Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

May 29, 2017 | Autor: Sandra Guedes | Categoria: History, History of Medicine, Representações Sociais
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Descrição do Produto

Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes Eleide Abril Gordon Findlay

Joinville 2003

EXPEDIENTE

PRODUÇÃO EDITORIAL

Reitora Marileia Gastaldi Machado Lopes

Editora Univille

Vice-Reitor Wilmar Anderle

Coordenação geral Reny Hernandes

Pró-Reitor de Ensino Paulo Ivo Koehntopp

Revisão Viviane Rodrigues

Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Sandra Aparecida Furlan

Projeto Gráfico e Diagramação Raphael Schmitz

Pró-Reitora de Extensão e Assuntos Comunitários Therezinha Maria Novais de Oliveira Pró-Reitor de Administração Gilmar Sidnei Erzinger

Impressão Grafica Odorizzi Tiragem 500 exemplares

Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à EDITORA UNIVILLE. Campus Universitário, s/n – Caixa Postal 246 – Bom Retiro CEP 89201-972 – Joinville – SC – Brasil Telefones: (47) 461-9110 / 461-9141 – Fax: (47) 461-9027 e-mail: [email protected]

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da Univille

LISTA DE TABELAS, QUADROS, GRÁFICOS E FOTOS Tabelas 1. Fontes de recursos destinados ao Ministério da Saúde .................................... 62 2. Evolução dos gastos públicos com saúde – per capita ..................................... 63 3. Porcentagem de migrantes nas cidades de Blumenau, Florianópolis e Joinville em 1970 e 1980 ..................................................................................... 71 4. Crescimento populacional em Joinville em comparação com o Estado ........... 71 5. Unidades de atendimento e profissionais da área da saúde ........................... 110 6. Faturamento SUS X convênio ....................................................................... 166 7. Pacientes atendidos no pronto-socorro X convênio ...................................... 167 8. Pacientes internados por convênio ............................................................... 168 9. Movimentação de pacientes atendidos pelo Hospital Municipal São José de 1970 a 2001 .................................................................................... 170 10. Relação das dívidas do Hospital Municipal São José – abril/98 ..................... 172 11. Manchetes de jornais sobre o Hospital Municipal São José 1970-2000 ........................................................................................... 194 12. Ocorrência de greves no Hospital Municipal São José no período estudado ............................................................................................... 196 13. Representações sobre o São José encontradas nas entrevistas orais ............... 201 14. Perfil do entrevistado ................................................................................... 204 15. Convênio médico que o entrevistado possui ................................................. 204 16. Relação entre a escolha do hospital e o tipo de convênio que o entrevistado possui ............................................................................................ 205 17. Ocupação profissional X hospital que escolheria .......................................... 205 18. Renda familiar X convênio ........................................................................... 206 19. Nível de rejeição quanto ao hospital escolhido para internação .................... 207 20. Origem das informações que o entrevistado possui sobre as condições de serviços oferecidos pelo Hospital Municipal São José ................... 210 21. Grau de satisfação com relação ao HMSJ ..................................................... 215 22. Tabulação de questionários de alta de pacientes SUS .................................... 216 23. Qualidade dos serviços prestados no pronto-socorro do Hospital Municipal São José, segundo os usuários ........................................................... 224

Quadros 1. Marco jurídico-institucional: distribuição de atribuições do Sistema Único de Saúde, segundo os níveis de governo ........................................ 59 2. Participação da Saúde e Saneamento no orçamento geral da Prefeitura (1971-1989) ...................................................................................... 110 3. Gasto público com saúde como proporção do PIB – Brasil, 1996 ................. 119 4. Demonstrativo dos resultados das medidas de contenção de despesas .......... 122

5. Transferências efetuadas pelo Ministério da Saúde para Joinville por competência .................................................................................. 6. Transferências efetuadas pelo Ministério da Saúde para Joinville por competência – atenção básica ............................................................................. 7. Totais das transferências efetuadas pelo Ministério da Saúde para Joinville ..................................................................................................... 8. Composição dos recursos da Secretaria Municipal de Saúde ......................... 9. Aplicações dos recursos do Fundo Municipal de Saúde ................................ 10. Aplicações dos recursos da Secretaria Municipal de Saúde ............................ 11. Relação entre partidos de dirigentes municipais e estaduais de 1967 a 2002 .................................................................................................. 12. Questionário de alta – Unidade privativa – Resumo 2000 ............................

127 127 127 129 129 130 175 219

Gráficos 1. Preferência de internação X renda ................................................................ 206 2. Se a única opção fosse um hospital público, qual a preferência do joinvilense? ................................................................................. 207 3. Preferência do entrevistado quanto ao hospital a ser utilizado para o serviço de emergência médica (pronto-socorro) .............................................. 208 4. Sobre a qualidade do Hospital São José, qual das unidades é responsável pela formação da opinião do entrevistado? ..................................... 209

Fotos 1. Novo Hospital Municipal São José – 1970 .................................................... 136 2. HMSJ, o único da cidade a atender pelo INAMPS ......................................... 144 3. Prédio do primeiro pronto-socorro do HMSJ ................................................ 145 4. Greve de funcionários no HMSJ na década de 1980 ...................................... 147 5. Pronto-socorro após ampliação de 1992 ........................................................ 160 6 e 7. Centro de Ensino e Pesquisa ..................................................................... 164 8 e 9. Áreas antigas do HMSJ tombadas pelo IPHAN, antes da restauração ...... 173 10. Solenidade de inauguração do 1.° andar após reformas resultantes da Campanha de Adoção de Quartos ................................................ 189 11. Inauguração do prédio da oncologia, construído com recursos da Campanha Mc Dia Feliz ..................................................................................... 189 12. Quarto coletivo da pediatria, com cadeiras plásticas para acompanhantes .......................................................................................... 214 13. Antiga ala B ................................................................................................. 217 14. Ala privativa, segundo andar, em fins da década de 1990 ............................. 217 15 e 16. Pronto-socorro do HMSJ – Sala de observação .................................... 222 17. Pacientes aguardando atendimento no PS do HMSJ .................................... 226 Crédito das fotos: Acervo do Hospital Municipal São José

SUMÁRIO

PREFÁCIO .............................................................................................. 7 INTRODUÇÃO ..................................................................................... 9 1 O BRASIL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE ......................... 18 Do “milagre” ao ajuste econômico .......................................................... 18 O Estado do Bem-Estar brasileiro ........................................................... 28 A saúde como questão social ................................................................... 45 2 A “DESCARACTERIZAÇÃO” DA CIDADE ...................................... 69 3 O CONTEXTO DA SAÚDE EM JOINVILLE .................................. 103 4 O HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ ............................................ 135 5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE O HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ ........................................................................ 179 A mídia e a construção do imaginário ................................................... 179 O “olhar” da rua para o hospital ........................................................... 203 Mesmo sendo SUS poderia ser melhor .................................................. 212 A “cultura” do pronto-socorro .............................................................. 220 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 227 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................... 231

PREFÁCIO

HOSPITAL PÚBLICO É ASSIM MESMO! A expressão soa como clichê ou, pior, como retrato do conformismo da parcela mais carente da população com uma situação que, aparentemente, não pode nem vai se modificar a curto prazo. Nesse caso específico, a frase é o resumo de um longo e detalhado trabalho de pesquisa. Ao descrever o que ocorre no Hospital Municipal São José de Joinville, em Santa Catarina, as autoras mostram uma infinidade de problemas que não são só desse hospital, dessa cidade ou mesmo desse Estado. São problemas nacionais. As autoras analisam o que ocorre em muitas cidades brasileiras, em diversos hospitais, em imensas filas ampliadas pela aparente pouca solidariedade de funcionários com reações automáticas e que também muitas vezes respondem usando o jargão “hospital público é assim mesmo”, como se a situação fosse inalterável, como se os problemas fossem insolúveis, como se a confusão fosse institucionalizada e parte imutável da cultura brasileira. Filas para receber socorro em hospital público seriam, assim, tão comuns, tão corriqueiras, tão nacionais quanto o samba, a praia, o sol e o cafezinho. Então, como modificá-las? Apesar de, nas últimas décadas, os indicadores de saúde no Brasil apontarem uma melhoria sensível nos padrões de saúde da população e um aumento na expectativa de vida, o acesso à saúde ainda reflete o poço de desigualdade entre os brasileiros, supostamente iguais, mas economicamente ainda tão diversos. Dados do Ministério da Saúde mostram diferentes e díspares universos no perfil da saúde brasileira. Numa ponta, temos atendimento padrão e comparável ao de países do primeiro mundo; na outra, onde se encontram as filas imensas de alguns hospitais públicos, uma realidade só vista nas nações mais pobres do continente africano. A constatação da diferença, esclareço, não é minha, e sim de uma ampla pesquisa reproduzida no trabalho Sistema único de saúde: o desafio de construir e garantir a cidadania. In: Observatório da cidadania. Site do IBASE, na Internet. Encarar de frente esse verdadeiro fosso é um desafio que deve ser enfrentado pelo Estado e pela sociedade e não pode mais ser adiado. Para 7

modificar a constatação conformista e conformada de que HOSPITAL PÚBLICO É ASSIM MESMO – com tudo o que a frase tem de ruim –, há um longo caminho a percorrer. Eu entendo que o maior obstáculo foi superado: o governo já não se conforma mais em erguer os ombros numa expressão de muxoxo e repetir essa velha ladainha. Assim, as discussões trazidas neste livro sobre as políticas públicas de saúde, a importância dos hospitais públicos no Brasil e, principalmente, as representações sociais que se fazem sobre eles e sobre a saúde pública como um todo devem merecer uma atenção especial do leitor. O país não pode mais conviver com a situação de conformismo da população que usa e depende do sistema público de saúde relatada na obra. Afinal, nossa Constituição garante o acesso à saúde, independentemente da situação financeira do paciente. Sem isso, não há cidadania. O Sistema Único de Saúde (SUS), grande conquista da sociedade como instrumento de inclusão social e promoção da cidadania, só poderá exercer esse papel na sua plenitude quando apoiado por ações de políticas públicas que privilegiem a prevenção de doenças, especialmente as facilmente evitáveis. Assim, serão desafogados os hospitais públicos que hoje não conseguem realizar suas atividades integralmente pelo excesso de demanda. Entender que o cidadão tem direito a uma unidade de saúde com infra-estrutura, recursos humanos e materiais que possibilitem um atendimento humano, decente e adequado é de responsabilidade das autoridades governamentais, dos profissionais envolvidos e da própria população. As conclusões apresentadas pelas autoras devem ser encaradas como mais um instrumento de apoio a todos aqueles que têm como objetivo a prevenção, promoção e recuperação da saúde da população. E, principalmente, para que consigamos um dia dizer com orgulho, como quem mostra um trabalho concluído e bem-feito, que HOSPITAL PÚBLICO É BOM, EFICIENTE E BEM EQUIPADO. ASSIM MESMO!!! Humberto Costa Ministro da Saúde Junho/2003

