Saídas Restaurativas para uma Justiça em Linha de Montagem

June 6, 2017 | Autor: F. Fonseca Rosenb... | Categoria: Criminología Crítica, Justiça Restaurativa
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Descrição do Produto

Organizadores Luciano Oliveira Fernanda Fonseca Rosenblatt Marilia Montenegro Pessoa de Mello

Para além do código de Hamurabi: estudos sociojurídicos

Recife, 2015.

Créditos Editora: Editora Universitária Organização: Luciano Oliveira Fernanda Fonseca Rosenblatt Marilia Montenegro Pessoa de Mello Design da capa: Composição do miolo: Ana Catarina Silva Lemos Paz Conselho Editorial: Alexandre Freire Pimentel (UNICAP/ UFPE) Artur Stamford da Silva (UFPE) Ana Cláudia Pinho (UFPA) Érica Babini Lapa do Amaral Machado (UNICAP) Fernanda Fonseca Rosenblatt (UNICAP) Fernanda Frizzo Bragato (UNISINOS) Gustavo Barbosa de Mesquita Batista (UFPB) Gustavo Ferreira (UNICAP/UFPE) Jayme Benvenuto (UNILA) João Paulo Allain Teixeira (UNICAP/UFPE) Luciano Oliveira (UNICAP) Luiz Henrique Cadermatori (UFSC) Marcelo Labanca Correia de Araújo (UNICAP) Marcus Alan Melo Gomes (UFPA) Marilia Montenegro Pessoa de Mello (UNICAP/ UFPE) Virginia Colares (UNICAP)

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Para além do código de Hamurabi : estudos sociojurídicos [e-book] / organizadores Luciano Oliveira, Marília Montenegro Pessoa de Mello, Fernanda Fonseca Rosenblatt. -- Recife : ALID, 2015. 267 p. : il. ISBN 978-85-69409-01-4 (E-Book) 1. Sociologia jurídica. 2. Antropologia jurídica. 3.Direito. I. Oliveira, Luciano. II. Mello, Marília Montenegro Pessoa de. III. Rosenblatt, Fernanda Fonseca. IV. Título. CDU 34:301

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APRESENTAÇÃO Sonho que se sonha só É só um sonho que se sonha só Mas sonho que se sonha junto é realidade Raul Seixas

O Grupo Asa Branca de Criminologia1 começou a partir de um sonho de algumas amigas com várias indignações em comum. Essa angustia inicial transformou-se em encontros e debates criminológicos, reunindo estudantes e professoras2 da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade Federal de Pernambuco. A ideia inicial era de formamos um grupo de estudo, mas com o tempo as atividades aumentaram e se solidificaram até que o Asa Branca se transformou em um Grupo de Pesquisa. Assim, alçamos voos para outras localidades e agregamos, à nossa proposta inicial, pesquisadoras de vários estados do país em diálogos constantes sobre os mais diversos temas correlacionados às arbitrariedades produzidas e reproduzidas pelo Sistema de Justiça Criminal brasileiro. Lembramos da Ciranda tão bem entoada por Lia de Itamaracá, nos versos que seguem: Minha ciranda não é minha só Ela é de todos nós (...) Pra se dançar ciranda Juntamos mão com mão Formando uma roda Cantando uma canção

Embaladas por esse ritmo, as pesquisadoras do Grupo se reuniram para fazer sua primeira publicação conjunta em forma de e-book. São 17 capítulos que apresentam críticas às agências de controle estatal, baseadas em dados da nossa realidade marginal3. Em tempo de tantos retrocessos legislativos o convite dos artigos é nos tirar da zona de conforto para verificarmos o quão falaciosa é a legitimação desse sistema que mortifica, quando não mata as pessoas envolvidas. Para além do Código de Hamurábi: estudos sociojurídicos apresenta um duplo significado. O primeiro é uma referência expressa ao texto “Não fale do Código de Hamurábi!”4 de Luciano Oliveira. Sonhar para além do Código é assumir o desafio de realizar trabalhos e pesquisas na área jurídica atentando aos rigores metodológicos e fugindo aos vícios dos “manualismos” e dos “reverencialismos” às autoridades e às teorias. É fincar o pé na árida realidade e procurar, com a simplicidade do olhar curioso da pesquisadora, lançar perguntas, burlando o senso comum teórico e

1 Para mais informações acessar: http://asabrancacriminologia.blogspot.com.br/ 2 Como majoritariamente o Grupo Asa branca é formado por mulheres utilizaremos o feminino como universal, com o consentimento do Professor Luciano Oliveira. 3 A referência aqui é ao conceito atribuído por Zaffaroni à América Latina no livro: Em busca das penas perdida. 4. ed Rio de Janeiro: Revan, 1991. 4 O trabalho de Luciano Oliveira “Não fale do Código de Hamurabi” é fonte de inspiração de quase todos os trabalhos, pois nesta coletânea as autoras e os autores são: alunas/alunos, ex-alunas/ex-alunos, orientandos/orientandas, ex-orientandas/ex-orientandos de Luciano Oliveira. E quando não se enquadram nas categorias anteriores são influenciadas por seus trabalhos. Texto disponível em: http://www.uniceub.br/ media/180293/Texto_IX.pdf

