Sabedoria Umbundu

August 7, 2017 | Autor: P. Partituras | Categoria: Religious Studies
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JOSÉ KAINDANGONGO

SABEDORIA UMBUNDU DESAFIO PARA UMA EVANGELIZAÇÃO INCULTURADA

FACULDADES CLARETIANAS CURSO SUPERIOR DE CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO PAULO - 2011

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RESUMO

Nenhuma cultura é melhor que a outra. Todas constroem seu processo histórico tendo em conta sua geografia, cronologia e suas experiências culturais. Na diversidade cultural o respeito, o diálogo, a escuta e a simplicidade de vidas são de capital importância. As diferenças devem ser superadas em benefício da sabedoria milenar que o povo vivencia na sua quotidianeidade, passando de geração em geração. O nosso trabalho começa a partir da riqueza cultural dos Umbundu. Qual a contribuição de sua sabedoria para a presença missionária em Angola? O objetivo deste trabalho é compreender a importância de uma evangelização contextualizada para uma vivência dos valores do Evangelho. Ao longo do trabalho vamos identificar, mostrar e reconhecer a riqueza da sabedoria Umbundu. O trabalho foi desenvolvido a partir de vivências, leituras e elaboração de textos embasados no autor: LUKAMBA, André, que se aprofundou em inculturação do povo Umbundu de Angola. Assim, teremos três momentos distintos: vida da cultura umbundu, sua experiência religiosa e a função da Palavra nas relações inter-pessoais dentro da comunidade. Se a Palavra de Deus passa pelo quotidiano das pessoas e culturas, a sabedoria umbundu é a própria Palavra de Deus, instrumento que cria vida e boas relações entre Deus e o ser humano. O trabalho mostrou-nos a importância de conhecer o modo de vida do povo umbundu de Angola para uma evangelização mais inculturada.

Palavras-chave: evangelização-antropologia-teologia-cultura-religião.

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JOSÉ KAINDANGONGO

SABEDORIA UMBUNDU DESAFIO PARA UMA EVANGELIZAÇÃO INCULTURADA

Trabalho de conclusão de curso apresentado como exigência parcial para obtenção do grau de Bacharel em Ciências da Religião, na FIC - Faculdades Integradas Claretianas sob orientação do Prof. Dr Antonio Boeing.

SÃO PAULO - 2011

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P’epangu ly’omwenho kapakusitikila ukwene. (No buraco vital, não é o outro que se encarrega de tapar).

Agradecimentos Agradeço primeiramente aos meus pais, meus irmãos, a minha esposa Tereza, aos meus filhos Túcia e Pedro. Ao professor Dr Antonio Boeing que me ajudou no amadurecimento do projeto, na pesquisa e na produção em ciências de religião; o Serei muito grato!

SÃO PAULO-2011

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SUMÁRIO Introdução..........................................................................................................6 Capítulo I. A Dinâmica da vida na cultura umbundu....................................................9 1. A cultura umbundu no contexto angolano.......................................................10 2. Breve história dos Umbundu............................................................................13 3. A primazia da comunidade.............................................................................15 4. Omunu (ser humano): centro da comunidade.................................................16 5. Akulu: os antepassados..................................................................................19 Capítulo II. A experiência religiosa dos umbundu......................................................22 1. Suku (Deus) na experiência religiosa dos umbundu.......................................23 2. Culto: celebração do binômio vida-morte........................................................26 3. Ética comunitária: fundamento da existência social........................................28 4. O choque cultural: colonização e evangelização.............................................30 4.1.

A primeira presença missionária no Congo...............................................31

4.2.

A presença missionária entre os umbundu................................................33

5. Desafios para uma evangelização inculturada................................................37 5.1.

Valores culturais: riqueza da Igreja............................................................37

5.2.

Caminhos para a evangelização inculturada: desafios pastorais..............38

Capítulo III. Palavra humana vínculo da palavra de Deus.........................................40 1. Ondaka: expressão mais perfeita da pessoa...................................................41 2. Provérbio: vínculo da evangelização na perspectiva de diálogo.....................43 3. Provérbio na história de Israel: palavra de Deus no meio do povo.................44 4. A sabedoria umbundu: Palavra humana e Palavra de Deus...........................45 5. Desafios da evangelização e cultura oral........................................................47

Conclusão........................................................................................................49 Anexo...............................................................................................................52 Bibliografia.......................................................................................................53

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INTRODUÇÃO

Este trabalho resultou da pesquisa e reflexão sobre a riqueza da sabedoria do povo umbundu de Angola, para uma evangelização na perspetiva da inculturação. A fé vivida a partir da própria cultura é mais consistente e verdadeira. Os estudos feitos na FIC (Faculdades Integradas Claretianas), ajudaram-me a valorizar ainda mais a minha cultura umbundu. É uma reflexão antropológica e teológica onde procuro analisar, tendo em conta nossas dificuldades, a partir da sabedoria dos umbundu, expressa nos provérbios, a fim de proporcionar caminhos e métodos para uma evangelização inculturada. João Paulo II dizia. “aqueles que vos trouxeram aqui a fé (...) apresentaram-na forçosamente na linguagem que era a deles. E cabe a vós, leigos e padres africanos, fazer agora que este grão produza um fruto original, autenticamente africano. É todo o desafio da segunda evangelização que está em vossas mãos”. (Document Catholic, 1985, 915).1 A primeira evangelização fracassou porque não considerou a cultura, a linguagem, a sabedoria, a história dos povos autoctones. O povo umbundu no decorrer dos séculos foi construindo sua cultura, sua sabedoria que encontramos nos provérbios, na arte, na música, na dança e em toda forma de comportamento. Nós, porém, vamos nos deter na sabedoria presente nos provérbios e nas músicas, enquanto expressões culturais que mostram a identidade do povo, ponto de partida para a evangelização. A evangelização inculturada é um processo ativo de aprendizado da mensagem evangélica, a partir de dentro da própria cultura que a recebe. A religião cristã na primeira evangelização foi usada para destruir os valores dos povos de Angola, facilitando a dominação colonial. Os grupos religiosos afro-cristãos quimbanguismo, tocoístas, bapóstolos surgiram da libertação ideológica colonial. Não se deve aproveitar dos povos fracos para implantarmos nossas doutrinas, muitas vezes acompanhadas pelas conquistas de terras, como aconteceu em Angola. (JORGE, 1961, p.40-41). 1

Este discurso foi proferido noo encontro com o mundo da cultura em Youndé, Camarões, no dia 6

de outubro em 1985, nº 1903, 915.

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Evangelizar não é conquistar, explorar ou dominar. É escutar, olhar, respeitar e dialogar. O que caracteriza a evangelização inculturada é que ela se faz a partir de dentro mesmo da cultura que se deseja evangelizar. O importante para a evangelização é ver como o povo vive e não criticá-lo logo a primeira impressão. (FITUNI, 1985, p. 50-51). O provérbio Umbundu expressa muito bem à diversidade de povos e de culturas: “kalwi l’ombundju, ofeka l’ofeka l’atchavo” ( cada rio tem seu lodo e cada país com seus costumes). O povo também nos evangeliza. Na Redemptoris Missio o papa reitera: “Enfim a inculturação deve envolver todo o povo de Deus, e não apenas alguns peritos, dado que o povo reflete aquele sentido da fé que é necessário nunca perder de vista” (R.M.54). O Sínodo africano não podia dizer diferentemente: “os padres sinodais confiam às igrejas da África esta tarefa de grande calibre e longa duração (...) Às igrejas locais seja dada confiança e liberdade para realizar esta grande tarefa”. (MENIN, 1994, p.109-118). É interessante ver que o Sínodo em seguida especifica o sujeito privilegiado: “as pequenas comunidades cristãs”. O lugar é indispensável para a evangelização. Assim, trabalhar com o povo Umbundu é necessário ter presente à sua linguagem - os seus provérbios e as diversas formas de viver, de pensar, atuar do seu cotidiano. Inculturar de forma consciente e libertadora. Os provérbios podem nos ajudar para este trabalho árduo de evangelização numa perspectiva de diálogo. Assim, no capítulo I veremos a dinâmica da vida na cultura umbundu de Angola onde falaremos a cerca da vida do povo umbundu marcada por lutas e conquistas em busca de melhores condições de vida em comunhão com os vivos e mortos, formando uma única e mesma comunidade de intercâmbio e partilha. A pessoa (omunu) como centro da própria comunidade. No capítulo II falaremos da experiência religiosa dos Umbundu. Diremos que os umbundu têm uma concepção de um Deus (Suku) real e concreto dentro da pessoa, família e comunidade. Assim chegaram aos seus atributos: criador, protetor, próximo, único, que doa chuva e filhos. Isso os leva à festa, celebração e ritos de purificação. Esta maneira de viver não foi respeitado pelos colonos-evangelizadores. Em nome de Deus massacraram e escravizaram o nosso povo. Hoje, porém, a história é de guerra entre irmãos. O capítulo III fechará o trabalho falando sobre a palavra humana como vínculo da palavra de Deus. Veremos ainda a riqueza e a força da palavra e dos provérbios,

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como mediações da palavra de Deus na construção da vida na comunidade umbundu, revelando a sabedoria genuína do povo, ponto de partida para a evangelização.

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CAPITULO I

A DINÂMICA DA VIDA NA CULTURA UMBUNDU DE ANGOLA

A cultura Umbundu é uma autêntica família onde tudo se baseia na reciprocidade de relações vivas com toda a realidade existente. Assim, desde os seus primórdios vê a vida como relação. A vida é compreendida e vivida na intensidade de estar-juntos num todo e em comunhão. Por este fato é uma constante celebração, festa com bois abatidos, comida, bebida, tambores, danças e cantos. É o momento de partilha, manifestando a nossa gratidão pelos bens recebidos, pelos vivos, pelos mortos, pela unidade da família, da aldeia ou aldeias e reforçar as relações. Por isso, uma autêntica festa africana não se tem cartão de convite e de entrada. Todos são bem-vindos. O que está em questão é a comunhão relacional, isto é, comunhão com a criação inteira e com toda a humanidade. Neste capítulo refletiremos sob ponto de vista antropológico a cultura umbundu e a dinâmica de sua vida. Assim, veremos os seguintes pontos: cultura umbundu no seu contexto angolano; breve história dos umbundu; a primazia da comunidade; os antepassados e a pessoa humana: centro da comunidade. São questões imprescindíveis para entendermos o modo de pensar, agir e viver da cultura umbundu.

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1. A CULTURA UMBUNDU NO CONTEXTO ANGOLANO

A cultura umbundu2 situa-se no planalto central de Angola, concretamente nas províncias do Huambo, Bié, Benguela e partes da Huíla. Porém, com o tempo foram se espalhando por toda Angola: ao norte, uma área que vai do Sumbe ao sul do rio Kwanza à noroeste do Bié. (ESTERMANN, 1968, p.26). Ao sul uma área que vai de Lucira, no Namibe, ao alto Kwanza, no sul do Bié. No leste e nordeste de Angola também se fazem presentes. (Ver Anexos, p.52). Ainda se encontram nos países estrangeiros sobretudo ao norte da Zâmbia e Namíbia. Toda essa migração foi causada pela guerra, perseguições, e a busca de melhores condições de vida (a construção do caminho de ferro de Benguela, trabalho nas fazendas de café do norte e para outras cidades), onde eram e são conhecidos de bons trabalhadores. No planalto central de Angola está a maior densidade populacional do povo umbundu, marcada pela conquista e luta por melhores condições de vida (liberdade, dignidade, respeito, paz, harmonia), como expressa este canto popular: Humbi, humbi yange yelela twende (Meu passarinho humbi voe, vamos) kakele katchimbamba osala p`osi...(coitadinho do katchimbamba que fica pelo chão). Vakwene vayelela, twende (os outros voam, vamos) Kakele katchimbamba osala p`osi (coitadinho do katchimbamba que só fica pelo chão). O fato de estar em Umbundu é muito significativo. O humbi é um passarinho que vive em bando. Nos seus vôos contempla a natureza. Andam sempre juntos. Tudo entre eles se faz em harmonia. Ele não só conhece o chão como também o céu. Ao passo que o katchimbamba anda sozinho, vive solitário.