INTRODUÇÃO

Analisar historicamente os últimos trinta anos significa fazer o que se convencionou chamar de história do presente e correr, por isso mesmo, os riscos que a proximidade temporal pode ocasionar à interpretação historiográfica. Esse tipo de história não é novo, já que no final da década de 1970 os franceses inauguravam o Institut d’Histoire du Temps Présent, mostrando que a análise da história recente ou do presente se faz cada vez mais urgente, tendo-se em vista não só a amplitude e diversidade da documentação que se produz diariamente, principalmente por meio da mídia e da informatização, mas também devido à ansiedade de conhecimento e compreensão que as gerações deste mundo que se tornou globalizado sentem.1 Se a proximidade pode ser uma dificuldade na medida em que o historiador é também ator dos acontecimentos que narra, ao mesmo tempo ela possibilita uma gama bastante grande de documentos orais, escritos e audiovisuais, além de contar com a própria vivência do historiador como ajuda nas interpretações. Essa maior proximidade do historiador com o seu campo de estudos não inviabiliza, no entanto, o rigor metodológico necessário para a análise de qualquer época histórica. As representações que se formaram a respeito do Hospital Municipal São José de Joinville nos últimos trinta anos são o ponto-chave deste trabalho. O estudo das representações sociais originou-se da necessidade de compreender melhor o imaginário coletivo, que nada mais é do que o “conjunto das representações” que uma dada sociedade, uma cultura ou até mesmo um determinado grupo social fazem de um certo campo do real. Isso significa dizer que o imaginário é variável, e em diferentes sociedades podem-se encontrar diferentes imaginários relacionados a diferentes campos da experiência humana como, por exemplo, a morte, a doença ou a saúde. Também variáveis são as definições que têm sido dadas ao conceito de imaginário e representações. Dessa forma, procuramos enfatizar os pontos em que a maioria dos autores concorda e que nos pareceram ser suficientes para comprovar nosso posicionamento teórico. 1

CHAUVEAU, Agnès; TÉTART, Philippe. Questões para a história do presente. Bauru: EDUSC, 1999.

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Se o imaginário surgiu, num primeiro momento, ligado à história das mentalidades e, conseqüentemente, à longa duração, atualmente ele adquire novas características, por meio de análises de períodos mais curtos e de novas problemáticas sociais. As novas sociedades industriais, as estruturas familiares ou comunitárias e a própria globalização passam a merecer atenção dos historiadores, que se aliam à antropologia, à sociologia, à psicologia ou a outras ciências em abordagens interdisciplinares. Evelyne Patlagean, ao fazer uma análise da historiografia da década de 1980 relativa ao assunto, dizia que, embora a maioria dos trabalhos contemporâneos sobre o imaginário coletivo, na França, ainda estivesse ligada às sociedades rurais, essa limitação [...] vive seus derradeiros momentos e podemos esperar um esclarecimento enriquecedor da problemática voltada para as novas sociedades nascidas da urbanização industrial e para o desenvolvimento da mídia [e que] os estudos culturais que dela [já] foram feitos por um Edgar Morin [Le cinéma, ou l´homme imaginaire]ou um Roland Barthes 2 [Mythologies] assumem o valor de uma história para o futuro.

E realmente foi isso que aconteceu. Os estudos sobre o imaginário e, especialmente, sobre as representações sociais expandiram-se e hoje são um dos principais campos de interesse daqueles que se dedicam à chamada nova história cultural. Contudo, por sua abrangência, o conceito de representações requer uma análise interdisciplinar. Assim, recorremos à semiótica para uma melhor explicitação. O mundo das imagens se divide em dois domínios. O primeiro é o domínio das imagens como representações visuais: desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas, televisivas (...). Imagens, nesse sentido, são objetos materiais, signos que representam o nosso meio ambiente visual. O segundo é o domínio imaterial das imagens da nossa mente. Neste domínio, imagens aparecem como visões, fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como representações mentais. Ambos os domínios da imagem não existem separados, pois estão inextricavelmente ligados já na sua gênese. Não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que não há imagens mentais 3 que não tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais. 2

PATLAGEAN, Evelyne. A história do imaginário. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 308. 3

SANTAELLA, Lucia; NÖTH, WINFRIED. Imagem. Cognição, semiótica, mídia. 2.ed. São Paulo: Iluminuras, 1999. p. 15.

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Esses dois conceitos são unificados pelos de signo ou representação e são identificados por Sandra Pesavento 4 como as três dimensões das representações, ou seja, a realidade ou mundo concreto, a ilusão do espírito, ou os signos representativos do nosso ambiente visual, e a utopia, ou a imaginação fantástica, como colocado por Santaella. Segundo Santaella e Nöth, a relação entre o símbolo e seu objeto se dá através de uma mediação, normalmente uma associação de idéias que opera de modo a fazer com que o símbolo seja interpretado como se referindo àquele objeto. Essa associação de idéias é um hábito ou lei adquirida que fará com que o 5 símbolo seja tomado como representativo de algo diferente dele.

A íntima relação entre a construção das imagens, símbolos e representações com a psicologia faz com que grande parte dos teóricos das representações esteja ligada a essa área. Gilbert Durand6 é um deles. Para Durand, as representações simbólicas do real podem ser manifestadas através da linguagem, da narrativa, campo em que, para ele, também se insere a história. Para fazer essa afirmação, Durand segue as posições de Paul Veyne7 e Hyden White8, que definem a história como narrativas construídas pelos historiadores. Nesse sentido, entendendo a narração como forma de linguagem e esta, por sua vez, onipresente em todas as ciências humanas, Ciro Flamarion Cardoso, apesar de bastante cauteloso com relação à utilização indiscriminada que se vem fazendo do conceito, considera o de representações não apenas “inter”, mas “transdisciplinar” e evidencia sua importância para a explicação histórica. Percebemos que o problema das representações sociais, porque indefectivelmente permeado pelo problema da linguagem (e, agora já podemos dizer, dos símbolos e das imagens), deixa de ser exclusivo desta ou daquela disciplina para tornar-se geral nas ciências humanas. Quero chamar a atenção para um aspecto que repõe a história como uma chave importante na equação correta do problema, e que é justamente o caráter social e histórico, processual, da linguagem e do 9 conhecimento (essas dimensões não devem mais ser separadas). 4

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. In: Revista Brasileira de História. Representações. São Paulo, v. 15, n. 29, p. 9-27, 1995.

5 6

Ibid., p. 63.

Gilbert Durand possui diversas obras ligadas ao tema, dentre elas destaca-se DURAND, Gilbert. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, [1998].

7 8 9

VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Lisboa: Edições 70, [1987]. WHITE, Hyden. Meta-História. A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1992.

CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações. Contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. p. 276.

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Sandra Pesavento já salientava em seu texto de 1995 essa ligação da história com a linguagem, e, como a linguagem é sempre representação, o historiador interpreta o já interpretado, ou seja, “imagens e discursos sobre o real [e] não exatamente o real”. Assim, o imaginário, por trabalhar necessariamente com a linguagem, “é sempre representação e não existe sem interpretação.”10 Sobre a necessidade de interpretação, Orlandi afirma que “o homem não pode [...] evitar a interpretação, ou ser indiferente a ela. Mesmo que ele nem perceba que está interpretando – e como está interpretando – é esse um trabalho contínuo na sua relação com o simbólico.”11 Todos os autores concordam que a maior dificuldade ao se trabalhar com representações está no método, já que as representações de uma sociedade e de uma época formam um sistema, por sua vez articulado com todos os outros [...] Trata-se de reconhecer a importância do imaginário no deslizamento contínuo desses sistemas 12 uns sobre os outros, o qual poderia ser a definição estrutural da história.

Se para períodos históricos mais remotos pode-se encontrar uma certa homogeneidade de pensamento sobre determinados aspectos da realidade, o mesmo não se pode dizer quando tratamos da história do tempo presente. A agilidade, a abrangência e a diversidade dos meios de comunicação de massa, a manipulação política das informações e, ainda, as características peculiares de cada grupo social como educação ou renda acabam influindo decisivamente na formação de diferentes representações do real. Chartier acrescenta, ainda, que as representações do mundo social “são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam” e que “as lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo se impõe ou tenta se impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus, e do seu domínio.”13 Para ele as representações que os diferentes grupos fazem de si mesmos e da realidade contribuem para a formação e legitimação de sua própria identidade social, interferindo diretamente em suas práticas ou ações na sociedade. 10 11

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit., p. 15.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 10. 12 13

Ibid., p. 310. Grifo do autor.

CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1988. p. 17. Deve-se registrar que Ciro F. Cardoso, em obra citada, faz críticas às colocações de Chartier, não pelo seu conteúdo, mas por não serem, na realidade, originalmente suas, mas principalmente de Bourdieu e Norbert Elias, tendo este publicado sua obra pela primeira vez em 1939. Ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, [1989] e ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. 2 vs.

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“O imaginário social é uma das forças reguladoras da vida coletiva, normatizando condutas e pautando perfis adequados ao sistema.”14 É na psicologia social, no entanto, que a noção de representações encontra o seu campo mais fértil. Tendo como principal parâmetro teórico as obras de Serge Moscovici15, que introduziu a noção de representações na psicologia social, a brasileira Sandra Jovchelovitch enfatiza a importância da mídia na formação e difusão das representações, ao mesmo tempo em que afirma que “as representações sociais são um fenômeno radicado na esfera pública” e por isso mesmo “são mais do que um agregado de representações individuais.”16 Assim, as representações se constroem a partir de diferentes experiências e ultrapassam a individualidade, podendo ser encontradas de diferentes maneiras em diferentes grupos sociais. Analisando as diversas posturas apresentadas relativamente à noção de representação e com base nas pesquisas desenvolvidas, tomamos o conceito de representação como a imagem simbólica que se faz do real a partir de experiências de vida, da realidade próxima e de informações obtidas, principalmente, da mídia e de discursos promovidos por grupos de pessoas que possuam algum interesse em divulgar ou preservar um determinado tipo de visão ou representação sobre um dado real. Concordando com Sandra Jovchelovitch, Chartier, Pesavento, Cardoso e tantos outros, diferentes representações sobre o mesmo campo do real são formadas por diferentes grupos sociais que possuem afinidades entre si, e essas representações transformam-se, freqüentemente, em ações. Essas ações, no que se refere à saúde pública, por exemplo, refletemse muitas vezes em problemas sociais que poderiam ser evitados se, ao contrário, o conhecimento das representações sociais fosse utilizado para o aprimoramento das políticas públicas de saúde. Conforme Denize Cristina de Oliveira, as ações sociais, baseadas nas representações, e que, segundo ela, podem ser entendidas como de “senso comum”, diferentemente do conhecimento científico que se espera encontrar nas instituições de saúde, deveriam ser aproveitadas para o aprimoramento destas. Assim, as instituições de saúde 14 15

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit., p. 23.

Dentre as várias obras de Moscovici citadas por Jovchelovitch, destacam-se: MOSCOVICI, S. The phenomenon of social representations. In: FARR, R. M.; MOSCOVICI, S. (eds.). Social representations. Cambridge: Cambridge University press, 1984 e MOSCOVICI, S. Des representations collectives aux representations socials: elements pour une histoire. In: JODELET, D. (ed). Les representations sociales. Paris: Press Universitaires de France, 1989. 16

JOVCHELOVITCH, Sandra. Representações sociais e esfera pública. A construção simbólica dos espaços públicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 78-9. Para as discussões relativas à interferência da mídia nas representações, utilizamos também a obra de KIENTZ, Albert. Comunicação de massa. Análise de conteúdo. Rio de Janeiro: Eldorado, 1973. (Coleção Médium).

