Rupturas no Planejamento Urbano e o Estatuto da Cidade: Um debate crítico através dos Planos Diretores de Americana e Santa Bárbara d\'Oeste -SP

May 25, 2017 | Autor: Flávio Ghilardi | Categoria: Hábitat Y Vivienda
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Rupturas no Planejamento Urbano e o Estatuto da Cidade: Um debate crítico através dos Planos Diretores de Americana e Santa Bárbara d’Oeste - SP Flávio Henrique Ghilardi1

Introdução O presente texto é resultado de pesquisa desenvolvida no âmbito do Núcleo de Estudos Populacionais (NEPO) da Unicamp, cujo objetivo principal foi discutir as propostas contidas no Estatuto da Cidade no que se refere à consolidação de uma nova concepção de cidade e de planejamento urbano. Para tanto, foram escolhidos dois processos de planejamento urbano municipal com o intuito de discutir em que medida as propostas do Estatuto são contempladas nesse contexto. O município de Americana-SP elaborou seu Plano Diretor no ano de 1999 e, atualmente, encontra-se em processo de implementação; o município de Santa Bárbara d’Oeste-SP está elaborando seu novo Plano Diretor, que, no momento, está para ser aprovado pela Câmara de Vereadores. Os dois municípios integram a Região Metropolitana de Campinas, sendo municípios vizinhos, em que Santa Bárbara mantém uma relação de complementaridade com Americana no sentido de atendimento das necessidades locais. A análise e comparação das duas realidades permitiu com que se discutissem continuidades e rupturas na tradição de planejamento urbano no Brasil, tomando como referência as propostas de inovação contidas no Estatuto da Cidade. O texto, então, expõe os resultados dessa pesquisa, resgatando a tradição de planejamento urbano no Brasil e o processo de consolidação da luta política pela Reforma Urbana e pela aprovação do Estatuto da Cidade. Isso, para inserir a discussão dos estudos das realidades de planejamento urbano de Americana e Santa Bárbara d’Oeste, como forma de trazer elementos para discussão da questão central de pesquisa. Ao final, são abordadas algumas comparações entre essas realidades de modo a sistematizar as discussões mais gerais do texto. 1

Núcleo de Estudos Populacionais (NEPO), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail:

[email protected]

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Breves Referências ao Planejamento Urbano no Brasil Em sua análise da modernidade, Arantes (2001: 19) afirma que “o novo é evidentemente moderno, e quando este declina ao esbarrar nos seus limites imanentes, o primeiro se degrada, o seu efeito de choque se amortece, e a novidade torna-se moda, cuja obsolescência é industrialmente programada”. Nessa frase-síntese, a autora expõe panoramicamente o caráter da proposta moderna de valorização do transitório, do dinamismo enquanto fim em si mesmo.Trata-se da lógica histórica imanente do moderno, centrado nos conteúdos utópicos da sociedade do trabalho. E a Arquitetura Moderna não deixaria de ser um exemplo desse percurso. Ao apostar na capacidade de proceder a ordenação do espaço para contribuir com a iniciativa de solução dos antagonismos da sociedade capitalista, a Arquitetura Moderna repõe as contradições da modernidade (como na construção de bairros operários). É o que permite a Arantes (2001: 96) concluir que “a utopia reformadora na origem da Arquitetura Moderna é, portanto, inseparável do processo capitalista de modernização e sua aposta no progresso tecnológico (...) o avanço das forças produtivas havia de levar a uma racionalização crescente da vida, à qual a arquitetura viria se associar e quem sabe até liderar”. Aparências que demonstram o caráter ideológico de tal pretensão universalista: da universalidade do mercado, da sujeição à lógica da competição e do lucro. Se a Arquitetura Moderna não foge à regra do projeto moderno, o caso brasileiro também não se desvencilha da lógica dos países centrais. Como lembra a autora, desde os anos 30 à tentativa de superação do subdesenvolvimento contribuía a Arquitetura Moderna. Contribuição que não só materializava os interesses nacionais como colocava em plena realização a lógica universalista do projeto moderno: “só aqui, e nas demais situações similares de ‘dependência’ estrutural, o espírito utópico do plano seria chamado a desenvolver-se ao pé da letra” (ARANTES, 2001: 104). Na antiga franja colonial do sistema, valendo-se do empreendorismo das camadas dirigentes em Estados fortes e modernizantes é que o projeto moderno se realizou em sua plenitude. Em uma perspectiva mais detalhada e focada na realidade histórica do Brasil, Villaça (1999) resgatou as especificidades das diversas configurações que tomou o planejamento urbano por aqui. Analisando por um viés determinado o planejamento urbano – do discurso e

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da prática sobre o espaço intra-urbano –, pôde identificar uma primeira corrente que viria a se transformar nos planejamento urbano stricto senso: o urbanismo sanitarista. De pouca duração, se extingui por volta de 1930, e “representou a época na qual a classe dominante brasileira tinha uma proposta urbana, que era apresentada com antecedência e debatida abertamente. Suas condições de hegemonia eram tais que lhe permitia faze-lo” (VILLAÇA, 1999: 197). No período posterior, surgem as grandes obras urbanas, que pretendem constituir as condições gerais de produção e reprodução do capital, dado o crescimento da riqueza do país e da acumulação crescente de capital. Nos planos, isso se desdobra na pretensão de se abranger todos os aspectos da cidade e seus problemas. Origina-se um novo período que vai até a década de 90: trata-se do plano intelectual, do plano-discurso. Segundo Villaça (1999), entre os anos 30 e 50 a classe dominante detinha condições de liderança na esfera urbana e podia executar obras de seu interesse que atendiam somente a determinadas partes da cidade (por exemplo, a remodelação do centro).

Surge daí o

superplano tecnocrata e a cidade não é mais entendida somente em seus aspectos físicos, sendo também um organismo econômico-social. Mas a valorização da técnica se evidenciará através do distanciamento entre planos e implementações, pelo conflito com a administração pública setorializada e especializada, e pelas “recomendações” dos planos nunca postas em prática. Já na década de 70, os planos perdem sua hipertrofia tecnocrática para se tornarem “planos sem mapa”, mais simples. Para o autor, “na verdade, o novo tipo de plano é o novo mecanismo utilizado pelos interesses das facções da classe dominante na esfera urbana para contemporizar as medidas de interesse popular. A idéia do plano diretor de princípios e diretrizes está associada à de ‘posterior detalhamento’, e isso nunca ocorre” (VILLAÇA, 1999: 221). Tal análise do planejamento urbano no Brasil permite, então, com que Villaça (1999) demonstre o caráter ideológico de tal discurso e prática2. Quando o planejamento passa a se identificar com a atividade de elaborar planos, desvinculada das políticas públicas e da ação do Estado, em realidade ocultam-se suas ações e, principalmente, o domínio de classe – específico nessa realidade periférica, em que as classes dirigentes sofrem de uma “crise de hegemonia”. Pois na história do Brasil, 2

Simplificando, ideológico no sentido das condições de manutenção da hegemonia da classe dominante.

