acelerada de
construção e destruição, associadas ou não à especulação imobiliária[3],
dois filmes brasileiros evocaram, mais recentemente, imagens de ruínas no
mundo rural. Em Som ao redor (2013), de Kleber Mendonça Filho, seu
mapeamento da cidade de Recife, em especial, de suas elites, passa pela
paisagem de um engenho em ruínas na Zona da Mata Pernambucana, imagem do
declínio do ciclo da cana de açúcar. Já o filme Histórias que só existem
quando lembradas (2011), de Julia Murat, recupera a paisagem das cidades-
mortas, termo tornado célebre por Monteiro Lobato para se referir às
cidades marcadas pelo declínio da cafeicultura no Vale do Paraíba. Seu
filme parece ir mais longe na investigação da atualidade dessas ruínas
frustradas da modernidade.

Aviso: este texto é uma caminhada marcada por repetições. Revejo o
filme. Acompanho os personagens. Sigo a diretora até a entrada em um outro
mundo, em outro ritmo em que há pausa e repouso, em que nada parece se
transformar para que possamos pouco a pouco prestar atenção nos detalhes,
nos pequenos gestos, na repetição, na rotina. Madalena, a senhora fazendo
pão, ecoa os quadros da vida comum na pintura holandesa. Ainda me lembro de
minha avó que fazia pão em fogão de lenha em um vilarejo que na minha
infância não tinha luz elétrica e se chamava Vale dos Sonhos. Começo a ver
o filme e já cochilo? É esse o outro estado que temos que alcançar para
dialogar com o filme? O que vemos não é um sonho, um mundo fantástico –
termo que problematiza constantemente o limite entre o real e a fantasia.
Há, certamente, um processo de espectralização que, claro, é trazido pelos
espaços marcados pelo tempo, encarnado nos habitantes da vila,
exclusivamente velhos, vivendo longe de suas famílias, se é que elas
existem.

O filme de Julia Murat começa assim: uma luz longínqua traz aos poucos
à cena uma senhora com um lampião. Paramos de andar numa casa quase toda
tomada pelo escuro, até vermos uma tigela com a borda levemente trincada.
Vemos a cozinha. Ela começa a trabalhar na madrugada.

Histórias que só existem quando lembradas me leva a um mundo de que
tentei fugir, que estudei, que escrevi sobre há quase vinte anos... Pelo
trilho de um trem desativado Madalena vai com seus pães todo dia para o
armazém de Antônio que faz café. Discutem, tomam café e comem pão do lado
de fora. Vão para a missa. Comem com outros poucos velhos moradores do
vilarejo. Os homens jogam. Madalena vai ao cemitério de portão fechado onde
seu ex-marido está enterrado. De noite, ela faz a massa do pão que será
comido no dia seguinte.

Assim se passam os dias – desde quando isso se repete, não sabemos –,
até que Rita, uma jovem, chega também pelo trilho do trem que parece ter
virado o único caminho entre a vila e o mundo. Dela também sabemos menos
ainda do que de Madalena e Antônio. Deles sabemos que perderam filhos,
marido, mulher, como se tivessem não esperando a morte, mas esquecido de
morrer, como na fala de um dos personagens. Da jovem só sabemos que tira
fotos. E será pela fotografia, sobretudo pelas fotos tiradas com a pinhole,
que vemos os corpos envelhecidos se misturarem às paredes marcadas pelo
tempo. Através dos olhos dela vemos o que já estava lá: ruínas pobres.