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concebidas como capazes de estabelecer relações dialéticas com os usuários [estariam] rompendo a tradição de um saber hegemônico no campo da saúde e reconhecendo a existência de uma forma particular 17 de saber que se coloca no plano do senso comum.

Dessa forma, os estudos que envolvem o uso da teoria de representação social podem ser úteis “para a compreensão do conhecimento coletivo no campo da saúde e para a instrumentalização dos grupos sociais para a tomada de decisão, faceta característica do campo de atuação da saúde coletiva”18. É dentro dessa perspectiva e das concepções de representação social discutidas que podemos lançar nossas hipóteses sobre as representações que se fazem sobre os hospitais públicos no Brasil, utilizando como parâmetro o Hospital Municipal São José, que se tornou, através dos tempos, o símbolo máximo da saúde pública em toda a região norte do Estado de Santa Catarina. Instituição centenária, ele é hoje o único hospital dessa região a ser credenciado pelo SUS para atender diversos serviços especializados, tais como o de oncologia, neurocirurgia, cirurgia torácica, transplantes de córnea, tratamento de queimados, medicina nuclear e cirurgia ambulatorial, entre outros. Em vários desses setores, dá cobertura a todo o Estado, atendendo normalmente pacientes da microrregião de Joinville, composta pelos municípios de Araquari, Barra Velha, Corupá, Garuva, Guaramirim, Jaraguá do Sul e São Francisco do Sul, além de Joinville. Desde sua origem, em 1852, o São José tem se destinado ao atendimento de doentes carentes, já que fora criado como instituição de caridade, e a partir da inauguração de um novo prédio em 1906, onde está até hoje, foi administrado por Irmãs da Divina Providência, uma congregação filantrópica de religiosas alemãs que já estavam atuando em outras partes do Estado de Santa Catarina. A presença de irmãs de caridade no Hospital São José lhe forjou uma imagem de instituição própria ao atendimento de pessoas carentes. Além disso, sabe-se que as pessoas de maior poder aquisitivo eram tratadas em casa, pelos médicos de família, deixando ao hospital apenas o tratamento de doenças crônicas ou terminais, fator que também colaborou para a modelagem de sua imagem perante a sociedade. Essa realidade começa a se modificar por volta da década de 1950, em função da maior ênfase às especializações propostas pelas novas diretrizes da ciência médica, que obriga 17

OLIVEIRA, Denize Cristina de. Representações sociais e saúde pública: a subjetividade como partícipe do cotidiano em saúde. In: Revista de Ciências Humanas. Florianópolis: EFUFSC, Edição especial temática, p. 58, 2000. 18

Ibid., p. 59.

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o doente a procurar auxílio em mais de um profissional para a solução da maioria de seus problemas de saúde. A necessidade de profissionais especializados se estendeu igualmente aos hospitais, obrigando a contratação de, por exemplo, radiologistas, enfermeiros, anestesistas e administradores hospitalares, funções inicialmente desempenhadas, no caso do São José, pelas irmãs de caridade. A saída definitiva da última irmã da instituição, em 1980, está ligada não só à profissionalização da medicina, mas também à política nacional de saúde. Acresce-se a essa realidade o fato de o crescimento industrial e a classe trabalhadora terem impulsionado uma nova política nacional de saúde a partir de 1966, com a criação inicialmente do INPS, depois do Ministério da Previdência Social (1974) e do Sistema Nacional de Saúde por intermédio do INAMPS (1975), que forçaram uma radical modificação no gerenciamento das instituições hospitalares em todo o país, já que aquela classe social passa a ter direito à saúde pública. Esse novo modelo estava calcado na concepção tecnoburocrática já adotada pelo governo militar desde 196419 e passa a afetar diretamente o Hospital Municipal São José. A deterioração do sistema público nacional de saúde é uma realidade que fica cada vez mais evidente com o crescimento populacional aliado à urbanização das cidades. Este exige um proporcional avanço nas estruturas físicas e administrativas das instituições de saúde pública e nas práticas médicas, e estas tiveram de conviver com novas e velhas demandas sociais. A cidade de Joinville, a partir da década de 1970, sofre uma grande modificação em seu quadro social com a entrada de um crescente número de migrantes atraídos pelo avanço industrial. Dessa forma, os usuários do Hospital Municipal São José de Joinville também se transformam. Não são apenas os joinvilenses natos, apresentados no contexto de Instituição e sociedade20, são também migrantes, na sua maioria dependentes do serviço público de saúde e que também tiveram de se adaptar à nova realidade traçada pela burocratização das instituições. Se antes a relação médico–paciente se fazia por intermédio do médico de família ou de instituições de caridade, agora este passa a ser um número de inscrição em um dos vários institutos de previdência criados para dar conta da imensa diversidade social existente no país. Estudar essa nova relação instituição hospitalar–sociedade, nesse momento histórico, perpassa, portanto, por uma análise conjuntural que extrapola os limites da cidade e que se torna nacional. 19

FALEIROS, Vicente de Paula. A política social do estado capitalista. 8.ed. São Paulo: Cortez, 2000.

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GUEDES, Sandra P. L. de Camargo. Instituição e sociedade. A trajetória do Hospital Municipal São José de Joinville – 1852-1971. Joinville: Movimento & Arte, 1996.

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Essa situação nos permite utilizar a instituição como um parâmetro de estudo que identifique a realidade hospitalar do país nos últimos anos e a conseqüente deterioração do sistema público de saúde. A periodização escolhida, de 1970 aos dias atuais, está ligada, portanto, à análise da política nacional de saúde e às significativas mudanças que a cidade de Joinville sofreu no mesmo período. Dessa forma, os estudos sobre as representações que uma sociedade faz sobre uma instituição que, teoricamente, detém o poder entre a vida e a morte e da qual ela depende implica, a nosso ver, no entendimento de toda essa gama de relações políticas, econômicas e sociais que extravasam os limites da própria cidade e influem, direta ou indiretamente, nessas mesmas representações. Essa necessidade foi também evidenciada por Castoriades; para ele, é incompleta tanto a visão moderna da instituição, que a considera funcional, como a mais recente, que só vê o simbólico na instituição. [...] existe, certamente, uma função do imaginário da instituição, embora ainda aqui constatemos que o efeito do imaginário ultrapasse sua função; não é “fator último” (aliás não o procuramos) – mas, sem ele, a determinação do simbólico como a do funcional, a especificidade e a unidade do primeiro, a orientação e a finalidade do segundo 21 permanecem incompletas e finalmente incompreensíveis.

Assim, para entendermos as representações que se fazem sobre uma instituição pública de saúde, além de estudos sobre a realidade local e nacional, social, política e econômica, necessita-se de uma compreensão sobre a estrutura do próprio Sistema Nacional de Saúde e das políticas públicas de saúde. Não seria possível compreender aquelas representações sem que entendêssemos quais as condições reais que apoiavam sua existência. Trata-se, sem dúvida, de uma abordagem interdisciplinar. Para dar conta da complexidade de assuntos, utilizamos uma variedade bastante grande de documentos, quais sejam: jornais, relatórios de Prefeitos, relatórios do próprio hospital, atas do Conselho Municipal de Saúde, entrevistas orais não estruturadas, pesquisas de campo com entrevistas estruturadas aplicadas a mais de 400 pessoas, questionários de alta do hospital, dados estatísticos do IBGE, do IPPUJ e do próprio Hospital Municipal São José, sites do Ministério da Saúde, coleção de fotos do hospital, várias estatísticas dele, além de extensa bibliografia citada no final deste livro. Para um melhor tratamento e aprofundamento dos assuntos em discussão, dividimos a obra em cinco capítulos. O primeiro aborda a conjuntura da saúde pública, como resultado das políticas públicas de saúde em âmbito 21

CASTORIADES, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 159. Grifo do autor.

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nacional, a fim de se compreender que muitos dos acontecimentos que envolveram o Hospital Municipal São José estiveram ligados a determinações mais amplas. O segundo capítulo contextualiza o leitor na realidade histórica de Joinville e nas mudanças ocorridas na cidade no período em que recebeu o maior contingente de migrantes de sua história, dando possibilidade de entender o que se coloca no terceiro capítulo, em que as características próprias da cidade com relação à saúde pública são enfocadas. O quarto capítulo trata especificamente do Hospital Municipal São José no contexto de fim de século e início de um novo, demonstrando como o atendimento ali realizado é influenciado pelo sistema público de saúde – SUS – e pela realidade local. O último capítulo aborda em quatro subitens as representações sociais encontradas em Joinville sobre a saúde e o hospital público, discussão esta somente possível tendo-se em vista o contexto dos capítulos anteriores. A complexidade da análise aqui apresentada nos permite afirmar que o conjunto das representações sociais encontradas nos leva a acreditar que o imaginário formado sobre o assunto em questão é o de que “hospital público é assim mesmo”, ou seja: cheio de problemas, direcionado aos pobres e, no caso específico do Hospital Municipal São José, local onde, mesmo com todos os entraves existentes, o paciente tem a certeza de que será atendido. Os resultados aqui apresentados só foram possíveis graças ao apoio da UNIVILLE, sem a qual não teríamos executado este trabalho de pesquisa, que consumiu quase três anos entre coleta de dados, análise e escritura do texto final. Para a fase de pesquisa contamos, ainda, com a preciosa colaboração do Hospital Municipal São José, que abriu seus arquivos sem nenhuma restrição ou imposição no direcionamento da análise a ser publicada, independentemente de quem estava na direção executiva daquela instituição durante o período da pesquisa. A algumas pessoas do hospital gostaríamos de fazer um agradecimento especial: Celso Pereira, Clóvis Hoepfner, José Francisco Payão, Laura Palludo, Lucimara Bento Pacheco, Luíza Jordan e Verônica Fugazza Linhares. Também foram fundamentais as informações e documentações obtidas na Secretaria Municipal de Saúde e do Conselho Municipal de Saúde, cujo acesso nos foi facilitado por Marli Rodhen Wesling e Jorge Luiz Buerger. Gostaríamos, ainda, de agradecer a Silvio Leandro da Silva, que foi nosso estagiário, a todas as pessoas que nos cederam entrevistas orais, identificadas nas fontes documentais, e a todas aquelas mais de 1.000 pessoas que responderam aos formulários de pesquisa aplicados em várias partes da cidade, aos questionários de alta e aos formulários aplicados no pronto-socorro do Hospital Municipal São José. A todos o nosso agradecimento.

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1 O BRASIL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE

Ao estudar o hospital público no Brasil, deve-se ter em mente que a questão da área da saúde, da assistência médica, no âmbito coletivo, público e social, em sua articulação sociedade e Estado, tem se construído historicamente com base nos diferentes movimentos relacionados às respostas sociais para os problemas de saúde. Considera-se que foi a partir do estabelecimento da sociedade de mercado que a reprodução da classe trabalhadora passou a ser compreendida como um processo político e social, buscando-se nas soluções para o campo da saúde individual a cura dos males sociais, criando-se as bases para o estabelecimento das determinantes da saúde. Nessa perspectiva torna-se impossível dissociar saúde de Estado e de mercado, da mesma forma que as políticas sociais têm sido conduzidas e determinadas pelo Estado como uma forma de ação política dele próprio ou como uma resposta às pressões geradas por grupos organizados. Para proceder a uma análise das transformações ocorridas no período de 1970 a 2000, no papel do Estado e da sociedade, dos sistemas de proteção e promoção social e do sistema público de saúde, este capítulo se iniciará com a apresentação de uma síntese das principais modificações ocorridas na sociedade brasileira nos últimos trinta anos que tenham sido decisivas para a manutenção e funcionamento do sistema de proteção social. A seguir faremos uma análise das políticas implementadas pelo Estado na busca do estabelecimento de um sistema de seguro social e posteriormente da seguridade social, e, finalmente, das medidas tomadas especificamente na área da assistência médica.

