Sade: materialismo, erotização dos corpos e perversões na perspectiva da psicanálise

June 3, 2017 | Autor: Abraão Carvalho | Categoria: Sigmund Freud, Marquis De Sade, Materialismo, Lynn Hunt, Filosofia
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Sade: materialismo, erotização dos corpos e perversões na perspectiva da psicanálise Abraão Carvalho abraaocarvalho.com

Resumo Pretendemos articular pontos de interseção entre a filosofia, literatura erótica e psicanálise no contexto da modernidade. Indicando nosso alvo de abordagem como situado no campo da crítica à tradição filosófica que em virtude da primazia da razão, desvalora o potencial dos recursos sensoriais em relação ao conhecimento. Em contrapartida, a forma de linguagem conceitual manifesta sobretudo a partir da “nova metafísica da natureza” e do materialismo francês, na perspectiva de Lynn Hunt, contribuíram de certa maneira como arena de linguagem para a formulação de metáforas utilizadas na literatura que lança em cena a erotização dos corpos, e nesta investida prevalece uma valoração do sensorial como recurso importante ao conhecimento. Entre a forma de representação dos corpos da natureza representada pela filosofia moderna de viés materialista e a forma de representação dos corpos na literatura erótica, podemos encontrar relações na forma de linguagem de ambas. Como elucidativo na literatura nos encontramos com aspectos da vida do polêmico escritor Marquês de Sade. E no desdobramento da abordagem moderna a respeito da sexualidade, nos aproximamos da psicanálise de Freud quando este trata a respeito das perversões sexuais. Palavras-chave: Filosofia, materialismo, Sade, psicanálise, perversões.

2 Introdução No processo histórico de produção da modernidade, no campo da filosofia e da ciência, encontramos pesquisadores e pensadores fundamentais deste período, tais como Descartes e Galileu, que com suas categorias oriundas da física, no que se refere ao modo de estudo dos objetos da natureza, promovem mudanças consideráveis na maneira de compreender e conceber estes corpos do mundo físico, através de uma linguagem conceitual que demarca uma precisa inclinação em inaugurar novos paradigmas para as ciências modernas. Nossa perspectiva será a de promover um estudo que considera que este arcabouço teórico da filosofia moderna, ofereceu para a literatura uma arena de linguagem que é empregada na investida de apresentar os corpos, não da natureza, mas humanos, na condição de objetos da erotização através da linguagem. Neste aspecto procuramos abordar traços da vida e obra do escritor Marquês de Sade como emblemáticos desta relação. Por outro lado, nos debruçar em relação ao tema da erotização dos corpos reivindica um suporte da psicanálise de Freud, de tal modo que este nos oferece uma importante via de interpretação na medida em que aborda a temática da sexualidade, demarcando até os dias de hoje uma importante referência em relação a este tema. Neste sentido, em que medida podemos encontrar pontos de encontro entre a filosofia moderna, a literatura que passa a erotizar os corpos, e a psicanálise? A aproximação para o estudo destas relações partiu sobretudo da perspectiva histórico-filosófica encontrada no livro A invenção da pornografia – obscenidades e as origens da modernidade 1500-1800 (1999), organizado por Lynn Hunt; a interpretação da psicanálise através de Freud em Um caso de histeria, três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901-1905); e do Sade, a tradução e comentários do filósofo Gabriel Giannattasio para Minha grande carta, sob o título de Sade Missivista (2006); além do artigo Perversões e suas versões (2005),

3 de Paulo Roberto Ceccarelli, e do artigo Le Marquis de Sade: un matérialisme aux conséquences ultimes (2014) de Francisco Bocca. Deste modo, duas questões nos causam interesse diante desta temática: até que ponto a literatura erótica se apropria de influências de vertentes filosóficas modernas entre elas o materialismo? E em outra direção, como a manifestação da sexualidade apresentada por Sade pode ser lida como a implicação da perversão do sujeito na ótica de Freud, perversões situadas sob aquela acessibilidade à terapia psicanalítica: “as perversões são acessíveis à terapia psicanalítica”, afirma Freud citado no artigo Perversões e suas versões (2005), de Paulo Roberto Cecarelli. Nesta direção promovemos o seguinte movimento: primeiro, a relação entre a filosofia de viés materialista, e a literatura erótica quanto à forma da linguagem a partir do livro organizado por Lynn Hunt. Em seguida, as noções de Freud a respeito da perversão, e a carta de Sade, tomada aqui, como encontramos nos termos de Gabriel Giannattasio em Sade Missivista, como o lugar dos “bastidores do pensamento, a ante-sala, a usina experimental e produtora do homem Sade” (GIANNATTASIO, 2006, p. 12). Feito este percurso, situaremos a perspectiva sadeana na posição da crítica à tradição filosófica que em virtude da primazia da razão desvalora o potencial dos recursos sensoriais em relação ao conhecimento.

Materialismo e erotização dos corpos O livro A invenção da pornografia – obscenidades e as origens da modernidade 1500-1800 (1999), a partir do capítulo A qualidade filosófica e formal no qual encontramos o ensaio O mundo materialista da pornografia, da historiadora Margaret C. Jacob, nos indica a respeito da relação entre a literatura erótica do século XVII na Europa, e a importância neste contexto do materialismo

4 filosófico: “Por volta de 1700, o materialismo tornou-se a metafísica preferida, mas não a única, da literatura que procurava estimular, com seus textos, a excitação e os desejos” (JACOB, 1999, p. 170). E é justo neste ponto que a relação entre uma vertente da filosofia moderna e a literatura erótica se instaura, isto é, através do materialismo filosófico: “a metafísica preferida” da literatura erótica de acordo com Jacob. Estando na forma de representação dos corpos da natureza e na forma de representação dos corpos neste gênero literário aquele ponto preciso da relação entre um e outro, demarcando a influência da filosofia materialista na literatura. A partir do livro A invenção da pornografia – obscenidades e as origens da modernidade 1500-1800 (1999), encontramos melhores indícios para situar as interseções entre a filosofia moderna e a literatura de Sade. Neste sentido, a referência para o surgimento da literatura que lança em cena a erotização dos corpos, é a Europa entre os anos de 1500 e 1800. Mais acertado consiste em afirmar que a arena conceitual promovida pela especificidade da filosofia moderna em seu aspecto formal, forneceu influências para as formas de linguagem na condição de metáforas com as quais a literatura erótica promove uma narrativa da erotização dos corpos. Não se trata aqui de indicar que a literatura erótica exerceu influência na filosofia moderna, mas certamente de modo inverso, esta última promoveu influências naquela outra. Importante passagem do artigo O mundo materialista da pornografia de Margaret C. Jacob, demarca como o período moderno com suas transformações no pensamento filosófico exerceu esta influência sob o aspecto formal da literatura erótica: “Embora contemporânea da ciência de Descartes e Boyle, a pornografia não foi a causa dos novos discursos científicos. Foi a ciência que produziu as metáforas necessárias. Contudo, as novas narrativas

eróticas

rapidamente

abraçaram

o

materialismo

mecanicista. Esse novo recurso metafórico e metafísico proporciona uma alternativa – um recurso imaginativo – para expor a experiência do mundo urbano entre meados e fim do século XVII, universo social

5 que permitiu a articulação de uma nova metafísica da natureza e de uma nova forma narrativa. O atomismo e o materialismo possuem numerosas e diferentes origens sociais e filosóficas, e entre suas raízes sociais estaria o indômito mundo que produziu e consumiu a pornografia moderna” (JACOB, 1999, p. 171).

