SÁ DE MIRANDA E CAMÕES

June 3, 2017 | Autor: Marcia Arruda Franco | Categoria: Camões, Sá de Miranda, Luis Vaz de Camões
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SÁ DE MIRANDA E CAMÕES Marcia Arruda Franco Universidade de São Paulo – Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos [email protected]

Abstract Once upon a time Miranda was the main renaissance poet than Os Lusiadas were published in 1572. The criticism upon Miranda’s poetic demerit is well read within a specific kind of critical text, very popular in Iberian letters, along 17th and 18th centuries, cartographies of the Parnaso of Apolo. The poetic evaluation that Sá de Miranda’s lines were prose like is also on the basis of Romantic misreading of Miranda’s poetry as merely philosophical. It is only in the 20th century that his poetry has been praised aesthetically by critics and poets. Keywords : Camões, Criticism, Parnasos of Apolo, Poetic Canon, Sá de Miranda

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história da poesia portuguesa, de certa forma, nos desestimula a comparar estes dois poetas do século XVI, e nos alicia a concordar com o seu veredicto, propagado desde as diversas cartografias fabulares do Parnaso ibérico, tão em voga nos séculos XVII e XVIII, até aos manuais da história literária dos séculos XIX e XX, de que Sá de Miranda é de prata e Camões é de ouro. Do nosso ponto de vista (o da contemporaneidade), interessa justamente entender como tal juízo foi constituído, se ainda se mantém, ou se foi questionado. Aqui apenas examinaremos sumariamente a relação de Sá de Miranda e Camões em algumas fábulas poéticas ibéricas seiscentistas, a fim de inventariar, a partir da comparação, os juízos que nelas capitalizaram poeticamente os dois quinhentistas, e legitimaram ou não a sua canonização. Em tais cartografias poéticas, ao longo do século XVII, surge uma reprovação crítica cada vez mais intensa do prosaísmo mirandino e a sua falta de melopeia é ridicularizada. Para entrar no Parnaso de Apolo é necessário ter a aprovação da musa da dança e da música, o que Sá de Miranda não consegue, mas, por sábia e sentenciosa, a poesia mirandina impõe, à força de braços, a sua presença nestas listas. Camões, ao contrário, embora criticado ocasionalmente, recebe elogios cada vez mais hiperbólicos, legitimando a existência da poesia em língua portuguesa. A nova poesia escrita em português, com a imitação dos antigos e italianos, foi ajuizada também pelo elogio ou vitupério dos pósteros, como nas fábulas poéticas seiscentistas. O exame de alguns Parnasos de Apolo, em português e castelhano (“Pegureiro do Parnaso”, Laurel de Apolo, “Introdução poética”, “Jornada que Diogo Camacho fez às Cortes do Parnaso, onde Apolo o laureou”, O Hospital das Letras) revela que, salvo

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na Viaje del Parnaso, de Cervantes, foi consensual a canonização de Camões e de Sá de Miranda no Parnaso português e ibérico, o épico como príncipe dos poetas da língua portuguesa, apesar de torto e pobre, e o segundo como poeta conceituoso e filosófico, ruim dos metros e mais afim da prosa. A constante seiscentista da receção mirandina na comunidade interliterária ibérica (Aguiar e Silva) é esta crítica à sua falta de ouvido, uma vez que não sabe escrever no ritmo do decassílabo italiano. Este juízo a respeito da sonoridade deficiente do decassílabo mirandino, depreendido no século XVI pela correspondência de Sá de Miranda com Jorge Montemayor, ou pela ironia presente no soneto escatológico de D. Manuel de Portugal, a ilustrar o paratexto da edição de 1595, repetido e intensificado literalmente na história literária oitocentista, foi confrontado pelo que se constituiu ao longo do século XX, entre poetas e críticos novecentistas, a respeito da atualidade da poética mirandina. Ao fim deste artigo, temos a franca intenção de indicar uma avaliação poética renovada do prosaísmo mirandino e da sua melodia máscula e pedregosa. Na Viaje del Parnaso, de Cervantes, como se sabe, não é canonizável nenhum poeta português, pois a nave da poesia portuguesa naufraga, por obra de Netuno, a rogo de Apolo: Una nave a la tierra tan vecina llegó, que desde el sitio donde estaba se ve cuanto hay en ella y determina; de más de cuatro mil salmas pasaba (que otros suelen llamarlas toneladas), ancho de vientre y de estatura brava: así como las naves que cargadas llegan de la oriental India a Lisboa, que son por las mayores estimadas, esta llegó desde la popa a proa cubierta de poetas, mercancía de quien hay saca en Calicut y en Goa. Tomóle al rojo dios alferecía por ver la muchedumbre impertinente que en socorro del monte le venía, y en silencio rogó devotamente que el vaso naufragase en un momento al que gobierna el húmido tridente. (Cervantes, PDF Creator: 48-49)