Chamo de ruínas pobres porque não são monumentos, nem casas senhoriais
marcadas pela decadência soturna que assombra os romances de Cornelio
Penna, Lucio Cardoso e Autran Dourado. O Centro-Sul de Minas Gerais e o
Vale do Paraíba, cenário de vários dos romances dos autores mencionados
acima, são mais um foco do imaginário Barroco e, por extensão, do
Neobarroco do que uma simples região geoeconômica, caracterizada por uma
sociedade rigidamente estratificada em que a nostalgia e o mito de uma
idade de ouro perdida assumem relevância. Idade de ouro representada pelo
ciclo da mineração ou da cafeicultura. É nesse solo povoado de ruínas do
patriarcalismo e do catolicismo que a sensibilidade melancólica se
exacerba, não só possibilitando o deslocamento de uma perspectiva mais
naturalista dos romances nordestinos da Geração de 30, mas, também, através
da tensão entre o arcaico e o novo, em que são encenadas, simultaneamente,
a emergência tardia de uma modernidade, decorrente do enfraquecimento dos
ideais de uma elite agrária, definitivamente em declínio só no século XX, a
partir da Revolução de 30, e a crise de uma subjetividade moderna
incipiente, individualista e burguesa.

Se Jotuomba, onde o filme se passa, foi uma cidade morta, cidade de um
fausto antigo como outras cidades do Vale do Paraíba, esse passado não
parece ter deixado traços no vilarejo, nem na memória. É a fotografia que
revela corpos fantasmagóricos em uma cidade que parece não existir. Se
pensássemos em tom fantástico, poderíamos simplesmente dizer que todos
estão mortos. Contudo, esta me parece uma saída fácil.

O filme exala uma sensorialidade, bem próxima da perda de
materialidade (e nesse sentido pensamos em fantasmagorização) que faz com
que a câmera se aproxime mais dos corpos conforme os dias passam e,
sobretudo, quando a garota revela os rostos, sobretudo o de Madalena, a ela
mesma. Por fim, Madalena se entrega nua para que Rita faça uma foto dela,
pouco antes de morrer. Como se virar imagem fosse mais um passo dado menos
para morrer que para desaparecer. Há algumas boas lembranças de namoradas
da juventude, das cartas que Madalena escreve para o marido falecido como
um diário. Há também, como já falamos, as lembranças dos pais que viram
seus filhos morrerem antes deles, dos que partiram e ficaram em fotos sem
donos que Madalena guarda. Herança que será talvez a de Rita... Não é
melancolia nem nostalgia, mas a busca de outra temporalidade, de outro
pertencimento que é oferecido à Rita quando Madalena morre. Longe da
sensação de mera recusa do mundo moderno da velocidade, é um encontro com
outro mundo, que poderia ser mostrado por uma nostalgia da sensação de
pertencer a uma comunidade, no entanto, é só um encontro de sobreviventes
que vivem seus poucos ou longos dias em outro ritmo. Se não há, repito, nem
nostalgia nem melancolia, essa vaga sensação de desaparecimento que torna
espaços e corpos uma mistura de ruínas pobres e fantasmas nos aponta um
sutil espaço de sobrevivência e encontro com que a protagonista é
confrontada, como nós espectadores.

Nesse mundo feito de noites escuras e silenciosas dias de muita luz e
natureza, longe do frenesi das grandes cidades, dos estímulos dos carros e
multidões, somos convidados a outro tempo, a outra vida, que pode nos
entediar ou pode nos fazer pensar o que é a vida quando se tem muito tempo
e pouco a fazer. O ritmo da pequena cidade parece vir de uma estrutura
comunal em que cada um fica responsável por uma parte da refeição coletiva.
Mas, fora isso, o trabalho não aparece como um peso. Tudo está a ser gasto
por quem parece ter pouco tempo de vida. Vida cotidiana, marcada por uma
rotina, pelo essencial ou por um mínimo de gestos e atividades.

Prisão ou casa? Rita diz que devia ter nascido em outro século. Será
essa sensação que a faz se sentir em casa ali? Não fala nada sobre seu
passado. Nada a respeito de onde veio parece prendê-la. Ela caminha, tira
fotos, não sabe porque veio, não sabe quanto tempo ficará. Terão as fotos
que tira encontrado um lugar ali ou ela mesma terá que ocupar o lugar de
Madalena e fazer o pão no seu lugar? Dos espectros da fotografia ao
concreto do pão. Da imagem que nos diz sobre a passagem do tempo ao pão que
nos alimenta a cada dia. Fazer imagens ou fazer pão? Mais do que uma volta
ao papel feminino tradicional, a afirmação de um ato concreto, material.
Olho Madalena fazendo pão. Lembro novamente de minha avó na cozinha. Quando
criança ficava só olhando. Não aprendi a fazer, a cozinhar. Ando pelo mundo
sem lastro, sem peso. Às vezes, tenho saudade de minha avó. Tenho saudade
do que a cada dia perco. Fantasma também, ando por ruínas. Em busca
daqueles tanto ou mais acostumados ao escuro?

