Saber profissional metodológico na condução de entrevistas em Ciências Sociais (2013)

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Saber profissional metodológico na condução de entrevistas em Ciências Sociais Telmo H. Caria1, Raquel Biltes2, Filipa Cesar3

in Telmo H. Caria, Vera Fartes e Amélia Lopes (eds.) Saber e formação no trabalho profissional de relação (pp.117-139). Salvador da Bahia: Editora da Universidade Federal da Baia.

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Professor de Sociologia e Ciências Sociais do Departamento de Economia, Sociologia e Gestão da Universidade de Trás-osMontes e Alto-Douro. Investigador Responsável pelo Núcleo de Etnografias do Conhecimento Profissional do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE) da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Endereço e-mail: [email protected]. 2 Mestre em Comportamento Desviante e da Justiça pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Actualmente é bolseira de investigação no projecto FCT-SARTPRO: Saberes, Autonomias e Reflexividade no Trabalho Profissional no Terceiro Sector. Endereço e-mail: [email protected] 3 Licenciada em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, mestre em Educação, variante em Diversidade Cultural e da Educação, pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Actualmente é bolseira de investigação no projecto FCT-SARTPRO: Saberes, Autonomias e Reflexividade no Trabalho Profissional no Terceiro Sector. Endereço e-mail: [email protected]

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A entrevista é uma das técnicas mais usadas na investigação em Ciências Sociais. É usada tanto pelas metodologias quantitativas como por metodologias qualitativas e por inúmeras disciplinas científicas com objectivos muito diversificados (Ghiglione e Matalon, 1992; Ruquoy, 1997). Em consequência, a bibliografia sobre o tema é muito vasta e por isso nem sempre é coerente e consistente quanto às epistemologias que fundamentam e orientam o uso desta técnica de pesquisa. Nesta comunicação pretendemos abordar o uso da técnica de entrevista em Ciências Sociais, na

investigação

académica

com

propósitos

compreensivos.

Para

este

objectivo

problematizaremos o tema a partir das hipóteses sobre o conhecimento profissional que temos desenvolvido no grupo ASPTI4, tomando como exemplos empíricos o uso que temos feito da técnica de entrevista no projecto SARTPRO (Saberes, Autonomias e Reflexividade no Trabalho Profissional em Organizações no Terceiro Sector)5. Julgamos que as considerações que faremos de seguida podem ser encaradas como hipóteses gerais de análise sobre o saber profissional na condução de entrevistas. 1- Esboço das condições sociais da entrevista Pensamos que existe uma feliz descrição do modo de operar com entrevistas em Ciências Sociais: a entrevista é uma conversa com objectivos (Birgham e Moore, 1924, citado por Maynard e outros, 2002:3-45). Pensamos que esta descrição é adequada – em especial quando ela tem finalidades compreensivas (Demazière, 2008) -, porque dentro dela estão contidas duas dimensões que consideramos essenciais: - ao dizer-se que a técnica de entrevista é “uma conversa” estamos a salientar a dimensão relacional e de interacção social que ela sempre contém quando se recolhe informação; - ao dizer-se que a técnica de entrevista tem “objectivos” estamos a salientar a ideia de que existe uma relação assimétrica na interacção, sendo que à partida, no início do processo de entrevista, a interacção está subordinada

às “regras de jogo” que são da iniciativa do

entrevistador, e portanto controladas por este.

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Grupo de investigadores em Análise Social das Profissões em Trabalho Técnico-Intelectual (ASPTI) com origens disciplinares e institucionais variadas, criado em 2001 por Telmo H. Caria e localizado no norte de Portugal. Desde 2007 que o grupo ASPTI está sediado no CIIE (Centro de Investigação e Intervenção Educativas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto) com a denominação de Núcleo de Etnografias do Conhecimento Profissional (NECP). 5 Projecto concebido em 2008, como proposta de investigação submetida a financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), e que se encontra em curso (de Fevereiro de 2010 a Fevereiro de 2013) [PTDC/CS-SOC/098459/2008]. Trata-se de uma parceria de investigação entre três centros de investigação universitários portugueses - CIIE Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (Telmo H. Caria, Margarida Silva, Berta Granja e Fernando Pereira), CICS do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho (Ana Paula Marques) e CETRAD da Escola de Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Isabel M. Costa e Armando Loureiro) - a que foi associada a Universidade Federal da Bahia do Brasil, através da Professora Vera Lúcia Fartes. Tem ainda a consultoria externa da Professora Julia Evetts da Universidade de Notthingam e da Professora Susana Durão da Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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Para melhor entender estas duas ideias abstractas sobre entrevista será importante lembrar que no trabalho de planeamento de uma dada entrevista é comum considerar dois eixos de concepção do processo: o grau de formalização das perguntas (a estruturação do guião para responder aos objectivos da investigação); o grau de abertura/fechamento para o conteúdo das respostas (a directividade no processo relacional de recolha de informação). Uma grande formalização das perguntas implica um guião em que a forma, a ordem, o conteúdo dos temas e o seu desdobramento em questões são no essencial, definidos à partida, antes de iniciar a entrevista. Em consequência, o conteúdo das respostas é tendencialmente fechado, havendo pouco espaço e oportunidade para, na interacção, negociar os objectivos da entrevista ou adaptá-los aos contextos sociais dos entrevistados. O efeito específico da interacção social é mínimo e, em consequência, o entrevistador pode ser pouco qualificado, porque supostamente trata-se de seguir e dar as instruções previstas6. A relação na entrevista pode ser tão assimétrica que o guião se pode estandardizar ao ponto de se transformar num inquérito por questionário para auto-administração. Neste quadro, diríamos que a entrevista visa no fundamental detectar e explicar regularidades estatísticas e que por isso não tem finalidades compreensivas. A condução da entrevista é vista apenas como uma aplicação instrumental de objectivos previamente planeados e definidos: o guião da entrevista concretiza a existência de uma prescrição académica, simbólica e prática, para o trabalho do entrevistador. Nesta orientação instrumental restará ao entrevistado jogar as regras que lhe são permitidas: responder nos termos formulados, incluindo respostas “não sei”, ou recusar a entrevista ou responder de ‘má fé’. Em consequência, a relação de entrevista naturalizará a assimetria de poder simbólico existente, entre o formato científico e especializado da informação pretendida e a capacidade de expressão do entrevistado para ajustar o “senso comum” ao formato requerido e apresentado. Contribuirá, ainda, para dividir e separar a concepção da execução da entrevista e legitimará esta divisão pondo em evidência a distância cultural e linguística entre o investigador (que concebeu o projecto de investigação) e o sujeito que é entrevistado. Apesar disto, a entrevista poderá cumprir os objectivos de informação (temas, perguntas e conteúdos de respostas) que se pretendiam alcançar, porque o processo de interacção tenderá a não conter perturbações significativas da ordem relacional que foi planeada para a entrevista. Ao inverso, na abordagem compreensiva da entrevista – ou quando os objectivos da investigação não estão à partida inteiramente determinados, como é muito usual acontecer nas 6