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U-mbundu etimológicamente vem de muntu que significa pessoa, gente. O prefixo “ U ” está ligado à qualidade interior das pessoas, ofícios ou coisas, expressando tudo o que de um ou de outro modo tem vida, pode relacionar-se ou ser relacionado. Pode ser utilizado tanto no singular como no plural para designar um grupo ou um povo, como por exemplo: o povo Umbundu; Tu és Umbundu. Também pode ser os Ovi-mbundu. O prefixo “ Ovi ” é plural. Na língua Umbundu: Omunu é pessoa, no singular; e Omanu é o plural ( pessoas ). De muntu até chegar em Umbundu ( Ovimbundu ) são transformações que foram acontecendo com a evolução, crescimento, emigração e divisão dos povos e linguas Bantu. A palavra Bantu foi designada pelo linguísta alemão Wilhem Beek em 1856,

11 “A solidão significa não relacionar-se, não participar na vida total dos vivos e dos mortos.” (LUKAMBA, 1987, p.51). É um passarinho que se prende ao chão. É “coitadinho” porque se limita a uma vida marcada pelos limites. Ele voa, porém prefere no chão. Nesta música temos alguns elementos importantes que caracterizam profundamente o povo Umbundu: aventura de conhecer outras paisagens de liberdade e uma terra sem males, de paz e justiça. Para quem acompanhou a história do povo umbundu conhece a luta, a resistência que travou e continua travando. O humbi vive para o céu aberto, ser livre e voar às alturas e ser feliz. Lembro-me aqui das lutas e resistências que os reinos do Bailundu, Tchiaka, Caconda, Ngalange, Viye, Huambo, Tchingolo, Hañha, Sambo desencadearam contra os portugueses, o sistema marxista-leninista e todas as formas de dominações e opressões. (MINISTERIO DA EDUCAÇÃO, 1991, p. 313-315). Na verdade, a música pretende mostrar o desejo de um povo: liberdade, paz, harmonia, a busca de vida e de todos os princípios que compõem a identidade de um povo, por mais que isso lhe custe o martírio. O povo umbundu, na verdade, tem avançado muito no que diz respeito ao trabalho, à religião seja ela cristã, não católica, evangélica e tradicional. Depois da independência (1975) não se fez um senso de toda a população da cultura umbundu. Fazendo um cálculo aproximado chega-se ao total de 5.570.000.

Terra: fonte de sustento

Os Ovimbundu dedicam-se muito á agricultura, cultivando o massango, a massambala, abóbora, feijão. E a partir do século XVII começaram a propagar-se as espécies de origem americana como o milho, a mandioca e a batata-doce, mamão, ginguba (amendoim). É um povo que depende muito das chuvas para a sua sobrevivência. Na época da chuva semeia-se cereais em campos elevados. Na época da seca cultiva-se junto dos rios (onaka), geralmente a partir de agosto. Cria-se gado e pequenos animais domésticos para diversos fins. Pratica-se ainda a caça nas savanas. No litoral exploram-se as salinas, a pesca. Porém, hoje em dia por causa estudioso das línguas africanas, cujo radical é ntu ( muntu), significando pessoa, gente ( qualifica as pessoas humanas ) e Bantu significa pessoas, pelo prefixo plural Ba.

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da guerra a caça, a agricultura, pescas ficaram muito reduzidas. A candonga (processo de compra e venda de produtos no mercado paralelo) é a única forma de obter dinheiro e produtos para a sobrevivência do povo. O emprego existe, porém os salários são vergonhosos. Antes da chegada dos portugueses (1482) os umbundu desenvolveram a siderurgia e o artesanato: fabricavam instrumentos de ferro para a agricultura e caça, machados, lâminas de enxada, pontas de lança facas, cerâmica, canoas, instrumentos musicais e adornos. (A.C.e SILVA, 1992, p.493). É um povo dotado de técnica e capacidade de invenção. Se não fossem impedidos pelos invasores (colonizadores / evangelizadores) Angola não estaria do jeito que está: pobre e em situação de dependência. As terras e os bens não são do indivíduo, mas propriedades das famílias, da comunidade, conforme as necessidades. As terras depois de muito tempo cultivadas têm anos de repouso. São abandonadas ficando um elunda. Depois de muito tempo se tornam férteis e cultiváveis. Hoje em dia, este modo de viver está passando por momentos difíceis, devido à influência do ocidente e do contato com outros povos. O interior do país ainda se conservam estas práticas. Os trabalhos, os bens materiais são distribuídos conforme os sexos. Assim pertence á mulher indicar quais dos seus produtos podem ser gastos na manutenção da família, quais devem ser armazenados, e quais os produtos excedentes que podem ser utilizados pelo homem para o comércio. (MINISTERIO DA EDUCAÇÃO, p. 306). A mulher ocupa um lugar de destaque. O irmão mais velho da mãe é que é o sucessor e se reveste de uma autoridade. Os filhos passam para o clã da mãe e não do pai. O homem passa a fazer parte dos parentes da mulher. Por isso é que ela goza de muito respeito. Temos aqui a força importantíssima da mulher 3 dentro da comunidade tribal. “A mulher é a soberana da vida, o centro da vida cultural comunitária; ela é quem dá e salva a vida, e graças a ela, a vida total continua sobre a face da terra: a vida

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A presença da mulher Umbundu representa a vida dentro da comunidade trazendo fartura, harmonia, felicidade aos filhos e a toda aldeia. Por isso, nas religiões de origem africana têm lugar de destaque. A Pomba Gira, por exemplo, deriva do verbo Okupomba (vencer, conquistar), Ondjila ( o caminho). É a presença da força feminina na quotidianeidade, inspirando-nos para a beleza, harmonia cósmica em prol do bem estar da comunidade.

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biológica, religiosa, social, econômica e política. Daí que ela é antes de mais Mãe, que dá a vida, nutre-a, protege-a e salva-a”. (LUKAMBA, 1992, p.52). Osongo, uma aldeia composta por membros da mesma tribo, com um chefe mais velho responsável pela vida da aldeia e têm o ancestral comum. A escolha do chefe é feita por eleição dos vários chefes de família, mesmo quando destituído. Ele desempenha a função de juiz, reparte as terras, vela pelo trabalho e pelas tradições. Tem autoridade civil e religiosa. Os chefes geralmente são polígamos. Este sistema de governo está em choque com os moldes ocidentais que estão sendo implantados. Porém, é muito contemplado no interior do país, nas pequenas comunidades. É nelas onde sairão os modelos para uma boa organização social de Angola e de África.

2. BREVE HISTÓRIA DOS UMBUNDU

"Viemos de longe e caminhamos para os antepassados"

Para situarmos este assunto, é importante dizer que a maioria das etnias em Angola, que hoje em dia formam a nação angolana, não é originária deste território. Os pesquisadores e etnólogos são unânimes em afirmar que fazem parte do grupo etno-linguístico Bantu que teria emigrado a partir dos Camarões bem antes do século XIII, por diversos motivos: disputas políticas; busca de terras desocupadas; busca de pastagens para o gado e a busca de “terras sem males.” Porém, antes da chegada dos Bantu, Angola era habitada pelos bochimanes, do grupo koisan, nativos da Angola. (GABRIEL, 1978, p.23-25). Como dissemos acima, os Ovimbundu formam o grupo etnolinguístico mais numeroso de Angola. Seu passado é marcado pelo desenvolvimento técnico, econômico e cultural, que se reprimiu com a chegada dos portugueses. O primeiro reino teria sido o do Huambo, fundado por Uambu-Calunga, no início do século XVII. Com o desenrolar do tempo, foram surgindo os reinos de Tchiaka, Ngalange, Tchingolo, Ndulu, Bailundu, Viye. Para além da agricultura, artesanato, pesca, caça,

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extraíam o ferro trocavam-no por outros produtos. É um povo que fazia muito comércio ao ponto de serem chamados “os maiores comerciantes da África Negra”. Quando os portugueses estenderam seu domínio no século XVII, os estados do Planalto estabeleceram contatos com o litoral por meio dos vimbali ou pumbeiro pessoas que serviam de intermediários; no comércio, estes eram os que viviam com e como brancos, que percorriam as várias regiões do interior, vindos de Benguela principalmente. Na política são fortes e bem organizados. O soba (o rei) tem autoridade máxima juntamente com o seu conselho. Os chefes de algumas aldeias (ombala)4, são

nomeados

pelo

rei,

mas

noutras,

as

famílias

transmitem

o

poder

hereditariamente. O rei e o seu conselho detêm o poder central para questões administrativas e judiciais. Este conselho tem poder político e religioso. Alguns têm funções rituais enquanto outros são caçadores, artesãos, agricultores, guerreiros, como já vimos. O rei, o soba, o chefe exerce a função sacerdotal por meio de cerimônias no kakokoto (santuário) para garantir a segurança, o bem estar do seu povo. Aqui entram todas as categorias da escala social: os advinhos / Atãñhi. Isto possibilitou a vitória diante dos invasores portugueses que os teriam atacado no início da segunda metade do século XVII. Os invasores portugueses conseguiram penetrar no planalto central só no século XIX, aproveitando-se da crise econômica e política, quando entre os reinos começaram a concorrência e a rivalidade. Foi neste momento que os portugueses começaram a atiçar as discórdias, jogaram os reinos em guerra, uns contra os outros, o que enfraqueceu o seu poder defensivo. Em 1920 foi a ocupação definitiva quando, alguém corrompido pelos portugueses, teria indicado o acesso á fortaleza subterrânea de Kandundu, último foco de resistência dos ovimbundu. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 307). Portanto, o planalto central foi uma das últimas regiões de Angola a serem ocupadas pelos portugueses. Isto nos dá clareza que foi um grupo que não tinha muita influência exterior. Podemos dizer que se manteve intata. Por isso uma das minhas preocupações é a riqueza deste povo para um trabalho de evangelização. (Gabriel, p.249-250). 4

A moradia do chefe chama-se Elombe. De onde provem o verbo Okulomba. A palavra Kandomblé tem como etimologia o verbo da língua Umbundu: kandombeleko, significando intercessão. Você Vai e intercede por mim dançando. Para convencê-lo e adquirir o que desejo. É do verbo Okulomba, pedir, interceder. Refere-se somente ao chefe, superior, à divindade. Temos ainda Elombelelo, lugar de oração.

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3. A PRIMAZIA DA COMUNIDADE

“A Solidão tira-te o espinho, não sopra o olho”

Este provérbio expressa a insuficiência, a pobreza da solidão e a riqueza da vida em comunidade. Um modo de vida marcado pelas relações entre todos e com toda a realidade. A comunidade é de extremo valor. Ela é espaço onde a pessoa se realiza e se plenifica como homem-mulher. Na cultura Umbundu é na comunidade onde se partilha as alegrias e tristezas. Ela é a certeza da vida melhor: reciprocidade, solidariedade, comunhão. A solidão é isolamento, ser estéril, não relacionar-se. Isto significa não participar plenamente na vida dos vivos e dos mortos, dos animais e de toda a criação. É falsa a afirmação que um missionário europeu havia falado, segundo a qual o africano (o umbundu) não respeita a natureza em que vive, tirando todo o aspeto da sacralidade do mundo. “Há uma relação muito profunda entre a pessoa humana e a natureza.” (LUKAMBA, 1995, p.51) Um provérbio exprime exatamente o que estamos falando: (Nda okasi vusenge kukalipundole omo oviti omanu- Se estiveres na selva não exponha o teu corpo ao nudismo porque as árvores são pessoas). É um provérbio que aparentemente compara as árvores á pessoa humana. Quer mostrar a relação contínua que a natureza tem conosco, em diálogo vivo por meio de sinais e símbolos. Por isso, nenhum fato quando interpretado se isola da vida da pessoa e da comunidade. Daí o respeito que ela merece pela força que ela possui na vida da comunidade. Os bens são de todos, devem servir a todos. Nada de monopólio. Isto não é aceito pelas sociedades modernas marcadas pelo lucro, exploração e pelo capitalismo. Aqui sofremos muito porque somos considerados como povos primitivos, sem avanço tecnológico. (KIZERBO, 1980, p.139). A riqueza de outros povos nos enriquece sem perder os nossos valores e nossa identidade. Toda pessoa que despreze a comunidade em toda a sua universalidade não é vista com bons olhos. Deste modo o não casar, por exemplo, é interrogado. O

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casamento é aqui uma questão prática. Como conciliar algo cultural e uma imposição que partiu de um determinado tempo histórico? Somos chamados a uma comunidade viva. Assim, a família umbundu é muito ampla tornando-se difícil delimitá-la, o que não acontece com outras sociedades. As alianças marcam os laços familiares. A vida tem sentido com “o outro”. A solidão não tem razão de ser; é não comunicar-se. Nas cerimônias de contração do matrimônio temos não só o homem-mulher, mas todas as famílias. É o momento em que a comunidade traz presente todos os valores da tribo e são perpetuados. O comunitário é garantia da riqueza cultural, social e moral. Assim, os ritos de iniciação preparam os (as) jovens á uma vivência comunitária, ao respeito aos mais velhos que animam a comunidade, na sua experiência e sabedoria, mostrando a sua relação com os antepassados. O P. André Lukamba cita de forma consistente: “A comunidade é o campo fértil onde a pessoa como homem-mulher, como comunhão, como sociedade e história. Viver é um contínuo unir-se, um relacionar-se sem cessar e sem limites.”. LUKAMBA, p.53). Em síntese, a comunidade umbundu é uma autêntica família (Epata) onde tudo se baseia na reciprocidade, na comunhão, na vontade e empenho responsável de estabelecer laços vivos com toda a realidade existente. (LUKAMBA, p.27).