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“a burguesia urbano industrial assumirá cada vez mais o domínio da sociedade brasileira, em substituição à aristocracia rural, mas esse domínio, no âmbito urbano, não será tranqüilo (...). Ao contrário, aquela classe necessitará sempre de produzir e reproduzir intensamente os mecanismos necessários à manutenção de sua dominação. Na esfera do urbano, procurará legitimar-se por meio, por exemplo, das políticas habitacionais e do uso ideológico do planejamento urbano” (VILLAÇA, 1999: 202).

Portanto, a especificidade da formação social brasileira não produziu tão-somente práticas urbanísticas estranhas à realidade periférica, mas práticas que carregam um sentido imanente vinculado à realidade desigual e peculiar do Brasil.

As Origens do Estatuto da Cidade A lei federal denominada “Estatuto da Cidade” insere-se em um momento específico do planejamento urbano no Brasil. Segundo Villaça (1999), nos anos 90 emerge uma série de iniciativas de elaboração de planos diretores que introduzem os temas da reforma urbana e dispositivos que primam pelo princípio da justiça social. É nesse processo de politização do plano diretor que a proposta do Estatuto se insere. Tratando propriamente do Estatuto da Cidade, os comentadores que o abordam são unânimes ao afirmar que as primeiras discussões que culminaram em sua aprovação datam da década de 60. Ribeiro (2003) lembra que na década de 60 os problemas urbanos emergiram na pauta de discussão das Reformas de Base, em que se pretendia, com as Reformas Agrária e Urbana, melhorar as condições de vida da população e alargar o mercado interno do país. Maricato (2001) lembra que as primeiras discussões sobre uma legislação urbanística no Brasil (feita com a participação da população) iniciaram-se na década de 60. Porém, com o regime militar – a partir de 1964 –, as discussões em curso são abortadas3. Somente na segunda metade da década de 70 é que as questões urbanas retornaram ao debate. Em 1976, o regime militar elaborou um “anteprojeto de desenvolvimento urbano”, que, segundo Ribeiro (2003), foi a base para Estatuto da Cidade, aprovado em 2001. O projeto foi desenvolvido pelo Conselho Nacional de Política Urbana, órgão do Ministério do Interior, contando com o auxílio de técnicos e consultores progressistas. Porém, o projeto não prosperou em seu debate, muito pelo temor que causou em alguns setores da sociedade. O projeto será retomado no ano de 1983, quando, conforme Ribeiro (2003), o governo federal percebeu certo perigo em torno de propostas pela Reforma Urbana nas eleições

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municipais de 19814. O governo propôs o projeto de lei de Desenvolvimento Urbano (PL 775/83) que enfatizava a importância do planejamento urbano e da coordenação política entre os três níveis de governo. Segundo Cardoso (2003), o projeto inovou ao inserir a função social da propriedade, ao prever alguns instrumentos combativos à especulação imobiliária e também as Áreas Especiais de Regularização Fundiária. Nessa mesma década (anos 80), emerge, novamente – porém reformulada – a proposta da Reforma Urbana, sendo que, “elaborada a partir de um amplo espectro de forças articuladas em torno de um corpo de intelectuais reformistas, o projeto de reforma urbana fundou-se no diagnóstico dos problemas urbanos como resultado da relação de força estabelecida na cidade brasileira em torno da apropriação privada dos benefícios em termos de rendas geradas pela intervenção pública” (RIBEIRO, 2003: 13). Assim é que surge o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), que, segundo Silva (2002: 145), “foi criado articulando uma grande variedade de sujeitos, ou que se organizavam em torno de carências vividas no espaço urbano, ou que tinham vinculações com essa temática, como é o caso de ONGs, sindicatos e intelectuais”. Ribeiro (2003) destaca três orientações principais no tema da Reforma Urbana: a) instituição da gestão democrática da cidade; b) fortalecimento da regulação pública do uso do solo urbano, de forma a garantir a função social da propriedade; c) inversão de prioridades nos investimentos urbanos favorecendo as camadas populares. Esses princípios orientarão a atuação do MNRU durante a elaboração da Constituição. No ano de 1987 iniciou-se o processo Constituinte e as discussões em torno do PL 775/83 foram esquecidas. Cardoso (2003) coloca que o MNRU detinha uma discussão acumulada sobre o tema da reforma urbana, o que permitiu a proposição da Emenda Popular Pela Reforma Urbana. O resultado da Emenda foi a instituição de dois capítulos sobre a Política Urbana na Constituição Brasileira (capítulos 183 e 184). Porém, segundo Rolnik (1992), o setor conservador do Congresso5 conseguiu alterar as intenções da proposta ao atrelar a implementação da política urbana à elaboração do Plano Diretor por cada municipalidade,

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Mesmo assim, as discussões sobre os problemas urbanos continuam ocorrendo entre Prefeituras, intelectuais e movimentos sociais. Por exemplo, com a discussão em torno do instrumento do “solo criado”. 4 Como no programa de governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro com o projeto “Cada Família um Lote”. 5 Segundo Grazia (2003), por diversos motivos o setor conservador do Congresso não tinha uma proposta elaborada em torno do tema da política urbana, o que possibilitou que o projeto do MNRU surgisse como único em torno do assunto. Porém, a relação de forças no Congresso alterou muitas propostas contidas na Emenda Popular.

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assim como a necessidade de elaboração de uma legislação que regulamentasse esses capítulos . Após a instituição dos capítulos na Constituição, havia a necessidade de regulamentálos6. Assim, o Fórum Nacional pela Reforma Urbana (antigo MNRU) adotou a estratégia de atuar no Congresso de forma a garantir que o debate sobre a reforma urbana estivesse presente nos projetos para regulamentação dos capítulos sobre a política urbana. Apesar das diversas dificuldades enfrentadas nas negociações no âmbito da Câmara e do Senado, o Projeto foi aprovado em julho de 2001 e entrou em vigor no mês de outubro do mesmo ano. Porém, a Presidência não promulgou o Estatuto da Cidade em todos os seus pontos; naquele que se referia a concessão de uso para fins de moradia, expediu, então, uma Medida Provisória (nº. 2.220).

