Saber e Sentir. Uma etnografia da aprendizagem da Biomedicina

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Descrição do Produto

Saber e Sentir: uma etnografia da aprendizagem da biomedicina Octavio Bonet

Copyright® 2004 by Octavio Bonet Todos os direitos desta edição reservados à F u n d a ç ã o O s w a l d o C r u z / E d it o r a

ISBN: 85-7541-046-6 Projeto Gráfico: Angélica Mello

Capa: Danowski Design

Ilustração da Capa: A partir de desenho de HansArp, Bird of 111 Omen, 1951

Editoração Eletrônica: Guilherme Ashton

Revisão: Cíntia Bravo de Souza

Supervisão Editorial: M. Cecilia G. B. Moreira

Catalogação-na-fonte Centro de Informação Científica e Tecnológica Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca B712s

Bonet, Octavio Saber e sentir: uma etnografia da aprendizagem da biomedicina. / Octavio Bonet. — Rio de Janeiro: Editora F io c r u z , 2004. 136p. (Coleção Antropologia & Saúde) 1.Medicina. 2.Prática profissional. 3. Processo saúde-doença. I. Título. CDD-20.ed.-610.6952

2004 E d it o r a F io c r u z

Av. Brasil, 4036 - l 2 andar - sala 112 - Manguinhos 21040-361 - Rio de Janeiro - RJ Tels: (21) 3882-9039 e 3882-9041 Fax: (21) 3882-9006 e-mail: [email protected] http//:www.fiocruz.br/editora

S um ário

P refácio.................................................................................................... 7 A p resen ta çã o ..........................................................................................11 In trod u ção.............................................................................................. 15 1. A Ciência como O b jeto ....................................................................................23 2. O Hospital como T ea tro ................................................................ .................. 45

3. O ’Diagnóstico' como D ram a..........................................................................83 C on clu são........................................................................................... 117 R eferências B ib lio g r á fic a s............................................................... 121 A n e x o s ...............................................................................................127

Prefácio

O traço básico da proposta intelectual da Antropologia Social realizada nc Museu Nacional da UFRJ me parece ser o de uma combinação - de complexí dosagem - entre a consciência e o conhecimento das circunstâncias culturais e históricas da emergência de todo e qualquer fenômeno social e a realização dt pesquisas empíricas pontuais e densas. Isso nos valeu em alguns momentos sei desdenhados como ‘empiristas’, em muitos outros como ‘intelectualistas’. Umí boa tensão, de qualquer forma, que permitiu a materialização dessa disposição err centenas de teses aplicadas às mais variadas ordens de fenômenos e aos mais intrincados conjuntos de circunstâncias - desde o final dos anos 60. Este livro é versão de uma dissertação de mestrado construída dentro des­ se espírito instituinte: uma minuciosa e sensível etnografia da residência médica em um hospital da Província de Buenos Aires, em diálogo com hipóteses mais ambiciosas de compreensão da biomedicina como dimensão crucial da cultura ocidental moderna. Ao fazê-lo, permite um diálogo frutífero não apenas com os segmentos específicos, especializados, das ciências sociais (antropologia ou soci­ ologia da saúde, da doença, das emoções, da medicina etc.), mas também com a história e a ciência política ou com as próprias franjas dos saberes biomédicos conscientes da condição cultural de seus ideais e práticas. Tem também uma vantagem peculiar, ao se constituir em etnografia de um segmento da experiência médica no contexto cultural da Argentina, realizada por um argentino treinado na antropologia brasileira e atento à complexidade do desafio da comparação entre aquele país e o Brasil (mesmo que sua pesquisa não tenha sido formalmente comparativa). Com efeito, a relação entre Argentina e Brasil deveria ser considerada mais sistematicamente como um laboratório fecundo de comparação cultural. As duas sociedades têm consideráveis semelhanças no seu processo sóciohistórico e, ao mesmo tempo, notáveis diferenças - algumas costumeiramente su­ blinhadas pelo senso-comum na elaboração de uma identidade constrastiva de con­ sumo cotidiano. O conhecimento controlado desses écarts différentiels vem sendo felizmente propiciado por um intenso fluxo de estudantes e pesquisadores em antro­ pologia dos dois países - de que este trabalho é resultado e exemplo. 7

Outra vantagem crítica a sublinhar é a dedicação ao conhecimento etnográfico de uma manifestação empírica de uma das instituições mais cruciais de nossa cultura: a biomedicina. Embora o estatuto das unidades relevantes de significação na comparação antropológica seja hoje um dos focos de maior debate epistemológico, parece fora de dúvida que uma compreensão ‘etnológica’ das ‘sociedades modernas’ não pode prescindir da observação, descrição e modelização crítica de suas instituições centrais: a filosofia, a política, a economia, a arte e a ciência. Esta última, sobretudo, por sua centralidade nos jogos de verdade de nossa ideologia universalista, subtraiu-se sempre mais facilmente à contextualização e à relativização - usualmente exercitada nas sociedades ‘exóticas’ e nas fímbrias ‘exóticas’ de'nossa própria cultura. Octavio Bonet nos conduz a um dos nervos estruturantes da prática biomédica: a ‘residência médica’, ou seja, o recurso institucional que pretende ensejar a transição entre o treinamento teórico, livresco, abstrato, das faculdades de medicina, para o trato direto dos ‘doentes’ no contex­ to hospitalar. Aí se encena, com toda a delicadeza e grandeza dos espaços de transição social, o drama da correlação entre o ‘saber’ e o ‘sentir’, entre a trans­ missão da enorme carga de cultura objetiva acumulada em dois séculos pelas ciências biomédicas e a formação das disposições pessoais capazes de colocá-la em prática (a sua “cultura subjetiva”, nos termos de Simmel). A compreensão desse processo - bem descrito por Bonet como uma “ten­ são estruturante” - permite, em primeiro lugar, iluminar com novas nuances o tema central de nossa cultura: o embate/diálogo entre a disposição originária universalista, iluminista, que sustenta o empreendimento científico, e o reparo romântico, atento às ameaças de perda da totalidade, do fluxo, da intensidade e da imbricação entre sujeito e objeto. E fascinante ver como um enunciado tão abrangente e abstrato se corporifica exemplarmente nos dilemas, dúvidas e dra­ mas suscitados por essa singular instituição. Pode-se, em segundo lugar, compreender com estimulante clareza como o processo e a lógica institucionais vêm a ser experimentados pelos neófitos subme­ tidos ao doloroso rito de passagem. Ali estão, aliás, todos os sinais dessa experiên­ cia universal da passagem, modelizada desde Van Gennep em nossos saberes: suspensão da vida cotidiana, liminaridade, algum tipo de sofrimento físico-moral a inscrever profundamente nos sujeitos as lições da nova condição a que devem aceder. O que distingue esse ritual específico - e o toma mais radical - é o fato de que as escarificações propiciatórias se dão no contexto da freqüentação, observa­ ção e interpretação do sofrimento de outrem. Aparenta-se, assim, aos rituais de iniciação xamânica, em que também uma disposição terapêutica deverá ser pro8



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gressivamente adquirida. Deles porém se distingue pelo contexto de alta ‘raciona­ lização’ e ‘institucionalização’ desejada: o hospital moderno é um templo da ciên­ cia (tanto quanto da doença e do sofrimento) e seus oficiantes foram instruídos para ser os hierofantes de um saber objetivo universal. O confronto instituinte com a ‘totalidade’ dos pacientes concretos, com a ‘vida’ diretamente experimen­ tada nos seus limites (a mutilação, a dor, a morte), com a ‘sensibilidade’ negociada em cada gesto, olhar ou palavra, olho a olho, vai produzir a face dolorosa, vivencial, da tensão estruturante entre o saber e o sentir. Tal como já a enunciava Goethe, no começo do século XDÍ, desprezando seus contemporâneos ‘materialistas’: “Cinza é a árvore da sabedoria. E verde é a árvore de ouro da vida...” Aparenta-se também, sem dúvida, esse ritual, com os que buscam produzir em nossa cultura outros especialistas da tensão estruturante. Já escrevi sobre o modo como se pode entender à luz desse processo a formação de antropólogos e psicanalistas: trata-se de carreiras comprometidas, por um lado, com saberes estruturados como ciências e, por outro, altamente conscientes dos desafios da totalidade (mormente na mediação subjetiva do acesso à objetividade). O trabalho de campo e a formação psicanalítica poderiam ser comparados fertilmente com a resi­ dência médica analisada por Bonet - caracterizando-se esta última por sua maior proximidade do núcleo duro do fisicalismo cientificista da ciência ocidental. No outro extremo do leque de nossas carreiras ‘xamânicas’ laicas, estariam provavel­ mente as iniciações à carreira artística, em suas diferentes modalidades. A demonstração que nos oferece esta pesquisa do caráter instituinte dessa tensão, no cerne mesmo da formação dos agentes legítimos da biomedicina, per­ mite um grande refinamento da compreensão de todos os aspectos desse protéico empreendimento, ora opacizado pelas interpretações triunfalistas nativas, universalistas, ora achatado em críticas mais linearmente ‘românticas’ da perda de suas qualidades sensíveis. É bom deixar saber o leitor que o autor vem prosseguindo em sua tarefa de objetivar as tensões estruturantes do campo biomédico. Só um intenso, minucio­ so e crescente conhecimento etnográfico desse mundo social poderá nos habilitar a lidar mais lucidamente com as suas grandes benesses, com as suas grandes contradições, com os seus imprevisíveis destinos, enfim - que serão também os nossos, pessoais,' de todos e de cada um de nós, inevitavelmente, um dia. Luiz Fernando Dias Duarte Antropólogo, doutor em Antropologia e professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal doRio de Janeiro 9

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Apresentação

Em qualquer profissão o processo de aprendizagem representa um mo­ mento fundamental, pois é nele que são reproduzidos tanto o conhecimento teóri­ co quanto as práticas associadas. Na profissão médica, o processo de aprendizagem tem uma característica diferencial, que é a passagem pelas chamadas ‘residências médicas’. A entrada na residência implica a entrada ao hospital. E nesse ‘templo’ do saber médico que os residentes irão ‘aprender’ as rotinas práticas para saber atuar na profissão. Esse processo será fundamental não só porque é o momento em que aprenderão como ser médicos ‘na prática’, mas também porque, pela primeira vez, serão responsá­ veis pelo tratamento de um paciente. Esta última característica os coloca diante de uma ‘tensão estruturante’ da prática da biomedicina: a tensão entre a busca do saber e os sentimentos despertados nesse processo. A biomedicina apresenta-se dessa forma como uma das múltiplas possibilida­ des para tratar um problema geral da nossa cultura, a relação entre as dimensões cognitivas e emotivas. Tendo em mente essa tensão estruturante de nossa cultura, as perguntas que me guiaram, ao realizar a pesquisa, foram como a biomedicina lida teoricamente com essa tensão e como os residentes a enfrentam e a vivenciam. O presente trabalho etnográfico se insere no que se pode chamar, parafrasean­ do Geertz, de “estudos em hospitais” e não “de hospitais”. Isto porque a organização hospitalar só nos interessa na medida em que nos permite refletir sobre os aspectos mais gerais da constituição e da prática da disciplina que ali se desenvolvem. Uma aproximação antropológica-etnográfica à biomedicina remete-nos ao es­ tudo da ‘ciência em ação’ - o que se procura entender é como os cientistas trabalham. Inicio o primeiro capítulo deste livro com uma breve resenha dos estudos que foram agrupados sob a sigla STS (Social, Technology and Society). O inte­ resse por eles provém do fato de incluir a presente etnografia nos chamados “estudos em hospitais”, que estariam próximos das etnografias de laboratórios. Aproximando meu foco, centro-me nos estudos que se vêm realizando sobre a biomedicina, e também nos estudos feitos no marco da sociologia das profissões, da antropologia médica norte-americana e da sociologia francesa. 11

Uma vez delimitado o campo no qual se integrará o presente trabalho, passo então a apresentar o percurso pelo qual se construiu o modelo biomédico, em relação ao processo de racionalização e de individualização que se dá na cultura ocidental moderna desde o século XVI. Esse processo instituiu o dualismo entre os aspectos materiais e espirituais, no qual se funda a ‘tensão estruturante’, que é o fio condutor dos três capítulos. Nesse mesmo processo no qual se instaura um dualismo entre mente e corpo, entroniza-se o saber médico como autorizado (‘científico’) para falar do processo de saúde-doença, com o qual se oblitera esse conjunto de saberes que chamamos ‘medicinas românticas’. Contudo, essa obliteração não implica uma desaparição, mas uma relação de ‘englobamento’, portanto hierárquica, de maneira que, periodicamente e sob diferen­ tes formas, observa-se um retomo das preocupações suscitadas por esses saberes. Por isso, creio ver entre essas duas formas de compreender o processo de saúdedoença, o da ‘biomedicina’ e o das ‘medicinas românticas’, uma manifestação da ‘tensão estruturante’ no âmbito dos modelos que sustentam as práticas cotidianas. O tema do segundo capítulo está centrado principalmente na etnografia do hospital e da residência médica de um determinado pavilhão, com o fim de definir as categorias nele encontradas, delimitando as distintas ‘cotidianidades’ e as pre­ ocupações dos agentes. No início, mostro de que maneira ‘o hospital’ chegou a ser um espaço de ensino, após uma série de modificações internas, transforman­ do-se, dessa maneira, no ‘teatro’ onde é encenada uma série de ‘dramas’ que são produzidos e que reproduzem a ‘tensão estruturante’. O objetivo do capítulo é situar a investigação em um espaço físico com indiví­ duos reais, levando em conta suas preocupações e dúvidas. Justifica-se, assim, o título do capítulo - “O hospital como teatro”. Quero mostrar o teatro onde se produz essa aprendizagem de ‘ser médico’ e onde se manifesta a ‘tensão estruturante’. Uma vez objetivadas as categorias, teorizo acerca de como a própria estruturação das tarefas da residência em relação ao aprendizado atua como meio para diminuir os efeitos dessa ‘tensão estruturante’. Esta diminuição da tensão se faria por causa da implementação de um mecanismo ‘digitalizante’: a ‘passagem de sala da tarde’, que implica uma revalorização do momento em que a aprendiza­ gem se produz na ausência do paciente. Chamamos esse mecanismo de ‘digitalizante’ porque produz uma descontinuidade entre os residentes que partici­ pam do mecanismo e dos pacientes que dele estão ausentes. No terceiro capítulo, a atenção centra-se no ‘diagnóstico’, caracterizado como um ‘drama social’. Apresento três exemplos de dramas, escolhidos porque colocam em jogo tensões expressas entre as diferentes categorias objetivadas no capítulo 12

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anterior e entre os distintos mecanismos de funcionamento cotidiano do pavilhão. O ‘diagnóstico’ será tomado como o símbolo dominante do ‘drama social’, por­ que é ao redor dele que se manifestam as situações conflituosas no pavilhão. Dito de outro modo, as tensões entre as categorias têm um epicentro importante nos processos de diagnóstico. O diagnóstico também é importante porque é o objetivo da prática biomédica e, para ser alcançado, têm de ser respeitados determinados requisitos teóricos cha­ mados protocolos e algoritmos, que entram em tensão com os sentimentos que os residentes experimentam na prática. Por isso, tomo o diagnóstico em seus dois sentidos, como objetivo e como processo, como um dispositivo onde se manifesta a tensão estruturante ; já que, no processo de diagnóstico, esses sentimentos vivi­ dos na experiência cotidiana são postos de lado, e, no diagnóstico como resultado, esse sentir não tem lugar. Este livro foi resultado da minha dissertação de mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Uni­ versidade Federal do Rio de Janeiro. Gostaria de agradecer a todos os que inte­ gram esse programa por terem me proporcionado os meios para realizar a pesqui­ sa, muito especialmente a Luiz Fernando Dias Duarte, meu orientador, que soube dar a palavra exata, o texto-chave, a tranqüilidade necessária, assim como soube abandonar-me à produtiva intranqüilidade da dúvida não resolvida depois de algu­ mas de suas frutíferas intervenções. Quero também agradecer às agências financiadoras CNPq e Capes das quais fui bolsista entre os anos 1994 e 1996. Gostaria de mostrar meu reconhecimento, também, a um grande grupo de colegas e amigos que me acompanharam nos anos de pesquisa: Luís Edmundo, Daisy, Sara, Nilton, Ana Teresa, Alcio e a todos os integrantes da ‘turma Argenti­ na’, que ajudaram a sentir com que o ‘lá’ não estivesse tão distante. Particular­ mente, agradeço a duas pessoas maravilhosas: Gustavo e Ludmila, pois foi a partir daquele afortunado encontro com Gustavo na praça que tudo começou. A Lecticia de Vicenzi Braga, tenho uma imensa gratidão pela dedicação na leitura dos origi­ nais. Não poderia deixar de agradecer a Tatiana, que, com sua companhia e sua confiança, me ajuda a acreditar. Reservo o último parágrafo para expressar meu profundo agradecimento a todos os médicos do pavilhão, desde o chefe do serviço, que me permitiu realizar a pesquisa, até todos os outros que me receberam muito bem, sobretudo aos residentes que ‘persegui’ e que, apesar dos momentos difíceis partilhados, nunca me fecharam a porta ou deixaram de responder a alguma de minhas perguntas.

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Introdução

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Este estudo - uma etnografia da biomedicina - tem como objetivo acompa­ nhar o processo pelo qual um grupo de recém-formados em medicina, os residen­ tes, chegam a ser médicos. Busquei observar como os residentes aprendem, na prática, o habitus do trabalho médico, com a perspectiva de compreender como através dessa incorpo­ ração vão modelando suas subjetividades. O fio condutor deste trabalho - aqui chamado ‘tensão estruturante’ - refere-se à tensão que os residentes experimen­ tam no processo de aprendizagem. E estruturante porque se encontra na base epistemológica da biomedicina, e está fundamentando a ‘medicina vivida’ na cotidianidade de cada um deles. Para fazer esta etnografia, escolhi o hospital-escola de uma faculdade pú­ blica de medicina, localizado em uma cidade da Província de Buenos Aires, pelo fato de representar um ambiente de trabalho no qual se entrelaçam os aspectos acadêmicos e os aspectos da prática cotidiana. Esta prática, pelas características da alta complexidade do hospital, permitiu a observação do desenvolvimento pro­ fissional diante de patologias dos mais diferentes tipos. Por que escolher um hospital público? Talvez o motivo mais significativo seja porque lá a prática médica está sujeita a maiores tensões sociais, psicológicas e econômicas do que nos hospitais do âmbito privado, e creio que isto vai influenciar fortemente a formação da subjetividade do residente. Também influenciou a escolha o fato de que, em minha representação imaginária do hospital, encontra-se um hos­ pital público e não um privado. Influenciou ainda o fato de que o atendimento é gratuito, o que deixa sinais diferenciais nas relações médico-paciente; relações que exibem situações exemplares para que a ‘tensão estruturante’ se manifeste. Por que tomar a biomedicina como o objeto? A biomedicina afeta a todos que vivem nesta sociedade: faz-nos tomar posição diante dela, ou para defendê-la ou para rejeitá-la; maravilha-nos e assusta-nos quando lemos ‘coisas’ feitas em seu nome. Sempre exige de nós uma tomada de posição. Como diz Clavreul (1983: 27):

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coloca-nos em uma posição dividida. Por um lado, porque, chegado o caso, só pedimos para submetermos a ele [o discurso médico]. Por outro

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lado, porque não podemos aceitar sem rebelar-nos a ideologia que esse discurso afirma desavergonhadamente para perpetuar-se no poder.

Essa influência recai não só sobre os leigos, mas também sobre os médicos e, principalmente, sobre os jovens que estão se habituando a ‘ser médicos’. Eles começam a fazer parte da biomedicina, e estão, naquele momento, de um lado, seduzidos pelo que ela representa; de outro, se rebelam contra a posição em que ela os coloca: divididos entre o que precisam fazer para ‘saber’ e o que ‘sentem’ ao fazer. ‘Saber e sentir’, esta é uma manifestação da tensão estruturante que os mantêm, por meio dá qual eles se constituem e, em muitas ocasiões, padecem. Essa tensão não é só dos que se formam na biomedicina, mas de todos os que de alguma maneira fazem algo que nossa cultura ocidental moderna chamou de ‘científico’. Contudo, para que seja assim chamado, tem de separar o ‘objeti­ vo’, o ‘saber’, e o ‘subjetivo’, o ‘sentir’. A diferença entre nós, antropólogos, e eles, médicos, é que estes últimos trabalham, no final das contas, com a vida e a morte. E se têm a idéia de que o ‘sentir’ os perturba para ‘saber’ racionalmente o que fazer, esta oposição converte-se em uma tensão poderosa. A importância da biomedicina na cultura ocidental moderna já foi assinalada por Becker (1977), ao colocar a biomedicina como o protótipo das profissões entendidas como ocupações, possuindo o monopólio de um corpo de conheci­ mentos esotéricos e difíceis que é considerado necessário para o funcionamento da sociedade.1 Então por que não entrar no hospital com uma ótica diferente: a antropológica? Por que não tentar desnaturalizar o que pensava sobre os médicos e acompanhá-los, falando com eles? Meu objetivo foi tentar ‘ver’ a partir do outro lado, sair do lugar em que sempre estive - o de paciente - , colocando-me em uma terceira posição: a de investigador, o antropólogo no hospital. A biomedicina representa, na cultura ocidental moderna, o saber ‘autoriza­ do’ sobre o processo de saúde-doença. Tal característica faz com que ela deslo­ que um amplo conjunto de saberes, que, sob óticas diferentes, tentam responder às mesmas questões. Aqui, esse conjunto de saberes será agrupado na categoria de ‘medicinas românticas’, pois a busca da experiência ‘totalizante’ da pessoa diante do processo de saúde-doença, a fim de efetivar o tratamento, será a princi­ pal característica que as associam, que as unem, que as conciliam. Uma última característica que marca a importância de estudar a biomedicina é que, através do estudo de sua constituição como disciplina científica, podemos exemplificar o processo de racionalização e individualização que se deu na cultura ocidental moderna desde o século XVI.

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Por que eleger a clínica médica e não outra especialidade? Na medicina superespecializada que hoje predomina no Ocidente, é a clínica que representa a biomedicina, como foi expresso por Hahn (1985: 51): A Medicina Interna é a mente, senão o coração, da medicina ocidental, a biomedicina. E chamada simplesmente ‘medicina’. É a medicina da medi­ cina (...). A Medicina Interna é, talvez, a mais racional das especialidades biomédicas, promovendo a ação pelo cálculo sistemático da patofisiologia interna do paciente.

A E x pe r iê n c ia d e C ampo Certo dia, durante a tarde, enquanto fazia o trabalho de campo, entrei no pavilhão do hospital sem o ‘distintivo médico’ e uma enfermeira me perguntou: ‘Voce precisa de alguma coisa?’. Foi assim que me dei conta do significado da pergunta que me fez o chefe do serviço no primeiro dia do trabalho de campo, amda antes de começar a minha primeira ‘passagem de sala’: ‘Trouxe jaleco?’; como não tinha, falei que não. Aí ele me respondeu: ‘Venha que lhe empresto um’' Foi precisamente nesse dia, quando quis entrar no pavilhão sem jaleco, que me dei conta da importância simbólica dessa gentileza: com ela, o médico estava me dando uma informação valiosa. Certamente, poder-se-ia dizer que, na realidade, era somente uma questão de aparência e de limpeza. Foi assim que pensei naquele momento. Porém, o que aconteceu depois levou-me a pensar que o jaleco simbo­ lizava mais amplamente o médico. Essa foi a primeira lição; era como se ele esti­ vesse me dizendo: ‘se você quer nos entender, tem que começar pondo um jale­ co . O saber popular diz que o hábito não faz o monge, mas ajuda. Foi assim que, de outubro a janeiro de 1996, coloquei um jaleco e compar­ tilhei a rotina de um grupo de médicos de um pavilhão de clínica, principalmente a dos residentes que, além de serem os que estavam aprendendo o ‘ofício de ser médico’, eram os que estavam em aula todas as tardes e nas ‘passagens de sala’. Desde esse dia, confrontei-me com dois problemas: o do estranhamento e o da relação com os sujeitos investigados. Estes estão relacionados com a mesma questão: a da objetividade que, neste trabalho, apresenta também um problema reflexivo. Minha viagem não era a terras distantes; não naveguei em canoas para me encontrar com o meu ‘objeto de estudo’, porém sempre tive uma sensação de estra­ nheza ao entrar no hospital para fazer o trabalho de campo; ele era para mim um lugar desconhecido - próximo e distante ao mesmo tempo. Era próximo porque se tratava 17

do hospital da cidade onde havia vivido os últimos anos, já tendo uma idéia do que significava esse hospital para a medicina naquele local. Além do mais, muitos residen­ tes vieram à cidade, como eu, para estudar, o que nos colocava vivendo experiências semelhantes. De um lado, como eu era um antropólogo nativo, meu estranhamento antropológico poderia estar comprometido. Mas, de outro, eu era um estranho, e essa sensação de ser de fora apresentava-se com força maior quando, em determinadas situações, alusões ao ‘antropólogo’ eram feitas, como na situação em que uma médica me disse, como se fosse a coisa mais louca do mundo: ‘E verdade que você é antro­ pólogo e está fazendo um trabalho sobre médicos?’ Outro fato indicador da distância era que eu ‘vinha do Brasil’. De alguma forma, eu era um ‘estranho semelhante’. Contudo, na realidade, ao começar meu trabalho, ‘ser próximo” não me preocupava, já que, como tinha lido sobre a complexidade da categoria ‘distân­ cia’, sabia que “o fato de dois indivíduos pertencerem à mesma sociedade não significa que sejam mais próximos do que se fossem de sociedades diferentes” (Velho, 1978: 38). Além do mais, não podia evitar o que havia vivido ao crescer e ter experiências semelhantes às deles; da mesma forma, um antropólogo que estu­ da culturas tradicionais não pode evitar observá-las a partir da formação social na qual foi socializado. Meu objetivo era pensarem que medida esse jogo da proximi­ dade e da distância influía nas relações que eu mantinha com os médicos. Minha preocupação era precisamente as relações que estabeleceria com eles. Não esperava passar despercebido, porque mesmo nos momentos em que houvesse atitude de silêncio e retraimento, lá estava eu. Além do mais, o passar despercebido pode ser uma conseqüência da não aceitação pelo grupo, algo seme­ lhante ao que viveu Geertz (1987: 339), em Bali, quando a população se compor­ tava “como se simplesmente não existíssemos”. Se isso me causava grandes preocupações, outras não menores me eram também geradas pela possibilidade de, no começo, tomar-me ‘amigo’. Não sabia como ia controlar a situação, nem como ela influiria em minhas observações. Os residentes eram todos jovens, o que aumentava a facilidade para estabelecermos relações de amizade, pois, caso eu mantivesse uma atitude distante, poderia ser tomado como antipatia ou recusa, ocasionando a mesma atitude deles para comi­ go; porém, se eu sustentasse uma relação muito próxima, tinha medo me desviar dos objetivos traçados. Sem me dar conta, estava procurando no campo o conflito que eu mesmo vivia ao pesquisar: caso eu me deixasse levar pelo que ‘sentia’, isso poderia inter­ ferir no que procurava ‘saber’. Inconscientemente, estava ‘vivendo’ no interior o que procurava ‘fora’ em meu objeto. 18

Escrevendo, meses depois, esta introdução, me dei conta de que, naquele momento, me deixei levar pelo que acontecia, procurando tomar nota do quando e do modo como estas preocupações se me apresentavam. De alguma forma, vinha pensando nesse problema desde que assisti a uma conferência de Loic Wacquant, no Museu Nacional, dias antes de ir para o campo. Nessa ocasião, ele falou sobre problemas que afligem o antropólogo e o trabalho de campo, assina­ lando a importância da relação de amizade para o desenvolvimento do trabalho, sobre como aqueles que tinham sido seus informantes foram seus amigos e como o antropólogo é conquistado pelas redes sociais que se estabelecem no campo. A questão, para Wacquant, não era se afastar das relações de amizade, mas sim de se apropriar delas de modo reflexivo, mas também advertiu: não era tarefa fácil. Foi assim que cheguei ao campo. Não sabia bem como fazê-lo, de forma que comecei a participar das ‘passagens de sala’ (no começo das manhãs) nas quais eu era mais um, perdido, entre o grupo de alunos e médicos. Os problemas começavam depois das passagens, por volta das onze da manhã, quando cada um dos residentes saía para cumprir uma tarefa diferente, e os médicos da casa, outras. Eu sentia uma espécie de desespero por não saber com quem ir ou o que fazer - não podia estar com todos, e tinha de decidir com quem ficar. Tais decisões me faziam pensar o quanto de casualidade existe no trabalho de campo: tinha tantos lugares para èstar, tantos quartos para entrar que as coisas pareciam acontecer sem esperar por mim Decidi que um ponto importante seria acompanhar os ‘chefes dos residen­ tes’ quando faziam as ‘passagens de sala’ com os residentes do primeiro ano, podendo, desse modo, observar como é o processo de ensino de um ofício;2 mas, nesse momento, talvez, estivesse acontecendo, em um outro quarto do pavilhão, uma situação que teria sido útil para mim. Por isso, pensava que na observação, no trabalho de campo antropológico, joga-se muito com a sorte para estar no lugar certo no momento certo, pelo menos no começo, quando ainda não se conhecem os tempos e os costumes desse terreno particular. Aos poucos, vi-me envolvido nas redes sociais existentes no pavilhão, mas de uma forma curiosa: estava e não estava. O método legado por Malinowski - a “observação participante” —é uma mistura esquisita de observação e isolamento, participação e intrometimento. Para Geertz (1989: 93), essa participação não pas­ sa de “mera expressão de desejos”, mas creio que de alguma maneira e, em alguns momentos, temos uma participação ativa. O trabalho de campo é essa mistura de observação participante e participa­ ção observante, já que entramos e saímos da cena. Mais de uma vez aconteceu19

me, após uma conversa na ‘sala da residência’, refletir sobre o fato de ter me sentido integrado, dialogando, perguntando e respondendo, emitindo opiniões. Os momentos em que se tem essa sensação são muito gratificantes; da mesma forma que me angustiava ficar em dúvida quanto ao entrar ou não no quarto da residên­ cia, quando os residentes reuniam-se ali depois do almoço. Encontrei-me mais de uma vez, sem me dar conta, indo ver uma radiogra­ fia ou uma tomografia - como se fosse entender alguma coisa - , quando os professores diziam aos presentes que se aproximassem para vê-la. Entrava e saía; por alguns momentos, era um observador mudo e às vezes incômodo - ‘o relator oficial do pavilhão’ - , mas, em outros, era um interlocutor com quem se podia falar sobre diversas coisas, tivessem ou não relação com a biomedicina. Aos poucos, comecei a me tomar parte da paisagem, embora saiba perfeita­ mente que nunca fui um ‘deles’, dado que as transformações de que nos fala DaMatta (1978), do exótico em familiar e dó familiar em exótico, sempre deixam vestígios. Embora sejam diferentes, tanto o antropólogo, que procura objetivar o sujeito à sua frente, quanto os ‘informantes’, que procuram seguir com o seu trabalho tranqüila­ mente, acabam obtendo resultados distintos. O antropólogo se dá conta de que tem um grupo de pessoas com as quais estabeleceu uma relação afetiva que ultrapassa as relações de trabalho, assim como os informantes descobrem-se perguntando ao antropólogo como vai o seu trabalho, se, do que está observando, pode extrair o que procura, perguntando-lhe por matérias teóricas da antropologia, tentando análises de alguma situação que relacione ambas as práticas, ou, por que não?, pedindo-lhe para 1er as anotações do seu cademo de campo. Nesse jogo, o antropólogo toma consciência de que é observado tanto quanto observa; tive essa surpreendente certeza ao elevar a vista depois de escrever no cademo de notas e ver um dos ‘residentes’ tentando 1er por cima do meu ombro; ou também no dia em que uma das residentes me disse: “por que você muda o tom da voz quando pergunta alguma coisa que é de seu interesse,?”. Isso demonstroume que se tratava de um co-nascimento. Nesse jogo, no qual eu construía ‘meus nativos’, eles me construíram como antropólogo. Um aspecto do trabalho de campo que cabe ressaltar agora e que me preo­ cupou durante toda a investigação é o que se refere à inserção desta pesquisa no mundo cotidiano do pavilhão. E estou falando da capacidade performativa das investigações desenvolvidas pelas ciências sociais. Por causa de um acordo tácito dos médicos do pavilhão comigo, eles teriam um retomo do que eu fazia e, em função disso, freqüentemente me ;perguntavam se já tinha as conclusões.

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Ao trabalhar em nossa própria sociedade, o ‘ali’ e o ‘aqui’ aproximam-se fortemente. Será uma ingenuidade pensar que o que se escreveu não terá efeitos sobre a visão que eles têm de si mesmos? Ou será uma questão narcisístíca pensar que o constructo que alguém faz pode influir no que cotidianamente realizam os próprios agentes? Os executivos mandaram Boltanski 1er Bourdieu e outros soci­ ólogos quando Boltanski lhes perguntou o que era um executivo (Becker, Boltanski & Claverie, 1995); ele assinala que o trabalho feito pelo sociólogo será inserido no mundo dos agentes e, dessa forma, é preciso levar em conta a questão. Mas como levá-la em conta? Como trabalhar a questão de saber se as observações podem motivar problemas entre os próprios agentes a que se refere a investigação? Essa é outra parte do que não se fala. A necessidade de pelo menos colocar a questão em pauta é derivada do fato de que os próprios agentes a terem exposto em toda a sua importância quando me diziam que havia coisas que não poderiam ser escri­ tas, de forma semelhante à pergunta dirigida a mim, durante uma entrevista — você está gravando?” - antes de fazer referência a um colega. Essas interações, ao não serem escritas, são verdadeiros não-fatos, embora produzam seus efeitos. Quis expor, mesmo na introdução, essas questões que o trabalho de campo despertava em mim porque, sem desejar fazer uma investigação personalista e sem querer cair em uma reflexividade narcisista (Bourdieu & Wacquant, 1995), conside­ rei que não podia pesquisar a relação entre o ‘saber’ e o ‘sentir’ na aprendizagem da biomedicina fazendo uma pesquisa em que o antropólogo estivesse completamente diluído, porque, como já foi expresso, essa tensão estruturante da biomedicina tam­ bém é a da antropologia.

N otas 1

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Este coipo de conhecimentos constitui o que Becker (1977: 93) denominou símbolo de uma profissão ideal, que seria “um conjunto de idéias acerca da classe de trabalho feito por uma profissão real, suas relações com membros de outras profissões, suas relações com seus clientes e o público em geral, o caráter das motivações de seus membros e a classe de recrutamento e treinamento necessários para sua perpetuação”. Bourdieu e Wacquant (1995: 163) referem-se ao ensino de um ofício dizendo: “não existe outra maneira de adquirir os fundamentos de uma prática (inclusive a científica) que não seja praticando-a com ajuda de algum guia ou treinador; quem segure e tranqüilize, quem dê o exemplo e corrija enunciando, na situação, preceitos diretamente aplicáveis ao caso particular “ (grifos meus).