A nova forma de narrativa, inclusive a literatura e a gravura tidas como eróticas, indicavam uma aproximação da linguagem fixada pelo “materialismo mecanicista” (JACOB, 1999, p. 171), como nos indica o artigo de Jacob, como também, todo esse contexto está ambientado e se refere sobretudo, a uma das interfaces da série de outras transformações na Europa do século XVII no campo filosófico e urbano. No livro A invenção da pornografia – obscenidades e as origens da modernidade 1500-1800 (1999), agora à sua introdução, encontramos melhores contornos para esta contextualização histórica e filosófica, terreno sob o qual se prolifera a massificação dos impressos e gravuras tidas como aquela prática literária e visual, que possui suas difusões sendo gestadas paralelamente entre um novo contexto urbano e social e a “longa emergência da modernidade no Ocidente” (HUNT, 1999, p.10). De certa forma, Hunt nos indica que a pornografia em sua difusão e regulamentação ao longo da “emergência da modernidade no Ocidente”, está intimamente ligada a outros marcos históricos do período, tais como o “Renascimento, a Revolução científica, o Iluminismo e a Revolução Francesa” (HUNT, 1999, p. 10). Segundo Jacob, o “materialismo mecanicista” forneceu a “nova metafísica da natureza” (JACOB, 1999, p. 171) através da qual a pornografia no percurso da experiência histórica moderna pegaria uma carona. O artigo O mundo materialista da pornografia, indica-nos que a forma de conceitualização, abstração, metodologia e experimentação, utilizada por estas novas vertentes do pensamento moderno, fixou aquela arena da linguagem na qual a literatura erótica utilizaria formalmente e metaforicamente em sua narrativa. De acordo com Jacob, grandes transformações filosóficas ocorreram entre os séculos XVII e XVIII na Europa, e o

6 que a literatura erótica pudera se apropriar se inscreve justo no aspecto formal da filosofia moderna que trata da mecanização da natureza: “Os corpos foram atomizados, despidos de sua aparência e qualidade, sendo reconhecíveis apenas pelo tamanho, forma, movimento e peso. Tornaram-se, simples e inexoravelmente matéria em movimento. Seu télos para mover-se em uma direção ou outra desapareceu, substituído pela interação mecânica dos corpos; sua inércia não foi afetada, mas impulso e atração eram ativados por meio da colisão” (JACOB, 1999, p. 169).

Ainda de acordo com Jacob, encontramos a indicação de que a “amplificação metafísica dos corpos” (JACOB, 1999, p. 170), obteve no terreno de experimentação da literatura erótica, um laboratório específico, além de esta indicar também a configuração de “novas relações sociais urbanas” (JACOB, 1999, p. 170) como parte deste contexto. Ao passo que também a literatura erótica incorpora e lança em cena, traços de uma nova sociabilidade na esfera da urbe, marcada “por muitos homens e algumas mulheres cujas vidas foram isoladas, atomizadas e individuadas, como os corpos erotizados na literatura” (JACOB, 1999, p. 170). Nesta direção, como afirma Jacob, o universo conceitual do “materialismo filosófico era apropriado ao mundo da pornografia e aos textos pornográficos” (JACOB, 1999, p. 170). Embora a literatura erótica não estivesse alheia à realidade social, à nova sociabilidade urbana por exemplo, encontrando no discurso da narrativa feminina desde o emblema histórico da prostituta e seu mundo de estímulos, desejos e excitações, por outro lado, como nos indica Stephen Marcus, citado na introdução escrita por Lynn Hunt - Obscenidades e as origens da modernidade - “a tendência–dominante da pornografia é eliminar a realidade externa ou social” (HUNT, 1999, p. 40). Mais adiante nos indica Hunt, que na “fantasia utópica explícita na pornografia – o espaço e o tempo só registram a repetição dos

7 encontros sexuais, os corpos são reduzidos a partes sexuais e suas possibilidades infinitas de variação e combinação (uma visão materialista, se é que houve alguma)” (HUNT, 1999, p. 41). Nesta perspectiva, os corpos erotizados se relacionam entre si como partes, como relação entre genitálias, por mediação dos impulsos de atração por meio da “colisão” da “matéria em movimento” (JACOB, 1999, p. 169). Tal como os corpos em sua extensão, representados na “nova metafísica da natureza” (JACOB, 1999, p. 171) com sua abstração, de todo tão necessária ao cálculo e à matematização e mecanização da natureza. Segundo Hunt, esta relação individualizada que ultrapassa marcos de espaço e tempo entre os corpos, limitados por forças de atração que possuem como finalidade uma colisão da matéria em movimento, tanto na “nova metafísica da natureza” que fundamentou novos princípios para as ciências modernas, quanto na linguagem da literatura erótica, consistem nos traços mais marcantes na literatura de Sade, como nos indica Lynn Hunt: “O ápice dessa tendência de ignorar padrões de tempo, espaço e realidade social pode ser constatado nas grutas subterrâneas, nos abrigos florestais e nos castelos solitários de Sade, versões do bordel ideal” (HUNT, 1999, p. 41). Todavia, embora esta recusa em relação à “realidade social” (HUNT, 1999, p. 41), como um traço típico da literatura erótica, inclusive na de Sade, tanto Lynn Hunt como Margaret Jacob acentuam que a literatura erótica nos séculos XVII e XVIII esteve radicalmente marcada por um conteúdo político e cultural. Seguindo a leitura de Hunt, este aspecto da literatura erótica demarca que o contexto no qual surge este modo de literatura no período moderno, é marcado por críticas sociais em relação aos padrões morais daquele período, bem como uma transgressão em relação à forma de conceber e conduzir a sexualidade em termos práticos e narrativos. Nesta direção afirma a autora: “No início do período moderno, frequentemente a intenção do autor pornográfico era criticar as relações sociais e

8 sexuais... eram usados para revelar a hipocrisia das convenções morais” (HUNT, 1999, p. 41). De acordo com Lynn Hunt, a erotização dos corpos que se expandiu na cultura moderna, além de “Vinculada ao livre-pensamento e à heresia, à ciência, à filosofia natural e aos ataques à autoridade política absolutista, ressalta especialmente as diferenças de gênero que se desenvolviam na cultura da modernidade” (HUNT, 1999, p. 11). Valendo-se da perspectiva de Kendrik acerca do conceito de pornografia, indica-nos o artigo de Lynn Hunt que tal discurso erótico e literário “especifica um argumento, não uma coisa, e designa uma zona de batalha cultural” (HUNT, 1999, p. 13). Nessa direção, a pornografia justo por ser compreendida como “zona de batalha cultural”, sobretudo a partir do século XVII, por outro lado instaura uma crise entre a obscenidade e a decência, entre o público e o privado, aparecendo ao mundo moderno e ao Estado como “uma preocupação governamental distinta” (HUNT, 1999, p. 13). Mas em que reside a ameaça da pornografia aos bons costumes do ocidente moderno? Residirá justo na perspectiva de que o manifesto na literatura erótica, seus elementos primordiais, abrigam-se sobretudo na eclosão das “perversões”, que enquanto tais devem ser motivo de regulamentação governamental e social. Fixando estes traços da história da prosa pornográfica moderna nos indica Lynn Hunt: “Quase todos os temas da prosa pornográfica posterior estavam presentes na década de 1660: o objetivo consciente de despertar o desejo sexual do leitor, a exposição de material autêntico sobre sexo em oposição às convenções hipócritas da sociedade e ao domínio da Igreja e – como elemento novo no século XVII – a catalogação das ‘perversões’, consideradas variações diversas do prazer amoral e autojustificado dos sentidos (...). Tais aspectos, tanto quanto ao aparecimento da libertinagem como um modo de pensar e agir, foram

9 relacionados à ênfase no valor da natureza e dos sentidos como fontes legítimas. Desde o início, a pornografia mantinha laços estreitos tanto com a nova ciência quanto com a crítica política” (HUNT, 1999, p. 31).