A fim de problematizar esta concepção da entrevista directiva e estruturada, do ponto de vista etnometodológico e conversacional, ver Maynard e outros, 2002.

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fases de exploração e preparação de um dado tema de investigação (Quivy e Campehnoudt, 1992:46-87) - pretende-se com a “conversa” criar oportunidades para parcialmente redefinir os objectivos de investigação e para melhor aferir da relevância dos temas e dos conteúdos definidos para os contextos de acção social dos entrevistados. Neste quadro, diríamos que os objectivos científicos continuam presentes, mas o processo de entrevista deixa de ser visto apenas como a consequência automática de uma prescrição simbólica e prática externa, facto que exige uma maior qualificação e competência no processo de interacção e uma muito maior atenção à dimensão relacional da recolha de informação social, sendo que ambas estão para além do conteúdo da informação social recolhida. Neste quadro, não poderemos descrever a interacção social de entrevista apenas como uma aplicação de um conhecimento prévio já definido, nem poderemos interpretar a dinâmica da “conversa” apenas como uma resultante da boa ou má execução da norma técnica de bem-fazer entrevistas (Glady, 2008). É certo que o uso da técnica de entrevista para recolha de informação social começa pelo seu planeamento para realizar objectivos (académicos ou outros), continua na organização de um guião que supõe o uso de algumas normas técnicas, mas só podemos dizer que a entrevista existe socialmente quando ocorre o processo de interacção social que a concretiza (Ferreira, 1987). Nestas condições, a assimetria na interacção de entrevista pode ser tão pouco relevante que o entrevistador pode apenas ter um guião com temas de mútuo interesse, deixando a conversa fluir ao sabor de poucas perguntas e de extensas respostas, e mesmo mudar e misturar temas na conversa, que podem não ter uma relação directa com os objectivos que no momento orientam a investigação. No limite pode ocorrer uma conversa sem objectivos porque que se afasta dos propósitos da investigação, tendo apenas um efeito informativo, clínico ou heteroformativo para os interlocutores, sem gerar efeitos específicos para a produção de conhecimento abstracto e científico. Em conclusão, nos processos de investigação académica com propósitos compreensivos, uma das modalidades de uso da entrevista ocorre através de procedimentos em que se pretende um nível limitado de formalização das perguntas e algumas limitações na abertura das respostas. Na bibliografia esta modalidade de inquérito é designada por “entrevista “semi-estruturada” ou por “entrevista semi-directiva”7. 7

Para uma visão mais ampla (e complementar) sobre outras modalidades de entrevista com propósitos compreensivos, ver Kaufman, 1996 e Vermerch, 2003. Não confundir esta modalidade de entrevista com as entrevistas etnográficas (Beaud e Weber, 2003:203-230) - também elas compreensivas e tendencialmente