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1 A Ciência como Objeto

A E tnografia da C iência Os estudos chamados de etnografia da ciência integram um amplo campo de investigações que tomam como objeto o processo de produção de conheci­ mento. Tal campo interdisciplinar está associado a um conjunto de instituições específicas cujos nomes são, freqüentemente, utilizados para denominá-las. Assim, por exemplo, ele é chamado de Society for Social Studies of Science (4S) ou European Association for the Studies of Science and Technology (EASST). Porém, mais comumente, é chamado Science, Technology and Society (STS), sendo esta última sigla utilizada para referir-se ao campo em seu conjunto. Sem esquecer os diferentes enfoques por meio dos quais os investigadores se aproximam dos objetos de estudo, uma característica que os aglutina é a visão da ciência como produto de uma construção social, marcada pelas contingências situacionais e pelos interesses específicos dos contextos nos quais tais constru­ ções são realizadas. Essa é a razão pela qual se toma relevante, para o resultado obtido, saber o que acontece no processo de construção dos fatos científicos. Não é difícil perceber que a afirmação do parágrafo anterior implica uma visão diferenciada da ciência, que, em certa medida, se opõe a uma outra, carac­ terizada por ser desinteressada, associai, e que opera com normas universais para a construção de conhecimento. Na nova visão, o campo científico será, como foi dito por Bourdieu (1976: 88): “um campo como qualquer outro com suas relações de força e seus monopólios, suas lutas e suas estratégias, seus interesses e seus lucros, mas onde todas essas invariantes recebem formas específicas”. Bruno Latour (1989) usa a figura dos dois rostos de Janus para representar as duas visões da ciência: uma seria austera, segura, regulamentada e formalizada; a outra seria viva, cambiante e incerta: a ciência ‘feita’ e a ciência ‘em constru­ ção’. Na segunda, entram em jogo todas as circunstâncias que envolvem a cons­

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trução de conhecimento, mas na passagem da segunda para a primeira se perde o contextual da produção científica. Pode-se recuperar esse contexto perguntando-se pela forma ‘como’ os cien­ tistas trabalham e sobre os caminhos pelos quais um enunciado ‘chega’ a ser incor­ porado pela ciência ‘feita’. A perspectiva dos investigadores, oriundos de distintas disciplinas, que conformam o campo das STS, é a de responder a este ‘como’. Em diversos artigos que tentam mapear esse campo (Star, 1988; Restivo, 1988; Hess, 1993; Traweek, 1993), a sociologia mertoniana é qualificada como o paradigma mais influente no começo desses estudos nos Estados Unidos,1 nos quais se focalizava a estrutura social e as instituições da ciência, deixando aos filósofos a tarefa de teorizar sobre os conteúdos (Hess, 1993). A ciência era toma­ da como uma ocupação com certos valores distintivos que se reforçavam com as discussões entre pares. A partir dessá perspectiva, fez-se necessário desenvolver uma série de instrumentos estatísticos que eram aplicados na análise do Science Citation Index (Traweek, 1993). Esses autores também convergem ao afirmarem que, no início dos anos 60, os primeiros trabalhos na sociologia das ciências começaram a ser questionados. Nesse processo, tem fundamental importância o aparecimento da obra A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn (1962), que propunha uma visão mais sociológica da produção de conhecimento. Mas é nos anos 70 que se estabe­ lece, segundo Restivo (1988), um divisor de águas que separa a velha sociologia das ciências - dominada sociologia mertoniana - e a nova sociologia, que trans­ formara os STS nesse conjunto de investigações do qual participam pelo menos vinte disciplinas diferentes. Também nos anos 70 começam a aparecer, em algumas universidades dos Estados Unidos e da Europa, centros, departamentos e programas que reúnem esses investigadores. Segundo Star (1988: 199), “os primeiros programas ‘STS’ (...) eram freqüentemente lares acadêmicos para a ciência crítica, isto é, estudos que demonstravam bias (raça, gênero, classe) ou perigos (nuclear, lixo tóxico, recombinação de DNA) no trabalho científico”. Se ressaltei que os programas STS eram em seus começos uma visão crítica da ciência, como se refere Star na citação anterior, não se pode deixar de notar que Hess (1993: 18) assinala a aparição do que chama de “STS críticas”, que abarcariam uma “série de redes intelectuais vinculadas, mas entre elas não há uma co-citação fechada, nem uma simples eõntranarrativa, nem diálogos de pro­ gramas articulados”. Estas STS críticas buscariam forçar os STS a retomar suas raízes radicais em movimentos sociais, tais como o feminismo, a saúde da mu­ lher, os direitos civis, o pacifismo etc.2 24

Dentro dos STS, pode-se diferenciar um ramo conhecido como Social Studies of Knowledge (SSK), que incorpora em seu campo uma série de estudos etnográficos chamados ‘estudos de laboratórios’. Dos investigadores que confor­ mam esse grupo, podem-se citar, entre muitos outros, Karen Knorr-Cetina, Bruno Latour e Steve Woolgar. Hess (1993) sustenta que os antropólogos começaram a estudar a ciência e a tecnologia contemporânea recentemente, embora já existisse uma ampla relação entre os SSK e a antropologia. Nessa relação, a antropologia forneceu os recursos metodológicos com os quais se realizavam os SSK. Os investigadores interessa­ dos em estudar a ciência ‘em construção’ e que se valeram dos recursos antropo­ lógicos foram os que produziram os ‘estudos de laboratório’. Nestes, a ênfase recai sobre a observação in situ da atividade científica. Essas ‘etnografias de laboratório’ buscam “a produção de uma descrição do trabalho científico no pos­ sível não obstruída pela reconstrução retrospectiva” (Woolgar, 1982: 483). Um clássico das ‘etnografias de laboratório’ é o estudo, de Latour e Woolgar, La Vie de Laboratoire (1988). Nele, os autores buscam uma aproximação com a ciência: contornando o discurso dos sábios, familiarizando-se com a produção dos fatos, para depois retomar sobre si e dar conta do que os investiga­ dores fizeram numa metalinguagem que nada deve à linguagem que se tenta analisar. Em suma: trata-se de fazer o que todos os etnógrafos fazem e de aplicar às ciências a deontologia habitual das ciências huma­ nas: familiarizar-se com um terreno permanecendo independente e à dis­ tância. (Latour & Woolgar 1988: 23)

Posteriormente, Latour e Woolgar afirmam que não fizeram tudo o que etnógrafos deveriam, posto que não tentaram reconstruir o mundo vivido pelos informantes. Sobre isso, eles comentam: “tomamos distância sem procurar ser psicologicamente justos” (Latour & Woolgar, 1988: 31). Os recursos que eles tomam da antropologia são a observação participante e o distanciamento. Este último recurso é o que nos permite contrapor o trabalho de Latour e Woolgar ao de Karen Knorr-Cetina. Knorr-Cetina (1981) considera que os objetos científicos e os fatos científicos são derivados de decisões, podendo, assim, ser desconstruídos pela imposição de decisões alternativas. Por essa razão, considera que a seletividade das decisões incor­ poradas nos trabalhos é também um tópico de investigação. Assim, define o laborató­ rio como uma mera “acumulação local de materializações de seleções prévias”. Para poder estudar esses processos seletivos, a autora assinala a necessi­ dade de contar com urtia ‘metodologia sensitiva’ por ela oposta a uma ‘metodologia 25

fria’. Essa metodologia sensitiva requer “antes de mais nada um compromisso metodológico no lugar de uma separação; contato em vez de distância (grifo meu); interesse em vez de desinteresse; intersubjetividade metodológica (grifo da auto­ ra) em vez de neutralidade” (Knorr-Cetina, 1981: 17). O objetivo, ao utilizar essa metodologia sensitiva, é chegar a uma “construtividade descentrada”. Em outro trabalho, Woolgar (1982) defende uma orientação que integre o pesquisador para os estudos de laboratório, falando de uma etnografia reflexiva, provavelmente influenciado por um giro personalista de uma parte da antropologia norte-americana no início dos anos 80. Nesse tipo de etnografia, o interesse não se encontra na descrição de tal ou qual laboratório, mas no ponto em que esses estudos etnográficos permitem refletir sobre aspectos objetivados de nossa cultura. As prá­ ticas de laboratório só são interessantes na medida em que informam sobre as prá­ ticas de raciocínio em geral. Essa apropriação dos recursos antropológicos fez com que Latour (apud Hess, 1993) considerasse a possibilidade de realizar uma antropologia da ciência “sem antropólogos”. A isso, Hess (1993) responde que tais trabalhos não são etnografias antropológicas, parecendo-se mais com tratados de filosofia empírica. Por isso, chama os SSK e os STS críticos para o estabelecimento de um diálogo construtivo que, baseado na antropologia, incorpore temáticas de classe, gênero, raça etc. Contudo, essa relação se estabeleceria não através de perguntas sobre como os conceitos de “classe, gênero e raça são úteis à ciência e à tecnologia, mas esta tradição poderia perguntar-se o que a ciência e tecnologia significam para diferentes grupos de gente assinalados pelas categorias culturalmente significantes de classe, gênero, raça, etc.” (Hess, 993: 21). As investigações sobre a biomedicina começaram há várias décadas, mas esses trabalhos foram realizados fundamentalmente no marco da sociologia das profissões. Assim, Freidson (1978). tenta resgatar a organização social, política e econômica da profissão médica e, já nas primeiras linhas de seu trabalho, assinala que ele se constitui “numa ampla análise de uma profissão”; todavia, no prólogo, afirma que sua estratégia se assentou na análise do conhecimento a partir das práticas de seus portadores concretos (o que o aproxima dos STS). Para realizar uma análise desse tipo sem fazer uma etnografia, o autor empreende uma descri­ ção das práticas médicas de consultório e de hospitais. Também no marco da sociologia americana, pode-se citar Becker (1961), que realiza um estudo intensivo sobre a forma pela qual os estudantes de medicina adquirem as normas do universo profissional. Também aqui se inscreve Parsons, que desenvolve o conceito de ‘papel de doente’ e realiza a análise da profissão 26

médica como uma prática liberal. Da mesma forma, não se pode deixar de menci­ onar o trabalho realizado por Goffman, Internados (1988), no qual desenvolve ama excelente etnografia de um hospital psiquiátrico. Embora com um interesse distinto deste estudo, ele focaliza fundamentalmente o mundo social dos pacientes internados, e não as práticas dos médicos psiquiatras da instituição, analisadas no capítulo final, quando trata da relação do modelo médico e da hospitalização psi­ quiátrica. Dentro desse tipo de enfoque, a quantidade de trabalhos a enumerar seria muito extensa, escapando ao meu objetivo. Outro importante conjunto de investigações que conforma o campo da antropologia médica norte-americana abarca os estudos interculturais dos siste­ mas médicos tomando uma metodologia mais etnográfica (Good, 1993; Good et al., 1992). Nesse enfoque, a biomedicina seria uma etnomedicina entre outros sistemas médicos. Estes autores sustentam que a biomedicina deve ser apreendida em sua dimensão histórica, social e cultural. Com tal objetivo, realizaram investigações a fim de captar as práticas médicas contextualizadas (Hahn, 1985; Kleinman, 1978; Taussig, 1992; Helman, 1985).3Em trabalho recente, Good (1995) assinala que os estudos antropológicos atuais da biomedicina incluem áreas como a imunologia, o projeto genoma humano, a tecnologia reprodutiva, a aprendizagem médica e in­ vestigações sobre Aids, colocando essas investigações numa relação de complementaridade com os projetos dos STS. Deve-se também mencionar aqui os estudos desenvolvidos por investigado­ res franceses que trabalham com temáticas relacionadas com a biomedicina (Clavreul, 1983;Baszanger, 1981,1983,1991;Foucault, 1991;Herzlich&Pierret, 1991,1992), ou outros que focalizam a relação desta com as ‘medicinas paralelas’ (Elziére, 1986; Muel-Dreyfus, 1984).

A B iom ed icin a e as M e d icinas R omânticas SURCIMENTO E HECEMONIZAÇÃO DO MODELO BIOMÉDICO

Não creio estar generalizando muito ao afirmar que, em todas as socieda­ des, é encontrado um conjunto de representações e práticas que tenta explicar e controlar as manifestações do processo de saúde-doença (em um sentido amplo). Tampouco seria um equívoco argumentar que essas representações e prá­ ticas se incluem num conjunto maior de afirmações sobre como cada sociedade explica seu posicionamento no mundo, afirmações essas que conformam um tipo 27

determinado de configuração social. Do mesmo modo, pode-se sustentar que essa visão de mundo não é um conjunto imutável: muda de um momento especí­ fico para outro, o que se faz de acordo com as possibilidades de transformação de que essa sociedade é capaz. Esses processos de saúde-doença colocam em relação duas ordens dife­ rentes de ‘realidade’: a ordem biológica e a ordem social. Encontrar-se-ão diferen­ ças significativas de acordo com a importância que cada sociedade atribua a uma ou a outra ordem. Algumas sociedades poderão explicar esses processos basean­ do-se em uma dessas ordens; em outras, essa possibilidade é impensável: ‘o bio­ lógico’ e ‘o social’ estão entrelaçados de tal modo que um prescinde do outro. O conjunto dessas representações e práticas que, na cultura ocidental mo­ derna, tem preeminência no tratamento nos processos de saúde-doença priorizou a ordem biológica, possibilitando, dessa forma, a configuração do que se conhece como ‘modelo biomédico’ ou biomedicina. Esse modelo se impôs como um saber sobre a doença4 e, manejado por um corpo de especialistas, o movimento ocasio­ nou o desenvolvimento de uma importante instituição: ‘as ciências médicas’. Engel (1977: 129), contestando aqueles que afirmavam a existência de uma crise na psiquiatria e que pretendiam ter uma prática mais próxima da biomedicina, em virtude de sua exatidão e objetividade, sustenta que a medicina também está em crise. De acordo com o autor, a causa dessa crise se produz pela adesão a um modelo de doença “não muito adequado às tarefas científicas e às responsabilidades sociais nem da medicina nem da psiquiatria”. Esse modelo de doença vai ser defini­ do como ‘biomédico’ e, tendo suas bases na biologia molecular, sua afirmação fun­ damental é que “a doença pode ser completamente explicada pelo desvio das normas de variáveis biossomáticas mensuráveis” (ibid., p. 130). Tal modelo não deixa espa­ ço para as dimensões sociais, psicológicas e comportamentais que teriam influência na doença. Tem, portanto, suas bases num reducionismo biologista no qual as doen­ ças seriam suficientemente explicadas pela linguagem da física e da química; do mesmo modo, as doenças ‘mentais’ se explicariam pelos transtornos físicos subjacentes. Assim, “a demonstração de um desvio bioquímico específico é geral­ mente um critério de diagnóstico específico da doença” (ibid, p. 131). A conceitualização que se faz da doença a partir da biomedicina é produto dessa visão ‘naturalizante’ e ‘objetivante’ que conclui serem as doenças “entida­ des caracterizadas pelo menos por dois ou três critérios: um agente etiológico reconhecido, um grupo de sinais e sintomas identificáveis e alterações anatômicas consistentes” (Hahn, 1982: 223). É assim que Camargo Jr. (1992a) sustenta que um grupo de representações integrantes do que chama de “doutrina médica implí28

cita” e que constituiriam a espinha dorsal das ciências médicas incluiriam uma definição de doenças do seguinte tipo: [as doenças] são entidades de existência concreta, fixa e imutável, de lugar para lugar e de pessoa para pessoa; as doenças se expressam por um conjunto de sinais e sintomas, que são manifestações de lesões, que devem ser buscadas por sua vez no âmago do organismo e corrigidas por algum tipo de intervenção concreta. (Camargo Jr., 1992a: 34)

Como mostrarei mais adiante, esta conceitualização da doença como algo meramente biológico teria importantes conseqüências na prática médica (Malterud, 1995; Taussig, 1992). Poderia dizer, fazendo minhas as palavras de Le Breton (1995:189), que as razões da eficácia da medicina seriam também as de sua falha: “recorrer a um corpo que não inclui o homem”. E com base nesta separação que se fundamentarão as críticas feitas à biomedicina a partir de seu próprio campo e do campo das ciências sociais na discussão surgida com a tentativa de explicar o crescimento dos modelos médi­ cos alternativos ou paralelos. Por causa dessa ênfase sobre a ordem biológica, a biomedicina se postula como universal; assim, seus resultados seriam comprovados em distintos contex­ tos sociais. Por isso, Charles Leslie e Frederick Dumm cunharam o termo “medi­ cina cosmopolita” para identificar “o sistema de conhecimento e de organização e prática profissional que emerge no Ocidente, mas que rapidamente passa a ser transcultural e proeminente em muitos locais não ocidentais durante o século XX” (apud Good, 1995: 462). Para a autora, este modelo transcultural é reinterpretado localmente e, sendo assim, as narrativas e os ‘fatos’ são empregados de acordo com as formas culturais específicas, o que lhe permitirá falar de ‘biomedicinas’ no plural, mais do que de um simples corpo de conhecimentos e de práticas. Essa tensão entre o local e o global, para ela, deveria ser o foco de novas investigações. Contudo, ainda que concorde com a existência de uma apropriação local da biomedicina, como ressaltarei nos capítulos posteriores, também observei que a mesma globalização faz com que as práticas estejam cada vez mais uniformizadas. Essa uniformização foi ocasionada pela circulação dos trabalhos científicos e pela aceitação de que os melhores recursos para tratar dos processos de saúde-doença são as bases racionalistas e cientificistas nas quais se fundamenta a biomedicina. A ênfase da biomedicina na ordem biológica não pode ser compreendida a menos que se faça referência ao processo social que levou a medicina a se desenvolver como uma disciplina científico-racional. Para isso, é necessário remontar às mudan­ ças que se produziam na visão do homem e do mundo nos séculos XVI e XVII. 29

Tomando os argumentos de Louis Dumont (1987, 1992), poderia falar de dois tipos de configuração sociais diferentes: por um lado, a configuração individualista-universalista; e, por outro, a configuração holista. A sociedade ocidental moderna se ajustaria ao primeiro tipo de configuração, dando preeminência ao indivíduo como valor. Dessa forma, em cada um deles estará representada a es­ sência da sociedade. À diferença desta, na ‘configuração holista’, como é apre­ sentada nas sociedades tradicionais, a ênfase recai sobre a sociedade em seu con­ junto, sendo a noção de indivíduo desconhecida.5 A ‘configuração’ individualista acarreta três importantes conseqüências: “a racionalização e o afastamento dõ sensível, a fragmentação dos domínios e a universalização dos saberes, a interiorização e psicologização dos sujeitos” (Duarte 1996:7). O desenvolvimento da biomedicina, para sua cristalização como modelo, necessitou do conjunto de transformações decorridas dessa configuração, bem como da nova concepção de pessoa que atribuiu ao indivíduo com valor supremo. Nos séculos XVI e XVII, na Europa ocidental, gerou-se uma ruptura epistemológica ocasionada pelo advento da filosofia mecanicista, que, em conjunto com os avanços que Copémico, Kepler e Galileu produziam na física, propõe uma nova forma de entender o mundo. Nesse momento, a explicação sobre a natureza com base nas concepções religiosas dá lugar a elucidações escritas em fórmulas matemáticas e abstratas. O mundo passa a ser explicado por analogia à máquina, ou seja, por meio de movimentos e combinações de elementos materiais. Na passagem da ciência contemplativa, com suas explicações religiosas, à ciência ativa e às explicações racionalistas, surge um mundo de fatos unicamente apreensíveis por um pensamento metódico e racional. Essa mudança na visão do mundo, afetando a ciência, formava parte de um processo que abarcava toda a sociedade. Para Elias (1994), esse processo se baseava na importância crescente, a partir do século XVI, da racionalização e da psicologização das relações estabelecidas entre os indivíduos. 0 que muda nesse momento são os habitus de vida dos homens, e Elias (1994: 487) caracterizava tais mudanças como aquelas que afetavam o homem em “seu comportamento (...), sua consciência e o con­ junto de sua estrutura impulsiva. As ‘circunstâncias’ que se modificam não são algo que vêm do ‘exterior’ dos seres humanos: são as relações entre os próprios seres humanos”. Nesse momento, quando se redefinem as relações entre os homens, modi­ fica-se também sua posição no mundo, porque o homem surge como sujeito individualizado. Na configuração do mundo renascentista, o homem não era dife­ renciado da trama comunitária e cósmica; mas, junto com a epistemologia 30

mecanicista, surge a noção de corpo como fator de individualização. Nas palavras de Le Breton (1995: 46): com o sentimento novo de ser um indivíduo, de ser ele-mesmo, antes de ser membro de uma comunidade, o corpo vai ser a fronteira precisa que marca a diferença de um homem com outro (...) a individualização do homem se faz ao mesmo tempo que a dessacralização da natureza (...). A definição moderna do corpo implica que o homem seja afastado do cos­ mo, afastado dos outros, afastado dele mesmo. O corpo é o resíduo desses três cortes.

Aquele conjunto de supostos explicativos - a filosofia mecanicista, com sua nova metodologia, o experimentalismo, que explicou com êxito o mundo cosmológico - vai ser aplicada ao microcosmo do orgânico. O mundo e o corpo devem ser explicados pelos mesmos princípios. Os primeiros anatomistas possibilitam a cristalização dessa nova con­ cepção sobre o corpo já que, com os conhecimentos derivados das dissecções iniciais, abre-se o caminho para uma biologia e uma medicina positivas. Mas o custo desse avanço é a instituição de um dualismo entre o corpo - o material e o homem - o espiritual. Nas palavras de Gusdorf (1974: 93): “o resultado não é obtido a não ser abandonando a realidade humana ao domínio do mate­ rial, do qual ela não é mais do que o prolongamento”. Este dualismo, freqüentemente associado à figura de Descartes, é, para Le Breton (1995), anterior a ele, já que a filosofia cartesiana estaria exibindo o pensa­ mento de uma época.6 O novo, no dualismo cartesiano, é que ele se sustenta sobre bases não religiosas, divide o indivíduo em corpo e espírito, colocando o valor só neste último. O espírito permanece sob a esfera de Deus, associado ao racional, e o corpo, descentrado do sujeito e indigno do pensamento, é representado, no século XVII, como “a parte menos humana do homem”. Com a instituição do dualismo material-espiritual, são estabelecidas as ba­ ses para a chamada ‘tensão estruturante’ da biomedicina; esse dualismo teve ou­ tras representações, assimilando o corporal ao mensurávél-objetivável e o espiri­ tual ao intangível, ao social, ao psicológico. Entre estes dois pólos do dualismo existe uma valoração e, desse modo, uma hierarquia, mas, desde o século XVII até nossos dias, produziu-se uma inversão nesta valoração: o valor, para Descar­ tes, estava no pólo do espírito; para a biomedicina, o valor está nas profundidades mensuráveis do corpo anatomizado. Esse corpo anatomizado começa a ser construído nos começos do século XIV com as primeiras dissecções oficiais nas universidades italianas, que ainda 31

eram controladas pela Igreja. Contudo, logo nos séculos XVI e XVII, sua pratica se estende em função de terem sido modificados os primeiros fins pedagogicos para dar lugar a espetáculos que se realizavam nos teatros anatomicos. Nesse processo de construção de um corpo separado do homem, têm importância fun­ damental Leonardo da Vinci (1452-1519) e Vesalio (1514-1564). Este último, com o seu tratado De Corporis Humani Fabrica (1543), abre o caminho para o conhe­ cimento anatômico e, com ele, dá lugar à representação moderna do corpo Desses corpos sem vida nasce a medicina moderna; tomando as palavras de Le Breton (1995: 60): “A medicina moderna nasce dessa fratura ontológica e a imagem que ela se faz do corpo humano tira sua fonte dessas representações anatômicas tomadas desses corpos sem vida, onde o homem nao esta presente . A biomedicina que se estava constituindo nesse momento recebeu outro grande impulso com a publicação da obra de Harvey (1628), na qual demonstra de uma forma rigorosa o processo de circulação do sangue. A racionalidade científico-mecanicista que, como se viu, e central na cons­ tituição da biomedicina ocasiona uma separação entre a arte de curar e uma disci­ plina das doenças. Tal separação coincide com o momento no qual a anatomia e a fisiologia estudadas em termos mecanicistas, se somam a um sistema classifiçatono das doenças (a patologia) que pode destruir a máquina representada no corpo humano. Com isto, a biomedicina transforma-se em um discurso sobre as doen­ ças deslocando a teorização spbre a saúde e o homem. ^ O surgimento da patologia, ou mais precisamente da anatomia patológica e o que, para Michel Foucault (1991), marca a aparição da medicina moderna. No fim do século XVIII, produziu-se uma mutação no saber médico, que consistiu em uma re o rg a n iz a ç ã o dos elementos constitutivos das patologias. Mais concretamente, aparece ao olhar do médico o que antes era invisível, e este surgimento permite realizar um discurso de estrutura científica sobre o indivíduo. A apançao da clínica tem estreita relação com essas modificações. Assim, a clínica “deve sua importância real ao fato de que é uma reorganização em profundidade nao só do discurso médico, mas da possibilidade mesma da linguagem sobre a doença (Foucault, 1991: 14). Esse processo de individualização que abarcava a cultura ocidental moder­ na também pode ser observado com relação ao surgimento da noção de ‘doente’ no seu sentido moderno; o que está intimamente associado à modificaçao das patologias predominantes nos distintos momentos da constituição da modernidade. Herzlich e Pierret (1991) argumentam que, em cada momento, existia uma doença que encarnava ‘o mal absoluto’. O primeiro momento que elas estabelece32

ram foi quando a doença esteve associada à idéia de número, impotência, exclusão e morte, esse foi o período das epidemias; a doença era vivida pela sociedade em seu conjunto, era um fenômeno coletivo. O segundo momento se caracterizaria pelo surgimento tuberculose, em que se produz uma modificação essencial: a doença já não vai ser um fenômeno de massas, passando a constituir uma questão individual e uma forma de vida. Com esta modificação, surge o conceito moderno de ‘doente’: a realidade e a imagem da doença cessaram de ser coletivas para ser as de um dano individual. O doente é o indivíduo, sem que seu vizinho tenha qualquer coisa a ver com isso. Sua doença não constitui nem uma adver­ tência, nem uma ameaça para seu entorno. Na sua realidade orgânica, só concerne a ele. (Herzlich & Pierret, 1991: 77)

Com a transformação do adoecer, que agora vai ser individual e que vai ocasionar a morte lentamente (a doença como forma de vida), surge o ‘doente’ com status e estigma. A biomedicina como ciência das doenças e “através das categorias de: do­ ença, entidade mórbida, corpo doente, organismo, fato patológico, lesão, sintoma etc., elaboradas nos períodos clássicos, se instaura como um discurso sobre objetividades, discurso que institui a doença e o corpo como temas de enunciados positivos, científicos” (Luz, 1988: 91). Do mesmo modo, Camargo Jr. (1993a: 30) afirma que a medicina encontrada a partir da anatomia clínica é uma medicina do corpo, das lesões e das doenças, na qual “o corpo humano (...) é dividido em sistemas, agrupados segundo as propriedades isoladas por cada uma das discipli­ nas articuladas em seu discurso”.8 Constata-se, assim, que, no processo de cristalização da biomedicina, ocor­ reu um crescente processo de ‘digitalização’ manifestado na ruptura, ou na produ­ ção de descontinuidades nas totalidades analógicas que representavam o homem com o mundo, com os outros homens e consigo mesmo. Da mesma forma, essa ‘digitalização’ se manifestou dentro da ideologia biomédica, ocasionando a descontinuidade entre a biomedicina, entendida como ‘a arte de curar’, e a biomedicina, como a teoria das doenças. Produto destas digitalizações e apoiando-se na anatomia e na fisiologia, a biomedicina ganha maior legitimidade ao se tomar uma ciência das doenças. Isso lhe permite deslocar um conjunto de saberes tradicionais que, posteriormente, vão ser considerados como ‘não científicos’ a partir do ponto de vista do saber biomédico. Estes saberes, aqui chamados de ‘medicinas românticas’, já não são saberes sobre o corpo, mas sobre o homem. O diálogo já não é com o corpo, mas com a pessoa. O enfoque muda: passa a ser holístico. 33

Q u e s t io n a m e n t o s à b io m e d ic in a

Entre os modelos da biomedicina e das ‘medicinas românticas’, observa-se uma manifestação da ‘tensão estruturante’, dado que a diferenciação entre eles estaria colocada na postura adotada em relação ao dualismo material vs espiritual, ou às suas outras expressões, tais como biológico-corporal vs psicossocial, espe­ cial

geral. Partindo da posição diante da ‘tensão estruturante’, ou privilegiando os as­ pectos científicos-racionais, que evocariam a ‘ciência da medicina’, ou os aspectos ‘psicossociais’,9 que incluiriam posturas mais afetivas e relacionais mais próximas ao que é chamado de a ‘arte da medicina’, surgiram argumentações e práticas críti­ v í

cas à biomedicina. Não seria correto observar essa ‘tensão estruturante’ manifestada entre os dois pólos com interesses diferentes como algo esquemático e rígido, concluindo que o ‘físico-moral’ é não-racional, ou não-científico. O que tento exprimir com essa polaridade tensionante é que a biomedicina não tem necessidade de incorpo­ rar tais aspectos ‘físico-morais’ para explicar a doença, necessidade que se apre­ senta nas ‘medicinas românticas’, em virtude de se basearem em um enfoque totalizante da pessoa. As posturas críticas à biomedicina se centram, fundamentalmente, no questionam ento do reducionism o biologista que haveria ocasionado uma hiperespecialização e uma medicalização da sociedade. Esse reducionismo a inca­ pacitaria de tratar um número crescente de doenças denominadas ‘perturbações físico-morais’; assim, aproximações realizadas pela ótica de um reducionismo biologista, ou também pela do reducionismo ‘psicossocial’, não teriam grande eficácia terapêutica. Taussig argumenta que os sinais e sintomas das doenças, além de serem entidades biológicas e físicas, incluem também relações sociais que ficam ocultas sob “o fantasma da objetividade”. Em suas palavras: “em qualquer sociedade a relação entre o doutor e o paciente é mais do que algo técnico. E antes uma interação social que pode reforçar as premissas culturais basicas de uma maneira poderosa” (Taussig 1992: 86). A negação do social e do humano, aspectos que estão compreendidos nos sinais e sintomas, é conseqüência imediata do modelo biomédico e faz com que ele possa explicar o ‘como’, mas não o ‘porquê .10 Esses dois questionamentos são de natureza completamente diferente, já que o ‘porquê’ - que faz parte da demanda do doente - é uma exigência de explicação totalizante e subjetivante; o ‘como’, a preocupação do médico, buscaria objetivar a doença. 34

O que se procuraria negar com vistas a uma ‘objetividade científica’ maior é a arbitrariedade do signo, a característica de construção social da doença; cons­ trução que se realizaria no interjogo do médico e do paciente. Não é difícil ver a relação entre essa negação e a visão das doenças como entidades gnoseológicas objetivas que jazem ‘lá fora’. Desde o momento no qual se ressaltam as falências da biomedicina, Taussig (1992:108) assinala que “estaria acontecendo pela primeira vez na situação clínica moderna um intento de trazer à consciência o que era previamente deixado de lado, ou inconsciente, na prática médica”. Essa preocupação pela objetivação da doença, que possibilitou à biomedicina constituir-se como um saber científico, haveria ocasionado o seu distanciamento dos interesses dos doentes. A verdadeira preocupação do médico residiria na doença e não no doente, que seria apenas o portador da doença. Ao tentar articular a doença no discurso biomédico, tudo aquilo que não pode inscrever-se nele seria deixado de lado. Eis como Clavreul (1983) argumenta: “Ao eliminar qualquer outro discurso, incluindo o do próprio doente, o discurso médico deixa de lado uma quantidade de elementos não isentos eles mesmos de interesse (...) esses elementos estranhos ao discurso médico são verdadeiros ‘não fatos’, do ponto de vista da medicina”. Clavreul, porém, na sua critica ao reducionismo biomédico, vai mais além, sustentando que este não somente ocasionaria a dissolução da posição do doente, mas também teria o mesmo efeito com a posição do médico. Se o que o doente traz de sofrimentos, de ansiedades e medos, numa palavra, o subjetivo, deve ser afastado-digitalizado (e com isto volta-se a encontrar a ‘tensão estruturante’), também aquilo que na pessoa do médico lembre as mesmas subjetividades deve ser afastado. De acordo com as exigências do saber biomédico, a relação médico-doente seria, assim, o encontro de duas ausências, mas, nestas ausências, as manifestações do retomo do reprimido estariam sempre sendo observadas. Tal constatação permite falar de uma ‘tensão estruturante’ que é estruturante, porque deriva do dualismo encontrado desde a origem da biomedicina e porque se manifesta na relação paradigmática do médico e do doente.11 Uma crítica diferente à biomedicina provém de um grupo de investigações que focaliza o tratamento da ‘dor crônica’ (Baszanger, 1989; Good et al., 1992). Baszanger tenta resgatar como o trabalho médico foi modificado ao tratar a dor crônica; nesse tipo de enfoque, o paciente com a sua experiência é que é conside­ rado o principal alvo da terapia. Já não se encontra um paciente passivo, um médico-perito e um tratamento único, mas o paciente constrói com o médico, de acordo com sua experiência particular, o tratamento adequado para ele. O objetivo 35

é que o paciente aprenda a tratar sua dor, entretanto, isto seria impossível em uma biomedicina que considera a dor como uma manifestação da subjetividade do doente e que, por isso mesmo, não pode ser ouvida. A dor crônica representa um desafio para a biomedicina, dado que assinala a inexistência de uma causa mensurável para ela. Assim, desafia a compreensão da doença sobre as bases de um dualismo em que se fundamenta a biomedicina. Desse modo, a dor crônica “desafia o dogma central da epistemologia médica: (...) há um conhecimento objetivo, que é cognoscível afastado da experiência subjetiva” (Good et al., 1992: 6). A impossibilidade de a biomedicina não conseguir tratar a dor crônica devese, justamente, ao fato de que a experiência da dor é vivida como uma totalidade, mas, quando a medicina trata de reconstruí-la, é fragmentada numa série de dicotomias que subjazem ao modelo biomédico,12 sem atender ao benefício se­ cundário que o doente obteria na relação com a dor. Duarte (1993, 1996) sustenta uma posição crítica que tem como objetivo superar, no desenvolvimento de uma antropologia da saúde/doença, o reducionismo ‘biologista’ da biomedicina, assim como o reducionismo ‘psicologizanteinteriorizante’ e o da ‘dominação’, nos quais desembocou a antropologia médica norte-americana ao tentar escapar à tendência biologizante da medicina. Um enfoque superador dos reducionismos nomeados se alcançará com a adoção de uma pers­ pectiva mais ampla que consiga projetar luz sobre as noções nas quais se baseiam as diferentes representações do processo de saúde-doença em relação à constitui­ ção da cultura ocidental moderna. Para finalizar este rápido percurso de alguns dos questionamentos feitos à biomedicina, faz-se necessário mencionar o importante trabalho de Ivan Illich (1986), Nêmesis Médica, publicado originalmente em 1976, um período conside­ rado por Herzlich (1984: 245) como de “expressão, com uma particular virulên­ cia, da denúncia do ‘poder médico”’. Nesse marco, Illich elabora uma crítica à biomedicina, que, de uma forma diferente das anteriores, deixa entrever uma cons­ tante tensão entre os enfoques acadêmico-epistemológico e político-programático. A crítica de Illich não está dirigida ao ‘reducionismo biomédico’, mas às conseqüências da transformação da sociedade ocidental moderna numa sociedade medicalizada, que tem como um de seus efeitos a desarticulação dos mecanismos sociais de ‘assistência mútua’. Nesse sentido, o autor mencionará três tipos de iatrogenia: clínica, social e cultural. Para diferenciá-las, nas suas palavras: a iatrogenia é clínica quando, por causa da assistência médica, se produ­ zem dor, doença e morte; é social quando as políticas de saúde reforçam 36

uma organização industrial que gera saúde doente; é cultural e simbólica * v quando, sustentadas medicamente, a conduta e as ilusões diminuem a autonomia vital de um povo, destruindo sua competência para crescer, atender um a outro e envelhecer, ou quando a intervenção médica inca­ pacita reações pessoais para a dor, a invalidez, o impedimento, a angústia e a morte. (Illich, 1986:361)

Desse modo, a saúde se converteria num item estandardizado que não seria da competência da sociedade, mas de agentes especializados ao serviço de um sistema industrial. A ‘nêmesis’ médica seria essa expropriação da capacidade do homem para se confrontar com a dor, a doença e a morte. Vê-se que a crítica de Illich ressalta, no âmbito da saúde pública, uma conseqüência da biom edicina da mesma forma que as outras críticas: a compartimentalização dos domínios, conseqüência da ideologia individualista pre­ dominante na cultura ocidental modema na qual a biomedicina se constituiu. Com o intento de superar as conseqüências problemáticas das práticas biomédicas é que os novos enfoques propostos para os tratamentos médicos centram-se na reconstituição de uma totalidade perdida. Estes novos enfoques são aqui agrupados como ‘medicinas românticas’. E stru tu ra çã o d o cam po b io m é d ic o : a relação e n t r e a b io m ed icin a e as ‘m edicinas rom ânticas ’

Le Breton (1995) assinala que a instituição médica estaria hoje sendo ques­ tionada tanto a partir de dentro como a partir de fora do campo médico. No primeiro caso, pelos especialistas formados no paradigma da biomedicina, mas com dificuldades para se reconhecerem nele, razão pela qual optariam pelas ‘no­ vas medicinas’ (homeopatia, acupuntura, osteopatia etc.), ou então, retomando as ‘antigas práticas’ do médico de família, tomariam dados da personalidade e do co itexto familiar. No segundo caso, os questionamentos se manifestariam no ressurgimento das ‘medicinas românticas’. Todos esses questionamentos e ressurgimentos estão permanentemente al­ terando os limites do campo médico, ou, para expressá-lo com uma denominação ampla, o campo da saúde-doença. O qualificativo de ‘romântico’, para caracterizar o grupo das medicinas mais comumente nomeadas como ‘alternativas’, ‘doces’, ‘naturais’, se deve ao fato de que uma das características fundamentais dessas medicinas é a busca da totalidade da pessoa, a perseguição de um enfoque holístico da doença e da tera­

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pia. Tal ênfase na totalidade faz lembrar a tradição científica romântica que flores­ ceu durante o século XIX. Essa tradição tomou uma posição alternativa, sustenta­ da pela ciência positivista, baseada em afirmações teóricas, confirmadas por de­ monstrações experimentais, manifestando sua preocupação em estabelecer uma inteligência do homem no mundo, e não afastado dele. Para a consciência romântica, a realidade transcende à inteligibilidade, “o homem vem ao mundo num espaço e num tempo que não domina, mas no qual se descobre englobado” (Gusdorf, 1982: 199). Os românticos não se opõem à inteligibilidade racional, mas rejeitam atribuir-lhe uma validade exclusiva. Desse modo, estabelecem uma epistemologia que restaura uma forma unitária de saber: A ciência galileana explica o complexo a partir do simples, o romântico proclama a necessidade de uma compreensão do simples a partir do complexo. E absurdo pretender dar razão do conjunto a partir do elemen­ to; o elemento não é mais que, afastado do conjunto, uma parte morta, onde o sentido está ausente. (Gusdorf, 1982: 423)

Pode-se ver estabelecida entre a biomedicina e as ‘medicinas românticas’ a tensão gerada entre a ciência galileana e a ciência romântica como duas formas diferentes de entender o processo de saúde-doença: a primeira enfatizando, como se viu, os dualismos; a segunda, um enfoque globalizante que integra o racional e o emocional. Essa diferenciação permite constatar uma manifestação da ‘tensão estruturante’ no nível dos modelos de explicação do processo de saúde-doença, uma vez que é a aceitação ou a rejeição do dualismo material vs corporal, espiritual vs moral que sustenta tal diferenciação. Dentro do que nomeei ‘medicinas românticas’, incluem-se aquelas formas coletivistas que buscariam integrar indivíduo e sociedade, como, por exemplo, o sanitarismo e o higienismo, e aquelas formas alternativas que procurariam integrar indivíduo e natureza (florais de Baeh, homeopatia, acupuntura etc.). As medicinas românticas constituíram-se em uma relação que é tanto de diferenciação quanto de imitação com a biomedicina.13Esta última é que ocuparia a posição de legitimi­ dade, no que diz respeito ao conhecimento da saúde-doença para a cultura ociden­ tal moderna. Nas palavras de Le Breton (1995: 184): a medicina vai situar-se fora do marco social e cultural como palavra de verdade única científica e por isso intocável; para o conjunto das outras medicinas, sejam elas ocidentais ou não, coloca-se a dúvida sobre sua validez. Tudo se passa como se contra a medicina ocidental devessem ser avaliados todos os outros modos de gestão do mal.