A Elaboração de Planos Diretores no Pós-Constituinte Depois de elaborada a Constituição com a presença dos capítulos referentes à política urbana, os municípios iniciaram o processo de elaboração de suas Leis Orgânicas e muitos promoveram a iniciativa de elaborar Planos Diretores a partir das exigências constitucionais. Cardoso (1997) empreendeu uma análise dos Planos Diretores elaborados logo após a promulgação da Constituição, tomando grandes municípios da rede urbana brasileira. A partir de sua análise, o autor pôde perceber a presença dos princípios da Reforma Urbana nos documentos elaborados, ao mesmo tempo em que persistiu a cultura técnica de planejamento. O autor ressalta que novas propostas de planejamento urbano, a partir dos ideários da Reforma Urbana, foram formuladas por muitas Prefeituras; isso aconteceu muito pelo empenho do meio técnico-acadêmico, que conseguiu politizar o debate inserindo as questões referentes à função social da propriedade e à gestão democrática da cidade. Porém, a politização não se difundiu mais amplamente em direção aos movimentos populares, restringindo-se, em grande parte, aos setores do capital imobiliário. O que ocorreu, em realidade, segundo Cardoso (1997), foi que muitos processos de elaboração do Plano Diretor se propuseram à incorporar a participação popular utilizando-se de uma metodologia de discussão com a população a partir de uma primeira proposta que era elaborada pela Prefeitura.

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No caso do processo de revisão do Plano Diretor de Diadema, tratado na abordagem de Baltrusis, Mourad e Akemi (2002), ocorrido a partir de 2001, a questão da “participação popular” foi privilegiada pela Prefeitura. A proposta de revisão do Plano Diretor de 1994 esteve, basicamente, calcada na promoção de maior participação de vários setores da sociedade. Porém, dada a urgência da aprovação do Plano Diretor, o processo proposto de formação de agentes da população (com o objetivo de qualificar o debate) foi negligenciado. Como resultado desse processo, os autores perceberam que “a maior parte dos agentes não apresentou condições de atuar como interlocutores para dar seqüência ao debate e conduzir reuniões que apresentassem propostas, e a Prefeitura não teve condições de subsidia-los nesse momento” (BALTRUSIS, MOURAD E AKEMI, 2002: 111). A proposta do novo Plano Diretor foi apresentada pela Prefeitura à sociedade no começo de 2002, sendo que o debate pelos setores da sociedade foi retomado ao ser discutido na Câmara Municipal. Outra questão que veio à tona no processo de revisão do Plano Diretor de Diadema refere-se ao atendimento das necessidades pontuais e emergenciais colocados pela população, em contraposição às propostas mais a longo prazo colocadas pelos setores técnicos da Administração Municipal. Essa problemática também foi evidenciada através do estudo realizado por Guimarães (1997) no município de Angra dos Reis, durante a estruturação da proposta de Plano Diretor no começo da década de 1990. O autor coloca que o objetivo da Prefeitura, ao elaborar o Plano Diretor, era propiciar a participação de setores da sociedade historicamente excluídos da cidade. Ao se propor incentivar a participação popular, a Prefeitura utilizou-se, basicamente, de uma metodologia que identificou a realidade legislativa e urbanística local, sendo a discussão, posteriormente, levada ao debate com as comunidades locais. Porém, o que os técnicos perceberam foi o caráter restrito da visão de mundo da população local; como salienta Gonçalo (1997: 94), “apesar da tradição de organização e mobilização política das comunidades do município (...) as discussões e as lutas políticas travadas por estas eram de caráter bem localizado e imediatistas. Essas entidades ainda não haviam acumulado nenhuma discussão sobre a problemática mais global do município”7. 6

Ponto polêmico, como salienta Maricato (2001): a autora lembra o posicionamento dos juristas José Afonso da Silva e Adilson Dallari que defendiam que não haveria a necessidade de uma lei que regulamentasse a Constituição, por conta da existência de uma diversa produção legislativa referente a política urbana. 7 Nesse sentido, Azevedo (1997: 75) teoriza: “as políticas regulatórias, ao cortarem transversalmente a sociedade, afetando de maneira diferenciada pessoas pertencentes a um mesmo segmento social, dificultam a formação de alianças duradouras e bem definidas”.

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Apesar das dificuldades encontradas, a Prefeitura conseguiu elaborar uma proposta de Plano Diretor que angariou o apoio dos setores populares e técnicos da Administração Municipal. Encampando outro projeto, consolidaram-se os setores dominantes de Angra dos Reis, principalmente aqueles ligados ao capital imobiliário. Assim, nesse caso é possível identificar outro aspecto do processo de elaboração de Planos Diretores, referente ao embate entre interesses conflitantes na formulação de propostas de planejamento municipal e ao encaminhamento da resolução de conflitos colocados pela Prefeitura. Tal aspecto é tratado por Carvalho (2001) na análise das tentativas de elaboração do Plano Diretor de Santos durante a década de 1990. No município, o governo Telma de Souza (PT), eleito em 1989, construiu uma proposta de Plano Diretor que se baseava fortemente nos ideais de Reforma Urbana. A prefeitura valeu-se da obrigatoriedade da elaboração do Planos – colocada pela Constituição de 88 – como forma de tratar a questão fundiária e a regulação pública do uso do solo, mas com uma estratégia política que pretendia mais romper com as soluções tradicionais de planejamento do que ser uma proposta clara de qual política adotar. A partir desses novos princípios políticos, surgiu a proposta do “zoneamento por adensamento” (que pretendia ir além do zoneamento funcionalista) e de criação de um índice padrão de ocupação do solo para o município. Como conseqüência, tal proposta contrariou os interesses do mercado imobiliário; para a autora, “essa proposta explicitou a posição dos empresários do setor da construção civil, partidários da adoção de índices de aproveitamento e ocupação diferenciados segundo porções do território urbano do município bem como da manutenção do zoneamento por zonas de usos urbanos predominantes” (CARVALHO, 2001: 126).

De

acordo com a autora, o resultado foi o impasse na discussão do Plano Diretor de Santos, que não foi apresentado à Câmara de Vereadores. Já no segundo governo do PT, de David Capistrano Filho, a proposta chegou a ser discutida no Poder Legislativo, justamente pelo governo ter adotado uma proposta política diferenciada. O novo governo relegou a discussão que se utilizava do tema da Reforma Urbana, agregando as diversas iniciativas de desenvolvimento das vocações da cidade. A proposta de Plano Diretor tornou-se, assim, uma política de desenvolvimento municipal. Mas,