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Trata-se de um tipo de entrevista híbrida e que normalmente não chega a ser especificada, tendendo por isso a ser definida por uma dupla negativa: não é estruturada, nem é nãodirectiva. Numa versão simplificada designá-la-emos por entrevista colaborativa8. Especificando: (1) pretende-se, com a semi-estruturação, que uma parte dos objectivos da investigação permaneça e que outros possam ser redefinidos face à dinâmica da conversa; (2) pretende-se, com a semi-directividade, que existam temas e perguntas que têm que ser obrigatoriamente conversados, embora sempre num formato que se tem que ajustar ao entrevistado, eventualmente a partir de assuntos e questões não previstos, porque sugeridos por este na interacção. 2. O saber profissional em entrevistas colaborativas O entrevistador tem que saber conversar sem perder a orientação estratégica que suporta a investigação compreensiva, e saber fazê-lo em situação (sem prejuízo da reflexão que possa desenvolver a posteriori): saber fazer e pensar a conversa, no mesmo momento em que a mesma está a ocorrer e sem perder de vista a orientação para o que se pretende. Em consequência, criam-se as condições para ocorrer um ajustamento recíproco entre a conversa que não compromete os objectivos e os objectivos que não comprometem a conversa (Bausch e outros, 2007). É certo que se trata de um ajustamento que, como dissemos atrás, opera dentro de um quadro de desigualdade de poder simbólico - resultado do trabalho de concepção e planeamento concretizado num guião de entrevista: a “propriedade intelectual do investigador” – mas que procura encontrar possibilidades para desestruturar a assimetria de poder existente: procura encontrar momentos de partilha de poderes e saberes com o entrevistado sobre o(s) tema(s) da conversa (uma subjectividade dialógica). Assim, podemos dizer que o saber do entrevistador, como toda a acção social, contém uma dualidade estrutural (Giddens, 2000): um poder que constrange a interacção e um poder para agir que pode criar a diferença na interacção social. Mas ao colocarmo-nos do ponto de vista situacional do entrevistador, o que pretendemos salientar nesta dualidade é o poder para agir de modo compreensivo e não tanto o poder que constrange a sua acção compreensiva (Bourdieu, 1993). O poder que depende de um saber que cria oportunidades de acção compreensiva e não tanto o poder que limita a capacidade de saber agir (que no caso híbridas: são geralmente desenvolvidas de modo informal durante (ou após) uma observação participante num dado local e fundamentam-se no quadro de uma epistemologia que serve o método etnográfico. 8 Como veremos mais à frente, os dados de interacção de entrevista, em análise, partem de um guião que assume um formato biográfico, mas convirá não confundir o que desenvolvemos com entrevistas que decorrem no quadro de uma epistemologia que fundamenta o método biográfico.

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explicaria apenas as determinações e as regularidades que constrangem o processo de entrevista). É este poder e saber agir em situação (Dodier, 1993; Quére e Schoch, 1998), inscrito nesta dualidade estrutural, que temos designado como saber profissional. Assim, o saber profissional tem uma dupla condição no projecto de investigação SARTPRO. Ele é o objecto central de análise no trabalho profissional assalariado no Terceiro Sector baseado em Ciências Humanas e Sociais. E é também um recurso teórico para analisarmos alguns dos processos técnico-metodológicos que desenvolvemos neste projecto, como seja neste caso as entrevistas colaborativas e compreensivas. Como referimos num outro trabalho, inspirado nas reflexões epistemológicas de José Madureira Pinto (Caria e outros, 2012), o objecto saber profissional serve como teoria principal do trabalho profissional não académico, na sua relação com as burocracias, com os sistemas de conhecimento abstracto e com a cognição em situação, e serve como teoria auxiliar à objectivação e reflexão sobre o trabalho profissional académico, no que se refere à metodologia desta investigação. Neste contexto, esta análise é necessariamente parte da reflexão metodológica sobre o desenvolvimento do projecto. Mas é mais do que isso. É também uma dissecação heteroreflexiva sobre os saberes profissionais dos entrevistadores: uma explicitação dos seus saberes tácitos (relativo ao maior ou menor domínio prático-relacional da entrevista) e uma racionalização dos seus saberes explícitos (relativo ao maior ou menor domínio simbólicoestratégico da situação); ambos permitindo qualificar o entrevistador como um investigador profissional. Um saber que é aprendido e actualizado na actividade de entrevistar, através da consciência prática do momento, da reflexão conjunta que a interacção social permite e da reflexividade que posteriormente pode ser desenvolvida sobre a dinâmica ocorrida e resultados obtidos (Pascal, 2010). Mais especificamente, trata-se de um saber profissional em que o concebido e o planeado para a entrevista - através de um guião, enquanto manifestação explícita de um domínio simbólicoestratégico do processo de entrevista - é recontextualizado num processo de interacção social em que se visa realizar os objectivos gerais do projecto de investigação a partir de uma situação particular (o domínio prático-relacional do processo de entrevista). Como estas entrevistas são colaborativas e compreensivas, não só estes dois domínios têm que ocorrer em simultâneo, como o domínio prático-relacional tem que ser mais saliente, porque pretende-se perceber, através de uma atenção contínua e permanente à interacção, o que está a acontecer em situação: 6

- se a orientação dada pelo guião está a ser ajustada ao discurso e ao comportamento dos sujeitos entrevistados; - quais os desajustamentos que ocorrem e como são percepcionados (e antecipados) pelo entrevistador; - como é que em situação o entrevistador se “vê obrigado” a

ajustar-se ao sujeito

entrevistado, de modo a conseguir continuar a ter uma interacção colaborativa, sem que a assimetria de perspectivas e orientações sociocognitivas (revelado pelo desajustamento percepcionado) comprometa os propósitos compreensivos da entrevista. Este “como situacional”, pode obrigar a que seja necessário, no limite, durante algum tempo da entrevista, desviarmo-nos completamente (aceitarmos a sugestão implícita do entrevistado para nos desviar) do guião, admitindo que isso poderá criar um ambiente de maior empatia, potenciador do encontro de uma outra linha de conversação que possa superar parcialmente os desajustamentos verificados. 3- O projecto SARTPRO: situar as entrevistas em análise Para melhor compreender o contexto em que ocorreram as entrevistas que vamos analisar, importa referir que, do ponto de vista metodológico, a programação do projecto SARTPRO previu três etapas para o trabalho de campo: - uma primeira etapa, realizada entre Fevereiro de 2010 e Julho de 2010, em que foi constituída uma população de organizações do terceiro sector do norte de Portugal e de onde foi seleccionada e entrevistada uma amostra de pouco mais do que 60 profissionais, com o objectivo de recolher informação extensiva e quantitativa sobre os constrangimentos e as autonomias que existiam nas organizações para desenvolver saberes no trabalho profissional. - uma segunda etapa, realizada entre Janeiro e Abril de 2011, de inquirição de 21 profissionais9, através de duas entrevistas seleccionados a partir da amostra da etapa I; uma primeira entrevista sobre os contextos de trabalho quotidiano (tarefas, rotinas, imprevistos e dinâmicas hierárquicas, de trabalho de equipa e de relações com o ambiente social envolvente) e uma segunda entrevista sobre as trajectórias escolares, académicas e profissionais. - uma terceira etapa, realizada entre Setembro de 2011 e Janeiro de 2012, de investigação etnográfica com seis profissionais, seleccionados a partir da amostra da etapa II, com o 9

