Saberes da vida e da cultura

July 31, 2017 | Autor: Sonia Carbonell | Categoria: Educação de Jovens e Adultos
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Saberes da vida e da cultura: sua legitimação pela escola de jovens e adultos Sonia Carbonell Alvares As árvores velhas quase todas foram preparadas para o exílio das cigarras. Salustiano, um índio guató, me ensinou isso. E me ensinou mais: que as cigarras do exílio são os únicos seres que sabem de cor quando a noite está coberta de abandono. Acho que a gente deveria dar mais espaço para esse tipo de saber. O saber que tem força de fontes. Manoel de Barros

Introdução Legado de uma sociedade escravocrata, a desigualdade entre pobres e ricos no Brasil reside, entre outros fatores, no monopólio do conhecimento pelas classes dominantes, na detenção ou não de saberes que foram legitimados pelas elites ao longo da história. O poder do conhecimento se impõe por variadas formas de dominação econômica, política, sociocultural. Desse modo, os saberes acumulados pela humanidade foram distribuídos em diferentes níveis de reconhecimento social, conformando uma barreira de raízes profundas que confere prestígio aos instruídos enquanto minora e exclui aqueles que vivem na periferia da lógica e da racionalidade letradas. Em nossa sociedade, ainda vigora a concepção de que a geração de conhecimentos é obra de especialistas, dificilmente se admite que pessoas não letradas possam produzir conhecimentos. A escola reforça essa estratificação: os professores atuam como os detentores dos conhecimentos científicos, validados pela sociedade, enquanto os conhecimentos empíricos do aluno são geralmente desprestigiados, não são reconhecidos como válidos. Para completar, os sistemas educativos impõem currículos circunscritos a conteúdos alijados das práticas sociais dos sujeitos, em processos de ensino e aprendizagem autoritários e

2 discriminatórios que infligem aos alunos o abandono de concepções tradicionais, desrespeitando a sabedoria e o patrimônio das culturas populares e orais. Embora às margens da sala de aula, a vida cotidiana e a cultura representam um vasto campo de produção de conhecimento dos povos. Nesse território é onde os sujeitos praticam e cultivam a sua capacidade simbólica, através de representações compartilhadas com outros sujeitos a respeito do mundo. Cada ser humano é uma fonte original e irrepetível de experiência: de saberes e de significados. Brandão (2007) reafirma a existência de uma sabedoria popular:

Desde muito cedo e por toda a sua vida, em cada pessoa, sua cultura já a habita. Já ela é também uma habitante de um mundo de uma complexa e entretecida partilha de saberes e valores transformados em hábitos e em padrões sociais de conduta. Em cada pessoa uma cultura vive um momento de sua subjetividade. E uma mulher “analfabeta” é uma pessoa “letrada” e, não raro, sábia, de outros saberes e sabedorias de sua vida e de sua cultura. Sem saber ler as palavras que os eruditos escrevem, ela pode ser senhora de uma sabedoria popular rara e preciosa.

No campo da cultura, podemos afirmar que o nosso povo é portador de uma riqueza incomensurável. A heterogeneidade brasileira espraia uma multiplicidade de conhecimentos construídos em práticas sociais, vários deles com características regionais, saberes pouco reconhecidos como válidos, mas que configuram um amplo patrimônio cultural, assentado em usos e costumes dos diferentes povos que se espalham pelo país. A ampla maioria dos alunos da EJA tem suas origens nas culturas populares, são pessoas que apresam a riqueza da nossa pluralidade cultural. No entanto, quantos deles se reconhecem como herdeiros desse patrimônio, ou melhor, quantos identificam o valor desse legado? Na condição de oprimidos, esses homens e mulheres ocupam papéis na sociedade de invisibilidade política, posições subalternas que lhes suprimem a condição de protagonistas. Na construção da nossa própria modernidade, em todo o planeta, convivemos com uma progressiva acentuação das desigualdades sociais. Os danos culturais desse espólio podem ser irreversíveis, pois nessa esteira esvaem-se muitos conhecimentos tradicionais e práticas sociais milenares, saberes que raramente são resgatados ou veiculados pela escola.

