Rumo a uma teologia aymara. Reflexões inspiradas por Enrique Jordá Arias

June 5, 2017 | Autor: C. Mamani Ticacal... | Categoria: Teología, Aymara, Cristología, Inculturación
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RUMO A UMA TEOLOGIA AYMARA Reflexões inspiradas por Enrique Jordá Arias Por Carlos D. Mamani Ticacala,sj. FAJE-BH 2011 Revista Atualização, n. 352, p. 459-494, BH-Brasil, 2011

INTRODUÇÃO

Há poucos dias concluiu o IV Simpósio de Teologia Índia do CELAM na cidade de Lima, Peru onde o encontro tinha por tema: El sueño de Dios en la creación humana y el cosmos (O sonho de Deus na criação humana e no cosmos). Na sua mensagem final os participantes manifestam o entusiasmo por tratar a teologia da Criação na fé católica e nos mitos, ritos e símbolos dos povos indígenas da América Latina; expressam a descoberta das “sementes do Verbo” nos mitos e relato cosmogônicos dos povos originários, para logo interpretá-los, traduzi-los desde a própria língua e cultura a fim de aproximar-se a Cristo presente nas culturas dos povos. Ver como Cristo esteve presente desde as origens acompanhando a humanidade até levar a criação à plenitude. Mas advertiu que uma desqualificação dos mitos indígenas que falam da criação da vida não tem fundamento na doutrina da Igreja e em seus documentos, por isso, devemos escutá-los primeiro, para depois discernir e finalmente anunciar explicitamente a Cristo1.

Nesse sentido o seguinte trabalho quer de modo simples apresentar esta aproximação à cultura e sobre tudo à experiência religiosa do milenar povo aymara. Mas nossa aproximação será a partir dos trabalhos realizados pelo jesuíta Enrique Jordá que ao longo destes anos vivenciou em carne própria a experiência religiosa deste povo. Fruto desta experiência são dois trabalhos seus: Teología desde el Titikaka (1981) e Cristo en comunidades aymaras de El Alto (2009). Nosso trabalho tem dois momentos. O primeiro apresentará de modo geral a cosmovisão aymara que 1

Cf. El sueño de Dios en la creación humana y el cosmos. MENSAJE FINAL DEL CUARTO SIMPOSIO DE TEOLOGIA INDIA DEL CELAM. Lima: Abril, 2011.

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está muito ligado a toda uma fé e experiência religiosa. O segundo momento realizará uma leitura teológica dos elementos próprios desta cultura com a finalidade de uma aproximação de diálogo intercultural entre o aymara e o cristianismo.

Esperamos que a Igreja possa ser uma comunidade inserida na realidade, história e cultura dos povos, uma comunidade que se articule com outras comunidades eclesiais na Igreja universal enriquecida tanto com a tradição apostólica como pela experiência das culturas originarias. E que a volta às fontes e a abertura às experiências históricas dos povos nos possam renovar e enriquecer mais nosso dialogo com os “outros”, que também são nossos irmãos.

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1. COSMOVISÃO E EXPERIÊNCIA RELIGIOSA NO MUNDO AYMARA

No Altiplano peruano-boliviano se encontra uma cultura milenária, a cultura Aymara. Esse povo conta com mais de dois ou dois e meio milhões de habitantes. Atualmente abarcam a cidades de La Paz, Oruro, Potosí, Cochabamba (na Bolivia), Puno, partes de Moquegua, Tacna, Arequipa (no Perú), e o norte de Arica (no Chile).

Fig. 1 Mapa e localização do povo aymara. Fonte: JORDA, Teología desde el Titikaka, 2003. Na época antiga se identificam os aymaras com o Império de Tiwanaku ou cultura Tiwanacota (séc. 400-200 aC) que se desenvolveu às margens do Lago Titikaka e que no transcurso dos séculos foi decaindo. No época incaica (séc. XV) os aymaras foram submetidos pelos Incas e formavam parte da estrutura do Kollasuyo. Apesar do acontecido a lembrança que fica hoje dos Incas por parte dos aymaras atuais é de simpatia e de algo próprio em sua história. Na época colonial (séc. XVI-XIX) os conquistadores impuseram sua cultura e exploraram os aymaras no serviço nas minas, mas os aymaras conservaram sua língua, sua música, suas formas de trabalho, sua cosmovisão. Na época republicana (1825-2009) a independência da nova república da Bolívia 3

trouxe uma mudança para o mundo aymara, por ficar dividido pela nova fronteira (Perú-Bolívia), mas esta mudança só representou uma troca de “amo” porque o novo sistema limitou o uso da terra e impôs o pagamento de impostos, tirando o caráter comunitário próprio do aymara. O povo aymara ao longo dos séculos soube resistir às dificuldades que a história registrou e soube manter viva sua identidade milenar. E nestes últimos anos lidera todo o processo de transformação que se vai experimentando na Bolívia. E tudo isso não é alheio à Igreja e à Teologia. Por isso, queremos apresentar o povo aymara e como o cristianismo hoje pode dialogar com esta cultura, tendo em conta já uma longa relação que se iniciou há cinco séculos.

1. 1. Cosmovisão no mundo aymara Foi escrito muito sobre a cosmovisão e a religião aymara2, mas seguindo o estudo de Jordá nos deteremos numa visão mais própria e em suas características principais, que são: a preocupação pelo saber das leis do universo, porque esses conhecimentos proporcionam bases para a vida religiosa, econômico-social, e a adaptação de sua vida a estes conhecimentos, fazendo com que seja harmoniosa com a realidade vivenciada. Na cosmovisão aymara se concebem três espaços que têm uma relação íntima entre eles. Por isso, é melhor pensar numa distinção mais que separação. O aymara os chama: Alaxpacha (o mundo de cima), Akapacha (o mundo daqui) e Manqhapacha (o mundo de baixo e de dentro).

1. 1. 1. Alaxpacha

Em tempos prévios à conquista o Alaxpacha não coincidia perfeitamente com o céu cristão, hoje em dia há uma coincidência prática. Trata-se do além misterioso onde chegam, só depois da morte, as pessoas de boa conduta harmoniosa e equilibrada na vida. No entanto o aymara parece crer que esse destino final do “justo” não se alcança imediatamente depois da morte, mas que a alma vaga pelo Akapacha durante três anos antes de fixar-se em sua moradia definitiva no Alaxpacha. Assim mesmo, os moradores do Alaxpacha estão em permanente relação ativa com os homens e demais criaturas do Akapacha (JORDÁ; 2003, p. 111). 2

KESSEL, Cosmovisión aymara, p. 69-88. Ou no melhor dos casos inclusive críticas a esta cosmovisão: OLMEDO, La Cosmovisión aymara, p. 51-155.

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A respeito do Alaxpacha e seu moradores há muitas interpretações, há quem diga que o Alaxpacha é uma importação cristã dos primeiros evangelizadores para significar o céu cristão, assim como o Manqhapacha para o inferno. Mas tais conceitos e compreensão nunca entraram na mente do aymara que recebeu os conquistadores, porque o Alaxpacha já tinha moradores próprios. Porém, os mesmos aymaras, incluindo os que pretendem voltar a suas raízes abandonando o cristianismo, acham que o Alaxpacha é o além, mas que também está no aqui. Não é uma idéia alheia ao cristianismo, à transparência do Transcendente em nosso mundo, tampouco é uma conceituação tão distante do dogma da comunhão dos santos ou a “fé” tradicional nas intervenções de Deus em nosso mundo por meio de seus mensageiros. Quer dizer, que o cristianismo “autêntico” e oficial admite a utilização de muitos mitos para significar o inefável da presença real do além no aqui. “(…) En Akapacha viven los poderes- los diferentes seres espirituales que tienen mucha relación con Dios Padre y demás espíritus de Alaxpacha que desde allí nos controlan en forma espiritual y velan desde el cielo. Estos poderes tienen el encargo de Dios Padre de completar el acabamiento de las fuerzas del bien. Son poderes buenos y generosos y sólo hacen daño cuando se los ofende u olvida. Hay que saber vivir en armonía con ellos”. (JORDÁ; 2003, p. 113).