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O que a biomedicina esquece, ao avaliar essas ‘medicinas românticas’, é que, no caminho da construção de seu saber, gerou correntes que tentavam expli­ car a saúde-doença de uma maneira mais ampla do que a explicação dáda pela inteligência mecanicista. Assim, pode-se citar o ‘organicismo’ de Bordeu (17221776), que logo é deslocado pelo ‘vitalismo’ de Barthez (1734-1806). Segundo Gusdorf (1982), a Escola Médica Francesa do século XIX estaria situada no prolongamento do espírito médico que se afirma com Barthez. Desse modo, é com Canabis (1771-1808) e Bichat (1771-1802), um dos inspiradores da clínica médica do seculo XIX, que se considera o ser humano “como um fenômeno de totalidade; sua doutrina esboça um monismo psicobiológico” (Gusdorf, 1982: 299). Hellstrõm, em artigo intitulado “The importance of a holistic concept of health for health care”, define o conceito da saúde com o qual trabalha como holístico “no sentido que se relaciona às preocupações existenciais da pessoa. Mais especificamente o coração do conceito de saúde concerne à noção de saúde como um equilíbrio entre o desejo e a capacidade, ou a adequação da capacidade com respeito ao desejo” (Hellstrõm, 1993: 326). Constata-se que a tensão entre as explicações mecanicistas associadas à biomedicina e as explicações holísticas, relacionadas às ‘medicinas românticas’, encontra-se presente permanentemente, mas, em virtude da valoração que tem a primeira na cultura ocidental moderna, as explicações holísticas estão em uma posição de subordinação, de desvalorização freqüente. Essa relação pode ser esclarecida introduzindo-se a noção de ‘oposição hierárquica’, que Dumont (1987- 231) definiu como: a oposição entre um conjunto (e, mais particularmente, um todo) e um elemento desse conjunto (ou desse todo); o elemento não é necessaria­ mente simples, podendo ser um subconjunto. Essa oposição analisa-se logicamente em dois aspectos parciais contraditórios: de uma parte, o elemento é idêntico ao conjunto na medida em que faz parte deste (...); de outra, existe uma contradição.

Assim, ao estabelecer uma relação hierárquica entre o elemento e o conjun­ to, e ao valorizar um elemento desse conjunto, necessariamente subordina-se o contrário. Portanto, falar em hierarquia é falar em ‘englobamento do contrário’. Mas esta relação de oposição hierárquica é negada, daí viria a idéia de que a biomedicina não tem relação com as ‘medicinas românticas’. Um dos mecanis­ mos para operar essa negação é a separação entre os fatos e os valores. Dessa forma, perde-se a relação dos elementos com o todo, perde-se a diferença que é estabelecida pelo aditivo assimétrico (o valor). 39

Mesmo assim, enfatizar a hierarquia implica considerar existência de ní­ veis, 14e é em função dos níveis relacionados ao todo que se estabelecem identida­ des que serão sempre contextuais. Com a noção de oposição hierárquica e a distinção de níveis, pode-se voltar a falar sobre a ‘tensão estruturante’ entre os modelos de saúde-doença. Proporia três níveis nos quais essa tensão se manifestaria. No primeiro nível, que chamarei de abstração antropológica, no qual o holismo englobaria o individualismo (como relação todo-parte), de modo que esse individualismo, configuração predominante da cultura ocidental moderna, se con­ verteria em um dos modelos possíveis.15 Nos níveis segundo e terceiro, que chamarei de empíricos generalizados, teremos as relações de englobamento entre os modelos de saúde-doença. No segundo nível, a biomedicina reuniria as ‘medicinas românticas’ porque, ainda que a priorize o racional/mecanicista/particularizante, os aspectos emocionais/físico-morais/ totalizantes ficam incluídos, tomando uma projeção particular em determinadas situações práticas, ou em determinadas situações conjunturais, como a atual, na qual há uma explosão das medicinas românticas. No terceiro nível, as ‘medicinas românticas’ englobariam a biomedicina porque, ainda que proponham um enfoque diferente do processo de saúde-doença, não negam os avanços que a biomedicina proporcionou e, em determinadas situações, consideram adequados os tratamen­ tos que envolvam as duas perspectivas. A possibilidade da existência do mútuo englobamento entre esses dois últi­ mos níveis deve-se ao fato de que a hierarquia é bidim ensional e “a bidimensionalidade implica inversão” (Dumont, 1987: 259). Por isso, afeta tanto as entidades como as situações correspondentes. Além dessa aproximação entre a biomedicina e as ‘medicinas românticas’ pela relação de englobamento, creio haver na biomedicina uma especialidade que estaria pendulando entre os dois modelos: a ‘medicina geral’. A ‘medicina geral’, ainda que incorporada na biomedicina, ocupa uma po­ sição marginalizada. Sua definição, em relação às outras especialidades, como ‘geral’ implica uma não-especialtzação, pela qual se confronta a ‘idéia de médico’ superespecialista e tecnicista, que predomina hoje no imaginário dos profissionais e estudantes de medicina e da população em geral. Tal imaginário, no século XIX, era ocupado pelos ‘médicos de família’ mais do que pelos ‘médicos de doentes’. Com as m udanças atuais na biom edicina, ocasionadas pela hiperespecialização, a ‘medicina geral’ se redefine para se instaurar como uma especificidade, o que a coloca como uma especialidade. Esta redefinição permite 40

uma aproximação entre a medicina geral e as ‘medicinas românticas’, já que seri­ am médicos que ‘olham além’, que procuram um ‘a mais’ no ato terapêutico; desse modo, a “dupla generalista-tni&imo enriquece o espaço interindividual da consulta, ampliando o vivido pelo médico e o saber dó doente, versão subjetiva, dual, de uma relação médico-família que tende a desaparecer de fato das condi­ ções efetivas da prática” (Muel-Dreyfus, 1984: 71, grifo meu).16 Assim, o médico ‘generalista’ está numa relação de proximidade com o paciente: nas consultas, muitos dos problemas evocados referem-se ao corpo e ao seu funcionamento; outros, direta ou indiretamente, referem-se à vida privada, familiar e profissional. Nas palavras de Baszanger (1983: 285): “trata-se de outra medicina: a medicina geral é medicina total do homem total. E, para praticar essa medicina, o generalista deve ocupar-se da gente de maneira global”. A ‘medicina geral’ pode ser caracterizada - de fato, os ‘generalistas’ o fazem - como ‘medici­ na lenta’, pela duração das consultas, derivada das coisas que o doente tem a dizer sobre sua doença. Essas características aproximam a medicina geral das ‘medicinas românti­ cas’, mas não é por isso que ela deixa de pertencer ao campo da biomedicina; nesse campo, o ‘generalista’ se ocupa da primeira aproximação com o doente (da necessidade ou não de encaminhamento para o hospital), está relacionado a uma patologia cotidiana, diferente da encontrada no hospital, daí a diferenciação entre médicos de hospital (os especialistas) e os ‘generalistas’. Cabe lembrar aqui algumas classificações das especialidades médicas, dado que uma delas - a ‘clínica médica’- freqüentemente se confunde com a ‘medicina geral’.17 A patologia pode, numa primeira aproximação, dividir-se em patologia médica (patologia interna) e patologia cirúrgica (patologia externa). A ‘medicina interna’, ou ‘clínica’ é 0 ramo da medicina que trata com a doença não cirúrgica de constituição natural em adultos (Hahn, 1982). Porém, nada nessa definição fala das preocupações que ‘os clínicos’ ou os ‘intemistas’ teriam sobre aqueles aspec­ tos que não são biológicos. Creio que a aparente superposição de funções surge porque ‘os clínicos’, fora do hospital, tratam de patologias nomeadas ‘da rua’, que são patologias que competem ao ‘generalista’. O que subjaz à diferenciação entre medicina clínica vs medicina geral é a oposição especialista vs generalista; a primeira, tendendo a uma fragmentação cada vez maior; e a segunda, comprometida com a reconstrução dessa totalidade.

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N otas 1 Traweek (1993) assinala que a maioria das investigações sobre ciência começou depois da Segunda Guerra Mundial, explicando serem exceções a história e a filoso­ fia da ciência. Um desses sociólogos críticos da ciência é Restivo, o qual, no trabalho já citado, sustenta que os sociólogos dos STS - que agora, seguindo a caracterização de Hess, seriam os “não críticos” - “estão mais preocupados desenvolvendo relatos sobre como a ciência trabalha. Eles não estão desafiando ou criticando a ciência moderna como um sistema de valor, uma visão de mundo e uma forma de viver ou trabalhar” (Restivo: 1988: 207).

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Um mapeamento da antropologia médica norte-americana sobre a produção relacio­ nada à temática dos nervos pode ser encontrada em Duarte (1993). Como a biomedicina se desenvolveu fundamentalmente como um enfoque sobre a doença e é criticada por não ter uma definição positiva da saúde, na análise do modelo, falarei de doença e não de processo saúde-doença, embora considere que não é possível estudar a doença sem fazer referência à saúde, dado que uma e outra são as duas ‘caras’ do mesmo processo.

Nas palavras de Dumont (1992: 56): “Por oposição à sociedade moderna, as socie­ dades tradicionais, que ignoram a igualdade e a liberdade como valores, que igno­ ram, em suma, o indivíduo, possuem no fundo uma idéia coletiva do homem”. 6 Se bem que concorde com a idéia de que o pensamento de Descartes está expres­ sando as idéias de sua época, a forma pela qual ele as estruturou e as expressou tem importância. Pensar que, se não houvesse sido ele, outro o tivesse feito, é confundir o indivíduo e a classe. Para maiores explicitações, ver Bateson (1982). 5

Parece-me sumamente interessante esta citação de Le Breton que explicita como a medicina moderna surge do estudo de corpos sem vida, porque esse percurso que a biomedicina realizou na sua constituição como disciplina científica moderna é revivido pelos estudantes de medicina. Eles começam os estudos apreendendo anatomia com cadáveres para culminar sua graduação com os cursos das especiali­ zações, inserindo-se dessa forma na ‘hiperespecialização’ da biomedicina atual. Numa entrevista com um residente, em que falávamos da compartimentalização do saber médico e da pouca importância do homem para esse saber, ele me disse: “E o que você quer, se a primeira coisa que vemos é um cadáver”. 8 Segundo Camargo Jr. (1993a), a medicina ocidental contemporânea manejaria ainda a racionalidade da mecânica clássica, que buscaria isolar os componentes discretos para reintegrá-los logo após nos seus mecanismos originais.

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Duarte (1993) assinala, em um trabalho de revisão da literatura publicada sobre ‘nerves’, que a antropologia médica norte-americana utilizou a expressão ‘psicossocial’ como um intento de superar a separação entre o nível individual (o ‘psico’, que seria um indivíduo psicologizado) e o nível das relações (o ‘social’). Segundo sua posição, essa expressão não seria adequada para tratar a temática dos

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‘nerves’ já que isto vai representar uma visão não individualizada e não psicologizada da pessoa. Em oposição à categoria ‘psicossocial’, propõe a categoria ‘físico-moral’, que adotarei a partir de agora neste livro para nomear as perturbações que se explicam pelos vínculos estabelecidos entre o corporal e “as demais dimensões da vida social” (Duarte, 1996: 11). 10 Como bem assinala Taussig (1992: 85), nas sociedades tradicionais, que teriam uma medicina holista-totalizante, não se poderia estabelecer a separação entre o ‘como’ e o ‘porquê’, já que a doença é vista como uma relação social, e a terapia, portanto, tem de buscar “essa síntese de apresentação moral, social e física”. No mesmo sentido, expressa-se Herzlich (1992: 201), quando sustenta que “o diagnóstico que nos oferece o médico, e que nós aceitamos, freqüentemente, não basta para respon­ der”. 11 Para Clavreul (1983: 259), a relação médico-doente não existiria; o que se teria é a relação instituição médica-doença; o “personagem do médico deve apagar-se ante a objetividade científica da qual é garantia. Quanto ao doente, não é ele o abordado, mas sim o homem normal que era, e que terá que voltar a ser; ou seja, um homem que raciocina com exatidão, o que quer dizer que se submete à razão médica”. 12 Volta-se a encontrar o fato de que a biomedicina manejaria uma racionalidade na qual o todo não é diferente do somatório das partes. 13 Dentro do que aqui se inclui como ‘medicinas românticas’, encontrar-se-iam gran­ des diferenças entre elas; mas, meu interesse, hoje, é estabelecê-las como um con­ junto de práticas que se apresentam como alternativas à biomedicina Essas diferen­ ças ficavam explicitadas quando, nas entrevistas, perguntava sobre as medicinas alternativas, e geralmente eram feitas diferenças entre a acupuntura, respeitada por seu embasamento ‘científico’, a homeopatia, majoritariamente desautorizada, e o curandeirismo, aceito na base de um relativismo cultural que curiosamente não era citado para as outras medicinas alternativas. 14 O pensamento de Bateson (1982) é outro que ressalta o estabelecimento da hierar­ quia de níveis na análise das situações. O autor baseava a estruturação do pensa­ mento na teoria dos tipos lógicos. is Dumont (1987: 218), se faz a pergunta de como relacionar o individualismo, a partir do qual procedemos, e o holismo, predominante no objeto antropológico. Na articu­ lação de sua resposta, descobrem-se dois níveis: no primeiro, seríamos individualis­ tas, veríamos que cada sociedade expressa o universal de sua maneira; e no segun­ do nível, “onde se considera um determinado tipo de sociedade ou de cultura, o primado inverte-se necessariamente e o holismo passa a impor-se. O próprio modelo moderno converte-se num caso particular de modelo não moderno”. is Segundo Muel-Dreyfus (1984), essa relação médico-família tende a desaparecer porque o médico só recebe um doente no consultório, enquanto a visita domiciliar faz parte do passado. Talvez essa afirmação possa ser relativizada por causa da importância crescente das empresas de medicina de grupos e da maior importância outorgada aos sistemas de captação médica, nos quais cada médico tem um deter­ minado número de famílias a seu cargo.

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i7 Dentro da biomedicina, reconhecem-se quatro especialidades básicas, clínica, cirurgia, gineco-obstetricia e pediatria; já, como especialidades secundárias, en­ contram-se as que remetem a algum sistema, como a cardiologia, a endocrinologia, ou a determinado tipo de patologia como, por exemplo, a infectologia etc.

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2 0 Hospital como Teatro

O N ascim ento do H o spital como E spaço d e E n sin o Ninguém duvida hoje da importância do ‘hospital’ na formação da identidade profissional dos estudantes de medicina e dos médicos recém-graduados. Além de não haver dúvidas sobre essa importância, ela vem sendo ressaltada em numerosos traba­ lhos.1 Esse fato pode ser explicado, em parte, pelo reconhecimento da necessidade que a formação médica tem de pôr em contato o futuro médico com os enfermos (ou seria mais acertado dizer que tem de pô-lo em contato com a enfermidade?). Tal importância coloca o ‘hospital’ como a instituição socializante fundamental, que “por sua organização hierárquica e por sua lógica científica, na qual se legitima, assegura a perenidade de sua posição predominante” (Baszanger, 1981:240). Menos ainda se duvida da importância do ‘hospital’ na prática médica co­ tidiana, que, devido ao progresso da medicina, teria deixado de ser uma prática independente (a medicina liberal) para ser uma prática interdependente (a medici­ na especializada), impedindo que um só médico possa dar conta de todos os domínios. É assim que Freidson (1978: 119) assinala: “o hospital constitui um am­ biente fundamental para a prática médica, um meio que a organização de toda prática deve ter em conta de um modo ou de outro”. Porém, esta importância do ‘hospital’ na formação e na prática médica, que hoje está naturalizada, é resultado de um processo de construção que esteve fortemente associado com a constituição da clínica como disciplina científica, na qual a aprendizagem e a prática diante do leito do paciente foram consideradas essenciais. Podem-se tomar os trabalhos de Foucault (1991, 1979) para caracterizar esse processo. O ‘hospital’ não foi desde o início um espaço para a cura; nos séculos XVII e XVIII, era, sobretudo, uma instituição de assistência aos pobres, não existia nada semelhante a uma medicina hospitalar.2 É quase no final do século XVIII que se vai associar a aprendizagem da clínica com os hospitais. A aprendizagem vai se dar em duas partes: “uma sobre o 45

leito do enfermo, o professor se deterá o tempo necessário para interrogá-lo devi­ damente, fará notar aos alunos os sinais diagnósticos e os sintomas importantes da enfermidade; depois [no anfiteatro] o professor continuará com a história geral das doenças observadas nas salas [do hospital]” (Foucault, 1991: 108). É nessa ‘clínica’, do final do século XVIII, que se encontra “um domínio no qual a verda­ de se ensina por si mesma e da mesma maneira à vista do observador experimen­ tado e à vista do aprendiz ainda ingênuo; para um e outro não há senão uma linguagem: o hospital" (ibid., p. 104; grifo meu). Para que o ‘hospital’ passe a ser esse espaço no qual se ensina ‘a verdade’, é necessária uma reorganização de sua estrutura, que vai ser feita por meio da ‘disciplina’. A disciplina “é, antes de mais nada, uma análise do espaço. É a individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório” (Foucault, 1979: 106). A possibilidade de medicalização do espaço hospitalar se dá, dessa forma, pela introdução de mecanismos disciplinares e por uma inversão nas estruturas de poder dentro dos hospitais. Até o século XVIII, os religiosos eram quem detinham poder nos hospitais; mas, a partir do momento em que estes começa­ ram a funcionar como espaço para curar, o médico se tornou o principal res­ ponsável. Aparece dessa forma “o personagem do médico de hospital (...) o grande médico, até o século XVIII, não aparecia no hospital, era o médico da consulta particular (...). O grande médico de hospital, aquele que será mais sábio na medida em que maior seja sua experiência hospitalar, é uma invenção do final do século XVIII” (Foucault, 1979: 109; grifos meus). Essa inversão das relações hierárquicas no hospital se manifesta de maneira mais nítida no ritual da visita de sala, que não existia de forma sistemática antes da instituição do poder médico nos hospitais. Como conseqüência, o ‘hospital’ não só passa a ser lugar de cura, como também de: registro, acúmulo e formação de saber. É, então, que o saber médico que estava localizado nos livros começa a ter seu lugar, não mais no livro, mas sim no hospital, não mais no que foi escrito ou impresso, mas sim no que é cotidianamente registrado na tradição viva, ativa e atual que é o hospital. (Foucault, 1979: 110)

Dessa forma, desde fins do século XVIII, o ‘hospital’ é visto como um dispositivo essencial para a produção e transmissão do conhecimento médico; ao mesmo tempo em que, ao prover o contexto para as ‘visitas de sala’ (ou ‘passa­ gens de sala’, denominação que recebem no hospital em foco), bem como o

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espaço no qual se encontram médicos - alguns em seus primeiros anos de forma­ ção - e pacientes, o hospital permite que se manifeste a ‘tensão estruturante’ entre as dimensões científico-racional e a humano-passional da ‘biomedicina’. O ‘hospital’ é, portanto, o espaço fundamental, o ‘teatro’, onde se manifes­ tam o saber médico e os saberes leigos, os temores e as certezas, e onde os conflitos suscitados pela ‘tensão estruturante’ - da qual a biomedicina não pode escapar, porque faz parte de seus fundamentos - dão lugar aos ‘dramas ritualizados’, nos quais se põem em risco permanentemente as categorias3 essenciais por meio das quais se constituiu a própria ‘biomedicina’. Turner (1974,1980) desenvolve a idéia de ‘drama social’ para .aludir àqueles processos desarmônicos que se originam em situações de conflito e que se manifes­ tam pela ruptura de uma norma social, de uma regra moral ou de um costume; o que acarreta que mecanismos de reparação e reintegração entrem em ação. Anteriormente referi-me à inversão das relações de poder dentro do hospi­ tal assinalando que esta implicou uma sistematização das ‘visitas de sala’. Tais visitas funcionam como um ‘ritual’, visto que naquele momento as diferentes categorias interagem, são discutidas e expõem-se as distintas posições no que diz respeito aos ‘diagnósticos’. As visitas de sala’ são, então, os momentos fundamentais em que se ma­ nifestam os dramas sociais, que pelo caráter ritualístico são chamados de ‘dramas ritualizados’. É nesse sentido que se pode valer da definição de ritual oferecida por Turner (1980: 155): “comportamentos estereotipados (...) que servem para co­ municar informação acerca dos valores culturais mais apreciados (...), o ritual, essencialmente, como uma colocação em ato, e não primariamente como regras ou rubricas”. Não obstante, ele considera que poucos rituais são completamente estereoti­ pados, porém, freqüentemente as “fases e episódios invariantes são intercalados com passagens variáveis nas quais, em ambos os níveis, verbais e não verbais, a improvisação pode não ser meramente permitida, mas sim requerida” (Turner, 1980:158). Durante a cena, novos significados podem ser agregados e diferentes representações podem surgir. Porém, esse teatro tem um caráter especial, porque a obra que nele se ‘vive’ está escrita pela metade, incompleta, razão pela qual, necessariamente, as pessoas têm de improvisar’ sua interpretação. É esta obra incompleta, esta inter­ pretação improvisada, que permite a elas criar e ressignificar a parte ‘escrita’ da obra dada pelo saber médico, o que leva a pensar que nesses ‘dramas ritualizados’ não entram em jogo atores que cumprem um papel prescrito, mas sim ‘agentes’ 47

que improvisam de acordo com umas poucas linhas dadas na obra e de acordo com suas trajetórias pessoais como ‘vivem’ o ‘drama’.4 A forma como os agentes improvisam - sempre dentro das estruturas estará relacionada com a posição que ocupam no campo e com a forma de relaci­ onar-se com o saber biomédico; porém o fundamental é que nessa liberdade regu­ lada exista uma capacidade criadora e geradora que faz com que as ‘interpreta­ ções’ dos ‘agentes’ tenham efeitos sobre os resultados dos ‘dramas ritualizados’.5

0 H o spital da C o m u n id a d e O hospital da comunidade está localizado numa cidade da Província de Buenos Aires. É altamente complexo e de triagem, o que significa que recebe pacientes de toda a província. Na ocasião em que realizei o trabalho de campo, o hospital tinha 768 leitos; porém, quando começou a funcionar, o fazia com mil. A diminuição do número de leitos teve como objetivo dar maior comodidade aos pacientes. Sua estrutura arquitectónica, dividida em pavilhões, motivo pelo qual os distintos serviços estão separados em edifícios com uma grande independência funcional, contribui para que cada um assuma características diferentes. Como os pavilhões foram construídos em diferentes períodos, há constru­ ções mais antigas, com um estilo de construção monumental e maior deterioração, assim como construções mais recentes, com um feitio arquitetônico de acordo com as novas necessidades dos hospitais modernos. O edifício mais antigo do hospital é denominado pavilhão maior; nele se encontra um dos dois serviços de clínica do hospital.6 Esse pavilhão é o único que tem um tipo de arquitetura fran­ cesa, estilo que predominava no momento da construção. A visão exterior do hospital é de distintos edifícios dispersos nos quatro quarteirões ocupado pelo conjunto dos prédios, onde o espaço livre entre as cons­ truções está preenchido por áreas de estacionamento e pelas vias de circulação interna. Sobressai, entre os diferentes edifícios, o denominado pavilhão central, inaugurado no ano 1952, onde estão localizados o plantão de emergência e os consultórios externos de vários serviços. O plantão de emergência é formado por duas salas de internação, pelos consultórios externos de plantão e, no segundo andar, pela sala de estar médica. As duas salas de internação (separadas pela sala de estar da enfermaria) se comu­ nicam com um corredor que não tem mais do que três metros de largura. Ao

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mencionado corredor, também se ligam as salas de operação e o laboratório de plantão. É nesse corredor que os doentes recebem os primeiros cuidados presta­ dos no plantão, para depois serem passados para uma das duas salas. A estrutura em pavilhões tomou necessária a construção de túneis que comunicassem os diferentes edifícios; esses têm um aspecto sombrio, com altura um pouco superior a dois metros. Nos dias de chuva, são inundados por goteiras provenientes dos tetos, ou por infiltrações das paredes, o que lhes dá um aspecto de abandono e desolação. Alguns dos túneis têm o comprimento de duzentos metros, o que dá uma idéia de um corredor quase interminável, com aberturas praticamente inexistentes na maioria deles. Faltam vidros nos que têm aberturas nos tetos, acarretando uma inundação cada vez que chove. O hospital não tem uma construção que permita a separação da circulação técnica e pública, razão pela qual, nos corredores, é comum cruzar com pacientes de todo tipo, acompa­ nhados por carregadores de maca ou por residentes. As salas de internação de todos os pavilhões (exceto as do pavilhão novo) são grandes, com cerca de vinte ou mais camas, colocadas em duas fileiras sepa­ radas por um corredor central compartilhado. Atualmente, essas camas estão se­ paradas, a cada uma ou duas, por tabiques. Essa disposição das camas em uma sala geral produziu a mesma sensação de antigüidade provocava por ocasião da nossa entrada no pavilhão maior. No ano de 1934, quando se cria a Faculdade de Medicina, fez-se necessáric dispor de um hospital para ensinar as diferentes especialidades, motivo pelo qual se recorre ao hospital da comunidade. Atualmente, a única Faculdade de Medicina existente na cidade pertence à Universidade Nacional. Conta com currículo de seis anos que são cumpridos em sua totalidade na mencionada faculdade, as matérias que requerem a presença em hospitais se realizam, em sua maioria, no hospital da comunidade. Devido à grande quantidade de jovens que elegem a carreira, a faculdade foi uma das primeiras a estabelecer um exame seletivo de ingresso. A importância dessa medida (passa a ser uma das poucas faculdades da Universidade com ingresso restrito) mostra uma tentativa de dar resposta ao questionamento que os profissionais médicos faziam a respeito da preparação deficiente dos graduados, fato esse que era considerado, ao menos em parte, como conseqüência da falta de instalações para tantos alunos, problema que aumentou quando começaram as matérias de Clínica Médica.7 Apesar do longo tempo que a instituição atua como hospital-escola da Fa­ culdade de Medicina, ele não está subordinado à Universidade, mas sim ao Minis­ tério de Saúde da Província de Buenos Aires. Tal dependência acarreta alguns 49

inconvenientes: não tem orçamento próprio e, por essa característica de ‘empresta­ do’, a Universidade não tem ingerência sobre as decisões institucionais do hospital, ainda que este seja o lugar de trabalho e de ensino da maioria de seus docentes. Mesmo não sendo um hospital universitário, é considerado o hospital-escola da Faculdade; isso fica comprovado pelo fato de os alunos da Faculdade com as melhores médias escolherem essa instituição para fazer a residência. Um dos resi­ dentes expressava isso claramente ao justificar a sua escolha: “é nosso hospitalescola (...), para o estudante daqui [Faculdade de Medicina daquela Província] sua primeira intenção é entrar neste hospital”. A partir dessa tensão ocasionada permanentemente pelas distintas jurisdi­ ções que se cruzam no hospital e pelas diferenças geradas permanentemente com o Ministério da Saúde, a Faculdade de Medicina tentou fazer de outra instituição o seu hospital-escola. Por isso, no mês de novembro de 1995 - período em que estava realizando o trabalho de campo - , firmou-se o convênio com um outro hospital para ser, no futuro, o hospital-escola da Faculdade de Medicina. 0 P avilhão N ovo No ano 1968, começou a funcionar o pavilhão novo, que fora destinado à Clínica Médica, razão pela qual o pavilhão de Cirurgia e Clínica Médica ficou exclusivamente para Cirurgia.8 O pavilhão foi doado por um industrial da cidade, com o objetivo de criar um asilo ou um pavilhão para geriatria; porém, como nessa ocasião não existia a geriatria como especialidade, e como era necessário um pavilhão para clínica médica, o objetivo inicial do filantropo fora alterado. O pavilhão novo é um dos mais modernos do hospital, e sua construção é notavelmente diferente da dos demais: não se encontram nele as salas gerais, mas sim quartos com três camas e banheiro privativo em cada uma. Tal característica já marca uma diferença que, somada à alta porcentagem de segurados, faz com que o pavilhão tenha adquirido a denominação de pavilhão VIP.9 O pavilhão tem dois andares onde funcionam quatro salas: as 19 e 20, de mulheres, no térreo; e as 17 e 18, de homens, no andar de cima. O ingresso no pavilhão se faz pela sala de espera que se comunica com a secretaria e a sala do chefe de serviço, através de uma porta dupla e ampla que está ligada às salas do térreo. No térreo, ao lado da secretaria, funciona a cátedra de Medicina Interna F; a cátedra de Medicina Interna C funciona no segundo andar - razão pela qual as paredes das salas de espera estão cobertas pelos murais em que se colocam os avisos das cátedras.