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apesar dos esforços diferenciados, a nova proposta não conseguiu ser aprovada pela Câmara de Vereadores8. As experiências demonstram que não só a questão da relação entre os Poderes Legislativo e Executivo dificulta a efetivação do Plano Diretor, mas, também, que questões internas ao próprio governo e ao partido que compõe a base política da Administração Municipal se tornam empecilhos. Nesse sentido, o estudo de Cardoso (1997) sobre os Planos Diretores aprovados na década de 90 no Brasil, evidencia o processo conflituoso e ambíguo que caracteriza a aprovação dos Planos. O que se percebe é que “os conflitos referentes aos pontos mais polêmicos dos planos – principalmente os que atingiam o interesse do empresariado, como o solo criado – permaneceram ao longo de todo o processo, deslocandose do Executivo para a Câmara de Vereadores e implicando, em muitos casos, em perdas significativas nos avanços obtidos em momentos anteriores” (CARDOSO, 1997: 97). Um caso em que foi possível a aprovação do Plano Diretor passando pela discussão na Câmara de Vereadores, foi aquele de Belo Horizonte. Azevedo (1997) mostra que a questão, para o projeto político que passou a exercer o poder a partir de 1992, era abordar os problemas urbanos de forma a não planejar em detalhes minuciosos, e elaborar uma proposta consensual pela Prefeitura anteriormente à discussão com a população. Assim, o resultado foi a obtenção de um Plano Diretor com uma proposta de macrozoneamento que incentiva uma diversidade de usos do solo urbano, mas que se preocupa com o impacto empreendimentos no entorno. Assim, a Lei se configurou mais como um instrumento flexível de gestão da cidade. Quando Cardoso (1997) procedeu pela análise do conteúdo e da linguagem dos Planos Diretores elaborados na década de 1990, pôde confirmar as características de complexidade na estruturação de tais. Segundo suas conclusões, a linguagem do Plano tem muito mais um teor técnico do que jurídico, sendo que existe um desequilíbrio entre as seções do plano9. E as leis, apesar de relegarem o viés desenvolvimentista – passando a se preocupar mais com a equalização da questão social – ainda possuem um caráter integrado e funcional como leis de desenvolvimento urbano municipais. Enfim, é o que conclui Cardoso (1997: 108):

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Em Angra dos Reis, segundo Guimarães (1997), a proposta de Plano Diretor enfrentou a resistência de grupos econômicos privilegiados, sendo rejeita pela Câmara em um primeiro momento. Porém, após acordo entre Legislativo Executivo, foi aprovada com alterações. Aprovado, porém, o projeto não foi implementado pela próxima gestão municipal, devido a questões internas ao grupo político que governava. 9 Por exemplo, entre as que tratam dos instrumentos de uso do solo e aquelas de política habitacional.

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“o quadro apresentado mostra claramente os limites dos planos diretores e dos novos instrumentos enquanto mecanismos de implementação dos princípios da Reforma Urbana. Esse quadro se agrava se considerarmos que, hoje, as propostas progressistas para a cidade enfrentam um processo de perda acentuada de legitimidade social”.

Os Planos Diretores de Americana e Santa Bárbara d’Oeste-SP O atual Plano Diretor de Americana foi elaborado no ano de 1999, cuja gestão conseguiu reeleger-se para o atual período administrativo. O documento define-se como um Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI), constituindo-se em um plano básico para a política urbana e para o processo de planejamento urbano do município. Sua estrutura é composta por diretrizes gerais para o desenvolvimento municipal e para áreas específicas de políticas públicas, além das normas gerais para constituição do Conselho Consultivo do Plano Diretor. A estrutura do plano se mostra concisa, abordando de forma sucinta as diretrizes para o desenvolvimento urbano e para as áreas específicas de planejamento (transporte, habitação, saúde etc.), em que o detalhamento dessas políticas setoriais é previsto através de leis e planos específicos a serem elaboradas separadamente. No que concerne aos objetivos previstos para o planejamento urbano do município, o PDDI de Americana aborda algumas temáticas que estão previstas no Estatuto da Cidade10. Destacam-se entre os objetivos já previstos: o atrelamento do Plano Plurianual ao PDDI; a organização do uso do solo e da urbanização visando a otimização da estrutura urbana; a compatibilização entre as atividades públicas e privadas; e a equalização da oferta da infraestrutura pública. No que concerne àqueles objetivos que não estão previstos no Estatuto, vale ressaltar o imperativo do atendimento à criança e ao adolescente e a busca pelo equilíbrio na oferta de empregos no âmbito do município. Como base para a orientação das políticas de planejamento urbano municipal, o PDDI prevê a organização de um macrozoneamento municipal que orientará territorialmente as ações municipais, detalhados nos anexos. O documento também prevê que a elaboração de leis municipais específicas que normatizem tanto o Macrozoneamento quanto as Áreas de Planejamento e o uso do solo.

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Ponto a ser considerado pelo fato de que o plano foi elaborado antes da promulgação do Estatuto da Cidade.

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Como colocado anteriormente, o PDDI estabelece diretrizes para o planejamento de setores específicos da política urbana. As áreas abrangidas pelo Plano referem-se ao sistema de transporte, à política habitacional, ao meio ambiente, à saúde, ao sistema de drenagem, à assistência social, à cultura e ao esporte, lazer e turismo. O plano, porém, somente detalha as diretrizes para as políticas das áreas de transporte, habitação e meio ambiente, sendo que, para as demais áreas – através de um único artigo – é posto a necessidade da criação de leis e planos de ações para seu cotejamento. Dentre as três áreas abordadas pelo documento, é perceptível o maior aprofundamento para as áreas de transporte e meio ambiente. Por fim, o Plano exige que o processo de implementação do PDDI seja assessorado através da Coordenadoria de Planejamento e Controle do Município, instituída através da Lei do Plano Diretor. Além de auxiliar na tarefa de implementação do Plano, é também de competência da Comissão dar auxílio no processo de revisão da Lei. Tal coordenadoria, segundo o Plano, deve criar uma comissão de caráter consultivo a fim de concretizar os objetivos a ela atribuídos. A normatização e criação da Comissão foram realizados em março de 2001 através da Lei nº. 104 e seus membros foram nomeados pelo Decreto nº. 5.452, de março de 2002, ou seja, três anos após a aprovação do Plano Diretor. A composição da Comissão privilegia a participação de membros do setor estatal em detrimento daqueles da sociedade civil. Dos dezoito membros da Comissão, doze são representantes do Estado e seis da sociedade civil, sendo esta composta por associações de engenheiros, arquitetos, advogados e Ong ambiental. Em consulta à Secretaria de Planejamento da Prefeitura de Americana11, foi possível constatar que, no início de 2004, a Comissão realizou um trabalho de revisão do atual Plano Diretor. Segundo as informações fornecidas, as principais modificações sugeridas referem-se à consecução de um novo zoneamento e à criação do Conselho da Cidade como um órgão técnico competente para controlar a aprovação de loteamentos no município12. Também foi informado que os planos para as áreas específicas de planejamento não foram promulgados até o momento, encontrando-se em discussão no âmbito das Secretarias responsáveis, sendo que alguns estão em processo adiantado de consolidação.

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Realizada através de entrevista por telefone com o arquiteto Cândido Denadai, no dia 24 de novembro de 2004. Em detrimento da Câmara de Vereadores, que se utiliza mais de critérios políticos, no lugar dos técnicos, segundo as informações da Prefeitura.