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as respostas prontas. O segundo significado anuncia a pretensão de nossos trabalhos de ir “para além” da conhecida premissa retribucionista da Lei de Talião “Olho por olho, dente por dente”5, tão presente em nossa cultura punitivista. É tempo ainda de agradecer às autora pela exitosa parceria, às participantes do grupo Asa Branca pela colaboração e, em especial, às amigas Érica Babini, Manuela Abath e Virgínia Colares pelo empenho que tornou possível o nosso primeiro livro. Às leitoras, desejamos que possam sobrevoar por tamanha aridez sem perder a vontade de desnudar a realidade posta, para, em seguida, desconstruí-la e aí sim será possível sonharmos para além do Código de Hamurábi. Recife, julho de 2015. Marilia Montenegro Pessoa de Mello

5 No Código de Hamurabi encontramos no § 196 Se um awillum destruiu olho de um (outro) awillum, destruirão seu olho. E no § 197 Se quebrou o osso de um awillum, quebrarão o seu osso. Cf.: BOUZON, Emanuel. O Código de Hamurabi. 9. Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. A expressão também é encontrada no Êxodo versículos 23-27: “Mas se houver morte, então darás vida por vida, Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, Queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe. E quando alguém ferir o olho do seu servo, ou o olho da sua serva, e o danificar, o deixará ir livre pelo seu olho. E se tirar o dente do seu servo, ou o dente da sua serva, o deixará ir livre pelo seu dente”.

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Sumário

APRESENTAÇÃO I. A CABEÇA DE ANTÔNIO CONSELHEIRO: capítulo (ou capitulação) da antropologia criminal brasileira

Hugo Leonardo Rodrigues Santos

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II. A INVIABILIDADE DA REDUÇÃO DA IDADE PENAL: o empoderamento da população a partir da realidade brasileira Érica Babini Machado Marília Montenegro Pessoa de Mello

21

III. CULTURA POLICIAL E APREENSÃO DO ADOLESCENTE SUSPEITO: a expectativa do controle e a inviabilidade de proteção integral Iana Lira Pires Érica Babini Machado Maurilo Sobral

IV.

33

A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA PARA SE TORNAR UMA “MULHER DE FAMÍLIA”:

entre o discurso hegemônico de gênero e uma possível emancipação Mariana Chies Santiago Santos Roberta Silveira Pamplona Sofia de Souza Lima Safi

V.

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SAPATARIA NA FUNDAÇÃO CASA: entre o ser e o estar lésbica

Ana Luiza Villela de V. Bandeira Maria Camila Florêncio-da-Silva Nina Cappello Marcondes

71

VI. DA LGBT À “CRISTOFOBIA”: entre o reconhecimento prometido e o simbolismo prisioneiro Diego Lemos

84

VII. O USO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CASOS DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER: potencialidades e riscos Fernanda Rosenblatt Marília Montenegro Pessoa de Mello

99

VIII. DO MOVIMENTO FEMINISTA ÀS FORMAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS DOMÉSTICOS: a real fundamentação da política criminal de combate à violência contra a mulher Débora de Lima Ferreira

113

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IX. GÊNERO: um ensaio criminológico crítico Carolina Salazar L’armée Queiroga de Medeiros Helena Rocha Coutinho de Castro

126

X. RETRATOS DO EU: por uma Criminologia Crítica e Antiproibicionista Cristhovão Fonseca Gonçalves

141

XI. TRAFICANTE? CULPADO! Real funcionalidade do sistema penal e culpabilidade na análise da dosimetria da pena de traficantes de drogas Vitória Dinu

153

XII. GARANTIAS PROCESSUAIS E PENAIS NAS AÇÕES INFRACIONAIS – resquícios da prática menorista na cidade do Recife Keunny Ranieri Macedo Érica Babini Lapa do Amaral Machado

171

XIII. AOS PERIGOSOS A PRISÃO: uma análise da periculosidade como fundamento da prisão preventiva no Tribunal de Justiça de Alagoas Manoel Correia de Oliveira Andrade Neto

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XIV. SAÍDAS RESTAURATIVAS PARA UMA JUSTIÇA EM LINHA DE MONTAGEM Fernanda Fonseca Rosenblatt Manuela Abath Valença

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XV. TRANSIÇÃO PARA A DEMOCRACIA: breve análise sobre algumas tensões entre o direito e a teoria política

Ricardo C. de Carvalho Rodrigues

216

XVI. O CONSERVADORISMO NA DECISÃO Nº RE 285012 DO STF Virgínia Colares

226

XVII. “LOS NADIES”: estrangeiros encarcerados no Brasil André Carneiro Leão

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XVIII. A EXPERTISE POLICIAL COMO PROVA NO PROCEDIMENTO DE APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL Helena Rocha Coutinho de Castro Manuela Abath Valença