Note-se também que o sufixo “Pacha” dos três espaços não só conota a idéia de lugar ou ambiente, mas também tempo. Nesse sentido a melhor tradução pode ser de “mundo”. Ao dizer “o mundo do além” significa uma realidade distinta de nosso mundo atual, onde o tempo se encontra como suspenso em outra dimensão, detido onde os seres não envelhecem. Contudo o que foi dito podemos entender que o aymara acolheu no Alaxpacha, na cosmovisão, todos os “seres” cristãos do “outro mundo” ou da “vida eterna” que lhe foram impostos com a grande tradição cristã que se agregou a sua tradição ancestral. Como já tinha no Alaxpacha uma grande quantidade de “seres superiores”, esses não foram deslocados pelos “seres” do cristianismo, mas os “seres superiores” do cristianismo se aliaram aos ancestrais para cumprir melhor as mesmas funções e, ao mesmo tempo, novas funções “cristãs”, e outras vezes os seres superiores dos ancestrais foram “cristianizados” recebendo um novo nome, mas conservando suas funções ancestrais frequentemente acomodadas às funções cristãs. “Cada familia y persona está ligada a un ser espiritual que controla la vida del Akapacha: así san Marcos y Trinidad controlan los animales, san Juan las ovejas, Santiago el trueno, Justo Juez las buenas justicias (…) el Sol como un padre tiene poderes grandes, la Luna es mujer que

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cuida maternalmente la gente, las Estrellas son muchachas bellas que antiguamente bajaban a la tierra a engañar a los hombres(…)”. (JORDÁ; 2003, p. 112).

Dessa assimilação no Alaxpacha aymara de hoje encontra-se em primeiro lugar o Deus transcendente Pai, Filho e Espírito Santo, chamado também Apu-Kollana-Auqui. Esse é o Deus supremo Senhor e criador. Contudo, para o aymara esse Deus absoluto tem seus servidores, cuja função é fazer produzir boas colheitas, enviando chuva e sol, multiplicando o gado, cuidando das pessoas, das desgraças e dos “seres adversos”; e ajudando-os a chegar ao Alaxpacha, o céu. Assim o serviço dos “ajudantes divinos” se concentra em manter o equilíbrio e a harmonia. Os principais servidores ou ajudantes divinos são os anjos, os santos, incluindo “as virgens” e “os cristos”, as almas boas, as almas das crianças batizadas chamados “anjinhos”, a Pachamama ou mãe Terra muitas vezes equiparada com a Virgem Maria, o Tata Willka (Pai ou Senhor-Sol), a Mama Phaxsi (Mãe ou Senhora Lua), e as estrelas. Os anjos, os santos, as almas boas e a Pachamama fazem parte também do Akapacha (este é o nosso mundo), e o sol, a lua, as estrelas só estão no Alaxpacha, porém os efeitos de sua ação são mais evidentes no Akapacha, porque constituem uma presença parecida aos santos por meio de suas imagens. Quanto à Pachamama existem interpretações divergentes. Mas se temos em conta que “Pacha” abarca um significado mais amplo que “terra”, que abrange também “tempo” e “mundo”, então no Alaxpacha, a Pachamama é senhora de toda realidade e no Akapacha se personifica como a terra, sobretudo, a terra de cultivo, que dá vida aos homens. Nesse sentido se explica hoje a equivalência entre a Virgem Maria, cristã, de Copacabana e a Pachamama. Por outro lado, o sol, a lua e as estrelas não são moradores do Akapacha, mas têm muito a ver com a vida dos homens. O sol dá calor e luz, faz crescer as plantas e marca as estações. A lua com seus movimentos e fases indica tempos propícios ou negativos para os distintos trabalhos do cultivo. As estrelas também marcam a vida agrária. Todos eles são servidores de Deus e Ele por meio deles comunica ao homem toda uma série de indicações que ele deve aproveitar para manter o equilíbrio.

1.1.2. Akapacha.

O Akapacha é este mundo que nos rodeia e em que vivemos, com todos os seus elementos naturais (montanhas, lagoas, rios, rochas, etc) e os espaços trabalhados pelo homem (chácara, 6

casas, capelas, caminhos, etc). Mas para o aymara tanto os elementos naturais quanto os que resultam de sua arte, do seu trabalho (cultivos, construções, etc) possuem espíritos tutelares que cuidam da harmonia e do equilíbrio do Akapacha. Estes espíritos tutelares são como uma mundanização de seres pertencentes do Alaxpacha que, a serviço de Deus e dos homens, penetram espiritualmente no Akapacha onde inclusive se “encarnam” nos mesmos elementos naturais ou em outros objetos artificiais. “Su realidad es este mundo que nos rodea y al que prestamos más atención, porque vivimos en la tierra y la vida depende de ella y de los elementos naturales que se encuentran en la naturaleza. Esto es Akapacha: la misma tierra en donde el hombre nace, vive, procrea, realiza sus actividades y muere, y el suelo concreto, el que se ve y palpa. Algo generador y sagrado: Pachamama, Madre Tierra sin la que nadie viviría aquí”. (JORDÁ; 2003, p. 113).

Neste sentido, é parte “espiritual” do Alaxpacha, em primeiro lugar, a Pachamama que seria a Mãe Terra que cuida de todo o Akapacha e da vida de todos os homens através dos produtos das colheitas. Os Achachilas (ou vovôs e os antepassados) cuidam dos territórios ou regiões. Os Jacha Achachilas (grandes antepassados) estão “encarnados” nas montanhas altas, de onde cuidam de uma região extensa e ensinam a seus descendentes como devem viver em harmonia e equilíbrio com a totalidade dos três Pachas. Os Jisk´a Achachilas (antepassados menores) situados nas montanhas mais baixas e mais próximas também cuidam dos territórios menores e de cada comunidade aymara. Os Uywiris são os protetores do lar e do gado e “encarnam-se” nos lugares sagrados das comunidades locais. Os Wak´as, representados em pequenas estátuas ou pedras de formas especialmente chamativas, são os tutelares do cuidado com o gado.

Os

Llawllas ou Illas são os espíritos dos animais e da paisagem e se especializam em favorecer a procriação dos animais e a fertilidade nos cultivos. A crença em todos estes espíritos tutelares mencionados conserva-se até o dia de hoje. E a estes espíritos tutelares ancestrais agregaram-se os que vieram do cristianismo trazido no período colonial. Os Santos (imagens de santos) se preocupam pelos aymaras e estes lhes oferecem orações, missas e festas. Equivalente aos Santos encontram-se também os Senhores (imagens de Cristo crucificado) e as Virgens (Maria e outras santas). Também as Almas boas dos mortos cuidam do bem-estar de suas famílias, mas exigem um trato especial durante os primeiros três anos depois de sua morte, período no qual vai orientando sua sorte definitiva para o Alaxpacha ou Manqhapacha.

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De acordo com a sabedoria antiga dos antepassados o aymara aprendeu a ler os sinais do Alaxpacha para saber como comportar-se e alcança uma vida em harmonia com a natureza, com os três Pachas e com os homens. Para isso, ele é vigilante, e preocupado, sabe o que deve fazer para que não se desestabilize o equilíbrio ou para restabelecê-lo quando se perde. No homem aymara existe uma íntima união entre a natureza e o mundo espiritual, é nessa relação que se define a harmonia.