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Direcionando-se para o município de Santa Bárbara d’Oeste, tomou-se, para os objetivos do presente trabalho, a análise da proposta de Projeto de Lei do Plano Diretor elaborada pelo Executivo Municipal e enviada ao Poder Legislativo no final de julho de 2004. Antes de abordar propriamente a proposta atual do Plano Diretor, vale destacar alguns acontecimentos envolvendo a elaboração do documento nas últimas duas gestões da Prefeitura. No ano de 1997, a gestão do Prefeito Adilson Basso (PTB) encomendou à Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) um estudo para elaboração do Plano Diretor, o qual, quando pronto, foi enviado à Câmara de Vereadores. Após um ano e meio na Casa, o projeto foi retirado de discussão sob o argumento de que não contemplava a área urbana do município13. Na administração do atual Prefeito – Álvaro Alves Corrêa (PMDB) – o projeto do Plano Diretor foi retomado e durante um ano e meio a Câmara de Vereadores aguardou que a proposta fosse enviada pelo Executivo. Porém, no segundo semestre de 2003 a prefeitura resolveu iniciar um novo estudo para elaboração de um documento diferente daquele encomendado à Unimep; desse processo resultou a atual proposta do Plano Diretor que é analisada nesse trabalho14. O processo de elaboração do novo Plano Diretor de Santa Bárbara iniciou-se no segundo semestre de 2004. Segundo informações do Secretário de Planejamento15, o principal motivo para elaboração do novo Plano Diretor refere-se à obrigatoriedade colocada pelo Estatuto da Cidade. O processo constituiu-se basicamente por duas fases: a primeira, de discussão com técnicos de todas as secretarias da Prefeitura, visando consolidar uma primeira versão do Plano Diretor, etapa que durou seis meses; outra de consulta à população, com a realização de assembléias regionais e audiências públicas para o recolhimento de mudanças na proposta da Prefeitura, fase durou quatro meses. De acordo com as informações do Secretário, o Plano Diretor foi elaborado a partir da consolidação de um mapeamento territorial do município e da elaboração de um zoneamento a partir desses dados, agregando, em seguida, as discussões setoriais da Prefeitura. Para discutir o Estatuto da Cidade, foi realizado um Seminário com especialistas no assunto e com técnicos do CEPAM (Fundação Prefeito Faria Lima). Na fase 13

Segundo notícia “Justiça nega pedido de condenação de ex-prefeito”, UOL Todo Dia, 24 de janeiro de 2004, e “Plano Diretor deve ser levado à Câmara de S. Bárbara em maio”, UOL Todo Dia, 1º de abril de 2004. 14 Vale destacar, ainda, que uma ação civil pública foi acionada contra a Prefeitura, visando o ressarcimento dos cofres públicos por um trabalho não prestado à Administração. Porém, a justiça negou o pedido julgando que se tratava de uma relação de cooperação entre entidades.

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de consulta popular, o Secretário ressaltou a divulgação, realizada pela Prefeitura, do documento no jornal local, além do período de quinze dias para o recolhimento, por escrito, de mudanças na proposta do Plano Diretor. O tema de maior debate na consulta popular referiuse à mudança de zoneamento na região central da cidade16. Além do debate com a população, também se procedeu pela indicação de representantes para formação da Comissão para a Elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento. Tal comissão era formada por uma área jurídica, uma técnica e por outra de representantes da sociedade civil, contando com quarenta e dois membros. Após a realização das audiências públicas, a Prefeitura, junto à comissão, sistematizou as propostas populares e consolidou a versão final do Plano, cuja entrega à Câmara de Vereadores foi realizada em 16 de junho de 2004. Tomando o próprio Plano Diretor, a proposta do novo documento para o município de Santa Bárbara d’Oeste coloca, inicialmente, que este pretende criar o marco para o Sistema de Gerenciamento Democrático de Planejamento Urbano. Para tanto, estabelece objetivos que devem ser observados para efetivar o planejamento urbano municipal, além de diretrizes para que tais sejam alcançados. Como no caso de Americana, verifica-se a consonância dessas diretrizes com aquelas previstas pelo Estatuto da Cidade. O plano destaca-se por seu nível de abrangência, procedendo pela consecução de diretrizes e ações para uma gama considerável de temas17. Sintomático desse detalhamento é o volume de páginas do Plano Diretor: setenta. Nesse sentido, vale destacar que o Plano prevê a obrigatoriedade da elaboração – para além do detalhamento de cada área contido no Plano Diretor – de uma série de Leis, Códigos e Planos, visando concretizar os objetivos propostos pelo documento, que totalizam o número de vinte. Voltando às sessões de detalhamento das políticas setoriais, alguns aspectos destacam-se na análise comparativa entre tais. Primeiramente, o embasamento das diretrizes e das políticas setoriais através de um extenso número de dados e de pesquisas. Também se constata o desequilíbrio entre as diversas sessões, em que, por exemplo, a sessão relacionada a habitação está voltada tão-somente para o atendimento das “famílias de baixa renda”, constituindo-se em um único artigo que aborda as políticas necessárias ao atendimento das necessidades (não explicitadas) dessa área. Já a sessão destinada à questão da circulação urbana e trânsito 15

Realizada através de entrevista por telefone com o Secretário Municipal de Planejamento – Wanderley Diniz Ferreira Júnior –, no dia 24 de novembro de 2004. 16 Como noticiado em “Zoneamento industrial gera polêmica”, UOL Todo Dia, 29 de abril de 2004.

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procede por um detalhamento de todo o sistema viário municipal, estabelecendo diretrizes para tal. Vale destacar que, em alguns momentos, o documento aborda a existência de questões metropolitanas; porém, somente de forma a se referenciar à existência de problemas compartilhados com municípios da região, não propondo diretrizes para seu tratamento. Outro ponto importante da análise da proposta do Plano Diretor de Santa Bárbara é a referência à implantação dos instrumentos urbanísticos previstos pelo Estatuto da Cidade. O documento coloca que um dos objetivos do Plano Diretor é regulamentar tais instrumentos, sendo que faz referência a alguns desses em diversos trechos e, em especial, na última sessão da Lei, destinada exclusivamente para tais. Alguns instrumentos são mais contemplados do que outros, sendo que não existem referências ao Direito de Superfície, de Preempção, e a Transferência do Direito de construir. Mais especificamente em relação à utilização pretendida dos instrumentos, vale destacar a utilização particular do IPTU Progressivo. Sua aplicação não é destinada ao âmbito de todo o território do município, optando-se pela incidência restrita às zonas industriais. Nesse sentido, também há uma estreita delimitação para a incidência do direito de preempção, para a transferência do direito de construir e para as operações urbanas, em que é privilegiada a preservação do patrimônio histórico. Um ponto que merece atenção é a inclusão da utilização da outorga onerosa do direito de construir, em a utilização reproduz as propostas de implementação que foram vetadas em outras experiências de Plano Diretor18. O Plano também prevê a criação de três macrozonas no município de forma a orientar territorialmente as políticas de planejamento urbano. Cada macrozona refere-se às possibilidades de maior ou menor desenvolvimento da urbanização, sendo que em cada uma são definidas Áreas de Planejamento. Além do macrozoneamento, o documento também trabalha com o conceito de zoneamento, prevendo usos detalhados para cada zona do território municipal. Como último ponto importante da estruturação da proposta do Plano Diretor, tem-se a proposição da criação de duas comissões para compor o Sistema de Gerenciamento Democrático de Planejamento Urbano. Tais comissões comporão o Conselho Permanente de Discussão, objetivando a implementação dos objetivos do Plano Diretor. Uma das comissões ficará encarregada do caráter técnico de implementação do Plano, sendo composta tão 17