As ruínas da pequena cidade me acompanham nas metrópoles marcadas pela
gentrificação em que prédios envelhecidos caem por terra para serem
substituídos por prédios feitos para não durar. É o que se chama progresso,
modernização, ou seja, mais negócios ou substituição do velho pelo novo.
Por que que gostaríamos que as cidades virassem museus renovados com
fachadas pintadas como novas?

O próprio filme, no seu título, enuncia sua fragilidade, sua
inexistência: histórias que só existem quando lembradas. Se não há memória,
então tudo é destinado a se perder, e, antes do total esquecimento, as
imagens se transformam em fantasmas, espectros. Apenas um desaparecimento
tão discreto quanto inevitável. Tanto quanto as cidades foram as imagens
que nos fizeram fantasmas, caminhantes incessantes, com encontros breves,
sem raízes.

Uma luz de lampião treme no escuro quando o filme começa. No fim, os
moradores com vários lampiões batem à porta para pedir que Rita fique, que
faça o pão, função que era de Madalena que acabara de morrer. Não sabemos a
resposta de Rita. Pouco importa. O tempo passou. Já estamos mergulhados
nesse outro tempo, nesse outro mundo.




A terra, uma terra antiga cortada pela estrada real três
vezes secular que ia do Rio a S. Paulo, vai tornando-se
cada vez mais desabrigada e pobre. Tumultuando em colinas
desnudas, de flancos entorroados; afundando em pequenos
vales sem encantos, onde se rebalsam pauis frechados de
tábuas; desatando-se, planas arenosas e limpas - nada mais
revela da opulência incomparável que por três séculos, da
expedição de Glimmer aos dias da Independência, fez do
vale do grande rio, alteado num socalco de cordilheiras e
recamado de matas exuberando floração ridente, o cenário
predileto da nossa história".
(Euclides da Cunha, "Entre as Ruínas")







Para compreendermos o impasse de Rita, é importante nos perguntarmos o
que entendemos como ruínas, questão que tem tido uma grande fortuna crítica
a partir das mais diferentes abordagens[4]. Aqui me reaproximo[5] da visão
de história centrada na melancolia de Walter Benjamin. No contexto da
melancolia, ao invés da simples desconfiança em relação ao futuro, ela
implica uma visão histórica antiutópica, catastrófica, em que o futuro é
vazio, o que o presente deixa ser; o presente, ruínas; o passado,
irrecuperável. Não há uma nostalgia do passado, um refúgio na lembrança,
mas um constante corpo a corpo com a morte no presente, um viver marcado
pelo tempo que passa e tudo corrói, na materialidade do espaço enquanto
ruína e do corpo como cadáver que em breve será.

Em Histórias que só existem quando lembradas tudo foi dito, até o
desastre. E se houve desastre, ele aconteceu há tempos. Nada resta agora a
ser dito diante dessas ruínas pobres; ruínas sem histórias, sem lembranças,
esquecidas pelos seus moradores e desconhecidas por quem não mora ali.
Nesse sentido, essas casas parecem se opor às casas barrocas, que sob a
marca da decadência, contudo, nunca podem ser modestas, pois se há "um
fascínio ao mesmo tempo que a constatação de uma decadência, não é possível
fazer sentido dessa decadência a partir do ponto mais baixo. O olhar
Barroco está ligado à riqueza e à suntuosidade, mesmo e sobretudo se elas
pertencem ao passado" (PITIOT, P., 1972, p.42). As ruínas barroquizantes
podem se aproximar dos castelos criados a partir dos romances góticos pelo
apelo ao passado, porém, esses castelos, verdadeiras ruínas românticas,
correm o risco maior de se tornarem museus, espaços preservadores de um
passado morto, legendário, passível de uma maior idealização, quando não se
hiperbolizam em verdadeiras casas mal-assombradas unidimensionalizadas como
espaços do mal nos filmes de terror que, ao contrário das ruínas barrocas,
trazem o passado vivo no presente, com toda sua complexidade.