4. OMUNU (SER HUMANO): CENTRO DA VIDA COMUNITÁRIA “O ser humano é como criança; tem que ser bem cuidado”

“Ovava tutapa p´ondjombo, olondunge tupa k´omanu” (A água tiramo-la no poço,a educação tiramos das pessoas). A pessoa (omunu singular de) é de tamanha importância. Basta olhar para os ritos, sacrifícios e diversas cerimônias que giram em torno da pessoa nos momentos de sua vida: desde o nascimento, matrimônio até a morte. (KAHINGA, 1995. p.50). Tomando o provérbio, ser pessoa é ter qualidades que a torne capaz de entrar em relacionamento válido com o outro, em comunidade de sorte a fazer gerar e crescer a harmonia, com a natureza, com o mundo invisível, mas real e concreto dos antepassados, e com Deus. Por isso, não é válida a definição racionalista: “O homem é um ser racional”. A pessoa humana é a totalidade do seu cosmos.

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Na cultura umbundu torna-se difícil definir o omunu (a pessoa humana). “Temos três termos que não são nem de identificar simplesmente, nem de opor uns aos outros. Mais que elementos da pessoa humana, eles são antes de tudo “variantes” para exprimir um único princípio vital na sua animalidade e humanidade”: etimba (corpo), omweñho (vida) e otchilelembya5 (espírito, alma). LUKAMBA, 1982, P.46). O corpo nos une aos outros homens (a tribo, ao clã, a um povo), pois ele é um meio de comunicação e meio de convivência. Todo corpo humano procede de outros corpos: o homem é filho de outro ser humano, ou seja todos os membros do clã são filhos do mesmo antepassado. (COMBLIN, 1986, p.82). O omunu foi criado por SUKU (Deus). Nisso tem uma relação dinâmica com outros seres viventes sejam eles visíveis ou invisíveis. A pessoa humana é um ser de duas dimensões: homem-mulher. É na complementariedade dessas dimensões que constituem a pessoa humana. O indivíduo não é uma pessoa, mas está em vias de personalização. O homem sem a mulher nada é, como a mulher sem o homem também não é nada. Génesis (1, 27; 5,2; 2, 23-24) mostra que a “humanidade se realiza sempre sob a forma de homem e mulher, sob a diferença de masculino e feminino”. ( L.BOFF, 1979, p.41). Unindo os dois teremos uma pessoa no sentido africano da palavra. Lembro-me aqui de irmãs religiosas angolanas que foram expulsas de suas congregações porque tinham amizades com padres, seminaristas e jovens das pequenas comunidades cristãs. A formação angolana, a meu ver, tem que considerar a pessoa na sua dupla dimensão, homem-mulher e tripla dimensão de pai-mãe-filho. Vou mais longe dizendo o seguinte: que a pessoa humana não é só homem-mulher, pai-mãefilho, é também cósmica, unido ao mundo dos espíritos. Ele partilha o destino comum com o mundo, e se salva nele ou se perde no mesmo. (AA. VV, 1970, p.39). No povo de Israel o homem é uma unidade na sua totalidade. O corpo é espírito, alma vivente, pensamento. A separação começou quando os cristãos entraram em contato com o pensamento greco-romano e as religiões orientais que fermentavam o mundo grego. A teologia clássica, de inspiração tomista, não conseguiu valorizar o corpo, nem uni-lo realmente a alma. Assim, esse dualismo

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Ndembi é uma terminologia adequada. Ndembi okola: oñdembe significa seiva que alimenta a planta, o sangue da planta.

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permitiu que os teólogos pudessem justificar com tanta facilidade a tortura praticada pela inquisição, ou a escravatura praticada universalmente, ou a redução dos índios a uma condição de servos como fizeram ainda no século XVI, com a contribuição dos teólogos. Pois, para esses o corpo vem do mal e levanos para a prática do mal. Só a alma é que é boa. Desta maneira, a salvação é entendida como um emancipar-se do corpo para viver da alma. (COMBLIN,1986, p.80-82). Entre os ovimbundu, omunu é o projeto dinâmico que se relaciona e se realiza com o tempo. Nesta perspetiva, o nome é de capital importância, pois revela a pessoa, considerando a história da família, da gravidez, do pai, da mãe saberei se nasceu sozinha ou gêmeos, se nasceu depois dos gêmeos, se foi o último a nascer. O nome é a identidade mesma da pessoa na sua individualidade. Muitas vezes o nome revela todos os acontecimentos desde a gestação até ao nascimento: guerras, doenças, mortes. O nome muitas vezes indicará a história da pessoa. A função pode muitas vezes dar-lhe outro nome. (ALTUNA, 1985, p. 267). Muitos nomes são dados por continuidade, para não deixar morrer o antepassado. O não ter filhos é a morte definitiva. O nome continua nos vivos e nos antepassados. Por isso, todas as formas de manipulação genética que as ciências fazem são condenadas, dentro da cultura umbundu.

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5. AKULU: OS ANTEPASSADOS “Dê lembranças aos antepassados quando chegares” Os antepassados (akulu)6 pertencem ao mundo invisível, porém têm grande influência sobre o mundo visível. Eles distinguem-se em primeiros antepassados fundadores do gênero humano, fundadores dos clãs e espíritos, gênios, heróis e caçadores. Os primeiros antepassados possuem força extraordinária que receberam de Deus e transmitiram-na para os vivos. Eles são o elo de ligação entre homens e Deus (o grande antepassado); são os protetores dos vivos; não monopolizam a vida; intervêm

no

mundo

de

maneira

direta

e

quotidianamente;

presidem

os

acontecimentos importantes das famílias, dos clãs e das tribos. Por isso, é que o culto aos antepassados é o ponto de convergência da vida social e religiosa. Com base nisso, certos teólogos africanos não duvidam em apresentar o papel de Cristo na economia da salvação como o de um “proto-ancestral”. (AA. VV, 1970, p.40). Quando os vivos desrespeitam as leis de solidariedade, os antepassados ficam irados e podem castigar. Este castigo é eqüitativo e justo, porque é merecido. É preciso reparar e restabelecer as relações. É aqui onde aparece o sacrifício como ato de reconhecimento a nossa dependência de outrem. Reconhecer o outro é admitir e aceitar a diferença como fonte de comunicação, de inter-ligação e de sobrevivência. O sacrifício está presente em todas as religiões e culturas, como fundamental na existência do indivíduo e da comunidade. (KAHINGA, 1990, p.21). O sacrifício7 as relações entre os homens e a divindade. A cultura umbundu tem apenas um mundo. Tanto os vivos como os mortos formam uma única e mesma comunidade de intercâmbio e de partilha. Daí o respeito pelos mortos, seus túmulos, seus familiares. É costume entre os umbundu no enterro de uma pessoa, ter um rito de despedida com o provérbio: Oko wenda ndoto, akulu valamisapo kwenda kovapya yoliko (Aonde estás indo, cumprimente os antepassados e aumentem os campos de plantação). Este provérbio é de uma riqueza significativa. A vida não acaba com a morte. Na verdade, a tradução seria: quando encontrares os nossos antepassados, dê nossas lembranças e amplie

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Akulu é o plural de Ukulu também significa mais velho. É um título de respeito usado a todas as pessoas de idade avançada. Por isso, ukulu wendamba (o mais velho). 7 Sacrifíco entende-se como ação sagrada. Sacrum-facere. Fazer coisa sacra.

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nossos campos para trabalhar. Para os umbundu a vida não acaba com a morte; ela continua. Assim, o homem perfeito é aquele de quem se fala ainda depois da sua morte, de quem se recorda a sua comunidade, que faz viver a sua memória e em quem se justifica legitimamente as atividades dos vivos. Eis algumas condições para pertencer ao mundo dos antepassados: 1. Ter vivido bem (uma vida virtuosa e íntegra); ter praticado as normas que conduziram a comunidade á sua realização. Por isso, é que são muito venerados. Eu diria mesmo que é neles onde buscamos a Deus, pela sacralidade de que são revestidos. Podem ser jovens notáveis e honrados. 2. Ter deixado descendência: perpetuar a vida é não morrer. Isto é verdadeiro para o povo umbundu. Morrer sem descendência é uma das maiores desgraças. Por isso, quem morre sem deixar descendência é costume colocar uma brasa apagada na mão dele, para significar o seu desaparecimento total. Não pode haver dicotomia entre a religião e a vida concreta. Boa morte: A pessoa que morre com idade avançada. Os antepassados estão perto de nós. Participam da vida das famílias, da comunidade. Daí as homenagens para que nada de mal (doenças, fome, calamidades, esterilidade, seca, guerras,) cause danos aos vivos (homens, mulheres, crianças, animais e haveres).

É

bom

destacarmos que os primeiros antepassados pertencem a uma hierarquia superior. Podemos confiar em tudo o que eles nos comunicam, como sendo realidade suprema e nunca enganadores. (SETILOANE, 1992, p.36.). Neste primeiro capítulo vimos a riqueza cultural dos ovimbundu: a pessoa humana, Deus, a vida e como ela se manifesta mesmo com seus limites e problemas. É uma visão com tamanha profundidade. Portanto, é falsa a idéia segundo a qual os africanos são diabólicos, vivem de feitiçaria. Não se pode negar que a cultura umbundu tenha uma sabedoria própria e genuína, presente na tradição oral, nos provérbios e canções populares. Para ser cristão não é preciso abandonar a vida tradicional, as suas solidariedades clânicas, tribais, familiares, ritos e símbolos. Infelizmente existem agentes de pastoral que ainda pensam que um verdadeiro cristão é aquele que deve renunciar as suas tradições. Foi o cristianismo ocidental que provocou e obrigou este modo de pensar, que todos acreditassem na salvação da alma e não se preocupassem com o corpo. O africano valoriza a pessoa humana. Ela é omunu. Isto constitui um desafio muito

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grande para uma evangelização inculturada. Não podemos separar o corpo da alma na pessoa humana. Corpo e alma são a única realidade.

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CAPÍTULO II

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DOS UMBUNDU

A religião, desde os seus primórdios, é uma das características do ser humano. Por isso é que é, muitas vezes, definido como homo religiosus. Nunca existiu um povo sem religiosidade ou traços religiosos. (AWETO, 1986, p.357). Para os umbundu a religião está relacionada à união do ser humano a Deus na experiência cotidiana. Esta união estende-se também aos antepassados que estão em contato permanente com os homens e mulheres. A religião para a cultura umbundu define toda relação vital das pessoas. Qualquer atividade que se faça está carregada de uma experiência religiosa em união com todos os membros da família, vivos e mortos. É nesta experiência que acontece o culto a Deus por intermédio dos antepassados. Os umbundu acreditam no ser supremo criador de tudo que existe; a crença em dois mundos (visível e invisível); a crença no caráter comunitário e hierárquico destes dois mundos; a interação dos dois mundos em que a transcendência do invisível não impede a sua imanência. Estes dois mundos estão tão ligados que formam uma única e mesma comunidade de intercâmbio e partilha. É aqui que se encontra a sabedoria Umbundu iluminada por Deus, passada de geração em geração. Interessa-nos ver o rosto de Deus, a maneira de se comunicar com Ele (culto) e quais os propósitos que daí advêm para o povo (ética). É o que passaremos a ver nas próximas alíneas.