Algumas das áreas abrangidas são: transporte, assistência e promoção social, educação, habitação, turismo, cultura, esporte, preservação ambiental, limpeza urbana, desenvolvimento econômico e segurança urbana. 18 Como visto na segunda sessão do texto, através da análise das experiências de elaboração de Planos Diretores.

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somente por membros do aparelho estatal; já a outra, terá um caráter mais político, tendo como função consultar a opinião da sociedade, dada ser composta tão-somente por membros da sociedade civil. O maior detalhamento do funcionamento dessas comissões será feito através de Decretos. Como posto no início, o projeto de Lei do Plano Diretor foi entregue no final de junho para apreciação da Câmara Municipal. A consulta aos trabalhos da Câmara19 forneceu o dado de que o projeto ainda não foi discutido no plenário da Casa. Em realidade, começara a passar pela apreciação das Comissões Especiais da Câmara, iniciando o recebimento de modificações por parte dos parlamentares. Caso ocorram modificações no projeto de Lei enviado pelo Executivo, novas audiências públicas deverão ser realizadas. Pela informação obtida, não há expectativa de prazo para aprovação do Plano.

Análise Comparativa e Considerações Finais Para discutir criticamente os analise dos Planos Diretores de Americana e Santa Bárbara d’Oeste, passamos primeiramente para uma comparação entre os dois documentos. Um primeiro aspecto a ser ressaltado refere-se a abrangência dos temas tratados pelos dois Planos. O Plano de Americana demonstra um caráter mais estratégico e conciso, apenas enunciando os objetivos e diretrizes do planejamento urbano municipal, além das áreas as quais o planejamento deve abordar. Já o plano de Santa Bárbara d’Oeste consiste em um documento que pretende dar conta de toda uma gama de aspectos da realidade do município, dispensando a priorização de temas e políticas. Porém, o plano de Americana não se mostra como um documento que realiza escolhas das prioridades para a ação do planejamento municipal, dado que remete o detalhamento das políticas setoriais a planos que, até o momento, não foram elaborados, relegando a priorização de políticas a serem enfocadas pelo município. Tratando das expectativas sobre a elaboração dos Planos Diretores após o marco do Estatuto da Cidade, segundo o Guia para Implementação do Estatuto da Cidade20, “as novas práticas substituem o Plano que prioriza tudo (...) pela idéia do Plano como um processo político, por meio do qual o poder público canaliza seus esforços, capacidade técnica e potencialidades locais em torno de alguns objetivos prioritários. Dessa forma, procura-se evitar a dissipação de forças em intervenções fragmentadas (...)” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2001: 142). 19

Dados informados por funcionário da Câmara Municipal, via telefone, no dia 25 de outubro de 2004.

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Como visto, portanto, tanto o Plano Diretor de Americana quanto o de Santa Bárbara não procedem pela priorização de objetivos para o planejamento municipal, assim como os planos setoriais, previstos no PDDI de Americana, não foram concretizados. Esses dados acabam por reafirmar a questão da dificuldade em promover a continuidade na implementação das propostas do Plano Diretor, ponto ressaltado no estudo empreendido por Cardoso (1997) – e abordado no início do texto. Em Americana foi possível identificar que, mesmo com a continuidade do projeto político que elaborou o Plano Diretor de 1999, não houve a implementação das leis e planos de ações específicos, assim como se verificou que os trabalhos da Comissão Consultiva do Plano Diretor – responsável por assessorar a implementação deste – demoraram a se concretizar. No bojo da análise de Villaça (1999) – acerca da tradição de planejamento urbano no Brasil – percebe-se a dificuldade no rompimento com a tendência do “posterior detalhamento” dos Planos que nunca ocorre. A falta de continuidade na implementação do Plano Diretor, em que é prevista a participação popular através de comissões, também põe em questão o significado de tal “participação” no processo de planejamento urbano municipal. Como espera o Guia para Implementação do Estatuto da Cidade, “potencializar o exercício dos direitos políticos e da cidadania deve ser o objetivo que deve ser respeitado nos processos de gestão das cidades. O direito a participação popular será respeitado quando os grupos sociais marginalizados e excluídos tiverem acesso à vida política e econômica da cidade. Para ser exercido, este direito pressupõe a capacitação política dos diversos grupos sociais” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2001: 33).

Na análise da composição das coordenadorias e comissões previstas nos Planos Diretores analisados, foi possível constatar que a composição desses espaços é majoritariamente formada por membros do aparelho estatal em detrimento da representação da sociedade civil. Mesmo na representação desta, a pluralidade que conforma suas clivagens não está presente, encontrando-se diminuta representação dos “grupos marginalizados e excluídos”, aos quais se refere o Guia para Implementação. Também vale ressaltar a separação dos aspectos técnicos e políticos nos espaços de participação popular, como observado na criação de comissões específicas para esse assunto, impossibilitando a politização da questão técnica. Evidentemente que alguns aspectos da participação popular foram implementados, 20

Documento elaborado pela Câmara dos Deputados junto à assessoria técnica logo após a promulgação do Estatuto da Cidade. A referência ao documento traz à tona as expectativas em torno da implementação da Lei