Do “milagre” ao ajuste econômico Pensar o país em um período em que tantas e tão grandes transformações ocorreram é realmente realizar uma viagem pela ditadura, pelo “milagre econômico”, crise do petróleo, abertura lenta e gradual, industrialização, urbanização, campanha pelas diretas, anistia, eleições presidenciais, inflação, impeachment, constituinte, globalização. 18

O Brasil, em 1970, já deslanchava rumo ao seu papel de destaque entre as economias industrializadas do mundo ocidental, pois contava com um diversificado setor produtivo, notadamente o industrial, principalmente com a chegada maciça do capital externo, via empresas multinacionais. Os processos de industrialização e urbanização permitiram uma integração regional em busca de sustentação ao novo discurso desenvolvimentista, que abandonara a tradição brasileira do nacionaldesenvolvimentismo. A grande característica dos governos, a partir de 1964, foi o desenvolvimento associado, que visava à aceleração da acumulação capitalista, pelo incremento dos ramos mais rentáveis, entre eles o de consumo durável, momento em que ocorreu de forma mais explícita uma associação do capital nacional com o estrangeiro. A expansão da indústria produziu, além de um mercado consumidor, um contingente de trabalhadores urbanos, uma classe diversificada profissionalmente e com necessidades diferenciadas das políticas sociais produzidas pelos governantes. No início da década de 70 o país passava por uma expansão econômica que foi denominada de “milagre econômico”, devido ao crescimento ostentado pelo país. De 1969 a 1973 o PIB cresceu a uma média anual de 11% (chegando a 13% em 1973), além de haver baixos índices de inflação (18% ao ano). Em 1973 a crise do petróleo, que fez o preço do barril quadruplicar, impôs ao mundo um alto índice de desemprego, uma elevada inflação e enormes desequilíbrios nos balanços de contas-correntes. Houve uma febre de investimentos, grandes obras (muitas delas faraônicas e desnecessárias) e muito dinheiro vindo do exterior com juros baixos. [...] Logo o processo de crescimento se revelaria mais terreno do que “milagroso”. Com a crise do petróleo, iniciada em 1974, e a conseqüente retração do capitalismo internacional, o “milagre” mostrou sua face mais real: o que ocorreu no Brasil durante o governo Médici foi um brutal processo de concentração de renda e o crescimento desmedido da dívida externa e do fosso social que separava ricos e 1 pobres. O país ia bem, e o povo, de mal a pior.

Estava terminado o milagre econômico, que teve como causas essenciais, de um lado, um boom de investimentos em setores onde a chamada “fronteira tecnológica” oferecia imensas oportunidades de aumento de produtividade do trabalho; de outro, uma classe trabalhadora incapaz de barganhar o valor de seu trabalho, submetida ao arrocho salarial. 1

OS ANOS de chumbo. In: História do Brasil. São Paulo: PubliFolha, 1997. p. 259.

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Nesse período, a economia brasileira desacelerou seu ritmo de crescimento, que não foi “lento nem gradual”. Apesar da profundidade da crise externa, a administração do Presidente Geisel, empossado em 1974, ignorando os sintomas da crise e a perda do dinamismo interno, elaborou um plano de desenvolvimento (II PND) que pretendia alcançar conjuntamente o equilíbrio da estrutura industrial, o fortalecimento da empresa nacional e a reversão das disparidades regionais e sociais. Uma “ilha de prosperidade” em meio à tormenta. Com Geisel o Brasil tenta crescer na contramão da recessão mundial. [...] em 1974, o PIB aumentou quase 10% – menos do que a média do “milagre” dos anos anteriores, mas muito mais do que seus parceiros comerciais, a maioria a caminho da recessão. A expansão resultava do plano econômico de Geisel, que projetava rápida industrialização baseada na substituição de importações. Em vez de privilegiar a produção de artigos de consumo, o governo investiu na indústria de insumos básicos: aço, fertilizantes, produtos petroquímicos, entre outros. Com a auto-suficiência prevista, o país seria alçado à condição de potência emergente, tirando o pé do Terceiro Mundo. A ambição não apenas se materializou, como agravou dois problemas que ameaçariam o Brasil 2 na década seguinte: a inflação e a dívida externa.

Quando em meados de 1976 o agravamento da inflação e o desequilíbrio externo colocaram por terra os planos do II PND, a responsável pelo fracasso da economia brasileira foi a crise internacional, que só então foi detectada. Como resultado da crise a economia brasileira passou a se defrontar com uma inflação de três dígitos, aumentos dos custos externos, déficits das contas externas, retração dos investimentos, queda da demanda. Enquanto no plano econômico o Brasil passava do milagre para a recessão, no político o objetivo de Geisel quando assumiu a Presidência era levar a cabo uma distensão do regime militar que fosse, ao mesmo tempo, lenta, gradual e segura. Essa intenção defrontou-se com a recusa dos segmentos da linha dura do governo que procuraram impedir o processo, por intermédio de uma série de atentados, repressão, tortura e morte dos opositores do governo, o que levou este a destituir o comandante do II Exército. No entendimento do governo a distensão não poderia se afastar da concepção “gradualista” e, portanto, as rédeas do projeto seriam manejadas pelas mãos do governo. Dentro dessa lógica justifica-se a atitude que 2

PILAGALLO, Oscar. O Brasil em sobressalto. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 137-8.

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surpreendeu o país, a promulgação do Pacote de Abril, que realizou uma profunda mudança nos dispositivos que regulavam a política eleitoral brasileira, ao tornar indireta a eleição de Presidente e Governadores e ao criar a figura do chamado “senador biônico”, eleito pelo voto indireto. A preocupação do governo era com uma possível vitória nas eleições de 1978 da oposição, MDB, que em 1974 conseguira a vitória em grandes concentrações urbanas. Os argumentos e as chances da oposição foram reforçados pela crise econômica, a mesma crise que fez ressurgir as greves no ABC paulista. O debate sobre a situação econômica, o reaparecimento do movimento sindical, a luta pela reposição salarial, o aumento da desigualdade social tornaram-se matérias constantes nos principais meios de comunicação, já como resultado da liberação da censura, que realmente só foi abolida no fim do governo Geisel. A má distribuição da renda chegou a ser criticada em 1972 pelo presidente do Banco Mundial, Robert McNamara. Segundo ele, o país estaria negligenciando o bem-estar dos pobres em seu processo de crescimento. A observação procedia porque, de fato, a desigualdade se acentuou com a maior concentração de renda. Mas isso não significava que muitos trabalhadores também não tivessem se beneficiado no período. Durante o “milagre”, o país viveu uma época de pleno emprego. Por mais que os sindicatos estivessem amordaçados, o aquecimento da economia se refletia nos salários dos trabalhadores 3 mais competitivos, como o automotivo.

A censura à imprensa, a lei de segurança nacional e os Atos Institucionais mergulharam o movimento sindical em um profundo silêncio, impedindo dessa forma que a classe trabalhadora se manifestasse publicamente em relação à política de arrocho salarial praticada pelo governo federal, que implicou em enormes perdas aos trabalhadores. O Presidente Figueiredo, ao assumir a Presidência por preferência e escolha de seu antecessor, reafirmou o compromisso de Geisel com a abertura política e a sua intenção de “fazer deste país uma democracia”. A crise econômica enfrentada pelo governo Figueiredo foi impulsionada por um segundo choque do petróleo (1979), que elevou o preço do barril a US$ 26, dez vezes mais do que no início da década, fato que aumentou extraordinariamente a dívida externa. 3

PILAGALLO, Oscar. Op. cit., p. 132.

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O mundo industrializado se viu pressionado pela inflação, como decorrência do aumento do petróleo. Buscando debelar a espiral inflacionária, alguns países, notadamente os Estados Unidos, implementaram uma política antiinflacionária pelo receituário ortodoxo, qual seja, o aumento dos juros. O sucesso da política de combate à inflação adotada pelos Estados Unidos provocou internamente uma recessão e, como conseqüência externa, um abalo na economia mundial. O cenário externo era totalmente desfavorável ao Brasil: o petróleo desequilibrava a balança comercial, os juros faziam a dívida externa disparar, a recessão mundial provocava a queda dos preços das matériasprimas que o país exportava e os credores, alarmados com a perspectiva 4 de falta de pagamento, seguravam as linhas de financiamento.

O Ministro do Planejamento Mário Henrique Simonsen adotou o mesmo receituário americano para combater a situação da economia nacional, ou seja, a política de juros altos. Diante da reação dos setores empresariais o presidente substituiu Simonsen por Delfim Netto, que assumiu o ministério com uma proposta de promover o crescimento do país com a inflação sob controle. As medidas adotadas pelas autoridades governamentais não impediram que em 1983 o PIB recuasse mais de 4% e a inflação ultrapassasse os 200%, iniciando um período que identificou os anos 80 como os da “década perdida”. No final da década de 70 o movimento sindical ressurge com toda a força, notadamente em São Paulo, no ABC, incentivando os trabalhadores a buscarem a reposição salarial do índice inflacionário de 19735 e a lutarem contra o arrocho salarial provocado pelo crescente aumento da inflação. Na década de 80 o sindicalismo sofre um momento de desmobilização temporário devido, em primeiro lugar, à política salarial implantada, em que os trabalhadores que ganhavam menos de três salários mínimos recebiam um reajuste acima da inflação a cada semestre; em segundo lugar, à repressão aos trabalhadores mais organizados, como os metalúrgicos do ABC. Os sindicalistas, orientados cada vez mais por integrantes da intelectualidade, departamentos intersindicais e alguns órgãos da imprensa, perceberam que, diante da recessão para a qual o país caminhava, seu poder de negociação ficava bastante reduzido. A década de 70, que se iniciou sob o manto do AI-5, com organizações de esquerda partindo para a luta armada, de batalhas entre os “puristas” e os 4

PILAGALLO, Oscar. Op. cit., p. 152. A opinião pública, desde 1977, tomara conhecimento de um relatório do Banco Mundial que identificou uma manipulação dos índices de inflação entre 1973 e 1974, a qual provocou um arrocho salarial de mais de 30%.

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“americanizados” em termos musicais, da repressão, tortura, censura, Pacote de Abril, com a declaração da responsabilidade da União na morte de Herzog, chegou ao seu final com alguns avanços no campo político: a revogação do AI-5 (1978), a promulgação da Lei da Anistia (1979), a vitória das oposições. No plano cultural o arrefecimento da censura permitiu aos meios de comunicação uma maior divulgação dos acontecimentos não só do mundo, mas principalmente do Brasil, permitindo o debate e o aprofundamento das questões sociais, políticas e econômicas que afetavam o país. Para Motta, é significativo que nos anos 70 a forma de expansão e crescimento econômico tenha possibilitado ao país construir um parque industrial expressivo e integrado à economia industrial. Todavia, o saldo dessa modernização conservadora foi o aumento da concentração de renda, a pauperização da maioria da população e a precarização das condições de vida e de trabalho da maioria dos 6 trabalhadores”.