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1. Suku (Deus) na experiência religiosa dos Umbundu

Para entendermos a teologia dos umbundu, temos que considerar a existência do ser humano e tudo que se relaciona com ele: nascimento, morte, acontecimentos felizes e infelizes do cotidiano. O povo umbundu tem uma concepção de Deus pai-mãe (Suku ondjali), permanentemente presente e operante na história para perpetuar a sua maior obra: o gênero humano. (LUKAMBA, 1992, p.61). Suku é vivo, princípio vital, invisível, cheio de vida que dá vida para outros seres. Os umbundu não têm a ideia de um Deus distante, longínquo às necessidades do ser humano, mas Deus como este OUTRO que se relaciona com homens e mulheres em termos interpessoais. Para a religião tradicional bantu em geral, e umbundu em particular mesmo ele sendo um Outro não aparece como alguém “fora” do contexto cultural. Deus está próximo e se relaciona conosco. É um Deus aliado, que caminha com o seu povo. Deus na África é concreto e real em termos de existência dentro da comunidade. O provérbio “Suku oyendula ñgo kapesela” (Deus só inclina, não despeja) expressa exatamente a preocupação, o carinho, o amor que Deus tem para com a humanidade, ou seja, Deus não deseja o desaparecimento do ser humano, mas sim a sua felicidade. Neste provérbio temos Deus como força vital. Diante disso, os umbundu têm uma atitude de confiança e abandono a Deus: “Tchamba Suku lomwe otchimba” ( O que Deus dá não se rejeita. Deus sabe o que dá e porquê dá). Tudo provém de Deus e o conserva. Ele é conhecido como o mais antigo de todos os antepassados e está em contínua relação com os seres vivos. Daí o sagrado em tudo que existe. No Suku ondjali estão presentes elementos masculinos e femininos. Porém, o feminino de Deus predomina. Para o umbundu a paternidade e a maternidade de Deus estão unidas numa única realidade que condensa em si o cuidado carinhoso o Amor - de Deus pela sua criatura. Se olharmos para a tradição bíblica, Deus é comparado como a mãe que consola (Is. 66,13); mãe incapaz de esquecer o filho de suas entranhas (Sal.25, 6); Jesus se compara como a mãe que quer reunir os filhos sob a sua proteção (Lc.13,34). “Deus não aparece unicamente sob linguagem masculina 8. O feminino de 8

Tate é cuidador que pode ser homem ou mulher. Quando se diz Pai –nosso, em Mt.6,9 não se referiu a Deus- masculino, na verdade, Cuidador e protetor. Watuwa utate. O modo de viver é de

24 Deus é também veículo da revelação”. (L. BOFF, 1979, p.89). Isto não significa que Deus seja homem ou mulher. Ele transcende os sexos e vai além das qualificações masculino-feminino. Deus pode aparecer como pai e como mãe, embora transcenda a ambos, pois Ele habita numa luz inacessível. Tudo que diminui a vida e a sua realização é completamente neutralizado por Deus, pois Ele é o nosso aliado, juntamente com os nossos Akulu (antepassados) a quem estamos caminhando. Pela experiência cotidiana, o umbundu está consciente do poder divino que se manifesta nos acontecimentos casuais e expontâneos, no trabalho, nos campos, na caça, no nascimento de uma criança, nos ritos de iniciação, na visita de um hóspede, em casa na viagem, na saúde, na doença, na necessidade e na abundância. A natureza é sagrada, pois nela Deus se manifesta. O Seguinte provérbio expressa muito bem isso: “Nda okasi v´usenge kukalipundole, oviti omanu” (Se estiveres na floresta não te dispas, pois as árvores são pessoas). Parece ridículo mas expressa o respeito pela natureza em que vivemos, porque ela é a continuidade do ser humano. Quando se diz que Deus é pai-mãe (Ondjali), quer expressar realmente que Ele é fonte de vida humana, animal e das coisas e não se é homem ou mulher. É essa concepção que os ocidentais, devido o seu sentimento de superioridade deram o nome de animismo, idolatria, religião primitiva, polidemonismo, emocionismo, superstição etc. Isto é reducionismo que não expressa a riqueza global da religião africana. Esta presença da divindade na totalidade da vida faz com que os umbundu dêem muito significado na vida de todos os dias (experiência), já que o paraíso, o inferno, e mundo são condições de existência aqui e agora. Desta maneira a fé em Deus é profunda busca de signficado.9 (CARLO, 1995, p.363-370). Assim, a partir da experiência cotidiana, os umbundu chegaram à alguns atributos de Deus:

Cuidar e proteger; Ñda uñgombo watata. Se Deus pastor nos cuidar e proteger. Tatá (wanda kwatatavó) oku tatá, cuidar. U-tate: cuidador, quem cuida da gente. A tate Y ´etu. Traduziu-se como Pai-Nosso mas também pode ser Mãe-Nossa. Portanto, Tate Y´etu, não é só Pai-Nosso, mas também Mãe-Nossa. Significando Cuidador e Protetor. 9 Com a expressão “Religião africana” refiro-me a África negra Bantu e não genericamente a todas as raças africanas, para evitar polêmicas sobre os africanos árabes, particularmente os africanos do norte.

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Criador, protetor, próximo, único, Deus da vida, aquele que doa chuva e os filhos, aquele cuja origem é desconhecida. “Entre os bantu é unânime a crença em Deus único e pessoal, porém com variedades de nomes e matizes em seus atributos. Deus causa primeira e última de todas as coisas.” (ALTUNA, 1974, p.79). Para ele se comunicar existem intermediários: os antepassados, pois estão na hierarquia dos espíritos entre Deus e os homens. “Os antepassados são carregados de divindade, como acontece com toda pessoa viva. Só que neles as limitações da carne são removidas, e se tornam mais outros. Por isso é que vêm com outros olhos. Portanto, podemos confiar em tudo o que eles nos comunicam, como sendo realidade suprema

e

nunca

enganadores”.

(SETILOANE,

1992,

p.36).

Eles vigiam

contentemente para impedirem os espíritos maléficos desequilibrarem o mundo visível provocando extinção de seres vivos. Portanto, “Deus, os antepassados, os vivos, os que já partiram todos e tudo num esforço articulado estão empenhados a assegurar a perenidade da vida numa felicidade que é basicamente um relacionarse sem limites e sem fim.” (LUKAMBA, 1987, p.65). O Deus dos umbundu não é diferente dos hebreus e nem do cristianismo. Tem um ponto de vista diferente da fonte: Deus entre os bantu, umbundu não faz cruzada, nem mata para converter ou exterminar os que não aceitam. Assim, como Deus se revelou a Israel com o título de Javé, também se revelou aos umbundu como Suku. Não desprezamos a experiência dos hebreus, asiáticos, dos indígenas nas américas. São todas experiências da divindade. Nós acreditamos que vimos da mesma fonte. Somos diferentes na maneira de conceituar e verbalizar a realidade em consequência das situações e dos contextos geográficos, cronológicos e culturais. O fato de os africanos serem a primeira comunidade do mundo a existir, talvez isto seja relevante na compreensão da vida e de Deus.

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2. Culto: Celebração do binómio vida-morte. Entre os umbundu o culto é dirigido por um osekulu (mais velho homem ou mulher) da família, aldeia. Seu papel é velar pelo andamento da vida social, política, cultural, religiosa da família ou aldeia. Eles têm poder religioso, civíl para garantir a segurança e o bem estar do povo. Muitos deles são: Usakuli: aquele que sabe neutralizar as forças negativas (males) e realizar curas. 1. Onganga: aquele que conhece os truques, sabe projetar e neutralizar as forças negativas (males). Otchimbanda10: aquele que cura e projeta forças negativas (males). Ele é respeitado pelo fato de conhecer o mundo invisível e entrar em comunicação com ele. Por meio dele, os vivos podem receber as mensagens dos seus antepassados. Não só é médico mas também sacerdote, possuído por espírito de um antepassado que exercia essas funções em vida. Além de curar (okusakula) também protege (okuvindikiya). Muitas pessoas vão consultá-lo (okutahã). Esses têm forças especiais que influem nos seres invisíveis por meio de fórmulas e práticas secretas diferentes. Eles agem em todo lugar. Entre o povo gozam de muito respeito, pois lidam com o sagrado no etambo (lugar sagrado isolado do mato, o mesmo que santuário). (LECOMTE,1963, p.119). É ali onde de uma maneira especial entram em contato com o sagrado (Deus e os antepassados) por meio dos espíritos bons (olondele) e maus (ovilunlu). Para os Umbundo apesar de Deus estar próximo, não existe adoração direta a Ele. Temos acesso a ele por meio dos intermediários, antepassados ou olosekulu (velhos). Aqui abre-se a 10

Otchimbanda (médico, arte da medicina, curandeiro, que cura fazendo ritual. Otchambanda (erva

medicinal, Omassi, óleo medicinal). Os missionários traduziram-no como feiticeiro). Ser ou ter Umbanda entre os Umbundu significa estar iniciado, pois é um modo de viver comunicando-se com o mundo visível e invisível. O iniciado tem que saber sobre: Otchilulu (alma de outro mundo), Osande (espírito protetor, bom gênio), Ondumba, otulondumba (alma de outro mundo), Ouanga (malefício), Otchitau, otchimpa, otchiluvia-luvia; (okutaãhã) objetos da adivinhação. Jogos de búzios. Okusakela (evocar os mortos), Okulikutilila (aplacar a alma dos mortos). Otchissungi, otchipapalelo tchovilulu, otchimuhanhilo (festa em honra dos mortos). O missionário cristão era a única pessoa que tinha poder de se comunicar com Deus. Por isso, foi chamado de feitiçaria, bruxaria, malefício, mágica. É assim que foi traduzido por missionários.

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importância do outro na relação com Deus. Nós acreditamos na força vital de Deus e reconhecemos os seres inferiores a Deus que constituem, muitas vezes seres intermediários que interferem na história e estão revestidos de poder. Por isso, são venerados. Existem também as mulheres (ilyangu), que dançam nuas á noite nos currais de gado ou em casas de famílias. Elas desejam infelicidades ás outras pessoas para o próprio bem. O culto é feito todos os dias, trazendo a vida de toda aldeia: homens, mulheres, crianças, animais, campos, todos haveres e todos os antepassados. Para esse culto a iniciação, enquanto rito de passagem, sacraliza o homem e a mulher. Nessa cerimônia os cantos, os batuques (tambores), as palmas, as danças são de extrema importância na concentração e presença de espíritos bons (olondele) e afugentar os maus (ovilunlu), com a presença de: água (banhos rituais), bebida, comida, fogo, terra, plantas e objetos que simbolizem coisas, cabaças, colares. Por isso, é que nas liturgias africanas a comida é de grande relevo. Nesta celebração da vida-morte os provérbios, os ritos, os gestos, os símbolos, a arte, a festa exercem um papel de ligação com os vivos e os mortos trazendo toda história (memória) para iluminar o presente e dar sentido à própria vida. Neste encontro o sacrifício da comunhão, a partilha da vida e dos bens entre os vivos deste mundo e os do outro é tão importante que a não realização é motivo de desrespeito. Existe aqui uma dimensão pascal: vida que vence a morte. A Vida é o fundamento de todos bens. Por isso, deve ser vivida bem hoje e na eternidade. Nada neste mundo pode destruí-la. A vida vence a morte. O projeto vivido por Jesus, na ressurreição, não é o caminho para a morte, mas caminho aprovado por Deus que, através da morte, leva para a vida. A Sacrosanctum Concilium diz: “Pelo mistério pascal, Cristo, morrendo, destruiu a nossa morte e ressuscitando, recuperou a nossa vida” (n.5). Ele não ficou prisioneiro da morte. Jesus é a própria vida. (LUKAMBA, 1987, p.43). O povo umbundu celebra a dimensão pascal (vida que vence a morte) desde a sua existência. Este modo de cultuar a Deus não devia escandalizar alguns seguimentos ortodoxos angolanos. “A este respeito Frei Beto nos conta um fato interessante ocorrido no sínodo de Roma sobre a Justiça, em 1971. Um bispo africano convidou vários bispos ocidentais para assistir a um filme sobre a liturgia na diocese dele, lá na África. O filme mostrava uma missa campal. O altar era um tronco de árvore cortado. Em torno dele, apareciam vários homens tocando tambores, batendo

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palmas, mulheres com seios á mostra dançando, todos com corpos pintados com cores vivas. Um bispo europeu levantou-se e declarou: “Eu protesto, isso é uma blasfêmia, um absurdo, não é a liturgia da Igreja!” O africano respondeu: “ Olhe pode não ser a liturgia de Roma, mas da Igreja é. Porque se nós africanos tivéssemos evangelizado a Europa, a essa hora os senhores estariam todos com os corpos pintados, desnudos, dançando em volta do altar.” (L.BOFF & BETTO, 1994, p.9395). Não é possível ver no culto um dinamismo pascal, vida que triunfa? Nós experimentamos Deus no cosmos, nos alimentos, nos antepassados. É necessário compreender o todo da cultura para melhor trabalhar. O desafio que fica: como integrar esses elementos sem escandalizar ninguém? Trata-se de um culto que integra a pessoa e o grupo na totalidade num grande abraço da imanência com a transcendência.