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Atravessando a porta dupla, entra-se em um hall onde está a escada, o elevador e os consultórios externos (dois no térreo e dois no andar superior); por outra porta dupla este hall se comunica com as salas. As salas são formadas por um corredor de três metros de largura, em cujas laterais estão dispostos os quartos. Estão divididas em setores numerados (num total de seis por sala), de modo que cada quarto corresponde a um setor. Todos os quartos têm três camas (também numeradas), um banheiro e uma grande janela, o que faz com que sejam sumamente luminosos. Entrando pela porta principal, do lado esquerdo, depara-se com o escritório da enfermaria, onde se guardam os históricos clínicos de todos os pacientes das duas salas do andar.10 No final do corredor, há a sala de estar médica e um outro corredor que leva a uma escada que se comunica com o andar superior e com a sala do chefe da sala 20. O andar superior tem a mesma distribuição dos quartos. Do hall, por onde se chega pela escada principal, pode-se passar pela porta dupla da direita e entrar na sala; ou pode-se passar pela porta da esquerda que se comunica com a cátedra de Medicina Interna, a sala do chefe da sala 17, as salas de aulas e a sala de estar da residência. Subindo pela escada secundária, encontra-se outro corredor, no qual estão a sala do chefe da sala 18 e a sala da junta médica. O setor da residência consta de dois quartos e um corredor que se comunica com dois banheiros. O quarto da esquerda é utilizado como dormitório, ao passo que o da direita corresponde à sala de estar, onde os residentes se reúnem nos momentos livres.11 Nesse ambiente, encontra-se o quadro-negro onde se anotam as admissões ocorridas no plantão anterior e o cronograma de plantões mensais. S it u a ç ã o A t u a l d o s M é d ic o s d o s H o s p it a is P ú b l ic o s

Na ocasião da realização do trabalho de campo (iniciado em outubro de 1995), estava tramitando, na legislatura provincial e no Ministério de Saúde, uma nova lei que, com o objetivo de mudar a estrutura das categorias, abrangeria todos os funcionários dos hospitais públicos. Por essa razão, realizavam-se assembléias e mobilizações para tentar modificar pontos que implicassem diminuição do poder médico nos hospitais, que contribuíssem para uma flexibilização na estabilidade de emprego dos trabalhadores do hospital e para se oporem ao tipo de tratamento nos hospitais públicos segundo um critério empresarial. O texto em discussão vai reformar a Lei na 10.471, de 1985, denominada Lei de Carreira Profissional Hospitalar.12Esta surge como uma modificação da Lei 7.878, de 1972, que se denominava Lei de Carreira Médica Hospitalar (a modifica­ ção inclui em seu artigo 3a outras profissões na carreira hospitalar).13 51

O projeto de lei em discussão abrange todos os trabalhadores dos estabele­ cimentos de saúde; com ele, incorporam-se médicos, assistentes sociais, enfer­ meiros, carregadores de maca etc. (faz-se, no entanto, uma classificação, de acordo com o título que ostentam). O que está em pauta é que, nessa modificação, uma série de reivindicações trabalhistas dos médicos é abolida. Essa discussão sobre a defesa das conquistas trabalhistas oculta uma outra que está subjacente e que trata dos hospitais como lugar de ensino. No novo projeto de lei, não se inclui, sob nenhum aspecto, a categoria de residentes que, embora não pertençam ao staff dos hospitais, trabalham neste local.14 A exclusão teve como conseqüência a organização da Associação de Residentes de Hospitais Públicos da Província de Buenos Aires, com o objetivo de ter uma comissão com mandato delegado para dialogar com as autoridades do Ministério da Saúde. O sistema de ‘concorrência’ era o aplicado antes que se instaurasse 0 sis­ tema de ‘residência’; os médicos que entravam para o hospital por meio do pri­ meiro sistema trabalhavam ad-honorem, ou seja, não recebiam nenhuma retribui­ ção monetária, durante vários anos, sendo posteriormente promovidos à carreira profissional hospitalar, passando assim a ser um médico do staff do hospital. O problema vivenciando nos hospitais cresce devido a uma descrença ab­ soluta em relação às autoridades do primeiro escalão. Um exemplo disso é a exis­ tência do comentário, não oficial, de que em 1996 não se abriria o concurso para ingresso no sistema de residências, propondo uma retomada ao sistema de con­ corrência; com isto se interromperia a evolução do sistema de residências. Ofici­ almente, esse comentário foi desmentido; porém, a comunicação foi tomada com desconfiança e como uma afirmação que não seria cumprida; era apenas para aliviar o conflito. A idéia de que se suspenderia o ingresso às residências pode ser confirma­ da pela diminuição periódica do número de residentes que ingressavam em cada especialidade, levando os residentes a crer que, com o passar dos anos, o sistema iria desaparecer. Embora seja certo que o número de admitidos é cada vez menor, a supressão por completo do sistema de residências e sua substituição pelo siste­ ma anterior implica uma mudança tão profunda como a realizada no momento em que se instauraram os sistemas de residências. A referida mudança originou um processo entre os ‘médicos de plantei’, também chamados ‘médicos de carreira’ - que são os que pertencem ao staff do hospital - e os ‘médicos residentes’. A conseqüência é que estes últimos foram absorvendo o trabalho assistencial do serviço, deixando para os médicos do plantei o trabalho de supervisão e, em alguns casos, a liberdade para não terem tarefas 52

assistenciais. Isto ocorre, apesar do Estatuto da Residência explicitar, em seu artigo 52, que as atividades realizadas pelos residentes não significam a substitui­ ção dos deveres e das responsabilidades dos profissionais do serviço. Para explicar a situação vivenciada atualmente nos hospitais públicos da província de Buenos Aires, poder-se-ia tomar os trabalhos de Belmartino (1995) e Belmartino & Bloch (1995). Estes autores marcam o processo de evolução do sistema de saúde argentino por uma relação tumultuosa entre o Estado e as corporações médicas, desenvolvidas a partir da década de 30. Essas corporações encontrariam força na necessidade de os médicos tomarem posições diante das novas exigências que a prática lhes apresentava em relação aos conteúdos éticos e no que se refere ao processo de fixação de salário.15 Já, desde as décadas de 20 e 30, a questão hospitalar se apresenta como um problema a solucionar. A relação entre as corporações médicas e o Estado (junto com a Confede­ ração General dos Trabalhadores - CGT - como representante dos trabalhadores a partir da década de 60) teria gerado o que os autores chamam de “pacto corporativo” - conseqüência das pressões ocasionadas a partir de uma nova ten­ dência intervencionista do Estado, no período que vai de 1967-69 a 1976. Esse período foi chamado pelos autores de consolidação do modelo estatal - ocorrido nos anos 1943-46 e 1952-55. Nessa dinâmica de constituição do pacto corporativo, em tomo do qual se organizou o setor saúde na Argentina, o momento da pesquisa no hospital corresponderia a um período de crise do modelo - iniciado nos anos 80 - que se constituiria por um forte questionamento de suas bases econômicas, políticas e ideológicas e que poderia desembocar na constituição de um novo pacto ainda em gestação.

As R e s id ê n c ia s M é d ic a s A O r g a n iz a ç ã o F o r m a l

do

S is t e m a d e R e s id ê n c ia s

O sistema de residências médicas que funciona na província de Buenos Aires é subordinado ao Ministério de Saúde da mencionada província, assim como tudo referente aos hospitais públicos. No estatuto, em que se estabelecem as pautas das residências médicas, estas ficam definidas, no artigo 3a, como o sistema de capacitação intensiva em serviço que permita completar a formação integral do profissional, para o desempenho responsável e eficiente de um ramo das ciências da saúde, com o nivel mais alto possível em função das necessidades da população da província de Buenos Aires.16 53

Uma vez graduado em medicina, o candidato na província deve concorrer a uma residência em alguma das especialidades médicas. O concurso consiste em um exame que vai compor uma média com as notas obtidas no curso de medicina. Uma vez que o aspirante tenha sido aprovado, pode escolher o hospital em que deseja fazer a residência; a possibilidade de escolher estará determinada pela pontuação obtida na média das duas notas. Em toda residência, encontra-se uma hierarquia entre os residentes de pri­ meiro ano, os de segundo, os de terceiro - de agora em diante R l, R2 e R3, respec­ tivamente - e, por último, os ‘chefes de residentes’e o ‘instrutor de residentes’ (podendo não haver este último). Os chefes são residentes que, tendo cumprido o terceiro ano, são escolhidos, de acordo com o estatuto, por seus pares, pelo chefe de serviço em que funciona a residência e pelo instrutor de residentes (no caso de haver um). A permanência na chefia não será por um período superior a um ano. Visto que a residência tem de funcionar dentro de um serviço em alguma especiali­ dade de um hospital, e a abertura da mesma é pedida pelo chefe de serviço ao Departamento de Docência e Pesquisa, tanto os chefes de residentes como os ins­ trutores vão depender do chefe do serviço. Nessa cadeia, todos eles dependem em última instância da autoridade máxima, que é o diretor do hospital. A residência deve ter um programa de atividades no qual é necessário dife­ renciar programas de atividades assistenciais, de ‘rotações’, de plantões e de ati­ vidades docentes. É responsabilidade dos chefes de residentes a organização das tarefas dos programas estabelecidos. O programa de ‘rotações’, no caso das residências de clínica médica, con­ siste em três formas de rotação diferentes: um primeiro tipo consiste em compa­ recer por um período de quatro meses aos serviços de Cardiologia e Terapia In­ tensiva, serviços que têm uma orientação voltada para o paciente crítico - esse tipo de rotação só é realizado pelos R2. Um segundo tipo é realizado por aqueles residentes que não escolheram Clínica Médica, mas que têm de cursar um primei­ ro ano em uma residência de Clínica Médica para receber uma formação em Clínica Abrangente e, a partir do segundo ano, vão para a residência da especiali­ dade escolhida. A terceira forma de rotação é a que se realiza dentro do serviço e consiste em que, a cada três meses, os residentes têm de mudar de sala.17 Tal rotação lhes permite trabalhar um período em salas de mulheres, outro em salas de homens, ao mesmo tempo em que entram em contato com diferentes médicos de plantei do serviço. As tarefas dos chefes de residentes, além da coordenação das atividades, abrangem a reunião com os residentes, pelo menos uma vez por dia, para discutir 54

os problemas dos doentes e do serviço, selecionar com o chefe de serviço e os responsáveis da docência os temas para as atividades docentes dos residentes. São também responsáveis pelo cumprimento das instruções passadas pelo chefe do serviço aos residentes. O instrutor deve colaborar com o chefe de serviço e o chefe de residentes na organização das tarefas dos residentes, supervisionar o trabalho dos residen­ tes e, o que é fundamental, assessorar, discutir e aconselhar os residentes nos problemas diários enfrentados, promovendo a discussão didática, teórica e prá­ tica sobre os pacientes. A residência não contava no momento da pesquisa com um instrutor de residentes, o que ocasionou o aumento das tarefas e responsabilidades dos chefes de residentes; por outro lado, produziu-se um sentimento de falta não só nos chefes, que se estabeleceram como líderes da residência, mas também como em todos os residentes. O problema com a figura do ‘instrutor’ é que ele tem de cumprir com todas as atividades dos residentes, o que implica estar presente no mesmo horário deles, recebendo um salário baixo. A escolha do instrutor toma-se ainda mais complicada porque tem de ser um médico de plantei do serviço ou do hospital; ser suficiente­ mente jovem - para não haver grande diferença de idade entre ele e os ‘residentes’ (o que ocasionaria terem aprendido medicinas muito diferentes) - e, ainda, se pos­ sível, ter sido também residente. A figura do instrutor viria cumprir a função de ligação entre ‘o plantei’ e ‘a presidência’, já que para ser ‘instrutor’ tem de ser um médico do plantei e ser respeitado pelos residentes. Não se pode explicar, unicamente pelos problemas de horário e de salário, a dificuldade de encontrar o indivíduo adequado para cumprir tal função, mas, sim, por está havendo um problema de relação entre as duas categorias. Foi essa a organização que se pensou para o sistema de residências provin­ cial, porém, em sua aplicação prática, constata-se que existem limitações deriva­ das tanto do plantei médico que já estava funcionando no hospital, como das limitações econômicas que experimentam os hospitais públicos no momento em que se realizava este trabalho. A H is t ó r ia d o S is t e m a d e R e s id ê n c ia s

Por volta de 1971, começou a ser aplicado o sistema de residências médi­ cas. Os primeiros residentes do hospital iniciaram na sala 3 do pavilhão maior; posteriormente, foi se ampliando devido ao impulso que se deu no sistema a partir do nível central —Ministério da Saúde da Província de Buenos Aires. 55

Até o momento em que se instauram as residências, o sistema de ingresso de um médico no hospital era por meio das ‘concorrências’ médicas. Essa foi a trajetória de todos os médicos de plantei do pavilhão novo. No período anterior à implementação das residências, o que se encontrava era uma classificação entre ‘praticantes maiores’ e ‘praticantes menores’ e, depois, ‘médico de plantei’.18 Isso marcou uma diferença entre os que representavam essa nova catego­ ria, os ‘residentes’, e os que eram ‘concorrentes’. Segundo o Dr. I., os residentes estabeleceram um ‘feudo’ ( ‘uma casta’ para o Dr. W.’) e estabeleceram uma divisão entre eles e, do outro lado, os ‘médicos de plantei’ e os ‘concorrentes’.19 A idéia que originou o sistema de residência era a de formar novos médicos em centros de alta complexidade que, depois de receberem uma boa formação, voltassem para seus lugares de origem, ou se dirigissem às zonas que necessitas­ sem de médicos.20 Mas o problema, para os ‘médicos de plantei’, se apresentou quando os ex-residentes se deram conta de que nos lugares de destino não havia oportunidades, por isso, voltavam ao hospital. Para o Dr. W., “a idéia era que estivessem três anos aqui e depois fossem a lugares estratégicos; o que acontece é que permanecem todos aqui”. Entretanto isso não ocorre: os residentes, uma vez que acabam suas bolsas de estudos,21 depois dos três anos, permanecem na cidade exercendo a medicina ou se incorporam a algum serviço do hospital.22 Para o Dr. I., produziu-se uma situação na qual os médicos formados no ‘sistema de concorrências’ (e que formam o plantei do hospital) vão se aposentan­ do, e os residentes vão aumentando, tanto pela admissão dos novos ano após ano, como porque os que já terminaram permanecem no hospital; por isso, prevêem-se mudanças: “no futuro o hospital vai ficar em mãos dos residentes e isso vai mudar tudo”, disse o Dr. I. Segundo ele, os residentes que tinham uma atividade transitória, quer dizer, que não ocupavam cargos no plantei do hospital, começam a fazê-lo e vão, no futuro, ocupar o lugar dos ‘médicos de carreira’, motivo pelo qual, para o Dr. I, isto fará com que os ‘residentes’ “fiquem ocupando esse assento de honra” referindo-se ao assento de honra dos médicos. Essa reposição ocasionará modifica­ ções na formação do médico - “será outro médico totalmente distinto”. O que se resgata dos relatos dos médicos é uma distinção claramente marcada entre essa nova categoria de ‘residente’ e a categoria à que eles pertencem, a de ‘médicos de plantei’. As duas categorias têm uma inserção notavelmente diferente no hospital, o que gera interesses completamente distintos. Tal diferença ocorre porque o ‘residente’ não pertence ao staffdo hospital, mas tem uma relação contratual por três anos - podendo ainda fazer uma segunda residência, embora tenha de revalidar a contratação com outro exame que é totalmente independente do primeiro. 56

Essa transitoriedade faz com que as preocupações dos residentes estejam relaciona­ das com questões mais urgentes em relação ao hospital e não com questões a longo prazo. A situação é diferente com os ‘médicos de plantei’, que em alguns casos apresentam uma relação contratual de mais de vinte anos e clara consciência de que terminarão a carreira médica no hospital. Além das categorias de ‘residente’ e de ‘médico de plantei’, reconhecem-se outras categorias distintas nos hospitais; estas são a'de ‘concorrente’23 e a de ‘visitante’. Visacovsky (1991: 115), ao tratar das relações entre os psicólogos e o hospital-instituição, realiza a distinção entre as categorias de ‘visitante’ e a de ‘concorrente’. Na primeira, entrariam aqueles que comparecem ao serviço quatro ou três vezes por semana, realizam cursos, efetuam atendimento, “tudo sem outro reconhecimento que o do serviço, diferentemente do concorrente que tem um reconhecimento oficial”, outorgado pelo Ministério de Saúde da Província. Os ‘médicos de plantei’, antes do ingresso na carreira médico-hospitalar, se enqua­ dravam na categoria de ‘concorrente’. Mas uma característica que unifica as duas categorias é a de trabalharem ad-honorem\ nesses casos, se falará de uma compensação simbólica, uma forma de ‘pagamento substituto’, que tomaria a forma de aquisição de formação por parte dos ‘visitantes’ e dos ‘concorrentes’, ao qual retribuiriam com trabalho assistencial (Visacowsky, 1991). Isto significa que a instituição hospitalar dá for­ mação profissional e recebe trabalho assistencial como contraprestação. Bem di­ ferente é a situação dos ‘residentes’ que, pelo trabalho assistencial, recebem uma bolsa de estudos do Ministério de Saúde da Província de Buenos Aires por um período de três anos, além da formação profissional. A diferença em relação ao pagamento pelo trabalho realizado pode ter gerado, nos primeiros tempos, um problema entre os médicos recém-ingressados, os ‘resi­ dentes’ e os que ingressaram pelo sistema anterior, os médicos ‘concorrentes’. Poder-se-ia aventar que as diferenças, que ainda hoje têm significação entre as duas categorias, teriam se originado nesse momento e que depois foram aumentando a partir dè posições diferentes quanto às formas de entender e praticar a medicina. Uma diferença entre as observações de Visakovsky no serviço de Saúde Mental (de Um hospital que ele não identifica) e as que realizei, no serviço de Clínica Médica, foi que os ‘visitantes’ não cumpriam nenhuma tarefa, porque os pacientes eram tratados pelos ‘residentes’.24 Falta ainda explicitar outra categoria significativa no serviço - a de ‘pararesidente’. Os médicos que entraram nessa categoria são os que não ingressaram na residência prestando os exames, mas o fizeram por um acordo com os chefes de 57

residentes e o chefe de serviço. Os ‘para-residentes’ comparecem em todas as atividades da residência, mas não têm um reconhecimento oficial do que fazem, motivo pelo qual não podem assinar histórias clínicas, nem qualquer tipo de docu­ mento que saia da residência. A falta desse reconhecimento faz com que não rece­ bam nenhum tipo de remuneração pelos serviços prestados, o que os aproxima das categorias de ‘visitante’ e de ‘concorrente’. A R esidência

de

C línica M édica

do

P avilhão N ovo

A estrutura de uma determinada residência depende de um conjunto de fatores relacionados com as características da especialidade, das autoridades do serviço ali incluídas, dos atributos pessoais dos ‘médicos de plantei’ e dos resi­ dentes que a formam. A residência de Clínica Médica do pavilhão novo, no momento em que realizei o trabalho de campo, estava formada por um grupo de 21 ‘residentes’ e uma ‘para-residente’; com relação à diferenciação por categorias, havia dois che­ fes de residentes, quatro R3, quatro R2, onze R l e uma ‘para-residente’ que desempenharia funções de R l. O número quatro para os R2 e R3 corresponde ao fato de que o pavilhão está disposto em quatro salas, de maneira que cada sala tenha um R2 e um R3. O número elevado de R l é porque ele inclui todos os R l que escolheram outras especialidades, mas têm de fazer um ano de rotação pela residência de Clínica; os que escolheram Clínica Médica como especialidade são somente quatro e no ano seguinte continuarão na residência.25 Dos 22 residentes (aí incluída ‘para-residente’), 12 são homens e 10 mu­ lheres; suas idades oscilam entre os 24 (os que estão no primeiro ano da residên­ cia) e 28 anos (para os que estão terminando). Pode-se concluir, então, que, tendo realizado o curso de medicina de 6 anos e 4 anos de residência (no caso dos chefes), ingressaram na residência com 24 ou 25 anos. Os residentes provêm de famílias de classe média e, em sua maioria, são filhos de profissionais liberais. Quanto à procedência geográfica, a grande parte deles vem da cidade em que se encontra o hospital e da província de Buenos Aires; exceto E., que é do norte da Argentina e que se radicou na cidade exclusivamente para fazer a residência, e J., que é de nacionalidade estrangeira. J. optou por estudar na Argentina porque, em seu país de origem, para o curso de medicina, no ano em que pretendeu ingressar, o exame de seleção estava sob muitas suspeitas. Quando tomou conhecimento do convênio de intercâmbio para universitários, veio para a Argentina.26

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Com exceção de E., que estudou medicina em Tucumán,27 todos são gra­ duados da Universidade Nacional da cidade, ainda que esse fato não implique explicitamente uma vantagem no concurso de seleção para a residência. Galli (1989), em estudo sobre a situação atual da educação médica na Ar­ gentina, fez um mapeamento das faculdades de Medicina subordinadas às Univer­ sidades Nacionais e de duas faculdades particulares28 e analisa a quantidade de admissões e conclusões em um período de 25 anos (1965-1989). Nesse período, a faculdade que teve mais admitidos foi a de Buenos Aires (62.535 inscritos), seguida da faculdade em que realizava a pesquisa (36.462 inscritos). Outro dado importante para analisar a posição da faculdade de Medicina em foco no campo da formação médica universitária é que, no ano da pesquisa de campo, a instituição contava com o maior número de alunos efetivos (17.370), seguida da de Buenos Aires (13.555). Observaram-se, como característica que abrange todas as faculdades, dis­ tintos períodos relacionados ao número de matrículas e à modalidade de admis­ são. Os anos 1974 e 1975 foram marcados pela admissão irrestrita; de 1977 a 1983, existiam limitações de admissão - como exames e vagas limitadas - e taxa­ ção; a partir de 1984, voltou-se ao ingresso irrestrito; mas, em 1989, diferentes modalidades começaram a ser experimentadas para restringir o número de candi­ datos ao ingresso nas faculdades. No caso específico da faculdade da cidade em que desenvolvi o trabalho, foi em 1981 que se registrou o menor número de inscritos (192). Em 1984 e 1985, registrou-se um salto quantitativo pela elimina­ ção dos obstáculos à admissão; passando de 225, inscritos em 1983, a 786 em 1984 e a 2.159 em 1985, números que continuaram crescendo até 1989 (3.197 inscritos), quando se implementou um novo tipo de ingresso seletivo. Uma característica importante para a temática desenvolvida neste livro é a orientação dada no currículo que, apesar de ter um propósito declarado de formar ‘médicos generalistas’, tem uma organização de plano de estudos que favorece a formação de especialistas, uma vez que existe um ensino descontextualizado das necessidades de saúde da população e das necessidades do sistema de saúde. Isto se expressa claramente na grade curricular, pois das 40 matérias que formavam o plano de estudos (vigente em 1989), 28 tinham uma orientação dominante voltada para o diagnóstico e tratamento dos indivíduos, 9 apresentavam uma orientação voltada para as ciências básicas e só 3 se voltavam para a saúde coletiva.

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0 C o t id ia n o d a R e s id ê n c ia

A atividade diária na residência está dividida em dois grandes blocos: as tarefas assistenciais das salas até o meio-dia e, pela tarde, atividade docente que consiste em aulas teóricas e em ‘passes de sala’. O dia dos médicos residentes começa de maneira similar para todos. Pela manhã cedo, antes de começar a atividade da sala, reúnem-se na sala de estar da residência, onde tomam chimarrão enquanto conversam sobre temas gerais, dis­ cutem acerca dos resultados dos exames (que previamente alguém recolheu do laboratório) e tomam conhecimento da admissão de algum paciente. Esse encon­ tro geralmente vai se esvaziando à medida que os RI vão saindo da sala para inspecionar os pacientes, não obstante tenha sido necessário, em algumas ocasiões nas quais o encontro se alongava démasiadamente, que alguns dos chefes pergun­ tassem se não tinha trabalho na sala, já que estavam todos ali (depois dessa per­ gunta, nenhum dos RI permaneceu). Nesses encontros, participam todos os que vão chegando sem distinção de grau; mas é aqui, na sala da residência, onde começam as tarefas diferenciadas. Os RI saem para a sala, os R2, se estão de plantão no edifício central, saem para lá; os que não estão de plantão vão para a s a la junto com os R3. A s ‘passagens de sala’ são feitas uma vez por semana e devem participar d e la to d o s o s membros da sala, tanto os médicos como os residentes. Pode ocu­

par grande parte da manhã (geralmente começa às 8h e 30min). Os dias em que n ã o há passagem de sala são mais tranqüilos porque sobra mais tempo para os residentes fazerem outras coisas, não precisam apressar-se para rever os pacien­ tes e têm mais tempo para desenvolver as histórias clínicas. Logo depois de rever os pacientes, ou de realizar a ‘passagem de sala’, os RI começam a azáfama matutina, motivo pelo qual se pode vê-los caminhar de um lado para outro, com algum paciente ou sozinhos, procurando realizar alguma consulta, pedir turnos, ou buscar resultados de estudos. C., uma das R l, se autodefiniu como “o burro de carga (...), a raspa do tacho”, fazendo alusão à condição de que são eles que têm menos direitos (em relação aos mais antigos). Para M„ “os R l estamos todos correndo”. No dia em que disse isso, M. foi ao escritório de Pami,29 depois foi ao serviço de Hematologia por causa de um paci­ ente com o vaso enfartado. Como o paciente não era operável, a mandaram para a Radioterapia para consultar a possibilidade de realizar um tratamento com radi­ ação - naquela manhã, acompanhei-a por toda parte, de modo que pude observar as formas de tratamento dos diferentes serviços, ao mesmo tempo em que fazia uma idéia das tarefas cotidianas dos R l. 60

A rotina dos R2 não varia fundamentalmente da dos RI quando estão na sala, mas sim quando têm de realizar plantões no serviço de emergências do hos­ pital e quando estão passando por outros serviços, pois, nesses casos, não têm pacientes designados na sala. Em relação ao último grupo, os R3, sua tarefa é estar na sala apoiando e guiando os RI que os consultam permanentemente; os R3 não têm pacientes a seu cargo, mas conhecem indiretamente todos eles e são os responsáveis, ao menos em parte, pelas condutas dos R l, já que estes dificilmente tomam quaisquer resoluções sem consultá-los. A tarefa dos ‘chefes’ pela manhã é organizar as atividades da residência e também realizar os ‘passes de sala’ dos R l, razão pela qual também estão na sala em grande parte da manhã. A atividade assistencial, que inclui ò atendimento e o acompanhamento do paciente, permite também uma série de atividades que não são estritamente médi­ cas, tais como, tomar os sinais básicos dos pacientes cotidianamente - tarefa que em outros hospitais é feita pelos enfermeiros - , levar pacientes para a realização dos exames quando não estão disponíveis os carregadores de maca e conseguir um turno ou buscar os resultados das análises. Por causa dessas tarefas nãomédicas, o tempo em que estão com o paciente é mínimo, o que gera uma sensa­ ção de apreensão no residente e de abandono no enfermo. A respeito dessa situa­ ção, G., uma R2, me dizia: o tempo que passamos com um paciente é de 15%, se tanto; então você chega de manhã, examina o paciente e depois desaparece; vai buscar turnos, resultados de hemocultivos, (...) depois você tem que desenvol­ ver, e fazer a atividade da tarde. Quanto está com o paciente? Uns 15%. Esse é o tempo que o paciente está em contato com o médico.

L., um dos chefes de residentes, recordando o tempo em que era um R l, me disse “eu passava das 8 às 8h e 40min revendo pacientes e depois me ocupava fazendo tarefas não médicas”. Ao meio-dia, os residentes convergem novamente para a sala de estar, com­ pletando os históricos clínicos ou fazendo consultas aos R3. Depois do almoço, começa a atividade da tarde e todo paciente que ingressa após o meio-dia é rece­ bido pelos ‘residentes’ que estão de ‘plantão’. As atividades da tarde são docentes, consistem em uma passagem de sala (também chamado ‘passe de sala’, como já explicarei), duas aulas teóricas que são preparadas por R2, R3, pelos chefes, ou por médicos de outros serviços aos quais se pedia cooperação - durante o período em que estive realizando o trabalho de campo, nenhum dos médicos de plantei do 61

pavilhão deu uma aula na residência. Quando, às 17 horas, termina a atividade, os que têm de ‘desenvolver histórias’30 permanecem junto aos que estão de plantão. A entrada na residência produz certas mudanças, relacionadas às vivências cotidianas, nas condutas dos jovens residentes. Tais modificações, em parte, são ocasionadas por um regime de horário que lhes exige permanecer no hospital das 8 da manhã às 17 horas, de segunda à sexta, e aos sábados de 8 às 12 horas, ao que se somam dois plantões semanais. Além dessa carga horária, tem-se de levar em conta que, por falta de habilidade nas tarefas realizadas nos primeiros meses, quase todos os RI se retiram da residência depois das 17 horas, com isso, o tempo de convivência é maior. As residências são tomadas como o primeiro trabalho ‘sério’ no que concerne à medicina e representam um primeiro encontro com a ‘medicina vivida’. P., um dos chefes de residentes, pôde ver essa seriedade expressa nos rostos dos RI em seu primeiro dia; recordando esse dia, dizia: “tinha que ter visto as caras quando entraram”. A partir de então, passam a ‘viver’ no hospital; entretanto, “há gente que tem problemas de adaptação”. Referindo-se a esse momento, D., uma R l, me disse: “você tinha que ter vindo quando entramos, os primeiros dias, chorávamos todo o dia, bah (...) eu chorava, não me acostumava a esta vida, a estar aqui; pensei que havia errado de carreira”. O relato de D. fala desse forte contraste sentido na ‘saída da faculdade’ que ocasiona questionamentos profundos nos momentos em que os R l vivem situa­ ções conjunturais limites. A maioria deles alude ao ingresso na residência como uma ruptura, um momento em que a medicina adquiriu outras dimensões, e são essas novas dimensões que os colocam ante a insuficiência de sua preparação, que se manifesta como uma sensação de serem superados pela situação; assim o expressa D.: “nos primeiros plantões, eu era superada pela situação; quando vi o primeiro morto, me impressionei; e, olha agora, sou outra pessoa”. Pude observar, em todos os residentes, o choque ocasionado pela entrada na residência e, conseqüentemente, pela saída da faculdade que, em maior ou menor grau, vão representar essa transformação como ‘estressante’, devido à falta dè ade­ quação entre a aprendizagem realizada na faculdade e o dia-a-dia do hospital (refiro-me a essa falta de adequação ao diferenciar ‘medicina de livro’ e a ‘medicina vivida’. As novas experiências fazem com que surjam vínculos entre os residentes, que podem adquirir uma preponderância momentânea em relação aos vínculos anteriores ao ingresso na residência. O fato de vincular-se à residência cria desde o início uma idéia de pertencimento e de grupo que favorece a comunicação des­ sas novas experiências. 62

Esses vínculos podem ser reforçados pelo fato de os residentes viverem sensações e emoções fortes, como são as de se verem diante da morte de seus pacientes ou comunicar a eles que sofrem de uma enfermidade incurável. L. se referia a isto dizendo: Começam a passar coisas com você e você começa a se questionar (...), aos três meses ocorreu a mim ver morrer um cara de 36 anos que tinha uma insuficiência renal. O cara tinha um edema agudo de pulmão, o plantão não lhe deu pelota e, pela manhã quando chego, o cara estava agonizando na sala; além disso, meu R3 me deixou sozinho, (...) eu o levei para uma diálise de emergência e ele morreu no corredor. Eu o meti na nefrologia e o estivemos reanimando por uma hora (...) são os cadáve­ res que embaralham sua cabeça e aí muda a sua situação, eu fui diferente depois desse caso. E, se começa a falar com cada rapaz, todos terão uma história parecida; se não a teve vai ter, é questão de tempo, (grifos meus)

As situações que fazem os residentes mudar são as que passam a ser com­ partilhadas no grupo ou talvez com alguém com quem tenha um diálogo mais próxi­ mo. A idéia de grupo que se produz ao compartilhar as novas experiências é também expressa como um ideal de funcionamento da residência. P., um dos chefes, fazia alusão a este ideal dizendo que a residencia lhe proporcionou um “compromisso social” forte e que o mudou, no sentido de começar a pensar não só no que lhe interessava, mas também em lutar para que outros tivessem a possibilidade de ter a mesma formação dele.31 No entanto, seu relato permite perceber uma desilusão em relação à expectativa profissional: A residência perdeu sua mística, os residentes já não são os mesmos residentes que havia antes. É porque mudamos todos na realidade, a residência mudou como mudou a sociedade, já não estamos nem nos anos 70, nem nos anos 80, quando nós éramos todos revolucionários; hoje cada um está preocupado com sua pessoa e se vê aqui dentro, porque aqui cada um cuida de sua residência, cuida de seu posto. (grifos meus)

Este relato expressa claramente uma tensão fundamental na ‘residência’, já que, por um lado, existe o ideal de funcionar como grupo; por outro, uma tendên­ cia de cuidar só de si mesmo. A tensão se expressa claramente na estrutura da residência. Ela é hierárquica e ‘verticalista’, tem uma classificação numérica em 1, 2 e 3, que não só faz alusão à quantidade de anos de vinculação à residência, como também às obrigações de cada um. Contudo, o problema de algum de seus membros é vivido como sendo de todos, e as decisões que dizem respeito aos 63

pacientes com complicações nunca são tomadas por uma só pessoa. Assim G., R2, nos conta uma situação vivida com uma mulher que estava morrendo e lhe pediu que não lhe fizesse mais nada: Eu estava de plantão com dois rapazes novos, minha decisão era a última porque eles eram novos. Quando expus a questão na residência, que não lhe havia feito nada, fo i difícil; me disseram que, se fo r para não fazer nada, temos que nos pôr todos de acordo; que eu não podia decidir sozinha.

Mas, não obstante essa sensação de companheirismo, de ter um grupo que sempre apóia, de ter chefes que darão explicações pelo que cada residente faça, na residência está a idéia de que é ‘verticalista’, e, em alguns casos, dizem que “é militar, são muito verticalistas, não se passa por cima de ninguém (...) isso leva a que os do primeiro ano estejamos mais unidos entre nós; os de segundo entre eles; e os de terceiro entre eles; mas nos damos bem...”. O ‘verticalismo’ está claramente marcado na forma como os residentes se sentam nas ‘passagens de sala’ da atividade da tarde. A sala de aula tem formato de um anfiteatro, com os bancos em vários degraus; na frente para um dos lados, há um leito; e, no centro, está o púlpito que é usado por quem vai dar a aula. Os R l, ocupam os bancos de baixo, e à medida que se adquire tempo de serviço vão subin­ do, razão pela qual os R2 e R3 sentam-se nos bancos superiores. Cabe ao chefe, sentar-se no leito da frente. No momento em que realizava o trabalho de campo, comprovou-se como os R3 que passaram a ser chefes, ao final do verão, mudaram do banco de cima para o leito da frente. Apesar desse marcado ‘verticalismo’ e de algumas associações com regi­ mes militares, todos consideram necessária a presença de uma ‘autoridade’ que os faça cumprir as obrigações, pois, pelo cansaço que ocasiona o ritmo da residên­ cia, as atividades não seriam desenvolvidas sem tal controle. G. explica o sistema de responsabilidades da seguinte forma: O de terceiro ano ensina ao de primeiro, o de segundo está dando voltas e o chefe tem que manter a estrutura. Quando o de primeiro ano já aprendeu, passa a ser de segundo, e o que estava no segundo passa a ser do terceiro; se isso não se mantém, arma-se uma confusão terrível; por isso o verticalismo tem que existir, quando você está em primeiro sente mais isso porque tem menos direitos do que os outros. Se voce está no segundo e faz algo ruim, cometeu um equívoco; mas, se está no primeiro, matam você. (grifos meus)

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Essa autoridade está representada na figura dos chefes e seu atributo prin­ cipal é ter ‘autoridade moral’; isso quer dizer que os chefes têm de dar o exemplo, que não podem exigir o cumprimento das pautas se eles mesmos não as cumpri­ rem. Outro atributo é ser ‘coerente’, visto que, se não atuam com coerência nos diferentes casos, podem gerar divisões e conflitos. Existe um mômento do ano em que a possibilidade de atritos e conflitos é mais concreta; este período ocorre quando os novos chefes assumem a função no primeiro semestre. Visto que ainda não entraram os novos residentes, e os R l, que já estão terminando o primeiro ano, não os vêem, ainda, como chefes, mas sim como R3. Produz-se, então, uma ‘crise de poder’, cuja causa seria a não aceita­ ção das mudanças relativas à posição de alguns residentes. Essa situação pode ser observada em virtude do atraso, em alguns meses, do ingresso dos novos residentes, atraso esse que criou uma defasagem entre a entrada dos novos residentes e a troca de chefia; estabeleceu-se, então, um ‘período de transição’, no qual não fica claro a que categorias pertencem os residentes, já que os chefes anteriores não estão mais (motivo pelo qual os R3 têm que passar a ser chefes); ficando somente dois R3 (os que não foram escolhidos para chefes). Se os R2 passam a ser R3, os R l têm de passar a ser R2; mas o problema surge porque os R l recém-admitidos ainda não ingressaram. Essa não é uma questão só de nomes, mas sim de status', e, com o status, as funções mudam; assim o expres­ sa Fa., um R2: Há uma mudança brusca ao passar de R l para R2, não é gradual; diminuem muito as exigências. A pessoa passa a ser mais importante e isso ocorre de um dia para o outro, no dia 30 de maio você é Rl, e no dia 1° de junho é R2 com tudo o que implica ser R2 (...). A tarde, como não tem mais exigências, você está mais liberado, tem mais segurança, está menos estressado porque não lhe perguntam, então, pode estudar qualquer assunto, não o que é para a aula seguinte e, fundamental­ mente, começa a fazer plantões no central.