É certo que na sequência desses versos um poeta do número “hambriento” protesta da borda da nave. Depois de ouvi-lo, o autor interpela Apolo, que lhe ordena, chateado: «Vuelv[a] la vista y mir[e] lo que pasa»; ou seja, o caso agora é com os deuses. Vênus pede uma revisão da morte de todos os poetas, pois há distintos modos de morrer. Num passe de mágica, neutraliza a fúria de Netuno e transforma os poetas em “cala-

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bazas y odres” de modo a não submergirem. Alguns poetas “zarabandos, / blancos, tiernos, dulces, blandos”, sobrevivem. Cervantes passa a identificar poetas com abóboras e couros, por conta dos odres e da sua linguagem incompreensível, espécie de algaravia, que hoje no Brasil se diz justamente “falar abobrinha”. Na “Adjunta al Parnaso”, decide abrir a carta de Apolo quando Pancrácio de Roncesvalles, o portador, toca no problema do extermínio da má semente poética; conforme a visão crítica que dirige a Viaje del Parnaso, Apolo relata a erradicação de meros versejadores. Do portador da carta, de Pancrácio, Apolo diz: “y pues es rico, no se le dé nada que sea mal poeta”. Nos “Privilégios, ordenanzas y advertencias que Apolo envia a los poetas españoles”, em anexo à carta, o primeiro é que alguns poetas sejam conhecidos tanto pelo desalinho de suas pessoas como pela fama de seus versos. Esta caracterização da pessoa dos poetas e da sua poesia é seguida nas fábulas poéticas. O item inicial dos Privilégios reza: “qué se algun poeta dijere que es pobre, sea luego creído por su simple palabra, sin outro juramento o averiguación alguna”. A pobreza material do poeta é a condição de possibilidade da poesia, filha de Apolo com a Pobreza, e serve bem ao nosso caso, malgrado Cervantes: Camões, o degredado, e Sá de Miranda, o Comendador de Duas Igrejas. Apesar de ausentes do cânone cervantino, Sá de Miranda, Camões e outros do século XVI serão referidos em inúmeras outras cartografias do Parnaso ibérico, escritas no século XVII. A série de fábulas poéticas mapeia um Parnaso, com o desfiar de prosopopeias de autores passados e contemporâneos, conhecidos e desconhecidos. Para além do seu pendor etnográfico, de resgate das margens do cânone, na medida em que muitos contemporâneos dos dois quinhentistas em processo de resgate atual são aí referidos, a fábula jocosa e satírica destas listas permite valorizar os poetas entre si, numa canonização ou hierarquização das obras, segundo um juízo apolíneo do poético. As viagens ao Parnaso de Cervantes e para a coroação de Diogo Camacho, o desfile da fama, a guarda do licor sagrado de Aganipe, as estátuas do monte Parnaso, o exame dos poetas doentes pela junta de doutores encenam a busca de poetas dignos de serem canonizados. O pai da poesia concede ao autor da fábula poética o poder de excluir e escolher poetas do Parnaso, segundo a sua conceção não obscura e sim cristalina do poético. Na fábula poética, o processo de canonização dos autores está a cargo do próprio autor da fábula, que organiza um censo ou inventário dos poetas com mérito para figurarem no Parnaso de Apolo, de acordo com o juízo poético que valoriza a clareza e a racionalização da arte. Daí a menção negativa à poesia de Gôngora como metáfora da poesia antiapolinea, no “Pegureiro do Parnaso” e em outras fábulas poéticas. Se Cervantes, em 1614, exclui a nave da poesia portuguesa e não canoniza nenhum autor português, no Laurel de Apolo, Lope de Vega, em 1630, grande leitor e admirador de Camões, lança mão de imagens e versos camonianos e de seus contemporâmeos para se referir aos portugueses e a suas façanhas náuticas; na Silva terceira, depois de a Fama deixar, por mandado de Melpomene, Sá de Miranda dormindo, cita temas e versos de