Todos com mais de 25 anos e com mais do que três anos de experiência profissional na organização actual: cinco assistentes sociais, quatro psicólogas, três educadoras sociais, três sociólogas, duas gerontólogas, duas gestoras e duas profissionais de outras ciências sociais. Cinco destes sujeitos ocupavam o cargo de dirigentes, seis eram chefias intermédias e os restantes dez profissionais não ocupavam cargos.

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objectivo de compreender o modo como o saber profissional se manifesta em situações de trabalho profissional concreto. Como facilmente se percebe pelo encadeamento das várias etapas, apesar da especificidade de cada uma, elas foram pensadas para servir o objectivo, de natureza exclusivamente compreensiva, da última etapa: encontrar seis profissionais capazes de estarem interessados e serem cúmplices de um projecto no qual o seu saber e a sua reflexividade para agir em (e por referência ao) contexto de trabalho fossem o objecto central de análise. Os dados que iremos analisar são das segundas entrevistas da etapa 2. Estas entrevistas foram objecto de registo digital áudio, posteriormente transcritas e finalmente comentadas oralmente pelas entrevistadoras (bolseiras do projecto). São estes comentários reflexivos, feitos à posteriori, sobre vários segmentos da interacção com os sujeitos entrevistados (que de seguida designaremos sempre por episódios) que serviram de base à elaboração deste texto. O guião concebido para estas entrevistas foi elaborado nos meses de Fevereiro de 2011 e Março de 2011. Tinha como premissa inicial que a entrevista deveria ser centrada na compreensão de como é que os sujeitos davam sentido ao presente, passado e futuro das suas trajectórias profissionais, incluindo o modo como ao longo do tempo se tinham posicionado e usado conhecimento abstracto, prático e profissional e de como os constrangimentos organizacionais tinham influenciado esse uso. Dada esta premissa, optou-se por estruturar o guião de modo cronológico, porque se entendeu que a sugestão de uma linha temporal para a construção do discurso seria mais aderente à expressão verbal e espontânea dos entrevistados e facilitaria uma organização mais sistemática e congruente do sentido da linguagem. Com este objectivo o guião foi segmentado em vários temas e subtemas de conversa. Os temas foram os seguintes: - no primeiro abordou-se a relação das trajectórias escolares e juvenis com a formação de expectativas de futuro profissional; - no segundo abordou-se a relação das trajectórias de inserção no mercado de trabalho profissional com as percepções que existiam sobre o funcionamento desse mesmo mercado; - no terceiro abordou-se a relação da trajectória profissional na actual organização com as percepções que existiam sobre as condições de funcionamento dessa mesma organização. -nos quarto e quinto temas abordaram-se a relação do uso do conhecimento aprendido nas trajectórias de educação e formação académica e profissional com as exigências sociais e institucionais do trabalho profissional no terceiro sector.

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As entrevistadoras, quando realizaram estas entrevistas, já conheciam pessoalmente os sujeitos entrevistados, dado que as primeiras entrevistas da etapa 2 já tinham sido realizadas anteriormente com as mesmas pessoas. Também já tinham alguma informação sobre alguns aspectos da sua trajectória profissional (dados da etapa 1) e também já tinham informação sobre os contextos organizacionais e o trabalho profissional específico que lhes era atribuído na organização em que actualmente trabalhavam (dados da etapa 1 e das primeiras entrevistas da etapa 2). Todos estes factores facilitaram a criação de um ambiente de maior empatia e compreensão mútuas. 4 – Saber conduzir entrevistas em situação 4.1- Saber tácito e prudência Grosso modo poderemos dizer que os saberes profissionais para a condução de entrevistas são postos à prova quando, logo no início da entrevista se deparam com imprevistos. Imprevistos que, dado os objectivos compreensivos do nosso projecto, obrigaram as duas entrevistadoras a formular os temas de conversa e as perguntas de um modo diverso, ainda que mantendo a mesma estrutura e o mesmo sentido geral contido no guião. Assim, os saberes em situação ocorreram quando, perante as entrevistadoras, começam a surgir os factos que as obrigaram a fazer ajustamentos na ordem e na forma das questões que servem de base ao processo de interacção. Vejamos uma situação típica. Episódio 1- No primeiro tema do guião, depois de se fazerem algumas perguntas que relacionavam a descrição das trajectórias escolares nos vários graus de ensino com a escolha do curso no ensino superior, pedia-se para o sujeito entrevistado dar exemplos de momentos marcantes da sua socialização escolar para este efeito. Em resposta os exemplos referiam-se, no fundamental, a experiências pessoais de aprendizagem escolar que pareciam nada ter a ver com o contexto de escolha do curso e que portanto evidenciavam desajustamentos no par pergunta-resposta previsto10. Apesar deste desajustamento, a entrevistadora não interrompeu a resposta, nem entendeu dever insistir na mesma pergunta. Aproveitando as observações de natureza emocional que eram comunicadas nos exemplos descritos, preferiu prosseguir com uma outra pergunta que, sem ser completamente diferente do que estava previsto no guião, pegava no tópico emocional e o reenviava para o contexto pretendido de saber pormenores sobre a escolha do curso: “Nunca se sentiu perdida, no sentido de achar que não era bem ali [curso escolhido] que devia estar?” 10