Frente aos comportamentos irresponsáveis ou caindo em faltas morais, os seres tutelares mais que castigar, fazem uma chamada de atenção e de advertências, isto é, os espíritos tutelares têm para com o homem aymara uma atitude geralmente favorável, mas, por outro lado, têm também algo de ambivalência provocando desgraças e dor ou harmonia e bem-estar.

1.1.3. Manqhapacha.

O Manqhapacha é o mundo adverso que o homem aymara deve enfrentar constantemente. Sua localização, expressada no Akapacha, é nos lugares escuros e abismos inóspitos, os lugares úmidos, e, em certo sentido, nas entranhas da terra onde se encontram os minerais extraídos pelos mineiros. Também é o lugar onde mora toda uma série de “demônios e diabos”, homens que tiveram má conduta e que não se arrependeram ou não fizeram caso das advertências para restabelecer o equilíbrio. “Su realidad es el mundo de adentro, el que está debajo de la tierra, y donde viven seres maléficos, que desde las profundidades acechan constantemente a la gente; el reino de las tinieblas, de encantos, de sufrimientos para los que no obedecen al ‘Supaya’ (‘demonio’) a quien pertenece todo lo que existe en las entrañas de la tierra: tesoros, minas, y da recompensa con ello a los que le sirven; lugar donde van sólo la gente que han pecado durante su vida y no se han arrepentido y padecen ahí el fuego del castigo quemándose pedazo a pedazo. Llamado también Ch´amaqa, o lugar oscuro”. (JORDÁ; 2003, p. 114).

Assim como o Alaxpacha tem influência boa no Akapacha, pelo contrário o Manqhapacha tem uma influência geralmente maléfica. Do Manqhapacha provém a eficácia das bruxarias e feitiços provocados em confabulação com os “laiqas” (sacerdotes feiticeros), assim como muitas desgraças pessoais (enfermidades) e climatícas. Além disso, os espíritos dos moradores do Manqhapacha podem desfarçar-se de espíritos favoráveis ao homem, de modo que é difícil 8

distingui-los dos bons espíritos. Inclusive podem favorecer o homem se são tratados de maneira correta e apropriada. Por exemplo, os aymaras mineiros, mediante o trato dado ao Tio (demônio dono dos minerais), podem encontrar ricos “filões” e proteger-se de acidentes fatais. Os nomes dos habitantes do Manqhapacha são: o Supaya (chefe dos demônios e de todo esse pacha); os Antawallas, seres de tamanho reduzido que levam uma mecha acesa e vagam por lugares úmidos nas noites escuras, se alguém olha para eles pode ficar doente, enlouquecer e até morrer; os Sirinus que tem forma humana, usam um poncho vermelho, lenço, calças brancas e um chapéu cinza, aparecem só à noite em cataratas, riachos, pedras grandes de figura ameaçadora, e toca um instrumento de percussão; os Horanis que aparecem ao meio dia ou meia noite em determinados lugares em forma de animal ou forma humana nua; o Kurmi da noite, é uma espécie de arco íris branco; o Tutuka, encarnado em um remoinho forte ou furacão e que causa dano a todos os que encontra em seu caminho; os Saxras, que habitam nos remoinhos fazendo ficar doente os que se encontram com eles; os Achanchus, que aparecem nos mesmos lugares que os Sirinus e em montanhas e penhascos, em forma animal ou humana, saindo do Manqhapacha a partir da meia noite; os Awkas (ou espíritos) que, saindo das entranhas das montanhas, vão por todas partes tratando de enganar as pessoas e semeando ódio e confusão; o Tio, nome dado pelos mineiros ao ser dono dos minerais, com quem se tem que ter boa relação para conseguir sua benevolência; e as Almas dos condenados, que voltam para o Akapacha, para enganar os seus familiares que perderam a fé em Deus.

O homem aymara deve estar atento para não deixar-se pegar por nenhum destes poderes ou espíritos e deve-se cuidar também de sua aparência benévola. Para conseguir este propósito dispõe de ritos específicos que os afastam.

1. 1.4. Os mitos.

Os mitos, em toda cultura, pretendem proporcionar a descrição do ideal supostamente reportado a tempos imemoriais quando as coisas eram o que deviam ser. Além disso, proporcionam uma descrição das origens, oferecendo muitas explicações etiológicas da realidade. Por isso, o homem insatisfeito com sua situação atual, reconhecendo suas faltas e defeitos se pergunta sobre o passado, vai à busca da imperfeição desta situação atual. E quando não encontra as causas na 9

história inventa o mito de um princípio feliz seguido de um erro ou uma falta profunda que pesa sobre toda a sua história. Assim nasceram os mitos e lendas sobre a criação, paraíso, pecado original e dilúvio que encontramos em todos os povos e nas religiões do mundo. Sempre são o resultado de uma reflexão sobre a vida humana e a situação atual de um povo, tal qual encontramos no livro de Gênesis, que é reflexo da relação do povo judeu com YHWH. Algo semelhante acontece no povo aymara. Eles têm seu próprio mito da criação: “En el principio de los tiempos Viracocha surgió del lago y creó un mundo en que no había sol, ni luz, ni calor, y en el primer periodo del mundo, Chamajpacha, el limbo de la oscuridad antes del nacimiento del sol, creó hombres altos y fuertes de un tamaño superior al normal, que vivían más o menos como animales, porque no obedecían sus mandamientos. Viracocha se irritó de esta primera raza y la destruyo por un diluvio, una pachacuti. Luego después del diluvio, apareciendo de nuevo en la Isla Titicaca que quedó en el lago, Viracocha creó el sol para lucir de día y la luna y las estrellas para lucir de noche. Y creó una raza nueva de hombres de su propio tamaño”. Juan van der Berg, Los aymaras entre principio y final de los tiempos [apud]

(JOLICOEUR; 1994, p. 42). Este mito de criação dos aymaras não se constituiu como fundamento de sua religião ou de sua história, como aconteceu na Bíblia, porque o aymara não se preocupa com seu passado, nem com as pessoas que pelas suas ações influenciaram em seu mundo. Pelo contrário, vivem no lugar do mundo que Deus destinou para eles, silenciosos e sem fazer história e sem chamar a atenção dos demais povos do continente. Como temos variedades de mitos, assim também, temos expectativas e previsões, mitos sobre o futuro e o final dos tempos. O mundo aymara, apesar de que nunca elaborou uma visão sobre a vida no além, aceitou a religião católica por sua visão de salvação, sobretudo nesta vida presente. Eles acreditam em poderes sobre-humanos e nos santos do céu, mas só tem interesse por eles enquanto podem influir ou ter significação aqui na terra. Além dos mitos sobre a criação existem muitos mitos que podem ser aprofundados no livro de Luis Jolicoeur.

1. 2. Experiencia religiosa no mundo aymara.

Se perguntamos a qualquer aymara sobre a sua religião, pelos menos 70% afirmará que é católico, e o resto responderá pertencer a uma igreja evangélica ou “aymaras ilustrados” e que pretendem voltar a suas raízes ancestrais. Mas esta maioria aymara católica ao ver que outros católicos não aprovam alguns de seus costumes e ritos considera-os “maus católicos”. Por isso, 10

surge também uma pergunta: até que ponto o aymara assumiu o cristianismo dentro de seu marco ancestral?

