SÁ DE MIRANDA E A DEFESA E ILUSTRAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA

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SÁ DE MIRANDA E A DEFESA E ILUSTRAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA Márcia de Arruda Franco·

REsuMo trabalho apresenta, a partir do exemplo do douto Sá de Miranda, que recusa a expressão em língua latina, o movimento de defesa e ilustração do português quinhentista como parte da empresa imperial lusíada.

O

- O Jdiomaterno. defesa e ilustração do. E scafandrista às raízes. Nox animae. Desesperado. Enamor: o verbo. Esta loucura: furor verbi. Wortlieb Motamour Loveword - o idiomaterno. O há muito tempo, o desde sempre, o nunca mais? Flor. Última. Mirabilis Miranda: caíram as estátuas. De metal. (Haroldo de Campos)

Citando o verso de Sá de Miranda, "Caíram as estátu as de metal ", Haroldo de Campos (1992) aproxima o poeta, "Mirabilis Miranda", da defesa e ilustração do idiom a materno. Sá de Miranda não fez uma defesa explícita da língua portuguesa, até porque escreveu grande parte da su a obra em castelhano. A defesa do português se encontra nos gramáticos e em António Ferreira. Mas o elogio de H aroldo de Campos não está tão longe do papel que a obra de Sá de Miranda desempenhou no século XVI : o seu exemplo de poeta humanista que se expressa em língua vulgar está na base do movimento de ilustração do português.

1 O movimento de ilustração do português e o exemplo mirandino A codificação, a difusão e a ilustração do idioma português estão em processo no século XVI e a serviço da empresa imperial lusíada, culminando, como é • Universidade de São Paulo.

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sabido, com a obra magna de Camões. D esde a primeira metade de quinhentos, a re lação entre pátria e língua começa a ser pen sada, m as ela só finca raízes no pensam ento quinhentista ibé rico a partir da União Ibérica (1580-1640) . É neste período que as obras dos poetas quinhentistas passam a ser impressas. As obras líricas de Cam ões e de Sá de Mira nda o são pelo m es mo impressor, Manuel de Lira, n o ano de 1595. A edição das Satyras de Sá d e Mirand a, e m 1626, aponta para o "lustre" dado à língu a portuguesa pela obra do poeta, e chama a atenção para a necessidade de perpetuá-la através de reimpressões : (... ),em graça dos curiosos, & respeito de seu Auto1; cujos efeitos estam merecendo que se imprimão muitas vezes, & que por este meyo se procure neste Reyno sua conservação, & perpetu idade pela excelle{n}cia delles, & pollo nouo lustre q{ue} derão à lingua Portugueza. (Sá de Miranda, 1626, p. 188)

A formação d a m oderna poesia portuguesa se dá parale lamente à perman ência do primado do castelha no como idioma de corte e de cultura. Ao longo do século XVI, o português passa rá de mero dialeto hispânico a idiom a nacion al. Be rnardim Ribeiro e Antônio Ferreira usa m exclusivamente a língu a portuguesa como idioma poético. O discurso histórico contribui para a con solidação do português na pena de a lg uns historiadores como D a mião de Gois, Fe rnão L o pes de Castanhed a, João de Barros e Diogo do Couto, como també m o discurso científico co m as obras de Pedro Nunes e de Garcia d'Orta, por exempl o. E stá em processo, desde a primeira m etad e de q uinhentos, o traba lho de dignificação do portugu ês nas gramáticas e n os diálogos em d efesa d a língua. O trabalho exercid o sobre a lingu agem portuguesa resu lta do movimento gera l do Renascimento das Letras a ntigas: os autores se incli nam ao cu lti vo letrado da língua, porque va lorizam o ponto de vista imperial lusíada. Como conclui Sebastião da Silva Dias: A tarefa que os letrados tinham à sua frente era [...],como Fernão de Oliveira sugere e António Fen·eira expressamente declara, converter o português numa língua culta, polindo-o ao contato do latim e do bom gosto. (Dias, 1969, t. 2, p. 908)