Recapitulando, então, o fato de serem residentes na província de Buenos Aires, em hospitais públicos, implica que sofram importantes mudanças nas roti­ nas diárias, que assumam um compromisso de três anos de trabalho, de terem um salário (que é uma bolsa de estudos) que não é suficiente para viver - motivo pelo qual têm de viver com as famílias ou ser ajudados por elas.32 Em contraste com essas características da escolha de fazer uma residência, está presente a idéia de que se fizessem plantões ou um curso de especialistas teriam melhor remuneração e um título de especialista. 65

Esta situação levanta uma questão: por que fazer uma ‘residência’ em um hospital público? Apesar das diversas respostas, todos concordam que é a única possibilidade séria de formação; pois, quando um médico sai da faculdade não está preparado para começar a trabalhar. Se ele não tem o contato com alguma clínica particular, em que possa começar a aprender, as residências são, portanto, o melhor caminho. O que a ‘residência’ pode oferecer é a prática, a experiência com o paci­ ente; essa experiência não se pode adquirir nos plantões durante a graduação, por­ que neles não se pode fazer um ‘acompanhamento do paciente’. O que se busca na ‘residência’ é a formação de critérios de trabalho; assim o expressa Q., um Rl: É uma coisa necessária. Eu recebi o diploma no ano passado e fiz outra medicina, trabalhei em piscinas de natação, em clínicas; é uma medici­ na onde você é autodidata (...). Você se limita a ter dez diagnósticos em mente, se não é isto é aquilo outro, mas necessita que alguém corrija você, se está bem ou mal, necessita de um guia para construir para si um critério; o que eu não tinha era critérios. Quando fazia plantões me dava conta de que havia uma diferença entre os que haviam feito a sua, que se haviam formado lendo sozinhos, e aqueles que haviam feito uma residência; não quer dizer que não se equivoquem, mas sim que sabiam trabalhar mais criteriosamente, (grifos meus)

Apesar disso, encontrei situações em que jovens recém-graduados não esco­ lheram entrar para uma ‘residência’. Esse é o caso de A. Ela se enquadra na catego­ ria de ‘para-residente’, razão pela qual não tem os benefícios de seus companheiros; mas, por ter entrado no ‘ritmo da residência’ tem as mesmas obrigações. A mãe de A. é médica e trabalhou no pavilhão novo anos atrás. Pelo fato de sua mãe conhecer o chefe do serviço e a médica chefe da sala à qual A. começou a comparecer, permitiram-lhe iniciar as visitas. O problema surgiu quando A. per­ cebeu que, como ‘visitante’, não tinha tarefas, de modo que somente acompanha­ va as visitas de sala sem ter pacientes a seu cargo. Depois de constatar isto, consultou os chefes de residentes para saber da possibilidade de entrar como ‘para-residente’. A. não quis entrar para ‘residência’ porque, para ela, “o regime de residências sempre foi de loucos; então me ocorria que não ia poder fazê-lo; aí eu me disse, faço uma ‘concorrência’ que vou estar mais tranqüila”. Em um primeiro momento, após a consulta, os chefes negaram-lhe o pedido para trabalhar como ‘para-residente’. Mas, depois, ao ver que o número de residen­ tes era menor do que o necessário, lhe permitiram entrar. A negativa dos chefes se baseou em que, para o sistema de residências, a pessoa é útil à medida que pode ensinar nos últimos anos da residência. Assim, a ‘dívida’ que um ‘residente’ contrai 66

não é com os que os lhe ensinaram, mas sim com os que vêm depois dele, a quem ele vai ensinar. Por isso é que L., um dos ‘chefes de residentes’, disse: [a residência] é um sistema que se recicla; definitivamente os que me formaram foram os que estavam antes; eu não posso devolver nada a essas pessoas, mas tive a possibilidade quando fui residente de terceiro ano de devolver aos que vieram depois; então você devolve se permane­ ce na residência. Um para-residente, ou aquele que só passa um ano na residência, o que lhe devolve? Porque, quando ele vai fazer uma punção, eu não digo ao de clínica que a faça... o sistema é injusto, o para-residente é útil se devolve quando está no segundo ano. (grifos meus)

O relato de L. levanta a questão de como a ‘residência’ como instituição está à frente dos indivíduos que a formam, apesar de que as características que toma dependam, em parte, das características dos indivíduos. Esta ‘dívida’ que os residentes contraem com o sistema de residências, per­ sonificado nos residentes que anteriormente passaram por ele, permite introduzir a temática da dádiva e da contradádiva, do fato social total que implica a relação de intercâmbio que se estabelece entre os indivíduos. 33 Falo de intercâmbio entre os indivíduos, apesar de Mauss (1979) expressar claramente que o intercâmbio é entre coletividades, porque, neste caso, os que se obrigam e controlam são os indivíduos, e a comunidade interessada nesse intercâmbio de prestações totais seria o pavilhão novo; em outro nível, o intercâmbio se estabelece entre as distintas residências do hospital. O relato de L. ressalta a importância da ‘contradádiva’ na sustentação da relação social que implica a vinculação a uma ‘comunidade’ de residentes; a dádiva inicial concedida pelo sistema é o nome (“ser residente do pavilhão novo”) que marca a categoria de vinculação ao grupo e que gera a possibilidade de uma segunda dádiva: a aprendizagem da prática médica. O sistema de residências, como instituição de formação, está incorporado em outra instituição maior: o ‘hospital’. Nesse contexto, o residente começa a ‘devolver’, a pagar sua dívida, no momento da admissão, mediante o trabalho cotidiano. Mas, para L., representante do sistema de residências, a contradádiva essencial não é trabalhar, mas sim ensinar, porque essa é a contradádiva que sus­ tenta o sistema; isso explica a pergunta de L.: “um ‘para-residente’ ou aquele que só passa um ano na residência’, o que lhe devolve?” No entanto, nesse jogo de dádiva e contradádiva, tem de haver um intervalo de tempo que introduz as estratégias individuais e com elás a incerteza a respeito das intenções individuais, as quais podem incluir a não devolução e o corte das prestações e contraprestações. 34 67

Esse jogo de dar, receber e devolver - esta última obrigação sempre silen­ ciada - tem efeitos sobre as relações que os residentes mantêm entre si, com os que só passam um ano na residência’ que não devolvem - mas que são um ‘outro’ não tão distante (porque são residentes) - e com os ‘não-residentes’ - que são os ‘outros’ distantes que não devolvem. Para ilustrar a argumentação anterior, pode-se voltar à trajetória de A.; ela provou que pôde fazer uma residência; já que participou deste regime e, ainda, realizou ‘plantões’ fora para se manter. Tal situação fez sentir-se desagregada por trabalhar em dois lugares ao mesmo tempo: Porque estou na clínica pensando em meus pacientes daqui, porque na clínica você não tem pacientes teus, isso implica mais sacrifícios e além disso aqui a chefia não reconhece, porque você é dos outros (...) por­ que você não é do plantei da residência, (grifos meus)

O que A. expõe em seu relato é o sentimento de se sentir diferente pelo fato de ser uma ‘para-residente’ e não uma residente; sua categoria serve para justifi­ car seus erros, as mesmas falhas que em outros se explicam por inexperiência ou por falta de tempo. Neste sentido, a categoria se transforma em uma ‘categoria acusatória’ - “nenhum para-residente serve”, escutou um dia. A diferença identificada em A. é estabelecida entre ‘residentes’ e ‘pararesidentes’, entre os que têm a obrigação e os que não a têm. Embora trabalhasse com a hipótese de que os residentes podiam ser considerados uma ‘elite’ - visto que entram os que têm as melhores médias, e a grande quantidade que fica fora do sistema me permitia formular tal hipótese - não esperava encontrar essa diferença entre as distintas categorias. Essa distinção entre categorias ocasionou uma compartimentalização entre os ‘residentes’, que, por sua vez, se fecham ao redor de sua categoria, considerando que são eles os que melhor sabem fazer as coisas. G se refere a isso da seguinte forma: Aqui dizem a você que pode resolver as coisas melhor do que os outros, que nos demais serviços não sabem fazer as coisas, que são uns babacas (...) Eu sempre brigo por isso, porque um cara que o ano passado esteve rodando aqui, em um ano não pode ter-se transformado em um babaca por estar em outro serviço, (...) mas é como que ‘olha só o que fez fulano, nós o teríamos feito de outra forma ’, é meio subliminal, mas daqui a pouco você acha que é o melhor.

A idéia da elite reafirma o que me diziam os médicos citados no início deste capítulo, acerca de como os residentes estabeleceram um ‘feudo’ ou, em outras 68

palavras, como produziram diferenças que foram determinantes para a distinção entre as categorias diferenciadas de ‘médicos de plantei’ e ‘médicos residentes’ . 35 O ingresso à ‘residência’ marcaria um momento em que os residentes vivenciam novas experiências e em que a medicina adquire para eles novas dimen­ sões. Essa mudança, no entanto, não significa o ingresso no ‘competitivo’ mundo da medicina privada, mas sim o ingresso em um ‘mundo de transição’. Para caracterizá-lo, os chefes de residentes utilizam a expressão ‘adolescência da me­ dicina , expressão que é dada por uma associação entre as etapas da vida e a carreira médica. A relação pode tomar dois sentidos; o primeiro seria que a adoles­ cência abrangeria somente uma das etapas da residência; e o segundo que todo o período da ‘residência’ corresponderia à ‘adolescência da medicina’. No primeiro sentido, a adolescência abrangeria o período intermediário da residência. A fase inicial seria aquela chamada de ‘infância’, período em que é grande a confiança nos professores e nos ‘médicos de plantei’; em seguida, have­ ria o período da adolescência , marcado pela rebeldia, pela confiança em si mes­ mo e em seus pares; e por último, um período de ‘maturidade’, que se caracteri­ zaria por uma consciência maior das responsabilidades, por haver deixado para trás o momento da fascinação e por uma reconsideração da relação com os médi­ cos mais experientes. No segundo sentido, a relação se faz com a totalidade da vida profissional de um médico, o que põe em relação é esse ‘mundo de transição’, que denomina­ rei o ‘dentro’, com o ‘mundo da rua’, ou ‘de fora’. Esse ‘mundo de transição’ - ou ‘mundo do hospital’, ou da ‘residência’ se caracterizaria como um lugar onde se pode contar com um grupo que acompanha e dá respaldo ao residente; em que se vivenciam experiências similares, onde a responsabilidade nunca é totalmente de um só e sempre haverá alguém com quem aprender. Nas palavras de L.: “você está numa caixa de cristal, nunca a ‘cagada’ é toda sua e, se é toda sua, vai ter quem o proteja, do chefe de residentes até o chefe do serviço . O ‘mundo da rua’ é o mundo da competição, do individualis­ mo. que se relaciona com a insegurança das possibilidades de trabalho e com a perda do status ganho na ‘residência’. Nas palavras de L.: Sabe o que acontece? Que você tem uma confiança cega em você mes­ mo, uma sensação de superpoderes; você pensa o seguinte: um R3 não é ninguém, um chefe não é ninguém, se diplomaram faz três ou quatro anos e aqui ninguém toca seu cu. Espera uns meses, quando sai para a rua, quando vamos para fora, um idiota por telefone decide a internação de um paciente que você está vendo faz uma hora e você o leva ao

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hospital justificando com os argumentos que o cara lhe deu por telefo­ ne Bem, a realidade é assim, (grifos meus)

A passagem para o ‘mundo da rua’, é vivida como uma ‘crise’, como uma insegurança diante da mudança. Relacionada a essa insegurança pode estar a ori­ gem do argumento de que a ‘medicina clínica’ é uma especialidade ‘inabrangível’, o que impediria ao futuro médico alcançar o ritmo das descobertas no campo, levando-os, assim, a uma sensação de ‘desatualização’ progressiva. Estaria asso­ ciada a esta idéia um discurso absorvido desde os anos de faculdade, no qual se supervaloriza a figura do superespecialista que trabalha rodeado de tecnologia. Tudo o que foi dito anteriormente conduz a uma desvalorização da Clínica Médica como especialidade, razão pela qual, muitos dos residentes optam por fazer uma segunda especialidade. A argumentação do ‘inabrangível’ da Clínica Médica e a desatualização que a envolveria não poderiam constituir uma elaboração secundária que adiaria momentaneamente a crise que implica a saída da residência? O sistema de residência evita que os jovens recém-graduados sintam a necessidade de incorporar-se ao mercado de trabalho, pelo menos nos dois pri­ meiros anos de residência, já que, no terceiro, começariam a realizar plantões de 24 horas para compensar a má remuneração da bolsa de estudos concedida. Mas, isso não acontece no caso dos residentes que já haviam trabalhado no subsetor privado antes da entrada no sistema, ou haviam estado como médicos de plantão em clínicas privadas, ou em empresas de convênio médico e, ainda, como médi­ cos de clubes. Tomando como referência o trabalho que Belmartino et al. (1990) realizaram sobre o ingresso no mercado de trabalho de médicos recém-graduados na cidade de Rosário e sua área de influência, 36 podem-se reconhecer três subsetores delimitados no sistema dos agentes de saúde: o privado, o público37 e o do seguro social. Os jovens médicos se incorporariam ao mercado de trabalho em relação de dependên­ cia nos três setores. No período dos seis anos seguintes à sua graduação, os autores assinalam um processo de inserção que tem como tendência principal um movimento da ocupação em plantões de 24 horas, quase exclusivamente nos primeiros anos, em direção à múltipla ocupação nos distintos subsetores mencionados anteriormente. Nesse contexto ocupacional, adquire fundamental importância a busca da especi­ alização como uma estratégia para melhorar as possibilidades de inserção no mer­ cado de trabalho. Esse mesmo processo de inserção ocorreu entre os residentes que consti­ tuíram minha população; visto que os primeiros trabalhos que enfrentaram foram 70

plantões de 24 horas fundamentalmente no subsetor privado (empresas de medi­ cina conveniadas e sanatórios). No término da residência, a oferta de trabalho mais importante continuou sendo a realização de plantões, fundamentalmente de­ vido ao estreitamento da demanda de trabalho no subsetor público, como resulta­ do do congelamento das vagas do plantei médico dos hospitais, o que impede aos jovens médicos ingressarem na carreira profissional hospitalar. 38 P assagens

de

S ala e ‘T ensão E struturante’

Não é difícil rastrear, na bibliografia que trata de temas relacionados à me­ dicina, a importância que teve a ‘passagem de sala’ na transmissão dos conheci­ mentos de uma geração à outra ou, em outros termos, no âmbito da relação mestre-discípulo. Para Foucault (1979: 110), desde o momento em que o hospital passa a ser uma instituição de cura, adquire uma importância crescente o ‘ritual de visita’; descreveu-o como um “desfile quase-religioso no qual o médico, na fren­ te, vai ao leito de cada doente, seguido de toda a hierarquia do hospital”. Em Herzlich et al. (1993: 152), encontra-se o relato do ‘ritual de visita’, feito por um radiologista que, nos anos 2 0 , praticava clínica médica: “o patrão fazia o enfermo sentar, pousava sua orelha, escutava o som das costas um segundo e falava uma hora, três quartos de hora. Era genial, ele resumia tudo, fazia uma síntese de tudo aquilo; ele dava uma lição de clínica”. Encontra-se essa mesma experiência das ‘passagens de sala’ nos relatos dos ‘médicos de plantei’; assim a Dra. H . 39 recordava um deles: O chefe de sala olhava a enferma aos pés da cama assim [faz o gesto de bambolear da direita para a esquerda], se inclinava para um lado e para outro, a enferma estava com o abdômen descoberto. Então lhe pergunta: ‘Você é do campo?' ‘Sim ’, responde a paciente; então ele diz: ‘tem uma ectasia do hemitórax direito’. Ectasia é um termo que nós não utilizamos mais; ele via que tinha um lado maior do que o outro, ‘essa enferma tem um quisto hidatídico’; e era isso.

Da mesma forma, Dr. W. lembra do Dr. R. (um dos líderes das duas esco­ las que havia no hospital): “passava a sala olhando e ia dizendo diabética, diabética, como se dava conta? Olhando, porque lhe via uma cara rosada, com um pouco de descamação, nos aguçava a visão, a observação”. Os relatos anteriores se orientam na mesma direção das citações bibliográ­ ficas, ressaltando a importância desse ‘ritual’ antigo e atual ao mesmo tempo. Em

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todas as citações e relatos, observa-se como uma característica fundamental da ‘passagem de sala’ a presença do paciente que ‘mostra’ sua enfermidade ao ‘olhar’ dos médicos. É, portanto, nesse momento ritualístico da ‘passagem de sala’ que a ‘tensão estruturante’ adquire toda sua expressão. A tensão entre as exigências do modelo biomédico, com ênfase no saber e nas práticas guiadas por ‘algoritmos’ e ‘protocolos’, por um lado, e a experi­ ência individual, a dimensão do vivido, dos sentimentos, pelo outro, fica estabelecida desde o momento em que a visão da totalidade da situação (‘passa­ gem de sala’) e das totalidades que entram em jogo (‘médico’ e ‘paciente’) são preteridas em decorrência de uma visão compartimentalizada, dicotomizada, que se deriva das exigências da ‘biomedicina’ como ciência. A pergunta que surge então é: Como se ‘manejam’, na aprendizagem práti­ ca da medicina, os níveis de tensão gerados nas ‘passagens de sala’? No pavilhão novo, em que fiz o trabalho de campo, realizavam-se dois tipos diferentes de ‘passagens de sala’: um deles era chamado ‘passagem de sala da manhã’, e o outro era a ‘passagem de sala da tarde ’ .40 Este último era unicamente realizado pelos residentes. A ‘passagem de sala da manhã’ é o momento em que os residentes, o chefe de sala, os médicos da sala e, em algumas ocasiões, o chefe de serviço e os chefes de residentes, percorrem toda a sala vendo cada paciente, a fim de sugerirem tratamento, inteirarem-se de alguma entrada e, em alguns casos, discutirem diag­ nósticos. Essas passagens não se realizam todos os dias, mas somente uma vez por semana por cada sala (ou duas em alguma das salas). Segundo a sala, e em virtude do que o hospital é, onde se ditam as matérias clínicas da Faculdade e onde têm assento duas das cátedras de Medicina Interna, concentra-se uma grande quantidade de alunos nas passagens, razão pela qual estes tomam a feição de um ajuntamento. Em determinadas ocasiões, chegou a haver cerca de vinte alunos que, se somados aos médicos e residentes, pode dar idéia de como a passagem adquire as características de uma ‘invasão de aventais brancos’. Tal invasão geralmente ocasiona uma interrupção nas atividades que os enfermos estejam realizando, já que todos têm de estar atentos para quando for pedida a colaboração a fim de agregar dados de sua enfermidade, ou para mostrar as lesões aos estudantes, quando lhes seja solicitado pelo médico. A atitude dos doentes varia desde atitudes cooperativas e abertas - as que se caracterizariam por agregar dados de sua enfermidade, de sua trajetória pessoal, por perguntar sobre sua enfermidade - até atitudes de uma total imobilidade corporal, como querendo expressar que nada se alterou desde a ‘invasão branca’. 72

A visão geral dos ‘residentes’ é de diminuir a importância da passagem matutina, visto que é meramente informativa; esta seria somente para informar aos ‘médicos de plantei’, já que nela não se discutiriam ‘condutas’ a seguir com os enfermos. Nas palavras de X., um Rl: [a passagem matutina é para] comunicar aos chefes de sala e aos médi­ cos da sala as novidades e alguma entrada, ou para que saibam quem está internado (...). Se há dados que vieram alterados, podem sugerir que peça algum estudo (...). Na sala 19, você pode tirar dúvidas, porque a Dra. H. está todo o dia atrás de você.4'

Embora exista a crença de que a passagem de sala tem um caráter apenas informativo42 e, só em raras ocasiões, possa acrescentar algum dado até então não considerado, para alguns se produz um clima especial pelo medo de errar em alguma apreciação. Isso aconteceu a D., que, em sua primeira passagem de sala, fugiu porque não se sentia capaz de avaliar um paciente, até que “fui metendo os pés pelas mãos um montão de vezes, mas depois aprendi”. Seu relato apresenta claramente como no momento da ‘passagem de sala’ é o indivíduo em sua totali­ dade que está em jogo. O momento de tensão da passagem de sala começa a ser vivido desde a faculdade, quando se começa a cursar as matérias de Clínica. No terceiro ano, se produz o primeiro choque com um paciente, o que, para muitos, põe em xeque se a medicina é, verdadeiramente, sua vocação. Nas palavras de Q: No terceiro, você se choca com os pacientes. É üm choque duro e mui­ tos se questionam se realmente gostam da medicina, porque uma coisa é estudar em sua casa com livros e moldes artificiais, e outra coisa com os pacientes; há pessoas que sofrem, e é foda ’ vê-los assim.

As ‘passagens de sala’ matutinas representam um momento de tensão não somente para os residentes mas também para todos os que participam delas. Para o ‘paciente’, é o momento em que vários médicos analisam seu caso - na maioria das vezes na sua presença. Pode, assim, perceber expressões de preocupação ou escu­ tar alguns comentários que possa entender.43. Também para os médicos, os residen­ tes e os do plantei, esse é o momento de estar frente a frente com os questionamentos que lhes fazem os ‘pacientes’ que, muito amiúde, têm a ver com aspectos emocio­ nais de sua vivência no hospital, com suas inseguranças e seus medos. Em uma das passagens de ‘sala da manhã’, observa-se claramente esse mo­ mento em que os sentimentos afloraram fortemente. Foi solicitado a H., uma paci-

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ente que apresentava debilidade muscular - embora já houvesse começado a experi­ mentar melhora -, que se agachasse e tentasse levantar-se (para fazer uma prova). H. não conseguiu fazê-lo e começou a chorar sentada na cama. De imediato, todos começam a consolá-la, deixando de formular hipóteses sobre o diagnóstico e as possibilidades terapêuticas. H. tentou justificar-se dizendo que talvez não tivesse conseguido porque costuma ficar nervosa nesse tipo de situação. O choro quebrou o intercâmbio de informação da passagem e inseriu um momento de tensão. As ‘passagens de sala da tarde’ são realizadas pelos residentes como parte da atividade teórica e de formação. São feitas na sala de aula em que se desenvolvem as atividades teóricas da tarde. O procedimento consiste em uma apresentação em que um RI comenta o caso um de seus pacientes. O residente expõe os sintomas relatados pelo paciente na consulta, os antecedentes patológicos e os estudos que já realizou. Em seguida, começa uma rodada de perguntas com o objetivo de conhecer mais dados sobre o caso. Ao concluir as perguntas, os chefes designam alguém para que comece a enumerar as características do paciente, a fim de expor e justificar os diagnósticos presumíveis de acordo com os dados apresentados, e, considerando todas as informações levantadas, que estabeleça o diagnóstico mais aproximado - ou o diagnóstico final, se for possível -, além de indicar o tratamento necessário. O objetivo dessas passagens é problematizar os quadros clínicos, expondo a maior quantidade de diagnósticos presumíveis que ocorram a eles, ao mesmo tempo em que adquirem o habitus de pensamento para a construção de diagnósti­ cos. Nessas ocasiões, vê-se um maior intercâmbio êntre os residentes mais expe­ rientes, chefes, e os R l; dado que a analise teórica se faz em relação ao que eles fizeram, ou deixaram de fazer com o paciente, vão corrigindo suas condutas. Esse tipo de análise serve para eles projetarem situações hipotéticas que podem ser expressas em termos lingüísticos como: “o que aconteceria se o paciente tivesse isto e não aquilo?” Ou: “o que faria se tivesse acima de tal valor?” A grande diferença entre as duas ‘passagens de sala’ é que, na ‘passagem de sala da tarde’, o doente não se encontra presente fisicamente, mas sim median­ te a ‘apresentação’ feita pelo residente encarregado, já que, como anteriormente expressei, a passagem não se faz diante do leito do enfermo. Esta diferença o aproximaria mais de uma ‘junta médica’ do que de uma ‘passagem de sala’, tal como a entendem os ‘médicos do plantei’, ou na bibliografia sobre a medicina hospitalar. Existe outro mecanismo pelo qual os chefes de residentes transmitem seus ensinamentos aos residentes de primeiro ano - é o chamado ‘passe de sala’. Esse procedimento consiste em que os dois chefes escolham alguns dos residentes e comecem a perguntar-lhes acerca de seus pacientes. O residente tem 74

a história clínica do paciente presente, de modo a ter todas os exames e estudos à sua frente. Tem de explicar aos chefes por que fez essa série de estudos e não outros, em que diagnósticos pensou, e por que e quais são os passos que pensa seguir. Acontece muitas vezes que esse ‘passe de sala’ se realiza no quarto em que está o enfermo, mas não é necessária a presença deste, já que a análise é baseada no que o residente vem estudando. Para os residentes, é na ‘passagem de sala da tarde’ e nos ‘passes de sala’ (além das aulas e das leituras) onde realmente se aprende medicina, de maneira que esses adquiriram uma importância maior do que a ‘passagem de sala da manhã’ . 44 Mas a valorização da ‘passagem de sala da tarde’ e desvalorização da ‘passa­ gem da manhã’ pode ser interpretada como uma elaboração secundária, de nível consciente, que permite esconder uma razão mais profunda, de nível inconsciente. O que quero sustentar é que a ‘passagem de sala da tarde’ e o ‘passe de sala são mecanismos que evitam ou tentam diminuir os momentos em que os ‘residentes’ se vêem frente a frente com a ‘tensão estruturante’. Cumprem esta função em virtude de que se tratam os casos de pacientes ‘reais’, que são pacientes de alguns deles; mas, na apresentação do caso, o paciente não está presente, além disso, se faz entre o grupo de pares, por isso, as tensões suscitadas na ‘passagem de sala da manhã’ se bem que estejam presentes - ocorrem em um nível muito menor. A função desses mecanismos seria manter o processo de aprendizagem em um nível de tensão aceitável (qualquer que seja este); mas esta funcionalidade se estabeleceria na relação dos mecanismos produtores de tensão e dos mecanismos dissipadores dela, motivo pelo qual não se pode entender a ‘passagem de sala da tarde’ sem falar da ‘passagem de sala da manhã’. Ao dizer que os mecanismos diminuem a tensão, não estou pensando line­ armente, o que caracterizaria um tipo de raciocínio finalista de causa-efeito; mas sim em um raciocínio circular; de modo que a importância dessa ‘passagem de sala da tarde’ possa ter se desenvolvido por alguma modificação interna do Serviço de Clínica do pavilhão novo. Tal modificação pode ter-se dado, por exemplo, em algum período de relações tensas entre os ‘médicos de plantei’ e os ‘residentes’ e, posteriormente, estes últimos notaram que podiam discutir sobre os pacientes mais tranqüilamente, passando assim a discutir os diagnósticos entre eles. Recorrendo a uma analogia com os modelos provenientes das ciências da complexidade, posso dizer que o que se produz no serviço é um aumento das coações externas e intemas que, chegado a um ponto crítico, ocasiona uma quebra da simetria que vem acompanhada da aparição de novas propriedades estruturais. A quebra da simetria é uma manifestação da diferenciação intrínseca entre as 75

diferentes partes do sistema. 45 Os ‘dramas sociais’, no sentido que lhes dá Tumer, estariam se originando e diluindo cotidianamenté e, só é necessária a intervenção, com mediações que vão além dos mecanismos dissipadores, em situações nas quais o nível de conflito é grande. Os mecanismos dissipadores atuam digitalizando as relações que se estabe­ lecem entre ‘médicos de plantei’ e ‘médicos residentes’ e as que se estabelecem entre médicos e ‘pacientes’. Essa digitalização produz uma descontinuidade na totalidade analógica que seria a situação vivida na ‘passagem de sala da manhã’. A digitalização operaria, fundamentalmente, em nível da ‘tensão estruturante’, ocasionando uma descontinuidade entre o que é de interesse para o tratamento médico - de acordo com o modelo biomédico - e o que alude aos sentimentos, paixões, transferências, identificações etc. Em outras palavras, todas aquelas coi­ sas que a ‘biomedicina’ deixou de lado ao constituir-se em ‘ciência das doenças’, ou seja, tudo o que foi deixado de fora do discurso biomédico.

N otas 1 Entre muitos outros, podem-se mencionar Baszanger (1981), Freidson (1978), Foucault (1979, 1991), Bobenrieth (1972), Dávila (1972), que a partir de diferentes enfoques resgatam a importância da inserção no meio hospitalar dos profissionais em formação. 2 Foucault (1991): 102-103), em O Nascimento da Clínica escreve: “a experiência hospitalar estava excluída da formação do ritual médico (...) a cura só podia desenvolver-se em forma de relação individual entre o médico e o enfermo” 3

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Sahlins (1988: 130-131) fala do risco das categorias na ação para referir-se à reinterpretação permanente das categorias. Em suas palavras: “na ação ou no mun­ do (tecnicamente, nos atos de referência), as categorias culturais adquirem novos valores funcionais. Carregados com o mundo, os significados culturais são portan­ to alterados”. A analogia ao músico de jazz permitiria aclarar melhor a idéia que estou manejando, ao preferir falar de agente e não de ator. O músico de jazz quando vai interpretar um tema só conta com umas linhas melódicas, com uma estrutura harmônica que é mantida invariável e com as escalas tonais relacionadas com a linha melódica; mas, sobre esta melodia e estrutura, o músico pode fazer sua interpretação, que vai estar influenciada pela maneira como ‘sente’ o tema nesse momento. Não está totalmente sujeito à melodia, já que pode (e deve) improvisar; mas não está totalmente livre porque tem que respeitar a estrutura harmônica. Essa tensão entre liberdade e sub­ missão na execução musical manifesta-se também na carreira de músico, como já fora assinalado por Becker (1971).

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5 A noção com a qual trabalho, ao pensar essa liberdade regulada, é a de habitus, enten­ dendo-a como um “sistema aberto de disposições, posto frente a frente e continuamen­ te com novas experiências e, em conseqüência, afetado por elas sem cessar'’ (Bourdieu & Wacquant, 1995: 92). e

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Não posso deixar de recordar que, cada vez que entrava ao pavilhão maior, tinha a sensação de entrar em contato com a medicina de princípios de século, de entrar num túnel do tempo que me levava ao passado. Essa idéia era despertada pelos corredores de tetos altos, pelas paredes escuras e dèscascadas, pelo ascensor de ferro fòijado, pelas escadas de mármore gastas pelo uso, assim como pelas grandes salas nas quais os enfermos estão separados apenas por tabiques. Como se verá, tudo isso contrasta fortemente com as características do pavilhão novo. O problema da preparação deficiente é uma queixa permanente, extremamente com­ plexo e excede o âmbito deste trabalho.

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Ainda hoje se pode ver em cima da porta de entrada do pavilhão de cirurgia a inscrição de “Cirurgia e Clínica Médica”.

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Pacientes segurados são aqueles que têm algum tipo dè cobertura pelo seguro social estatal ou privado. O enfermo e atendido e depois o hospital recebe um pagamento por cada paciente que atende. O hospital tem a obrigação de atender a'todos os enfermos que o solicitem, tenham ou não, seguro social: Por isso é que, muitas vezes, pelas complicações que acarretam os tramites, os enfermos não declaram seu seguro social e, se somamos a isto o fato de que os residentes não lhes perguntam, o número dos que o declaram é menor do que o número real dos que o têm. Possuir um seguro social indica ao menos que se tem um trabalho estável; isto revela uma determinada condição social dos enfermos; então se vê porque atender a uma alta percentagem de segurados faz com que o pavilhão seja caracterizado com o status especial de ‘pavi­ lhão VIP’.

io Isso o converte em um lugar de reunião e de intercâmbio de pareceres sobre as novidades dos pacientes. n Pelas conversas que pude escutar nesse ambiente, os momentos anteriores ao almoço, pouco a pouco, foram se transformando em um ponto importante na tarefa cotidiana. i2 Essas modificações se incluem dentro da reforma do Estado da província de Buenos Aires, pela necessidade das autoridades centrais de realizar um ajuste econômico solicitado pelas autoridades nacionais com o objetivo de reduzir os déficits provinci­ ais e de lograr uma otimização dos recursos aplicados a saude. O projeto de instaurar a carreira médico-hospitalar, que agora se quer mudar, remonta ao ano 1950 (dado extraído do Boletim Publicado para a comemoração do centenário do hospital). is Segundo o artigo 3a, só poderiam ingressar na carreira profissional hospitalar os profissionais que ostentassem títulos universitários. Posteriormente, com uma mo­ dificação estabelecida pela Lei 11075, foi permitido o ingresso de fonoaudiólogos que tivessem um título de nível de terceiro grau. Uma modificação que estabeleceu a mesma exceção para assistentes sociais foi vetada pela Lei 11.159, de 1991. Mas já se prevê a criação de um escalão de técnicos para as profissões sem título universi­ tário, coisa a ser realizada na Lei ainda em discussão. 77

14 Na Lei 10.471, os ‘concorrentes’ e ‘residentes’ são incluídos nos artigos 51 e 52 respectivamente. is Segundo os autores, “a medicina, já no ano 1922, para a metade dos médicos argen­ tinos havia deixado de ser uma profissão liberal para transformar-se em uma profis­ são assalariada” (Belmartino, 1988). Herzlich et al. (1993), em seu trabalho sobre a evolução da medicina na França no período de 1921-1989, assinala uma manifesta­ ção importante: a aparição de um novo modo de exercício da profissão, o assalaria­ do, que romperia com a idéia da medicina como profissão liberal. i6 Nesse mesmo sentido se expressa Abaurre, (1980: 483) num editorial publicado na revista Medicina'. “A residência médica é um sistema educativo que permite ao novel médico adquirir num curto período de tempo uma sólida formação que o capacita para o exercício eficiente e idôneo da profissão médica, especialmente em seu aspecto assistencial”. n Essa rotação se realiza de acordo com as necessidades do sistema das residências e não em relação às necessidades dos pacientes, o que acarreta o problema de pacien­ tes que estavam sendo atendidos por um residente passarem, de repente, a serem tratados por outro, sem levar em conta os aspectos da relação médico-paciente. is Recebiam o nome de ‘praticantes’ os estudantes de medicina que começavam a realizar a prática, seu aprendizado, nos hospitais. A diferenciação em maiores e menores faz alusão à quantidade de anos de prática que têm no hospital. 19 O Dr. I. e o Dr. W pertencem ao plantei de médicos do hospital; os dois têm uma longa trajetória na instituição e são professores nas cátedras de Medicina Interna que fun­ cionam no pavilhão. 2 0 O artigo 22 do Estatuto da Residência se refere a esse propósito quando diz que o M inistério poderia solicitar aos residentes que prestem serviços em áreas programáticas de estabelecimentos da região local de sua residência. Entretanto, no artigo 24, lê-se que os residentes que não foram requisitados pelo Ministério até sessenta dias antes da finalização da residência ficam em liberdade de ação. 2

1 Durante o período da residência, o médico residente é bolsista do Ministério da Saúde.

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A possibilidade de permanecer em algum serviço do hospital se estabelece porque os residentes de clínica, ao terminar a residência, realizam uma segunda residência que funciona como especialização da anterior. No artigo 51 da Lei 10471, o pessoal ‘concorrente’ fica definido como aquele que assiste aos estabelecimentos sanitários com o fim de melhorar sua capacitação; terão os mesmos direitos e obrigações que o pessoal classificado. Entre os direitos que se lhe adjudicam não está o referido aos pagamentos que se efetua ao pessoal classificado. Durante o período do trabalho de campo, só uma jovem estava ‘visitando’ o pavi­ lhão; ela conseguiu a autorização porque havia sido aluna da Dra. H. na graduação. Não havia nenhum ‘concorrente’. Nas observações, não foi feita nenhuma diferenciação, dado que todos têm as mesmas responsabilidades e têm de realizar as mesmas atividades. 78

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J., antes de começar a estudar medicina, realizou estudos para ser sacerdote em seu país de origem; posteriormente, ao mudar de vocação, o que pesou em sua escolha foi que seja o mais humanitária possível”. J. não tinha em sua família nenhum médico. O paradoxal da opção que J. fez é escolher a Terapia Intensiva que, dentre todas as especialidades da medicina, é uma das que trata com pacientes críticos nos quais o aspecto técnico ganhou uma importância muito maior do que o aspecto humanitário. A trajetória de E. é muito interessante porque tem matizes totalmente diferentes das dos demais. Antes de começar a residência no hospital da comunidade, realizou um ano de residência em Medicina Geral na província de Salta, no norte do país. Isso lhe deu a possibilidade de experimentar dois tipos diferentes de medicina e também duas formas distintas de ensiná-las. Sempre teve inclinações profissionais para a área da saúde, mas a escolha da medicina como profissão a obrigou a mudar-se para outra província (Tucumán) e posteriormente para Salta e Buenos Aires; isso, talvez, explique porque os relatos de sua trajetória estão marcados pela idéia de ‘renúncia’.' As faculdades privadas correspondiam à Universidade do Salvador (Buenos Aires) e à Universidade Católica de Córdoba; entre as estatais, se incluem as faculdades dependentes das Universidades de Buenos Aires, La Plata, Córdoba, Nordeste, Tucumán, Rosário e Cuyo. O número de Faculdades e Institutos Privados nos quais se pode estudar medicina em Buenos Aires hoje é notoriamente maior. Pami é o seguro social dos idosos; M. internara um paciente que não tinha dinheiro para comprar a medicação; estava no hospital para tomá-la na forma endovenosa, enquanto se esperava que acabassem os entraves dos trâmites burocráticos para que a Pami lhe comprasse a medicação e ele pudesse ir para casa.