Hoje se percebe que o espaço aymara tem um aspecto nitidamente específico desta cultura. Contudo o cristão não substituiu o autóctone. Pelo contrário, o cristão se integrou no autóctone, foi-se “autoctonizando” e chegou a formar parte da própria visão e experiência dos aymaras. O aymara incorporou celebrações relacionadas com o ciclo ritual agrícola no ciclo litúrgico cristão. Várias festas cristãs foram reinterpretadas em base àquelas que os aymaras celebravam tradicionalmente, mais ou menos nas mesmas datas. Apesar da evangelização, a religião aymara seguiu existindo ao longo destes séculos e manteve sua vigência em todo sentido. E por isso, os aymaras não abandonaram sua religião, mas tampouco se fecharam ao cristianismo. Não deixaram o que é próprio deles para se integrar no cristianismo, mas aceitaram o cristianismo para integrá-lo no próprio do aymara.

A visão de superioridade cultural, religiosa e teológica do cristianismo ocidental só viu a religião aymara como inferior e sua resistência como obstáculo para uma “verdadeira” evangelização. Por isso, não pôde integrá-lo e tampouco deixou se enriquecer por ela. Pelo contrário, os aymaras aceitaram o cristianismo e integraram em sua vida, que nos inícios lhes foi imposto, mas depois eles consideraram, não contrário a sua própria religião, e foram aceitando como enriquecimento a sua religião. Ainda, hoje fica a questão da religião aymara: desde a perspectiva da evangelização é difícil valorar positivamente a religião aymara, porque a dimensão autóctone é ainda muito forte e persistente, o que faz duvidar, se realmente os aymaras captaram suficientemente o cristianismo, ou, se eles integraram o cristianismo em sua religião própria. Porque o núcleo da religião e da maioria de suas manifestações parecem continuar seguindo as “tradições” aymaras. Por isso, a religião aymara “culturizou” o cristianismo em vez do cristianismo se ter inculturado na religião aymara, o que indica que a cultura aymara não mudou, o que mudou foi o cristianismo.

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2. DIÁLOGO E LEITURA TEOLÓGICA DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA AYMARA

Nesta segunda parte apresentaremos elementos que possam ajudar o diálogo entre o cristianismo e a cultura aymara a partir das reflexões feitas por Enrique Jordá. Pode-se partir da pergunta: quais os elementos da experiência religiosa aymara que possibilitam um diálogo com o cristianismo? Pode-se encontrar na experiência religiosa aymara elementos teológicos ou uma teologia própria semelhante à cristã?

2.1. Um Deus Pai próximo e que cuida do homem?

Um elemento de aproximação e muito marcado nos aymaras é fé num Deus Pai Criador e cuidador. Inclusive antes da chegada dos espanhóis a cultura aymara concebe e experimenta a idéia de um Deus Pai Criador e que tem poder sobre todo o universo. Seu nome é Alax pachaquir Tatitu (Deus que está no céu) ou Suma Thiusa Auki (Bom Pai Deus). É o único ser que pode superar a todos, pode fazer e desfazer, abençoar e salvar tudo o que existe, e todas as criaturas são servidoras que devem colaborar com seu mandato, criando vida. O aymara sente a presença de um Deus que olha, escuta e acompanha no dia a dia, mas ele tem que pedir que o ajude e o salve. É um Deus que vela geralmente sobre o espírito de cada pessoa ou ser vivente, mas o corpo e a carne, o agrícola e os fenômenos atmosféricos estão sob o cuidado dos espíritos tutelares, chamados também protetores, que vivem pertos do homem.

Jordá recupera da tradição oral alguns elementos deste Deus aymara e o caracteriza como: um Pai cheio de bondade, de relação centrada no afeto e desinteresse criando segurança, confiança e certeza de refúgio num mundo de tensões; aquele que dá a vida, que é emprestada; como um Pai que perdoa quando se reconhece o erro; Criador que criou e fez sair os casais progenitores por diversos lugares da terra e deu-lhes o encargo de cuidar e melhorá-la. É um Deus afastado, mas também próximo; afastado porque é transcendente, e perto porque está no meio do povo. Ele é a ordem que permite viver, e é o senhor de tudo (JORDA, 2003, p. 228).

Acreditar em um Deus como Pai e como próximo do ser humano tem algo a dizer ao cristianismo que também anuncia a um Deus Pai de toda a humanidade. 12

2.2. Um Deus que se revela no Pacha

O povo aymara não se entende nem se explica sem a compreensão do Pacha. Já anteriormente explicitamos os três espaços da cosmovisão aymara (Alaxpacha, Akapacha e Manqhapacha) que contêm o sufixo Pacha. Pois bem, Pacha se entende como todo o mundo espaço-temporal no qual se movimenta o aymara. Mas por outro lado Pacha também é fonte de vida e reciprocidade com a vida. Atualmente o Pacha é compreendido e vivido como Pachamama (mãe terra) globalidade da existência, da vida, como mulher mãe generosa e fecunda, criatura encarregada por Deus para que cuide de que toda a sua família do cosmos sobreviva. Pachamama tem o encargo de dar a vida, para que todos possam seguir partilhando em reciprocidade assimétrica (chamado ayni3). Para o aymara esta relação de reciprocidade e equilíbrio é a base fundamental de toda a sua experiência, porque nele descobre sua existência como abertura ao Transcendente, a quem reconhece como Criador de tudo o que está no Pacha. No Pacha (ou Pachamama) se experimenta o Criador manifestando-se na historia4. É neste reconhecimento e caminhada mítico-histórico que o povo aymara foi estruturando sua religiosidade e organizando espaços e tempos para a celebração e suas manifestações religiosas. Desde os inícios eles reconhecem a Deus como criador de toda a natureza: da terra, que produz e alimenta, da água que dá a vida, do ar, do vento, de todos estes elementos que ajudam a sua subsistência. Por isso, num diálogo inculturado não há dificuldade em manifestar a fé dirigindose a Deus através da natureza representada pela Pachamama5. Pachamama não é uma sacralização da natureza nem do acontecer cíclico, mas pelo contrário oferece a capacidade simbólica da realidade aberta à vida lúcida e transformadora do povo que se aproxima dele.

Esta visão pode nos aproximar de modo extraordinário à Teologia da Criação, na qual predomina uma atitude contemplativa, na qual o universo se manifesta cheio de sinais do grande amor de 3

Para o aymara o ayni significa colocar em comum o que cada um pode, sem medir porcentagens como no sistema capitalista, pelo contrario tem todo o sentido da reciprocidade e intercâmbio. 4 Víctor Codina nesse sentido afirma que através da terra, obra de Deus, os povos e as religiões chegaram a Deus. A terra é o lugar teológico, em estreita relação com as culturas, tanto com as originarias (Pachamama) como com a moderna (na dimensão ecológica e cósmica), onde Deus insuflou a terra com a presença vivificante e maternal de seu Espírito. Cf. CODINA, 1994, p. 196-199. 5 Nesse sentido é sugestivo o título e o trabalho de Narciso Valencia Parisaca, Pachamama: Revelación del Dios Criador. Cf. VALENCIA, 1998.

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Deus. Não por acaso na tradição veterotestamentária encontramos textos que manifestam esta profunda atitude contemplativa ante a criação. Os exemplos encontramos nos relatos do Gênesis, na literatura sapiencial, no segundo livro dos Macabeus, e de modo especial nos salmos6.