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Corte Real, para dar a palma da épica a Luís de Camões. Leiamos o célebre trecho no Laurel de Apolo: Llegando pues la Fama A la mayor ciudad que España aclama, Por justas causas despertar no quiso (Y fue discreto aviso) Al gran Sà de Miranda Que le dexe Melpomene le manda. [...] Y al divino Camoens En Indiano aloés Que riega el Ganges, y produze Hidaspes Durmiendo en Bronze, por fidos, y jaspes (Foturna estraña que al ingenio aplico La vida pobre, y el sepulcro rico) Porque si despertaran Ya las Cortes Parnasides llevaran Docto Corte Real, tu nombre solo, Aun no que dara con el suyo Apolo Como lo muestran oy vuestras Lusíades Postrando Eneidas, y venciendo Ilíadas, Que triste suerte, que notables penas, Acabada la vida hallar Mecenas! Mas no por eso puede Dexar de ser gloriosa vuestra fama Si bien claro Luis la tuya exede Por quanta luz derrama El farol Didimeo Y mas quanto te veo Bañar pluma de Fênix tinta de oro Diziendo com decoro Y magestad sonora Por la lealtad, que nunca el tiempo olvida Que mas anos servira se naon fora Para tan largo amor tan curta a vida (Vega, 1630, fl. 25)

Na Fénix Renascida, algumas composições têm o mesmo objetivo de cartografar o Parnaso de Apolo, estabelecendo avaliações dos poetas (el divino Camões) pela visão apolínea do poético, que condena a poesia escura, como a de Gôngora, e só aceita a de Miranda, por conta da sua filosofia ou sabedoria. Na “Introdução Poética”, que abre a Fénix Renascida [FR] e o Postilhão de Apolo, Camões e Miranda são estátuas visíveis lado

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a lado, em duas estrofes consecutivas, 55 e 56, ambos são considerados poetas dignos do monte Parnaso, primeiro o épico: LV Via-se muito ao vivo retratado A espada numa mão, na outra a pena, Camões, o mor Poeta, o mor soldado, Que viu Belona, conheceu camena Aquele engenho nunca assaz louvado Que quanto mais nos louva, nos condena, Sendo calúnia nossa os seus louvores, Que pagamos com tantos desfavores. LVI Junto a este também se descobria Miranda, o que do célebre Mondego Nas saudosas praias assistia Arguindo de louco, amente e cego Ao que dentro nas Cortes se atrevia Passar a vida sem nenhum sossego Claro a seus pés o rio se descobre De areias rico, de corrente pobre (FR, T. I, 1746, p. 19)

Ou seja, neste Parnaso segue-se a interpretação geral de Camões como grande poeta épico mal reconhecido pela pátria durante a sua miserável vida, e de Sá de Miranda como sábio fora das Cortes, com muito a dizer aos cortesãos, mas pouca corrente no seu rio-poético; avaro de melodia, como as tranquilas águas do Mondego, o valor de Miranda é arguir a vida da corte, sendo um dos tópicos mirandinos no Parnaso português e ibérico a retirada da corte. Na “Introdução poética”, a corte é o lugar do louco, do amante, do cego, o que é o mesmo que dar razão a Miranda e a D. Francisco Manuel de Melo, para quem a poesia mirandina acode toda a doutrina áulica. Em outras palavras, Miranda está no cânone desta fábula poética e de outras porque tem uma política e uma ética a ensinar aos letrados e cortesãos, do século XVII ao XVIII. Note-se que o Minho não é mencionado. Na segunda composição do tomo V de a Fénix Renascida, de 1748, o “Pegureiro do Parnaso”, pastor ou zagal do parnaso, cão de guarda do gado poético, a sabedoria mirandina é responsável por guardar o licor sagrado da poesia. A figura de Miranda é estrutural nesta prosopopeia: o venerando guardião do licor sagrado da fonte de Aganipe aparece em outros lugares, identificado com o poeta, e em diálogo com o jovem

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Pegureiro. Vejamos a identificação do velho com Miranda. Após as inventivas do Pegureiro contra a obscuridade poética “gongorante”, no monte Parnaso, Acode então um velho, que há cem anos Sempre cantára em versos Lusitanos, E tinha por cuidado, Guardar da fonte este licor sagrado De bichos peçonhentos, De poetas, que são como jumentos, E de paroleiras rãs Que iam ali cantar pelas manhãs Muitas rimas sonoras Quando de rosicler vestem as horas Aqui por vários modos A sede vem matar os poetas todos Homero por ser cego Buscou desta Aganipe o fundo pego Este foi o primeiro Que molhou na Helicona o seu tinteiro E Virgilio bizarro, Por um vaso que o pai lhe fez de barro, quando tocava Nesta fonte grata, Tinha este barro mais valor que a prata O Cordovez Lucano Punha agastado a boca sempre ao cano E Ovídio engenhoso Nunca chegou Aqui senão choroso Que se bebeu licores Deixou nas águas lágrimas de amores Aqui chegando um tempo grã Miranda Molhava toda a barba veneranda (FR, T. V, 1748, pp. 47-48)