30 Desenvolver histórias é escrever os dados diários que surgiram acerca de um pacien­ te, seja da inspeção ou de alguma análise que lhe foi realizada. Os residentes têm que ir fazendo essa tarefa cotidianamente, porque, em qualquer dia, pode lhes ser atribuída a ‘passagem de sala da tarde’ ou o que fazem os chefes de residentes; não obstante, ocasionado pela excessiva quantidade de trabalho, é comum que atrasem alguns dias. 31 Quando P. entrou na residência, estavam levando a cabo manifestações com o objetivo de que não terminassem as residências e também para conseguir insumos hospitalares que lhes permitissem trabalhar adequadamente. 32

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Quando estão no segundo ano e sobretudo se são casados, alguns começam a fazer plantões em empresas de medicina conveniadas nos fins de semana, ainda que isso, por estatuto, não seja permitido. Falo de intercâmbio entre os indivíduos, apesar de Mauss (1979) expressar clara­ mente que o intercâmbio é entre coletividades, porque os que neste caso se obrigam e controlam são os indivíduos, e a comunidade interessada nesse intercâmbio de prestações totais seria a residência do pavilhão novo; em outro nível, o intercâmbio se estabelece entre as distintas residências do hospital. Bourdieu (1991: 177-178) destaca a importância desse intervalo entre a dádiva e a contradádiva que instaura a estratégia e transforma o intercâmbio de uma ação mecâ­ nica em uma série de atos que (...) implicam uma autêntica criação continuada que pode interromper-se em cada um de seus momentos; e que cada um de seus atos inaugurais que a constituem podem dar no vazio”. 79

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Seria um falso problema questionar se foram os ‘residentes’, ou foram os médicos de plantei’ os que começaram com a separação das categorias. O importante e que essas duas categorias em sua interação delimitam uma série de práticas que sao permitidas e outras que não são. Por outro lado, as categorias ficam estabelecidas desde o momento em que se empregam estatutos diferentes. A cidade de Rosário se encontra localizada na Província de Santa Fé e se caracteriza por ser uma área de grande concentração populacional; devido à crise economica que atravessa a Argentina, é uma área de grandes problemas sociais.

Ao caracterizar a situação atual do subsetor público, Belmartino et al. (1990: 17) assinalam que “atualmente o médico hospitalar carece dos elementos mínimos indis­ pensáveis para a atenção. Em algumas especialidades críticas, chegou-se a contratar prestações com o subsetor privado”. Notei essa situação crítica no hospital do objeto de estudo, e não estaria equivocado se sustentasse que é uma situaçao que abarca grande parte do subsetor público da província de Buenos Aires. 38 Isto se viu atenuado na Província de Buenos Aires pela inauguração de novos hospi­ tais que estão constituindo seu plantei de profissionais; desse modo, um dos chefes de residentes de minha população conseguiu trabalho em um hospital que estava nesse processo, do mesmo modo que um dos chefes do ano anterior; nao obstante, esse trabalho significou que ele tivesse que se deslocar para outra cidade a uns 30 km de onde moravam. Em que pese essa possibilidade, para a maiona dos médicos que terminam a residência, os plantões continuam a ser o recurso mais importante. A Dra H é uma das médicas chefes de salas do pavilhão; foi com ela que realizei minha pnmeira ‘passagem de sala’. Ela trabalha todos os dias no pav.lhao e tem contato permanente tanto com os enfermos como com os residentes; e por isso que todas as decisões terapêuticas que se tomam em ‘sua’ sala têm que ter seu consen­ timento. Trabalha no hospital faz 27 anos e na Clínica Médica desde que se inaugu­ rou o pavilhão. Teve experiências na medicina privada, mas não se sentia bem; tem a rara característica de dedicar-se a trabalhar só no hospital; isso lhe permite estar ali todo o tempo que queira. Segundo o expressa em seu discurso, ela desfruta o hospital. Sobrinha de uma eminência médica da cidade, desde pequena se sentiu deslumbrada pela vida de médico. 40 A ‘passagem de sala da tarde’ também era chamada ‘passe de sala’; mas havia uma indistinção na referência a uma ou outra que notei no momento de fazer as entrevis­ tas, já que, quando perguntava pela passagem de sala, me respondiam indagando a qual fazia alusão, se à da manhã ou à da tarde. 4 1 Para O., um R3, o problema se levanta “porque não funciona bem a relação, porque a pessoa deveria estar ansiosa por escutar a opinião dos mais velhos para ver se o ajudam a decidir sobre o que fazer ou não fazer. Na sala em que estou agora é onde mais se discute, creio que se estuçla mais; você passa pela sala dos médicos e a Dra. H. está lendo o tema que nos ficou da manhã porque não é nenhum mistério saber ou não saber; é agarrar uma cadeira por 20 minutos e 1er o tema do paciente . O modelo de passagem de sala que O. tem em mente se pareceria ao que relata Hahn (1985) em seu trabalho sobre um médico interno; o autor relata que, nas passagens de sala que presenciou, a informação é avaliada; a irrelevante é descartada, e sao

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tomadas decisões no que concerne à continuação dos tratamentos. Para Hahn (1985: 63), a medicina de sua informante seria mais de pensamento do que de ação e, posteriormente, diz “Barry [o informante] mantém uma observação constante sobre os aprendizes subordinados”. Só essa frase permite ver como são diferentes os modelos de relação nesse hospital e na instituição em foco. Em outros casos, a passagem não somente é vista como algo que não acrescenta, mas que também entorpece a tarefa diária, já que, ao estar muito tempo ‘passando sala’, ‘perdem’ toda a manhã e não têm tempo de rever os pacientes. Por outro lado, existem salas nas quais, pela grande quantidade de alunos, a passagem se estende demasiado; os residentes se cansam e escapam, o que traz como conseqüência que não conheçam todos os pacientes da sala como deveriam conhecer. Apesar de que os médicos desenvolveram uma terminologia muito eficaz para que o leigo não logre entender o que dizem quando eles assim o desejem; parte dessa metodologia de ocultamento é um uso exagerado de siglas ou de neologismos. C., que antes de entrar na residência realizou um ano de residência em Medicina Geral em Salta (província do norte de Argentina), marcava uma diferença de concepção da ‘passagem de sala’ entre os dois hospitais; sua trajetória lhe permitiu ter um ponto de comparação entre as passagens de sala em Salta e as do pavilhão novo: “lá, as passagens são muito diferentes; não se fazem com o paciente, coisa que me parece mal, porque você não sabe de que paciente estão falando. Em uma sala à parte, cada um passava seus pacientes e aí lhe diziam: vamos mudar isto ou aquilo (...) mas eles tinham a idéia de que não é conveniente que o paciente escutasse tudo o que se fala dele. Creio que tem de ser com o paciente, mas, por outro lado, uma paciente como H., que pergunta tudo e que maneja tudo”. Essa mudança na importância que se dá às passagens de sala não passa desperce­ bida para os ‘médicos de plantei’. Falando com a Dra. H., ela se referia às passagens de sua sala como “meio aborrecidas, pela simples razão de que estou o dia todo na sala e conheço tudo da sala (...). As passagens de agora são diferentes daquelas de que eu participava quando era ‘concorrente’; as que vivi se faziam com impressões diagnósticas, diagnósticos presuntivos. Não creio que, na passagem de sala, a intervenção do chefe tem de ser que se lhe informe que uma paciente tem turno para tal dia, e não tem para outro; a função vai mais além (...) mas as seguimos fazendo para informar aos médicos que não estão presentes todos os dias (...) e também é para que fique o costume”. Com o afastamento do equilíbrio, o que se obtém “é um comportamento ordenado de um novo tipo, a estrutura dissipativa: um regime caracterizado por ruptura da simetria, múltiplas escolhas e correlações de um alcance macroscópico” (Nicolis & Prigogine, 1989:15)

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3 0 'Diagnóstico' como Drama

'D ia g n ó stic o s ' e D ramas S ociais Drama 1: H. H. é uma paciente de meia idade, mãe de cinco filhos (a caçula era recémnascida no momento de sua internação), e, quando comecei o trabalho de campo, já estava internada. Era conhecida por todos e a chamavam pelo nome (o que sugeria que seu período de internação era longo). H. era uma mulher sumamente inteligente e muito observadora; por isso, estava a par de todo o desenvolvimento de sua doença, conhecia as doses dos medicamentos que tomava e, por prestar atenção ao que os médicos diziam sobre ela, conhecia as possibilidades terapêuti­ cas ainda não experimentadas. Os sintomas trazidos por ela à consulta inicial eram: debilidade muscular em todo o corpo - que a havia prostrado na cama nos últimos meses da gravidez - , hipertensão e asma. Na primeira vez em que a vi, não podia levantar a cabeça e, quando tentava levantá-la, sentia cansaço depois. Só conseguia erguer a cabeça depois de tomar o remédio ( ‘a pastilha’, como ela o chamava). Nos momentos, em que conseguia levantar-se - que a princípio eram muito poucos - , tinha um vaivém permanente para a frente. Os médicos do serviço não tinham certeza da enfermidade de H., mas haviam sugerido o diagnóstico de miastenia; segundo palavras da Dra. H.: “a clí­ nica dava para miastenia, mas fizemos os exames nela e deu tudo negativo”. Haviam começado a lhe dar uma dose baixa de medicamento para ir au­ mentando até chegar aos valores ótimos; mas existia, ainda, a possibilidade de mudar de medicamento e começar a lhe dar corticóides. Isso era, para O., um R3, o que tinham de fazer. O que os médicos queriam era ver a partir de que doses H. começava a melhorar. Essa incerteza aumentava o desespero da paciente, que

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percebia os dias passando, mas sem a melhora esperada; não obstante, ainda mantinha uma atitude positiva. H. não era uma paciente comum, como já expressei, além disso já estava internada há longo tempo. Isso fazia com que os médicos tivessem com ela um relacionamento mais próximo do que com os demais. Talvez tenha sido a longa internação que fizera com que E., a RI que a tinha como paciente, tivesse desen­ volvido um sentimento especial em relação a ela; por isso um dia me disse: “com H. estou muito envolvida” aludindo a um compromisso pessoal que, quando pos­ sível, deve ser evitado. Por ser muito observadora e curiosa a respeito do que passava a seu redor, notou que havia um ‘doutor’ que nas ‘passagens de sala’ só escrevia em uma caderneta. Esse ‘doutor’ era eu. Um dia, ao entrar no quarto para falar com E., H. me perguntou diretamente qual era o trabalho que eu fazia; já que sempre me via anotando, mas nunca falando nas ‘passagens de sala’. Sentei-me em sua cama e falamos sobre o que eu estava fazendo, de sua enfermidade, de sua família. Desde esse momento, H. deixou de ser uma paciente qualquer e passou a ter um nome; conversamos várias vezes e assim seguia, observando de perto sua evolução. Observou-se, desde o começo, o uso de diferentes critérios sobre o diag­ nóstico e a forma de tratamento de H. Primeiro, pensaram que era uma ataxia, mas os neurologistas não concordaram. Um deles queria tirar-lhe o timo, mas, para a Dra. H., não era uma medida adequada e, em uma ‘passagem de sala’, disse: “com este quadro não vou lhe tirar o timo nem de brincadeira”. L., um dos chefes de residentes, concordou com a idéia e assim propôs, aumentar a dose de corticóides até conseguir a melhora. Entretanto, H. já sabia que existia a possibilidade do tratamento com corticóides, e não queria receber alta sem experimentar essa possibilidade. Quan­ do, depois de algumas semanas, começaram a lhe dar os corticóides, ela manifes­ tou uma melhora relevante; foi assim que passou a ser comum vê-la caminhando pelo corredor do pavilhão ou sentada na cama. Até aquele momento, percebia-se que não havia certeza sobre o diagnóstico, o que representava para os médicos que tratavam de H. uma preocupação; embora não tivesse ocorrido nenhuma situação de conflito entre os eles e a paciente. Mas desenca­ deou-se um nível maior de tensão dramática em relação ao ‘diagnóstico’ quando P., outro chefe de residentes, expressou suas dúvidas em relação ao diagnóstico de miastenia. A Dra. H. e o Chefe de Serviço de Neurologia concordavam com esse diagnóstico, entretanto, o chefe de residentes manifestou sua incerteza em uma ‘passagem de sala da tarde’ e, depois, C., a R l, disse que, na verdade, a paciente não tinha miastenia. 84

Quando entrevistei a Dra. H., ela me disse: Eu não admito que me desautorizem abertamente (...). Admito que ve­ nham e me digam: - ‘Dra. eu creio que é outra coisa’, bom, diga que argumentos você tem e vamos discutir, mas não admito que passem em uma junta médica e me desautorizem. Então, depois vem um R l e me diz: - olha, doutora, não é uma miastenia’. Isso é uma falta de respeito.

Posteriormente, em uma passagem de sala, a mesma doutora, referindo-se ao caso da paciente H„ diz: “temos toda a residência contra, porque o Dr. Me. e eu dissemos que é uma miastenia e P. diz que não é isso”. Depois da passagem, falei com O., o R3 da sala na qual a Dra. H. era a chefe, e ele me disse: Não é que tenha a residência contra ela, é um problema que vem de antes, que eu não vivenciei (...). Em geral, os médicos do plantei têm a sensação de que nós residentes pensamos que eles não se atualizam, não estudam, que ficaram um pouco para trás, mas há médicos de plantei e medicos de plantei (:..). Mas isso com a Dra. H. é um problema de diferença de diagnóstico e nada mais (...). Acho que houve uma suscep­ tibilidade especial, a pensar que nós criticamos demasiado; mas, ao contrário, nós a valorizamos muitíssimo, (grifos meus)

Após dois meses, depois de passar sala’ no aposento de H., ao sair, segurei sua mão para cumprimentá-la, e ela me disse: “tchau, Octavio, boa sorte, se não vejo você, porque vou embora hoje”. Aproximei-me e desejei-lhe melhoras e muita sorte. Dez dias depois, H. voltou do jeito que havia entrado na primeira internação. A Dra. H. disse em uma passagem de sala: “não sei como interpretar a rápida melhora que teve e a recaída brusca, me dá arrepio na espinha (...) os tratamentos de miastenia são decepcionantes” (grifos meus). Talvez pela dificuldade em interpretar as melhoras e as recaídas, foi que a Dra. H. pediu ao serviço de Saúde Mental que viesse ver a paciente; a relação dos médicos do pavilhão com a Psiquiatria é significativa porque está marcada pelo receio e pela incompreensão. 1 O receio se manifestou em uma frase que a Dra. H. usou para comentar essa relação: “fomos apanhados nas malhas da psiquiatra”. Tal incompreensão ficou marcada por uma situação gerada no momento em que deci­ dem dar um ‘placebo’ à paciente para ver como reagia. H. se intera do tipo de ‘remédio’ que lhe estava sendo ministrado e me disse: “estou tomando um remédio que é amido que não vai me fazer nada, mas é para que eu creia que é um remédio”. No entanto, depois de tomar o ‘placebo’ e antes de saber o que tinha inge­ rido, H. disse aos médicos da sala e à psiquiatra que havia melhorado. A psiquiatra 85

lhe disse que era um ‘placebo’ - supostamente isto demonstrava o componente psicossomático de sua enfermidade, talvez por isso tenham dito a ela. Mas, para os médicos do pavilhão, a psiquiatria havia cometido um erro ao avisar a paciente, já que ela havia ficado mais desconfiada. Isso levou a Dra. H. a dizer que: “o psiquismo de H. está mudando, acho que está com um hospitalismo”. O que pretendo ressaltar com esta passagem é que as duas especialidades lidam com códigos de tratamento diferentes e que não se observam mecanismos de aproximação que permitam aos ‘clínicos’ entender a intenção da ‘psiquiatra’ ao dizer a H. que, na verdade, havia tomado um placebo. 2 A posição diferente dos médicos e a dos psiquiatras a respeito do ‘efeito placebo’ está sugerindo uma aproximação diferencial ao dualismo material-espiritual, que dá fundamento ao que chamei ‘ten­ são estruturante’. Para os psiquiatras, que buscam uma explicação psicossomática da enfermidade de H., esse surplus de eficácia é informação (faz diferença); não é assim para os médicos, que buscam conseguir a explicação e a melhora com o aumento das doses dos medicamentos. Depois que H. voltou ao hospital, estava mal porque percebia que os médi­ cos não encontravam o tratamento adequado; o seu ‘mal-estar’ 3 se agravava por­ que começaram a surgir, entre alguns dos profissionais, posturas e interesses diferentes a respeito do caminho a seguir, atitude que ela interpretava como pro­ duto da insegurança dos médicos diante da sua enfermidade. Assim, alguns médi­ cos começaram a expressar a idéia de que H. não devia estar internada porque não seguia os critérios de internação e, portanto, poderia ir para casa. 4 Isso represen­ tou um choque para ela porque, nas condições em que estava, não podia sair. Entretanto, nas festas de fim de ano foi para casa; nos primeiros dias de janeiro voltou mal outra vez, e foi encaminhada a um especialista em miastenia.

D rama 2: T. T. era uma jovem mulher, que permaneceu internada no pavilhão quase todo o tempo em que estive fazendo trabalho de campo; morreu antes que termi­ nasse a pesquisa. Era uma paciente com um ‘diagnóstico presumível ’ 5 de toxoplasmose e uma demência ocasionada por HIV. Os médicos tratavam-lhe as infecções à medida que surgiam, mas não tinham a certeza do diagnóstico. Por causa dessas infecções, a paciente permanecia isolada em um quarto. O ‘drama’ se explicitou quando J., o RI que a atendia, expôs, na ‘passagem de sala’, que, para ter a certeza no ‘diagnóstico’, o melhor seria realizar uma punção de cérebro, já que, para ele, esse pareciá ser o único procedimento conclusivo. 86

Os outros médicos e residentes da sala se opuseram. A discussão se desen­ volveu em várias ‘passagens de sala’. A Dra. N„ assim como a R3 da sala, não estavam de acordo em fazer o estudo porque o considerava muito ‘invasivo’. Mas, durante a exposição do problema, um dos médicos da sala, incumbido de apresentar o caso, o fez em termos mais ‘dramáticos’. Para ele, realizar esse estudo não mudaria em nada o estado da paciente, não lhe daria maior sobrevida nem melhoraria seu estado (que era praticamente vegetativo); então, perguntava qual seria o sentido de se fazer esta intervenção. Antes de uma ‘passagem de sala’, a Dra. N. pediu ao RI que não dissesse nada acerca da punção para não provocar conflito mais uma vez. Mas, o tema voltou a aparecer. A R3 perguntou até que ponto a biopsia ajudaria a conseguir um diagnóstico mais preciso e o que mudaria saber ou não o diagnóstico, já que não havia a possibilidade de cura. A paciente seria submetida, assim, a uma interven­ ção muito ‘invasiva’, sem que se pudesse modificar o prognóstico. Resolveram, então, consultar a família para que ela decidisse, sabendo que existia essa possibilidade. O ‘médico de plantei’ que se opunha mais veemente­ mente disse ao R l: “o academicismo termina, na realidade, na prática, que diz a você que não vai haver lucro (...). Por que você não consulta o Comitê de Ética? Porque é uma questão mais filosófica do que médica”. Ao ser consultada, a família decidiu não autorizar intervenção, pois já sabiam que ela não melhoraria e que isso esclareceria somente uma questão acadêmica. No momento de fazer a entrevista com o residente que a atendia, ele me disse que a paciente tinha morrido antes de o Comitê de Ética se pronunciar a respeito. D rama 3: L.

L. era uma garota jovem, de 27 anos; foi à consulta com dor nos ossos e perda de peso. Depois dos exames, constatou-se um taxa baixa de hemoglobina. Todos se orientavam para um câncer, mas não sabiam de onde podia provir. A Dra. H„ falando um dia comigo e com O., o R3 de sua sala, disse: “todas os exames estão normais, exceto a hemoglobina; você se dá conta dé que não sabe­ mos bem a causa”. Em outro momento, disse a algumas alunas: “essa garota ê um problema, (...) não sabemos...” (grifos meus). O método que tinham para comprovar a suspeita era realizar uma punção dc crista ilíaca - uma intervenção muito dolorosa e ‘invasiva’. Quando L. voltou, depois de terminada a punção, a Dra. H. e O. estavam no quarto vendo uma radiografia. L. sentou-se na cama e começou a chorar porque havia sentido muita dor. Decidiu, então, que não deixaria que lhe fizessem outra punção. Os dois se 87

aproximaram e começaram a consolá-la e explicaram-lhe que o procedimento tinha sido necessário; mas concordavam que, se tivessem que fazê-lo outra vez, lhe dariam anestesia. O resultado da punção não foi o esperado. Quando, numa ‘passagem de sala’, os chefes perguntaram ao RI que a atendia se havia encontrado células atípicas, este não pôde responder porque os patologistas só lhe disseram que eram diferenciadas. Naquele momento, chegava a Dra. H., que vinha do serviço de Patologia, dizendo: “ninguém quer dizer se são malignas ou não”. A Dra. H. resu­ me o que fizeram da seguinte forma: “quando fizemos a análise no joelho dela, uma colega me disse que podia ser uma leucemia ou metástase; quando não o notamos na crista ilíaca, me disse: ‘não, é metástase’, e aí começou nossa pere­ g r in a ç ã o (grifos meus). Depois que foram os chefes de residentes e a doutora, o RI permanece com ‘sua paciente’, explicando a ela qual seria o próximo passo (a punção do esterno), e lhe disse: “com você, fomos bastante ‘invasivos’, mas temos que fazê-lo porque com isso chegaremos a alguma coisa', todos estamos de acordo. Veja bem, faz um tempo que você está aqui e ainda não temos nada claro” (grifos meus). Na outra ‘passagem de sala’, a Dra. H. disse, olhando para a paciente: “L. está bem, já não vamos agredi-la mais; está um pouco dolorida, mas com a tran­ qüilidade de que a amostra do esterno serviu para o ‘diagnóstico’”. Com a nova punção, conseguiram chegar a um diagnóstico: câncer de ori­ gem desconhecida com metástase nos ossos. Dias mais tarde, estava sentado na ‘sala de estar médica’ com a Dra. H. e a Dra. B.; a primeira me disse: “L. vai para outro hospital, o marido quer levá-la”. A Dra. B. lhe responde: “fizeram um favor a você, se não, quando começasse a descompensar... agora, lhe dá raiva, mas lhe fizeram um favor”.

A I m portância do D iagnóstico O ‘diagnóstico’ é o objetivo central da prática biomédica, é aquilo para o qual o médico tende em sua relação com o enfermo. Esse ‘diagnóstico’ surgirá de um processo por meio do qual se traduzirão os sinais e os sintomas ‘construídos’ a partir da observação do paciente, num formato declarativo que remete às categorias diagnosticas de uma especialidade médica. Dessa forma, o termo ‘diagnóstico’ se apresenta com dois significados: “como a expressão do que o médico reconheceu no enfermo, como o juízo clínico; e como a técnica para chegar a essa expressão, 88

como a arte de diagnosticar” (Lain-Entralgo, 1984: 376). Dito de outra forma, o diagnóstico como resultado e como processo. Tomado como processo, o ‘diagnóstico’ consta de duas etapas definidas a anamnese e o exame físico - que representariam a construção do quadro que corresponde à Semiologia e a localização no esquema geral das doenças que corresponde à Clínica. Embora essas etapas sejam tomadas como sucessivas, na prática estão interconectadas, visto que as hipóteses diagnósticas surgem desde o primeiro momento e influenciam a coleta dos dados (Camargo Jr., 1992b). Essa importância capital do diagnóstico na prática médica pode ser atesta­ da nos relatos dos médicos do pavilhão; nesse sentido, a Dra. H. expressou: O diagnóstico é o objetivo principal da medicina porque, sem esse diagnóstico, você tem que fazer tratamento empírico e não cumpre sua função (■■■)■ A historia clinica e a base, que consta do interrogatório e do exame físico; e, a partir disso, você faz sua impressão diagnostica.

Os médicos concedem essa valorização especial ao ‘diagnóstico’ porque nele se encontram depositadas as expectativas e esperanças de resolução do caso exposto pelo paciente. A valorização faz com que o processo de diagnóstico se tome o foco de interação social no qual a irrupção de conflitos e tensões encontra uma explicitação maior. Quando se relaciona o ‘diagnóstico’ à irrupção de ten­ sões, isto é feito no sentido de uma ruptura das relações harmônicas, que pode tomar diferentes formas e, ao mesmo tempo, no sentido de que o ‘diagnóstico’ vai possibilitar a expressão da ‘tensão estruturante’, essencial no cumprimento dos objetivos da ‘biomedicina’. Ampliando a linha de pensamento de Turner (1990: 22), considero o ‘diag­ nóstico’ como o ‘símbolo dominante’ de um processo social ritualizado. Para o autor, os referidos símbolos são “conjuntos de valores considerados fins em si mesmos, quer dizer, valores axiomáticos”. Ao considerar como ‘símbolo domi­ nante o diagnóstico , pode-se assinalar nele dois pólos de sentido, nos quais se agrupam os diferentes significados condensados nesse símbolo: um pólo ideológi­ co e o outro pólo sensorial. Para a simbologia Ndembu, Turner coloca no primeiro pólo os significados relacionados às normas e valores que se referem a compo­ nentes de ordem moral e social inerentes às relações estruturais; enquanto, no pólo sensorial, se localizariam os significados relacionados aos fenômenos e pro­ cessos naturais e fisiológicos, que provocariam desejos e sentimentos. 6 Estabelecendo as diferenças entre os pólos no ‘diagnóstico’, pode-se dizer que no ideológico, encontram-se os temas referentes às técnicas e ao saber

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biomédico; e, no sensorial, aqueles sentimentos'e desejos que se associam a essas técnicas e a esse saber. Tomando-se corno exemplo a técnica de punção, no pólo ideológico, ela representaria o método diagnóstico adequado para determinadas patologias; mas, no pólo sensorial, colocaria em foco o tema da ‘invasividade’ .7 Ao redor de cada ‘símbolo dominante’, vai se desenvolver a ação chamada de ‘drama social’ - porque assinalam momeiitos de conflitos ou de tensão social. Nos ‘dramas sociais’, encontra-se uma seqüência interativa que inclui a ruptura das relações harmônicas, uma escalada da crise até encontrar uma linha de clivagem em um conjunto de relações mais amplas; uma fase de mecanismos reparadores e, ainda, uma fase final de reintegração. Os mecanismos reparadores podem apre­ sentar características formais ou informais, institucionalizados ou não, nos quais entram em jogo os membros representativos das categorias em conflito. Nos ‘dramas sociais’, que põem os distintos agentes sociais em competição, os fins e significados são colocados em processos interdependentes de ressignificação. Para Turner (1980: 148), o ‘drama social’ é “uma forma processual quase universal e representa um desafio perpétuo para todas as aspirações de perfeição nas organizações políticas e sociais”; a quase universalidade está dada porque, para o autor, essa estrutura processual pode ser isolada em todos os níveis de escala e complexidade no estudo das sociedades. Mas, embora utilizem-se os desenvolvi­ mentos teóricos de Turner, não se pode deixar de notar a crítica de Geertz (1994) feita às distintas conseqüências sobre a vida social, ocasionada pelos diferentes conteúdos imbuídos nesses ‘social dramas’ estruturalmente similares. Voltando aos ‘social dramas’ que tomei como exemplos paradigmáticos, ob­ serva-se que, em todos eles, o foco da interação é um ‘diagnóstico’; ou, melhor dizendo, o foco é a dúvida acerca do ‘diagnóstico’ de tal ou qual paciente, ao redor do qual vão se constituindo as interações nas quais os distintos agentes vão tomando posições, dando lugar à manifestação das tensões que configuram os ‘social dramas’. Do mesmo modo, esse ‘diagnóstico’ remete novamente à ‘tensão estruturante’ porque, sendo ele o aspecto mais valorizado da prática biomédica, em sua explicitação, o pólo sensorial (que anteriormente distingui junto com o pólo ideológico como componentes do ‘diagnóstico’) fica relegado. Àquilo que alude às dúvidas, aos sen­ timentos, às experimentações e aos erròs nos tratamentos - aos ‘não sabembs’ ou aos ‘não podemos explicar’ - tüdo isso que fala da pessoa do médico e do paciente não tem lugar no ‘diagnóstico’ como resultado. Este vai remeter a uma tipologia em que as categorias de tempo e lugar não têm èspaço; com isso, o que se subestima é a localização desse diagnóstico na situação concreta.

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No drama 1, o conflito se manifesta pelas diferentes posições tomadas pela Dra. H. e por um dos chefes de residentes a respeito do diagnóstico. Essas dife­ renças rapidamente passaram a ‘ressignifícar’ um velho enfrentamento entre as categorias de ‘médicos de plantei’ e ‘residentes’. A explicitação desse ‘drama social’ 8 é ocasionada pela separação existente entre as duas categorias que se manifestam na realização das duas ‘passagens de sala’, a da manhã, com os ‘mé­ dicos do plantei’, e a da tarde, só com os ‘residentes’. Na passagem de sala da manhã, a dúvida estava levantada; tudo conduzia em direção a um diagnóstico (miastenia), mas os resultados dos exames não o comprovavam; por outro lado, H. melhorava e piorava sem que os médicos pudessem explicar a causa. Mas a dúvida sobre o diagnóstico não teria levado ao desencadeamento do antigo conflito entre as categorias se não fizessem a análise do caso de H. na ‘passagem de sala da tarde’, já que foi nesse momento que P., um dos chefes de residentes, manifestou que, para ele, a enfermidade de que sofria H. não era miastenia. O peso simbólico que a opinião de P. tinha entre os residentes fez com que sua opinião fosse aceita por eles e, posteriormente, E. a comunicou à Dra. H. O conflito fica explícito, mas, como não existem atitudes pessoais que busquem a confrontação, evita-se que esse conflito se aprofunde até níveis nos quais uma fratura seja inevitável. Contudo, é pela intromissão dessas atitudes pes­ soais que os ‘dramas’ se desencadeiam; os indivíduos pertencentes a todas as categorias cotidianamente experimentam o retomo disso que a ‘biomedicina’, desde o começo, quis arrojar para fora de seus domínios: a pessoa com sua carga emotiva. Encontra-se um exemplo desse retomo da pessoa no drama 3, quando o R l, depois da passagem, fica explicando a L., a enferma, o que lhe faziam e por quê. Isto não significa que normalmente não se expliquem aos enfermos os distin­ tos tratamentos, mas, depois que a paciente presenciou e escutou no ‘passe de sala’ todas as dúvidas a respeito de seu tratamento, o R l sentiu-se no dever de lhe dizer alguma coisa. Até este momento me referi ao conflito desencadeado entre as categorias pertencentes ao pavilhão, mas o ‘drama social’ teve também expressão no nível das relações estabelecidas entre as especialidades. Por um lado, as diferenças a respeito do tratamento com os neurologistas; e, por outro, as diferenças, que são mais profundas e significativas, com os psiquiatras. O último foco de tensão que assinalarei é o estabelecido em relação à paci­ ente H., que foi quem manifestou a maior carga de emotividade no ‘drama social’, já que ela se coloca nas mãos de seus doutores e espera deles uma resolução rápida para a doença.9 Somente quando os médicos não puderam responder às 91

expectativas de H., é que ela começou a sentir que havia algo no tratamento que não estava dando resultado. Então, sua conduta mudou com alguns dos médicos da sala. Soma-se a isso o fato de ela já haver escutado que os médicos estavam avali­ ando a possibilidade de que fosse para casa ou encaminhada a algum especialista. Essa predisposição para evitar um conflito maior, que se nota nos ‘médicos de plantei’ e nos ‘residentes’ da sala, faz com que não sejam necessários mecanis­ mos externos ou formalmente estruturados para superar as tensões desencadeadas no ‘drama social’, razão pela qual as discussões na ‘passagem de sala da manhã’ e as consultas informais nos corredores oferecem um espaço e um tempo sufici­ entes para diminuí-las. No drama 2, a situação é similar à anterior pelo fato de estar centrada em tomo de uma dúvida quanto ao ‘diagnóstico’; mas a diferença se estabelece por­ que são necessários outros mecanismos formais para resolver o ‘drama social’. Este se desencadeia com o intercâmbio de opiniões entre o residente que tratava a paciente e os demais médicos da sala, em relação a que procedimentos adotar para chegar a o ‘diagnóstico’ preciso. Esse ‘drama social’ se desenvolve, no começo, somente nas ‘passagens de sala da manhã’, durante a fase na qual adquire maior intensidade; ele não foi tratado nas ‘passagens de sala da tarde’. Mas, visto que a diferença persistia e que o dilema exigia uma decisão que ultrapassava os limites do técnico, para dirimir o conflito, põem-se em jogo outros mecanismos formais que operam como dissipadores de tensão, como é o caso do Comitê de Ética do hospital bem como a consulta à família, já que os médicos não podem tomar sozinhos uma decisão que se apresentava como conflitante. Outra característica específica desse ‘drama social’ é que não entram em jogo os agentes como representantes das categorias de ‘médicos de plantei’ e de ‘residentes’, já que as posições que cada um adota está fundamentada apenas em uma opinião pessoal. Além disso, nesse drama, não participaram todos os agentes que usualmente emitem opinião, já que vários dos RI se mantiveram calados no momento em que as tensões alcançavam os níveis mais altos, de modo que so­ mente intervinham o RI que tratava a paciente, seu R3 e os ‘médicos de plantei’ presentes. A ‘tensão estruturante’ aqui se mostra claramente na oposição entre o acadêmico, que exige a intervenção para ‘chegar’ ao ‘diagnóstico’, e os aspectos ético-filosóficos incluídos na tomada de decisão. O caso de L., o drama 3, remete à da tensão desencadeada pela dúvida que persiste sobre o ‘diagnóstico’, apesar dos estudos realizados; é por isso que a doente se converte em uma ‘paciente problema’. A paciente era um ‘problema’ 92

porque colocava os médicos frente a uma falha de seu saber; e é esse ‘não-saber’, essa falta de certeza diante das demandas de L., que oferece as condições para que se desencadeie o drama. Esse ‘drama social’ se desenvolve em dois momentos diferentes; nas ‘pas­ sagens de sala da manhã’ e nas consultas interdisciplinares realizadas com os outros especialistas que fazem as punções. O drama não conduz a escaladas de tensão explícitas, mas sim em um nível de tensão permanente, que só em determi­ nados momentos se manifesta; um deles é a passagem relatada, em que L. volta da intervenção. Esses momentos são aqueles nos quais os médicos têm de ‘dizer algo’, mas não sabem o quê, porque “ainda não temos algo claro”, como expres­ sou o residente encarregado do tratamento. Outro momento - e talvez onde o drama mais se explicitou - foi no ‘passe de sala’ em que os chefes de residentes fizeram ao RI que tratava a paciente protagonista do drama; essa manifestação da tensão se deu por várias razões, primeiramente, ao lhe pedirem definições que ele não tinha porque os outros espe­ cialistas não as davam, em segundo lugar, porque o ‘passe de sala’ de per se representa um momento de tensão para os RI e, finalmente, porque nesse caso o passe de sala foi realizado no quarto com a presença da paciente, motivo pelo qual L., a paciente, pôde perceber que seu tratam ento apresentava dúvidas e contramarchas . 10 A ‘chegada’ a um ‘diagnóstico’ implicou uma diminuição da tensão do ponto de vista dos médicos, mas não foi assim na perspectiva da família do paciente, o que ocasionou a mudança para outro hospital.