Aqui as ruínas parecem ser de outra ordem – esta é uma
particularidade do filme de Julia Murat. De repente me vem à cabeça Viagem
ao principio do mundo (1997), de Manoel de Oliveira, e as pessoas
esquecidas em uma vila isolada. No entanto, o filme de Manoel de Oliveira
é, em grande parte, consumido pela viagem até o vilarejo. Aqui estamos
imersos na rotina da vila, como se vivêssemos há muito lá? Como se fôssemos
vê-la pela primeira vez quando Rita chega e fotografa? Como se fôssemos ver
o lugar de uma outra perspectiva pelas fotos que Rita tira e revelam a
fantasmagoria desse lugar aparentemente tão sólido? Há uma sombra indelével
do passado que não está, por exemplo, em Girimunho (2011), em que Clarissa
Campolina e Helvécio Marins mergulham em um pequeno vilarejo, centrado na
estória de uma velha senhora, entre a morte do marido e a partida da neta
para estudar.

Se as ruínas modernas eram um contraponto crítico ao culto do novo, à
rapidez da transformação das cidades, já que (como nos lembra Adorno e
traduz Caetano Veloso) "tudo que é moderno, mal envelheceu um pouco, parece
arcaico" (ADORNO, T., 1992, p.207), e as ruínas pós-modernas, nos termos de
Nelson Brissac Peixoto (1987), se dão como fachadas e restos de cenários.
Aqui estas ruínas pobres, pelas quais poucos se interessam, podem nos dizer
algo de menos imediato e distinto.

No filme de Julia Murat, o passado da cafeicultura é sugerido pela
estrada de ferro desativada, pelos vagões de trem de ferro enferrujados e
pela referência que a personagem Rita faz ao dizer que aquele povoado
lembra estórias que o pai lhe contava. Nada muito explícito, claro, preciso
em relação à história da região. O pouco que sabemos do passado aparece
como vagas lembranças pessoais e no que vemos nas paredes e muros
deteriorados, na pele das pessoas, em lento declínio. Corrosão pelo tempo
dos espaços e corpos. As coisas persistem, cada dia um pouco menos, no
lento caminhar que é a vida dessa comunidade de velhos distantes de suas
famílias. Eles são as últimas companhias que têm – um ao outro.

Um mundo perdido, nada paradisíaco; nenhum Shangri La que procura se
proteger do mundo. Apenas gestos banais de um cotidiano que se repete. Um
mundo sob o signo do menor e da modéstia. Por mais que haja estórias de
grande perda (assassinato de um filho, afogamento de outro etc.), isso tudo
é narrado com travo amargo, porém, como algo há muito passado. Pequenas
coisas, pequenas lembranças nas fotos. Nada do mundo perverso de Farnese de
Andrade. Fazer o pão. Levar o pão. Tomar café. Discutir. Ir à missa.
Almoçar. Ir ao cemitério. No resto, este grande temor da modernidade, como
explorar Leo Charney em Empty moments (1998): o temor do vazio em
contraponto a uma vida marcada pelo bombardeio de sensações parece aqui não
estar presente.