2.3. Vocabulários e códigos diferentes.

Já foram apresentados, dentro da cosmovisão aymara, aqueles lugares onde habita uma multiplicidade de espíritos protetores, seja no Alaxpacha ou no Manqhapacha, mas que está em estreita relação com nosso mundo, o Akapacha. Assim também na tradição cristã temos em conta a existência deste mundo terreno, mas também do céu e do inferno. Pela fé cristã se acredita na existência dos serafins, querubins, principados, tronos, potestades, dominações, virtudes, arcanjos, anjos, santos, como também dos demônios. Nessa perspectiva é interessante o trabalho de Dionísio, o Pseudo-Aeropagita. Ele nos apresenta os serafins (plenitude do amor, que atrai toda outra criatura inflamando-a com seu calor), os querubins (plenitude da contemplação do esplendor trinitário), os tronos (plenitude de inteligência), as dominações (potências de superação de toda atração do depreciável), as virtudes (potências para a estabilidade no bem), as potestades (potências da harmonia e da paz), os principados (dirigidos à proteção dos povos e cidades), os arcanjos (encarregados das missões terrenas e delicadas), e os anjos (transmissores do mistério de Deus aos homens) 7 Também como se expressa no símbolo da fé cristã onde se afirma acreditar na “comunhão dos santos”. Já no início do século III existe a prática de veneração aos mártires que se expandiu ao longo da história da Igreja. Os mártires são considerados perfeitos discípulos que realizam imediatamente as bênçãos prometidas para os cristãos, e se acredita que eles entraram imediatamente no céu, tendo acesso direto a Deus onde podem agir como intercessores e rezar pelas necessidades de aqueles que estão na terra8 (Ver Figuras 2, 3 e 4).

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Uma teologia da criação no AT é apresentada sinteticamente por Juan Luis Ruiz de la Peña. RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 51-58. 7 Cf. GOZZELINO, 2006, p. 20-52. 8 Cf. CAMPBELL, 2006, p. 23-32.

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Fig. 2 Cosmovisão Hebrea Fonte:www.ventosdouniverso. blogspot.com

Fig. 3 Cosmovisão cristã Fonte: GIRAUDO, Um só Corpo, 2003

Fig. 4 Cosmovisão aymara Fonte: Jordá,Teologia desde el Titikaka,, 2003

Assim, tanto a fé cristã como a cosmovisão aymara tem diferentes códigos de interpretação de uma mesma realidade: a realidade divina. Propor que a cosmovisão cristã ocidental é mais verídica que outras cosmovisões é correr o risco de cair num “exclusivismo étnico” (que consiste em pensar que sua concepção do divino é a única forma legítima de conceptualização e que toda outra forma é falsa). Nesse sentido podemos dizer que se têm muitas formas de experimentar o divino. Hoje o cristianismo aymara, pela sua abertura para o cristianismo ocidental, é essencialmente monoteísta, onde Deus assume a forma de chefe do estado celestial, com seus assistentes; Jesus Cristo e a Virgem Maria têm suas posições claras no cosmos religioso. Deste modo tanto um esquema europeu como um esquema aymara cabem dentro deste marco estrutural, ainda que existam variantes, roupagens diferentes.

Nesse sentido dentro de um processo de inculturação do evangelho, não se trata de julgar a priori a experiência religiosa de qualquer povo chamando-a de sincretismo; pelo contrário, trata-se antes de revisar o que é admissível e o que é incompatível com a mensagem do evangelho. Por isso, se propõe a simbiose onde, por um lado, os elementos da religião local sofreram uma mudança pela influência do cristianismo e a cultural local se acha potenciada pelo evangelho; e 15

por outro lado, os elementos do cristianismo que chegaram à região foram enriquecendo pela expressão e vivência da cultura local. Assim, inculturação significará entrar nas raízes mesmas da cultura, suporá o anseio da harmonia entre toda a Pacha, mas evangelizada, enriquecida pelo Evangelho; onde triunfe a confiança filial com Deus Pai Criador próximo que criou tudo por amor personalizado para cada um de nós, com Jesus nosso irmão que venceu o mundo que quer dominar-nos, com o Espírito que sobrevoa e dá paz, força, harmonia e se põe acima de qualquer força ou espírito da natureza.

2.4. Algumas dificuldades de compreensão cristológica

Até esta parte de nosso trabalho a imagem de Deus Pai Criador ficou mais clara para um diálogo intercultural. Mas esta imagem ainda pode-se enriquecer-se pelo conhecimento de Jesus Cristo. Para chegar a um conhecimento claro de Deus Pai de Jesus Cristo, precisamos conhecer a Jesus Cristo. Um dos desafios na comunidade cristã aymara é a compreensão de Jesus Cristo e seu caráter histórico mais do que mítico. Isto faz com que se apliquem a Jesus as qualidades de um “santo”, em sentido da realidade sagrada e fonte de poder sobrenatural. Por outro lado, procura-se afirmar que Jesus Cristo é centro-referência histórica e teológica primeira e fundamental de toda comunidade cristã.

Jordá manifesta nesse sentido o problema que o Deus Criador e Pai do monoteísmo apresentado no povo aymara não são explicitamente os específicos dos cristãos, de Deus como Pai de Jesus Cristo e Pai nosso. Assim, nessa busca de pistas, sugere uma aproximação bíblica. A Sagrada Escritura ajuda-nos a ver a revelação como um caminho que se vai percorrendo e afinando, entre luzes e sombras; ela mostra que Deus acompanha a caminhada do povo de Israel em cada época, segundo a capacidade de o povo de captar esta presença. Porém, é em Jesus Cristo que cobra pleno sentido a religião de Israel, a partir da visão própria e de sua história. De igual modo a religião de cada povo pede sentido pleno em Jesus Cristo. Pode-se considerar a história de Israel como paradigma para cada povo e cultura da terra. Israel experimentou, segundo a tradição veterotestamentária, de uma forma nova, a presença do Deus criador e quiseram transmiti-lo durante séculos. No Novo Testamento também nós encontramos as missões de Paulo nos primeiros tempos cristãos. O Deus que os gentios conheceram foi o mesmo YHWH, Deus de 16

Israel, anunciado por Paulo (Rm 1,21; 1Cor 17,23). Semelhantes situações aconteceram nas missões de evangelização onde muitos povos já conheciam o verdadeiro Deus. No entanto, a dificuldade da evangelização cristã está em re-situar concretamente a Deus, a Cristo e os seres dentro de cada cosmovisão tradicional.

No nível documentário Jordá reconhece que existem duas linhas cristológicas: uma em que Cristo é assimilado aos “santos” (não como única centralidade salvífica), onde Cristo é venerado como um entre muitos “santos” e “senhores” ou facilmente como uma “imagem milagrosa” relacionada com a cruz, mais mítica que histórica, aplicando-lhe as qualidades de um santo, numa posição central, de um Cristo histórico que vem a mudar o mundo como único Salvador; outra, onde se apresenta a centralidade de Jesus Cristo como Filho de Deus, que governa da segunda idade, a quem o Pai entregou todos seus poderes9. Porém, não se percebe uma clareza conceptual. É importante destacar uma doutrina básica expressada em termos míticos onde se manifesta uma confiança em Jesus Cristo: como Deus, aquele que vive, que luta pelo bem, que vencera totalmente um dia o mal, e em cada Semana Santa, e que está governando esta época vigente. Deve-se ter em conta que a cosmovisão, do povo aymara é mítica e isto faz com que vivencie um “cristianismo cósmico”, com uma liturgia cósmica, na qual o mistério cristológico implica, também, o destino dos cosmos transformado pela Encarnação e que espera a ressurreição total, tudo isso vivenciado em solidariedade mística com os ritmos da natureza. Também esta solidariedade mística com os ritmos cósmicos esteve presente nas populações dos camponeses do sudeste europeu medieval. Para este povo rural a natureza não foi considerada mundo do pecado, pelo contrário, obra de Deus, ganhando assim Cristo e a Igreja símbolos cósmicos, considerandoo não uma “paganização”, pelo contrário uma “cristianização” da religião de seus antepassados. Tanto assim que a escatologia e soteriologia adquiriram dimensões cósmicas, e Cristo, como Deus e Filho único e sem deixar o Todo-poderoso, desce à terra e visita os camponeses, tal como descia o Ser Supremo nos mitos das populações antigas da Europa10.