3. Ética comunitária: fundamento da existência social

A ética dos umbundu está ligada com a vida enquanto relação com os outros, o universo que nos rodeia e os ancestrais, os guardiões da moralidade da comunidade. Uma cultura fundada nas relações, a unidade, a harmonia na família, na aldeia, na tribo são importantíssimos. Como falar de ética comunitária quando centenas de pessoas morrem em Angola vítimas da guerra entre irmãos, incentivada, muitas vezes, pelos países ricos? A ética visa o bem comum, a terra sem males, sem guerra, questionando as injustiças, opressões e morte de inocentes, propondo uma ética libertadora. Um exemplo clássico é Jesus que se opõe à moral dos dominadores e propõe à ética. “Ela consiste na práxis - como ação e relação para o outro enquanto outro, como pessoa, como sagrado, absoluto”. (DUSSEL, 1994 p.63). A ética comunitária refere-se, assim, às ações práticas que promovem a vida, o bem estar em contraposição a tudo que diminui a força vital. Na comunidade umbundu hodierna a práxis é necessária para o equilíbrio e harmonia do mundo. (AA.VV, 1990, p. 121-129). Assim, existem interdições, preceitos, normas, tabus para favorecer esta harmonia entre as pessoas. Todas tentativas de desrespeito- assassinato, roubo, adultério-

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são submetidas à punição, pois violam o valor sagrado de Deus e da pessoa. (DUSSEL,1994, p.64). Aqui a religião exerce a sua força significativa, pois vai chamar todo o ato mau de pecado. Desta maneira, o ser humano é portador de dignidade para não desmerecer a família, a aldeia e toda a sua descendência. Nos umbundu quando um filho transgride a lei do respeito, por exemplo, não só ele é culpado, como também compromete sua família e consequentemente influirá nas relações comunitárias. Para que se tenha boa reputação as famílias procuram educar seus filhos na responsabilidade e sinceridade. Por que na África os conflitos não param? Exatamente pelo fato da manipulação e ignorar a bondade, o amor à verdade, o respeito pela dignidade da pessoa em qualquer tempo e lugar; implantação de sistemas de governo ocidentais com a venda de armas como grande negócio, o individualismo promovido pelo capitalismo. É preciso romper com os antivalores e voltar às origens, isto é, ter presente os valores africanos: a bondade, fraternidade, solidariedade e respeito que muitas comunidades africanas guardam. (TÉVOÉDJRÈ, 1986, p.37). Entre os umbundu a pessoa tem que primar pela boa conduta, quer dizer, observar as normas, os preceitos da comunidade. O pecado do incesto, o adultério com a cunhada, o sexo no mato ou à margem do rio, roubar no celeiro ou no campo (roça), destruir uma casa sem permissão da comunidade precisa de um ato de reconciliação para paz individual e comunitária. O homem peca contra os outros e contra Deus. Daí os ritos de purificação para voltar a harmonia entre as pessoas. Assim como o povo israelita saiu do Egito para a terra prometida (Js 1,2); os exilados subiram de Babilónia para Jerusalém (Esd.1,11). Para os umbundu a preocupação é sair da desconfiança, pobreza, condenar a morte causada pela guerra, dar continuidade à vida na unidade, na harmonia, na justiça, na hospitalidade, nos gestos de solidariedade e na paz, conhecido por “nova Jerusalém” no Apocalipse (21,1-4). O mal não vem de Deus, mas do desrespeito às normas ou seja, do abuso da liberdade humana; no abuso do manejo da força vital (realidade dinâmica, concreta e mística); da influência de antepassados maus. Por causa do medo desses agentes do mal que atuam constante e ininterruptamente, é que nasceu a magia (intercâmbio de forças-mundo visível e invisível) como defesa. Assim, os seres humanos parecenos que não estão livres na condução dos acontecimentos da vida. Aqui nada acontece por acaso. Tudo tem sua causa. Por isso, é que o homem africano da

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sociedade tradicional enquanto não descobrir o causador último da sua doença ou da morte de um ente querido não fica tranquilo. O mal se desenvolve a partir da dominação sobre o irmão. Em Gn 4, 8.10 Caim agride e mata Abel. A prática dominadora é um mal porque se interrompe a relação, transformando o outro em coisa ou instrumento de riqueza. Todo o mal afeta as relações humanas.

4. O CHOQUE CULTURAL: COLONIZAÇÃO E EVANGELIZAÇÃO

A primeira evangelização foi feita em mão única, onde o europeu catequizou o nativo sem reciprocidade. Eles partiam do pressuposto de que a verdade religiosa estava toda do lado do europeu e o erro do lado do indígena. A religião do outro era paganismo,

demônio.

Os

conquistadores

movidos

por

outras

concepções

implantadas pelos padres da igreja, arrasaram os outros povos. Infelizmente a conquista militar foi acompanhada pela conquista espiritual. A África foi o berço do cristianismo, porém a história da Igreja em Angola só a partir do século XV com o processo de ocupação e colonização dessas terras pelos portugueses. A Igreja cristã em Angola associada ao sistema colonial forçará todos a aderirem à sua doutrina. Neste processo muitos angolanos morreram. O cristianismo foi um instrumento político que facilitou a colonização. Os portugueses estavam certos que sua missão de converter “bárbaros e selvagens” era divina. Na verdade, colonizar era evangelizar. Os missionários europeus serviram como precursores do sistema colonial. Outras vezes os comerciantes abriam caminhos e os missionários lhes seguiam atrás. É nessa óptica que vamos ver os próximos pontos.

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4.1. A PRIMEIRA PRESENÇA MISSIONÁRIA NO CONGO

Os exploradores portugueses chegaram na foz do rio Zaire em Mbanza Congo em 1482 onde fizeram os primeiros contatos com o reino do Congo. Vieram também alguns padres católicos que começaram a batizar a família real, implantando forçadamente a igreja em Angola. Só em 1484 os missionários franciscanos chegam em grande quantidade para a grande missão no Congo. Desta maneira, Mani Sonho recebeu o nome de Dom Manuel, Nzinga Nkuvu, João I; Nzinga Mbemba, Afonso I; Rainha Njinga Mbandi, Leonor, a cidade recebeu o nome de São Salvador. Para fortalecerem ainda mais as relações em 1489 os portugueses enviaram a Lisboa alguns jovens da embaixada do Congo para aprenderem a língua portuguesa e ajudarem a converter os chefes do Congo e possibilitar a conhecerem a fundo a realidade de Angola. Uma vez convertidos os chefes facilitariam a cristianização do povo, possibilitando o domínio de todo o território para posteriormente a obtenção das relações comerciais: escravos, marfim ou metais. A penetração não foi pacífica. Depois de serem bem acolhidos forçaram a construir igrejas onde foram batizando homens e mulheres. Se num primeiro momento era por questões de relações, aos poucos as relações foram se clareando: comércio generalizado. (MINISTERIO DA EDUCAÇÃO, 1991, p.120). Eles desestabilizaram os reinos fazendo concorrência brutal e a procura do lucro por todos os meios. "O cristianismo era o instrumento do poder e não de transformar as estruturas sociais e mentalidades." (Ibidem). O batismo dos reis não era aceito por todos os membros do governo tradicional. Criticaram-no, pois temiam a maldição dos antepassados pelo abandono dos costumes culturais. Os padres queimavam tudo que fosse religioso, pois chamavam-nos supersticiosos, casas de fetiche, a poligamia foi proibida. Ora o equilíbrio dos reinos dependiam em grande parte de relações matrimoniais contraídas entre as grandes famílias de aristocratas. No reino de Nzinga Nbembe (Afonso I), o cristianismo cresceu através de ensino aos jovens da corte conguesa: foram erigidas várias igrejas. Os missionários limitavam-se a ministrar o batismo, a pregar e a ouvir as confissões com ajuda de interpretes. Porém, o comportamento dos missionários, altivos e ignorantes, inflexíveis nas suas prerrogativas ávidos de ganhos escandalizava o povo e provocava conflitos constantes. Eles lançaram-se

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igualmente ao tráfico de escravos e produtos: intervieram frequentemente nas questões políticas do reino do Congo, ao lado dos capitães e comerciantes portugueses. O cristianismo não teve repercussão na aristocracia e muito menos no povo, pois negava a vida e as práticas do povo. Evidentemente devem ter dito que o batismo e adesão ao catolicismo, significaria o bem-estar. O batismo era a arma dos portugueses para a submissão (vassalagem dos reis e de todo povo). O objetivo era batizar o rei para este influenciar a população. Batizar significava promover os negros para a classe civilizada. Em Angola os portugueses até os anos 60 dividiam a população em duas classes: indígenas e assimilados. Indígenas eram habitantes autóctones de Angola e os seus descendentes sem formação cristã européia conforme as exigências coloniais. Os assimilados são os que aceitaram o batismo, a educação cristã européia, negando os seus costumes. Tinha que ter 18 anos; falar português corretamente e deixar de falar a língua nativa; uma profissão garantida; cumprir o serviço militar. O objetivo do assimilado era semear discórdia ente as populações autóctones. (FITUNI, 1985, p.73). Daí os conflitos que hoje ainda temos em todo o continente africano. Em 1594 um padre jesuíta proibiu o batismo de sobas e outros homens importantes sem estarem avassalados aos portugueses, pois acontecia que abandonavam a religião cristã quando haviam guerras ou os portugueses eram derrotados nas batalhas. (GABRIEL, 1978, p.71). A cruz e as armas andaram sempre juntos. Os angolanos eram gentios, analfabetos, sem educação, selvagens, ignorantes, bárbaros e contraditórios. Por isso, seria necessário salvá-los deste inferno. (JORGE, 1961, p.124). Portanto, negar a sua cultura é o único caminho para salvação. O cristianismo não foi aceito facilmente. O filho do rei Mvemba-Nzinga- Panzo e membros do seu partido não aceitaram o batismo e revoltaram-se contra o rei e os missionários. Batismo significava negar a cultura de origem, abraçar a cultura cristã e ser vassalo do rei de Portugal. Na época da escravatura o rei do Congo não concordava com o tráfico pois o despovoava. O fato de ser batizado, fê-lo calar e perder a sua capacidade de resistência porque tinha jurado obediência. Quando ele morreu chamaram-no de maior santo cristão do reino do Congo porque colaborou na implantação da igreja. O que significou o batismo nesta época? Submissão, morte,

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perdição. Na verdade, houve muito descontentamento por parte da população. A igreja e o governo português não gozaram de boa reputação. A população vivia tão revoltada que dizia: "A situação melhoraria acabando com políticos, militares, autoridades e padres". (PEPTELA, 1984, p.28-29).

4.2. A PRESENÇA MISSIONÁRIA ENTRE OS UMBUNDU

Entre os umbundu foi um pouco diferente. Os reinos na época eram: Benguela, Bailundu, Huambo, Bié, Tchiyaka. Benguela por ser no litoral conheceu os portugueses em 1483 quando Diogo Cão prosseguia com as descobertas e explorações. Só em 1617 foi fundada por Cerveira Pereira, construindo a primeira igreja católica no centro-sul de Angola, 1619. Benguela tinha um péssimo clima para viver. Por isso foi chamado-"açougue humano". Era lugar de castigo. Todos os delinquentes cumpriam suas penas maiores nesta cidade. Ir à Benguela era o pior castigo da época. Muitos sucumbiam. Isto desanimou de alguma forma a própria presença da igreja, mesmo que tivessem construído uma paróquia. Benguela e o seu interior viviam de comércio: borracha, mel, cera, marfim, sal, ferro, couro, enxofre, azeite de palma, ginguba (amendoim), gado em troca de vinho, tecidos, espelhos, armas, missangas (colares). Benguela era um centro comercial. Com a chegada dos exploradores e comerciantes portugueses as relações com o interior aumentaram visto que alguns aventureiros portugueses deslocavam-se ao interior em busca de melhores fortunas. Os comerciantes que vinham do interior muitos aproveitavam para se batizar na cidade, escolhendo como padrinhos pessoas brancas de renome social e eclesial, em geral os comerciantes, para serem protegidos. Nesta confiança muitos portugueses se beneficiavam acumulando fortunas. Nesta época vinham do interior os escravos, exportados para o Brasil. Antes de partirem eram batizados pelo pároco. 11 O batismo purificava-os do estado selvagem que viviam, assim diziam. Quando os escravos morriam na travessia do mar atlântico, diziam que era por vontade de Deus, pois era uma graça 11

A paróquia talvez seja a de Nossa Senhora do Pópulo, construída em 1619, porque em todos os documentos é esse título que aparece.