Nas palavras de Andrea Schonle e Julia Hell, no prefácio de Ruins of
Modernity, "ruínas podem significar o fim do velho ou começo do novo"
(2010, p.XIII). O que podemos então esperar dessas ruínas? Não há
estetização do monumental; não são apresentados lugares para ser
contemplados. Só as fotografias chamam nossa atenção para os espaços
modestos encenados. Nada de sublime, nenhum trauma. Tudo se perdeu (há
tanto ou pouco tempo, não importa) que nem a lembrança da catástrofe, se
houve, existe mais. Há um prazer no eclipse, no ocultamento, no ocaso que
me fascina. Lembro novamente do vilarejo em que meus avós moravam. Vila dos
Sonhos, perto da fronteira entre Goiás e Mato Grosso, em que se chegava por
uma longa estrada de terra; no período de cheias, atolava-se e se passava
por frágeis pontes, até chegar à casa. Lugar tão isolado que nem o recente
boom do agronegócio alterou. Cidade encostada a uma serra, na beira da
estrada, da qual os jovens partem para estudar e trabalhar. Sem legado, nem
passado. Não ruínas hieráticas de civilizações antigas. Nem ruínas do
consumo, da indústria. Ruínas de um futuro do passado, de um futuro que não
aconteceu. Também ruínas pobres. Continuo na caminhada. Antes de
desaparecer, reencontrarei a casa.

Por mais incurioso que seja o viajante, ao romper aquelas
veredas em torcicolos, vai sendo invadido pela tristeza
daqueles ermos desolados. E deparando de momento em
momento as cruzes sucessivas que a espaços aparecem às
margens do caminho, tem a impressão de calcar um antigo
chão de batalhas esterilizado e revolto pela marcha dos
exércitos... (Euclides da Cunha, "Entre as Ruínas")


Quanto mais revia Histórias que só existem quando lembradas ficava
mais evidente que cidade morta reencenada estava não sob a sombra da
melancolia nem da nostalgia, e sim, sob o signo do desaparecimento em que
mesmo os personagens são transformados pouco a pouco em fantasmas – não
zumbis, mortos-vivos, mas aqueles esquecidos e que esqueceram até de si,
como Madalena que leva um susto ao ver a sua fotografia e limpa o espelho,
que parece há muito não usado. A chave mesma para transformação do espaço e
dos personagens em figuras frágeis, fantasmagóricas estaria em Rita, a
jovem protagonista, que chega à cidade para fotografá-la. E será pela
fotografia, sobretudo pelas fotos analógicas em preto e branco, tiradas por
um pinhole, que vemos os corpos envelhecidos se misturarem às paredes
marcadas pelo tempo. A fotografia é a etapa final de perda da materialidade
dos corpos e da transformação do espaço em ruínas pobres.

Não há um grande passado. Não há a agonia do Fogo morto, de José Lins
do Rego; nem a angústia de São Bernardo, de Graciliano Ramos; nem o
mergulho na transgressão dos corpos feita por Lucio Cardoso em Crônica da
casa assassinada (romance adaptado para o cinema por Paulo César
Saraceni.). Os vagões de trem e a construção gigantesca vazia ou a igreja
quase sem estátuas nada revelam, nem falam de uma época áurea no passado,
de uma modernização fracassada como Francisco Foot Hardman nos mostrou em
seu livro Trem-fantasma ou a que Jia Zhang-Ke nos traz nos seus primeiros
filmes sobre a China contemporânea. Talvez o filme de Julia Murat possa
dialogar mais com os personagens de Jia Zhang-ke e menos com os personagens
do mundo Barroco. A escolha não é dos grandes centros e a pequena Jotuomba
é bem diferente da pequena cidade em que Jia Zhang-Ke nasceu e a qual
mostrou radicalmente transformada em Pickpocket (1997) e Prazeres
desconhecidos (2002). Mas, para além disso, esses personagens em vias de
desaparecer parecem dar as mãos. Madalena e o casal de amantes de O mundo
(2004) entram na morte como uma extinção, um apagamento, um desparecimento,
para serem esquecidos em breve.

Se as casas-grandes patriarcais em ruínas ultrapassaram significados
regionais e tornaram-se cenas da modernização abortada no Brasil, cuja
violência é maior que a da modernização do século XIX acontecida na Europa
ocidental e nos Estados Unidos, tesses personagens pobres, migrantes[6],
tanto na China como no Brasil, no passado ou no presente, nos revelam um
drama da hipermodernidade, marcada pelo desaparecimento e pela quebra de
vinculos. Se em Jia os personagens se quedam sós, em trânsito, até sua
morte, aqui, em ritmo muito mais lento, também é o drama do esquecimento e
do desaparecimento que é colocado em pauta.