Sujeito nº17, psicóloga, com 30-34 anos, com 10 anos de serviço na actual organização e ocupando um cargo de chefia intermédia.

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Este caso dá conta de uma situação muito comum, razão de uma parte dos imprevistos com que o investigador se costuma defrontar: o entrevistador percebe (pelo comportamento verbal e não verbal) que aquilo que perguntou não foi entendido e que, em consequência, o sujeito entrevistado, para evitar explicitar a dificuldade e confrontar-se com ela, aproveitou o tópico questionado para se dispersar por conteúdos e informações que se entende não estarem a ter interesse para a investigação ou estarem a implicar um tempo demasiado prolongado. Nesta situação, o saber prático-experiencial que se tem sobre a condução de entrevistas indicará quais as opções que terão que se ser tomadas, a saber: - aproveitar uma pausa para interromper ou deixar o entrevistado ir até ao fim da sua resposta, ainda que desajustada da pergunta? - a seguir, insistir na pergunta inicial, dando a entender de uma forma implícita que ela não foi totalmente entendida ou dizer explicitamente que o perguntado não foi totalmente respondido? - reformular a pergunta inicial a partir do que o sujeito tenha dito (mesmo que se tenha que valorizar algo que não tenha a ver com o perguntado) insistindo no que se pretendia, ou desistir da pergunta (dado entender-se que a resposta é demasiado distante do perguntado)? - desistir de formular uma pergunta quando se antecipa que ela não vai ser compreendida (ou não faz sentido face ao que já se disse), ou, apesar disso, formulá-la, ainda que seja para logo a seguir se desistir dela? As situações em concreto misturam sempre diferentes opções. Assim, no episódio acima descrito temos uma não interrupção, seguida de alguma desistência inicial e depois de alguma insistência misturada com alguma reformulação. Mas em qualquer caso, o saber usado na condução da entrevista neste tipo de situação é em grande medida tácito, não envolvendo por isso uma decisão consciente, que pondere as vantagens ou desvantagens de uma certa escolha. Deste modo, não se chega a poder fazer um juízo, no momento, sobre o que é correcto ou errado fazer, a seguir, face à reacção do entrevistado. Apesar disso, o entrevistador pode evidenciar um domínio prático-experiencial da situação, que tem como consequência escolher-se um certo caminho sem grandes hesitações, eventualmente fazendo “más escolhas”, mas que só podem ser percepcionadas como tal a posteriori. Repare-se que, nas opções tácitas descritas que podem ser escolhidas no decurso da interacção, o entrevistador pode ser mais ou menos directivo e intrusivo e portanto pôr em evidência, mais ou menos, a assimetria de poder simbólico existente. Maior directividade implicará mais interrupções, mais insistências e menos reformulações e portanto menor 10

valorização dos conteúdos da conversa que não tenham uma relação directa com os temas, subtemas e perguntas previstos no guião. Em consequência da orientação metodológica compreensiva, as entrevistadoras tenderam a evitar as interrupções e as insistências e a procurar os conteúdos conversacionais que permitissem uma melhor recontextualização dos temas e subtemas e uma melhor reformulação das perguntas. Esta orientação foi bem-sucedida na generalidade das entrevistas porque, implicitamente, desenvolvem-se ajustamentos sucessivos e continuados na interacção. Ambas as partes vivenciam uma tensão surda, entre saber se estão ou não a conseguir desenvolver os ajustamentos recíprocos necessários ao bom resultado da entrevista. Também deverá ficar claro que esta orientação metodológica apenas pode ser consistente se, ao mesmo tempo, a auto-limitação verbal do entrevistador for acompanhada por uma linguagem não-verbal, na conversação, que dê sinais de aceitação e de compreensão das respostas e consequentemente de ajustamento destas aos objectivos da entrevista. Este facto reforça a ideia de que estamos a falar, no fundamental, de saberes tácitos, passíveis de serem controlados pela consciência prática. Podemos então concluir, que o saber profissional, que permitiu começar por fazer ajustamentos para vencer imprevistos na condução destas entrevistas, implicou um saber tácito sobre “como proceder na interacção”: um saber processual. Um saber que, tendo uma génese prática e experiencial, não deixa de ser ao mesmo tempo regulado por um princípio geral, de auto-limitação da directividade e da intrusão, que no plano profissional consideramos ser de natureza ético-deontológica e expressar-se através de um conteúdo de valor negativo (um saber prudencial): indica o que não se deve fazer com a linguagem verbal quando se percepcionam desajustamentos na interacção, tendo em vista relativizar as desigualdades de poder simbólico existentes. 4.2- Explicitação de processos e acção estratégica Este saber tácito poderá em determinados momentos ter que ser explicitado quando o ajustamento na interacção não se faz de uma forma implícita. Nestes casos, as tensões surdas na interacção transformam-se, pela acção do entrevistado, em desajustamentos mais significativos (quebra das expectativas tácitas) que geram o risco de se porem em causa as rotinas e regras de interacção necessárias à atitude colaborativa e aos objectivos compreensivos da entrevista. 4.2.1-Vejamos o que ocorre com base nos dois episódios que se seguem.