A sabedoria Mirandina é figurada na barba veneranda, aquela do retrato de Sá de Miranda e a do Velho do Restelo. O poeta é aproximado do Velho do Restelo por vários intérpretes de sua obra, como Pina Martins, que relaciona esse episódio das cartas de Sá de Miranda, pois ambos citam lugares comuns de figuras mitológicas que simbolizam a punição a ações desmesuradas e mais que humanas. A longa experiência do velho confere a ele uma aura sábia e venerável. Este termo qualifica o Velho do Restelo e em verdade os velhos na obra de Luís de Camões e dos seus contemporâneos. Ou seja, o qualificativo venerando se aplica à senectude. Em rima com Miranda, a barba

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do poeta torna-se emblema desta velhice carregada de sabedoria. Esta barba molhava-se no licor sagrado da poesia, no tempo imperfeito, como ação que se desenrolou por “um tempo”, no passado, como hábito, mas que não se repete mais no presente? Na fábula do “Pegureiro do Parnaso”, Apolo, o deus sol, resolve tornar mais lento o passar do dia e andar de jumento, até que Moreira, amigo e Sílvio, a quem a composição é dedicada, volte ao Parnaso; desocupado, Pégaso atroa no monte, e o pegureiro lhe põe a questão se trotar como cavalo seria escrever poesia. Se trovar não é poetar, vale a pena anotar uma trova feita de repente, como um rinchado? E assim todo trovante Que em si sentir furor de rocinante Não tome de poeta o exercício Só poderá rinchar, que é seu ofício Não note o verso bem ou mal limado (FR, T. V, 1748, p. 42)

Por não condenar a obscuridade da linguagem poética, o guardião de Aganipe nega ao pegureiro o licor sagrado da fonte sonora do Parnaso? Ao fim do diálogo, este alude à inabilidade de Sá de Miranda como sonetista, e à ajuda que precisava receber (da senhora muito lida a quem servia? de quais dos seus contemporâneos? D. Manuel de Portugal? Diogo Bernardes? António Ferreira?) para a lima de seus decassílabos: Pois eu te juro, ó velho venerando Que se Apolo consente Que eu possa mitigar a sede ardente Neste licor divino Que há de ser por um vaso cristalino Não por verso suspeito [...] Não beberás já agora Ó jovem (me responde) O divino licor que aqui se esconde Desta fonte sonora [...] Deixei o velho aqui, guarda Aganipe, Em fazer dous sonetos ocupado Se não houver alguém que lhos estripe E fui correndo atrás do manso gado. (FR, T. V, 1748, pp. 52-53)

Miranda apenas guarda o licor sagrado da fonte poética do Parnaso e não o bebe, pois nele não molha mais toda a sua barba veneranda?!... Como o pegureiro guarda o gado poético, o velho guarda o licor de Aganipe neste Parnaso a passo de jumento. Miranda, o guardião de Aganipe, não se aventura a molhar a sua barba no doce licor

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da inspiração poética? Rodrigues Lobo o bebia na primavera. Camões, por sua vez, apenas no verão. Nenhum dos dois é condenado pelo pegureiro por uma poética obscura, nenhum bebeu da fonte em noite alta, às desoras, como um escravo, furtivamente, desobedecendo a leis do deus-sol: Mandara logo Apolo por tal caso Que dessem muito açoite Em quem ia beber nela de noite Porque cristal tão puro Não se deve tocar em tempo escuro Que um amigo de Lobo lhe dissera Que sempre aqui bebeu na primavera E que Camões famoso Poeta ainda que torto majestoso Só pelo tempo quente Na fonte mitigava a sede ardente Por isso assim cantou em altos brados As armas e os barões assinalados (FR, T. V, 1748, pp. 44-45)

O juízo satírico e burlesco acerca dos autores em pauta intensifica-se na segunda parte da composição logo antes de “Pegureiro do Parnaso”, “Jornada que Diogo Camacho fez às Cortes do Parnaso, onde Apolo o laureou”. Na primeira parte, abrindo os poemas do tomo quinto da Fénix Renascida, Sá de Miranda é referido não só por meio da citação de “O Sol é grande”, mas como figura de cão guia ou “piloto” de Apolo e suas irmãs pelo ocidente peninsular: E apresentei ao Sol nove bordalos Que ele com cara alegre, e bom focinho Uma ninfa mandou fosse torná-los Iam já todos fora do caminho E para lho ensinar dei-lhe um podengo, Grande piloto de entre Douro e Minho, E como o Sol é grande, e realengo, Porque lhe dei bordalos de presente Logo me fez Poeta Bordalengo. (FR, T. V, 1748, p. 23)