Foi a pena mirandina que pela primeira vez compôs uma obra do gê nero clássico (a Com édi a) em prosa portuguesa, dando início ao trabalho de fo rmação da m oderna prosa portuguesa. No prólogo de Os estrangeiros é ressa ltado o fato d e a co média, a mb ientada e m Pale rma, ser fa lad a em português e pedido o favorecimento da aud iência: Ora daqu elas casas defronte sairá um mancebo valenciano por nome A mente; a este segue um seu aio que o vigia quanto pode, e destes e doutros sabereis o mais, que eu lhes mandei a todos que falassem Português; e por que ouçais c'os corações tepousados, eu vos tornarei donde vos trouxe, já sabeis que o posso Jaza Ouvi e favorecei-me.

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E sta atitude influe n ciou muitos autores quinhentistas. Fernão L o pes de Castanheda, o primeiro historiador que escreve u sobre os feitos das Índias em língua portuguesa, justifica a dignidade expressiva do português com a obra de Sá de Mira nda, poeta a inda vivo em 155 1, como observa Rodrigues L apa : ( ... ) também fui o primeiro que mostrei o engano que muitos tinham que na língua portuguesa não se podia escrever quanto quisessem assi como nas outras, se houvesse quem o soubesseJaza E ajudou-me a mostrar esta verdade aquele grande poeta português, de muito grande erudição, o doutor Francisco de Sá, com as obras que tem compostas na nossa Língua, em prosa e em verso, outro Terencio do nosso tempo, outro ?Lauto e outro Virgilio, e outro tão maravilhoso engenho como o de cada um destes. (Lapa, 1960, p. 64)

A verte nte vernácu la da obra de Sá de Mira nda, malgrad o a sua crítica à emp resa indiana, serviu ao huma nismo impe ri a l lusíada d o discurso históri co. Ela mostrou que é possível escrever prosa e história em líng ua po rtuguesa novamente. Através do trabal ho de ilustração dessa líng ua difícil e rude, para a mentalidade lusíada, o português poderia ser o n ovo idioma imperia l herde iro da g lória ro man a. P ara Fernão Lopes de Castan heda, Sá d e Miranda era um novo Virgílio, um n ovo Pla uto, um novo T e rêncio do impé rio p o rtugu ês. Comparar a g randeza do império lusíada com a d o im pé rio roman o e ra um procedimento muito comum entre os autores po rtugu eses. Como bons re n ascenti stas, eles ainda cons ideravam a s uperio ridade dos Te mpos Modernos sobre a Antigüidade C láss ica . A dig nidade da poesia portuguesa res ulto u de um longo movimento de ilustração, iniciado pelo exemplo mirandin o, cuj as obras são pela p rime ira vez comparadas à dos gra ndes autores latinos. Jorge d e Montemor, o poeta luso-castelhan o m a is bem suced ido de sua época, autor de A Diana, escreve a Sá de Miranda pedindo- lh e a sua ciência. A fig u ra de preterição qu e aponta para Sá de Miranda (o destinatário da carta) como n ão sendo um C ícero, ne m um Virgílio, recoloca o p ara le lo e ntre o p oeta e os g ra ndes a u to res antigos: No escrivo a Ciceron que en sutileza con su pluma Llegó ai sumo grado, Ni dei poeta heroico La biveza: A otro blanco tiro, que ha tirado L a barra tanto mas que siempre anda En La corte de Apolo sublimado: A Francisco de Sá el de Miranda ESCJ·ivo, ( ... ) (Montemor, in : Sá de Miranda, 1885, p. 653)

Sá de M iranda, que devotava um amor especia l à líng u a espanhola, com a dicção austera e rude do seu cerrado português, é evocado para fundamenta r a d ig ni -