Outro sustentáculo do “milagre” foi o fortalecimento do setor estatal: entre 1968 e 1972, a participação do patrimônio das estatais na indústria nacional passou de um quarto para um terço. Durante o governo Médici, surgiram nada menos que setenta empresas estatais, número que só seria superado na gestão de Geisel, quando foram criadas quase duzentas. O término do ciclo autoritário ocorreu em 15 de janeiro de 1985, com a eleição indireta para Presidência da República de Tancredo Neves e José Sarney, mas que, com a doença e posterior morte de Tancredo, tornou José Sarney o primeiro Presidente civil e de oposição desde 1964. A retomada da democracia provocou um entusiasmo da sociedade em busca de soluções para os problemas que Sarney procurou contemplar com um discurso em favor da reforma agrária, da legalização dos partidos clandestinos e da convocação da Constituinte. No entanto, apesar da disposição em enfrentar as tensões sociais, Sarney defrontou-se com uma crise inflacionária que herdara do seu antecessor e que chegara a casa dos 200% ao ano. A década de 80 foi a primeira de recessão da economia brasileira desde os anos 30. Comandada pela dívida externa e, no seu desdobramento, pela crise fiscal. A política de indexação geral da economia encobria um processo de hiperinflação, do qual se defendiam melhor ou inclusive 6

MOTTA, Ana Elizabete. Cultura da crise e seguridade social: um estudo sobre as tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80 e 90. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2000. p. 6.

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ganhavam os setores mais bem localizados em relação aos rendimentos 7 do capital financeiro, que já começava a se tornar hegemônico.

A crise do capitalismo no Brasil provoca conseqüências terríveis, como salienta Furtado: [...] a dolorosa história dos ajustamentos impostos aos países devedores: de absorvedores passam estes a supridores de capitais internacionais, devendo concomitantemente aumentar o esforço de poupança e reduzir o investimento interno. Esses ajustamentos exigem um consenso e uma disciplina social difíceis de serem alcançados em qualquer país, e mais ainda em sociedades marcadas por profundas desigualdades e atraso 8 político, como é a brasileira.

Sader alerta para o fato de que o aprofundamento das disparidades sociais, que os anos 80 tornaram mais visíveis como conseqüência do fim da censura, permitiu o reconhecimento de que a ditadura havia fracassado na distribuição de renda, o que produziu um déficit social, tema que se transformou no centro das transformações políticas do período. Tema para o qual Ianni chama atenção: [...] Dentre os impasses com que se defronta a Nova República iniciada em 1985 destaca-se também a relevância da questão social. As controvérsias sobre o pacto social, a reforma agrária, as migrações internas, o problema indígena, o movimento negro, a liberdade sindical, o protesto popular, saque ou expropriação de capital, a ocupação de habitações, a legalidade ou ilegalidade dos movimentos sociais, as revoltas populares e outros temas da realidade nacional, essas controvérsias sempre suscitam aspectos mais ou menos urgentes da 9 questão.

O êxito momentâneo do Plano Cruzado, implantado em 1986 e cuja principal medida foi o congelamento de preços e tarifas, que beneficiava 7

SADER, Emir. Brasil: uma história de pactos de elite. In: SADER, Emir; BETTO, Frei. Contraversões: civilização ou barbárie na virada do século. São Paulo: Boitempo, 2000. p. 112. Segundo FIORI, na crise dos anos 80 foram contabilizados no período oito planos de estabilização monetária, quatro diferentes moedas (uma a cada 30 meses), onze índices de cálculo inflacionário, cinco congelamentos de preços e salários, quatorze políticas salariais, dezoito modificações nas regras de câmbio, cinqüenta e quatro alterações nas regras de controle de preços, vinte e uma propostas de negociação da dívida externa e dezenove decretos sobre a autoridade fiscal. In: SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Ajuste neoliberal e desajuste social na América Latina. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. p. 153. 8 9

FURTADO, Celso. O capitalismo global. São Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 41. IANNI, Octávio. A idéia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 8.

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os salários com aumento real, não impediu um declínio cada vez maior do governo, que ao seu final estava completamente desgastado. Durante os anos 80, o Brasil viveu um período de muita instabilidade e a pior crise do século. Entre 1980 e 1983, o PIB per capita caiu 13,1% e a incidência da pobreza ultrapassou, inclusive, a de 1960. [...] 1986 foi o pico de uma pequena recuperação, que teve início dois anos antes. O PIB per capita quase voltou ao nível de 1980 e a proporção de pobres caiu para 28,4%. Foi o ano do Plano Cruzado, o primeiro esforço de estabilização heterodoxa, que fracassou ao final. No ano seguinte uma segunda tentativa fracassada teve vida curta e a tarefa de combater uma inflação exorbitante retornou às mãos da ortodoxia. Como resultado, a economia estagnou entre 1987 e 1988,[...] mas a incidência da pobreza cresceu assustadoramente: de 18,4% em 1986 para 35,9% em 1987 e 10 39,3% em 1988.

As esperanças da sociedade se concentraram na elaboração de uma Constituição que refletisse as mudanças políticas e sociais desejadas. As grandes mobilizações organizadas pelos movimentos sociais fizeram com que diversas de suas reivindicações fossem incorporadas ao texto legal. Apesar das críticas tanto dos setores conservadores quanto dos progressistas a aspectos específicos da Constituição, todos reconhecem que o texto privilegiou a defesa dos direitos individuais. Enfim, em 1988 foi promulgada a “Constituição Cidadã”, assim denominada por Ulysses Guimarães, presidente do Congresso Constituinte. A década perdida, os anos 80, pode ser assim definida a partir de parâmetros econômicos, com seus planos catastróficos e duas moratórias. Porém em relação às conquistas políticas, sociais e culturais o avanço foi considerável, pois tivemos a vitória da oposição em 1982, a primeira desde 1965, nos principais Estados brasileiros; em 1984 a campanha pelas “diretas já”, que, apesar de sua derrota no Congresso, ressuscitou as grandes mobilizações populares; a posse de um Presidente civil (1985); uma nova Constituição (1988); o surgimento de novos partidos políticos; a liberdade de expressão e a primeira eleição direta para Presidente (1989) desde 1960.11 O Brasil, de acordo com Santos, teve uma ditadura militar que pode ser definida como modernizadora no sentido de ter aprofundado um modelo 10

SINGER, Paul. O mapa de exclusão social no Brasil. In: SINGER, Paul et al. Modernidade: globalização e exclusão. São Paulo: Imaginário, 1996. p. 85. 11

A análise da CEPAL relativa ao período de 1960 a 1980, com base nos dados censitários, indica que “A industrialização, a urbanização e a expansão educativa, combinadas com a explosão e a transição demográficas, levaram a profundas mudanças no peso relativo dos principais setores sócio-ocupacionais, em seu perfil e suas relações com outros setores e até em suas próprias identidades sociais.” SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Op. cit., p. 158.

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que já vinha se desenvolvendo desde a década de 30. No entanto, essa mesma ditadura militar, [...] além de consolidar novas estruturas socioeconômicas de poder, produziu um modelo de Estado que no início da década de oitenta se encontrava já em profunda crise. Em meados da década, a transição democrática avançou, pondo fim ao modelo de dominação política, mas não confrontou as estruturas de poder econômico e social nem deu prioridade à reforma do Estado. Foi nesse contexto que as elites conservadoras cavalgaram com êxito a transição democrática, aproveitando e reforçando a crise do Estado para entregar o país à nova ortodoxia neoliberal onde viram as novas oportunidades para 12 reproduzir seu poder.

Os anos 90 presenciaram o crescente processo de integração da economia mundial, que obrigou o Estado brasileiro a passar por uma “reforma” para se adaptar a essa nova etapa histórica do capitalismo. Em 1991 o país se abriu ao mercado externo e a indústria nacional teve que enfrentar a competição internacional, o que, na prática, se traduziu na quebra de muitas empresas. Era, na realidade, o fim do projeto de substituição de importações, com a quebra das estruturas protecionistas e a conseqüente abertura econômica e comercial. [...] o Brasil, que tinha uma das economias mais fechadas e cartoriais do mundo, abriu-se à competição estrangeira, em meio a uma série de outras transformações que, no conjunto, mudaram dramaticamente o país. Fernando Collor, primeiro Presidente escolhido em eleições diretas depois do regime militar, caiu acusado de corrupção. Foi o marco de uma nova era na política e nos costumes nacionais. O real, uma nova 13 moeda estável, derrubou a inflação. Empresas estatais foram vendidas.

O projeto de capitalismo nacional que se desenvolveu de 1930 a 1964, de acordo com IANNI, foi errático, mas com êxitos inegáveis no que se refere à criação e ao desenvolvimento de uma ampla, complexa e dinâmica economia nacional, crescentemente apoiada na industrialização, acompanhada de 14 intensa urbanização e outros processos sociais de alcance nacional,

para, a partir daí, ceder lugar à tese da necessidade de o país aderir ao capitalismo associado para poder beneficiar-se ao máximo da economia mundial. 12

SANTOS, Boaventura de Sousa. Os processos de globalização. (Prefácio à edição brasileira) In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org). A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002. p. 13. 13

GOMES, Laurentino. 1989-1998: A História não acabou. Veja, São Paulo. ed. 1569, ano 31, n. 42, p. 83, [s.d.]. Edição Especial – 30 anos 14

IANNI, Octavio. Op. cit., p. 101.

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A adesão ao neoliberalismo, que preconiza o “estado mínimo”, por meio da privatização das empresas estatais, reforma tributária, ajuste fiscal, desestatização da economia, entre outros itens do seu receituário, torna-se ostensiva após os governos militares, mais ainda com os governos Collor e Fernando Henrique Cardoso. Pela primeira vez, desde os anos 30, o Estado brasileiro não tem um projeto de desenvolvimento para o país, deixando ao mercado a tarefa de encaminhar o desenvolvimento. Coerentemente, o governo brasileiro tem como prioridade máxima conquistar e reter credibilidade junto 15 aos aplicadores.

A redefinição do papel do Estado não se restringe à redução de sua presença na economia. Nessa fase do capitalismo mundial se processa, também, uma redefinição nas questões sociais. O ajuste estrutural leva a um abandono dos compromissos sociais, resultando em um aumento da pobreza, desemprego e aprofundamento da desigualdade social. As reformas implementadas pelos governantes visando à adaptação a essa nova etapa de desenvolvimento têm gerado tensões sociais explosivas que, na visão de Fiori (apud GENRO, 2000), são perfeitamente previsíveis. O grande problema desta estratégia liberal adotada pelos principais países da América Latina, entretanto, está no fato de que além de induzir ao “continuísmo” ela não oferece nenhuma garantia de governabilidade, porque os Estados endividados e prisioneiros dos “equilíbrios macroeconômicos” perdem também a capacidade de financiar as demais políticas setoriais e, em particular, as políticas de natureza social, num momento em que o seu crescimento econômico é reduzido e já não assegura a expansão do emprego, o que só agrava a herança de enorme 16 desigualdade social em países como o Brasil.