O podengo não foi um presente para Apolo, como esclarece o autor: Pedi-lhe então que tanto que chegasse À Vila de Porrinho tão antiga, O meu fiel podengo me mandasse Avisei-o também que se a barriga Por algum acidente lhe doesse

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Ou quisesse vazar sua bexiga, Que dentro em Portugal o não fizesse Que em Galiza podia fazer tudo, Monturo velho, que ele já conhece. (FR, T. V, 1748, p. 23)

Na viagem para a coroação do bordalengo, todos vazam as bexigas e as tripas, o que evidencia o aporte escatológico desta burla poética. Por que só se esvaziar na Galiza e não em Portugal? A Galiza é um monturo velho, um lixão, um acervo de formas e ritmos do trovadorismo ibérico, onde costuma vazar a bexiga (e a barriga) o podengo de Entre Douro e Minho? A obra mirandina se vaza nas cantigas medievais?! Pode-se ler aqui um elogio ao trovador Doutor Francisco de Sá? O que o podengo conhece é a tradição galego-portuguesa, não poderá guiar Apolo por toda Ibéria nem a respeito da poesia italiana... Construir Miranda como piloto de Apolo é um elogio ambíguo ao poeta d’Entre Douro-e-Minho (o Mondego mal aparece numa rima anagramática com podengo), que o canoniza com os pés, ou as quatro patas, fora do Parnaso, mais ou menos como Pancrácio de Roncesvalles. Na “Parte segunda da Jornada de Diogo Camacho”, em que Petrarca, Juan de Mena e Garcilaso de la Vega antecedem os dois portugueses, o estigma contra a poesia mirandina é lançado: Trás este as cortes todas assombrando De mestres, e pilotos rodeado O torto de Camoens vinha bradando Um português pelote remendado Vestia, que lhe deu Vasco da Gama, Com palavras Latinas debuxado Vinha com ele Brízida d’Alfama, De formosas lampreas muy gulosa Mais célebre por nome, que por fama, No fim de companhia tão lustrosa Um Francisco de Sá aparecia Poeta até o embigo, os baixos prosa A este respondeu Boscão um dia, Porque como salsicha defumada Com seus safurros palmos se media. (FR, T. V, 1748, pp. 27-8)

Ainda no que toca a Sá de Miranda, há referência ao diálogo poético com D. Manuel de Portugal, a respeito da écloga luso-castelhana que este contemporâneo lhe enviou, “Dexando los ganados rumiando”. Refere-se aos tercetos de “Tantas mercês tão desacostumadas”, em que Miranda agradece a remessa, com a defesa do seu trabalho poético, afirmando a sua poética diversa da dos “ricos cristalinos de Veneza” (alusão aos decassí-

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labos italianos), ao se medir por seus próprios ibéricos palmos, como Boscán, cultivando o decassílabo com ritmos peninsulares, como a gaita galega: Senhor Dom Manuel, se a só clareza Dum peito aberto, puro, e fé lavada, Muito merece, muito vos mereço. A pedraria vãmente estimada, Os ricos cristalinos de Veneza, Lá se acham, eu òs meus palmos me meço.

Quanto a Camões, que sabe e estima a arte, todas as cortes assombrando, com seus malabarismos poéticos e sua pobreza, Vasco da Gama (irresistivelmente a lembrar-nos a marchinha de Alô, alô, Carnaval) lhe deu um pelote remendado para ir com Brízida d’Alfama à coroação de Diogo Camacho no monte Parnaso. Camões “bradava um Português pelote remendado” no que se refere à língua portuguesa, remendos e latinismos debuxam Os Lusíadas; trata-se de um desenho satírico da épica e de Camões, que desbarata a língua portuguesa e o seu maior ou único Poeta. Camões é referido em outras passagens dessa fábula poética entre os grandes poetas ocidentais, rindo dos enjoos náuticos de Petrarca: “Vinha Petrarca de enjoado morto / Por nunca s’embarcar; zombava disso / Um Luiz de Camoens Poeta torto / Que era em cousas do mar este muy visto. E já comera muito marmelada / Desde o polo de Antártico a Calisto” (FR, T. V, 1748, p. 24). Ainda é mencionado por enfadar a todos, com a fina caldeirada de urina apaziguadora entre Lucano e Virgílio: “Mas acudiu com um caldeirão de ourina / O Portuguez Camoens a meter pazes, / Que a todos enjoou por ser muy fina” (Ibid., p. 30). Depois de Homero, Teócrito, Virgílio, Lucano, Horácio, Petrarca, Juan de Mena, Garcilaso de la Vega e Camões, Sá de Miranda é o décimo dos poetas canônicos. Ao fazer a burla de Camões e Sá de Miranda, o poeta bordalengo é fiel ao gênero escolhido para a sua jornada poética satírica. Se o juízo negativo sobre Camões não pôs em xeque a canonização do épico, não se pode dizer o mesmo a respeito de Sá de Miranda, cuja receção foi marcada pelo estigma de Diogo de Sousa Camacho. No apólogo dialogal de Francisco Manuel de Melo, O Hospital das Letras, como fábula poética, por um acórdão de Apolo, a junta de doutores examinará os poetas doentes das letras portuguesas e ibéricas. Camões, cuja doença está na vida e não na obra, o maior épico da Espanha, ainda que mal traduzido e comentado, é o doente medicado em primeiro lugar na prosopopeia d’O Hospital das Letras: Autor : A menos custo de prosa eu sei já, Senhores, quem é o doente. Lípsio : Quem? Autor : É o pobre de Luís de Camões, que está ali lançado a um canto, sem que todos os seus cantos tão nobremente cantados lhe negociassem melhor