Como disse, não é melancolia, nem nostalgia, mas outra temporalidade,
outro pertencimento que são oferecidos à Rita quando Madalena, na casa de
quem ela se hospedara, morre. Longe da sensação de mera recusa da
modernidade, é um encontro com outro mundo que poderia ser marcado por uma
nostalgia que buscasse preservar o senso tradicional de comunidade; mas
não, é só um encontro de sobreviventes que vivem seus poucos ou longos dias
em outro ritmo. Mesmo se considerarmos anacrônica a situação, podemos
pensar a partir do lugar inesperado que essas ruínas e fantasmas ocupam no
presente. O que o cinema[7], nas palavras de Johannes von Moltke, pode nos
oferecer é algo equivalente a uma imersão do viajante de ruínas. Ele
permite uma reversibilidade do tempo e as ruínas nos convidam para o
passado, mesmo aqui, em que não se sabe qual exatamente foi ele. De todo
modo, não há uma estética das ruínas unificada, porque seu sentido muda no
decorrer do tempo (MOLTKE, 2010, p.397-402).

As ruínas do filme de Julia Murat não remetem a um discurso de fim ou
crise do cinema, como na tradição dos grandes nomes da modernidade, como
nos filmes de Rosselini ou naqueles que fizeram filmes em que as ruínas se
situam em longos planos, como nos trabalhos de Wim Wenders, Theo
Angelopoulos e Andrei Tarkovski. As ruínas pobres e modestas encenadas
também não são ruínas industriais ou pós-industriais monumentais e
espetacularizadas, como nas fotos de Edward Burstinky. Elas não evocam um
passado perdido no tempo, nenhuma nostalgia patriarcal ou colonial. Ruínas
inatuais, extemporâneas, fora do tempo.

São espaços sobre os quais não sabemos de seus moradores anteriores,
apenas dos atuais. Pela visão de Rita, o olhar da diretora enxerga uma
imagem no presente ou uma imagem fora do tempo, uma imagem sem o peso da
história, sem uma memória coletiva. Há traços parcos da memória pessoal
equivalentes a essas ruínas pobres, que emergem no filme e para Rita. Trata-
se de uma viagem para a protagonista e para nós espectadores, embora não
saibamos, não tenhamos um motivo forte para fazê-la. Para Rita, há uma
afinidade por lugares velhos, pelo passado, porém, isso não é tanto
traduzido pela fala; mais pelas imagens, pela fotografia. A fotografia não
preserva o passado. Ela não só torna o presente um passado, como torna os
corpos rarefeitos, desmaterializados mais do que fantasmagóricos. Ela
mistura o corpo com o espaço, com as paredes, criando superfícies e
texturas em que a pele se faz parede e a parede se faz pele, ambas marcadas
pelo tempo. Não são retratos. São mais projeções de uma instalação em que a
parede é uma tela. Dissolução na matéria. Nenhuma espiritualidade. Nenhuma
transcendência. Nenhuma metafísica.

Há quase que só um presente fora do tempo. É a fotografia que coloca
primeiro os espaços vazios e depois as pessoas no tempo das ruínas. A
sucessão das imagens, mostradas em momentos, um slide show, é a única
história possível. Uma historia quase sem palavras. Os personagens falam
pouco de conhecidos, de filhos perdidos, de ex-marido, de ex-namoradas.
Bolhas em breve a se perderem em um oceano de esquecimento. São os espaços,
os objetos em conexão com as pessoas revelados pela fotografia, que contam
uma história submersa, que os próprios habitantes de Jotuomba, nem Rita, se
dão conta. Uma história em que a ausência de passado é redimida pela
imagem. Uma história distante dos grandes fatos como guerras, holocaustos,
catástrofes naturais. Uma história que se inscreve na matéria e no corpo
sem dele se dissociar, criando um clima, uma atmosfera afetiva, vaga e
difusa, em que até podemos perceber, por um momento, em algo que voa
(poeira? pólen?), mais do que uma narrativa clara e dramática. Acho que é
para essa experiência que a fotografia leva e confirma, para além de uma
crônica do cotidiano ou de uma narrativa fantástica, ainda que elementos
tanto de uma poética do cotidiano quanto da narrativa fantástica estejam
presentes. Seria a forma de pensar o passado menos como história e mais
como atmosfera que nos retira do presente sem chegar a reconstruir o
passado. Nada do gesto épico de refazer a história pelos que foram
vencidos, de retirar o passado do seu esquecimento. A história, se há, é um
vago desejo de pertencimento e de se deixar levar. Recusa da história?
Certamente, recusa dos grandes dramas, das grandes catástrofes. A aposta é
na imagem e pela imagem como criadora de atmosfera. É a atmosfera (mood)
que constitui "as maneiras pelas quais estamos juntos" (HEIDEGGER apud
FLATLEY, 2008, p.22).