O Relatório do Desenvolvimento Humano, em 1999, alertava para o fato de que em tempos de globalização “Quando o mercado vai demasiado longe, dominando os resultados sociais e políticos, as oportunidades e recompensas da globalização difundem-se de forma desigual e não eqüitativa”.17 15

SINGER, Paul. Alternativas do futuro brasileiro. In: RATTNER, Henrique (org.). Brasil no limiar do século XXI: alternativas para a construção de uma sociedade sustentável. São Paulo: EDUSP, 2000. p. 23. 16

GENRO, Tarso. Estado, mercado e democracia no “olho” da crise. In: RATTNER, Henrique (org.). Brasil no limiar do século XXI: alternativas para a construção de uma sociedade sustentável. São Paulo: EDUSP, 2000, p. 63. 17 RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO. Lisboa: PNUD, 1999, p. 5.

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Os graves desequilíbrios sociais podem ser observados nos índices divulgados pela síntese de indicadores sociais de 1999 do IBGE, em que se observa que os 40% mais pobres da população ganham o equivalente a 8% da renda nacional. Os 20% mais ricos ganham 64%. Em 1999 havia no país 21 milhões de crianças e adolescentes vivendo em famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo. Isso equivale a 35% da população nessa faixa etária.18 De acordo com a ONU, em seu Relatório do Índice de Desenvolvimento Humano 2000, o Brasil ocupa o 73.o lugar, e no ranking da concentração de renda, pelo índice de Gini19, o país atualmente encontra-se em quarto lugar, perdendo apenas para três países africanos.Para Scheinkman (apud IACOMINI, 1999), trata-se de um problema histórico, pois “[...] os governos brasileiros sempre deram mais atenção às políticas voltadas para a classe média e deixaram de lado ações que poderiam ter mais impacto social.”20 Dessa forma, ao chegarmos ao final do século XX e adentrarmos ao século XXI, constatamos que em matéria de desenvolvimento social o Brasil defronta-se com o dilema de finalizar as reformas preconizadas pelas agências internacionais ou enfrentar definitivamente o problema da exclusão social. A reinserção do país na política democrática não significou na prática a democracia social.

O Estado do Bem-Estar brasileiro No capitalismo liberal as lutas pela garantia da satisfação das necessidades sociais, como alimentação, moradia, educação, saúde etc., sempre colocaram o problema social como uma questão política, exigindo dos diferentes setores da sociedade projetos e políticas para a busca de soluções. As políticas sociais traduzem-se assim em um movimento do capital com a obrigação de cuidar da saúde, da duração da vida e da reprodução imediata e a longo prazo da classe trabalhadora. Na concepção liberal, ser membro da sociedade não garante acesso aos sistemas públicos de proteção, posto que a relação estabelecida é entre trabalho e previdência. Dessa forma, a assistência social destina-se a quem não tem trabalho, e a previdência, àqueles que contribuem com o seu trabalho para a manutenção dos serviços. 18

IACOMINI, Franco. Os pecados do Brasil. Veja Século 20. São Paulo, 1629, ano 32, n. 51, p. 37, 1999.

19

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Índice de Gini.Metodologia utilizada para medição dos graus de desigualdade na distribuição da renda. IACOMINI, Franco. Op. cit. p. 37.

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Para a sociedade a diversidade da intervenção estatal justifica-se pelos diferentes domínios de política social e pelo fato de tais domínios denominaremse histórica e ideologicamente como sociais. Como salienta Faleiros, “o fato de se apresentar como social, uma medida de política governamental, faz com que pareça boa à população.”21 Em nome do direito à vida, os liberais utilizam uma linguagem de solidariedade coletiva para estabelecer um sistema de previdência social que cubra os riscos inerentes a uma economia de mercado. Como salienta Laurell, “as políticas sociais, ou seja, o conjunto de medidas e instituições que tem por objeto o bem-estar e os serviços sociais”22, estão vinculadas ao âmbito estatal e constituem a característica de Estado de Bem-Estar social que predominou em parte do mundo capitalista a partir do pós-guerra de várias formas. O Estado do Bem-Estar social, ou Welfare State, caracteriza-se para Draibe como [...] elemento estrutural importante das economias capitalistas contemporâneas, uma determinada forma de articulação entre o Estado e o mercado, o Estado e a Sociedade, um modo particular de regulação social que se manifesta a um certo momento do desenvolvimento capitalista.

Assim, essa forma particular de regulação social manifesta-se na emergência de sistemas nacionais, públicos ou estatalmente regulados de educação, saúde, integração e substituição de renda, assistência social e habitação que, a par das políticas de salário e emprego, regulam direta ou indiretamente o volume, as taxas e o comportamento do emprego e salário da economia, afetando portanto o nível de vida da população 23 trabalhadora..

As especificidades do Estado do Bem-Estar brasileiro impuseram a necessidade de um ajuste às teorias sobre o Welfare State devido às circunstâncias de seu surgimento e desenvolvimento, decorrentes de sua posição 21

FALEIROS, Vicente de Paula. A política social do Estado capitalista. 8.ed. São Paulo: Cortez, 2000. p. 62. Grifo do autor. 22

LAURELL, Asa Cristina. Avançando em direção ao passado: a política social do neoliberalismo. In: LAURELL, Asa Cristina (org.). Estado e políticas sociais no neoliberalismo. São Paulo: Cortez, 1997. p. 153. 23

DRAIBE, Sonia Miriam. O Welfare State no Brasil: características e perspectivas. Caderno de Pesquisa n. 8, NEPP/UNICAMP. Disponível em Acesso em: 20 abr. 2002.

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na economia mundial e mesmo de sua trajetória histórica. No Brasil o Estado do Bem-Estar surge com o caráter regulador relativo à organização dos modernos trabalhadores assalariados e da burocracia. Com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (1923) inicia-se a concentração e centralização federal das ações do Estado relativas ao setor, tais como: o saneamento urbano e o rural, a propaganda sanitária, a higiene infantil, industrial e profissional, a saúde dos portos e do Distrito Federal e o combate às endemias rurais.24 A Lei Eloy Chaves (1923) instituiu as Caixas de Aposentadorias e Pensões – CAPs – criadas por empresas, iniciando-se com as de estradas de ferro e posteriormente estendida às demais. Por intermédio delas o trabalhador e seus dependentes tinham acesso à assistência médica. No mesmo período, na década de 1920, definem-se os grandes traços que marcaram o sistema previdenciário brasileiro, tais como: a implementação, por parte do Estado, de um seguro social altamente controlador dos segmentos essenciais à economia brasileira e com traços disciplinadores dessa força de trabalho; a forma tripartite de financiamento – Estado, empregadores e trabalhadores –, caráter assistencialista e não universalizante do seguro social. Na década de 30, os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAP) substituíram as CAPs. Sua implantação deu-se por etapas e abrangia determinadas categorias profissionais: funcionários federais (1931), ferroviários (1932), marítimos (1933), bancários (1934), comerciários (1934), industriários (1936), trabalhadores de transporte (1938), portuários (1938). A periodização do Estado do Bem-Estar brasileiro desenvolvida pelo NEPP (Núcleo de Estudos de Políticas Públicas – UNICAMP), e bastante utilizada pelos estudiosos, tem as seguintes características: 1930-1964 – Introdução e expansão fragmentada 1930-1943 – Introdução 1943-1964 – Expansão fragmentada seletiva 1964-1977 – Consolidação institucional 1964-1967 – Consolidação institucional 1967-1979 – Expansão massiva 1979-1988 – Crise e ajustamentos do sistema 1979-1984 – Crises e ajustamento conservador 1985-1988 – Ajustamento progressista 1988-1993 – Reestruturação do sistema 1988 – Definição dos novos princípios (Constituição) 24

TOMAZI, Zelma Torres. O que todo cidadão precisa saber sobre saúde e Estado brasileiro. São Paulo: Global, 1986.

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1988-1991 – Implementação das reformas (início) 1992-1993 – Formação da nova agenda de reformas No entanto Soares, discordando da última periodização referente ao pós-89, faz a seguinte complementação, que será a utilizada no nosso estudo: 1989-1990 (em diante) – Ajustamento conservador 1988-1989 – Início do desmonte das políticas sociais brasileiras 1990-.... – Continuidade do desmonte e início de uma política de perfil neoliberal25 Para efeito das análises aqui realizadas, concordamos com Soares e entendemos, portanto, que o ajustamento conservador ainda está se processando. Para Draibe, dentre as tipologias de Titmus26 sobre os Estados de Bem-Estar o que prevalece no caso brasileiro é o princípio do mérito, entendido basicamente como a posição ocupacional e de renda adquirida ao nível da estrutura produtiva, que constitui a base sobre a qual se ergue o sistema brasileiro de política social. No caso da previdência social, esse é o princípio vigente desde a fase de introdução, na fase de Consolidação quando se definem outros benefícios e o sistema de fundos sociais, também a relação rendacontribuição-benefícios segue dominante e, nesse sentido, as políticas sociais, na sua maioria, reproduzem o sistema de desigualdades predominantes na sociedade.27

A fase da “introdução” (NEPP) das políticas sociais com a criação dos IAPs, nas décadas de 30 e 40, gestou o embrião da previdência social como função do Estado e, ao mesmo tempo, introduziu a participação da sociedade civil, por meio da representação patronal e sindical. No entanto o poder concentrador do governo autoritário impediu a efetiva participação dos representantes civis. E, assim, propiciou o desenvolvimento do clientelismo e da deturpação das relações entre a sociedade civil e o sistema político. No período compreendido pelo governo democrático (1946-1964), o populismo constituiu o traço marcante da relação Estado e sociedade. A 25

SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Ajuste neoliberal e desajuste social na América Latina. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 213. 26

Para Titmus existem as seguintes tipologias: o modelo residual, o modelo meritocráticoparticularista e o modelo institucional redistributivo. In: DRAIBE, Sonia Miriam. Op. cit., p. 13. 27

DRAIBE, Sonia Miriam. Op. cit., p. 23.

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introdução de mudanças políticas e econômicas foi necessária para o enfrentamento da concentração urbana e da modernização do país. A partir da década de 60, principalmente após a criação, em 1966, do Instituto Nacional de Previdência Social – INPS –, os gastos do Estado na área social cresceram substancialmente. Apesar disso, as demandas sociais não atendidas aumentaram em ritmo acelerado, manifestando a ineficiência do próprio Estado. Os governos militares implementaram políticas sociais de caráter assistencialista, abandonando o populismo do período anterior. O modelo de caráter compensatório dessas políticas visava diminuir os impactos das desigualdades sociais produzidas pelo desenvolvimento capitalista e o seu caráter produtivista de contribuir para o crescimento do processo econômico. O projeto concentrador e centralizador de poder político e econômico atingiu a previdência social, já que, de acordo com as autoridades, a estrutura existente no período que antecedeu a constituição do INPS tinha como principal característica a inoperância e a influência partidária. Por esse motivo, entre 1971 e 1973 os representantes de empregados e empregadores foram excluídos dos conselhos administrativos da previdência social. Em 1974 é criado o Ministério da Previdência e Assistência Social, dada a importância política que a previdência social assume no interior do regime militar como meio privilegiado de relação direta entre as massas trabalhadoras e o Estado, e, sobretudo, pelo volume de recursos que arrecada, por ser um dos primeiros orçamentos da União. Com a exclusão de qualquer forma de controle por parte dos trabalhadores aprofunda-se o perfil assistencialista da previdência social, prevalecendo a assistência médica. Em 1977 estruturou-se o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social – SINPAS – juntamente com o Instituto de Administração Financeira da Previdência Social – IAPAS – e o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social – INAMPS –, englobando o FUNRURAL, que depois foi extinto. Convém salientar que, ao ser unificado, o sistema incorporou milhões de novos pagamentos de novos benefícios para os quais não houve a correspondente contribuição28. Para Zanghelini, Essa estratégia assistencialista centralizada foi a forma de os governos militares incorporarem setores das classes trabalhadoras excluídos dos antigos Institutos, atingindo ao mesmo tempo o objetivo de reprimir demandas políticas e sociais latentes. A incorporação do setor rural é exemplar. O governo militar neutralizou rapidamente as organizações 28

As conseqüências do aumento dos benefícios e dos usuários do sistema público de saúde, em Joinville, poderão ser observadas no próximo capítulo.