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Episódio 2- No terceiro tema do guião, depois de ter obtido algumas descrições sobre o recrutamento e a evolução na carreira do sujeito entrevistado na actual organização de trabalho, a entrevistadora formulou uma pergunta sobre o grau de participação na (re) definição das funções e das responsabilidades do profissional nalgumas actividades desenvolvidas. Em resposta, o sujeito entrevistado começou por evidenciar alguma hesitação: ao mesmo tempo que respondia dar uma contribuição diária e pessoal para uma dada função, também referia que, como não era uma actividade nova, já havia na organização uma “estrutura” para o desenvolvimento dessa função. A meio desta descrição, interrompe o tema, e diz: “Não sei se estou a…”. O entrevistador reage rapidamente e diz: “Sim, sim”. O sujeito prossegue: “…a fazer-me entender, às vezes tenho medo de acabar por baralhar um bocadinho as coisas”. O entrevistador atende ao pedido de confirmação da adequação da resposta: “Não se preocupe, não se preocupe”; e prossegue reformulando a pergunta inicial de um modo mais ajustado ao que o entrevistado havia entretanto dito11. Episódio 3- Ainda no terceiro tema do guião, um pouco mais à frente do descrito no episódio 2, pedia-se ao sujeito entrevistado que falasse sobre a relação que existia, na organização actual em que trabalhava, entre a evolução dos vínculos contratuais, as condições de trabalho e as responsabilidades dos vários membros da equipa de profissionais. O entrevistado começou a responder, mas rapidamente desvia-se deste subtema e passa a discorrer longamente sobre o incómodo que sente quando constata as diferenças no grau de comprometimento dos vários colegas com o seu próprio trabalho e, consequentemente, na sua dedicação à missão da organização. Salvaguarda de seguida que há outros colegas, com filhos pequenos, cuja vida familiar não permite esse envolvimento, e finalmente pergunta: “…mas eu desviei-me um bocadinho da pergunta, não foi?!”.12 Como se pode perceber pelo episódio 2, o entrevistado apercebe-se que a formulação das perguntas sobre um dado tema ou subtema pode não adequar-se inteiramente ao modo como perspectiva a sua interpretação da realidade e portanto ao modo como desenvolve a resposta. Fica inseguro e procura a confirmação do entrevistador sobre se está a ter, ou não, um comportamento ajustado à entrevista. No episódio 3 já não se trata de insegurança. O sujeito 11

Sujeito nº7, licenciada em Comunicação e Relações Públicas, com 25-29 anos, com 6 anos de serviço na

actual organização e ocupando um cargo de chefia intermédia. 12

Sujeito nº18, assistente social, com 35-39 anos, com 10 anos de serviço na actual organização e sem qualquer

cargo de chefia.

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entrevistado sabe que fugiu à pergunta, sabe que deu uma resposta desajustada, e no final de a desenvolver dá oportunidade ao entrevistador para que este regresse à pergunta inicial, caso deseje. Em ambos os episódios, percebe-se que a tensão latente entre conversar e realizar os objectivos da investigação - decorrente da natureza híbrida da entrevista colaborativa – é explicitada e o sujeito entrevistado procura contribuir para a resolução do problema. No episódio 2, fá-lo desvalorizando a componente conversacional da entrevista e interpretando-a como uma aplicação do guião. No episódio 3, começa por fazer o inverso, valoriza muito mais a conversa e no final parece autocensurar-se pelo que fez. 4.2.2- Verificámos que existem situações-tipo que simplificam o episódio 2: o entrevistado para evitar dar uma resposta que pode não corresponder ao pedido, toma a iniciativa de pedir esclarecimentos adicionais prévios, antes de começar a responder: pede para que se repita a pergunta, ele próprio repete uma parte da pergunta e aguarda pela reacção do entrevistador ou toma a iniciativa de reformular a pergunta pelas suas próprias palavras e aguarda pela reacção do entrevistador. Neste contexto, a entrevista torna-se aparentemente mais fácil, porque o sujeito entrevistado ao mesmo tempo que explicita a existência de dúvidas de compreensão, está implicitamente a aceitar a assimetria de poder: aceita jogar as regras controladas pelo entrevistador e entregalhe a condução da entrevista, como ocorre no episódio 2. O investigador terá menos dificuldade em seguir de modo mais estrito o guião de entrevista porque sentir-se-á autorizado pelo comportamento do entrevistado a fazer mais interrupções e mais insistências, menos reformulações e menos antecipações. Conseguirá unilateralmente, em virtude da “submissão voluntária” do entrevistado, ajustar o comportamento do entrevistado ao previsto e sentir-se-á mais à vontade para assinalar explicitamente as “falhas de compreensão” do entrevistado sempre que elas ocorram. É claro que esta actuação mais directiva terá consequências na dinâmica da entrevista: com o tempo o sujeito entrevistado fará mais silêncios, falará menos e responderá mais vezes “não sei” ou “não me lembro”. Os objectivos estratégicos e compreensivos da entrevista poderão ser postos em causa, porque o saber prudencial possuído não será usado, e a desigualdade poder simbólico será reproduzida naturalmente, de parte a parte, sem quebras e sem tensões. Nesta situação-tipo, os saberes processuais que antes se usavam para controlar de modo implícito a interacção e que eram suficientes para o efeito, ficam aquém de poder garantir os objectivos compreensivos da investigação. É preciso ir mais longe, no que se sabe fazer na 13