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dade expressiva da língua portuguesa, também no discurso filológico. Petrônio - o português do Dialogo em defensão da nossa linguagem que segue às Regras ... , de Gândavo - con sagra a obra do poeta e dos quinhentistas como monumento da dignidade poética do português, derrotando o arg umento do castelhano Falência, relativo à superioridade poética do seu idioma: E se quereis saber quam pouca necessidade temos del/a (da língua castelhana), vede o estylo das comedias & dos versos do nosso verdadeiro português Francisco de Sá de M iranda, que foi o primeiro que nesta nossa Lusitania o descobria com tamanha admiração, que de todos em gera/ficou confessada esta verdade. (Gâ ndavo, 198 1, p. 61)

A verdade que Sá de Miranda descobriu com tamanha ad miração é a bondade do português para a expressão poética. Na defesa de Pe trônio, a obra mirandina está encabeçan do a lista que termina em António Ferreira e Camões. Estas duas pontas fecham o ciclo que con stitui a moderna poesia portuguesa, iniciado por Miranda e concluído por Camões. A obra mira ndina, por seu cunho humanista e pela atitude renascentista de emular os modelos clássicos em vulgar, justifica a alcu nha de Garrett, que considera Miranda o "pa i da moderna poesia portuguesa" (Garcia, 1984, p. 99) . Para os auto res do século XVI, o teatro mirandino teve importância capital no movimento de ilustração do português. O seu exemplo influi n a escrita d e uma história em vulgar e, ao lado das célebres Cartas e de a lgumas éclogas escritas em português, como Basto, Montano e Encantamento, justifica para o discurso filológico a dignidade expressiva do português como idioma europe u e não apenas como dialeto ibérico.

2 A defesa da língua portuguesa e do império lusitano nos gramáticos e em Ferreira

É oportuno citar de novo o ainda mal conhecido estudo de Sebastião da Silva Dias, pois traz a idéia de que a gesta m arítima favoreceu a independência cultural portuguesa no âmbito ibérico (a apologia do idioma pátrio), "à m edida que os perigos de fora ameaçavam a independência do país", isto é, a independên cia política. A tendência para a apologia do idioma pátn·o, como expressão da alma nacional e como linguagem própria a toda espécie de pensamentos e de emoções, avo/uma-se cada vez mais, desde a geração de Camões e António Ferreira, à medida que os perigos de fora ameaçavam a independência do país. (Dias, 1969, t. 2, p. 905)

Como resultado da expansão portuguesa gerada pelas Descobertas e pelo desenvolvimento do com ércio, desde a primeira m etade d e quinhentos, surge uma re flexão sobre a líng ua portuguesa. Imprimem-se gra m áticas, cartinhas e diálogos,

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que visavam difundir a língua portugu esa pelo Novo Mundo. Para o primeiro g ram ático, a língu a portuguesa, "antiga e nsinada, prospera e bem conservada : e tam bém exercitada em bo (n] s tratos e ofícios", deve ser cul tivada através das letras (Oliveira, 1988) . O com promisso entre o cultivo letrado da língua e a afirmação da n ova ide ntidade imperial portugu esa é claro : "E assi desta feição ja ta mbém este n om e de Portuga l a ntigo e agora com a virtude d a gente muito e nobrecido e com muitos bons tratos e conve rsações assi em armas com o em letras eng randecido". (Oliveira, 1988) A afirm ação da dig nidade expressiva do português e a finalidade expansionista d as armas portug uesas estavam unidas na Gram ática de 1536. A difusão da língua portug uesa através d o mundo recém -descoberto é vista com o condição para o êxito do imperialismo lusíad a, buscando-se uma relação a fetiva com os africanos, ind ianos e brasileiros, ou de ide ntificação, através do ensino da ling uage m do colonizador. Muito longe de fa ntasm as d a retórica, a relação das Armas e d as L etras po rtugu esas era um projeto de expansão imperial do idiom a p ortugu ês, que passaria a ser falado n as colô nias. Com o líng ua euro péia, o portug uês tinha ainda de percorrer a aventura da su a própria codificação. Fernão de Oliveira condenava, no â mbito peninsular, o uso de línguas estrangeiras Os po rtugueses devem cultivar e a purar a sua p róp ria líng ua e não escrever n em em castelhano, nem em latim : ( ... )apliquemos nosso trabalho à nossa língua e gente e ficara com maior eternidade a memoria dele e nam trabalhemos em lingua estrangeira mas apuremos tanto a nossa com bõas doutrinas que a possam ensinar a muitas outras gentes e semp re seremos deles louvadas e amadas porque a semelhança e causa do amor e mais as línguas. E ao con tran·o vemos em Africa, Gu iné, B rasil e Índia não amarem muito os portugueses que antre eles nascem só polia diferença da lingoa. (Oliveira, 1988, cap. V)