Por fim, não é um Brasil a ser redescoberto, nem um Brasil arcaico
como em Sudoeste (2012) de Eduardo Nunes. O que faremos dessas ruínas que
agora nos pertencem? Seriam ainda paisagens que podem ser ocupadas pelos
nossos afetos? Contraponto disfórico à celebração do progresso e da
modernização, da febre de especulação imobiliária e gentrificação que
grassa por tantas cidades mundo a fora, discretas, a não ser quando
espetacularizadas pelo turismo e pelo conflito social? Continuo me
perguntando o que essas ruínas nos fazem lembrar, nos querem dizer e não
queremos ouvir. Talvez haja algo meio fora da nova ordem mundial, como
canta Caetano Veloso, e elas podem também estar longe das ruidosas
manifestações que chamam tanto a atenção da mídia, de corações e mentes.
Mas ouço com atenção a profecia de Anselm Kiefer: grama crescerá sobre as
vossas cidades.

Eu apago a vela, desligo o computador. Amanhece. Vou caminhar. Há
muito tempo o Rio de Janeiro está submerso e uma densa mata ocupa a ilha de
Manhattan.




Bibliografia

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[1] Agradeço as leituras e sugestões de André Antonio Barbosa e Lucas
Murari.
[2] Professor Associado da Escola de Comunicação da UFRJ, pesquisador do
CNPq e autor de No coração do mundo: paisagens transculturais (Rio de
Janeiro, Rocco, 2012), A delicadeza: estética, experiência e paisagens
(Brasília, Ed.UnB, 2005), O homem que amava rapazes e outros ensaios (Rio
de Janeiro, Aeroplano, 2002) e Nós os mortos: melancolia e neo-barroco (Rio
de Janeiro, 7Letras, 1999). Acabou de concluir seu último livro que tem o
título provisório de Caminhando nas Folhas Secas: Andando com Filmes
Brasileiros Contemporâneos.
[3] "Mas se a crítica à iminente transformação urbana – que associa, no
capitalismo brasileiro, especulação imobiliária e higienização social – já
se tornou uma espécie de tema clichê entre nós (atravessando filmes tão
diferentes quanto 'Um Lugar ao Sol', 'Avenida Brasília Formosa', 'Vista
Mar', 'Em busca de um lugar comum', 'Vigias', 'O Som ao Redor', 'Câmara
Escura', 'A Cidade é uma só?' ou até 'Amor, Plástico e Barulho'), as
maneiras de abordá-la têm sido muito diferentes, com resultados mais ou
menos inventivos" (GUIMARÃES, 2014).
[4] A bibliografia sobre ruínas é gigantesca. Para uma apresentação a
partir de diversas orientações teóricas e objetos, foi importante para
minha leitura como ponto de partida (DILLON, 2011) bem como para uma visão
mais atualizada (HELL & SCHÖNLE, 2010).

[5] Como já discuti (LOPES, 1999).
[6] Não deixa de ser curioso que o ex-marido de Madalena tenha sido
imigrante italiano.
[7] Não encontrei trabalhos mais aprofundados e desenvolvidos sobre as
ruínas no cinema, contudo, há uma estimulante exceção: Habib, 2008.
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