condução da entrevista. Estes saberes terão que ser usados, necessariamente, de uma forma menos tácita, embora continuem a ser regulados por um princípio geral de prudência: agir para evitar uma atitude não colaborativa que comprometa os objectivos estratégicos da investigação, suportados por uma epistemologia compreensiva. O entrevistador precisa de agir para contrariar o que numa primeira aproximação pode ser o mais fácil e mais simples na condução da entrevista. Trata-se, por um lado, da explicitação de alguns dos saberes prático-experienciais que indicámos, e que terão, neste caso, de ser cumpridos de uma forma mais estrita: nunca interromper, nunca insistir, nunca apontar (ou dar a entender) falhas de compreensão ao sujeito entrevistado e desistir de algumas perguntas. Por outro lado, verificámos que o entrevistador tende a introduzir, de um modo mais frequente, referências e comentários breves da sua experiência pessoal para evidenciar maior empatia e cumplicidade com as perspectivas e descrições dadas nas respostas (que noutros casos ocorrem apenas através da linguagem não verbal), a saber: “sei o que isso é; também já passei por isso”; “estava a pensar que já senti o mesmo”; “também já me aconteceu”; “então está quase a…, óptimo!”; “então conseguiu…, ainda bem!”. 4.2.3- Como vimos no episódio 3, poderá acontecer o inverso, em resultado de uma sobrevalorização da componente conversacional da entrevista. Verificámos que existem situações-tipo em que o sujeito entrevistado já não procura a confirmação de que está a compreender as perguntas, nem contribui explicitamente para o ajustamento da conversa aos objectivos da investigação. Também aqui, como veremos, tem que haver uma explicitação de saberes processuais, porque o entrevistador tem que intervir para não perder o controlo estratégico da entrevista. Esta situação é bem percepcionada pelo entrevistador quando verifica que a pergunta foi compreendida mas que, ao mesmo tempo, a resposta ficou aquém do esperado, parecendo terse fugido intencionalmente da pergunta inicial. Este paradoxo torna-se ainda mais evidente perante a falta de clareza nas respostas, em virtude do entrevistado não parecer estar a ser coerente na sua atitude colaborativa: - em alguns momentos o entrevistado aprecia entrar em pormenores e detalhes de descrição e noutros momentos parece preferir não o fazer e evitar ser preciso; - em outros momentos o entrevistado não se inibe de fazer juízos, criticas ou reflexões pessoais e noutros momentos parece estar com muito cuidado com as palavras que usa, parecendo preferir o “politicamente correcto”;

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- em alguns momentos o entrevistado parece adivinhar as perguntas seguintes, antecipar-se ao que lhe queremos perguntar e evidenciar querer ser nosso cúmplice, mas noutros momentos não parece ter interesse nas perguntas, parece que responde “por obrigação” e sempre que pode desvia-se para outros assuntos, deixando entender que o perguntado é pouco relevante para o seu contexto de experiência profissional. Pelo exposto percebe-se que a razão do desajustamento na interacção não está numa qualquer potencial falha de interpretação do sujeito entrevistado sobre a pergunta, mas antes na forma como este “joga as regras da entrevista”. É a própria estrutura da entrevista que é colocada em questão, sendo que é a postura não directiva e não intrusiva do entrevistador que permite ao sujeito entrevistado querer responder apenas nos termos em que ele próprio entende ser ajustado, e portanto limitar o poder do investigador. O entrevistador para conseguir preservar a orientação metodológica compreensiva tem que com prudência - o mesmo princípio geral já atrás referido agora associado a outros procedimentos, como veremos mais à frente - ir atrás das palavras do entrevistado na busca dos tópicos, das descrições e das interpretações que possam ser usados para reintroduzir os temas e as perguntas previstas que, num primeiro momento, não tiveram respostas suficientemente claras. Assim, para não se chegar a situações limite de desestruturação da entrevista é preciso que o entrevistador passe a explicitar outros saberes processuais. Verificámos que nestes casos o entrevistador, de um modo mais consciente, tem a preocupação de sumarizar conteúdos de resposta dispersos e sugerir a comparação ou fazer confrontos entre diferentes respostas para o mesmo tema ou subtema. Ao sumarizar conteúdos pretende-se verificar até que ponto o entrevistado adere e dá o seu acordo a significações e a interpretações que aparecem desestruturadas no decurso da conversa. Para este efeito, o entrevistador usa várias expressões para introduzir o conteúdo sumarizado, como sejam: “pelo que eu percebi ao longo da entrevista, será que podemos dizer que…”, “pelo que me descreveu, poderei concluir que…”, “pelo que eu consegui perceber das suas palavras, pode-se dizer que…”, “no fundo, o que me está a dizer é que…”. Muitos destes sumários acabam com a interrogação “não é?”, ou outra que permita ao entrevistado confirmar e comentar a “tradução” produzida pelas palavras do entrevistador. Ao sugerir comparações e ao fazer confrontos, entre aquilo que se acabou de responder e o que parece ter sido respondido noutros momentos da conversa, usam-se as expressões: “acho que há pouco falou sobre esse assunto, não foi?!”; “já me tinha falado disso, parece-me que 15