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Autores e Autoras Ana Luiza V. de Viana Bandeira Advogada, graduada em Direito pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas em 2014. André Carneiro Leão Doutorando em Direito na Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela ARIC-Faculdade Damas de Instrução Cristã em convênio com a Escola Superior de Advocacia-ESA/OAB-PE. Professor da Faculdade Damas de Instrução Cristã. Defensor Público Federal. Coordenador Estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais-IBCCRIM. Carolina Salazar L’Armée Queiroga de Medeiros Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2015), com período sanduíche na UNISINOS. Advogada. Cristhovão Fonseca Gonçalves Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Membro da Associação Brasileira de Redução de Danos( ABORDA). Débora de Lima Ferreira Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Professora de Direito Penal da Faculdade Marista do Recife-PE. Advogada. Diego Lemos Mestrando em direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Advogado. Érica Babini Lapa do Amaral Machado Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora da Universidade Católica de Pernambuco. Advogada Autárquica do Instituto de Assistência Social e Cidadania do Recife. Fernanda Cruz da Fonseca Rosenblatt (Organizadora) Doutora em Criminologia pela University of Oxford, Reino Unido (2014) (diploma revalidado nacionalmente). Mestre em Criminologia pela Universiteit Katholieke Leuven, Bélgica (2005) (diploma revalidado nacionalmente). Professora de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Católica de Pernambuco. Membro do Comitê Executivo da World Society of Victimology (Sociedade Mundial de Vitimologia) desde julho de 2012. Membro da Comissão de Educação Jurídica da OAB/PE desde fevereiro de 2014. Helena Rocha Coutinho de Castro Mestranda em Ciências Criminais pela PUC/RS. Bolsista FAPERGS.

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Hugo Leonardo Rodrigues Santos Doutorando e Mestre em Direito Penal pela UFPE; Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela ESMAPE; Professor de Direito Penal e Criminologia em cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito em Maceió (AL); Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) e Coordenador estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) em Alagoas. E-mail: [email protected] Iana Lira Pires Graduanda do curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Luciano Oliveira (Organizador) Mestre em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (1984) e doutor em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (1991). Professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco. Professor da graduação e do programa de pós-graduação em direito da Universidade Católica de Pernambuco. Keunny Raniere Carvalho de Macêdo Filho Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Manuela Abath Valença Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB). Mestre em direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE (2012). E-mail: manuelaabath@gmail. com Maria Camila Florêncio-da-Silva Doutoranda do Programa de Administração Pública e Governo da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas - EAESP - FGV (início em 2014). Mestra em Direito pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas - DIREITO GV (2014). Integra o Centro de Estudos em Administração Pública e Governo - CEAPG, Núcleo de Pesquisas em Gênero e Masculinidades - GEMA da Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (desde 2010), o Grupo de Pesquisas em Direito e Gênero da FGV DIREITO (desde 2013) e o Núcleo de Pesquisa Democracia e Ação Coletiva - NDAC do CEBRAP (desde 2014). Mariana Chies Santiago Santos Cursou a Pós-graduação lato-sensu - especialização em Ciências Penais pela PUCRS. Mestra em Ciências Criminais na PUCRS. Doutoranda em Sociologia no PPGS da UFRGS. Realizou o doutorado-sanduíche na Université de Versailles - Saint-Quentin-en-Yvelines, no Centre de Recherche sur le Droit et les Institutions Pénales/ Ministério da Justiça. Marília Montenegro Pessoa de Mello (Organizadora) Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2002) e doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008). É professora do curso de mestrado em direito na Universidade Católica de Pernambuco, professora da graduação da Universidade Católica de Pernambuco e da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e professora da Escola Superior de Magistratura de Pernambuco (ESMAPE). Maurilo Sobral Mestrando no programa de pós-graduação em Direito na Universidade Católica de Pernambuco. Educador Social do Instituto de Assistência Social e Cidadania.

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Ricardo Carvalho Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2010). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Escola de Magistratura de Pernambuco (2007). Atualmente é professor da Estácio do Recife. Roberta Silveira Pamplona Acadêmica do curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua como assistente jurídica no Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS no grupo Assessoria à Adolescentes Selecionados pelo Sistema Penal Juvenil (G10). Sofia de Souza Lima Safi Psicóloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013/2). Trabalha como psicóloga no Serviço de Atendimento à Família (SAF) Núcleo Espírita Fraternidade, serviço conveniado à Fundação de Assistência Social e Cidadania - FASC/ Porto Alegre. Nina Cappello Marcondes Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - FDRP/ USP Virgínia Colares Soares Figueirêdo Alves Metre (1992) e doutora (1999) em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente, é professora, adjunta IV, da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), atuando na graduação e mestrado em Direito. É líder do Grupo de Pesquisa Linguagem e Direito (Plataforma Lattes). Integra a International Language and Law Association (ILLA). É participante do Grupo de Pesquisa em Linguística Forense da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Vitória Caetano Dreyer Dinu Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, na linha de pesquisa de Direitos Humanos, com bolsa da CAPES/PROSUP. Pós-graduanda em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera/Uniderp. Advogada.