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Esta concepção tem suas origens em July e é apresentada por Víctor Ochoa em Un Dios y muchos dioses, 1976. Cf. JORDÁ, 2009, p.63. 10 Um estudo aprofundado se vê na obra de Mircea Eliade: Mito y realidad. Cf. JORDÁ, 2003, p. 236-237.

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A partir desse estudo Jordá pensa numa cristologia cósmica nos elementos aymara-cristãos, como também as possibilidades enormes de uma liturgia cósmica nesta realidade. Ainda não se percebe um caráter “histórico” de Cristo por não existir na consciência popular uma cronologia, nem uma exatidão pelos acontecimentos e personagens, no entanto, existem imagens de Cristo dos evangelhos, tais como Natal, ensinamentos de Jesus e seus milagres, crucifixão e ressurreição que constituem temas essências do cristianismo. Percebe-se que não existe uma contradição entre a imagem de Cristo nos Evangelhos e a imagem de Cristo na cosmovisão aymara. Por outro lado, existe nas celebrações um espírito cristão, porque tudo gira ao redor da salvação de Cristo em favor da humanidade e do universo; de um mundo que é bom, que é criado e redimido, consequência de uma luta entre as forças do bem e do mal, porque o mal foi vencido pelo poder de Deus em Cristo, fé que o povo vivencia miticamente na Semana Santa com muita profundidade.

A proposta de um cristianismo cósmico parece uma chave de aproximação entre o cristão e o aymara. Convém lembrar já alguns esforços de síntese mítica local e cristã desde o período colonial na organização aymara-cristã do Ano-solar-ritual: procurando a felicidade na vida diária e no plano da história da salvação. Tentando assim uma síntese entre a visão nativa com suas festas naturais e o cristianismo ocidental, ainda haja incompatibilidade lunar entre hemisfério norte e sul. Um conhecimento profundo e central de Jesus Cristo no povo aymara pode surgir reinterpretando e re-colhendo um elemento próprio desta cosmovisão e cultura. Este elemento é o símbolo da cruz cósmica ou andina.

2.5. Cruz cósmica, centro de cosmos e ritual

Nas históricas ruínas de Tiwanaku está esculpida uma cruz de vinte oito lados e outra de vinte lados. Em Carabuco, comunidade nas margens do lago Titikaka, está submersa a famosa “Cruz da Carabuco” que alguns relacionam com Tunupa11. A cruz também é manifesta nos “TorreCh´ulos” (gorro tecido de lã de llama ou alpaca, animais próprios da zona altiplanica) e na

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O mito de Tunupa é um mito conhecido da passagem do antigo Deus pelo Cosmos, saído do Nascente e que desapareceu pelo Poente.

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celebração da “mesa ritual” aymara no vale de Norte-Potosí, e na “mesa ritual” do altiplano aymara. Em ambas as celebrações são expressas a cruz cósmica e os quatro rumos do mundo.

Fig. 5 Chakana ou Cruz Cósmica de vinte oito lados

Fig. 6 Chakana ou Cruz Cósmica de vinte lados

Fig. 7 Chakana ou Cruz Cósmica de doze lados

Fonte: Fotografias das ruínas de Tiwanaku

Qual o significado dessa cruz para este povo? Antigamente e hoje o centro da cruz cósmica é o centro ritual onde se acolhe a presença do Criador e Cuidador do universo, e também o lugar de acolhida dos demais cuidadores encarregados de apoiar a vida e harmonia do cosmos. Jordá junto a outros autores observa que nesta cruz, cruzam-se dois eixos pelo centro: o vertical (entendido como caminho de Deus e do sol acompanhando o cosmos) e o horizontal (como caminho da criação inteira), também se percebem dos eixos transversais (que representam os quatro rumos do mundo que se cruzam no mesmo centro ritual). Desta interpretação conclui Jordá que o centro da cruz cósmica é lugar próprio para a comunhão de Deus e das criaturas. O centro da cruz sempre é centro ritual por excelência: ali chegam a concretizar-se todos os fenômenos atmosféricos (chuvas, sol, ventos, etc.), também ali é o lugar de encontro do cosmos com o Ser Supremo, por isso, é o lugar ritual por excelência para criar reciprocidade e refazer a ordem do universo.

Nos inícios da cultura aymara, por causa dos canais ou aquedutos e proximidade do lago Titikaka, a cruz foi em seus inícios um sinal aquático, por ser a água enviada pela entidade do Ser Supremo que rega e fecunda a terra. Anos mais tarde, no período inca, a cruz será identificada com o sol e assim mais tarde se formará em um sinal hélico. Deste modo a cruz de Tiwanaco será compreendido como um caminho de Deus portador geral dos fenômenos atmosféricos, que cruza com o horizonte humano e cósmico. Na interseção de ambos os sentidos no centro da cruz cósmica está o encontro entre o Deus e o homem. A Cruz cósmica tem um longo percurso e significou sempre água, sol, vida e fecundidade, grandeza e plenitude cósmica. A Pacha está 19

dentro de um contexto da cruz como cruzes do Caminho de Deus e do caminho do homem. Hoje a comunidade aymara representa e identifica nesta Cruz cósmica (também entendida como “mesa ritual” a Cruz de Cristo.

Na prática ritual aymara o centro da Cruz cósmica entende-se e interpreta-se a Deus como centro do cosmos e centro ritual por excelência, como ponte do dia, do mês, do ano, de cada geração. No centro da Cruz cósmica Deus sai ao encontro com seu povo e da criação. Este centro se compreende como a ponte que conecta o que está Acima com o que está Abaixo, onde se complementam o masculino com o feminino. Neste ritual é também usada a folha de coca, como instrumento ritual e interpretativo do caminho do mundo12, da comunidade e da pessoa. A coca como símbolo de mediação relaciona, como nexo ou ponte central, as dimensões espaciais (Acima-Abaixo) e temporais (Passado-Futuro), que ajudam a ter uma visão holística de todo o Pacha.

2.6. Proposta de uma cristologia da cruz cósmica

Chegamos ao ponto central da novidade proposta que Enrique Jordá apresenta como sugestão evangelizadora e inculturada: buscar simultaneamente o lugar central de Cristo na relevância que concede o povo aymara à Cruz Cósmica de Tiwanaco (concebida como centro do mundo, mesa ritual e onde se encontram desde sempre existencialmente Deus e sua criação) e no Cristo do Evangelho (plenitude do dom total de Deus manifestado em Jesus de Nazaré em proximidade diária da história, em compromisso de renovar a Criação). A participação oficial e cordial de Cristo de modo explícito da centralidade de Deus Pai na Cruz Cósmica local relacionará e facilitará tanto as celebrações anuais (rituais e festas festivas) como a visão neotestamentária de Cristo ressuscitado e cósmico Senhor da História. Assim, se superará a busca de Jesus em “suas” festas misturadas e até às vezes confundido com outros seres míticos.

Como é possível essa participação de Cristo na Cruz Cósmica? Explicitando, por uma re-leitura da Escritura, que Cristo também ocupa o Centro Cósmico de Deus Pai, tão querido pelo povo 12

Também no Antigo Testamento (Ex 28,30; Lv 8,8; 1Sm 14,41) encontramos o Urim e Tumim, que eram dois objetos usados pelos sacerdotes para conhecer a vontade do Deus.

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aymara, como ponto máximo de referência cultural existencial. Se se chega a anunciar e aprofundar Jesus de Nazaré como Filho Único de Deus Criador, a manifestação máxima do Pai no universo e na história, que se comunica no centro desta cosmovisão e cosmovivência, então, o Filho também será colocado no Centro da Cruz cósmica junto ao Pai Criador, como Centro e coração do universo, em unidade com o Espírito Santo.