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jazigo, pois só achou na piedade o que podia alcançar por parte dos dotes de bem afortunado. Bocalino : De que se queixa o famoso poeta português? Quevedo : De nós todos se poderá queixar, porque, sendo honra e glória de Espanha, tão mal tornamos por ele que, se são poucos os que o leem, são menos os que o entendem. (Melo, 1999, p. 47) [...] Bocalino : Em suma qual é a enfermidade de Luís de Camões, da fome em fora? Autor : É... Bocalino : Ora, não passeis adiante, porque não é justo. Valha-me deus! Porque não sofre, pois é honrado! Tão pouco lhe parece ser o maior poeta de Espanha entre os heroicos, o mais venerado, o mais aplaudido, aquele que despojou da sua primazia a língua castelhana, que se pôs barba a barba com o nosso insigne Tasso, ombro por ombro com o Mantuano Virgílio, rés por rés com o grego Homero? Faltam-lhe por ventura (se lhe falta dinheiro por desgraça) glosas, comentos, exposições e ser citado e demandado pelos melhores autores de nosso tempo? Se quatro parvos pedantes lhe quiseram pôr o pé diante, que importa, se deu com eles de avesso, ao primeiro cambapé? Inoramos sua vida, desprezamos sua memória? Não são estimadas suas obras, até as de maior descuido? Pois que lhe dói, de que se queixa, quem lhe fez mal? Ora contente-se que, se na vida foi dos mais mofinos, foi na morte dos mais venturosos; quanto mais que todos sabemos quão importante tem sido à providência este a que nós chamamos cegamente o desconcerto da fortuna. Porque, se o prémio da virtude logo se dera de contado na vida, quem fora tão paciente que esperasse para depois o prémio da imortalidade? Lípsio : Vamos avante. Essoutro que está junto ao Camões e que, por acenos, parece que se queixa igualmente, quem diremos que é? Quevedo : Muito é por certo que sendo do nosso ofício o desconheçais? Bocalino : Ou já por isso o desconheço, que não debalde diz o rifão; “Quem é teu inimigo? O oficial de teu ofício. Autor : Aquele é o nosso Francisco de Sá de Miranda, que, em sua vida e escritos, encerrou toda a moral filosofia. Bocalino : Este é o por quem disse Diogo de Sousa, no seu Parnaso, “poeta até o embigo, os baixos prosa”. Autor : Essa foi uma travessura de bargante que, não embargante, maldito o mal que lhe tem feito. Lípsio : Muito bem, muito bem! Este é o Sá de Miranda. Desejava encontrar-me com ele, porque em algumas famosas epistolas latinas que me escreveu vosso natural e meu grande amigo, Francisco de Fontes, é várias vezes citado o Sá de Miranda, que, com altas sentenças, socorre toda a doutrina áulica. Bocalino : Pois como, sendo tão aventejado poeta, o não tendes visto?

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Quevedo : Eu responderei por todos. É tão vernáculo em seu estilo, tão cerrado português, que nenhum estrangeiro pode entendê-lo. Lípsio : Assi passa, e foi costume de famosos homens esconder altos conceitos e mistérios, como os egípcios observavam em estilo tosco; o qual os mesmos profetas guardaram a que o Espírito Santo aparou as penas, como se vê que, porque Isaías e Jeremias foram cortesões, que escreveram com penas delgadas e em figuras políticas, e ao contrário Amós e Joel, como homens do campo, tomaram dele os tropos e as rezões de sua profecia. (Melo, 1999, pp. 50-51)