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XIV Capítulo

SAÍDAS RESTAURATIVAS PARA UMA JUSTIÇA EM LINHA DE MONTAGEM Fernanda Fonseca Rosenblatt Manuela Abath Valença 1.

INTRODUÇÃO

Um inusitado episódio ocorrido em 2003 pode introduzir os problemas e questões que enfrentaremos neste trabalho. Naquele ano, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, em uma palestra realizada em São Paulo e noticiada pelo jornal Estado de S. Paulo, dirigiu-se ao público e o convidou para assistir a uma sessão da 2ª Turma do STF, da qual Jobim fazia parte à época. Segundo o ex-ministro, o que aquelas pessoas iriam presenciar eram julgamentos ocorrendo em série ou julgamento por atacado – para utilizar os seus termos – e referiu-se ao que seria o momento final de uma sessão de julgamento: “Vamos à lista do ministro Jobim. Sessenta processos. Nego provimento, sem destaque. De acordo? De acordo. Pronto, tá julgado”1. Jobim descreve o já conhecido julgamento por lista2, prática comum em diversos tribunais do país e que não soa nada estranho a quem vivencia o cotidiano da justiça brasileira e de seus órgãos colegiados. Julgamentos em lista nos tribunais ou uma colegialidade que às vezes existe apenas como um ritual sem maiores correspondências com o que de fato ocorre, ensejando a já conhecida crise da unanimidade não são propriamente uma novidade para os operadores do campo jurídico. Seria possível uma análise individualizada e detalhada de cada processo que adentra o universo dessas varas e câmaras? Em que medida são adotados mecanismos como o “julgamento em atacado” conforme mencionado pelo ministro ou simplesmente aquilo a que, neste trabalho, referiremos como “justiça em linha de montagem”? Ainda, é possível escapar a esse tipo de justiça? A capacidade que tem o judiciário hoje de lidar com a demanda a ele apresentada é bastante deficiente. O judiciário pernambucano, por exemplo, é apontado como um dos mais ineficientes do país, possuindo, no ano de 2009, uma carga de trabalho de 3.351 processos por juiz de primeiro grau, a quarta maior da federação, com uma taxa de congestionamento na fase de conhecimento de 81,7%, a terceira maior do Brasil (CNJ, 2010). De acordo com os relatórios publicados trimestralmente pelo próprio TJPE, constata-se que a realidade na justiça de segundo grau é semelhante, possuindo as câmaras criminais taxas de congestionamento que giram em torno dos 60%. 1 A referida notícia foi citada por Aury Lopes Júnir em: LOPES JÚNIOR, 2010, p. XXIV. 2 Embora possa haver variações de tribunal a tribunal, de um modo geral o julgamento por lista segue a seguinte sistemática: os casos repetidos, com mesma fundamentação e mesmo pedido, ou que trate de questão de direito sobre o qual já haja entendimento pacificado no tribunal ou no gabinete do desembargador relator são agrupados e é proferido um único voto para todos eles. A lista é encaminhada ao órgão colegiado muitas vezes apenas para cumprir o ritual do julgamento na câmara ou na turma.

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Com vistas à redução do congestionamento, emergem artifícios que vão desde eventos extraordinários como os mutirões até a adoção de uma rotina ordinariamente marcada por uma análise superficial e sumária dos processos. Com efeito, a justiça penal convive com a tensão de buscar a celeridade do processo e preservar as garantias processuais penais. Compatibilizar essas metas significa adotar padrões de julgamentos acelerados em que essas garantias aparecem apenas para compor a cerimônia, enquanto o processo corre em ritmo frenético e despersonalizado, como se não houvesse ninguém por trás – nem vítima e nem réu. No presente artigo, apresentamos as características de uma justiça em linha de montagem, a qual se caracteriza por adotar respostas padronizadas, pelo pouco ou nenhum espaço para o debate e pela ausência de individualização no tratamento jurisdicional. O excesso de burocratização e formalismo, a sensação kafkiana vivenciada pelos leigos, de não poder conhecer ao certo os passos que serão tomados no curso do procedimento, somados à necessidade de se alcançar metas de eficiência tornam o processo penal um ambiente hermético, protagonizado por profissionais que lidam com autos, números, narrativas sem vidas, afastando-se dos problemas concretos eventualmente vividos pelos sujeitos nele envolvidos, que são, a priori, inseridos em denominações de vítima, réus ou autores dos fatos. Alternativamente a esse cenário, apresentam-se os princípios da justiça restaurativa. Buscaremos explorar esse modelo alternativo de resolução de conflitos, o qual, argumentaremos ao final, na medida em que enxerga o conflito como propriedade daqueles mais diretamente afetados por ele, dando a todos mais voz dentro do processo, parece capaz de oferecer tratamento mais “personalizado” às partes. 2. JUSTIÇA PENAL EM LINHA DE MONTAGEM: A NEGAÇÃO DAS PARTES, DO PROBLEMA E DO PRÓPRIO DIREITO