A p r e n d e n d o o ‘S a b e r ’: pr o to co lo s e algoritm os

Destaquei anteriormente a importância do ‘diagnóstico’ na prática da ‘biomedicina’; mas, os jovens recém-graduados, para conseguirem construir es­ ses ‘diagnósticos’, têm de passar por um processo de aprendizagem, no qual adquirem o habitus profissional necessário para construí-los. O que conquistam nesse processo é um dos pólos da ‘tensão estruturante’: o do ‘saber’; para isto têm de aprender a lidar com diretrizes dos tratamentos, como são os protocolos e os algoritmos. Baszanger (1983) sustenta que, no debut profissional - etapa que ela chama de organização conceituai - , os médicos jovens construiriam ativamente alguns sistemas de categorias e noções que constituem um quadro de leitura através do 93

qual aprendem sobre doença e enfermos e, também, a organizar suas intervenções terapêuticas. Para construir esses sistemas de categorias, eles utilizariam seletiva­ mente o saber médico universitário. Ainda que os estudos de Baszanger tratem da formação dos jovens médi­ cos clínicos gerais e que meu interesse esteja focalizado nos residentes de Clínica Médica, posso argumentar que esses também construirão os sistemas de catego­ rias e noções que atuarão como sinalizadores para as intervenções terapêuticas. A esses esquemas eles se referem quando expressam que o que buscam é saber “pôr-se diante do paciente”. Apesar de todos terem a preocupação de construir esses quadros de leitura, o uso e a valorização que fazem do saber adquirido na faculdade varia segundo as distintas situações e momentos. Assim, num primeiro momento, a partir do cho­ que que representa a saída da faculdade, consideram que esse saber não é aplicá­ vel às novas situações vividas na residência; mas, posteriormente, dá-se uma revalorização porque, embora a forma de encarar o paciente seja diferente, eles não poderiam fazê-lo se não tivessem uma base anterior. Assim se expressa Pa., um dos chefes de residentes: E tanta informação que chega a você nas primeiras semanas que você não dá conta (...). E tamanha a brecha entre isto e a faculdade, que você diz: ‘o que estive fazendo?’ Antes de me formar, eu fazia plantões aos domingos, deixei tantos domingos de estar com minha família, com minha mãe, que estava morrendo, è esses plantões não me serviram para nada; você diz: 'na faculdade, o que me ensinaram!’. Essa é a primeira impressão que fica; mas depois você se dá conta que de algo serviu, ainda que tenha visto mal, ou que na faculdade você estude um montão de coisas que não servem para a medicina aplicada, você tem que sabê-las.

Da mesma forma C., conta qué, ao iniciar a residência, seu pensamento oscilava entre acreditar que não sabia nada e o que sabia não podia aplicar. Nesse processo de aprendizagem, os ‘residentes’ vivem experiências com as quais vão construindo sua subjetividade e, por sua vez, essas experiências tomarão significações em relação às suas trajetórias pessoais. Entram em jogo, então, as idéias de medicina que possuem e as formas como relacionam o afetivo com o profissional, quer dizer, as formas pelas quais se posicionam individual­ mente diante da ‘tensão estruturante’. X., um R l, por exemplo, tem reações diferentes da maioria dos outros. Cresceu em um povoado pequeno da província; a mãe era enfermeira e, como o pai trabalhava o dia todo, a mãe o levava ao hospital com ela: 94

Me criei no hospital; por isso, desde pequeno, gostei da medicina (...). O médico lá é diferente (...), têm o médico mais em consideração Eu me dou conta agora de que os pacientes têm muita confiança, creio que se produz uma relação muito boa e isso influi no estado de ânimo; aqui me caem em cima porque dizem que dou o telefone a todos, mas eu sinto assim; tenho boa relação, me tomo amigo e jamais minto para eles.

O objetivo dos chefes de residentes é inculcar nos médicos recém-ingressados uma metodologia de trabalho que os impulsione a trabalhar de forma igual; isso não é outra coisa senão gerar habitus de trabalho em conformidade com as exigências da residência e com as restrições impostas pelo hospital. Esse habitus vai condicionar as decisões dos residentes para que suas ações se realizem conforme as estruturas objetivas, definidas pelas linhas de forças que reinam no campo, de modo a evitar condutas que poderiam ser catalogadas como arriscadas, que seriam negativamente sancionadas como incompatíveis com as condições objetivas. 11 Bourdieu e Wacquant (1995) sugerem que as orientações derivadas do habitus podem vir acompanhadas de cálculos estratégicos dos custos e benefíci­ os, e que determinados períodos de crise, nos quais se produziriam ajustes nas estruturas objetivas, constituiriam conjunturas nas quais a escolha racional pode­ ria predominar, fazendo com que as decisões sejam pensadas cuidadosamente. O problema surge a partir do momento em que os médicos entram para a residência, pois produz-se uma mudança rápida nas estruturas objetivas com as quais estavam habituados; na faculdade, motivo pelo qual o ingresso à residência é vivenciado com uma forte carga de tensão que vai diminuindo à medida que se produz a incorporação do habitus, em conformidade com as estruturas objetivas predominantes no novo campo. Ao entrar para a residência, os médicos começam üma aprendizagem que tem uma metodologia completamente diferente da que sé empregava na faculdade; é por isso que a mudança de um càmpo a outro representa um choque. A apren­ dizagem que começam na residência tem como objetivo fazer com que eles sai­ bam como proceder para dar início ao tratamento de um paciente; é a isso o que os residentes se referem como “saber pôr-se diante do paciente”. Segundo X.: Dentro do hospital, a coisa é totalmente distinta... quando você presta um exame, diz que lhe faz isto e aquilo outro; mas depois vem para o hospital e se trabalha de outra maneira; há critérios; primeiro, se pede uma coisa, depois outra... é como um protocolo, em um paciente com tal coisa, primeiro se pede isto, depois outra coisa; e isso vai de acordo com a patologia, (grifos meus)

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Para A., a diferença se expõe no momento que compreendem que na facul­ dade lhes ensinam que todos os patientes são semelhantes, mas a prática do hospital lhes ensina que: A coisa é totalmente distinta; eles podem dar a vocês muito conheci­ mento, mas no momento em que você tem que enfrentar esse conheci­ mento com um paciente tem que começar a ver outras coisas (...) que cada paciente vem de um estrato social distinto; tem um corpo e um funcionamento distinto, apesar de que os queiram encarar como se todos fossem iguais, todos respondem distintamente à medicação que os textos propõem a você como sendo igual para .todos (...). Eu ainda não estou preparada para encará-los a todos de forma diferente; creio que é a experiência que dá essa preparação.12

A diferença entre os dois campos, o da faculdade e o do hospital, se mani­ festa de uma forma diferente sobre o raciocínio diagnóstico. É a isso que R. se refere no seguinte relato: Há uma diferença entre o teórico que sabe, e estar postado diante do paciente; porque podem dizer a você que fale de pneumonia e você dá as causas, tudo (...). Mas encarar o paciente é algo totalmente distinto; você, a partir do paciente, tem que fazer o diagnóstico; com o paciente começa ao contrário; a partir do que tem, trata de ver qual é a patolo­ gia. É totalmente diferente; o paciente vem com que lhe dói aqui, ali e

você tem que organizar isso. (grifos meus) Esse raciocínio diferente tem uma direcionalidade marcada, como C. expli­ ca: “na faculdade, nos ensinam a pensar para baixo, na residência, para cima. A partir do sintoma, levantar as síndromes; isso não sei se alguém tem, não conheço ninguém que quando entrou aqui tenha sabido pensar um paciente” (grifos meus). A partir desses relatos, verifica-se que uma das mudanças fundamentais no status dos jovens estudantes de medicina, no momento em que passam a ser médicos-residentes e deixam de ser estudantes, se manifesta na relação com o paciente, que estará, desde então, mediatizada pelo saber médico. Nessa relação, o que se busca é estabelecer o ‘diagnóstico’. Em qualquer encontro de um médico e seu paciente, visto a partir do lugar do saber biomédico , 13 o que se tem como objetivo final é ‘encontrar’ a patologia do paciente. Contudo, o ‘diagnóstico’ não está exposto, não está explícito para que o médico o ‘veja’; mas é, sim, o produto de uma construção na qual tanto o médico quanto o enfermo trabalham. É por isso que se encontram, nos relatos, metáforas

que se referem ao ‘diagnóstico’ como algo a que se ‘chega’ (o diagnóstico como resultado), motivo pelo qual o ‘processo de diagnóstico’ poderia ser compreendido como uma ‘travessia’. Esse processo construtivo é freqüentemente associado a um procedimento ‘científico’, e esse caráter de ‘científico’ é outorgado pela capacidade que os estu­ dos secundários têm de comprovar o ‘diagnóstico presumível’, o que o transforma em ‘diagnóstico final’. No momento em que o ‘diagnóstico’ se inscreve em um campo de saber mais amplo, perdem-se todas as ‘referências sociais’ e ‘históricas’ que rodearam sua construção. Com isso, quero me referir a que, durante o processo de constituição do ‘diagnóstico’, ocorrem negociações, tácitas ou explícitas; avaliações dos enunci­ ados produzidos e do agente que os produz, mas que, na formulação ‘científica’ do ‘diagnóstico’, ficam eliminadas, motivo pelo qual a esse diagnóstico construído é atribuído um critério de ‘objetividade’. Latour e Woolgar (1988) sustentam que os fatos científicos são socialmente construídos. No processo de fabricação de um fato, põem-se em jogo dois dispo­ sitivos com funções diferentes: o primeiro dispositivo - que os autores chamam clivagem - faz com que o enunciado se transforme em uma entidade separada que designa certas propriedades do objeto e, por sua vez, faz com que o objeto construído passe a ter vôo próprio. O segundo dispositivo, a inversão, ocasiona que o objeto passe a ser dotado de um maior grau de realidade do que o enunciado que lhe deu origem; o objeto determina a razão do enunciado. Assim, a partir de um conjunto de sinais e sintomas que o paciente traz à consulta ou à internação e mediante um conjunto de aparatos - por meio dos quais se fazem os estudos secundários - , constrói-se um diagnóstico que, quando se afirma como verdadeiro, já não depende das condições conjunturais de sua produ­ ção. Esse enunciado se transforma em um fato. A certeza desse fato vai ser bus­ cada na correspondência com os sinais e sintomas do paciente, esquecendo que o enunciado, agora tomado fato - o ‘diagnóstico’ - , provém deles (dos sinais e sintomas). A correspondência está na origem e a separação é uma conseqüência de sua construção. Pará Latour e Woolgar (1988), essas práticas, que eles estuda­ ram no laboratório, se estendem a outros setores da realidade social; um desses setores é o hospital. O processo de construção do ‘diagnóstico’, a ‘travessia’, tem uma orienta­ ção demarcada, é de ‘baixo para cima’, dos sinais e sintomas para o diagnóstico. Mas esse processo está, por sua vez, relacionado com metáforas de planificação, de classificação; “você tem de organizá-lo”, me disse R.; há que “saber pensar o 97

paciente”, me disse C.; em seus dois relatos, o que expressam são metáforas para falar da ordem. O movimento de baixo para cima necessita de um pensamento que tem de ser metódico, racional, por meio do qual se passa da ‘desordem’, que o paciente ‘traz’ para a consulta, à ‘ordem’ do paciente diagnosticado. Mary Douglas (1976: 15), em Pureza y Peligro, sustenta que: as idéias sobre separar, purificar, demarcar e punir transgressões têm como função principal impor uma sistematização em uma experiência inerentemente desordenada. É só exagerando a diferença entre dentro e fora, em cima e embaixo, mulher e homem, com e contra que um sem­ blante de ordem é criado.

A demarcação entre ‘o em cima e o embaixo’, que separa dois domínios com características completamente diferentes, se estabelece por meio do ‘diag­ nóstico’; é ele que incluirá o paciente no discurso médico; “por meio dele, o médico mostra que o que padece o enfermo tem um lugar no sistema de significantes que constituem o discurso médico” (Clavreul 1983: 109). A passagem pelo hospital, a internação, implica para os enfermos um corte com as atividades diárias, um período em que estão ‘à margem’. Ao se somar a isso o fato de que, antes de estabelecido o diagnóstico, as características do enfermo são ambíguas, poder-se-ia caracterizar esse período como ‘liminar’, no sentido em que o toma Tumer (1974:117). Para ele: “a liminaridade ou as pessoas liminares são neces­ sariamente ambíguas; essas pessoas escapam à rede de classificações que normal­ mente determinam a localização de estados e posições em um espaço cultural”. No contexto do hospital, a situação dos indivíduos é clara: são enfermos e isso determina uma série de características; mas, em relação ao discurso médico, são liminares e por isso mesmo perigosas. 14 O domínio do ‘em cima’ se relaciona com a razão, a ordem, a sistemática, a limpeza e as restrições; o domínio do ‘embaixo’ o faz com o empírico, a desor­ dem, a assistematicidade, a sujidade 15 e as possibilidades ilimitadas (é indefinido seu potencial de padronização). Tais domínios não são definíveis separadamente; para que seja possível o domínio da ordem, tem de ser possível o domínio da desordem; nem um nem outro são definíveis em si, mas, sim, na relação que os une, em relação a um todo. Esse todo é o discurso médico que, através do ‘diagnóstico’, impõe uma distinção que é hierárquica. É justamente por essa característica hierárquica da relação que os dois domínios não se encontram numa situação simétrica no que concerne ao todo - o domínio de cima, da ordem, tem uma valorização positiva.

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A importância de ‘chegar’ ao diagnóstico, de alcançar o domínio da ordem, radica em que, mediante o ato de diagnóstico, o enfermo - até esse momento ‘liminar’ e, portanto, fora do discurso médico - é incluído no discurso. Através desse ato se lhe institui uma identidade, se lhe designa um nome16 e, por essa inclusão, a medicina se legitima, se reafirma como saber autorizado sobre a enfermidade. Esse pensamento ‘metódico’ e ‘racional’, necessário ao processo de cons­ trução do diagnóstico e por meio do qual toma forma o saber da ‘biomedicina’ tem linhas diretrizes que marcam a forma correta de trabalhar. As linhas diretrizes são três: os ‘protocolos’, os ‘algoritmos’ e ‘a relação custo-benefício’. Os ‘protocolos’ e ‘algoritmos’ são pautas de trabalho delimitadas que organizam o tratamento dos pacientes com o objetivo de ter uma melhor relação custo-benefício. As duas primeiras linhas são distintas; diferenciam-se, funda­ mentalmente, por sua procedência; um ‘algoritmo’, que pode ser um diagrama, é uma progressão de estudos que, por meio de opções divergentes, indicam condutas alternativas, que se vão tomando de.acordo com os resultado^ dos estudos, e que pode ser feito dentro do hospital, ou mesmo na residência. O ‘protocolo’ junta a informação disponível existente sobre um tema e estabelece um consenso sobre os passos adequados de tratamento. A seriedade do protocolo estará dada pelo capital simbólico de que disponham os integrantes da comissão encarregada de protocolizar uma determinada patologia. A importância dos ‘protocolos’ e ‘algoritmos’ estaria, assim, justificada: os primeiros, por homogeneizar formas de tratamentos com o objetivo de comparar pacientes para fins acadêmicos e científicos. Os algoritmos, por discriminar entre todas as possibilidades de tratamento qual é a adequada, diante da impossibilidade de pedir todos os estudos quando se trata de um paciente; isto por duas razões: porque o enfermo não pode suportar tantos estudos e pelos gastos, pelo ‘custobenefício’. Tal relação é observada a partir da escassez de recursos do hospital. 17 Não obstante a importância dos protocolos, na prática da biomedicina cotidi­ ana do hospital, surge o problema pelo fato de eles não serem feitos no hospital, mas sim em hospitais dos EUA (“não saem daqui, mas sim de Massachusetts”), razão pela qual a aplicabilidade dos protocolos no hospital está limitada, e as limitações remetem diretamente às características do campo em que esses protocolos de­ vem ser aplicados. As limitações estimulam as ‘saídas’ das linhas diretrizes. Isto ocorre por­ que não se têm os meios materiais para realizar os passos que lhes exige o ‘proto­ colo’ ou o ‘algoritmo’. Tais condições da prática levam os médicos a desenvolver vias alternativas no tratamento com pacientes. Um exemplo disso pode ser verifi­ 99

cado pelas várias alternativas de antibióticos para uma enfermidade, as quais os médicos do hospital precisam saber porque o antibiótico recomendado em primei­ ro lugar não está disponível. Observei um outro exemplo em uma aula dada por uma especialista em que um dos RI respondeu a uma pergunta e a especialista lhe disse: “isso é o que você faria aqui, bem. Mas que é o que deveria fazer, que aqui não se faz porque não temos laboratório que meça isso, por isso fazemos direta­ mente a punção” (grifos meus). Em outra aula ministrada por uma gastroenterologista, um dos residentes comenta uma situação que vivenciou quando, em um fim de semana, teve de atender a uma paciente e todos tinham de resolver o problema com rapidez; os procedimentos normais não estavam disponíveis; assim, realizaram um procedi­ mento não indicado, algo que estava fora dè ‘protocolo’. Isso mostra como, em determinados momentos, as realidades cotidianas obrigam a negociações e resoluções que acarretam modificações nos padrões de conduta habituais e estandartizados pelo ensino recebido. Essas negociações le­ vam a pôr em prática novas interpretações que modificam, em maior ou menor grau, os usos naturalizados pelo ensino; ainda que estas somente sejam aceitas na medida em que feitas por indivíduos com um capital simbólico suficientemente amplo para que não sejam reprimidos. Um exemplo disso foi a interação que se deu com J., um R I, seu R3 e a Dr. H.; na sala, haviam pedido muitas tomografias computadorizadas, todas com re­ sultados negativos (negativo quer dizer que não apresentava nenhuma anomalia). Por essa razão, com uma paciente que necessitava de uma tomografia, pediram, primeiramente, uma ressonância magnética, só para não realizar outro pedido de tomografia. Os dois estudos não têm diferenças de resolução, mas os passos seriam, pedir primeiro a tomografia e depois a ressonância. Quando J. expõe a paciente na ‘passagem de sala da manhã’, L., o chefe de residentes, lhe pergunta: “J. por que primeiro a ressonância?” Ao que J. responde: “porque, como tem mais resolução (...) para que não nos aconteça como com outra paciente, que depois tivemos de fazer a ressonância”. Nesse momento, a Dr. H. sai em sua ajuda. Posteriormente, em uma ‘passagem de sala da tarde’, com a mesma paci­ ente, dá-se o seguinte diálogo: Pa.(o outro dos chefes lhe pergunta): - Você tem a tomografia? J: - Não, mas tenho a ressonância. Pa: - Por que você pediu direto a ressonância? J: - Porque, se a tomografia vem normal, depois temos que pedir a ressonância e, se temos problemas vasculares, é melhor. 100

G. (uma R3 lhe diz): - O problema é que, se o tempo está correndo, uma ressonância demora vinte dias e uma tomografia dois. 0. (o R3, que esteve envolvido nessa resolução, lhe diz): - Não, está bem que uma tomografia e uma ressonância não têm diferença de definição, mas havíamos pedido cinco ou seis tomografias que foram normais e podí­ amos obstruir o serviço. Pa. (encerra a interação dizendo): - Bastante pitoresca a resolução.

Posteriormente, perguntei a O., o R3, sobre o problema, e ele me disse: Aqui, isso passa muito pela disponibilidade de estudos; por exemplo, se um protocolo diz isto primeiro e isto depois, você pede as duas coisas ao mesmo tempo, porque isto é feito hoje e o resultado está para dentro de 15 dias, para o outro estudo marcam hora para dentro de uma semana; então, por uma questão de tempo, pedimos as duas coisas juntas (...) isso pode ser perigoso porque você pode esquecer como se fazem as coisas.

Por último, falei com Pa.: “não vou lhe dizer que anule o pedido, mas o que me importa é que fique claro que primeiro tem de fazer a tomografia. O que se pretende deixar são pautas de trabalho (grifos meus). O que essa interação está indicando é que há fatores não médicos que condicionam a aplicação dos protocolos e, além disso, mostram a conduta dos chefes quando um dos RI foge do estabelecido. Em parte, são as limitações provenientes do campo hospitalar que fazem com que os médicos tenham de sair dos protocolos. Isso pode ser visto por eles como uma questão mais da prática, razão pela qual não causa nenhum conflito já que as saídas do protocolo estariam previstas. No entanto, para outros médicos, não existe a liberdade para interpretar os protocolos, e sair deles pode lhes trazer algum tipo de conflito. No primeiro grupo, estão os residentes mais antigos, como é o caso de Pa., um dos chefes de residentes: “tudo o que temos em medicina está escrito, há mi­ lhões de patologias que vão mudar, mas a verdade de hoje é a verdade de hoje”. Diante da declaração, perguntei-lhe se as patologias não podiam ser apresentadas de forma distinta nos diferentes pacientes, e ele me responde: “mas é que isso está escrito também, você também tem formas de apresentação da enfermidade que não são típicas (...) eu não vejo sair do protocolo como uma crise porque isso também está previsto” (grifos meus). Para L., o outro dos chefes de residentes os protocolos são:

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Para que todos os médicos atendam você mais ou menos da mesma forma e que você não dependa da mão de Deus diante de quem caiu; não está mal que se possam modificar, mas os fizeram gente que tem mais experiência que nós; então, a forma de estudá-los (...) uma pessoa pode pular a ordem, mas você tem que ter bem claro por que faz isso. Vou lhe dar um exemplo: uma hemorragia digestiva sé estuda de cima para baixo, ainda que evacue com sangue. Primeiro, se estuda o estômago, porque você tem mais chances de que ele mate o paciente; pode come­ çar por baixo, mas é em vão; olha, se você se depara com um sangramento alto e o paciente morre, então? (...) Você, talvez, pule o método e comece por baixo; mas, se você não tem isso claro, mais vale que não saia do preestabelecido, (grifos meus)

Na mesma direção se expressa O.: “há certas coisas que estão à margem do protocolo, porque não é tudo preto e branco, então alguém com experiência, não nós, pode tomar uma decisão distinta, mas tem que ser alguém que conheça o protocolo” (grifos meus). Mas, para outros residentes, a saída dos protocolos pode constituir um pro­ blema; desse modo o considera E., já que, para ela, não existe essa possibilidade; diz: Nós, os de primeiro ano, não temos liberdade para fazer as coisas; então, se você leva pelos protocolos, ninguém vai dizer nada (...). Tudo tem seu critério, critério para isto, critério para o outro, então você não pode arriscar e, se não faz o que você tem que fazer, é certo que lhe dizem alguma coisa

Também podem-se encontrar posturas diferentes em relação ao grau de liberdade para atuar, como a de Q., que diz: O protocolo vai lhe ajudar, mas também você tem que analisá-lo subje­ tivamente (...) porque, senão, se faria uma base de dados, colocava uma paciente com síndrome febril, o computador lhe daria o diagnós­ tico e pronto (...). É lógico que ainda consulto meus chefes; quando tiver mais experiência, não consultarei ninguém.

O relato de Q. incorpora um componente que amiúde é considerado como conflitante e no qual não é aconselhável fiar-se: a subjetividade. No mesmo senti­ do, C. incorpora outro componente conflitante: a intuição; ela considera que há fatores que são trabalhados intuitivamente; pode-se ver que uma paciente está mal, mas, em um dado momento, não tem os critérios objetivos para comproválo e isso pode lhe causar problemas, porque

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Se você lida bem com a intuição, não pode ser muito louco e fazer coisas porque lhe parecem, porque até legalmente destroem você; eu lido com a intuição, mas se o paciente tem febre, tem febre. Nós seguimos os proto­

colos (...) mas não sempre ao pé da letra, ainda que, quando não os segui­ mos, somos muito criticados (...) é muito difícil a parada, (grifos meus) A intromissão dos componentes subjetivos e da intuição remete novamente à ‘tensão estruturante’, já que esses dois componentes integrariam o conjunto de atitudes não mensuráveis que resistem em deixar o reino da objetividade e da racionalidade que fundamenta a prática da biomedicina. Por causa dessa caracterís­ tica, a de serem não mensuráveis, é permitido (e até aconselhável) desconfiar delas. Bem diferente é o posicionamento dos ‘médicos de plantei’ para os ‘algoritmos’ e ‘protocolos’. A Dr. H. se refere a isso, dizendo: Nós não lidamos muito com os protocolos; acho que há determinadas doenças nas quais se têm que cumprir, sim; tanto é assim que, quando entraram os novos [residentes], falei para O.: 'Vamos fazer um protocolo’, porque, depois, você percebe que não fizeram fundo de olho numa diabé­ tica (...). Para a hipertensão e a asma, sim, seguimos um algoritmo de estudo, que é também um protocolo (...) mas nós saímos com freqüência.

O Dr. V. se refere aos protocolos, destacando que não são rígidos e que, em última instância, o que importa é o paciente. De modo que, faz-se um protoco­ lo “por um interesse científico, para que a experiência seja comparável, (...) mas a práxis é individual, você trata de um paciente com nome e sobrenome; mas, para que se possa comparar, tem de tratá-lo da mesma maneira; o protocolo serve para que você possa ter circunstâncias e amostragens parecidas”. O que quero ressaltar com a enumeração de relatos de informantes é que estas linhas mestras que atuam no ‘processo de diagnóstico’ podem ser levadas em conta em maior ou menor grau, e isso vai a depender do capital simbólico com que conte o agente envolvido na decisão. Observa-se, que o que fundamentalmente orienta os agentes na tomada de decisões é, aparentemente, um critério racional, 18 que se explicita como um con­ junto de ‘protocolos’ e ‘algoritmos’. Mas, não obstante a importância que esse conjunto adquire na prática cotidiana não pode impedir a intromissão de aspectos que, por não se enquadrarem nesse esquema ideal de racionalidade, são desloca­ dos e considerados como epifenômenos. Referi-me àquelas características que estão próximas aos sentimentos, às paixões, ao ‘humano’, que necessariamente se apresentam na prática biomédica e que possibilitam a geração do que chamei ‘tensão estruturante’. 103

P rática B io m édica e ‘T ensão E st r u t u r a n t e ’

Toda resolução tomada no hospital, qualquer diretiva que se distribua, terá de estar avalizada por algum trabalho que seja considerado ‘científico’, que esteja ‘demonstrado’ como válido por alguma pesquisa científica. Essa ênfase no ‘científico’, dada a partir do modelo biomédico, faz com que os residentes não dêem tanta atenção à parte humana. Esses dois aspectos que se interconectam na prática biomédica dão lugar a uma tensão, que chamei ‘ten­ são estruturante’ da prática biomédica. Essa se estabelece entre as exigências do modelo biomédico, com sua ênfase no ‘saber’ e nas práticas guiadas pelos ‘algoritmos’ e ‘protocolos’, e o ‘sentir’, que, derivado das experiências individu­ ais, coloca os agentes frente à sua forma de ‘viver’ a prática biomédica e frente às suas representações que estão para além do estritamente científico. A mencionada tensão é considerada por Duarte (1995) como ‘estruturante’ na formação das ciências sociais, em especial na antropologia, que se manifestaria produzindo uma especial atenção à parte sem perder de vista as totalizações. O autor chama esta relação de ‘universalização romântica’. Essa universalização ro­ mântica está, também, refletindo uma ‘tensão estruturante’ do Ocidente que, a partir do desenvolvimento científico, considera central a distinção entre sujeito e objeto de conhecimento. A distinção fundamental na ciência do Ocidente leva a uma ruptura das totalidades e à separação entre o racional - o ‘científico’ - e a experiência ‘vivida’, em oposição ao sustentado pela tradição romântica. Na ‘biomedicina’, essa tensão se manifesta, segundo Byron Good e Mary Good (1989: 305), como uma oposição entre as duas noções centrais de ‘compe­ tência’ e ‘cuidados’. A primeira é associada à linguagem das ciências básicas, dos conhecimentos e das habilidades médicas (a que me referi anteriormente com o “saber pôr-se diante de um paciente”); e a segunda é associada às atitudes de compaixão, de empatia, o referido aos “aspectos pessoais da medicina”. Isto é ao que os ‘residentes’ se referem como ‘o aspecto humano’ de sua prática, que alude ao que é contingente no ‘diagnóstico’ médico, mas que é essencial na relação médico-paciente. Essa tensão, que não encontra uma descarga na ‘biomedicina’, produziu uma primazia da ‘competência’ em detrimento dos ‘aspectos humanos’, vividos, a partir da importância do biológico, na constituição do saber médico. Encontra-se uma das manifestações da ‘tensão estruturante’ no processo de escolha do curso de medicina. Para muitos estudantes a escolha esteve marcada, 104

por um lado, pela necessidade de ajudar as pessoas; por outro, por uma inclinação para as ciências biológicas e em especial para a pesquisa. Esses dois interesses originários mudam quando os estudantes começam a entabular relações com os pacientes. O primeiro muda porque se gera uma sensação de impotência diante do paciente, uma sensação de não poder ajudá-lo, conforme se pode observar no relato de H., ao explicar porque estudou medicina: Eu, de pequeno, tive muitos problemas de saúde; para mim, o médico sempre significou a segurança (...). Então eu queria causar a sensação de alívio que o médico me causava (...), meu interesse era muito idealis­ ta, era ser médico para poder ajudar as pessoas, para resolver os proble­ mas de saúde. Depois você vai se dando conta de que não é tanto assim, se choca com um montão de coisas; a realidade é outra, muitas vezes não pode conseguir o que quer. (grifos meus)

Esse choque com ‘o real’ que leva os estudantes a uma mudança de expec­ tativas, também repercute em seu interesse pela pesquisa, fato que pode ser superdimensionado pelo temor ao trato com o paciente, como expõe D.: “eu gos­ tava de pesquisar, eu dizia que não ia atender pacientes, que ia ficar metida num laboratório com microscópios, não me interessava a relação com o paciente”. Mas, para outros, como Pa., um dos chefes, a descoberta da relação com o paciente lhe significou o encontro com a medicina que queria: “quando toquei um paciente pela primeira vez, me dei conta de que não tinha retomo; aí gostei da parte assistencial”. A inclinação para a pesquisa acentua-se nos primeiros anos do curso, quando é fundamental o estudo de laboratório, experiência necessária para a aprendizagem da anatomia e da fisiologia. São anos em que o estudante começa a receber a orientação biologicista que vai ser determinante em sua formação, com importantes conseqüên­ cias para a prática. No ingresso à residência, ao começar a manter um contato estreito com os que vão ser seus pacientes, a ‘tensão estruturante’ entre a tendência biologicista, nomeada anteriormente, e a humanista adquire toda sua significação. Nos residentes, a tensão se manifesta como uma queixa pela formação estritamente biologicista que se dá na faculdade; mas, quando eles praticam a medicina cotidianamente, em maior ou menor grau, continuam com uma orienta­ ção biologicista, apesar de seu discurso explicitar uma preocupação orientada para o sei humano. C. aborda a questão, nos seguintes termos: O paciente espera o momento em que você o veja para expor-lhe um montão de coisas, e você não tem tempo para sentar-se, para conver­ sar; então se toma o enfermo como uma entidade biopsicossocial,'9 a 105

parte psicossocial, você não tem em conta. É por isso que, no ano passado, levantamos a questão de que estávamos falando muito pouco com os pacientes, que havíamos crescido do ponto de vista científico a maior parte das coisas que aprende são bem científicas (...). Você se supera no que seja ler e ler, mas a parte afetiva sofre uma involução. Eu, quando entrei, ficava conversando depois do expediente; agora não. (grifos meus)

Para C., à medida que passa o tempo, “cada vez mais você se toma pior. No princípio, quando morre um paciente seu, você chora; depois vai passando”. E. expressa a mesma preocupação; O que não gosto aqui é a relação com os pacientes; é muito fria; eu procuro que não seja, mas o paciente que não lhe ensina, que não tem nada interessante para se estudar, é um cano, está aí, ninguém o olha (...). Aqui, o que importa é destacar-se na parte científica. Mas eu, no pessoal, não quero perder o diálogo com o paciente; contar-lhe uma piada ê importante; mas você vai se fazendo mais duro; eu tento não me envolver, (grifos meus)