O gram ático, consciente da opo rtunidade da expansão imperial do idioma portugu ês através do novo mundo, escreve a su a gram ática para servir ao fim expan sio nista, tendo com o m eta a dignificação do português m etropolitan o. No seu ensaio "La lengua compa êiera dei imperio", Eugênio Asen sio (1 974) nos ensina que a associação entre a líng ua e o império não é inven ção de Fe rnão de Oliveira, como pode parecer, pela fa lta da citação da fo nte na primeira gram ática portugu esa. E ste é um ve rdadeiro (de carne e osso) tópico humanista, lançado por Lo ren zo Valia e que terá grande fortuna ibérica. Valia reflete sobre a relação e ntre o Império Ro m an o e a difusão d a líng ua la tina, chegando à conclusão de que ele sobrevive onde quer que do mine a língua d e Ro m a (Garin, 1968, p. 98). O professor espanho l pôde en contrar este tópico encarnado em vários contextos, servindo a fins específicos : a relação entre o império e a líng ua proposta por Valia está na base da d ecisão estóica do aragonês Gonzalo Garcia de Santa Maria . O jurisconsulto de D . Fernando, o cató lico, nas páginas de Lo ren zo Valia, encontra a solução para resolve r o problem a social cau sado pela união d a coroa aragonesa à castelã . C itando a fo nte

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italiana, Gonzalo acha que Aragão deve assumir a língua de Castela - a língu a da corte- como língua de cultura. As idéias de Gonzalo acerca d a ed ucação era m as do humanista puro. Este considera o ensino do latim fund am en tal ao da língua materna, e não o contrário, como em Fernão de O liveira. Em seguida, Asensio encontra o tópico lapidado por Nebrija n a expressão: "a língua é companheira do império". O gramático castelhano adota uma outra filosofia educacional, justificada pelas conquistas castelha nas no Novo Mundo: o ensino da língua vulgar espanhola deve ser anterior ao do latim. Fernão de O liveira, como vimos, se a propria do tópico interpretado por Nebrija pa ra defender o português como idioma impe ria l e não como dialeto ibérico. Em João de Barros, segundo gramático e ta mbém segundo historiad or dos feitos indianos (Lapa, 1960, p. 64), a língu a imperia l lusíada assume ainda o valor de língua evangélica, justificada pela expa nsão da F é; o português é considerado por ele hu fm} novo aposto/o, na força das mesquitas e pagodes de toda/as seitas e idolatrias [que} desprega pregando e vencendo as reais quinas de Chn.sto com que muitos povos de gentilidade som metidos em o curral do senhor. (Barros, apud Asensio, 1974, p. 15)

Neste trecho, "as reais quinas de C risto" remetem à fundação da nacionalidade portuguesa n a alta Idade Média, isto é, ao mom ento em que se toma a representação religiosa, através do espírito cruzadista, como elemento definidor da nacionalidade portuguesa. No sécu lo XVI, a defesa da lusitanitas se justifica pela permanência do espírito cruzadista no pensam ento do huma nismo cristão lusíada. Sebastião da Silva Dias salienta que em Barros se encontra "a coincidê ncia d o interesse pelo vu lgar com a militância mais ou m enos direta na corrente huma no-evangelista" (Dias, 1969, t. 2, p. 911). E a inda: "é pa lpável o rasto do humanismo cristão na defesa que Barros faz do português com o língua evangélica." (Dias, 1969, t. 2, p. 911 ) Fernão de O liveira, João de Barros, Cam ões, Sá de Mira nda e todos os quinhentistas aponta m para a grande ajuda das Letras às Armas na consolidação dos poderes imperiais. A imagem do poder imperial lusíada (das armas e pad rões portugueses) sobre o novo mundo está em Barros: As armas e padrões portugueses postos em África e em Asia e em tantas mil ilhasfóra da repartiçám das tres pártes da tén·a, materiais sam e póde às o tempo gastar: peró nam gastará doutrina, costumes, linguagem, que os portugueses néstas térras leixárem. {Bar-