A imagem da linha de montagem é a de uma estrutura que se automatiza para gerar produtos padronizados. Pensar a justiça a partir desse padrão foi o que fez Abraham Blumberg, em artigo pioneiro datado de 1967. Segundo o autor, as cortes de justiça funcionam com base em “valores pragmáticos, prioridades burocráticas e instrumentos administrativos” (BLUMBERG, 1967, p. 17) e diante do número excessivo de processos a serem julgados, a resposta a ser dada é o julgamento deles em detrimento de princípios do devido processo legal. Pensar esse padrão nos leva a refletir sobre o próprio conceito de burocracia. O conceito típico-ideal de burocracia moderna construída por Max Weber é fundamental para que compreendamos os traços gerais que essas organizações tomaram na modernidade e que peculiaridades elas assumiram e assumem nos diferentes espaços em que se desenvolvem. O que caracteriza esse modelo? Segundo Weber, a) a existência de áreas de jurisdição fixas e oficiais ordenadas de 204

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acordo com regulamentos; b) a existência de hierarquia no quadro administrativo, com supervisão dos órgãos inferiores; c) a prevalência de documentos escritos d) a separação entre a esfera privada do funcionário e a esfera pública na qual exerce o seu cargo; e) a profissionalização e treinamento técnico do corpo de funcionários; f) o desempenho do cargo segundo regras gerais (WEBER, 1963, p. 229-231). Os estados modernos ocidentais passaram a se organizar, a partir do século XVIII, sob esses preceitos burocrático-racionais. A prevalência da administração burocrática na modernidade se deveu a uma série de fatores que Weber expõe ao longo de seus trabalhos: transformações econômicas, sociais, políticas, científicas e filosóficas. O sistema capitalista e a sociedade industrial trazem consigo a especialização técnica e uma divisão do trabalho social que engendram um aumento quantitativo das tarefas administrativas, mas, sobretudo, um aumento qualitativo tendo em vista o surgimento de diversas ocupações especializadas, concluindo Weber que “a burocracia é ocasionada mais pela ampliação subjetiva e qualitativa e pelo desdobramento interno no âmbito das tarefas administrativas do que pelo seu aumento extensivo e quantitativo” (WEBER, 1963, p. 246). Outra marca da modernidade ocidental é o desenvolvimento científico e o domínio da natureza, que afastam o homem da crença nas explicações mágicas sobre os fenômenos em geral, fazendo prevalecer a crença na razão. A racionalização emerge como padrão mais correto de descrição dos eventos naturais e sociais e de formação das instituições políticas. É dessa forma que o “desencantamento do mundo” de que nos fala Weber também contribui sobremaneira para a prevalência da burocracia racional-legal como forma de administração dos Estados na modernidade ocidental. Finalmente, a burocracia será, segundo Weber, o aparato mais eficiente para lidar com as demandas de velocidade, precisão, impessoalidade e constância exigidas tanto pela produção capitalista quanto pela democracia de massa orientada pelos ideais liberais e republicanos de isonomia e legalidade, valores que nortearam a composição política de diversos Estados ocidentais nos séculos XVIII e XIX. O mundo jurídico sofreu diretamente com a burocratização das instâncias de poder do Estado a partir do século XVIII, ocorrendo um processo de “positivação do direito, que desvincula o sistema jurídico de sua tradicional vinculação com o sagrado, substituído pela decisão tomada através de procedimentos pré-estabelecidos” (AZEVEDO, 2008, p. 120). Essa justiça burocratizada acolhe, em tese, princípios republicanos e democráticos. No caso da justiça penal, a adoção dessas diretrizes está concretizada na aplicação dos preceitos do devido processo legal e do princípio acusatório; de um