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rurais existentes e criou uma estrutura de sindicatos controlados pelo 29 Estado, que foi acompanhada de programas de serviços sociais.

Ao mesmo tempo Cohn chama atenção para a importância que a assistência médica assume a partir da criação do SINPAS: A instituição do SINPAS, em 1977, ao separar a parte de benefícios e de assistência médica (aquela passando agora a ser responsabilidade do antigo INPS, antes responsável por ambas, e esta passando agora a ser responsabilidade do recém-criado INAMPS), reconhece de fato a importância que a assistência médica previdenciária assume, como volume de recursos a ela destinado e como instrumento de barganha e de legitimidade política – até com traços que lembram a época 30 populista.

As medidas adotadas na área da previdência social durante a década de 70 indicam que, ao mesmo tempo em que o “milagre econômico” impunha um custo social, no tocante à proteção social buscavam-se os rumos da seguridade social. Dentre as medidas destacam-se algumas: a) enquanto desde 1917 o seguro de acidentes do trabalho é realizado pelo setor privado, a partir de 1966 ele passa a ser responsabilidade direta da previdência social; é a partir de então que a privatização da assistência médica previdenciária encontra seu maior impulso. b) a partir de meados da década de 60 os gastos do Estado na área social, aí incluída a previdência social, crescem substancialmente. c) apesar do aumento dos gastos, as demandas sociais não atendidas crescem em ritmo acelerado, manifestando a ineficiência do próprio Estado. d) a clientela continua sendo basicamente o trabalhador do setor urbano, formalmente inserido no mercado de trabalho, sobretudo aqueles segmentos vinculados aos setores de ponta ou mais modernos da economia, os mesmos atingidos pela clivagem e diferenciação 29

ZANGHELINI, Airton Nagel. As reformas previdenciárias e o papel do Estado no Cone Sul. Brasil-Portugal, 2000. Dissertação de mestrado. p. 87.

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COHN, Amélia. A saúde na previdência social e na seguridade social: antigos estigmas e novos desafios. In: COHN, Amélia; ELIAS, Paulo E. Saúde no Brasil: políticas e organização de serviços. São Paulo: Cortez/CEDEC, 1996. p. 23.

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que a previdência social pratica com grande maestria. E nessa dinâmica de tratamento diferenciado ganha destaque a assistência médica. e) ao mesmo tempo em que se aprofundam as diferenciações de tratamento entre os vários segmentos da população previdenciária, avança-se num discurso universalizante da cobertura do seguro social. f) progrediriam no sentido da formulação de um sistema de seguridade social.31 Diante da crise do milagre econômico, como salientam Almeida e Cordeiro em artigo publicado na imprensa sobre o balanço da área da saúde na década de 70, A resposta do Estado [...] foi caracterizada por uma série de medidas orientadas para uma reordenação no campo social – criaram-se o Conselho de Desenvolvimento Social e o Ministério da Previdência e Assistência Social. A nova política social deveria corrigir as distorções 32 do modelo econômico.

Na década de 70, ao mesmo tempo em que se acentuam as diferenciações de tratamento entre os vários segmentos da população previdenciária – trabalhadores do setor urbano e setor rural –, avança o discurso sobre a universalização do seguro social. Como observa Motta, A rigor, no Brasil pós-1964, assiste-se a uma ampliação dos sistemas de previdência e saúde, para atender ao crescimento da massa de trabalhadores assalariados, em decorrência do crescimento experimentado pela economia brasileira no período de 1969 a 1979. Inegavelmente, essa manipulação da seguridade responde, também, pela necessidade de legitimação política dos governos militares, mas é a relação existente entre as fases de desenvolvimento do processo produtivo, a constituição do trabalhador coletivo, as formas de produção de mais-valia e os mecanismos de reprodução do salariado que amparam 33 a lógica da sua expansão. 31 32

COHN, Amélia. Op. cit., p. 19-21.

ALMEIDA, Célia Maria de; CORDEIRO, Hésio A. A previdência tem de tudo. Até fantasmas. . Folha de S.Paulo. São Paulo, 20 jan. 1980. Folhetim, n. 157, p. 8-9. 33

MOTTA, Ana Elizabete. Op. cit., p. 43.

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O caráter meritocrático do Bem-Estar brasileiro não impediu que nas relações dos diferentes grupos de interesses envolvidos com o sistema político o clientelismo se tornasse uma de suas características. Desde a fase da introdução, por exemplo, sabe-se das relações privilegiadas e de condições corporativistas e clientelísticas, no caso da Previdência Social, Ministério do Trabalho e cúpulas partidárias, especialmente do PTB. Rompido este padrão no pós-64, outras formas de clientelismo se inseriram no sistema, afetando a alocação de recursos, o movimento de expansão e, enfim, tendendo a feudalizar (sob o domínio de grupos, personagens e/ou cúpulas partidárias) áreas do organismo previdenciário 34 e principalmente a distribuição de benefícios em períodos eleitorais.

Antes mesmo do término do período ditatorial, a crise das políticas sociais do Estado, principalmente nas áreas de saúde e previdência, leva a opinião pública a tomar conhecimento das denúncias de corrupção e precariedade no atendimento aos segurados e na privatização dos serviços. Nesse período os meios de comunicação de Joinville também são pródigos em divulgar a precariedade do sistema de saúde público do município e do Estado. A busca da superação da situação será analisada no próximo tópico. Tavares e Monteiro (apud Laura T. R. SOARES) demonstram em trabalho sobre as condições de vida da população brasileira, nos anos 80, que apesar da estagnação econômica, evidenciada no menor crescimento do PIB em toda a sua história, somente 17,55% em todo o período em relação às questões sociais obtiveram avanços tais como: redução nas taxas de mortalidade e natalidade, de mortalidade infantil, diminuição da desnutrição infantil e da taxa de analfabetismo e também os indicadores de saneamento básico. Para Motta o que se denominou de “crise da previdência”, mais especificamente da previdência social e saúde, no período de 80-81 na realidade traduzia tão-somente um dos momentos da crise estrutural que se prolongaria por toda a década. A autora baseia-se no entendimento de que a crise da previdência não se resume a uma crise financeira. Mesmo que sejam amplamente difundidos os números dos seus déficits orçamentários, o fator deflagrador dessa crise, nos anos 80, foi 35 eminentemente político-ideológico.

Essa perspectiva também pode ser respaldada pela identificação do período como de “crise e de ajustamento conservador”, no estudo do NEPP. 34 35

DRAIBE, Sonia Miriam. Op. cit., p. 24. MOTTA, Ana Elizabete. Op. cit., p. 138.

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O período inicial do governo da redemocratização (Nova República) foi acompanhado de gastos públicos na área social (mais em custeio do que em investimentos). Os indicadores sociais também apresentaram comportamento mais positivo nesse período.36 Soares37 destaca dois aspectos relevantes da política social da Nova República, quais sejam o fato de os princípios e reformas realizadas antecederem a nova Constituição de 1988, e que foram resultantes de um movimento reformista, e o de que boa parte dos princípios da ordem social enunciados na Constituição já vinha sendo implementada em diversos setores, como saúde, previdência social e educação. A autora também chama atenção para a universalização do acesso aos serviços de saúde em 85, o processo de descentralização administrativo-financeira e de unificação da gestão com o SUDS em 87, entre outras. Ao mesmo tempo as mudanças não resultaram em modificações estruturais de financiamento do setor público, com o conseqüente “desmonte” e redução dos gastos em diversas áreas sociais. No período da “introdução” e da “consolidação” o Estado, pressionado pela necessidade de desenvolver mecanismos de proteção e ao mesmo tempo contemplar os trabalhadores e suas organizações, cria os seguros sociais que definiram os principais traços do sistema previdenciário. De acordo com Cohn, o sistema previdenciário brasileiro do período da “introdução” até o de “crise e ajustamento” teve as seguintes características: a) instituição, por iniciativa do Estado, da implementação de um seguro social com caráter altamente controlador dos segmentos de trabalhadores dos setores essenciais à economia brasileira, tanto no sentido de disciplinar essa força de trabalho quanto no sentido de lhe assegurar formas mínimas de sobrevivência ante os acidentes e as conseqüências do esgotamento da sua capacidade para o trabalho. b) a forma tripartite de financiamento – empregadores, trabalhadores e Estado. Uma vez que a contribuição dos empregadores sob a rubrica de 36

Crescimento do salário real; expansão significativa dos serviços de saneamento básico (apesar da manutenção das desigualdades regionais e por grupos de renda); redução da taxa de mortalidade infantil (apesar da manutenção de diferenciais importantes por grupos de renda e condições da habitação); redução da taxa de natalidade e aumento da esperança de vida ao nascer; expansão dos níveis de educação formal da população, além da redução da taxa de analfabetismo (apesar do seu crescimento absoluto, sobretudo nas regiões metropolitanas); aumento da cobertura vacinal da população infantil; expansão dos serviços públicos de saúde, com uma efetiva ampliação da cobertura; ampliação dos benefícios previdenciários, sobretudo para a população rural; redução da desnutrição entre crianças menores de 5 anos; modificação no perfil de morbimortalidade da população, com incremento das doenças crônico-degenerativas e dos acidentes e violências. SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Op. cit., p. 342. 37

SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Op. cit., p. 212.

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encargos sociais é contabilizada no custo de produção e repassada para o preço final do produto ou serviço prestado e que o Estado, ao instituir o seguro, institui igualmente que os recursos públicos não serão a ele destinados, é sobre o trabalhador que recai o ônus de arcar com o custeio desse seguro, por meio do desconto direto do salário e na condição de consumidor de bens e serviços. c) O acesso do trabalhador e seus dependentes à assistência médica na condição de filiado ao seguro social. d) O caráter assistencialista e não universalizante do seguro social, elegendo como população-alvo os grupos de assalariados dos atores de 38 maior peso econômico e politicamente mais mobilizados.