disse…; não sei se percebi, atrás disse que…”; “há pouco quando se referiu a este assunto não tinha percebido o que agora acabou por dizer…”; “isso que está a dizer agora parece-me novo em relação ao que já tinha dito…”; “se calhar não percebi bem o que disse, mas não é o mesmo que disse anteriormente, ou estou errado …”. Mesmo tentando seguir estes procedimentos, um entrevistador menos experimentado corre o risco de perder o controlo da entrevista, porque: - a conversa torna-se demasiado complexa e fragmentada perdendo-se a linha de estruturação que era dada pelo guião e correndo-se o risco dos temas e subtemas propostas para conversa não chegarem a ser aprofundados com perguntas específicas; - as comparações e os confrontos podem ser transformados em explicações de racionalização da acção, correndo-se o risco de passar-se de um contexto compreensivo e profissional de conversa para um contexto analítico e académico, centrado no “porquê” das coisas13. Para evitar o segundo risco indicado, há um princípio ético-deontológico, um saber prudencial, que é necessário à preservação dos objectivos compreensivos da investigação: sugerir as comparações e fazer os confrontos sempre a partir das descrições verbalizadas pelo entrevistador e nunca só a partir das opiniões, dos juízos ou das significações generalistas e abstractas dadas pelo entrevistado. Assim, pensamos poder dizer que sumarizar informação, sugerir a comparação e fazer confronto são saberes processuais mais complexos do que simplesmente os de insistir e reformular perguntas, que atrás referimos por relação ao episódio 1. Estes saberes processuais, para produzirem os efeitos desejados de ajustamento da interacção, não podem permanecer como tácitos: exigem uma reflexão na acção, por parte do entrevistador, e portanto uma melhor articulação com o saber prudencial (relativos ao sistema de valores que nos indica o que não devemos fazer ou o que não deve acontecer por ser nefasto para a orientação compreensiva da investigação) e com o saber estratégico (relativo ao sistema de conhecimento teórico que suporta a construção do objecto de investigação saber profissional). 5- Conclusões

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Pode colocar-se a hipótese do contexto de entrevista colaborativa e compreensiva ser, no limite e tendencialmente, substituído por um contexto académico de análise da acção, protagonizada pelo sujeito entrevistado, que procura legitimar oralmente a sua verdade na conversa com o investigador. Como consequência, a lógica da prática e o contexto de acção do sujeito deixam de ser a referência principal da conversa, passando a ser a da lógica teórica de saber quem tem (quem pode ter) a verdade sobre a acção. O efeito é paradoxal: uma aparente tentativa de inverter as relações de poder, leva o sujeito entrevistado, por outra via, a reforçar a lógica que suporta a assimetria de poder simbólico existente (ainda que não o evidencie na interacção com o entrevistador): o profissional passa a falar como se fosse um membro da academia, num registo oral de verdade, que o desqualifica face os critérios legitimidade que a academia tende a valorizar.

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As metodologias desenvolvidas no trabalho académico de investigação têm uma natureza profissional e por isso, para além de produzirem conhecimento sobre um dado objecto, são também processos de construção de saberes em situação, capazes de potenciar as possibilidades que existem de melhor interagir com os actores sociais em estudo. Sendo assim há uma prescrição estratégica, simbólica e prática, que planeia e antecipa o que pode acontecer na recolha de dados e que, portanto, evidencia um domínio simbólico sobre o processo de trabalho metodológico. E há um acumular de experiências práticas de fazer entrevistas, muitas vezes com um sentido tácito, que evidencia um domínio prático da metodologia de investigação. Estes dois domínios do processo metodológico precisam de encontrar-se na situação em que se recolhe os dados empíricos que servem os objectivos da investigação. No caso dos episódios descritos, precisam de encontrar-se na situação de entrevista, sendo que este encontro não é espontâneo e automático. De facto, como explicámos, não basta ter um guião e desenvolver empatia com os entrevistados para que as entrevistas tenham o resultado desejado. Há tensões e ajustamentos entre as perspectivas que as partes, entrevistador e entrevistado, têm sobre o conteúdo e a forma das perguntas e das respostas. Estas tensões geram desajustamentos que exigem, por um lado, uma reflexividade na acção por parte entrevistador – baseado no domínio prático e experiencial da entrevista - que põe em evidência o uso e a explicitação de saberes processuais para melhor conseguir lidar com os desajustamentos que vão ocorrendo na interacção de entrevista. Por outro lado, exigem uma orientação ética e deontológica, um saber prudencial - sobre os riscos que estão envolvidos nos saberes processuais colocados em campo, considerando os propósitos estratégicos compreensivos pretendidos no projecto de investigação descrito – que obrigam a que, na interacção, sejam minimizadas as desigualdades de poder simbólico existentes e sejam potenciadas ao máximo as atitudes e as práticas colaborativas do entrevistado. O saber profissional na condução de entrevistas colaborativas é a conjugação tensional, nem sempre fácil de obter, entre o saber processual, o saber prudencial e as prescrições estratégicas da investigação para um dado contexto (é também um saber estratégico). Estes saberes também se expressam em operações sócio-cognitivas de explicitação em situação, de saberes tácitos vários, e de recontextualização de saberes explícitos vários, exteriores ao contexto de entrevista. A operação de recontextualização permite, orientar na acção as opções tomadas em

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cada momento da situação de entrevista e permite, posteriormente, na reflexão sobre a acção, justificar o caminho percorrido na entrevista durante o processo de interacção.

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