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conjunto, enfim, de garantias penais e processuais penais que visam a, precipuamente, controlar o poder punitivo3. No momento, não há espaço para nos debruçarmos sobre as implicações dessas garantias na construção de discursos legitimadores de um sistema de justiça criminal que, no caso brasileiro, funciona, em grande medida, violando esses mesmos princípios. Sabemos que, no Brasil dos Amarildos, jargões do tipo “aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei” permitem variações ainda mais cruéis, como notou Luciano Oliveira (2008), de modo a fazer sentido falar em “aos amigos tudo e aos inimigos, nem a lei”. Porém, para além dessas considerações de ordem cultural, atravessadas por aspectos de classe e raciais, é preciso considerar que uma justiça penal burocratizada apresentar-se-á sempre como um desafio procurando compatibilizar metas de eficiência e respeito ao procedimento. Tomemos emprestada a formulação sobre a seletividade penal para que possamos refletir sobre isso. Segundo Alessandro Baratta, a seletividade penal “depende da própria estrutura do sistema, isto é, da discrepância entre os programas de ação previstos nas leis penais e as possibilidades de intervenção sobre o sistema” (BARATTA, 1993, p. 49). Em suma: nem todos que praticam crimes serão processados e punidos, pois a justiça não seria capaz de suportar a demanda criminalizadora. Analogamente, o sistema punitivo não possui estrutura organizacional para contemplar as garantias processuais penais em todos os casos a ele apresentados. Os julgamentos em órgãos colegiados é um bom exemplo disso. Em uma pesquisa realizada em 2012, no âmbito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (VALENÇA, 2012), observou-se que, em cada sessão de uma câmara criminal, julgava-se uma média de quinze habeas corpus. Se para cada um fosse feita uma sustentação oral de quinze minutos (o máximo permitido), somando-se ainda os cerca de cinco minutos utilizados para a leitura do relatório e do voto, seriam - e esse cálculo é por baixo - aproximadamente vinte minutos para cada HC. Sem reservar um só minuto para discussões, isso totaliza cinco horas de julgamentos somente dessas ações! Somam-se a elas pautas não menos cheias de apelações, recursos em sentido estrito, embargos de declaração e todos os demais incidentes julgados pelo órgão. O resultado, aqui, poderia ser apenas um: a adoção de uma justiça em linha de produção. Na pesquisa, foi o que se observou: celeridade garantida em respostas padronizadas, julgamentos unânimes em mais de 98% dos casos e a liberdade denegada na grande maioria das ações.

3 Um modelo garantista de justiça penal tem como objetivo central a limitação do estado punitivo, seja em sua esfera material (o que punir), seja na forma (como punir). Como situa Amílton B. de Carvalho e Salo de Carvalho: “Representando um elogio à racionalidade jurídica, a teoria do garantismo penal pressupõe o direito como única alternativa à violência dos delitos e das penas, cuja existência apenas se justifica se percebido como mecanismo de tutela do indivíduo contra as formas públicas e privadas de vingança” (CARVALHO; CARVALHO, 2002, p. 20).

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A relativização das garantias processuais penais é, portanto, um problema também de ordem estrutural. Assim como no caso da seletividade penal, em que é importante perguntar quem o sistema de justiça seleciona para punir, fundamental é saber os processos nos quais essas garantias são respeitadas à risca. Enfim, quem merece o devido processo legal? Esse não é o objeto deste estudo, mas, possivelmente, quanto maior a chance de um caso ser selecionado pelo sistema punitivo, menor a probabilidade de nele serem vivenciadas as garantias processuais penais, porque à clientela tradicional dos órgãos do sistema de justiça é reservado pouco capital jurídico e político para angariar tratamento personalizado. Essas eram as reflexões de autores da criminologia norteamericana ao se referirem ao fenômeno da linha de montagem e da adoção cerimonial do ritual jurídico, atropelado pelos pequenos acordos do dia-a-dia realizados para lidar com as urgentes metas de eficiência. Em um trabalho da década de 1970, Meyer e Rowan (1977, p. 345), refletiam que, diante das varas e pautas superlotadas, garantir celeridade e direitos fundamentais eram metas que se compatibilizam através da adoção cerimonial dos princípios racionalizadores das decisões, as quais, por seu turno, em nada obedeciam aos mandamentos das normas formais. Naquele cenário, onde certos rituais são seguidos à risca em nome das formalidades, há um sujeito invisibilizado – o réu – que, a despeito disso, é o destinatário direito dessas garantias. As críticas dos abolicionistas são sensíveis aos problemas da burocratização excessiva do sistema punitivo, denunciando-o como uma máquina de rotinizar a prestação da justiça, de classificar os conflitos em padrões pré-estabelecidos e de apresentar respostas prontas, desconsiderando os desejos da vítima e a pessoa do réu. Percebem que o sistema não passa de um conjunto de órgãos que não atuam articuladamente e que, cada um a sua maneira, limita-se a classificar os conflitos penais a partir da dicotomia simplista vítima versus bandido (HULSMAN; CELIS, 1993, p. 68). Os funcionários do sistema penal, ao mesmo tempo, apropriam-se artificialmente de um conflito que não é deles, desresponsabilizando-se pelos resultados. Em resumo, a necessidade classificatória do sistema jurídico-penal obriga os atores jurídicos a reduzirem suas percepções sobre as situações que lhes são encaminhadas, como forma de evitar o próprio colapso do sistema. Seu caráter burocrático, portanto, é potencializado, praticamente impossibilitando qualquer outra forma de atuação que não siga o passo-a-passo da engenharia de produção da justiça (PALLAMOLLA; ACHUTI, 2014, p. 81)

Enfim, estabelece-se um padrão de julgamento em linha de montagem onde não há, praticamente, lugar para individualizações e análises caso a caso. A justiça restaurativa é baseada numa filosofia que vai contra tudo isso. Como destacado em outro estudo: “[...]a justiça restaurativa é baseada em uma filosofia que vai de encontro à profissionalização, padronização, burocratização, centralização e formalização” (ROSENBLATT, 2015, p. 185). 207