Algumas pistas deste Cristo Cósmico nós as encontramos nas Cartas de Paulo: Ef 1,9-10; Col 1,14-20; Fl 2,6-1. Outro texto que ilumina esta leitura de modo significativo é a seguinte: A mim, o mais insignificante dentre todos os santos, coube-me a graça de anunciar entre os pagãos a inexplorável riqueza de Cristo, e a todos manifestar o desígnio salvador de Deus, mistério oculto desde a eternidade em Deus, que tudo criou. Assim, de ora em diante, as dominações e as potestades celestes podem conhecer, pela Igreja, a infinita diversidade da sabedoria divina, de acordo com o desígnio eterno que Deus realizou em Jesus Cristo, nosso Senhor (...). Que Cristo habite pela fé em vossos corações, arraigados e consolidados na caridade, a fim de que possais, com todos os cristãos, compreender qual seja a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, isto é, conhecer a caridade de Cristo, que desafia todo o conhecimento, e sejais cheios de toda a plenitude de Deus. Àquele que, pela virtude que opera em nós, pode fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou entendemos, a ele seja dada glória na Igreja, e em Cristo Jesus, por todas as gerações de eternidade. Amém. (Ef 3,9-

12.14-21). Desde tal horizonte, no universo vital e cósmico a figura central de Cristo, junto ao Pai Deus, manifesta sua vitória sobre as dimensões da largura e cumprimento (Cristo está presente no Akapacha), da profundidade (Cristo está presente no Manqhapacha), e da altura (Cristo está presente no Alaxpacha). Cristo colocado “cosmovisivelmente” no meio do universo e da história ajuda a celebrar logo o ano litúrgico e as festas do Senhor com a referência a um cosmos imenso centrado n’Ele. Por outro lado, o conceito paulino de “Corpo de Cristo” ajuda a entender melhor esta missão no cosmos. O único corpo crucificado de Cristo se faz presente, em virtude do Espírito, no pão eucarístico. Todos os que comemos deste único pão realizamos de novo o que já somos: um só corpo (1Cor 10,17). A comunhão neste corpo glorificado (1Cor 10,16) reclama nosso serviço de Corpo de Cristo e em Cristo aos demais, que se aperfeiçoa no amor (Ef 4,16) e se chega ao estado de adultos, à estatura do Cristo em sua plenitude (Ef 4,13). No entanto este crescimento do corpo até sua Cabeça Cristo repercute saudavelmente no cosmos, que está incluído na obra de redenção e que chega à plenitude na Igreja e com a Igreja. E o lugar onde se realiza este encontro de Igreja e do cosmos, da ordem e da redenção, é a Celebração Eucarística, como centro cristão e “umbigo” do cosmos restaurado pelo Filho do Pai. Assim, os conceitos 21

paulinos de “corpo” e “corpo de Cristo”, com suas implicações sociais-eclesiais-cristológicascosmológicas, tem suas raízes eucarísticas num princípio ordenador que possibilita uma explicação unitária. No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens (...). E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade. (Jo 1,1-14).

O Evangelho de João expressa que tudo quanto existe foi feito pelo Verbo. Hoje sabemos que o universo inteiro segue em criação, expansão e evolução. Deste modo, o Verbo segue criando o universo e a cada um dos seres conservando-os e fazendo-os crescer, em criação contínua: o Verbo é o Alfa que está na origem da criação e da evolução (centro estrutural), e até ele se dirige com toda a criação e evolução como ao Omega (centro de convergência), chegando a atingir a plenitude n’Ele, e poderá colocar tudo em mãos do Pai (1Cor 15, 28). Neste sentido, toda a criação é imagem e reflexo do Filho, Palavra do Pai; desse Filho que se encarnou no tempo em Nazaré e transformou a criação inteira e manifestou-nos que Deus é seu Pai e nosso Pai. Assim quando contemplamos as criaturas, estamos contemplando a presença e o amor do Filho feito um de nós; e se trabalhamos por melhorar e possibilitar o Plano de Deus somos co-criadores com Cristo.

2.7. A cruz, sinal de compreensão do Mistério Pascal

A partir da proposta de re-leitura da centralidade de Cristo, o cristão ao encontrar-se com Deus, encontra-se também com Cristo e com Espírito. E em Cristo, por meio da Cruz, não cobra só o sentido da centralidade, mas também nela se faz plena realidade o amor de Deus pela humanidade pelo qual Deus morre para que o homem viva, o Deus-Homem dá a vida para que todos vivamos uma nova existência; e pelo qual o homem morre para que Deus viva, o HomemDeus com sua morte salvadora faz com que viva o Plano de Deus, o Reino de Deus, e convida a todos seus discípulos a seguir dando a vida para encontrá-la.

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Na Cruz se sela a Aliança de Deus com a humanidade e com o universo. Jordá inspirando-se no mito da cruz cósmica Maia13 interpreta o eixo vertical da cruz como eixo nascente-poente. O nascente (cor vermelha) é o lugar da saída do sol e representa simbolicamente a aparição da Vida de Deus; o poente (cor preta) é o lugar da ocultação do Deus. O eixo horizontal é o caminho da humanidade que transita igualmente para o centro do espaço da vida e da história. O Centro, o cruzamento dos caminhos, é ponto de encontro da humanidade com Deus: Norte (cor branca) é o lado do céu e o lugar do nascimento humano e de onde veio a América, os povos; Sul (cor amarela) é o lado da terra e o lugar de ida da humanidade até seus pais. O Centro da vida e da história é simbolizado pelo Centro da praça, o Centro ritual (o ponto de encontro diário vital Deus-humanidade-cosmos), por isso se chama “coração do céu” (cor azul), coração da terra” (cor verde).

Fig.8 Estrutura da Cruz Maia Fonte: Elaboração Propria

13

A respeito, Adan Quiroga, estudioso dos tipos de Cruz na América Latina, diz que especialmente entre os Maias se adorava a Cruz, porque ela representava a vida de todas as coisas da natureza, pela ação dos fenômenos meteorológicos que fazem nascer, crescer e frutificar as espécies animais e vegetais. Cf. QUIROGA, La Cruz en América p.37.

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Numa leitura cristã Deus dá a vida (poente) para que viva a humanidade (norte), e a humanidade da sua vida (sul), para que viva Deus (nascente), organizando-se em uma infinita colaboração ou aliança mutua. Estas frases com carga histórica ambígua podem ter um sentido pleno em Cristo: o Deus-Homem dá sua vida por amor para que tenha vida a humanidade, e a humanidade com Cristo dá sua vida por amor para que cresça a vida de Deus em nós. Assim, no centro da cruz, coração do encontro de Deus e a humanidade e vice-versa, o cristão se encontra também com Cristo e com o Espírito. E em Cristo por meio do Mistério Pascal, sua morte e ressurreição, se faz realidade plena o esquema apresentado. Cristo dá sua vida na cruz pelos nossos pecados, mas também ressuscita para que vivamos uma nova existência. A humanidade que vive no Ressuscitado tem seu chamado no seguimento do Cristo e do Reino de Deus, chamado a dar a vida para encontrá-la em plenitude (Mt, 16, 25).