A literatura erótica neste contexto, inclusive a proposta por Sade, se influencia em parte da filosofia moderna de tal maneira que esta parece oferecer um conjunto de noções que são apropriadas à erotização dos corpos. Este modo de literatura encontra no “materialismo filosófico” (JACOB, 1999, p.170), e na “nova leitura mecânica e científica da natureza” (JACOB, 1999, p.170) uma poderosa fonte de conceitos e categorias, sobretudo a partir de princípios como “corpos em movimento” (JACOB, 1999, p.170), segundo a autora: “A literatura pornográfica e os tratados filosóficos da nova ciência concebem um espaço íntimo, no qual só importa a força, o compulsivo vaivém dos corpos. Ambos prometiam poder ao corpo, mas, em sua habilidade para a excitação sexual, apenas a pornografia cumpriu a promessa” (JACOB, 1999, p. 196). O artigo de Francisco Bocca Le Marquis de Sade: un matérialisme aux conséquences ultimes (2014), acentua os pormenores desta íntima relação de Sade com o materialismo francês do século XVIII, pontuado que Sade promove uma radicalização dos primados filosóficos materialistas que são levados à condição de princípio na realização da Orgia sadeana. O olhar atomizado e mecanizado em relação à natureza e seus corpos em movimento, não somente é apropriado por Sade, como são reelaborados de maneira radical. Segundo Bocca “Sade illustre, particulièrement à travers de l’orgie, la pleine réalisation de leurs thèses, ce qui les conduit à un matérialisme plus que radical, en effet, à des conséquences ultimes”1 (BOCCA, 2014, p. 55).

1

“Sade ilustra, particularmente através da orgia, a plena realização de suas teses, o que levou a um materialismo mais que radical, de fato, até as últimas consequências” (tradução nossa).

10 O materialismo é levado até as suas últimas consequências no projeto sadeano segundo a leitura de Bocca, de tal modo que os conceitos aplicáveis à natureza, no campo de experimentação literária sadeana acentuam-se no modo como a trama dos corpos representados na obra de Sade são ambientados na investida da excitação dos desejos. Na perspectiva de Bocca: “Ainsi, je souligne les thèses et les arguments de Sade, tout en reconnaissant l’influence et sa stricte observance de ce champ conceptuel de la philosophie matérialiste française du XVIII siècle. Mais, en effet, sa contribution à celle-ci a consisté à l’approfondir, c’est-à-dire à en radicaliser le concept mécanique de Nature en tant qu’ensemble de corps en mouvement, dont l’illustration peut être reconnue dans l’orgie, constituée par des êtres qui sont avant tout considérés comme des corps ou des objets atomisés, poussés par le principe de plaisir déclenché par la sensibilité”2 (BOCCA, 2014, p. 60).

Neste sentido, retomando a perspectiva explorada no livro de Lynn Hunt, bem como a partir do artigo de Bocca, a relação entre materialismo e erotização dos corpos se sustenta a partir desta apropriação de conceitos como corpo, movimento, colisão, atração, natureza, objetos atomizados e individualizados, experimentação, de tal modo que estes conceitos são radicalizados, e em relação precisamente a Sade, são levados às suas consequências últimas. Segundo Bocca, Sade apresenta em seu projeto uma apropriação do materialismo de La Mettrie, à sua maneira radicalizada, e este podendo contar com a influência do atomismo de Epicuro sobretudo a respeito do conceito de natureza:

“Assim, eu sublinho as teses e argumentos de Sade, reconhecendo a influência e a estrita observância do campo conceitual da filosofia materialista francesa do século XVIII. Mas, de fato, a sua contribuição nisto consistiu em aprofundar, isto quer dizer, radicalizar o conceito mecânico da Natureza como um conjunto de corpos em movimento, cuja as ilustrações podem ser reconhecidos na orgia, constituída por seres que são considerados como corpos ou objetos atomizados, orientados pelo princípio do prazer desencadeado pela sensibilidade” (tradução nossa). 2

11 “A Epicure, l’identité ou la conformité avec elle est régie par la quête du plaisir et la fuite de la douleur. En ce sens, le savant est celui qui est capable de discerner entre plaisir et douleur, mais aussi, entre bons et mauvais plaisirs, ce qui implique de les sélectionner et de les graduer, toujours en envisageant le bonheur comme une finalité. Pour lui, telle la Nature, l’homme est également un ensemble de particules élémentaires (les atomes): tout plaisir est le résultat du mouvement de ces

particules,

avant

tout

corporelles.

Thèse

qui

résonne

3

incontestablement chez La Mettrie” (BOCCA, 2014, p. 61).

O conceito de átomo, enquanto perspectiva ontológica da matéria, herdada do pensamento de Epicuro e apropriada por La Mettrie, é reelaborada de forma radical por Sade de tal modo que as noções de homem e natureza estão contextualizadas desde esta perspectiva atomista sob o olhar do materialismo moderno. Nesta perspectiva, a leitura de Bocca a respeito das matizes teóricas e conceituais do materialismo, que é apropriado por Sade de forma radical, passa pela herança antiga da noção de átomo, que demarca precisamente a visão materialista de homem e natureza. Esta relação entre atomismo e materialismo é também sustentada na leitura de Jacob, indicando que foram estas referências filosóficas que alimentaram de certa maneira, o itinerário de produção da literatura libertina do século XVIII, sendo o atomismo e o materialismo correntes filosóficas articuladas entre si a partir do conceito de átomo e matéria, como fundamento ontológico que exerceu grande influência na literatura erótica do período: “O materialismo foi a construção intelectual perfeita do mundo social do período. Permitiu que as representações mecânicas dos corpos inanimados e dos átomos fossem aplicadas aos desejos, 3

“Em Epicuro, a identidade ou a conformidade com ela (Natureza) é regida pela busca do prazer e fuga da dor. Neste sentido, o sábio é aquele que é capaz de discernir entre o prazer e a dor, mas também, entre bons e maus prazeres, isto implica em os selecionar e os graduar, sempre considerando a felicidade como uma finalidade. Para ele, tal como a Natureza, o homem é um conjunto de partículas elementares (átomos): todo o prazer é o resultado do movimento dessas partículas, sobretudo corporais. Tese que ressoa incontestavelmente em La Mettrie…” (tradução nossa).

12 paixões, e interesses recentemente expostos, agora esfera do animado” (JACOB, 1999, 215).

A

carta

de

Sade:

encarceramento,

libertinagem

cerceada

e

materialismo radical A noção de perversão e sua ambientação histórica é de suma importância para situar o encarceramento de Sade, aquele “criador de uma patologia sexual chamada sadismo” (GIANNATTASSIO, 2006, p. 12). Sade levou adiante em sua literatura uma extremada e inconsequente experimentação dos sentidos, o que historicamente tornou a obra e a prática sadeana, como associadas àquelas implicações de regulamentação governamental, social e moral, como explicitado a respeito da história da literatura erótica no contexto da modernidade a partir do livro A invenção da pornografia – obscenidades e as origens da modernidade 1500-1800 (1999), de organização de Lynn Hunt. Nesta ambientação histórica, observamos sobretudo uma constatação de que a noção de perversão vai ganhando contornos e nuanças, como aquela prática sensorial e tátil ligada à busca pelo gozo do prazer, que tanto instaura a obra e a vivência de Sade, e por outro lado, confere justo uma reivindicação de determinação da perversão como uma transgressão aos padrões de sociabilidade e sexualidade, em que o Estado em seu âmbito político, promove sua intervenção de modo que atua incisivamente no encarceramento de Sade, como tentativa de limitar a prática desmedida do polêmico escritor francês.