PARA ALÉM DO CÓDIGO DE HAMURABI: ESTUDOS SOCIOJURÍDICOS

3. O PROCESSO RESTAURATIVO E O SEU IDEAL DE DEVOLUÇÃO DO CONFLITO ÀS PARTES DIRETAMENTE AFETADAS

O crime, ao invés de representar uma ofensa contra indivíduos, é tradicionalmente (e muito abstratamente) concebido como uma infração cometida contra o Estado. Por sua vez, são os profissionais que, representando o Estado e sua forma burocrática de organização, tal qual acima analisado, tomam as decisões sobre como cada caso concreto deve ser resolvido (MORRIS, 2002). O próximo passo, dentro dessa lógica conservadora, é dar ênfase aos ideais mais desinteressados de punição e retribuição, ao invés de envidar esforços na realização de ideais mais íntimos ou pessoais de reparação e reconciliação. Em seu texto seminal “Conflitos como Propriedade” (Conflicts as Property), de 1977, Christie critica esse modelo tradicional de justiça criminal, argumentando que o Estado – e, em nome dele, os profissionais da justiça (advogados, juízes, promotores, psiquiatras, etc.) – se apropria dos conflitos pertencentes às partes diretamente afetadas pelo crime. Segundo ele, esses conflitos deveriam ser devolvidos a quem pertencem – às vítimas, aos infratores e à comunidade. A despeito de Christie, à época, não ter mencionado o termo “justiça restaurativa”, nem mesmo en passant, o supramencionado texto se tornou a base de grande parte das construções teóricas sobre a justiça restaurativa. Nesse diapasão, um dos principais atributos da justiça restaurativa é que ela enxerga o crime como uma violação contra pessoas “reais” no lugar de uma violação dos interesses abstratos do Estado ou de normas jurídicas abstratas. Assim, no modelo restaurativo de justiça criminal, “o Estado não tem mais o monopólio sobre a tomada de decisões” e “os principais tomadores de decisão são as próprias partes” (MORRIS, 2002, p. 14). Isto é, os conflitos são devolvidos a quem pertencem (vítimas, infratores e comunidade), e a lógica da justiça criminal é invertida: no lugar da repressão contra o inimigo (o infrator), a busca é pelas respostas mais significativas de reparação (dos danos advindos do crime) e de reconciliação (entre as partes em conflito). Esse ideal de devolução dos conflitos às partes diretamente afetadas pressupõe um processo inclusivo. Nesse sentido, a justiça restaurativa envolve um processo que permite e viabiliza o efetivo engajamento das partes; um processo no qual todos os participantes ajudam a definir o mal provocado pelo delito e a desenvolver um plano para a reparação desse mal. E quanto mais inclusivo for esse processo, melhor – quer dizer, quanto mais pessoas (atingidas pelo crime) forem incluídas, quanto mais cedo elas forem envolvidas, e quanto mais efetiva for a participação de cada uma delas ao longo do processo, maior será o potencial restaurativo desse processo. É principalmente por essa razão que o modelo ideal ou “purista” (McCOLD, 2000) de justiça restaurativa é de um processo em que as partes envolvidas se encontram “cara-a-cara”.

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Isto é, na prática, os programas de justiça restaurativa devem envolver, sempre que possível, um (ou alguns) encontro(s) “ao vivo” entre as partes afetadas pela ocorrência criminosa, para que todos tenham a oportunidade de expressar seus sentimentos e partilhar suas opiniões sobre como enfrentar as consequências do crime (ROSENBLATT, 2015). Outro valor bastante atrelado aos processos de justiça restaurativa é a informalidade. O supracitado ideal de inclusão, diriam os restaurativistas (McCOLD, 2000), está amarrado à ideia de um processo informal, através do qual os participantes possam se sentir confortáveis e capazes de falar por si mesmos. Com efeito, a justiça restaurativa se materializa através de um processo informal, e a principal razão de ser dessa informalidade é a necessidade de se criar um ambiente “ideal” para a ativa (e efetiva) participação de todos os interessados; ou, dito doutro modo, o processo restaurativo deve ser o mais informal possível para permitir um ambiente não-ameaçador e não-estigmatizante, no qual todos os participantes possam se sentir livres para falar (VAN NESS; STRONG, 2010). Por isso, em geral, os encontros restaurativos não ocorrem em salas de tribunais e fóruns, mas na própria comunidade local (por exemplo, em escolas ou em centros comunitários); os participantes se sentam num círculo; ninguém usa beca ou “juridiquês”; e, ao final do encontro, é comum servir café e lanche, como forma de criar mais uma oportunidade de interação (informal) entre as partes (WACHTEL, 2013). O processo restaurativo também é concebido como um instrumento de “empoderamento” (empowerment) de vítimas, infratores e comunidades, a fim de que essas partes possam unir esforços na superação dos danos materiais, psicológicos e relacionais decorrentes do crime (VAN NESS; STRONG, 2010). Com efeito, para romper com a mentalidade de que os profissionais são os mais aptos a decidir como é que as pessoas diretamente afetadas por um crime devem ser ajudadas ou tratadas, as vítimas precisam de empoderamento para “assumir” o seu próprio conflito – quer dizer, elas devem ser empoderadas para opinar sobre o destino do seu próprio caso. Por outro lado, a fim de superar uma longa tradição em que o condenado “recebe”, passivamente, uma punição, os infratores devem ser empoderados para “assumir” o seu comportamento desviante, para realmente enfrentar as consequências de suas ações, reparando os danos provocados a indivíduos e relacionamentos, e aproveitando toda e qualquer oportunidade para demonstrar confiabilidade e buscar a sua reintegração na comunidade. Por fim, os membros da comunidade vitimizada devem ser empoderados para perquirir sobre os problemas locais que favorecem a criminalidade, para resolver os seus próprios conflitos comunitários, e para ajudar a traçar um plano de ação por meio do qual os infratores arrependidos possam ser (re)inseridos naquela comunidade (WALGRAVE, 2008). Além desses (e de outros) valores operacionais (ou processuais), impende destacar que a justiça restaurativa é voltada para a reparação dos danos causados pela conduta do infrator (WALGRAVE, 2008). De certo, “a menos que reparar o dano esteja na essência da definição de justiça restaurativa,