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como a criação de espaços para a discussão da proposta do Plano Diretor e a publicização dos documentos produzidos. Porém, o que se verifica, através da análise dos documentos, é que nessas experiências não se consolidaram, na totalidade, os objetivos pretendidos por esse novo marco do planejamento urbano em relação à participação popular. Colocando a discussão sobre o atendimento de diretrizes postas pelo Estatuto da Cidade, constatou-se, pelo menos formalmente, que os Planos analisados as incorporaram. Para além desse ponto, a questão posta é a que se refere às intenções pressupostas por essas diretrizes. Como ponto exemplar dessa discussão, tem-se a diretriz, prevista no Estatuto, que coloca o imperativo da cooperação entre os setores públicos e privados (§ II, art. 2º)21: segundo o Guia para Implementação do Estatuto da Cidade (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2001), a Lei Federal pretende, com essa diretriz, não permitir que sejam atendidos tão-somente os interesses do capital imobiliário na estruturação do espaço urbano. O que se verifica nos Planos é que a referência a essa diretriz se faz de forma a tão-somente transpor o texto da Lei Federal ao documento municipal. Assim, não se verifica um detalhamento da concepção de cooperação subjacente à diretriz, não se tratando das expectativas postas na implementação do Estatuto. Outro ponto para a comparação entre os dois planos refere-se à utilização dos instrumentos urbanísticos previstos pelo Estatuto da Cidade. O Plano de Americana não prevê a utilização desses instrumentos, em virtude, muito provavelmente, por ter sido elaborado antes da vigência do Estatuto. No Plano de Santa Bárbara d’Oeste pretende-se realizar a utilização de alguns desses instrumentos, que passam, então, a ter uma finalidade específica. Como exemplo, o IPTU progressivo é utilizado de forma a ser aplicado somente à zona industrial do território, servindo, portanto, como meio para fomentar a atividade industrial local. Esse instrumento tributário é aplicado de forma específica, não sendo, por exemplo, aplicado visando o aproveitamento dos vazios urbanos. Portanto, pode-se concluir que os instrumentos previstos pelo Estatuto passam por um processo de transformação de seus

Federal. 21 No texto da lei: “cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social”.

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objetivos segundo a realidade local, a interpretação das possibilidades de sua aplicação22 e a correlação de forças na estruturação do espaço urbano local. Nesse sentido, pode-se colocar a questão sobre a consolidação dos objetivos iniciais defendidos pela Reforma Urbana em experiências de planejamento local. Como visto, a proposta de política urbana contida na Constituição Federal e a consolidação do Estatuto da Cidade, calcaram-se em propostas do Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Assim, foi possível verificar nas experiências de Americana e Santa Bárbara d’Oeste um certo distanciamento em relação à efetivação das propostas originais, referentes às diretrizes e instrumentos urbanísticos, que consolidam propostas defendidas pelo Movimento pela Reforma Urbana. Por último, vale destacar que os dois documentos analisados não abordam a questão metropolitana e regional. Os municípios de Americana e Santa Bárbara d’Oeste pertencem à Região Metropolitana de Campinas, em que a metrópole de Campinas acabou por se configurar em uma região metropolitana espraiada, na qual o município-sede não polariza de forma tão acentuada com os demais da região. Nesse contexto, entre Santa Bárbara d’Oeste e Americana se estabelece uma relação em que Santa Bárbara tornou-se “cidade-dormitório” de Americana. Segundo estudo de Caiado (2001: 125), “apesar de sua tradicional base industrial, Santa Bárbara d’Oeste tem apresentado nos últimos anos características de município dormitório da Região Metropolitana de Campinas. Acolhe no seu território urbano contingentes populacionais originários principalmente de Americana, que cumpre o papel de segundo centro da Região Metropolitana de Campinas”. Portanto, a análise dos dois processos de planejamento urbano demonstra a ausência do tratamento da questão metropolitana e regional, tão presente na realidade dos municípios. O que corrobora a inferência de que após a vigência do Estatuto da Cidade ainda não foi incorporado o tratamento da questão regional e metropolitana ao planejamento urbano municipal. Enfim, uma questão importante trata-se de se saber se o problema de efetivação das propostas de planejamento urbano encontra-se tão-somente na falta de vontade política (ou de deterioração do aparato estatal) para implementação das iniciativas ou, então, na própria 22

Visto que não existem, para muitos instrumentos urbanísticos, experiências consolidadas de sua utilização, sendo que os técnicos da Administração Municipal procuram por informações sobre sua utilização, como no seminário com especialistas realizado pela Prefeitura de Santa Bárbara para elaboração do Plano Diretor.

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concepção de planejamento que embasa essas propostas. As próprias expectativas em relação ao Estatuto argumentam sobre a essa questão: Passadas pelo menos duas décadas de prática de elaboração de Planos Diretores segundo o receituário tecnocrático, parece evidente a incapacidade do planejamento urbano de produzir cidades equilibradas e de acordo com as normas. Entre os planejadores, esta ineficácia é geralmente justificada como ausência de vontade política dos governantes em impor o projeto contido no plano da cidade e/ou como suscetibilidade dos governos a práticas eticamente condenáveis. Por trás deste conceito de Plano e seus instrumentos, existem concepções políticas e visões do modo de organização do espaço urbano questionáveis. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2001: 41).

As análises permitiram constatar que não só a vontade política, a precariedade da administração municipal ou o embate entre Legislativo e Executivo dificultam a implementação do Plano Diretor; também a impossibilidade de rompimento com a tradição de planejamento urbano – de caráter tecnocrático, como salientado por Villaça (1999) – põe em dificuldades a efetivação dos Planos. Nesse sentido, os resultados corroboram as conclusões de pesquisa sobre a implementação de instrumentos urbanística, realizada por Cymbalista (1997: 82); “é importante apontar que a história dos novos instrumentos é, muitas vezes, a história de sua rejeição no jogo de forças que é a produção de nossas cidades, não chegando sequer à sua regulamentação, quanto mais à produção de espaços (...) o instrumento legislativo pressupõe uma coletividade que o aproprie”. Como último ponto para discussão, colocamos a questão sobre as possibilidades de se forjar um contexto em que a coletividade se aproprie de propostas inovadoras de planejamento urbano. Pensando que as propostas do Estatuto da Cidade passam pela questão do fomento ao desenvolvimento local, para tratar de tal resgatamos alguns argumentos de Francisco de Oliveira (2001) que discute as possibilidades de intervenção do “poder local” na efetivação da política. Oliveira está interessado em desmistificar aquelas visões que crêem no desenvolvimento local que se realiza sem a existência de conflitos, através de fáceis consensos; em contraposição, sua visão é a de que a cidadania se faz pelo conflito, permitindo a emergência do dissenso (e não do consenso que impossibilita a existência da fala diferente), não sendo quantificável, portanto, sendo objeto de luta política. Porém, conforme o autor, a questão do desenvolvimento local está ligada a questão da globalização. E o global, na contemporaneidade, se redefine: agora, não é a soma dos poderes locais, pois se trata, muito mais, dos poderes de (não muitas) mega-corporações, que se