13 A carta de Sade4, intitulada Sade Missivista de tradução de Gabriel Giannattasio, trata-se de uma das mais extensas cartas escritas pelo Marquês com o nome Minha grande correspondência, e trata-se de um registro de 20 de fevereiro de 1781. “Seu mais longo internamento” (GIANNATTASIO, 2006, p. 13) na prisão de Vincennes na França, que desde o final da Idade Média se tornou uma instituição carcerária para prisioneiros nobres, presos políticos, e casos de crimes de libertinagem como os atribuídos a Sade. A respeito de tal encarceramento de Sade problematiza o filósofo Giannattasio: “A prisão de Sade em Vincennes provoca ainda hoje polêmica entre seus biógrafos. Afinal, qual o verdadeiro motivo de seu confinamento? Sem ter sido submetido a um julgamento, sem uma pena de prisão determinada” (GIANNATTASIO, 2006, p. 16). Nesta carta de Sade traduzida por Giannattasio, e extraída da edição francesa das obras completas do Marquês, encontramos a constatação do próprio Sade de que sua censura estaria diretamente relacionada com suas posições políticas e em relação à condução da sexualidade. Como sentencia trecho de uma outra carta dirigida à sua esposa, datada de 1783 e citada no prefácio da tradução de Sade missivista. De acordo com Giannattasio, é nesta carta que “Sade se declara preso por suas opiniões” (GIANNATTASIO, 2006, p. 16). Dentre as possíveis causas que estariam presentes nas motivações de seu encarceramento, aquela “festinha de garotas” (SADE, 2006, p. 20) da qual se refere o Marquês, e que aparece sobretudo como associada em relação à sua detenção e sua inevitável inquietação: “Colocar alguém na cadeia quatro ou cinco anos por uma festinha de garotas as quais acontecem mais de oitenta similares todos os dias em A escolha em relação a esta carta de Sade como elucidativo e emblemático da obra deste escritor, e não um texto literário de sua autoria como referência textual principal para fins deste artigo, partiu da leitura do texto do filósofo Giannattasio em que ele sustenta que uma pesquisa a partir de Sade desde suas cartas, se justifica sobretudo pelo fato de podermos considerar sua obra a partir de “dois campos literários – o ficcional e as correspondênciasproduzidos, em boa parte, a partir do mesmo universo 'carceral' não somente o espaço físico da prisão, mas um outro território humano que se constitui a partir de uma experiência paradoxal e que poderíamos traduzí-la como o confronto do muito da vontade diante do pouco de realidade” (GIANNATTASIO, 2006, p. 14). 4

14 Paris! E vir lhe dizer que deveria estar feliz por pegar somente cinco anos de cadeia...” (SADE, 2006, p. 20). A indicação de que tal “festinha com garotas” (SADE, 2006, p. 20) estaria no centro dos motivos de sua detenção, aponta-nos ao menos em um primeiro momento, para aquela ordem de criminalização e regulamentação da libertinagem e da erotização dos corpos levadas adiante no percurso e nos contornos da literatura libertina, lançando a figura de Sade para o lugar do libertino criminoso da Europa

moderna,

representante

do

imaginário

das

perversões

sexuais

desprezíveis ou desejáveis, instaurando perigos e ameaças para os padrões vigentes franceses à época, e nesta posição alvo de cerceamento dos direitos civis empregados pelo Estado em relação à conduta adversa e desmedida de Sade. A insistência na redação da carta de Sade no que diz respeito à fundamentação da não criminalização da chamada “festinha de garotas” (SADE, 2006, p. 20), aponta-nos sobretudo seu posicionamento em identificar nas causas de seu encarceramento, um caráter não inscrito no campo jurídico, pois para ele isto não seria motivo para criminalização. E por outro lado, esta passagem da carta de Sade, acentua radicalmente uma condução da sensorialidade instaurada pela mediação da sexualidade manifesta em sua obra e vivência, e condenadas socialmente pelo Estado, sob o signo de perversões, em seu sentido nocivo aos padrões comuns da sexualidade e sociabilidade vigentes. E é justo neste tom que nos indica Sade quando retoma o tema: “Voltemos um instante sobre nossos passos e retomemos a palavra de simples festinha de garotas, pois vejo daqui assustar-se aqueles que não conseguem convencer-me de todas as calúnias que eles admitem contra mim” (SADE, 2006, p. 20). Mais adiante afirma especificamente para a esposa: “prefiro que tu me vejas como um libertino do que como um criminoso” (SADE, 2006, p. 20).

15 A associação da relação entre a figura do libertino e a do criminoso, que concentra em seu princípio uma visão nociva da perversão sexual, trata-se justo da teia na qual Sade observa a causa de sua detenção prisional, e de modo mais amplo, um encarceramento que intercepta o próprio modo de vida sadeano. A manifestação do universo da sexualidade passível de condenação e punição, reside para Sade, no percurso da carta que tomamos como referência, justo em um “pecadilho”, assim como o atesta expressão do próprio Sade: um “pecadilho (é preciso confessar) amar um pouco demais as mulheres” (SADE, 2006, p. 21). Segundo Giannattasio a respeito da prisão em Vincennes nos indica o filósofo: “Para termos uma dimensão do estado de espírito do marquês quando de sua reclusão a Vincennes, seria necessário recuperar os precedentes de sua prisão. Em 1763, ou seja, aos vinte e três anos de idade e pela primeira vez, Sade passou quinze dias preso em Vincennes sob acusação de práticas libertinas e atos de blasfêmia. Novo encarceramento em 1768, desta vez, um pouco mais longo – quase oito meses – em decorrência da acusação de práticas sexuais violentas (…) Em 1772, novos problemas com a justiça devido à acusação de tentativa de envenenamento de quatro jovens de Marselha (...) Sua sogra obtém no ano de 1773 ordens do Rei para prendê-lo (…) Em 1775, novo processo a partir do caso das cinco jovens de Vienne e Lyon, dois anos depois Sade é preso em Paris e transferido para a fortaleza de Vincennes (…) no ano de 1778 Sade livra-se das condenações anteriores, mas ao invés de ser posto em liberdade é reconduzido à prisão de Vincennes, pois, se ele livrou-se das penas da lei, não se livrou ainda da ordem de prisão emitida pelo Rei (…) No caminho de sua recondução a Vincennes ele consegue ainda uma vez escapar, refugiando-se em seu castelo de La Coste. No dia 26 de agosto de 1778 é preso e transferido para a fortaleza de Vincennes (…) não sabe os motivos pelos quais é mantido preso, acredita que as influências da família de sua esposa pesam decididamente sobre seu estado atual (…) Ainda que alguns

16 contemporâneos do marquês consideram paradisíacas as condições de seu aprisionamento” (GIANNATTASIO, 2006, p. 15).

A partir desta passagem de Giannattasio podemos identificar que Sade desenvolve nesta Minha Grande Carta, uma espécie de retórica no intuito de justificar sua forma de condução de práticas sexuais nas quais o outro é mero objeto de desejo que atende as desmedidas e inconsequentes vontades sadeanas. Ou poderíamos reduzir a justificação de Sade de que uma mera “festinha com garotas” (SADE, 1996, p. 20) trata-se da real causa de seus diversos aprisionamentos? De certo, como atestam as passagens de Giannattasio este argumento não se sustenta precisamente. Pois na trama sadeana, as articulações de relação com o outro, mediadas pela volúpia e pelo desejo, extrapolaram os padrões de sexualidade à época, de tal maneira que, de acordo com Giannattasio as detenções e cerceamentos civis de Sade, foram não somente em virtude de uma ou outra “festinha com garotas” como parece justificar em sua carta de 1781, e envolvem segundo Giannattasio a justificativa por parte do Estado de “práticas libertinas”, “atos de blasfêmia”, “práticas sexuais violentas”, e “acusação de tentativa de envenenamento” (GIANNATTASIO, 2006, p. 15). Neste sentido prevalece no discurso sadeano da referida carta um esforço de justificação retórica de seu modo de vida que levou às últimas consequências a experimentação da arena dos desejos, sejam eles de que natureza forem. E nesta retórica sadeana desenvolvida nesta carta, Sade procura se livrar das acusações, fundando sua defesa na natureza comum de sua condução no que diz respeito à sexualidade. Segundo Giannattasio: “...encontramos nas cartas de Sade uma combinação de fúria e delicadeza, revolta e sensibilidade, o que levou um de seus interlocutores a anunciar: ‘ele escreve como um anjo’, mas também conhecemos o que nos disse certa vez um poeta ‘todo anjo é terrível’. Certamente, muitas de suas cartas nos autorizam a afirmar, como já o

17 fez Jean Paulhan, que Sade é Justine, o que significa dizer, Sade se considera um infortunado, um sofredor que padece pelas mãos de sua sogra. Mas, olhos abertos e atenção caro leitor, não se esqueça que o teatro sempre foi a grande paixão sadeana. Mais do que nunca é um ator que aqui vemos em cena. Entretanto, o teatro para Sade não é um programa de entretenimento no qual sacrificamos nossos finais de semana, ao contrário, o teatro é, para ele, o universo no qual arriscamos as nossas existências” (GIANNATTASIO, 2006, p. 12).