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Os saberes de um aluno adulto A gente aqui tem conhecimentos sem conhecimento. Dilson, (agricultor brasileiro)

Os estudantes jovens e adultos são gente simples que, sem tomar parte ativa nas políticas sociais, são sorvidos para um redemoinho econômico que os afasta de suas próprias raízes, nega seus saberes e os aparta do sentido sociocultural de seus costumes. Esses sujeitos protagonizam uma infinidade de saberes da vida vivida e da diversidade de labores que executaram e executam para a sobrevivência. Por serem indivíduos maduros, seus conhecimentos remetem a vastas travessias de percepções e indagações adquiridas ao longo de suas histórias de vida. Eles são portadores de um corpo de conhecimentos de que todos nós, adultos, somos portadores: os saberes da experiência, saberes empíricos, fundados no cotidiano, construídos por cada ser humano no decorrer da vida. Os saberes da experiência constituem conhecimentos adquiridos na maneira como vamos respondendo ao que nos acontece diariamente e no modo como vamos dando sentido ao vivenciado. Pela sua própria natureza, essa espécie de conhecimento do dia a dia assinala um saber encarnado, mas não se configura necessariamente em um saber individual, ou utilitário, desenvolvido apenas para atender a uma demanda imediata do sujeito. Pelo contrário, pode conformar um conhecimento tradicional, que transpassa gerações e responde a práticas sociais mantidas ao longo do tempo pela tradição oral. Os saberes experienciais circunscrevem conteúdos culturais, expressam jeitos de ser das pessoas e se recriam no contato com as tecnologias e os modos de vida contemporâneos (Alvares, 2007, p. 58). Labutadores, esses alunos começaram a trabalhar muito cedo. As mulheres, por exemplo, desde crianças, já tomavam conta de irmãos menores e da casa, desenvolveram, portanto, conhecimentos básicos sobre educação, saúde, nutrição e higiene. Muitos dos homens, provenientes de áreas rurais do país, possuem conhecimentos ligados ao cultivo da terra, à criação de animais, aos ciclos da natureza: clima, estações do ano, períodos de chuva e de seca, etc. Outros ofícios bastante encontrados entre os homens, principalmente nos que freqüentam escolas dos centros urbanos, são aquelas ligadas à área da construção civil: pedreiros, eletricistas ou pintores. Essas ocupações desenvolvem no sujeito habilidades relacionadas à visão espacial e estética; a medidas de comprimento, volume e peso; a noções

4 de desenho e planta baixa; a propriedades dos materiais; à mistura e combinação de cores; ao domínio de diversas ferramentas como: régua, pincel, colher de pedreiro, plaina, martelo, serrote, trena, etc. (Idem, ibidem, p. 57). Comumente, na escola de adultos, o saber medir do pedreiro ou da costureira são considerados imprecisos, os saberes do agricultor sobre as propriedades do solo desaparecem, deixam de ser considerados como base de aprendizagem de novos conhecimentos. Na sala de aula é onde saberes deveriam se encontrar e interagir: os saberes do professor e os saberes do aluno, os saberes acadêmicos e os saberes populares, os saberes científicos e os saberes do senso comum. No entanto, esse encontro entre conhecimentos de indivíduos trabalhadores dificilmente é dialógico, como preconiza Paulo Freire. Na realidade, o processo de ensino e aprendizagem com jovens e adultos frequentemente conforma um território de tensionamentos, porque os diferentes saberes dos sujeitos sofrem uma classificação hierárquica que valida e supervaloriza uns enquanto invalida e desvaloriza outros, o que dificulta uma relação pedagógica pautada no diálogo e na troca.

Atividades e resultados O meu respeito pela identidade cultural do outro exige de mim que eu não pretenda impor ao outro uma forma de ser de minha cultura, (...). Mas também o meu respeito não me impõe negar ao outro o que ele quer saber mais além daquilo que a sua cultura propõe. Paulo Freire (2004, p. 83)

Promover a interface e legitimar conhecimentos prévios dos estudantes adultos, por meio do diálogo igualitário, é uma maneira de subsidiar favoravelmente a construção do saber escolar. A qualidade da intervenção do professor faz-se crucial nesse processo para desencadear e movimentar os mecanismos de aprendizado do aluno. O educador precisa assumir que os conhecimentos prévios dos alunos, construídos no contexto da experiência, não representam apenas um trampolim para o atingimento de conhecimentos letrados. Esses conhecimentos são em si mesmos conhecimentos válidos. Sua legitimidade não ocorre apenas por meio da identificação das atividades do dia-a-dia mas, fundamentalmente, pela