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[...] as partes interessadas e os profissionais envolvidos irão continuar escorregando para o modo tradicional e confortável de simplesmente tentar ajudar ou machucar o infrator” (BAZEMORE, 2000, p. 464). Assim, a “intuição restaurativa” é que “porque o crime dói, a justiça deve curar” (BRAITHWAITE, 2005, p. 296). Essa é a ideia central naquele que é provavelmente o primeiro escrito sistemático sobre justiça restaurativa: o livro de Howard Zehr, de 1990, “Trocando as Lentes” (Changing Lenses). Segundo Zehr (1990), se o crime é para ser visto como um ato que causa danos a pessoas, relacionamentos e comunidades (em oposição a uma mera violação de normas penais incriminadoras), o principal objetivo da justiça restaurativa deve ser o de reparar esses danos, atendendo às necessidades reais de todas as partes envolvidas nas implicações do delito. Portanto, um dos principais atributos da justiça restaurativa – se não o mais importante dentre todos eles – é que ela visa mudar a orientação normativa do sistema de justiça criminal da velha retribuição para a restauração. Em suma, o resultado mais representativo de um processo restaurativo é a reparação do dano, a qual, na prática, pode assumir vários formatos: compensação financeira à vítima, compensação à vítima através da realização de algum trabalho (por exemplo, quando o infrator conserta a cerca que destruiu), pedido de perdão (a chamada “reparação simbólica”), prestação de serviços à comunidade etc (WALGRAVE, 1999). O importante é que a natureza da reparação seja acordada entre aqueles mais diretamente afetados pelo crime (incluindo o infrator e seus familiares). Quando se confere às partes mais diretamente afetadas pelo delito a oportunidade de decidir sobre o que deve ser feito em termos de reparação, respostas “personalizadas” serão a regra e as soluções-padrão (ou “blanket responses”) serão a exceção (ROSENBLATT, 2015, p. 18). Como se observa, em seus princípios, o movimento restaurativo promove uma mudança de paradigmas. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No modelo tradicional de justiça criminal, o crime é visto como um conflito entre autor e as leis do estado, localizando-se a vítima como um dado instrumental, que autoriza o poder punitivo. Nesse ambiente, o espaço é das padronizações, seja na interpretação binária dos conflitos – vítima verus réu -, seja nas respostas dadas, haja vista o intenso volume de trabalho e as metas burocráticas afastarem qualquer possibilidade de individualização. Sem dúvidas, em nosso tradicional modelo de justiça penal, o profissional vive um dia como outro qualquer, enquanto o réu ou a vítima vivenciam um dos momentos mais marcantes e angustiantes de suas vidas. Essas expectativas dificilmente se encontram.

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No presente capítulo, problematizamos, então, aquilo que referimos como justiça em linha de montagem ou de produção, na qual as repostas padronizadas e desvinculadas de necessidades específicas ou concretas são dadas por profissionais, com parca participação dos principais envolvidos no conflito penal. Esse modelo, embora apresente diversos fracassos, apresenta-se como incontornável e insubstituível. Mas é preciso questionar as suas bases e suas premissas. Como sugere o título do livro de Wachtel, “Dreaming of a New Reality” (vide nas referências), é preciso pensar seriamente em modelos que desafiem a justiça do tipo linha de montagem, a justiça penal em que os envolvidos no evento conflituoso pouco ou nada opinam, pouco ou nada participam. A justiça restaurativa pode apresentar-se como esse choque de realidade e como um passo na construção de novas alternativas. Por certo, estudos contemporâneos sobre justiça restaurativa apontam para problemas também na operacionalização desse modelo4, de modo que ele não poderá ser entendido como uma panaceia. Porém, certamente, suas premissas e princípios inserem elementos que poderão nos conduzir a, pouco a pouco, perceber-nos nessa enorme engrenagem e, quem sabe depois, sair dela. 5. REFERÊNCIAS

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