E de fato Sade levou o teatro de suas obras até suas últimas consequências, desafiando os limites de condução da sexualidade à época de modo a se tornar um verdadeiro experimento literário através do próprio corpo e de sua imaginação desejante. Francisco Bocca no artigo Le Marquis de Sade: un matérialisme aux conséquences ultimes (2014), nos indica que Sade promove uma “exploitation démesurée du plaisir” 5 (BOCCA, 2014, p. 67), e que esta postura desmedida em relação ao prazer desdobra-se em suas consequências últimas a partir da compreensão de que “Sade a proclamé la non-durabilité de l'existence humaine”6 (BOCCA, 2014, p. 72). Esta perspectiva resulta da influência do materialismo no projeto sadeano, a partir de La Mettrie segundo a leitura de Bocca, sobretudo por considerar que Sade incorpora em seu modo desmedido de condução do prazer a concepção de matéria que é gerada, mantida e destruída, uma vez que é seu fim último, como lemos no artigo de Bocca: “Chère au matérialisme de l’époque, elle est présente à plusieurs reprises dans l’œuvre de Sade, notamment dans sa conception de l’homme comme une machine sensible, équivalente du point de vue de sa matière première et de sa sensibilité aux autres êtres de la Nature, soit disant composés de la même substance et soumis aux

5 6

“Exploração desmedida do prazer” (tradução nossa). “Sade proclamou a não durabilidade da existência humana (tradução nossa).

18 mêmes lois de génération, de comportement et de destruction” 7 (BOCCA, 2014, p. 58).

O sentido desta posição desmedida em relação ao prazer a partir da noção de que o homem é uma máquina sensível e que por ter como estrutura física e material um corpo submetido às mesmas leis de geração e corrupção da matéria, levadas adiante no projeto sadeano, promove segundo Bocca em suas consequências últimas, a “l’intensification illimitée du plaisir et l’attention des inclinations naturelles de l’homme, jusqu’à la mort” 8 (BOCCA, 2014, p. 73). Desta forma, o corpo nesta perspectiva materialista apropriada de forma radical por Sade, demarca a noção de prazer como “étant explosif, convulsif, épuisant et éphémère”9 (BOCCA, 2014, p. 71). E nesta perspectiva transforma o cenário sadeano como o palco da trama das experiências da sensibilidade e do prazer. E nesta trama das experiências do prazer sadeano o outro é lançado na posição de objeto, tal como nas ciências modernas a relação fundamental se sustenta na condição de um sujeito atuando sobre um objeto. Segundo Bocca, esta perspectiva sadeana edifica uma espécie de “éthique libertine” (BOCCA, 2014, p. 70), na qual a indiferença moral é articulada no intuito de favorecer a realização do prazer: “Pour le libertin, l’homme est toujours un objet et jamais le sujet (il est toujours considéré comme quelque chose d’étranger à la Nature), une source pour augmenter son propre plaisir”10 (BOCCA, 2014, p. 70).

“Cara ao materialismo da época, ela está presente em várias ocasiões na obra de Sade, notadamente em sua concepção de homem como uma máquina sensível, equivalente ao ponto de vista de sua matéria primeira e de sua sensibilidade nos outros seres da Natureza, supostamente compostos da mesma substância e submetida às mesmas leis de geração, de comportamento e de destruição” (tradução nossa). 8 “a intensificação ilimitada do prazer e a atenção das inclinações naturais do homem, até a morte” (tradução nossa). 9 “sendo explosivo, convulsivo, exaustivo e efêmero” (tradução nossa). 10 “Para o libertino, o homem é sempre um objeto e jamais o sujeito (ele sempre considerou como alguma coisa estranha à Natureza) uma fonte para aumentar seu próprio prazer” (tradução nossa). 7

19 Retomando a Minha Grande Carta do Sade, a experimentação do prazer na trama do sujeito sadeano em relação com os participantes de suas tramas de Orgias, remete-se sobretudo a um dos princípios das ciências modernas, a saber, a experimentação, como método do conhecimento. No intuito de justificar sua defesa diante das acusações que o levaram ao seu encarceramento, Sade utiliza o termo experiência para se referir às suas práticas sexuais, o que aponta para a perspectiva de que o sujeito sadeano compreende a natureza da condução da sexualidade como um experimento, não um experimento que ateste uma verdade conceitual, mas um experimento de prazer, que encontra na Orgia a sua arena empírica de natureza sensorial: “Consequentemente, no caso de Marselha, ainda era uma experiência que eu queria fazer e nela, sem dúvida, ainda era uma experiência com garotas que não apareceriam mais” 11 (SADE, 2006, p. 21).

11

O referido caso de Marselha, segundo o texto de introdução à tradução da Minha Grande Carta feito por Gabriel Giannattasio, trata-se segundo o tradutor e pesquisador da vida e obra de Sade de uma “acusação de tentativa de envenenamento de quatro jovens” (GIANNATTASIO, 2006, p. 15), que ocorreu no ano de 1772. Apesar de Sade procurar se defender desta acusação em algumas passagens desta carta, descrevendo um pouco este contexto e sobretudo não entrando muito em detalhes como forma de se esquivar e reduzir a importância deste ocorrido, declara em um certo trecho da carta: “A segunda aventura é aquela de Marselha: acredito também não haver necessidade de falar nela. Foi bem constatado que só havia libertinagem e que tudo que se havia julgado conveniente inserir como criminoso para acalmar a vingança de meus inimigos de Provença...” (SADE, 2006. p. 20). Não trataremos aqui de pormenorizar a defesa de Sade no que se refere ao caso de Marsellha, tão pouco investigar sua veracidade ou submeter o caso citado a objeções, o importante para nós é identificar o quanto Sade identifica a trama da Orgia como um experimento empírico de prazer, utilizando o exemplo do caso de Marselha, que na visão de Sade é tomado como uma “experiência com garotas”.

20 Perversões e sadismo na perspectiva de Freud: preparando o olhar para a leitura de Sade “O uso da boca como órgão sexual é considerado como perversão...” Freud

É através da psicanálise que a noção de perversão sexual ganhará outros contornos, e sua teorização terá como resultado uma determinada sistematização, que recorre ao emprego da observação e da análise como signos de um saber específico no contexto da modernidade, e como instrumento teórico de uma prática clínica. E tratando-se dos estudos de Freud nos Três ensaios sobre a sexualidade, encontramos uma empreitada que procura determinar traços da sexualidade humana através de uma análise radicalmente distinta da noção de perversão até então vigente, embora a noção de aberrações sexuais não esteja de todo dissipada em sua perspectiva, a compreendendo como constituinte de certa maneira de conduzir a sexualidade humana. Nessa direção, a manifestação das perversões na perspectiva de Freud, não indica necessariamente a manifestação de algo tão somente ligado ao aparecimento de pulsões sexuais anormais. Como nos indica Freud, a manifestação das perversões constitui-se desde e a partir daquele processo sexual tido como inscrito desde uma certa ordem de normalidade. Deste modo, a perversão estaria intimamente ligada às nuanças da vida sexual normal. Assim lemos ao trecho Desvios com respeito ao alvo sexual: “Todavia, mesmo no processo sexual mais normal reconhecem-se os rudimentos daquilo que, se desenvolvido, levaria às aberrações descritas como perversões” (FREUD, 1996, p. 141). Mas como Freud delimita a manifestação das perversões na sexualidade humana? Na perspectiva de sua psicanálise, o manifesto nas perversões residirá justo em dois aspectos, a saber: o aspecto das “transgressões anatômicas quanto