5 compreensão da sua historicidade, pelo entendimento de como esses saberes balizam e articulam as práticas sociais dos sujeitos. Fernando Frochtengarten, por exemplo, é um professor de Ciências da EJA, na cidade de São Paulo. Ao desenvolver sua pesquisa de doutoramento, foi a campo, no interior do nordeste brasileiro, conhecer de perto lugares e vilarejos onde seus alunos cresceram e desenvolveram suas práticas sociais. Frochtengarten (2009, p. 115) revela como descobriu a extraordinária riqueza do conhecimento que o sertanejo1 detém sobre o meio em que vive. Ao mesmo tempo, admite a ineficácia dos saberes científicos, de que é portador, na atividade de coleta de mel a que assistiu:

Houve uma noite em que acompanhei Vanúzio, mais o irmão e o cunhado desse aluno, à coleta do mel de abelhas silvestres. Minha participação em nada contribuiu com os termos práticos da tarefa. Apenas observei os detalhes de um fazer até então inédito para mim: a observação das colméias, o toque com uma vara para aferir aquela que pudesse ser mais profícua, o fogo para espantar os insetos dos favos e, finalmente sua tomada em mãos. Caso tivesse me sido dada aquela tarefa, eu deixaria de entregar feita a lição. Por outro lado, sei o que dizer quando alunos que muito mel já retiraram em suas vidas, perguntam sobre a organização social das colméias.

O professor Fernando conclui este episódio com uma reflexão acerca de um evento em que o saber popular transcende o saber erudito, atribuindo prestígio ao trabalho manual, frente ao trabalho intelectual:

O doce do mel extraído revelou que o conceito de animal social não fizera falta a meus companheiros. Aquele seu labor estava fundado em saberes transmitidos por outros membros de sua família e fortemente apoiados sobre dados sensíveis. Quanto a mim, retirado a um canto, era um conhecedor das funções da abelha rainha, dos zangões e das operárias. Enfim, daquilo que não víamos e tampouco contribuía para o específico afazer. 1

O sertanejo é o homem que vive na região denominada como Sertão: o interior semi-árido, na parte norteocidental do Brasil.

6 A prática de outro professor também é elucidativa. Marco Antônio Fernandes, professor de Matemática da EJA, explicita como desenvolver procedimentos metodológicos para acolher os conhecimentos prévios dos alunos e trabalhá-los em sala de aula. Seu depoimento enfatiza um aspecto fundamental para o êxito do processo de ensino e aprendizagem com jovens e adultos: que a ação do educador não ocorre no sentido de acrescentar saberes ao aluno, mas sim de ampliar seus saberes prévios:

Ensinar Matemática não é passar do que o aluno sabe para o que ele não sabe: é ampliar o que ele já sabe. Por exemplo: apresentar os números negativos, o conjunto dos números negativos. Esse é um campo de exploração muito novo para o aluno, porque ele nunca representou, enfim, nunca operou dentro desse conjunto. Mas o cara faz a compra na venda, deixa a conta pra pagar no mês que vem, pede emprestado... Ele já conhece algumas relações. A idéia é partir dessas coisas e problematizar. (...) Outro exemplo é quando vamos resolver uma equação: temos vários caminhos, não há um procedimento único, determinado previamente. Aí, na aula, a gente começa a discutir essa variabilidade: fulano resolveu desse jeito, mas outro aluno acha que aquele caminho é muito complicado: “eu penso desse outro jeito”. Nós vamos analisando os caminhos, mas dentro das regras estabelecidas pela linguagem (Idem, ibidem, p. 38).

A fala do professor Marco sublinha uma questão constitutiva da EJA: para ensinar alunos adultos é importante tratar o conteúdo sob um ponto de vista mais amplo que o conceitual, é necessário reconhecer e considerar as diferenças sociais e culturais no modo como esses sujeitos aprendem e, principalmente, dar–lhes voz:

O importante é o aluno perceber que mesmo dentro de um contexto, onde as coisas já estão dadas, ele consegue fazer o percurso dele. Se você for pensar, num certo sentido, as coisas na vida dele já estão meio dadas: o cara vive dentro de uma estrutura onde tem lá um patrão..., onde ele não tem autonomia nenhuma de fazer um caminho próprio. Há muitos alunos que nem conseguem falar, porque têm medo de se expor, de dizer alguma bobagem... Para eles não existe a possibilidade do diálogo: mandam fazer e eles executam (Idem, p. 39).

7 Ele observa que é essencial acolher e valorizar os saberes empíricos dos jovens e adultos, garantir espaço para o protagonismo dos alunos:

A aprendizagem só ocorre quando você abre espaço para o aluno se apresentar e expressar o que ele conhece. Esse encontro com o aluno só é feliz, saudável quando você consegue deixar os alunos à vontade para poderem se colocar e não tentar elevar o nível da conversa, no sentido: “vamos ver o próximo capítulo do livro”. (...) Na verdade, o que interessa é como você insere o aluno na discussão. (...) A gente já trabalha com um cara que é excluído de “n” situações, se você excluir ele da aula também, não sobra nada (Id., Ib., p. 39).