ros, 1969, p. 86) A superioridade das Letras e m relação às Armas é um tópico renascentista que assume um sentido "qu ase emblem ático", segundo Jorge A Osório (1985, p. 48) . "Quase", pois, com o no caso d e Fernão de O liveira, afirmar a superioridade das letras fazia parte de um projeto de d ifu são d o português como língu a imperial. Para Fernão de Oliveira importava assegu rar a dignidade do vernáculo em

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relação às línguas clássicas que exerce ram o seu próprio império e eram agora modelos para a expansão da língua portuguesa : "E manifesto que as lingu as Grega & Latina primeiro forão grosseiras: & os homens as poserão na pe rfeição qu ago ra tem" (Oliveira, 1988, cap. V). Como António Ferreira: "Po rque mais Mântua, e Esm irna que Lisboa, [... ] / Terá (se s'a rte usar) m aior coroa?" (Ferreira, 1940, p. 178). Oliveira reconhece que o grego e o latim não foram sempre línguas cultas, mas sim cultivadas e divulgadas, e exorta os portugueses a aprimorarem a sua própria, através do cultivo e do ensino do português. Para o primeiro gramáti co português, os homens fazem as línguas e não o contrá rio; nesse mo me nto de cod ificação e divulgação do idioma materno é preciso cultivá-lo e d ifundi-lo através das Letras, da história e do ensino da gramática, para que a língua portug uesa, como os antigos idiomas grego e latino, construa o seu império e continue a viver na memória dos home ns: Grecia e Roma só por isso ainda vivem: porque quando senhoreavam o mundo mandarão a todas as gentes a elles sogeytas aprender suas /inguas: e em elas escreveram muitas boas doutrinas e não somente o que entendião escreviam nellas: mas tambem trasladavam para elas todo o bom que /iam em out ras. E desta Jeyção nos obrigaram a que agora ainda trabalhemos em aprender e apurar o seu esquecendo nos do nosso não façamos assy mas tomemos sobre nos agora que h e tempo e somos senhores porque milho r h e que ensinenmos a Guiné ca sejamos ensinados de Roma. (Olivei ra, 1988, cap. III)

É interessante a postura do gram ático, que ass ume, como antes dele Nebrija assumira, uma crítica à educação hum anística, toda voltada para as línguas clássicas, em detrime nto das vulgares. No fin al do século, o humanismo n a França, por exemplo, acabará por desqualificar o u so da língua vulgar no dia a dia. Pensamos no conhecido testemunho de Montaigne que, já na segunda m etade do século XVI, era obrigado a conversar em latim no seu ambie nte familiar (Garin, 1968, p. 180) . Ta m bém no re inado d e D. João III fl oresceu uma cultura humanista "sublime", toda escrita em latim, cujos expoentes se expressavam em latim. António Ferreira, criad o dentro desta filosofia educacional, como aluno do Colégio das Artes de Lisboa, dela se separa, ao defender o uso da língua portuguesa na escrita da poesia, de modo bastante parecido com o dos gram áticos: D o que se antigamente mais prezaram Todos os que escreveram, foi honrar A própria língua, e nisso trabalharam. Com cópia, com sentenças, e com arte, Com que podesse d'outras triumfar. Daquela alta elegancia quanta parte Deves, tu Grécia, àquele tam louvado Poeta, que assi soa em tôda a parte! E tu grã Tibre, de que estás horrando Senão com a pureza dos escritos Daquele Mantuano celebrado? (Ferreira, 1940, p. 44)