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saírem da África e irem para o Brasil. Pelos menos salvariam as suas almas. Os bispos e missionários colaboraram com este esquema e empregavam escravos ditos "da igreja" para o seu serviço, para as plantações e para transportes durante as viagens. Desta forma salvarão a sua cor e a alma. E acrescentavam:" Vendo os negros sofrendo, assemelham-se ao sofrimento de Cristo na cruz. Só assim, é que serão salvos". Foi nessa época em que os escravos eram mercadoria-moeda para leigos e padres. (MINISTERIO DA EDUCAÇÃO, 1991, p.258-272). "Os padres esperavam ansiosamente os escravos que vinham do interior para serem batizados e salvarem suas alminhas". (PEPETELA, 1984, p.42). As igrejas eram construídas de frente para o mar, para facilitar as embarcações. Exemplo típico é a igreja Nossa Senhora do Pópulo, primeira igreja de Benguela. Em 1641-1648, por questões comerciais, Benguela é ocupada pelos holandeses, protestantes. Em 1880 os missionários evangélicos penetram no planalto central. Em Benguela preparavam-se homens para o interior. O aguardente e o batismo eram armas para serem enfraquecidos. O comércio de alguma forma contribuiu na implantação da igreja no interior dos reinos. Os homens do planalto vinham para trocas e voltavam com novidades e missionários. Era no tempo de Ekwikwi II, rei do Bailundu, 1881. Os missionários protestantes pregavam, batizavam, ensinavam a ler, a escrever e faziam a assistência sanitária. A presença missionária não agradou os reis, visto que temiam a invasão e assalto do reino pelos brancos. Em 1884 os missionários foram expulso do Bailundu, para voltarem no ano seguinte depois do reconhecimento do rei. (CARVALHO, 1995, p.74). No Congo os protestantes se instalaram depois dos católicos. No centro sul eles foram os primeiros. A igreja católica pela experiência negativa que teve no reino do Congo nos primeiros contatos desanimou. Por isso só ficou no litoral. O avanço dos protestantes desafiou a igreja católica no planalto central. Assim, foram enviados dois padres seculares ao Bié. Os dois padres separaram-se por intervenção do governo português. A diocese não tinha poder. O governo pedia tudo e a igreja obedecia. A igreja católica estava aliada ao regime colonial-padroado.12 O exército português era todo católico e assistido por padres. Nas guerras de ocupação e dominação os padres pegavam em armas, iam para frente de combate para libertar 12

Padroado foi instituído pelo papa Nicolau V em 1455, que conferia ao monarca português uma certa autoridade no que se refere à escolha do pessoal eclesiástico e à formação de dioceses e de instituições em território português. O Estado oferecia-se em sustentar a igreja e as suas instituições. Só terminou em 1913.

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e salvar as almas perdidas. Toda a vitória do governo era motivo de procissões em honra a Jesus Cristo e a Nossa Senhora. (PEPETELA, 1984. p.34). Em 1889 a missão do Bailundo foi encerrada, pois a população se revoltou contra o comportamento do padre, destruindo e saqueando as casas da missão portuguesa, a capela, a escola e os missionários fugiram para o Bié. (HENDERSON, 1990, p. 75). O bispo da diocese suspeitava que os protestantes estivessem por detrás desta revolta. Isto complicará mais tarde. Face a isso a igreja católica sentiu-se ameaçada e perdia terreno diante dos protestantes e começa a concorrência. As autoridades civis intervêm e é preso o soba do Bié, Ndunduma. Para a igreja católica constituiu um avanço para a implantação dos missionários. Deus é a favor da conquista. Os padres limitavam-se às missas, confissões, batizados, pregação da vida eterna e do inferno. Para tal era necessário deixar a vida selvagem e aceitar a doutrina dos brancos. Lembro-me aqui do velho Cassenda quando os brancos lhe arrancavam o sexo com alicate por não aceitar a educação europeia, gritava "a Suku, a Suku"; os brancos diziam Suku é o Deus deles, está enganado este não é o verdadeiro. E continuava gritando " Deus não é Suku, pois Suku nunca castigou Féti "( o antepassado dos umbundu que nasceu da água e que foi primeiro homem.. (PEPETELA, p.43). Assim, em 1889 foi a primeira implantação da missão católica em Caconda. Em 1900 abriram escolas: serralheria, carpintaria, marcenaria. “Meu avó, Mário Carvalho Dinis, de saudosa memória, aprendeu ali e foi um dos pioneiros desta escola. Ele participou nas construções de todas as missões (igrejas) do centro-sul de Angola a partir de 1939. Faleceu em 1994.” (M.Anjos, 1994). Em todo processo de conquista os missionários precisaram da ajuda dos angolanos -" Unene w' ogandu k' ovava" a grandeza do jacaré está na água- para dizer que os missionários precisaram da ajuda e a colaboração dos próprios angolanos. Até 1974 era uma igreja colonial. Desde 1975 a Igreja começa outra história: interessar-se pelo direito e pelo bem nacional; trabalhar na extinção dos focos de terrorismo e de outros processos de subversão social, pois a Igreja é portadora de paz e harmonia fraterna; apela aos ricos, aos pobres, aos patrões, aos súbditos, aos europeus e aos africanos num esforço comum para se encontrar soluções para muitos males de que somos nós os responsáveis. (COSME, 1978, p.57-67).

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Desde os anos 1980 a igreja toma um rumo profético. Porém, tem de caminhar muito a partir da cultura do povo angolano, umbundu. Do que já se viu, fica claro que a primeira evangelização em Angola chegou graças ao sistema colonial sob o lema: “cristianizar é civilizar”. (CARVALHO, 1995, p.127.) Empenhados na missão reis, conquistadores, descobridores, missionários, soldados levaram a fé aos novos povos sem considerar suas culturas. Não se pode anunciar Deus massacrando vidas humanas. Que tipo de Deus os colonialistas trouxeram e nos anunciaram? Sem inculturação a evangelização se torna uma violência. A evangelização é seguida de sinais que garantem a verdade da palavra. É claro que não faltaram expressões de amor, generosidade nos primeiros missionários. Mas, por causa dos seus métodos e da ligação com os conquistadores a experiência missionária foi muito negativa. Por isso devemos aprender o seguinte: a evangelização feita no diálogo provoca vida e libertação. (C.BOFF, 1992, p.517537). É de louvar a Igreja Católica Romana que foi se corrigindo aos poucos até se transformar numa presença positiva em Angola. Porém tem de caminhar muito.

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5. DESAFIOS PARA A EVANGELIZAÇÃO INCULTURADA

Todos os povos com o decorrer dos séculos foram construindo sua cultura. Os umbundu também fizeram a sua. Para uma boa evangelização o missionário tem de considerar: os costumes, língua, tradições, a cultura. A inculturação parte da própria língua materna. Nada de português, nem implantar os conteúdos doutrinários, mas de vibrar com a experiência de Deus. Não se preocupar quantos vão aceitar. Falar de Deus simplesmente. Jesus de Nazaré com a encarnação não dogmatizou sua cultura. Deu um exemplo para a encarnação do evangelho em todas as culturas. Não se deve impor. A inculturação é um processo constante. Nunca pára. Deve-se respeitar as várias etapas: aproximação, escuta, aprendizado, comunicação e partilha. (COUTO e BATAGIN, 1997, p.36-37).

5.1. VALORES CULTURAIS: RIQUEZA DA IGREJA

Olhando os capítulos abordados e a minha experiência de vida como estudante de filosofia e teologia, as religiões tradicionais africanas têm uma herança cultural que facilitou a primeira evangelização-colonização missionária. Não vamos discutir aqui o como evangelizaram, pior de tudo foi usado o nome de Deus que vive conosco. Cada povo tem seu modo de ver a Deus, o mundo, a vida, o cosmos, seus valores: os ancestrais (os mortos que continuam vivos), o respeito pela vida, pelos anciãos, pela comunidade, festa, solidariedade. São todos valores evangélicos. Devem ser valorizados e aproveitados para a nossa evangelização. “Tanto nos lugares onde a Igreja está estabelecida há muito tempo, como áquelas que estão se implantando, se descubram no povo expressões particulares da busca de Deus e de fé... (E.N.48). O continente africano é de contrastes. Se de um lado a miséria, a violação dos direitos humanos, há pobreza, há fome gerados pela guerra, do outro temos a riqueza, o luxo dos dirigentes, ditadores á custa e em nome do povo. (João Paulo II, 1995, p.41-45).

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Evangelizar neste contexto deve denunciar esses sistemas de vida, assumindo uma atitude profética; ajudar a libertar todas as formas de opressão, de morte, de cegueira a exemplo de Jesus de Nazaré. Precisamos purificar a idéia de “inculturação como integração dos valores culturais no cristianismo como afirma sua santidade, João Paulo II.” (Redemptoris Missio, proposito, 1992, p.28). Inculturação é um processo ativo e continuo de assimilação da mensagem evangélica a partir de dentro da própria cultura que a recebe. Não foi este método utilizado pelos primeiros missionários que foram à Angola. Desprezaram e condenaram os templos e o Deus dos povos africanos, particularmente angolanos. Assim, para uma evangelização inculturada é necessário levar em conta: 1. Pressupor ao anúncio evangélico, a constatação de que Deus esteve e está presente nesta cultura. “A igreja tem que se inserir com o mesmo método que levou o próprio Jesus, na encarnação, a sujeitar-se às condições sociais e culturais dos homens com quem conviveu” (A. G. 10). 2. O evangelho é uma proposta de vida e não imposição. Deve ser anunciado sem violência. Na evangelização não se trata de imposição, conquista ou colonização, mas de relação bilateral ou plurilateral de comunicação gratuita no amor e na verdade, deixando a liberdade ao outro de aceitar ou negar ou ainda a possibilidade de assumi-lo a partir dos traços da cultura. 3. Na inculturação há relação intercultural: respeito, diálogo, igualdade e sem pretensões de superioridade.

5.2. CAMINHOS PARA A EVANGELIZAÇÃO INCULTURADA: DESAFIOS PASTORAIS.

Toda cultura é morada de Deus. Evangelizar é descobrir a presença de Deus nos vários povos. Deus não chegou em Angola em 1482. Estava aqui muito antes. Evangelizar não é impor, convencer, conquistar ou dogmatizar. É humildade, silêncio, escuta, despojamento. (SUESS, 1991, p.226). Jesus é o exemplo vivo de despojamento: “Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens. Assim

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apresentou-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz!” (Fl.2,6-8). A Igreja angolana tem que ser sensível ao contexto concreto, mediante uma autêntica inserção, caminhando ao lado do povo e prosseguir a memória do povo a fim de valorizar e revitalizar sua identidade para não criar divisões e cair no tribalismo, na violência institucionalizada, na exploração, no saque, no racismo. É preciso deixar a competição dentre as igrejas e lutar pela libertação do ser humano. 13

(LUKAMBA. 1989, p.7). Não podemos entender a evangelização inculturação como uma série de

adaptações e de reformas que não colocam a questão de fundamentos: na catequese, na Bíblia, nas formulações dogmáticas e práticas cristãs. Ela deve partir sempre da identidade cultural e levar a autêntica realização humana. O respeito pelo outro, seu modo de viver (língua, costume, cultura) é um testemunho cristão. “A igreja respeita e estima todas as culturas e religiões não cristãs, por serem as expressões viventes da alma de vários grupos humanos” (E.N.53). O missionário deve ser simples e aberto para aprender com o povo. Desde os tempos remotos os povos são marcados pela religião, Deus. Nenhuma igreja ou instituição deve monopolizá-lo. A Deus se chega por vários caminhos: protestante, católico, romano, índio, africano, umbundu. “...estimula-se em todas as nações a possibilidade de exprimirem a seu modo a mensagem de Cristo e promove-se ao mesmo tempo um intercâmbio vivo entre a Igreja e as diversas culturas dos povos”(G.S.44 ).14 Deus sabe como se realiza a possibilidade de salvação. Nós africanos podemos viver como africanos a fé, na fidelidade do evangelho. Á luz do que vimos, podemos dizer que o dia a dia dos Umbundu é sagrado porque está relacionado com a união com Deus, fonte de vida e com os antepassados, transmissores da vida que Deus nos concede. Isso leva-nos à celebração, ao respeito e ao diálogo. Isso é importante para uma missão de evangelização. Devemos superar o absolutismo cultural.

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Libertação em sentido geral em relação à pessoa humana. Ela não é só espiritual nem algo especulativo. Em Lc. 7,22;9.10-17, Jesus não só perdoava os pecados mas também curava, ressuscitava os mortos, saciava as multidões. 14 Cfr. Também Evangelli Nuntiandi 40,48; Unitatis Redintegratio, 4, 11; Ad Gentes 26.