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mostram indiferentes ao poder local. Institui-se, então, uma nova relação entre o poder econômico e o político, em que o que ocorre é uma fusão: o político não é mais subterrâneo do econômico, mas lhe é indiferente. Ou seja, para muitas corporações globais instaladas no município, pouco importa as políticas adotadas por tal esfera administrativa. A possibilidade de mudança, vislumbrada por Oliveira (2001), está em forjar uma nova racionalidade, que vá além daquela burguesa, utilizando-se principalmente da política. Como afirma o autor, “o desenvolvimento local entendido como tendência contrária aos processos dominantes, também terá seus momentos de desformalização e desregulamentação, ao mesmo tempo em que necessita inventar uma nova forma que não possa ser assimilada pelo adversário global, concentrador e anti-democrático” (OLIVEIRA, 2001: 19). Nessa perspectiva, a sociedade civil não pode ser reduzida ao âmbito da cidade, pois muitas questões a serem modificadas estão além desse âmbito (como, por exemplo, um novo padrão de moralidade pública). A possibilidade de mudança está no que o autor denomina como “megapólis”: uma perspectiva de potencialidade do local que está além de seu âmbito, na verdade articulado a uma cadeia com propostas de um outro projeto de desenvolvimento23. O início do presente texto procurou trazer à tona o processo de desenvolvimento do planejamento urbano no Brasil até a aprovação do Estatuto da Cidade. A análise dos Planos Diretores em estudo permitiu a relação dessas iniciativas com esse processo. Foi possível identificar que muitas das dificuldades encontradas na elaboração de Planos Diretores no período pós-constituinte se apresentaram nos dois casos: limitações na participação da sociedade, descontinuidades no processo de planejamento, embates entre Legislativo e Executivo etc. Com isso, verificou-se que a tradição de planejamento urbano tecnocrático ainda persiste nas experiências de planejamento urbano pós-Constituição e pós-Estatuto da Cidade. Muitos dos aspectos citados por Villaça (1999), que compõem o planejamento tecnocrático, foram verificados nesse processo, principalmente através do nível de abrangência dos planos e do “posterior detalhamento” que nunca ocorre. Como principais contribuições para a discussão sobre a efetivação das propostas do Estatuto da Cidade, a pesquisa demonstrou que muitas iniciativas inovadoras passam por um processo de modificação de seus significados na esfera local. Isso tendo em vista a realidade urbana local, a correlação de 23

Ao final, alerta: “qualquer intervenção na cidade capitalista não é, necessariamente, excludente (...) A direção e o sentido de inclusão ou exclusão depende das forças sociais e políticas que estão operando”; mas ressalta: “existem, sem dúvida, fortes condicionantes estruturais, próprios do sistema capitalista” (OLIVEIRA, 2001: 36).

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forças e as interpretações possíveis sobre a Lei. Além disso, o processo de planejamento urbano das duas realidades demonstra a omissão na consideração de processos que extrapolam o âmbito intra-urbano, justamente em um momento em que o local se redefine e em um caso em que processos metropolitanos e regionais estão fortemente presentes. Bibliografia ARANTES, Otília B. Fiori (2001) [1998]. Urbanismo em Fim de Linha e Outros Estudos sobre o Colapso da Modernização Arquitetônica. 2a. ed. S.P.: Ed. Da Universidade de São Paulo. AZEVEDO, Sérgio (1997). “Políticas Públicas e Governança em Belo Horizonte”. In: Cadernos IPPUR, jan.-jul., n. 12, 1997. BALTRUSIS N. , MOURAD, L. N., e AKEMI, Y. M. I. (2002). “A Revisão do Plano Diretor de Diadema: A Construção de um Processo Participativo”. In: Espaço e Debates, nº. 42. BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. _____. Estatuto da Cidade: Lei Federal Nº. 10.257, 10 de julho de 2001. CAIADO, Maria Célia Silva (2002). “Município de Santa Bárbara d’Oeste”. In: CANO W. e BRANDÃO, C. A. (org.). Região Metropolitana de Campinas. Vol I. Campinas: Ed. Unicamp, 2002. CÂMARA DOS DEPUTADOS (2001). Estatuto da cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações. CARDOSO, Adauto Lúcio (1997). “Reforma Urbana e Planos Diretores: Avaliação da Experiência Recente”. In: Cadernos IPPUR, jan.-jul., n. 12, 1997. _____. (2003) “A cidade e seu estatuto: uma avaliação urbanística do Estatuto da Cidade”. In: RIBEIRO, L. C. de Q. e CARDOSO, A. L. (org.). Reforma Urbana e Gestão Democrática. Rio de Janeiro: Fase, IPPU/UFRJ, 2003. CARVALHO, Sonia Nahas de (2001). “Plano Diretor em Santos: Política Negociada”. São Paulo Perspec., Jan 2001, vol.15, no.1, p.121-134 CYMBALISTA, R. (1997). “Mapeando a Regulação Urbanística e a Exclusão Territorial no Estado de São Paulo”. In: Revista Pólis: Instrumentos Urbanísticos contra a Exclusão Territorial. S. P., N. 39 GRAZIA, Grazia de (2003). “Reforma Urbana e Estatuto da Cidade”. In: RIBEIRO, L. C. de Q. e CARDOSO, A. L. (org.). Reforma Urbana e Gestão Democrática. R. J.: Fase, IPPU/UFRJ. GUIMARÃES, Gonçalo (1997). Uma cidade para todos: o plano diretor do município de Angra dos Reis. Rio de Janeiro: Forense. JUSTIÇA nega pedido de condenação de ex-prefeito. UOL Todo Dia, 24 de janeiro de 2004. Disponível em: http://www.uol.com.br/tododia . Acesso em: 20 de novembro de 2.004. MARICATO, Ermínia (2001). Brasil, cidades. Petrópolis, R.J.: Vozes. OLIVEIRA, Francisco de (2001). Aproximações ao enigma: o que quer dizer desenvolvimento local?. São Paulo: Polis/EAESP/FGV. PLANO Diretor deve ser levado à Câmara de S. Bárbara em maio. UOL Todo Dia, 1º de abril de 2004. Disponível em: http://www.uol.com.br/tododia. Acesso em: 20 de novembro de 2.004. RIBEIRO, Luis C. de Q. (2003). “O Estatuto da Cidade e a Questão Urbana Brasileira” In: RIBEIRO, L. C. de Q. e CARDOSO, A. L. (org.). Reforma Urbana e Gestão Democrática. Rio de Janeiro: Fase, IPPU/UFRJ, 2003. ROLNIK, Raquel (1992). “Plano Diretor e Função Social da Propriedade”. In: IPARDES. Seminário Estatuto da Cidade: o compromisso com o Espaço Urbanizado. Curitiba: IPARDES. SILVA, Carla Almeida (2002). “Os Fóruns Temáticos da Sociedade Civil: Um Estudo Sobre o Fórum Nacional de Reforma Urbana”. In: DAGNINO, Evelina (org.). Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. S.P.: Paz e Terra e UNICAMP/IFCH, 2002. VILLAÇA, Flávio (1999). “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”. In: DEÁK, C. e SCHIFFER, S. (org.). O processo de urbanização no Brasil. S. P.: Edusp, 1999. ZONEAMENTO industrial gera polêmica. UOL Todo Dia, 29 de abril de 2.004. Disponível em: http://www.uol.com.br/tododia. Acesso em: 20 de novembro de 2.004.

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