SC RIPTA, Belo Horizont frauta. Esta forma evoluída está nos grandes autores do período misto ou médio arcaico do idioma português (Paiva, 1988, p. 9), como Sá de Miranda. Na filosófica espa rsa "Não vejo o rosto a ninguém", o verso "o meo do craro dia" da lição a utógrafa- substituído por "na meta do meo dia", na edição de 1595, e por "E às oras do meo dia", na de 1614, que soavam melhor para as orelhas dos editores -só é repetido na edição de 1885. A deriva resultante do "exercício em bons tratos e ofícios" seria em parte responsável pelo caráter grave e varonil da língua portuguesa. A outra parte ficava sob a responsabilidade dos filólogos na fixação das formas eruditas, como no case de claro/craro. Se no século XVI a forma craro é usada pelos melhores poetas cancioneiros, no século XX, ela é considerada errada, comum entre iletrados ou pessoas com problemas de pronúncia. A obra mirandina pertence ao período em que as formas arcaicas e modernas convivem, antes do movimento de regressão dos fi lólogos, que alcança, contudo, as primeiras edições de suas obras. Os ed itores, no caso acima apontado da esparsa "Não vejo o rosto a ningu ém", contornam o problema lançando mão de outras lições para o verso "no meo do craro dia". (Sá de Miranda, 1911) A forma ção do portuguuês moderno deve-se tanto à vivacidade cosmopolita da fa la metropolitana exercitada no comércio e na vida cortês, como à atividade dos filólogos e poetas (a partir do exemplo da cu lta lira do Horácio português) , que buscaram fixar as formas da língua culta. Mas não é só isso. Para que o dialeto ibérico da Lusitânia quinhentista fosse alçado à categoria de idioma nacional, foi fundamental o império ultramarino, que forneceu os signos identificadores desta nova época. A poesia mirandina encerra, contudo, uma crítica à revolução dos costumes resultante da empresa marítima. Os signos das Descobertas serão deslocados para a aventura da introdução dos gêneros e formas do Renascimento italiano, cujas leis rítmicas tiveram de ser longamente pesquisadas na prosódia portuguesa A excelência nos três niveis da nova poesia- melódico, imagético e conceitual - só será conseguida por Camões, que doma o ritmo peregrino, e encontra a melodia da agreste língua portuguesa.

5 O humani smo ibérico e a difusão das línguas ibéricas A aventura de dignificação do idioma vulga r não é exclusiva de Portugal, "recebe estímulo de fora " (Dias, 1969, t. 2, p. 905): outros idiomas vulgares também vinham se ndo dignificados. A emergência dos idiomas neolatinos através da cu ltura humanística ocorre numa ordem precisa: italiano, espanhol, português e francês. O incentivo d e dentro, "eivado de nacionalismo, com um pé na aventura dos D escobri-

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mentos" (ibidem) era o da oportunidade de formação de um idioma impe rial que supla ntaria os idio mas clássicos. É no século XVI que, na Eu ropa ocidental, se inicia a fixação dos idioma s m odernos, sob a égide cultural italiana; pau latinamente, as língu as vulgares adquirem maior relevo em relação ao latim. No entanto, em termos de filosofia e prática edu cacionais, o latim permanecerá como língua centra l ainda por muitos sécul os. Na Europa român ica, ao mesmo tempo que se faz, através da filosofia ed ucacio na l humanista o elogio das letras clássicas, também se promove, através da escrita da poesia, da hi stóri a e das g ra máticas, a dignificação dos idiom as vulgares (Garin, 1968, p. 97) Para Garin, esse movimento na Itália é propiciado pelo passado histó rico, pela relação com a Roma a ntiga. No resto da Europa româ nica os idiomas vu lga res também serão dig nificados, ressa ltando-se a sua latinidade. A comparação com o latim deve ser entendida de ntro das prerrogativas humanistas e renascentistas: I.:étude du latin classique, poursuivie à travers les oeuvres des classiques, ne constitue pas seulement l'unique voie d'acâs à une connaissance véritable de leur monde, mais nous permet aussi, dans une confrontation de tous les instants, de 1JOIIS assurer la possession des structures et des démarches historiques de notre language, du processas par leque/ i/ s'est constitué. (Garin , 1968, p. 97)