Esse problema foi assinalado por Byron Good e Mary Good, no trabalho anteriormente citado, ao expressarem que os médicos em processo de formação manifestam temor por não poderem equilibrar os dois componentes (‘competên­ cia’ e ‘cuidado’) que eles percebem como essenciais ao ideal do médico; de modo que seria “em seu esforço por lograr competência que eles perdem as qualidades de cuidados que inicialmente os atraiu à medicina” (Good & Good, 1989: 305). As preocupações podem não estar verbalizadas, mas se expressam nas atitudes cotidianas dos ‘residentes’. É o caso de X., um R l, que mostrou, no trato com um paciente, A., uma preocupação por seu bem-estar para além do cuidado estritamente médico. X. propôs a seu chefe de sala mandar A. para casa, já que só estava esperan­ do o resultado da biopsia; ele considerava que em casa estaria melhor do que no hospital (sua preocupação era pelo paciente, não pelos custos hospitalares). Dias de­ pois, uma R l, no momento em que X. entra na ‘sala-de-estar da residência’, comenta que X. estava deprimido porque A. havia morrido. X., então, começa a falar: Dei-lhe alta até que saísse a biopsia, e chamou a irmã [dele] porque sentia dores (...) disse a ela: ‘é bom trazê-lo porque a cama 28, na qual ele estava, está desocupada’; mas, quando saiu, estava muito magro (...) voltou a se internar. Na segunda, à noite, estava em minha casa, vendo televisão; liguei para saber como estava, e me disseram que havia morrido. 106

No dia seguinte, estávamos na ‘sala-de-estar da residência’, quando entra X. e diz: “sabem que fui ao sepultamento de A.?”. Todos os ‘residentes’ (sem parar o que estavam fazendo) começaram um diálogo. G, R3, comentou: “não, como você fez isso? Não me parece conveniente que o médico vá ao sepultamen­ to do enfermo” (...). “Não acredito!”, disse M., R l. Então, X. responde: “porque eu falei com a filha, estavam perto de minha casa e fui”; “eu acho que está bem”, concordou Q., R l. Nesse momento, levantaram-se alguns, o que interrompeu o diálogo , 20 enquanto aproveitei para perguntar a X. por que ele tinha ido ao enterro; e ele me responde: “eu gostava dele; o outro dia, quando fui, estava mal (...), eu já sabia que ia morrer, estava terminal, a família também sabia. À noite, telefonei e me disseram que havia morrido”. Um momento depois, quando voltei a ver G., a R3 do diálogo, perguntei-lhe por que considerava que X. não deveria ter ido ao sepultamento. Ela me disse: “não sei, acho que é um erro porque uma pessoa se compromete afetivamente até certo ponto, mas para além, não (...), por aí talvez, é um mecanismo de defesa, não sei”. R., que estava escutando a resposta de G., crê que o fato de serem internos faz com que não devam se comprometer, porque não houve uma opção do paci­ ente na escolha do médico. Quer dizer, os pacientes não os escolheram, na verda­ de, foram-lhe assinaladas as camas pelas quais seriam responsáveis. O diálogo mostra as diferentes atitudes dos residentes diante de um proble­ ma cotidiano como é a morte de um paciente. Alguns dissociam o ‘afetivo’; ou­ tros, como X., vivem a relação com alguns dos pacientes em forma total, não podendo separar o que é exclusivamente médico-científico do que é subjetivo, emocional. A pergunta que estava no ar, mas que ninguém formulou, apesar de ter sido respondida, era: Quanto se comprometer com os pacientes? Ou, para expressálo de outra forma: como lidar com esse aspecto do fazer cotidiano que coloca o médico frente a frente com o enfermo como totalidade? Com E . , 21 um paciente de Q., encontra-se outro ‘drama’ no qual me vi dire­ tamente envolvido.22 Na passagem de sala do dia anterior, ao se inteirar do ‘diagnós­ tico’, E. se mostrou cooperativo e com bom humor, não era um paciente que tivesse uma atitude passiva, dialogava com alunos e com médicos. Nesse meio-dia, depois da passagem, soube que lhe haviam dito que iriam operá-lo. Pensei, então, que seria bom, na manhã seguinte, encontrá-lo para ver como tinha reagido. No dia seguinte, quando fui à sala, E. estava vestido como preparado para deixar o hospital, e encontrou Q., o residente, conversando com uma sobrinha de E., a quem estava perguntando: “Antes não tinha nada? Por que não entendemos que, se é uma lesão maligna, tenha se desenvolvido em dois meses”. A sobrinha lhe respondeu que não, que não havia tido nada. 107

Quando entrei no quarto, vi E. muito abatido, dizendo que não queria ope­ rar-se e que as pílulas lhe estavam arrebentando o estômago. Q. lhe explicou as conseqüências da operação (nesse momento, a sobrinha virou de costas para E., para que não a visse lacrimejar), mas ao mesmo tempo lhe disse que falaria com os oncologistas para ver se haveria um tratamento que não fosse o cirúrgico; ao que E. respondeu que não queria operar-se, que iria embora e que, se tinha de morrer, iria morrer assim. Nesse momento, entra G., a R3 de Q., que tentou convencer E. a operar-se. Porém, E. parecia já ter tomado a sua decisão e disse: “não, não”. G., então, lhe respondeu: “bom, está bem” e os dois ‘residentes’ saí­ ram do quarto. Para os médicos, a intervenção terminava aí, o paciente não aceitava o tratamento e se retirava do hospital. Eu me incorporei na outra passagem de sala e continuei observando o quarto de E. Um momento depois, vi-o sair com sua bolsa, devagar, olhando o chão, arrastando os pés e com os tênis desamarrados; mas o que considerei mais significativo foi que saiu completamente só. Isso me fez segui-lo, para ver se algum médico lhe dizia uma palavra de apoio. Quando estava para descer a escada para sair do pavilhão, M., uma R l, lhe disse (com um tom amável): “E., você está nos deixando?”. Logo depois, Q. apareceu e lhe disse: “espere E., vamos nos sentar para conversar um pouco”, ao que E. respondeu: “não, não”, e começou a descer as escadas. É aí que cruzei com Q. e lhe sugeri em voz baixa: “acompanhe-o” . 23 Quando posteriormente falei com Q., ele me disse que há três meses uma irmã de E. tinha morrido de câncer e há um ano, um irmão.24 Diante das minhas desculpas por ter me ‘metido’, me respondeu: Não, está bem, por aí a gente não se dá conta de que está fazendo algo mal (...). Acompanhei-o inclusive para me proteger, porque foi-se em­ bora com uma infecção no pé e pode piorar (...). Quando lhe expliquei o que tinha, me disse que não queria esperar. E está bem, eu teria feito o mesmo, é preferível que morra de sua enfermidade e não da enfermidade dos médicos, a cara dele ia ficar muito deformada, (grifos meus)

Na seqüência, observa-se que Q. teve de explicar a E. sua enfermidade (“hoje acabou de tomar conhecimento de que era um tumor, ele o associava com algo que pôs no nariz”, me disse depois) e seu tratamento, mas, em suas palavras e em sua atitude, pode-se observar uma profunda tensão entre o estipulado nos protocolos médicos e a experiência tal como ele a vive. Essa mesma seqüência e, fundamentalmente, a diferença que Q. estabelece entre a ‘enfermidade dos médicos’ e a ‘enfermidade do enfermo’ lembra a distin­ ção realizada por Arthur Kleinman (1978) entre illness, disease e sickness. O pri­ 108

meiro conceito resgataria a experiência pessoal, social e cultural ante a disfuncionalidade, ante a enfermidade; o segundo trataria das anormalidades e disfuncionalidades dos processos biológicos e psicofisiológicos, a partir do ponto de vista do paradigma biomédico. Por último, sickness alude ao fenômeno total, do qual illness e disease não refletem mais do que aspectos parciais. No exemplo anterior, Q. estava explicando a situação a partir do ponto de vista biomédico, disease (apesar de vivê-la de uma forma mais comprometida), e E. estava anali­ sando a situação a partir de seu ponto de vista, illness. Jean Clavreul (1983) trabalhou essa diferenciação entre as duas visões sobre a enfermidade, a do médico e a do enfermo, e sustenta que, ao enunciar a posição do médico, se apagaria a posição do enfermo, visto que este último sempre está de acordo com a posição do médico, pelo que aceita submeter-se aos exames e trata­ mentos propostos. A seqüência exposta anteriormente, se bem que não contradiga o que Clavreul sustenta, mostra como, quando o enfermo não aceita a posição do médico, e quando não lhe permite atuar para livrá-lo de sua enfermidade, geram-se momentos de tensão porque escapam ao curso cotidiano dos acontecimentos, ao que é esperável de uma relação médico-paciente (a partir do ponto de vista do médi­ co). Manifesta-se, dessa forma, a ‘tensão estruturante’, porque, diante da negação de E. em aceitar o ‘saber’, ao não deixar que este continue dirigindo a situação, abre o caminho para que o ‘sentir’ se expresse em todo o seu potencial. Em certa medida, todos os ‘residentes’ tiveram algumas experiências desse tipo, mas existe uma tendência, dentro do possível, para evitá-las, já que são os tipos de experiências diante das quais não podem deixar de envolver-se. A partir da experi­ ência de Q. com E., levanta-se a dúvida; o que fazer diante dos pacientes terminais? A. se pergunta, por causa de uma paciente de 80 anos com leucemia, a quem propõem fazer quimioterapia: “mas a quimioterapia mata um garoto de 2 0 anos, imagine esta velha; por que não deixar que vá para casa e morra do curso natural de sua enfermida­ de? Mas não, os oncologistas dizem que têm de fazer o tratamento, que academica­ mente está estipulado assim ” (grifos meus). A tensão que A. está mostrando no relato poderia expressar-se na pergunta: que sentido tem aí o acadêmico? Por que não deixá-la ir embora? De outro modo, a dúvida se levanta: que fazer? - o que ‘dita’ o ‘saber’, ou o que se acredita ser o correto nesse caso? Desde o momento em que os jovens residentes entram no hospital, pode-se dizer que sofrem um processo de encouraçamento, de construção de defesas das quais falava G. Isso é o que lhes permite enfrentar situações em que têm de tratar pacientes terminais, nas quais os critérios médicos se cruzam com problemas éticos ou com os aspectos humanos da disciplina. 109

Se bem que os exemplos mostrem uma genuína preocupação com os paci­ entes como pessoas, a orientação de sua prática é biologicista , 25 porque essas preocupações surgem quando têm um caso terminal ou quando, por alguma razão (como pode ser uma entrevista com um antropólogo interessado nessas ques­ tões), refletem sobre sua prática; mas, no cotidiano, não o fazem. A razão pela qual não o fazem é por falta de tempo, porque a quantidade de trabalho não lhes deixa tempo para que pensem noutro aspecto que não seja o terapêutico. Aí vê-se com clareza a dualidade entre os aspectos terapêuticos, carrega­ dos com uma dose de objetividade, e os aspectos humanos, que seriam subjetivos e secundários em relação às funções terapêuticas. H., um R l, comenta: Com tanto trabalho, você como que perde de vista (...) que você se dedica mais ao seu trabalho e perde de vista o paciente, como ser que pensa, que sente. É tanto trabalho que você não tem tempo de pensar no paciente; e, então, na cama 23, você tem uma pancreatite e para uma pancreatite você tem que pedir uma ecografia. Mas, você não tem uma pancreatite, você tem um paciente, uma pessoa que tem um sofri­ mento que provavelmente se deve a essa pancreatite. Estamos tão con­ centrados nisso que perdemos de vista o outro; mas é, fundamentalmen­ te, uma questão de tempo. À noite eu não posso dormir pensando em cada paciente, (grifos meus)

A chave está posta nessa palavra ‘fundamentalmente’. Cabe, então, inda­ gar quanto se deve a essa falta de tempo, e quanto à idéia de que o ‘humano’ não influi no tratamento? De certa forma, Q. trata de responder à questão: Quando você está no começo do curso, lhe parece que é mais importan­ te o tratamento para determinada patologia, do que como deveria ser a relação médico-paciente ou questões éticas (...). Quando você me perguntou, meditei e disse: ‘é uma pessoa, apesar de que depois lhe diga é a cama tal ou é uma glicemia de tanto’ (...). Na prática cotidiana,

me esqueço que é uma pessoa; é um caso, até que acontecem coisas como a de hoje que lhe fazem mostrar a lesão diante de todos; até esse momento, era um HIV positivo, era a cama 3; nesse momento, me dei conta de que era uma pessoa, (grifos meus)

A outra razão desse ‘esquecimento’ se relaciona com o que diz H.: “você se dedica mais a seu trabalho”: isso implica que escutar o paciente não seria parte de suas preocupações? Ou o é, mas como um aspecto secundário, sem importância?

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J. expressa ainda mais claramente a dualidade com a qual se enfrentam os residentes no processo de aprendizagem e ‘vê’ como eles são o produto de uma formação profissional, mas o aceita sem questionar as conseqüências dele: O que acontece é que nós somos profissionais; fomos treinados para uma profissão que tem seus métodos, tem seus passos, às vezes independente­ mente da parte humana do paciente; às vezes nos excedemos; mas não é que nos excedamos, mas sim que deixamos de lado o paciente na parte

humana e nos concentramos no estritamente profissional, (grifos meus) A separação entre ‘o profissional’ e ‘o humano’ é derivada da formação pautada no modelo biomédico. Isto indica que existem determinadas característi­ cas dos pacientes que, para eles, são tratáveis e outras, não; não obstante, reco­ nhecem que, em determinadas circunstâncias, podem ter efeitos sobre o curso da enfermidade. Assim pensa C., que acredita que uma boa relação com o enfermo ajuda no tratamento: “creio que um bom trato influi no tratamento, mas me matam se me escutam dizer isso”. Mas, essa não é a opinião de O., que considera que: Se o paciente é hipertenso e tem problemas com sua família, nós vamos estudar isso, porque vai contribuir para seu bem-estar; mas não con­ fundir as coisas. Não é porque lhe solucionamos os problemas familia­ res que vamos lhe solucionar a pressão, não. A pressão, nós a solucio­ namos com medicamentos.

Para a maioria, a confiança e o trato só influem porque o paciente cumprirá melhor o tratamento, mas não alteram os resultados. Essa é posição de X.: “uma boa relação não influi no tratamento, porque, se você tem um paciente terminal, por mais que (...). Não, no tratamento não influi, mas no pessoal sim, no estado de ânimo, sim”.26 A Dra. H. concorda com o que pensam os residentes, apesar de ter-se formado em uma época diferente. Considera que uma formação tecnicista produ­ ziria problemas para entender o paciente. Afirma, textuajmente: Eu tenho uma formação tão tecnicista que me custa pensar que uma enferma possa ter sua psique alterada. Primeiro, tenho que me conven­ cer de que não tem nada orgânico. Temos uma formação deficitária (...) se alguém pensa que a pessoa é ela e sua circunstância, a pessoa tem de pensar nas influências das circunstâncias no homem, na patologia diga­ mos, mas, não obstante saber isso, eu me nego a aceitá-lo. (grifos meus)

Uma prova de que a preocupação pelo ‘profissional’, em detrimento do ‘hu­ mano’, é uma conseqüência do modelo biomédico, no qual os médicos são forma­ dos, pode ser observada no texto de Hahn (1985), no qual faz um retrato das repre­ sentações de um médico especialista em medicina interna. O autor destaca, inicial­ mente, que os dois conselhos que o médico interno dá a seus residentes - “escutem o paciente” e “façam a história do paciente” -, aparentemente, estão em conformidade com o compromisso atual de tratar a totalidade da pessoa, os interesses do paciente, individualidade, contexto etc. Entretanto, posteriormente, expressa: esse compromisso é enganoso. Barry [nome fictício que o autor dá ao médico] redireciona a informação delimitada, deduzida do paciente para o exame fisiológico. ‘Escutem o paciente’ e ‘íaçam a história do paciente’ não são esforços para compreender o mundo de vida do paciente, seus significados internos, medos, ou desejos, mas sim, mais diretamente, para diagnosticar uma enfermidade concebida por critérios independen­ tes de suas realizações pessoais. (Hahn (1985: 91)

O exemplo mostra como, em um contexto notadamente diferente do en­ contrado no hospital deste trabalho, maneja-se uma idéia de enfermidade similar, que permite ser tratada omitindo-se as características individuais do paciente. Essa similitude não é obra do acaso, mas sim de que o médico do trabalho de Hahn e os médicos do hospital no qual fiz a pesquisa respondem a um mesmo modelo de medicina - o ‘modelo biomédico’ (apesar de que este modelo pode receber ressignificações de acordo com o campo específico em que se queira estudá-lo).

N otas 1 H. não era a única paciente atendida pelo serviço de Saúde Mental nesse momento. Para que, desse serviço viessem até o pavilhão, tinham de pedir uma consulta interdisciplinar. 2 Le Breton (1995) assinala que a noção de ‘efeito placebo’ é a reformulação médica da eficácia simbólica associada aos cuidados; por meio deste, o corpo daria mostras de sua natureza simbólica e do caráter relativo do modelo fisiológico, assim como assinalaria o trabalho do imaginário do enfermo que soma ao ato médico um suple­ mento decisivo. Mas, ao mesmo tempo, Le Breton assinala que o discurso médico imputa este surplus de eficácia à credulidade do enfermo, ou à ignorância, como uma maneira de reduzir a cotnplexidade do fenômeno. Essa redução seria buscada porque “esse suplemento que representa o efeito placebo não concerne à medici­ na” (1995: 194). Com isso, obtem-se uma diferença entre as atitudes dos médicos e da psiquiatria porque, na ótica da medicina, sustenta-se um saber que separa sujeito e objeto de conhecimento, que consagra a dualidade mente-corpo e que esquece 112

que o homem é um ser mediatizado pelas relações simbólicas. Na ótica da psiquia­ tria, sustenta-se uma relação com o enfermo que está impregnada de representações simbólicas e fantasmáticas tanto do enfermo como do psiquiatra (representações que se estendem ao corpo que, para a psicanálise, apresenta uma ‘anatomia imagi­ nária’ que transcende às representações médico-anatômicas). 3

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Mal-estar expresso em um sentimento de que os médicos já não lhe diziam tudo, ou em comentários do tipo: “ele disse isso porque não sabe o que é estar aqui”, respon­ dendo a um médico com o qual estava desgostosa. Um diálogo significativo se dá entre a residente que a atendia e seu chefe. Este lhe disse: “que critérios de internação você tem? Ela tem de ir”. E. lhe disse: “mas não se pode ir assim”; o chefe insistiu: “E., quais são os critérios de internação de miastenia?”; E. começa a responder: “que tenha problemas respiratórios ou para comer”. O chefe disse: mas não tem nada disso; o assunto é que estão nos faltando critérios de internação e o custo-benefício nos diz que esta grana que se está gastando com ela poderia ser utilizada em outro paciente ou em áreas críticas”. Este diálogo mostra como se cruzam o técnico, o humano e o econômico em uma mesma decisão. O ‘diagnóstico presumível’ pode ser chamado também ‘impressão diagnóstica’ e se realiza antes que tenham sido feitos estudos secundários. Realiza-se com base em sinais e sintomas que surgem do interrogatório e do exame físico e, a partir dessa impressão diagnóstica, decide-se que estudos secundários devem ser realizados e que algoritmo de estudo deve ser seguido.

6 Os Ndembu formam uma etnia que habita em pequenas aldeias em Zâmbia, ao oeste do rio Lunga, numa área de 18.000 quilômetros quadrados. Suas aldeias se caracte­ rizam por terem uma alta mobilidade, pela virilocalidade e a matriliniaridade. 7

A noção de ‘invasividade’ está em estreita relação com a representação de um corpo anatomizado que o médico começa a construir desde o momento em que entra em contato com o interior do corpo em seus estudos de anatomia. Uma ação merece a caracterização de ‘invasiva’ quando transpassa o limite da pele, quando entra em jogo esse espaço do corpo que é interior. Nunca escutei dizer que algum dos médi­ cos mencionasse estar sendo ‘invasivo’ quando entrava nos aposentos sem bater nas portas ou quando descobriam os pacientes sem pedir licença. É por tudo isso que podemos afirmar que a ‘invasividade’ apresenta-se em relação ao corpo e não à pessoa como uma totalidade.

« Falo de explicitação e não de desencadeamento das tensões, porque estas já haviam começado a se acumular à medida que as dificuldades com o diagnóstico aumentavam. 9

Em um excelente trabalho, Bonvin (1993) assinala como o enfermo, ao colocar a ansiedade e o sofrimento na sua relação com os médicos, constitui-se em um dos obstáculos para o bom funcionamento da instituição hospitalar, na qual todos espe­ ram do enfermo um grau de submissão total. Por isso, chamou a atenção que H. tivesse esse controle sobre a evolução de sua enfermidade e de seu tratamento. Creio que é dessa tensão explicitada e das dúvidas que o RI deixou ver na ‘passagem de sala que deriva a explicação que ele dá a L., ao retirar-se da habitação. Que tenha representado um momento tensionante para ele ficou corroborado porque, quando saiu, a primeira coisa que me disse foi que eu tinha de lhe mostrar o que havia anotado 113

em minha caderneta. Por outro lado, eu mesmo senti, em determinados momentos da passagem, uma sensação de tensão que me recordou à que eu vivia quando não ia bem nos exames da universidade, frente a um grupo de professores. Bourdieu e Wacquant (1995: 90) assinalam que “só a noção de habitus pode explicar o fato de que, sem serem propriamente racionais (...), os agentes sociais sejam razoáveis, não sejam insensatos, não cometam loucuras (...) precisamente porque interiorizaram, ao término de um prolongado e complexo processo de condiciona­ mento, as oportunidades que lhes são oferecidas”. 12 Esse comentário de A. ultrapassa as marcas das diferenças entre a aprendizagem da faculdade e a recebida no hospital; o que se pode ler, nele, é o questionamento da idéia básica de que as patologias são entidades objetivas que se apresentam da mesma maneira em toda parte, como Camargo Jr. (1992a; 1992b) dizia que a doutrina médica implícita a entende dessa forma. 13 A expressão “a partir do saber biomédico” se explica porque, nas clínicas em que se trata a dor crônica, já não se buscaria chegar a um diagnóstico e à cura (objetivos do saber biomédico), mas se procuraria manejar a dor crônica em vez de curá-la. Nessa nova concepção da prática médica, o objetivo passa a ser a dor e a pessoa que a sofre como uma unidade (Baszanger, 1989; 1991). 14 Tumer (1974: 133), no que diz respeito à relação entre liminaridade e perigo, assinala que “na perspectiva daqueles a quem incumbe a manutenção da ‘estrutura’, todas as manifestações continuadas da communitas devem aparecer como perigosas e anárquicas e precisam ser rodeadas, de prescrições, proibições e condições”.

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is Douglas (1976: 50) coloca que a sujidade não é nunca um elemento isolado, mas que se estabelece por relação a um sistema e implica uma contravenção a esse sistema, pelo que a sujidade é “um subproduto de uma ordenação e classificação sistemática das coisas, na medida em que uma ordem implica rechaçar elementos inapropriados”. 16 Bourdieu (1982: 126) assinala que “a instituição de uma identidade é a imposição de um nome, é dizer de uma essência social. Instaurar, designar uma essência (...) é impor um direito de ser, que é um dever ser, é significar o que ele é e, em conseqüência, (...) como tem que se conduzir”. 17 Apesar da importância da ‘relação Cüsto-benefício’, encontram-se no hospital curio­ sidades que escapam totalmente a essa relação, como o ancião que lá permaneceu dois meses só porque não tinha dinheiro para comprar o medicamento via oral e o passavam em forma endovenosa. Casos como esse recebem a denominação de sociais (“o problema é social”); alguns desses são enfermos que não têm aonde ir e então ficam internados no hospital. is Diz-se “aparentemente” racional porque, como expressei anteriormente, só em algu­ mas circunstâncias as decisões são produto de uma escolha racional, sendo, em sua maioria, tomadas com base nas disposições estruturais, conformadas na trajetória individual e coletiva, que chamei habitus; que se estabelecem por uma dialética entre as experiências subjetivas e as oportunidades objetivas. i9 Esta visão que aponta à totalidade do homem que se expressaria no termo biopsicossocial é contestada por Camargo Jr. '(1997), quando argumenta que a mera

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justaposição de discursos não pode abolir, por si só, a fragmentação inerente ao modelo de desenvolvimento disciplinar da modernidade, pelo qual os aspectos ‘social’ e ‘psicológico’ estariam subordinados ao discurso biológico. 20

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Eu não havia passado uma manhã muito feliz, tinha a sensação que havia ‘passeado pelo campo’ mais do que feito trabalho de campo; no entanto, no momento em que esse diálogo se deu entre os residentes, senti que valeu a pena estar lá - valeu a manhã. Quando essas coisas se passavam no campo, recordava Barley (1989), quan­ do relatava,^em seu livro O Antropólogo Inocente, que havia momentos em que colocava a “marcha do trabalho de campo”, com o que fazia alusão aos longos períodos de tempo em que esperava que sucedesse algo. E. é um paciente de uns 56 anos, com câncer no nariz, que havia se espalhado pelo lado direito do rosto com metástase nos ossos; o tratamento programado era cirúr­ gico e de características muito invasivas. Esse me vi tenta ressaltar que o problema de E. repercutiu fortemente em minha pessoa a ponto de emocionar-me ao relatar posteriormente a situação. Essa foi a pnmeira ocasião em que senti que me envolvia com uma situação vivida por alguns dos pacientes de uma forma ‘dramática’.

23 Nesse momento me dei conta que havia deixado de ser um observador participante para ter uma ‘participação observante’. Essa mudança de situação foi inconsciente e talvez produto da forma intensa como me envolvi na situação, talvez por isso tenha dito ao residente o que a mim parecia que ele tinha de fazer. Passei o resto da manhã tentando encontrar Q. para falar com ele e explicar-lhe que eu não havia querido dizer-lhe o que ele deveria fazer, mas apenas que, naquele momento, isso era o que eu sentia que E. estava necessitando. 24 Penso que por aí se pode buscar uma explicação para esse desenvolvimento verti­ ginoso do câncer que os médicos não terminam de explicar; mas uma explicação com tanto embasamento psicossomático que não pode ser demonstrada e que dificil­ mente seria sustentada por um deles. 25 Deve-se recordar que, embora a biomedicina seja biologicista, nem todos a prati­ cam da mesma forma e que, como já disse, depende da trajetória de cada um. 26

Existe na literatura sobre as relações médico-paciente um grande número de traba­ lhos que tentam ressaltar as relações entre as características pessoais do médico e as dos pacientes com os resultados terapêuticos. Estes trabalhos chegam a conclu­ sões que marcam a importância dos estilos comunicativos do médico, da comunicaÇao não-verbal, da diferença de gênero na quantidade de informação com que os médicos brindam os pacientes, assim como ressaltam a influência que ocasiona a classe social do paciente na atitude do médico (Meeuwesen, 1991; Street Jr., 1991' Bensing, 1991). Muitos desses trabalhos poderiam ser agrupados em um tópico denominado na própria literatura como estudos de‘satisfação do paciente’ (Steptoe 1991 ; Williams, 1994).

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Conclusão

A etnografia aqui desenvolvida de uma residência em um hospital público mostrou o processo de produção de uma identidade: ‘ser médico’. A produção dessa identidade envolve a modelação das subjetividades individuais, o que neces­ sariamente implica uma reconstrução dos corpos dos residentes. Para entender a profundidade dessa transformação, para perceber as subje­ tividades que estavam sendo moldadas em um diálogo entre o presente vivido e a tradição médica, representada no discurso e na instituição, foi necessário descre­ ver a construção dessa tradição e as idiossincrasias da instituição em foco. Só tal percurso me permitiu entender o processo de formação do habitus que caracteri­ za os residentes de clínica médica de um hospital público. Entretanto, para perce­ ber esse habitus tinha de me aproximar das pessoas de carne e osso. O olhar para o residente que vivência e sofre o hospital foi fundamental para entender o drama e o desafio que representa o processo de transformação da identidade pessoal. Ser residente é ter uma ‘identidade liminar’. Existem duas diferenças es­ senciais na forma de estar, de viver o hospital, entre os residentes e os estudantes de medicina: já são médicos, se formaram e passam a ser responsáveis por paci­ entes, passam a ter ‘seus’ pacientes. Porém, a nova forma de viver o hospital não os iguala aos médicos do staff do hospital, uma vez que não têm a prática hospi­ talar - não têm o habitus associado às novas condições objetivas. A liminaridade de suas identidades encontra um paralelo na residência que, como dispositivo de formação, também é liminar. Dessa liminaridade, surge o sen­ timento de pertencer a uma categoria - ser residente - e esse pertencimento possi­ bilita o processo de modelação da subjetividade. Passar por esse processo com sucesso permite deixar a liminaridade: passar a ‘ser médico’ e ganhar o ‘mundo da rua’. Ser médico implica, então, o domínio do habitus que permite ser incluído como agente no campo da biomedicina; implica aceitar os princípios estruturadores das práticas que definem a biomedicina. Os residentes que ingressam no hospital, no começo da carreira, enfrentam a tarefa de adquirir o habitus como um desafio, o que ocasiona muito sofrimento e dor.

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Embora o sofrimento seja, em certa medida, derivado das características pessoais de cada residente - da trajetória de vida, da forma de estar no mundo também deriva do próprio processo de constituição da biomedicina como um saber científico. Esse processo começa com a necessidade de estabelecer a idéia de indivíduo, que é associada à configuração individualista hegemônica na cultura ocidental moderna. Esta começou a se instalar nos séculos XVI e XVII, quando mudanças em processo na sociedade apontavam para o abandono das explicações baseadas na religião, e se desenvolvia a filosofia mecanicista, que propunha expli­ cações fundamentadas em um racionalismo experimentalista. O homem, dali por diante, desprovido do caráter divino, passa a ser explicado por analogia com a máquina. Pode-se, então, encontrar um homem automatizado no qual se separam duas instâncias: mente e corpo. A oposição mente e corpo - que não é patrimônio exclusivo da biomedicina e que se estende a todos os campos da ciência - se perpetua camuflada sob outros nomes, como racional e emocional ou, no contexto da biomedicina, como compe­ tência e cuidado. No hospital onde fiz minhas observações, essa oposição apre­ sentava-se sob os termos ‘profissional’ e ‘humano’. As delimitações do ‘profissional’ e do ‘humano’, ou do ‘saber’ e do ‘sentir’, como dois conjuntos de representações separadas, manifestam-se em forma per­ manente nas práticas cotidianas do serviço. Para se constituir como um campo de saber científico, a ‘biomedicina’ - baseada nessa construção dualista, que acarretou o que denominei como ‘tensão estruturante” , - afastou três totalidades: o médico, o paciente e a relação entre eles, deslocando para o inconsciente os aspectos emocionais dessas totalidades porque não se encaixavam no discurso criado sobre o processo de saúde-doença. Mas, no dia-a-dia, o que foi reprimido encontra uma brecha pela qual se manifesta, fazendo sentir seus efeitos na prática biomédica. Junto com a formação da biomedicina, vai se constituindo o ‘hospital’ como um espaço essencial em que se joga a relação de aprendizagem, um espaço em que a enfermidade é mostrada, em que se impõe o olhar médico. Em outras palavras, vai se constituindo no espaço em que as três totalidades dicotomizadas criam e recriam ‘dramas sociais’ novos e àntigos simultaneamente, nos quais se manifesta a ‘tensão estruturante’, conseqüênòia da filosofia dualista que a ‘biomedicina’ colocou como pedra fundamental. Esses dramas vividos no cotidiano do serviço de clínica médica são o re­ sultado da intromissão daquilo que tinha sido obliterado: o ‘sentir’. Enquanto o saber, pólo dominante da oposição, importância outorgada pelo discurso e pela tradição biomédica, pode resolver os desafios, a vida do pavilhão transcorre na 118

ordem estabelecida por esse discurso médico. Nos momentos em que o ‘saber’ não dá as respostas esperadas, o ‘sentir’ abre espaço e adquire maior força. É então que os dramas sociais explodem, os médicos e os residentes, estes últimos fundamentalmente, conseguem perceber o caráter ilusório da separação entre o profissional e o humano, ou entre o saber e o sentir. Nos momentos em que têm de lidar com o paciente que não aceita o trata­ mento, em que têm de comunicar um resultado positivo de um exame comple­ mentar, em que nada têm a dizer porque ainda não sabem o diagnóstico, ou em que encontram tempo, no meio das tarefas diárias, para sentar na cama do pacien­ te e falar ‘das coisas da vida’, os residentes estão envolvidos de ‘corpo e alma’. Nesse processo de construção da subjetividade, que implica a formação de habitus profissionais, eles estão comprometidos como uma totalidade. Mas o envolvimento total permanece inconsciente até que se apresente na forma de um drama. E é justamente aí que se apresenta o problema. Permanece inconsciente porque a biomedicina, assim como separa o médico e o paciente em busca da cientificidade, tem de digitalizar, também, a própria pessoa do médico. Assim, aspectos das vivências cotidianas estariam orientados para a busca dessa cientificidade e conformariam o pólo do saber, do racional, do profissional, enquanto outros aspectos representariam a intromissão das emo­ ções, dos sentimentos. Intromissão perigosa porque pode perturbar o caminho até o diagnóstico. E a biomedicina dualista que os residentes de clínica médica formam o seu habitus médico. É essa concepção que é abraçada como a sua causa, como a sua vida, embora, nesse momento, ela os coloque em um conflito, que pode ser mais ou menos inconsciente e que, em determinadas situações, se converte em um dilema ético de difícil solução. Os residentes se encontram, em sua prática, prisi­ oneiros de um ‘duplo vínculo’, já que, se rejeitam o dualismo fundamental, saber e sentir, devido às conseqüências na prática cotidiana, rechaçam o princípio bási­ co de sua aprendizagem. Mas, se o aceitam, respondendo à tradição na qual se formaram, envolvem-se em um conflito do qual, justamente por sua característi­ ca estruturante, não têm escapatória.

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Anexos

CD4 1) Contagem de CD4 [ 2) Data [ / / ] 3) Contagem de CD4[ 4) Data [ / / ] 5) Contagem de CD4[ 6) Data [ / / ]

] ] ]

E x a m e O ft a l m o l ó g ic o 1) Exame oftalmológico ____

TAC C e r e b r a l 1) Normal [ ] 2) Massa única [ ] 3) Massas múltiplas [ ] 4) Reforços com contraste [ ] 5) Atrofia cerebral [ ] 6 ) Edema cerebral [ ] 7) O u tro s_________________

RNM C e r e b r a l 1) Normal [ ] 2) Massa única [ ] 3) Massas múltiplas [ ] 4) Reforço com contraste [ ] 5) Atrofia cerebral [ ] 6) Edema cerebral [ ] 7) O u tro s_________________ T e l e R x T órax 1) Normal [ ] 2) Interstício unilateral [ ] 3) Interstício bilateral [ ] 4) Acinos unilateral [ ] 5) Acinos bilateral [ ] 6) Misto unilateral [ ] 7) Misto bilateral [ } 8) Derrame pleural unilateral [ ] 9) Derrame pleural bilateral [ ] 10) Abscesso pulmonar [ ]

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1) Não tratado [ ] 2) Combinações [ ]

3) Dose de AZT [ ] 4) Dose DDI [ ] 5) O utros_________________________ ____ T ratam ento com azt

1) Data de começo

/

/

T ratam ento

1) Sem aumento de CD4 [ ] 2) Aumento de CD4 [ ]

3) Início do Tratamento

/

/

E f e it o s A d v e r s o s da M e d ic a ç ã o I n s t it u íd a

1) Efeitos adversos da medicação instituída [ ] I n f e c ç õ e s A s s o c ia d a s

1)Não[ ] 2)

Sim [ ] Tipo, localização e tratamento

N e o p l a s ia s A s s o c ia d a s

1)Não[ ] 2)

Sim [ ] Tipo, localização e tratamento

P r o f il a x ia s

1) Primárias (droga, dose, via de administração)_ 2) Secundárias (droga, dose, via de administração)

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Anexo 2

Algoritmo para a I nvestigação dos D istúrbios do M ovimento

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