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CAPÍTULO III

PALAVRA HUMANA VÍNCULO DA PALAVRA DE DEUS

Lewis H. Morgan, antropólogo evolucionista apresenta três fases distintas da história: a Selvagem, a Barbárie e a Civilizada. (RIBEIRO, 1992, p.30). A escrita surge com a chegada da civilização. Isto quer dizer que a tradição escrita é posterior à tradição oral. Pois bem, existem povos no nosso planeta que ainda hoje são predominantemente de tradição oral. A tradição oral não se limita a histórias, lendas, relatos mitológicos ou históricos. É o conhecimento total; é a própria vida. (KIZERBO, 1962, p.182-183.). Durante muito tempo estes povos eram considerados atrasados, selvagens, pagãos, incultos e muitos outros adjetivos depreciativos. (PEPETELA, 1984, p.98). Hoje, porém, com a contribuição da antropologia cultural e estudos teológicos, tais preconceitos estão gradualmente sendo superados. Tanto na tradição oral e escrita a palavra é fundamental. A escrita não é a única fonte do saber da história ou da cultura. Pela análise da tradição oral também podemos conhecer a história, a cosmovisão, a sabedoria e a cultura de um povo. Por cultura entendo o projeto de vida de um povo; sua tentativa de auto-preservar-se no meio de um ambiente nem sempre acolhedor. A tradição oral é a fonte histórica mais íntima mais suculenta e melhor nutrida pela seiva da autenticidade. Ela deve ser vista dentro de um contexto. O povo umbundu ainda hoje transmite sua sabedoria, sua tradição, sua religiosidade através da tradição oral. “Uma cultura não escrita se manifesta através da tradição oral e das práticas religiosas”. (GRAF, 1984, p.11). A religiosidade é só uma expressão do todo que é a cultura. Em povos de tradição oral, porém, a religiosidade está intensamente ligada à dominação econômica, social e política. Neste sentido ela se torna a força sustentadora do sistema. Assim, destruindo a religiosidade de um povo corresponde a destruição daquela cultura, e, naturalmente, a destruição de sua vida. Os índios nas américas foram desprezados, humilhados, considerados selvagens sem religião foram mortos

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pelos exploradores europeus. Os índios, reagindo a esta atitude perversa, disseram: “Deixai-nos morrer. Nossos Deuses estão mortos”. (LEÓN-PORTILLA, 1984, p.20). A religião é fundamental para a sobrevivência de um povo. A tradição oral é a grande escola da vida, e dela se recupera e relaciona todos os aspetos. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão separados. O mundo para nós africanos deve ser entendido como um todo, onde todas as coisas se religam e interligam. Nada é isolado da vida. (KIZERBO, 1962, p.183). A tradição, portanto, não é algo que está lá só para entreter e afastar o tédio das longas noitadas. É um meio de educar. Os métodos africanos de educação, o modo como as pessoas são preparadas para a vida e a sobrevivência, com a conseqüente preservação da espécie, e seus valores e normas, eram tão prosaicas e despretenciosos em comparação com as formas ocidentais sofisticados, que têm sido muitas vezes postos de lado como inexistentes ou irrelevantes. Muitas histórias representam um enigma devido à semelhança com antiga tradição registrada no Antigo Testamento e no Talmud.” (SETILOANE, 1992, p.14). Tudo isso é uma prova de sabedoria. Antes da chegada dos europeus em 1482 havia muita sabedoria: a maneira de viver, as práticas, as crenças, costumes, tradições que foram construídos ao longo dos séculos. Não devemos ignorar ou pôr de lado a experiência africana anterior a chegada do cristianismo e do ocidente.

1. ONDAKA: EXPRESSÃO MAIS PERFEITA DA PESSOA.

A linguagem é um sistema de sinais e símbolos onde a língua e a palavra são elementares. A palavra enriquece as relações interpessoais, como instrumento de comunicação na história. Onde não existe escrita as pessoas estão ligadas a palavra e comprometem-se com ela.

Na língua umbundu existem palavras que o

significado é conforme a tonalidade: Kalunga pode significar mar, saudação, morte ou alguém que nunca aprende com as experiências da vida (kalungalunga). Aqui o som, o eco, os sinais, os símbolos, os gestos, os sentimentos, o movimento dos lábios entram na compreensão da mensagem. Ondaka (palavra) vai para além de

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um vocábulo. Ondaka é um conjunto de realidades, um verdadeiro mundo. A cultura umbundu marcada pelas relações, que se estendem até aos antepassados. A palavra é de caráter significativo. Não é um som bruto, material, mas um verdadeiro mundo. É a própria vida. (LUKAMBA, 1987, p.50). Quando alguém diz: Wamba ondaka (falou muito bem); oyo ondaka y´otchili (é um grande pensamento); ondaka yahe yateta onimbu (Ele expressou-se claramente); Avoyo tchatukula okulya tchaleluka, tchivi olondaka (Falando-se de comer é fácil; o que é difícil são os problemas). Como dissemos acima, “ondaka (palavra) é muito complexo. Por isso, é que ao falar com os ovimbundu tem que se ter maior cuidado, pois eles são muito sensíveis. As palavras devem ser bem escolhidas, porque a palavra é uma bala que fere (mata). Isto é importante para não causar divisão e má compreensão. Em situações delicadas aconselha-se silêncio (calar) para não se comprometer diante das pessoas. Caso contrário, provocará mágoas inesquecíveis, já que os ovimbundu são pessoas de coração na medida em que é o centro da pessoa: olongupa kavipwi posi, ondaka yivi kayipwi k´utima (os amendoins nunca acabam no chão, uma palavra má nunca sai do coração). A palavra para os Umbundu é pesada. Ela é fortemente ambígua, podendo fazer ou desfazer, sendo capaz de acarretar malefício. Ondaka (palavra) bem partilhada gera comum-união, um relacionamento saudável. Ondaka é um autêntico mundo como mensagem viva capaz de ser entendida, interpelando e movendo os interlocutores”. (Ibid., p.30) A palavra é força porque cria uma ligação de vai-vem que gera movimento e ritmo. Portanto, vida e ação. Assim como a fala divina animou as forças cósmicas que dormiam, estáticas, sem forma, a fala humana anima e coloca em movimento e suscita as forças que estão estáticas nas coisas. Ondaka (palavra) é uma força fundamental que emana do próprio ser supremo (Ñgala ou Suku) criador de todas as coisas. A palavra aparece como instrumento da criação (Gn.1,1-28). “Os seres humanos receberam de herança o Dom da mente e da palavra.” (KI-ZERBO, 1980, p.183). Se a palavra bem articulada é vital e cria relações, o provérbio dá sentido a existência da pessoa e do grupo que não pode conter uma simples palavra.

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2. PROVÉRBIO: VINCULO DE EVANGELIZAÇÃO NA PERSPETIVA DE DIÁLOGO

Os provérbios nasceram e nascem da observação da realidade e do comportamento das pessoas. Todo provérbio tem a ver com a vida profunda de um povo: dominação, exploração, injustiça, morte, doença, amor, família, amizade, educação, saúde, trabalho, organização, governo, casamento, etc. Ele aparece como o caminho da luta em defesa da vida. (CRB, 1995, p.22). O seguinte provérbio Umbundu expressa muito bem isso: “ó hosi ikulya tupu, vwalenge te watalamo” (Antes de o Leão te devorar, tens de mostrar a tua resistência). Os provérbios iluminam a situação, conscientizam o povo e tornam-se o quadro de referência do grupo, mostrando a sabedoria do povo. O provérbio vem da luta do povo, cresce a partir da experiência. Assim, ele se torna fonte de identidade e de fé para o povo na luta pela paz, vida e liberdade. Portanto, a sabedoria por nascer de dentro da vida de um povo não deve se fechar no passado. Existe relação entre a palavra e o provérbio. Se a palavra é imediata e simples, o provérbio é unitário e mais profundo que não pode conter uma simples palavra. O provérbio é de uma experiência, história com um caráter profético, na medida em que produzirá seu efeito. Ele não é estático ou fixo. É dinâmico e criativo no seu significado. É revestido de uma sabedoria não só de ontem (do passado), mas também continua a valer hoje com a sua força de expressão linguística comunicativa. (HAUENSTEIN, 1962, p.105). Na verdade, os provérbios são uma autêntica sabedoria que partem dos fatos reais, enunciando normas de ação que abrangem a totalidade da vida. Quem os ignora, desconhece as leis, as normas e até a própria vida em todas as suas manifestações. (VALENTE, 1964, p.11). Só entenderemos o povo umbundu penetrando no mundo dos provérbios. No âmbito da linguagem é um sistema que liga as pessoas e o seu mundo vital (vivos e mortos). Assim, os provérbios revelam a sabedoria e algumas formas de resistência do dia a dia. Diria mesmo que para conhecer a vida de uma comunidade africana, conheça primeiro os seus provérbios. Eles são "espelhos" de um povo; são a identidade cultural ponto de partida para evangelização. Os umbundu não são os únicos que têm provérbios. Todas as culturas deste mundo sempre tiveram seus

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provérbios. Israel também ao longo da história cultivou seus provérbios, compreendendo-os, não só como uma palavra humana sábia, mas como palavra que adquirirá o status de Escritura. Portanto, palavra humana, vínculo da palavra de Deus.

3. PROVÉRBIOS NA HISTÓRIA DE ISRAEL: PALAVRA DE DEUS NO MEIO DO POVO.

Na história de Israel tinha dois tipos ou fontes de sabedoria: popular que vinha do povo e da sua luta em defesa da vida e que continuava presente, principalmente no campo e na tradição familiar, e da corte que estava presente sobretudo na cidade, no governo que procurava defender os interesses do rei e do Estado. Esta duplicidade marca a evolução da sabedoria em Israel. (CRB, 1995, p.26). Em hebraico se dizia maxal, isto é, provérbio ou ditado. O sábio era aquele que conseguia formular dentro de um maxal as experiências vividas pelo grupo. Os provérbios não são obra de um só autor. Nasceram dentro das experiências dos povos, só mais tarde é que foram recolhidas e agrupadas pelos funcionários da corte no tempo que vai de Salomão (950 a. C.) ao pós-exílio (400 a. C.). Os provérbios expressam a sabedoria cuja função é orientar a vida do povo. O esquema teológico da sabedoria é muito rico: 1. Palavra de julgamento: apelo de conversão; 2. Assegurar o processo da vida: fonte de vida que penetra no coração; manifesta a vontade de IAHWEH; Fonte dos discernimentos dos principais males que ameaçam a vida do povo. (ANDERSON e GILBERTO, 1986, p.66-67). 3. A sabedoria é vista como reflexo da sabedoria divina. E começa a ser

personificado como uma presença amiga junto de Deus na hora de criar o mundo (Pr.8,12-31; Jó 28, 12-28; Eclo1, 1-10). Como Deus é criador de tudo, os sinais de sabedoria estão espalhados em todo canto. A sabedoria é o amor, a justiça, o discernimento da verdade e da justiça no temor de Deus.

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Portanto, a sabedoria deve surgir do esforço do povo para enfrentar a vida; que crie sempre novas formas de luta em defesa da vida, criticando-se a si mesma e às suas formas. Desta maneira o sábio se torna profeta porque falará em nome de alguém. Na sabedoria está a própria palavra Deus, pois que Deus fala na vida concreta das pessoas de maneira humana e o povo capta no seu cotidiano. (Jer.31, 35-37; 33, 19-26; Rm1,20).15 O povo umbundu ao longo de sua história percebeu que na fonte de sua sabedoria estava o próprio Deus (Suku), de tal modo que os provérbios foram ganhando o caráter sagrado. A sabedoria umbundu não é só palavra humana como também palavra de Deus.

4. A SABEDORIA UMBUNDU: PALAVRA HUMANA E PALAVRA DE DEUS.

A sabedoria umbundu, dissemos acima, que parte dos fatos reais da sua experiência cotidiana, enunciando normas de ação que abrangem a sua totalidade. Assim, temos músicas, provérbios, ditados, contos, lendas, histórias que expressam o cotidiano da vida: sonhos, projetos, lutas, conquistas, derrotas. É nestas relações que acontece a palavra. A palavra se dá entre um eu e um tu, provocando um diálogo. É na relação palavra-palavra que se faz um diálogo. O diálogo tem a capacidade de ir para além das barreiras, buscando a autenticidade do ser humano. Aliás, é o único modo digno de encontro entre os diversos intentos. Através da palavra duas pessoas se conhecem e se revelam, comprometendo-se com a vivência dos propósitos que resultam deste encontro. Só num encontro de palavras (entre um eu e um tu) feitas no respeito pelo outro, na disponibilidade, no amor e confiança mútua é que nasce a Palavra de Deus. Palavra humana se torna Palavra de Deus. Não se faz nada sem compreensão, acolhida, atenção. Quem respeita o seu irmão, respeita o próprio Deus. É o que João nos fala na sua primeira carta: “se nos amamos uns aos outros,

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Os provérbios são frutos de várias gerações. Nasceram do meio popular que depois foi coletado e editado pelos sábios profissionais desde o tempo de Salomão (950 a. C.) até 2 séculos depois do exílio (400 d. C.). Esses provérbios mostram-nos que Deus fala através das situações ou acontecimentos diários que o povo capta em sua experiência, observação, reflexão e intuição. Os

46 Deus está entre nós” (4, 12b). O verdadeiro diálogo brota do amor. Deus se revelou ao mundo por amor. “Aquele que ama vem de Deus, porque Deus é amor” (4, 7-8). O amor possibilita uma relação sincera, autêntica e transparente entre as pessoas e nos leva ao diálogo, à partilha. O contrário é imposição, dominação. A cena dos discípulos de Emaús expressa esse anúncio da Boa Nova que se dá depois da partilha, do diálogo aberto, sincero, transparente de comunhão e partilha: “...enquanto conversavam e discutiam o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles... Então entrou para ficar com eles. Sentou-se à mesa ...tomou o pão e abençoou, depois o partiu e deu a eles... então os dois contaram o que tinha acontecido...” (Lc.24, 13-35). O primeiro momento é o da aproximação. Uma pessoa ou um grupo entra num ambiente cultural diferente, aproxima-se, escuta, aprende, começa a relacionarse. Só depois é que responde ao respectivo povo. O anúncio da Boa Nova acontece depois de um longo caminho, conversa, escuta, aprendizado, respeito, relações fraternas e partilha. Porém, exige um testemunho de vida. “Quem diz ama a Deus e odeia seu irmão é mentiroso” (1Jo.4, 20). Evangelizar é questão de prática cotidiana do amor. A Palavra de Deus passa pelas palavras humanas, pela conversa do dia a dia dos povos simples. (COMBLIN, 1986, p.332). Ela se dá por meio das palavras humanas. “...pois as palavras de Deus expressas por línguas humanas se fizeram semelhantes à linguagem humana, tal como o Verbo do Pai Eterno, havendo assumido a carne da fraqueza humana, se fez semelhante aos homens” (D.V.13). O verbo está previamente nas culturas e tradições religiosas: “...reconheçam-se como membros do corpo social em que vivem, e tomem parte na vida cultural e social através das várias relações e ocupações da vida humana. Familiarizem-se com suas tradições nacionais e religiosas. Com alegria e respeito descubram as sementes do Verbo aí oculta” (A.G. n.11). Nenhuma cultura humana carece de Deus nem da sua palavra. É no encontro de duas culturas que acontece o anúncio da Palavra de Deus. Se na sabedoria do povo umbundu está toda a vida então podemos encontrar nela a BOA NOTÍCIA que orienta e serve de força motriz na luta do povo pela vida. O povo, assim, se torna

provérbios são mediação da palavra de Deus. Deus fala através da experiência do povo: “a voz do povo é a voz de Deus”.