21 às regiões do corpo destinadas à união sexual”, e no aspecto das “demoras nas relações intermediárias com o objeto sexual” (FREUD, 1996, p. 141). Ao procurar elementos que alicercem tais noções de Freud acerca da perversão, encontraremos um percurso de descrições do que poderiam ser tomadas como manifestações da perversão, tais como: “a supervalorização do objeto sexual” (FREUD, 1996, p. 142); o “uso sexual da boca” (FREUD, 1996, p. 143); “uso sexual do orifício anal” (FREUD, 1996, p. 144); o “fetichismo” (FREUD, 1996, p. 145); em certa medida “o tocar e o olhar” (FREUD, 1996, p. 148); e “sadismo e masoquismo” (FREUD, 1996, p. 149). Ao realizar este percurso, Freud insiste em problematizar novamente a noção de perversão, na medida em que tais gestos manifestos na dinâmica da sexualidade humana, nos indicam sobretudo não se situarem tão imediatamente no lado oposto da normalidade. A própria noção de transgressão, que está relacionada com sua noção de perversão, não é absolutamente deslocada e separada daquelas pulsões que se inscrevem no âmbito da normalidade, de outro modo, como lemos na obra de Freud, “A experiência cotidiana mostrou que a maioria dessas transgressões, no mínimo as menos graves dentre elas, são um componente que raramente falta na vida sexual das pessoas sadias e que é por elas julgado como qualquer outra intimidade” (FREUD, 1996, p. 152). Nesse sentido Freud chama a atenção para aquele deslocamento corrente no uso da expressão perversão, isto é, às suas nuanças de concepção, compreensão e uso do termo. Com efeito, encontramos indícios que aproximam Freud tanto de uma fundamentação descritiva para as perversões, como também a indicação manifesta

de

que

o

aparecimento

das

perversões

não

imediata

ou

necessariamente aponta para a eclosão de “sintomas patológicos” (FREUD, 1996, p. 152). Desta forma Freud demarca no tópico Considerações gerais sobre as perversões:

22 “Em nenhuma pessoa sadia falta algum acréscimo ao alvo sexual normal que se possa chamar de perverso, e essa universalidade basta, por si só, para mostrar quão imprópria é a utilização reprobatória da palavra perversão. Justamente no campo da vida sexual é que se tropeça com dificuldades peculiares e realmente insolúveis, no momento, quando se quer traçar uma fronteira nítida entre o que é mera variação dentro da amplitude do fisiológico e o que constitui sintomas patológicos.” (FREUD, 1996, p. 152).

Freud procura de algum modo situar limites de manifestação das perversões a partir de duas direções, “a variação dentro da amplitude do fisiológico”, por um lado, e aquilo que “constitui sintomas patológicos” por outro. Neste

sentido

aponta

sobretudo

para

uma

considerável

influência

das

transformações na própria pulsão sexual, como o estopim necessário ao manifesto nas perversões extremas, tomadas como sintomas patológicos. Tais perversões tomadas como manifestação patológica, em expressão do próprio Freud, ganharão a determinação de “perversões mais abjetas”. “Abjetas” se refere às perversões tidas como imundas, desprezíveis. Ao primeiro e único parágrafo do tópico A participação do anímico nas perversões afirma Freud: “Talvez justamente nas perversões mais abjetas é que devamos reconhecer a mais abundante participação psíquica na transformação da pulsão sexual” (FREUD, 1996, p. 153). Em suas conclusões em torno das perversões, Freud indica uma tensão entre forças, isto é: a relação entre as forças da pulsão sexual e “certas forças anímicas que funcionam como resistências” (FREUD, 1996, p. 153). Entre estas forças anímicas de resistência e bloqueio Freud identifica, “com máxima clareza”, a “vergonha” e o “asco” (FREUD, 1996, p. 153). Precisamente a partir deste percurso, Freud situa o manifesto nas perversões “mais abjetas”, de tipo patológico, também a implicação da neurose, como sendo o seu “negativo” (FREUD, 1996, p. 157), como o afirma Freud na seção Neurose e perversão.

23 Acerca da relação entre neurose, perversão e pulsão sexual normal, é que Freud demarca a contribuição da perspectiva instaurada pela psicanálise: “Ela mostra (a psicanálise) que de modo algum os sintomas surgem apenas à custa da chamada pulsão sexual normal (pelo menos não de maneira exclusiva ou predominante), mas que representam a expressão convertida de pulsões que seriam designadas como perversas (no sentido mais lato) se pudessem expressar-se diretamente, sem desvio pela consciência, em propósitos da fantasia ou em ações. Portanto os sintomas se formam, em parte, às expensas da sexualidade anormal; a neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão” (FREUD, 1996, p. 157).

As perversões, em sua manifestação negativa de uma “sexualidade anormal” para Freud são tomadas justo na medida da manifestação das pulsões sexuais no contexto das neuroses, pois acontecem “sem desvio pela consciência”, isto é, a consciência não intercepta a fantasia ou ações. As neuroses para Freud, dada a sua ordem de anormalidade, na teoria psicanalítica e tal como encontramos nos Três ensaios sobre a sexualidade, enquanto manifestações do negativo das perversões, são aquelas “acessíveis à terapia psicanalítica” (FREUD, 1996, p. 157). Contudo, “a expressão convertida de pulsões que seriam designadas como perversas” (FREUD, 1996, p. 157), isto é, que acontecem a partir das pulsões sexuais que ocorrem sem a intervenção da consciência - “sem desvio pela consciência” (FREUD, 1996, p. 157) - e se proliferam “às expensas da sexualidade anormal”, podem nos levar a conclusão da mera e imediata relação entre pulsão, perversão e neurose? De certo que não, ao passo que a demarcação que Freud imprime ao trato de tema da perversão sexual, aponta para uma constatação de que as pulsões tidas no âmbito da normalidade por si mesmas, apresentam uma nuança da perversão que não implica necessariamente algo da ordem do

24 patológico ou da neurose. Freud, como lemos em passagem anterior a respeito da sexualidade de uma “pessoa sadia” (FREUD, 1996, p. 152), nos parece querer demonstrar que a perversão faz parte da natureza da sexualidade humana, ao passo que por vezes esta “universalidade” (FREUD, 1996, p. 152) da sexualidade no âmbito da normalidade, demonstra o “quão imprópria é a utilização reprobatória da palavra perversão” (FREUD, 1996, p. 152). Para nos aproximarmos de modo mais preciso do tema das pulsões, o trabalho de Murta a respeito da teoria pulsional em Freud Os mitemas e os matemas na elaboração da teoria pulsional (1992), oferece-nos uma importante leitura para a aproximação do conceito de pulsão, de tal modo que até aqui transitamos sobretudo em torno da noção de pulsão associada ao manifesto na perversão, isto é, inscrito no campo da sexualidade. Em sua interpretação da canção Comida (Titãs, 1987), Murta nos aproxima de algumas das principais noções em relação à pulsão, tendo como referência o pensamento de Freud. Nessa direção, aproxima a noção de pulsão, tal como o expressa sua perspectiva psicanalítica, sobretudo como situada sua manifestação no universo das necessidades fundamentais à vida. Deste modo, a noção de pulsão atravessará, o limite das demandas essenciais ao ser humano, isto é, a dimensão da nutrição, bem como a dimensão da sexualidade. Nutrição e sexualidade como partícipes na noção de pulsão em Freud. Com efeito, o movimento circular entre a satisfação e a insaciabilidade, ou antes mesmo, a regeneração da pulsão momentânea, se constituirão como aqueles traços que demarcam as noções de pulsão de nutrição e pulsão sexual em Freud. A respeito da teoria pulsional indica-nos Murta a importância da noção de dualismo na perspectiva da teoria pulsional. Mas o que significa este dualismo da teoria pulsional em Freud? Tal dualismo associado às noções de pulsão, reside sobretudo na tensão da relação entre a pulsão sexual, que é do mesmo modo