Um novo aprendizado só se torna possível se estiver ancorado em conhecimentos anteriores. No plano pedagógico, o reconhecimento e a valorização da cultura do aluno pelo professor de jovens e adultos, possibilitam a abertura de um canal de aprendizagem com maiores garantias de êxito, porque parte dos conhecimentos prévios dos educandos para promover conhecimentos novos, porque fomenta o encontro dos saberes da vida vivida com os saberes escolares. O papel do professor de EJA é determinante para a inclusão social dos seus alunos, para a validação de seus saberes e de conhecimentos tradicionais produzidos pelos seus grupos culturais. O respeito e o reconhecimento da existência de uma sabedoria no sujeito, proveniente de sua experiência de vida, de sua bagagem cultural, de suas habilidades profissionais, certamente, contribui para que ele resgate uma auto-imagem positiva, ampliando sua auto-estima e fortalecendo sua autoconfiança. Os enfrentamentos culturais e a diversidade são aspectos constituintes da Educação de Jovens e Adultos que, muitas vezes, são tratados como problemas porque não toleram ações pedagógicas homogeneizadoras. No sentido contrário: trabalhar na EJA pode consistir em exercício constante de criatividade pedagógica, pois a educação intergeracional e intercultural que essa modalidade demanda, requer do educador flexibilidade e despojamento para acolher e explorar as múltiplas realidades em que estão inseridos os jovens, os adultos e os idosos. A legitimação de conhecimentos populares tradicionais é fundamental para que a Educação de Jovens e Adultos não contribua para reforçar as desigualdades sociais, nem continue imprimindo uma marca distintiva às culturas populares.

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Recomendações para a ação 1) Legitimar saberes não letrados requer uma postura dialógica e, sobretudo, modesta do professor de EJA. Perguntar-se: “o que aprendi hoje com os alunos?” deveria ser prática corrente. Para Paulo Freire, o diálogo não consiste em técnica pedagógica, mas sim em opção filosófica, em conceber que quando ensinamos, sempre aprendemos; ou, em outras palavras, não é possível ensinar sem estar a aprender. 2) Uma tarefa fundamental para o professor é conhecer os saberes e habilidades que seus alunos desenvolveram em função de seus trabalhos e criar estratégias para que algumas dessas habilidades e conhecimentos possam ser resgatados, explicitados e participem da construção de novas aprendizagem, direta ou indiretamente.

Por

exemplo, se Manuel é um pintor de paredes, certamente ele desenvolveu habilidades relacionadas à mistura de cores, proporções, volume, propriedades de materiais, visão espacial, domínio do tempo cronológico, decoração, visão estética, etc. 3) Dimensionar tempos e espaços escolares para que o aluno adulto atue como protagonista. Esses conhecimentos dos alunos precisam ser socializados entre eles. Promover oficinas em que uns ensinem aos outros (inclusive os professores) os ofícios que dominam é uma estratégia para valorização desses saberes. 4) Promover eventos em que as diversas culturas que habitam a escola encontrem espaço para se expressarem. Atividades artísticas como peças de teatro, shows musicais, exposições de trabalhos, feiras culturais constituem atividades em que os alunos adultos podem compartilhar seus saberes e expressar suas concepções de mundo, eventos em que participem efetivamente como autores.

Bibliografia ALVARES, Sonia Carbonell. La Estética en la Educación de Jóvenes y Adultos. CREFAL: Pátzcuaro, 2007. http://www.crefal.edu.mx/biblioteca_digital/coleccion_crefal/premios_tesis_educacion_adulto s/sonia_carbonell_alvares_esp.pdf BRANDÃO, Carlos R. Cultura, Culturas, Culturas populares e a Educação. TVE Brasil, Programa Salto para o futuro: Cultura Popular e Educação, Out. 2007.

9 BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Cadernos de Formação: Trabalhando com a Educação de Jovens e Adultos. O processo

de

aprendizagem

dos

alunos

e

professores.

Brasília



DF,

2006.

http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/eja_caderno5.pdf FREIRE, Paulo. Pedagogia da Tolerância. São Paulo: UNESP, 2004. FROCHTENGARTEN, Fernando. Caminhando sobre fronteiras: o papel da educação na vida de adultos migrantes. São Paulo: Summus, 2009.

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