Os doutores concordam com o elogio da filosofia mirandina e valorizam a sua rusticidade, em que há virtude, verdade e sabedoria. Concluir que Miranda é tão vernáculo que não pode ser entendido por nenhum estrangeiro é um modo gracioso de reduzir a abrangência da poética mirandina. O que se verifica é que cada vez menos se conhece Miranda fora de Portugal e mesmo entre poetas, comentaristas e tratadistas. Gracián, que estudou a poética camoniana, lamenta-se de não poder ler a tão citada obra mirandina, que, cada vez menos lida na íntegra, permanece referida pela citação feita por terceiros de suas imagens e sentenças (Garcia, 1984, pp. 50-51). Nas fábulas examinadas, afora Viaje del Parnaso, o juízo acerca de Camões se mantém estável, excelente poeta torto (alusão ao olho cego de Camões), apenas azarado na vida pobre e faminta que levou, cuja épica responsabiliza-se pela dignificação da língua portuguesa como língua poética. Pode-se dizer que o juízo negativo sobre Camões implica a desconsideração da existência da poesia portuguesa como se vê em Cervantes, ou seja, a épica é o fundamento da prática poética em língua portuguesa; Sá de Miranda, por sua vez, figura-se como sábio bestializado em cão-guarda do licor sagrado de Aganipe ou cão-piloto de Apolo pelas terras lusas e galegas. Reprovado por Melpomene, que lhe impõe, por assim dizer, um sono histórico, doravante será lido e citado apenas pelo conteúdo ético da sua prosa poética doutrinal. O estigma lançado contra a poesia mirandina, apontado n’O Hospital das Letras, “travessura de bargante que, não embargante” tem de fato feito um maldito mal a Sá de Miranda. É só no século XX que David Mourão-Ferreira, em seu livro de ensaios, intitulado justamente como o apólogo de Francisco Manuel de Melo, Hospital das Letras, no ensaio que resume a sua dissertação de licenciatura a respeito de três coordenadas da poesia mirandina, responde a Diogo de Sousa Camacho. Citamos aqui o trecho em que revaloriza o prosaísmo de Sá de Miranda, dando outro sentido a “poeta até o umbigo, os baixos prosa”: Já não é pouco. Quantos podem gloriar-se, de entre os seus pares, de poetas no coração e na cabeça? Resta saber, por outro lado (e foi tese sustentada por um Ezra Pound e por um Eliot), até que ponto serão necessários os sólidos fundamentos da prosa numa autêntica estrutura de poeta. Mas perguntaremos ainda se não é de poeta em corpo inteiro ter sido inovador como ele foi. (Mourão-Ferreira, 1966, p. 24)

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Sem esquecer que há inúmeros outros textos críticos onde a canonização de Sá de Miranda e Camões é pensada ou pensável, ao longo dos séculos XVII e XVIII, durante o Romantismo, o privilégio dado a Camões na maioria das fábulas poéticas se intensifica. Camões vira a literatura portuguesa para os românticos. Quanto a Miranda, temos de elogioso o juízo tardio de Garrett acerca de “Encantamento”, a primeira écloga vernácula dedicada a D. Manuel de Portugal. A filologia e a história literária no século XIX souberam ler apenas o conteúdo ético da obra mirandina, mostrando-se descontentes com a sua forma poética. Camilo Castelo Branco sirva de exemplo por todos: achava que o poeta deveria ter escrito “Se tudo o mais renova isto é sem cura” como o fecho de “O sol é grande”, acrescentando a condicional, que melhor o concluiria. A condenação da forma mirandina no século XIX também está presente no projeto editorial de 1885 e ainda na historiografia de Teófilo Braga, Sá de Miranda e a escola italiana. Delfim Guimarães, filólogo que encontrou na BNL o caderno borrão de Sá de Miranda, com a expressão “poeta filósofo” resume 4 séculos de canonização mirandina. As figuras do herói romântico Camões e do sábio Miranda são legítimas personagens da narrativa da historia literária oitocentista. No século XX, a objeção de Fidelino de Figueiredo vai direto ao problema: falta integração entre forma e conteúdo nas poesias mirandinas, e Costa Pimpão se aborrece com a falta de ouvido de Sá de Miranda para a medida nova. Em resposta, uma série de artigos de Mourão-Ferreira, Jorge de Sena, Gastão Cruz, Óscar Lopes, Pina Martins, etc., tenta um resgate crítico de Miranda, o poeta das trovas, dos sonetos, da sextina, das cartas, das canções, das elegias, das éclogas, buscando aquilatar valores literários para o seu verso longo e a ouvir a sua musicalidade dura e pedregosa. Na poesia brasileira modernista e contemporânea, o enfado da melodia camoniana, redimensionando a distinção entre versejador e poeta, leva a uma revalorização da poética mirandina no século XX, com seu tom seco, agreste, abafado, elíptico, difícil de ler, a impor à leitura um ritmo quebrado, não melódico, construído entre os níveis de discurso, pelo uso magistral dos parênteses, cujos saltos discursivos acrescentam densidade dramática aos poemas. Os irmãos Campos, também como Mourão-Ferreira, com Pound e Eliot, defendem o trovador e o sonetista Sá de Miranda. O poeta cultiva os tópicos do dolce stil nuovo renovado, como a mudez do amante diante da amada. Nesta mesma linha, Pina Martins aproximava Miranda de Michelangelo, seu contemporâneo, ambos leitores-criativos da Vida Nova e dos sonetos de Dante, de Cino da Pistoia, de Cavalcanti, etc. A canonização novecentista do trovador e do sonetista no Brasil, em Portugal, e em África se mostra pela presença de temas e imagens de Sá de Miranda na poesia contemporânea de língua portuguesa, em muitos outros poemas e poetas além do que foi mostrado em meu ensaio de 2001. Tal prova a hipótese ali levantada, a partir do juízo de Augusto de Campos: “Sá de Miranda, primo pobre de Camões, melhor que Camões”, que não repete o veredicto histórico literário a respeito desses dois poetas. A dificuldade de leitura apresentada pela poesia mirandina recebe uma carga positiva,