A cultura huma nística, d este m odo, aca ba desenvolvendo-se em latim c também nas líng uas vu lgares. Em Portugal , porém, desenvolveu-se em duas frentes, a batalha [... ] em defesa e ilustração do português. Uma delas era o Latim: e não lhe falta correlação com o movimento de tradução que então se processou no país. A outra frente era o castelbano. (Dias, 1969, p. 907)

A emergência dos idiomas neolatinos é confrontada com a latinização da educação pelo huma ni smo. Nos ce nt ros de estudos humanísticos (Paris, L ovânia, etc.) o idioma m aterno terá a sua maio r área d e atuação fora do universo escola r, sendo estudado cada vez mais como líng ua subsidi ária do latim (Aries, introd., Garin, 1968, p. 9- 11 ). Com o fascínio exercido pela Antigüidade, o e nsino das Letras clássicas assumi rá em Fra nça um outro perfil que desqualificará o sentido humanístico do Renascime nto, isto é, a leitura dos textos an tigos com vistas a uma posição crítica em relação ao presente histórico d os homens modernos. (Garin, 1968, p. 280) Embora e m Portugal e na E spa nha desde muito cedo, tenha-se desenvolvido toda uma cultura humanística em latim, a difu são imperial da língu a leva a uma utilização do idioma vulga r no uni verso edu cacional. Nas colônias latino-a m ericanas, o ensino d a língu a do colonizador ass umirá o perfil do humanism o cristão ibérico. A defesa da língu a portuguesa por Fernão de Oliveira e João de Barros, e, já na segunda m etade de quinhentos, por Gândavo e António Ferreira, assu m e ple na-

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m ente a prerroga tiva renascentista e huma ni sta d e se aproxim ar d o a ntigo através duma postura de valo rização do prese nte. Ga rin cita a expressão lapida r d e  ngelo Poli z iano: "na escola de C ícero não vam os aprende r a ser ciceronia nos, m as nós mesm os". Dias (1969, t. 2, p. 905) afirma que "João de Barros e António Ferreira, intim amente fa mili ari zados co m os cláss icos e com as su as concepções, nunca escreveram uma linha em latim ". E mais adiante (p. 906): "os defen sores do vulgar, ao contrári o dos puros hum anistas, só ate ntos à cultura para as elites, tinh am os olhos no problem a de uma cultura pa ra o bem comum ". O império portugu ês justificava a necessidade de codificação e d e difu são da língua portug uesa como idioma imperial tão bom qua nto o latino, que se rviria a inda pa ra introduz ir o estudo do la tim. O s filólogos portugueses e espanhóis consid era vam o ensino da líng ua vulga r básico para o do latim. Este só deve ria se r e nsinado num segundo mome nto, depois de assimil ado o idiom a natural. Sá de Miranda, conhecedor dos idiom as antigos, só se expressou em português e/ ou caste lha no. N esta refl exão sobre a qu estão da língua em quinhentos, va le observar a bival ência da sua figura, cuja obra, escrita em du as línguas, será, não obstante, na sua vertente vernácula, m arco e fund am ento da busca pela dig nificação expressiva da língua portuguesa, conforme citado nas obras de Castanheda, Gândavo e António Ferreira. N a expressão de Carlos Drummond de Andrade, a obra mirandina é "pasto dos vulgares" (Franco, 1998, p. 582) , isto é, no processo de fixação do português como idioma, ela importa pela recusa da expressão latina do puro huma ni sta. É neste sentido qu e a obra de Sá de Miranda, com o sugere a epígrafe de H aroldo de Ca mpos, difunde o amor pelo idioma materno.

ABSTRACT

T

his paper prese nts, from Sá de Miranda's example of a h umanist poet wh o refu ses to write in Latin, the process o f defence and illustrati on of th e XVIth century Ponugu ese as part of Po rtugal imperial entcrprise.

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DE M IRANDA E A DEFESA E ILUSTRAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA

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