25 pulsão da vida, e a pulsão de morte. Nessa direção nos indica Murta no tópico A pulsão freudiana, mais precisamente ao subtítulo A problemática do dualismo pulsional: “O ponto fundamental do dualismo freudiano é a diferença entre as duas forças. A pulsão de morte é diferente da pulsão de vida ou sexual. A pulsão de morte é algo de não-sexual na mente humana. Freud mantém o dualismo para que a teoria das pulsões não perca sua radicalidade” (MURTA, 1992, p. 13). Contudo, feito este percurso de contextualização das noções de pulsão na perspectiva psicanalítica, retomemos o problema da perversão. Se por um lado, encontramos o discurso de um Gabriel Peignot – “diplomou-se em direito, foi bibliotecário e inspetor escolar” (HUNT, 1999, p. 15)- , que de acordo com Lynn Hunt, publicara um Dicionário critico, literário e bibliográfico em 1806 em Paris, catalogando os livros censurados em três categorias: “religiosa, política e moral”, entre os quais aparece o “primeiro uso moderno do termo pornografia” (HUNT, 1999, p. 14), e que diante do romance Justine de Sade sentencia: “envolve tudo o que a imaginação mais depravada, cruel e abominável pode oferecer no que diz respeito ao horror e à infâmia”. Porém, o próprio Sade não aparece no dicionário, pois Peignot sustenta que não devemos “avançar demais na direção dos esgotos da literatura” (PEIGNOT, op. Cit., pp. XXIV – XXV. HUNT, 1999, p. 17-18). Em outra perspectiva, a tradição psicanalítica freudiana, em seu debate contemporâneo com a questão daquele modo de perversão que ocorre “sem desvio pela consciência, em propósitos da fantasia ou em ações” (FREUD, 1996, p. 152), indica-nos a dimensão problemática que se tornou a questão da perversão no contexto da neurose e da clínica para a perspectiva psicanalítica. Tema este que se inscreve na problematização do tema da perversão na modernidade, na medida em que o trato clínico da perversão no âmbito da “sexualidade anormal” (FREUD, 1996, p. 157), proposto por Freud, demarcam especificidades e nuanças no que diz respeito à noção de sujeito ou ação perversa relacionada ao problema da necessidade clínica.

26 Acerca da tematização conceitual e a prática clínica implicada na noção psicanalítica de manifestação da perversão no contexto da neurose - “às expensas da sexualidade anormal; a neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão” (FREUD, 1996, p. 157) -, portanto patológica, importante nos encontramos com o tratamento do problema da perversão sexual a partir do artigo Perversões e suas versões (2005), de Paulo Ceccarelli, em que encontramos a seguinte provocação acerca do tema: “A expressão da sexualidade dita ‘perversa’ permite versões distintas segundo a teoria utilizada para lê-la? A essas questões, se junta a dificuldade de estabelecer quando determinado ato ‘desviante’ é perverso, logo sintomático, ou quando ele apenas organiza a trama erótica dos protagonistas que a encenam.” (CECARELLI, 2005, p. 43). Procurando articular a leitura de Freud a respeito das perversões com a vida e obra de Sade, nos indagamos: este arcabouço conceitual freudiano estabelece parâmetros para a interpretação do projeto sadeano? A apropriação do termo “sadismo” nos Três ensaios contudo, é conduzido de forma a somente substantivar o nome de Sade sem passar por um exame mais preciso da vida e obra de escritor francês, de modo que o termo é lançado no texto de Freud já com traços de definição e em nenhum momento o nome de Sade é citado. No tópico Sadismo e Masoquismo Freud se refere ao primeiro termo como uma “inclinação a infligir dor ao objeto sexual” (FREUD, 1996, p. 97) e “destaca o prazer na dor, a crueldade” (FREUD, 1996, p. 97). Todavia, a utilização do termo “sadismo” não é indiscriminadamente relacionado e identificado como uma perversão inscrita na sexualidade anormal, tão pouco é associado diretamente como manifestação de uma sexualidade patológica, e procura situar o “sadismo” no contexto da sexualidade normal: “...o sadismo, suas raízes são fáceis de apontar nas pessoas normais. A sexualidade da maioria dos varões exibe uma mescla de agressão, de inclinação a subjugar, cuja importância biológica talvez resida na

27 necessidade de vencer a resistência do objeto sexual de outra maneira que não mediante o ato de cortejar. Assim, o sadismo corresponderia

a

um

componente

agressivo

autonomizado

e

exagerado da pulsão sexual” (FREUD, 1997, p. 97).

Neste sentido as formulações de Freud nos oferecem de certa maneira um privilegiado caminho de tratamento para o tema das perversões no âmbito da sexualidade, e se por um lado, interligar os conceitos freudianos com o manifesto na vida e obra de Sade possa nos parecer anacrônico e passível de problematizações e diferentes interpretações, por se tratarem de campos distintos de

expressão

e

estudo,

a

saber,

psicanálise

e

literatura,

por

outro,

compreendemos que o arcabouço teórico desenvolvido por Freud nos Três Ensaios pode nos preparar o olhar para a leitura da obra de Sade, sejam seus escritos literários ou cartas, uma vez que o “sadismo” na concepção freudiana não diz respeito diretamente à manifestação da sexualidade anormal. Sobretudo segundo Freud o próprio conceito de “sadismo” possui suas nuanças, embora possua “em sua base pertencer às características universais da vida sexual” (FREUD, 1996, p. 98), de acordo com Freud: “O conceito de sadismo oscila, na linguagem corriqueira, desde uma atitude meramente ativa ou mesmo violenta para com o objeto sexual até uma satisfação exclusivamente condicionada pela sujeição e maus-tratos a ele infligidos. Num sentido estrito, somente este último caso extremo merece o nome de perversão” (FREUD, 1996, p. 97).

De todo, ambos os traços das nuanças do conceito de “sadismo” em Freud podemos encontrar na obra de Sade, isto é, sua manifestação própria da sexualidade normal, bem como em relação ao sadismo enquanto “caso extremo” como o atesta a passagem do texto freudiano. Todavia, no que se refere às perversões de maneira geral Freud acentua que “há sem dúvida algo inato na base das perversões, mas esse algo é inato em todos os seres humanos, embora,

28 enquanto disposição, possa variar de intensidade e ser acentuado pelas influências da vida” (FREUD, 1996, p. 106). As perversões portanto de maneira ampla e irrestrita, não estão necessariamente no âmbito da atribuição da ordem do patológico, de tal modo que a própria sexualidade humana possui nela mesma os traços da perversão, como nos indica Ceccarelli a respeito deste tema nos Três Ensaios: “o que os Três Ensaios demonstram é que não existe um fantasma especificamente perverso, pois a sexualidade humana é, em si, perversa” (CECCARELLI, 2005, p. 45.) Todavia, segundo Freud só podemos considerar como perversões patológicas aquelas que ele considera “sobretudo nos casos em que a pulsão sexual realiza obras assombrosas” (FREUD, 1996, p. 99) e que nem mesmo por esta razão, as pessoas “cuja conduta é normal em outros aspectos” (FREUD, 1996, p. 99) que realizam tais pulsões sexuais “assombrosas”, podem ser consideradas como “pessoas com outras anormalidades graves ou doentes mentais” (FREUD, 1996, p. 99). Neste sentido conclui Freud: “Por outro lado, a anormalidade

manifesta

nas

outras

relações

da

vida

costuma

mostrar

invariavelmente um fundo de conduta sexual anormal” (FREUD, 1996, p. 99).