Fig. 9 Interpretação da Cruz Cósmica Aymara Fonte: Elaboração própria 24

Finalmente, um aceno ao sentido sacramental e eclesial da cruz cósmica aymara. Num sentido sacramental a Eucaristia torna-se a grande boa notícia do Cristo Cósmico. Pela Eucaristia, como a boa notícia do Cristo Cósmico, é levada a Criação toda a sua plenitude, nesse sentido é fonte e ápice de toda vida cristã. A Eucaristia é como o coração do mundo, que é o ponto Alfa da criação e antecipa já a transfiguração do cosmos e da humanidade em Cristo como o ponto Omega ao qual tudo se dirige. A Eucaristia, nesta centralidade, é o lugar e o modo no qual a Criação recebe a salvação, por ela opera o crescimento do corpo do Senhor ressuscitado. Assim, no sacramento eucarístico verifica-se a união do divino e do mundano; porque a partir do mistério eucarístico, o cósmico é incorporado na nova realidade plena de Cristo. O único corpo crucificado de Cristo se faz presente, em virtude do Espírito, no pão eucarístico. Assim, a celebração eucarística convertese no centro cristão e centro do cosmos restaurado pelo Filho do Pai. Num sentido eclesial, a Igreja e o cosmos não estão separados, mas relacionados mutuamente. O cosmos chega a sua plenitude em Cristo por meio da Igreja, e a Igreja só adquire sua plenitude quando o cosmos material e imaterial entra em sua unidade que abarca por completo todas as coisas. É neste o lugar de encontro entre o homem e Deus que se gera comunhão e se cria comunidade14.

2.8. Dois critérios fundamentais

Este cristianismo cósmico apresentado parece ser uma chave para valorizar até que ponto o povo aymara conhece Cristo nas próprias coordenadas de sua cosmovisão. Mas esta visão tem que aprofundar dois critérios fundamentais para avaliar uma verdadeira evangelização: a conversãoseguimento e a vitória do Senhor sobre os elementos da natureza.

A conversão-seguimento, deverá ser entendida como o passo do ritual para exigência do direito e a justiça (Am 5), em transformação interior (Ez 36,36) em sentido novo de pecado que está relacionado quase sempre como a visão histórica e a salvação histórica em Cristo, já que nas religiões pagãs quase nunca exigiu a santidade a seus seguidores. É Cristo quem declara inconciliável o serviço a dois senhores, e pelo contrário chama a uma opção clara entre ambos senhores (Mt 6,24; Lc 16,13; 1Cor 3,16; 2Cor 6,14-16). Ao analisar os elementos essenciais do “cristianismo aymara” vemos que não consiste tanto em praticar com exatidão os ritos impostos 14

Cf. JORDA, 2009, p. 125-144.

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pelo costume recebido, caindo somente numa “satisfação ritual” com Deus, com os santos, mas tentado centralizar tudo na Salvação em Cristo. A vitória de Cristo sobre os elementos da fé aymara significa que os “servidores de Deus” (os espíritos tutelares) não sejam escravizantes, pois Cristo os venceu, e nosso diálogo com o Pai passa já desde então pelo único Mediador que é Cristo. Vanoyhe fala do fracasso de toda mediação no mundo Antigo e no Antigo Testamento, até que se realize em Cristo15. Quando um aymara aceita este novo passo, esta aceitando outro claro critério de profundidade de sua fé em Cristo. Jordá menciona três formas de apresentar Cristo: Deus e homem, Cristo em sua palavra e Cristo no camponês aymara. Hoje Cristo parece ainda muita celestial, e é preciso fazê-lo mais humano, sem cair nos extremos. Colocar a Jesus do “lado de Deus” (herança colonial) deixou no povo o vazio de um Cristo Mediador único ante o Pai como seu Filho e nosso irmão16. Por isso, uma solução está em ajudar a recuperar a unidade entre o ser de Jesus e a missão da Igreja, isto é, no contato com Cristo no Evangelho e na vida mesma. A Palavra apresenta Jesus com seus elementos divinos como filho de Deus e sem ambiguidades, mas também apresenta-o com elementos humanos, na sua dimensão religiosa, homem entre os homens, modelo de entrega, fiel na sua missão em liberdade e pobreza e até a morte, proclamando sempre a verdade. A comunidade cristã-aymara tem muito apreço pelo Evangelho e por toda a Escritura. Esta busca bíblica vai dando o critério de reinterpretação de seu modo religioso e especialmente a única centralidade de Cristo na fé e no compromisso com Ele na vida. Cristo vai aprofundando sua presença no povo aymara, porque Ele está presente na sua experiência de fé e oração, também está num povo que sofre, que passa fome, sede, doença (Mt 25); mas também naquele povo que vive as bem-aventuranças (Mt 5,1-12), que acolhe na sua hospitalidade, simplicidade, fraternidade.

Deste modo a cultura aymara passa, em contacto explícito com Cristo, por uma conversão purificadora e enriquecedora que a eleva e a purifica. Cristo transforma toda cultura, mas desde 15

Cf. VANHOYE, p. 247-316. Mediador que dá sentido e fundamento a qualquer outra mediação, consequentemente de Maria e dos santos em e pelo único mediador. E o vazio aumentou pela falta de continuidade evangelizadora e catequética na grande maioria da população. 16

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que se tenha respeito pelo outro, pelos diferentes. Nenhuma cultura é absoluta, todas as culturas são importantes porque constituem formas de ver o mundo e de aproxima-se ao Deus verdadeiro. Jesus Cristo não é uma cultura, é uma pessoa que se encarnou numa cultura concreta. Por isso, a situação concreta de cada povo tem muita importância no processo evangelizador.

CONCLUSÕES.

-Apresentamos de modo sintético a cosmovisão aymara antiga, com a finalidad de compreender melhor o impacto evangelizador no período colonial, e clarificar a figura do “catolicismo aymara” atual, para desfazer o caminho mal caminhado e refazer um caminho evangélico mais harmônico dentro dos códigos do diálogo aymara.

-A cosmovisão aymara apresenta três planos que tem como centro a terra, e manifesta a supremacia real de Deus. Esta cosmovisão é mítica, teogônica e não só abrange Deus, seres superiores e intermédios (bons, maus, ambivalentes), mas também abarca muitos outros aspectos de um povo: crenças (sentido da vida, morte, amor, fé), ritos (sacrifícios, orações, gestos), e instituições (ministros, leis, costumes). Contudo, o aymara está sempre atento a captar em sua vida a “voz” do divino.

-Esta cosmovisão é fruto de sua própria tradição oral e também da mensagem de um catolicismo colonial, tendo em conta a pouca assistência dos bispos e presbíteros, a ausência da bíblia nas bases, de sacramentos recebidos esporadicamente e pouco conhecidos. Por isso o conteúdo da fé, como se percebe, caminha no nível da ideias, mas manifesta-se com piedade e confiança ilimitada nos santos, espíritos protetores e em Deus.

-O conceito Deus está muito relacionado com a ordem da criação e com o calendário agrícola. Pode-se perceber um forte sentido de transcendência divina de um ser supremo. Ele era o único Deus, porém regia o mundo por distintos servidores chamados espíritos da natureza, uns benévolos e outros mais malignos. Os três estádios do mundo (Alaxpacha, Akapacha e Manqhapacha) estão muito relacionados.

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-A partir da abertura do mundo aymara para o cristianismo Deus foi adquirindo a nomenclatura cristã e pode-se se identificar como o Deus trinitário e Pai de Jesus Cristo e Pai de todos, ao menos no nível teórico-doutrinal.

-Milenarmente o povo aymara procurou e encontrou a Deus Pai Criador no centro de sua cosmovisão, na praça ou mesa ritual representada pela Chakana ou Cruz Cósmica. Como cristãos sabemos que esse Deus é família de amor, e que onde está Deus Pai está seu Filho Único e está o Espírito. O caminho da inculturação cristã nos leva a procurar, no mesmo Centro de convergência de ambos os eixos da Cruz cósmica, a presença central do Verbo divino encarnado que chamamos de Jesus de Nazaré.

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