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Marcia Arruda Franco

na medida em que convida à busca do seu sentido, pela reordenação sintático-semântica das sentenças, oferecendo-se ao leitor como um exercício de análise e interpretação; a descapitalização poética do primo pobre de Camões é reavaliada: Augusto de Campos, leitor de Rodrigues Lapa, considera Miranda melhor que Camões, por sua sintaxe sem nexos lógicos evidentes ser uma engenhosa operação de síntese conceitual, quer dizer, por ser contra a tradição de tagarelas da poesia portuguesa, julga que perto da esparsa aos tempos de Sá de Miranda, “Não vejo o rosto a ninguém”, que se dirige aos seus contemporâneos e tem por tema a hipocrisia entre os homens, “até Camões é palavroso”. Quando o parâmetro de qualificação do poético é a concisão formal e a densidade conceitual, Sá de Miranda levaria vantagem sobre Camões. Índice do resgate do trovador-poeta Sá de Miranda para o cotidiano de milhares de pessoas do nosso tempo é o enorme mural de “Comigo me desavim” nas paredes da estação do metrô Vila Madalena, de São Paulo, na versão fixada por Carolina Michaëlis de Vasconcelos. O épico, por sua vez, com a sua caolhice, é um ícone enraizado no imaginário do mundo que o português criou e está presente no nosso dia a dia, das formas mais triviais, como no popular “Bife a Camões”. Referências A fenix renascida ou obras dos melhores engenhos portuguezes, ed. lit. Mathias Pereyra da Silva. Lisboa: Off. Antonio Pedrozo Galrão : Off. Miguel Rodrigues, 1746. – 5 vol.; 20 cm. http://purl.pt/261 (acesso continuado de março a maio de 2012) Campos, Augusto (1986). john donne: o dom e a danação. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras. Cervantes, Miguel de (1614). Viaje del Parnaso. Madrid: Afonso Martín. Cópia digital: http://cervantes. uah.es/Parnaso/parnaso.htm (acesso continuado de março a maio de 2012). Franco, Marcia Arruda (2001). Sá de Miranda, um poeta no século XX. Braga: Angelus Novus. Franco, Marcia Arruda (2005). Sá de Miranda, poeta do século de ouro. Coimbra: Angelus Novus. Franco, Marcia Arruda (Ed.) (2011). Poesias de Francisco de Sá de Miranda. Coimbra: CLP/Angelus Novus. Garcia, Alexandre M. (1984). Poesia de Sá de Miranda, organização, notas e sugestões para análise literária. Lisboa: Editorial Comunicação. Melo, Francisco Manuel de (1999). Apólogos Dialogais. O Escritório Avarento, O Hospital das Letras, edição de Pedro Serra, vol. II. Braga: Angelus Novus. Mourão-Ferreira, David (1966). Hospital das Letras. Lisboa: Guimarães. Pina Martins, J. V. de (1988). Sá de Miranda e a receção no século XVI de um Dolce stil nuovo renovado. Separata de O Humanismo Portuguêss (1500-1600). Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa. Pina Martins, J. V. de (2003). Sá de Miranda e o Velho do Restelo. Revista Camoniana, 3.ª série, 14: 123-146 (São Paulo: Bauru). Vega, Lope de (1630). Laurel de Apolo. Madrid: Ivan Gonçalez. Cópia digital: http://books.google.com. br/books?id=IWQCAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r& cad=0#v=onepage&q&f=false (acesso continuado de março a maio de 2012).

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