Sade: uma crítica à articulação entre razão e sensibilidade O pensamento de Sade, em relação à tradição filosófica ocidental, corresponde a uma posição de crítica à tradição filosófica, sobretudo no que se refere ao modo como os filósofos Platão ou Descartes por exemplo, compreendem o mundo dos sentidos, e por conseguinte, o tema do corpo em sua relação com o conhecimento. O traço primordial em relação a estes filósofos, e que para nós consiste em alvo de crítica do pensamento sadeano, refere-se ao problema da relação entre a interferência do campo da sensibilidade, e a compreensão a respeito do conhecimento para tais filósofos. Na medida em que a experiência

29 sensível para estes pensadores, configura-se como que abrigada em erro e ilusões afetada que é pelas sensações e impressões ao encontro com os objetos. Para nos situarmos mais precisamente em relação às posições de Platão e Descartes diante desta temática em específico, duas passagens emblemáticas de ambos nos indicam melhores indícios a respeito desta perspectiva filosófica a qual Sade vai de encontro. A passagem de Platão a encontramos na obra Fédon e o trecho de Descartes o encontramos na obra Meditações Metafísicas: “X- E com referência a aquisição de conhecimento? O corpo constitui ou não obstáculo, quando chamado para participar da pesquisa? O que digo é o seguinte: a vista e o ouvido asseguram aos homens alguma verdade? Ora, a alma pensa melhor quando não tem nada disso a perturbá-la, nem a vista nem o ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e concentrada ao máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando tanto quanto possível qualquer comércio com ele, e esforça-se por apreender a verdade. Certo. E não é nesse estado que a alma do filósofo despreza o corpo e dele foge, trabalhando por concentrar-se a si própria? Evidentemente” (PLATÃO, 2010, X). “Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos... Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado de falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei

obstinadamente

apegado

a

esse

pensamento”

(DESCARTES, 2004, p. 18).

Com estas passagens indicamos algumas das noções de ambos os filósofos, que sobretudo marcaram a tradição filosófica, tanto antiga como em

30 Platão como moderna em Descartes. A partir desta perspectiva, isto é, da posição a respeito do lugar do corpo e dos sentidos no que se refere ao conhecimento, compreendemos que a ótica de tais filósofos nestas referidas passagens específicas, confere tanto ao corpo como aos sentidos, um lugar pejorativo e até mesmo nocivo em relação à concepção de conhecimento demarcada. Contudo, se o corpo e os sentidos são ponto pacífico de desconfiança para estes filósofos, a partir da noção de que a alma, para Platão, ou pensamento, para Descartes, devem concentrar-se ao máximo em si mesmos para conhecer seguramente, na modernidade a noção de corpo e a relação com os sentidos passará por radicais transformações. E nesta perspectiva o pensamento sadeano aparece como uma crítica a esta tradição filosófica que demarca a desvaloração dos sentidos e do corpo. E Sade, no contexto da modernidade, promove com sua literatura uma posição que levará até as suas últimas consequências um laboratório criativo de linguagem que lança no centro de sua proposta, uma inclinação completamente distinta da história da filosofia, ao passo que apresentase como o avesso da metafísica, privilegiando o corpo e os sentidos, negligenciado pela perspectiva filosófica de conhecimento até então. O lugar do pensamento de Sade, em relação à posição a respeito do conhecimento em Platão e Descartes, e no que se refere ao problema do corpo e dos sentidos, consistirá sobretudo desde uma relação de embate de perspectivas adversas. Por um lado, a tradição filosófica com Platão e Descartes, conserva pontos de acordo e continuidade no que se refere à desconfiança dos sentidos e até a abstração da existência do corpo: “dispensa a companhia do corpo” (PLATÃO, 2010, X); “desprovido de quaisquer sentidos” (DESCARTES, 2004, p. 18). Com efeito, se por um lado, a tradição filosófica tal como em Platão e Descartes em suas respectivas teorias do conhecimento, atestaram o âmbito do corporal e do sensível como o lugar do erro e do engano, Sade faz do corpo e dos sentidos sua matéria-prima.

31 Esta articulação entre razão e paixões, sensações, demarca sobretudo o primado da razão diante dos infortúnios do sensorial, que segundo Platão por exemplo, intercepta o caminho entre o filósofo e o conhecimento verdadeiro, chegando a afirmar que “os verdadeiros filósofos se acautelam contra os apetites do corpo, resistem-lhes e não se deixam dominar por eles” (PLATÃO, 2010, X), fixando deste modo uma posição secundária do corpo e do sensível. Desta forma, compreendemos que a tradição filosófica ocidental está articulada nesta tentativa de controlar e dominar as paixões, os desejos, e as oscilações do sensorial, de modo que observamos esta desconfiança em relação aos sentidos e ao corpo em filósofos como Platão e Descartes. Em outra direção o projeto sadeano de transformar a experiência sensível e corporal como potencializadoras, e como laboratório criativo literário, promove uma posição de crítica a esta tradição filosófica. Francisco Bocca no artigo Le Marquis de Sade: un matérialisme aux conséquences ultimes (2014), procura demarcar como Sade articula uma posição filosófica a respeito da relação entre razão e sensibilidade que destoa das filosofias que lançam a razão para uma posição hierárquica superior em relação à sensibilidade de tal maneira que os destinos desta última seguem sob o domínio daquela outra. Segundo Bocca, influenciado por pensadores como La Mettrie e Condillac, Sade subverte a articulação clássica entre razão e sensibilidade: “donnant à la raison une fonction inverse, voire contraire. La raison reste alors soumis et dépendante de la sensibilité”12 (BOCCA, 2014, p. 65). Na leitura de Bocca, Sade realiza uma articulação entre razão e sensibilidade na qual a racionalidade antes mesmo de posicionar-se como reguladora das sensações, é resultado da experiência do sensorial, isto é, que a 12

“dando a razão uma função inversa, talvez contrária. A razão fica então submetida à dependência da sensibilidade” (tradução nossa)

32 razão avança na medida que a exploração da sensibilidade se expande. E desta forma promove uma racionalidade que sobretudo não dissipa dela mesma a participação da sensorialidade, tão pouco a compreende como desprezível ou secundária, mas, por outro lado, a toma como elemento primordial, e confere a ela mesma o estatuto de fundamento ontológico, ou seja, uma racionalidade fundada na sensibilidade, segundo Bocca: “Sade fait valoir que toute faculté rationnelle, considérée comme fondée sur la sensibilité, doit rester associée à elle, plus encore, qu’elle doit être à son service”13 (BOCCA, 2014, p. 66). Todo este itinerário sadeano se confronta sobremaneira com a tradição filosófica que desenvolve a formulação da articulação da razão e sensibilidade desde o primado da razão, sendo o projeto de Sade sobretudo o de demarcar que a excitação da sensibilidade, suas agitações, são provocadoras e colaboradoras da racionalidade, e antes mesmo de encontrar nesta exploração e experimentação sensorial uma limitação da razão, as compreende como forças ativas potencializadoras, pois de acordo como Bocca: “Pour Sade, la raison ne peut limiter la sensibilité, seulement la promouvoir” 14 (BOCCA, 2014, p. 70).

13

“Sade fez valer que toda faculdade racional, considerada como fundada na sensibilidade, deve ficar associada a ela, mais ainda, que ela deve estar a seu serviço” (tradução nossa). 14 Para Sade, a razão não pode limitar a sensibilidade, somente a promover (tradução nossa).

33 REFERÊNCIAS: BOCCA, F. Le Marquis de Sade: un matérialisme aux consequénces ultimes. Revista Natureza Humana. V. 16, n. 1, 2014. CECCARELLI, P. Perversões e suas versões. In: Reverso, ano 27, n. 52, 2005. DESCARTES, R. Meditações metafísicas. 2 ed. São Paulo, 2004. FREUD, S. Um caso de histeria/ Três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos. Volume VII. Imago Editora. Rio de Janeiro. 1996. GIANNATTASIO, Gabriel. Sade Missivista. Revista de Filosofia, v. 18 n.23, 2006. HUNT, L. (Organização) – A invenção da pornografia: Obscenidades e as origens da modernidade. Trad. Carlos Szlak. 1° ed. São Paulo: Editora Hedra, 1999. MURTA, C. Os mitemas e os matemas na elaboração da teoria pulsional. Dissertação de Mestrado/ Filosofia/ UFMG, 1992. PLATÃO. Fédon. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia), 2010. SADE, M. Minha grande carta. Trad. G. Giannattasio. In: Revista de Filosofia, v. 18 n.23, 2006.

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