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portador do evangelho e não o indivíduo. Nessa ótica quem evangeliza é o povo. Não significa que seja o sujeito coletivo, não. Neste sentido evangelizar é dar novo sentido de tal modo que se faça um novo discurso a partir deste encontro. Ele se torna vivo (palavra de Deus), quando se trata de assuntos humanos daquilo que os homens entendem, sabem, esperam e desejam e quando suscita libertação. Deus é ação; é palavra; Deus age por meio da palavra (Jo.1,1-3). A Gaudium et Spes, citando Ireneu, diz sinteticamente: O verbo de Deus (...) antes de se encarnar para salvar e recapitular em si todas as coisas, já “estava no mundo” como luz verdadeira que iluminava todo o homem (Cfr.n.57; Jo. 1, 9-10). Portanto, a cultura umbundu não é terreno vazio, onde não se encontre a palavra de Deus. “As culturas não são terreno vazio, carente de autênticos valores. A Evangelização da Igreja não é um processo de destruição, mas de consolidação e fortalecimento desses valores; uma contribuição dos germes do verbo presente nas culturas” (Puebla, 401).

5. DESAFIOS DA EVANGELIZAÇÃO E CULTURA ORAL

Num

primeiro

momento

parecem

contrapostos

porque

falando

de

evangelização, pensamos logo na palavra escrita e nos seus dogmatismos que os missionários e agentes de pastoral carregam. O perigo é de considerar o de cultura oral analfabeto. Ora isto não é evangelização; estaremos repetindo os erros dos primeiros missionários que chegaram em Angola. Neste encontro entre povos (eu e tu) é importante respeitar suas culturas e as suas diversas formas de manifestações. A cultura oral é direta; exige participação na vida: participar, compartilhar, experimentar o que as pessoas estão vivendo, expressando o aspeto vivo do diálogo, os gestos, sons, ritmo, o movimento. Uma carta, por exemplo, perde este aspeto vivo de intensidade mútua e calorosa. Assim, evangelizar no povo umbundu é necessário uma linguagem própria para uma boa compreensão e acolhida do Evangelho. Isto não quer dizer que a escrita não tenha sua importância. Estando no meio dos umbundu, antes de tudo, trate-se de situar-se. É impossível anunciar o Evangelho a partir da superioridade

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cultural. Eis o grande desafio! Ninguém deve aprisioná-Lo: cultura, raça, cor, casa, instituição ou continente. O Evangelho é de todos. Se o povo israelita, que influenciou o cristianismo, construiu sua história, os umbundu também construíram a sua no decorrer de milênios de anos. Cada cultura produziu, originariamente, seu projeto de vida iluminado por Deus. Portanto, um povo que viva coerentemente sua vida tem salvação. Para o missionário ou agente de pastoral esteja claro que a presença de Deus na história humana, desde a criação do mundo, precede a encarnação de Jesus de Nazaré. O evangelho não tem cultura própria; pode ser vivido em todas as culturas porque todas são projetos de Deus (E.N.20). Frente aos mistérios de Deus todas as cultura têm seus limites e caminham passo a passo à plena realização. (COUTO e BATAGIN, 1997, p.30). Nesse processo de evangelização cuidado para não reproduzir comportamentos estranhos ao povo. O que tem a ver, por exemplo, numa ordenação diaconal ou sacerdotal entre os umbundu citar adágios em latim, inglês, francês ou grego e deixar a língua umbundu em última instância? Não é que se negue a riqueza de outros povos. Eles nos ajudam a crescer de forma respeitosa, atenciosa. A própria religião cristã trouxe-nos dados maravilhosos no seio da cultura umbundu. O que se questiona é o como isso é passado no cotidiano? (ANJOS, 1995, p.21). Assim, todo missionário tem que estar vazio de si próprio para poder ouvir o outro e proporcionar o grande encontro da Palavra de Deus. A partir dessas reflexões surgem algumas questões pertinentes: Como lidamos com a pluralidade das culturas? Estou preparado para o encontro com o outro? Uma das questões que devemos cultivar para este encontro é a sensibilidade e a capacidade de amar e ser amado, amadurecendo, desta maneira, a nossa afetividade. Só assim é que viveremos a Verdadeira Palavra de Deus. Portanto, Evangelização e a cultura devem ser a primeira comunhão de palavras e não de idéias. Só deste modo é que teremos uma missão inculturada.

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CONCLUSÃO

Depois de uma visão dos três capítulos sobre a sabedoria umbundu como desafio para uma evangelização inculturada podemos dizer que o povo umbundu não é terreno vazio para uma missão evangelizadora. Mesmo com suas limitações os ovimbundu ainda têm sua concepção da vida como relação com a criação inteira e com toda a humanidade; de Deus como Suku, fonte de vida e origem de tudo; antepassados como elos de ligação entre Deus e o ser humano; do ser humano como homem-mulher; do mundo como continuidade do ser humano. É a partir desses elementos que se deve começar a trabalhar. Nenhuma cultura é superior a outra. Todas constroem seu processo histórico tendo em conta seu espaço geográfico, cronologia, suas experiências culturais. Nosso trabalho tentou mostrar que na adversidade de culturas o respeito, a escuta, o diálogo e simplicidade de vida são de extrema importância. A melhor atitude missionária é como fez Jesus de Nazaré: sabendo de sua condição divina, se fez igual ao gênero humano (Fl. 2,6-8); de Paulo que se fez Judeu com os judeus e Romano com os romanos. Esta é a verdadeira inculturação. A Igreja em Angola terá futuro se missionários estrangeiros e angolanos trabalharem de braços dados na compreensão, no diálogo, no esforço pessoal e comunitário, respeitando o povo e suas culturas. Entre os umbundu a missão evangelizadora deve seguir caminhos umbundu; entre os kimbundu, caminhos kimbundu; entre os kwañhamas, caminhos kwañhamas e assim sucessivamente. O importante é servirse do suporte cultural e religioso a fim de anunciar a Boa Nova. No livro dos atos dos apóstolos está claramente dito a esse respeito: “Vês, irmão, quantos milhares de Judeus há que abraçaram a fé sem deixarem de ser ardentes defensores da Lei”? (Act. 21,20). É preciso viver o Evangelho de maneira direta e intensa, assumindo própria identidade como povo e sua especificidade com povo que crê. (ILÍDIO, 1990, p.17.) Só assim é que os povos de Angola prestarão culto verdadeiro a Deus de maneira pura, simples e original. As diferenças devem ser superadas, e entrar no espírito do Evangelho e conhecer a cultura ou as culturas a evangelizar. “Mais do que os costumes é preciso

50 evangelizar as mentalidades e o espírito que anima as culturas”. (Ibid, p.19). Nem tudo na cultura é saudável. Os primeiros missionários constataram práticas que sacrificavam vidas humanas para cultuar a Deus e aos antepassados. Reprovaramnas. O evangelho é portador de valores vitais. Por isso é necessário que tenhamos um

conhecimento

profundo

da

mensagem

revelada

e

uma

experiência

suficientemente sólida do mundo cultural global a evangelizar. Temos que iluminar e descobrir os caminhos que levam a realização humana. Evangelizar sem conhecer a cultura, equivaleria simplesmente a querer evangelizar sem destinatário. O bom missionário é aquele que prima pela boa conduta e luta por ela. O contexto atual de Angola exige uma missão profética para derrubar todos os preconceitos que existem entre os povos. Apesar das limitações da pesquisa tentamos responder às hipóteses levantadas: a sabedoria umbundu presente nos provérbios e nas músicas, enquanto expressões culturais, mostram a identidade cultural do povo, ponto de partida para a evangelização. Esses provérbios por sua vez podem ser vínculos de evangelização numa perspetiva de diálogo: palavra-palavra como mediação da Palavra de Deus. Se a palavra de Deus passa pelo cotidiano das pessoas e culturas, a sabedoria umbundu é a própria Palavra de Deus. Palavra como Ondaka, instrumento que cria vida e boas relações entre Deus e o ser humano. No presente trabalho levantaram-se questões práticas que surgem em toda a evangelização contextualizada. Não foram dadas as soluções, mas caminhos que podem ajudar em termos de evangelização inculturada. Falar da sabedoria umbundu expressa nos provérbios, músicas, danças, contos e histórias é falar de sua indentidade que deve ser o ponto de partida para uma evangelização inculturada. A história da primeira evangelização em Angola e nos umbundu devem nos ensinar a enfrentar o presente, o futuro para comunicarmos o projeto de Deus presente em todos os povos. Devemos acabar com as imposições de nossas idéias. Como tem acontecido com as autoridades eclesiais romanas: “as autoridades eclesiais romanas não só cometeram uma série de erros, mas também pecaram com sua vontade de impor um controle monstruoso, provocado pela dura e inexorável imposição do rito latino, do direito canônico romano e da teologia européia”. (HÄRING, 1995, p.85). Somente uma Igreja humilde derrubará com os obstáculos que se opõem a verdadeira inculturação. Para tal é necessário: profunda assimilação da simplicidade

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do pensamento bíblico; conhecer a fundo a própria cultura e história; estar perto do pensamento e do modo de sentir do próprio povo, sabendo respeitar ao mesmo tempo as outras culturas; implantar os ministérios eclesiais, confiando-os às pessoas do lugar, a exemplo da igreja primitiva. Enfim, temos que ter sempre a consciência e clareza que ao aproximarmos de outro povo, de outra cultura, ou religião deve-se tirar o sapato, pois o lugar é sagrado. Por isso, devemos evitar o sentimento de superioridade, achando que o povo não tem conhecimento de Deus. O próprio Jesus sempre propôs. Paulo é exemplar nos fundamentos da inculturação: procurou fazer-se tudo para todos, hebreu com os hebreus, irmão com os gregos e com os não-gregos. (Ibid. p.88). Que o amor, o zelo evangélico seja forte em todos os missionários para que nos impulsione ao dinamismo pastoral numa Angola nova e cheia de felicidades!

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ANEXO: MAPA GEOGRÁFICO DA ÁFRICA E ANGOLA AFRICA

ANGOLA

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BIBLIOGRAFIA

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Boletim Informativo: 1970 Benguela 1995, Hera gráfica, Maio 1995.

DOCUMENTOS

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50.Constituição

Pastoral “Gaudium et Spes”, 24a ed., Petrópolis, Vozes, 1995.

51.Decreto

“Ad Gentes”, 24a ed., Petrópolis, Vozes, 1995.

52.Decreto

“Unitatis Redintegratio”, 24a ed., Petróplis, vozes, 1995.

53.Diário da Família Maria dos Anjos, Janeiro-Dezembro de 1994, Benguela-Angola. 54.João

Paulo II, Ecclesia in África, Exotação Apostólica Pós-Sinodal do Santo padre

João Paulo II, Paulus, S.P. 1995. 55.___________,

Redemptor Missio; A validade permanente do mandato apostólico,

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VI, “Evangelii Nuntiandi”; A evangelização no mundo contemporrâneo;

exortação apostólica, S.P., 1975.

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