Com a Constituição de 1988, ocorreram significativos avanços no tocante ao sistema de proteção social: universalidade do direito aos benefícios previdenciários a todos os cidadãos, contribuintes ou não do sistema, a eqüidade para com o acesso e na forma de participação no custeio, a uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços, a irredutibilidade do valor dos benefícios, a diversidade da sua base de financiamento e a gestão administrativa descentralizada com participação da comunidade. A característica constitucional é o estabelecimento de um sistema de seguridade social em substituição ao de seguros sociais até então vigente. O novo sistema está baseado em um conjunto integrado de ações que asseguram os direitos à saúde, à assistência e à previdência social. O capítulo relativo à seguridade é considerado um dos mais avançados no tocante aos direitos dos cidadãos e também quanto ao estabelecimento das responsabilidades governamentais para as políticas sociais. A base de financiamento do sistema sustenta-se no fato de que os empregadores passam a ter a sua contribuição calculada sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro, e os empregados, sobre o salário; outra fonte de recursos prevista consiste no orçamento da União, Estados, municípios, territórios e Distrito Federal, além do estabelecimento do orçamento da seguridade social. A contradição entre o discurso político da universalidade, eqüidade e integralidade e a realidade do estado da questão social em que as diferenças em esperança de vida, mortalidade geral e, principalmente, a mortalidade infantil entre pobres e ricos ficam mais visíveis desmascara o caráter ideológico do “discurso público”. No início da década de 90, a onda do neoliberalismo estabeleceu uma perversa relação entre ajuste econômico e políticas sociais visando à 38

COHN, Amélia. Op. cit., p. 13-4. A autora chama a atenção para o conceito-chave desenvolvido por Wanderley Guilherme dos Santos – o de cidadania regulada –, que traduz a associação, expressa nas normas previdenciárias, entre cidadania e ocupação: reconhecem-se como cidadãos somente aqueles que apresentam uma das ocupações reconhecidas e definidas por lei. p. 15.

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superação do déficit previdenciário, o que obrigou o Estado a intervir o mínimo para atender à pobreza, pois os outros segmentos podem contar com uma rede de apoio originada na família, na comunidade e nos serviços privados. O Estado, ao efetivar as políticas públicas no período de “ajuste conservador”, reproduz as divisões sociais com seus respectivos canais de atendimento, tais como: um para o proletariado assalariado e para a pequena burguesia com seguros específicos; um para os “pobres”, excluídos dos seguros; e um para a burguesia, com melhores serviços, melhores condições, pagos no mercado. Motta constata em estudo sobre a cultura da crise e a seguridade social que na implementação do projeto neoliberal o grande capital absorve as demandas dos trabalhadores, no interior do processo de formação de uma cultura de consentimento da privatização da seguridade – em especial na esfera da previdência e saúde –, ao mesmo tempo em que difunde e socializa a necessidade de ampliação 39 dos programas de assistência social, voltados para os pobres”.

Ao neoliberalismo convém que os trabalhadores interiorizem a ideologia da normalidade, que foi assim definida por Faleiros: A ideologia da normalidade pressupõe que o indivíduo possa trabalhar para poder, normalmente, com o salário obtido, satisfazer as suas necessidades de subsistência e as de sua família. O trabalho é o critério de vida normal para viver bem. Os que não conseguem, com o salário que ganham, obter essa vida normal, vêem-se censurados socialmente pelas próprias políticas sociais, que atribuem, então, ao indivíduo seu 40 fracasso. É o que se chama culpabilização das vítimas.

Na realidade o que se observa na prática é a redução do papel do Estado na área do bem-estar social, cortando gastos e impostos e transferindo os serviços para o setor privado, direcionando os serviços estatais estritamente aos pobres, já que só podem ser justificados como parte de um programa destinado a aliviar as necessidades extremas por meio de uma ação humanitária coletiva, e não como uma política dirigida à justiça social ou à igualdade. As políticas sociais setorializadas, próprias do projeto neoliberal, implantadas no Brasil contribuem para fragmentar e separar as distintas camadas da classe operária, adotando ao mesmo tempo um enfoque diferencial para 39 40

MOTTA, Ana Elizabete. Op. cit., p. 45. FALEIROS. Op. cit., p. 63. Grifos do autor.

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cada uma, de acordo com a inserção destas nos diferentes modos de produção de uma formação social.41 A proposta privatista contida no receituário neoliberal que apregoa a “superioridade” do setor privado baseado em uma racionalidade e vocação para o crescimento também se fez sentir na área social, notadamente na educação e saúde. O discurso ideológico defendia a idéia de que a ineficiência e a incapacidade do setor público constituíam obstáculos para uma distribuição mais racional dos recursos. Veremos os reflexos desse tipo de discurso nas representações encontradas sobre o hospital público, discutidas no capítulo 5. No governo Collor, de conotação neoliberal, as conseqüências relativas à gestão das políticas sociais podem ser assim resumidas: a) alterações ministeriais, com a fragmentação da área da seguridade, que facilitaram o controle total da área econômica sobre os recursos da área social, com perda da autonomia de gasto por parte dos setores sociais e deterioração, sem precedentes, de serviços sociais essenciais, como os de saúde; b) reforma administrativa reforçando as práticas centralizadoras e clientelistas; c) uma “recentralização” dos recursos sociais e sua alocação federal, ampliando a municipalização e descartando a mediação dos governos estaduais. O oposto à lógica da descentralização presente na Constituição.42 Em estudo sobre a reforma da seguridade social Melo e Silva afirmam que nos anos 80 e 90 a reforma da previdência social constituiu um “elemento central da agenda de reforma do estado, independente de seu nível de desenvolvimento.” Demonstram que o esgotamento do padrão de seguridade social esteve associado a um conjunto de processos estruturais: 1 - os déficits financeiros e a fragilidade atuarial dos sistemas previdenciários baseados no princípio de repartição simples. A previdência responsabilizada pelo déficit público. 2 - o impacto de mudanças estruturais nos mercados de trabalho da região, com redução de taxas de formalização dadas às mudanças no paradigma tecnológico dos sistemas produtivos e os processos de terceirização, o que vem exigindo aportes cada vez mais significativos das folhas de salários para financiamento dos sistemas, bem como a erosão dos valores reais de benefícios com o mecanismo de ajuste. 3 - o impacto dos processos de transição demográfica que 41 42

Ibid., p. 72. SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Op. cit., p. 216.

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determinaram a elevação da expectativa de vida da população e seu crescente envelhecimento (ativos/inativos) 4 - a dimensão dos problemas previdenciários passou a ser vista como uma ameaça à estabilização econômica. Daí a perspectiva de que os fundos privados substituam os fundos públicos.43 Para Draibe (apud MEDEIROS, 2001) a partir de 1993 existem inovações nas políticas sociais que podem ser consideradas positivas: Do ponto de vista do cumprimento de metas, descentralização e maior autonomia decisória efetivamente parecem ter andado juntas, na experiência recente do país, seja por ampliação de poderes de prefeitos e diretores de serviços sociais, seja por ampliação dos canais de participação social, através dos Conselhos Municipais e associações de pais nas unidades escolares. Coerentemente a tais efeitos, registrou-se maior satisfação de usuários e gestores. Mesmo quando sejam notoriamente insuficientes, por qualquer medida que as meçam, as maiores autonomia e participação registrada significam efetivas inflexões, no país, das suas fortes tradições de centralismo autoritário e 44 burocrático, de difícil remoção, como se sabe.

Contrários a essa visão dos programas sociais brasileiros da década de 90, estudos lembram a sujeição das políticas sociais ao ajuste macroeconômico direcionada pela política econômica. Para Cohn (apud MEDEIROS) o que o governo brasileiro considera como inovações e reformas na verdade (...) se configuram como um simples (porém grave) desmonte do modelo getulista da era desenvolvimentista, sem no entanto superar na sua essência o padrão tradicional de ação do poder instituído frente à questão 45 da pobreza, ou mais precisamente dos pobres.

Medeiros, em seu estudo sobre a constituição do Welfare State brasileiro, reafirma a relação das políticas sociais com as macroestruturas econômicas: 43

MELO, Marcus André Campelo de; SILVA, Pedro Luiz Barros. Reforma da seguridade social no Brasil. NEPP/UNICAMP, caderno 39, p. 5, fev. 1999. UNICAMP. Disponível em Acesso em: 20 nov. 2001. 44

MEDEIROS, Marcelo. A trajetória do Welfare State no Brasil: papel redistributivo das políticas sociais dos anos 1930 aos anos 1990. Brasília: IPEA, 2001. (Texto para discussão n. 852) p. 18. 45

MEDEIROS, Marcelo. Op. cit., p. 19.

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Na fase de substituição de importações, o Estado assumiu papéis de regulação, intervenção, planejamento, empreendimento e assistência social para sustentar um modelo de desenvolvimento voltado para dentro cujo motor era o mercado interno. Nesse período, as políticas sociais ajudaram a criar e consolidar uma classe média com poder de compra suficiente para garantir demanda aos produtos manufaturados internos, muitas vezes agravando desigualdades preexistentes na 46 distribuição de renda.

E ainda: No período pós-ajuste, os objetivos de equilíbrio e manutenção da economia, redução da inflação, desestatização, orientação aos mercados externos (aumentos de exportação), aumento da competitividade industrial, redução das barreiras comerciais e modernização do aparelho 47 de Estado e do sistema financeiro norteiam as políticas públicas.

O agravamento do quadro social das últimas décadas do século XX e início do atual resulta do ajuste neoliberal imposto e que produziu o “Estado de Mal-Estar” nos países da América Latina, tendo como principal conseqüência a redução da quantidade e qualidade dos serviços públicos e a exclusão de um crescente segmento da população que necessita deles. As conseqüências do “ajustamento conservador” imposto ao sistema de seguridade brasileiro são assim identificadas por Soares:48 • comportamento pró-cíclico e regressivo do gasto e do financiamento do setor social: o gasto é reduzido aos mecanismos compensatórios mínimos; e o financiamento fica restrito às contribuições sobre a folha de pagamento e impostos indiretos; • esvaziamento orçamentário dos setores sociais: como conseqüência os setores mais carentes e desprotegidos da população são os mais afetados (escolas e unidades de saúde), levando também a uma falta crônica de insumos básicos, a uma redução dos salários dos funcionários e a uma queda na qualidade dos serviços prestados; • ritualização dos Ministérios Sociais: a função dos ministérios fica reduzida a um ritual, já que foram transformados pelo Ministério da Economia ou Fazenda em gestores dos fundos que são negociados; 46 47 48

Ibid., p. 20. Id. SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Op. cit., p. 345.

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• descentralização de serviços sociais, com a desestruturação dos serviços sociais públicos em que a municipalização passou a ser aplicada como estratégia única, liberando o governo federal de seus serviços; • privatização total ou parcial de serviços, que aprofunda a dualidade de sistemas: o privado (para quem pode pagar) e o público (para quem necessita do serviço gratuito), introduzindo a idéia do autofinanciamento dos serviços; • focalização dos serviços exclusivamente aos pobres, mas somente àqueles que comprovem sua situação por meio de “testes de pobreza” ou “testes de meios” (dos programas sociais americanos). O problema é que no país os pobres são a grande maioria; • o retorno à família e aos órgãos da sociedade civil sem fins lucrativos como agentes do bem-estar social, como conseqüência do desmantelamento dos serviços públicos, notadamente na área da educação e saúde; • programas de combate à pobreza como o eixo central das propostas dos organismos internacionais, com o objetivo de reduzir os efeitos da crise econômica e dos processos de ajustes impostos ao país. O caráter temporário e emergencial contrário a uma política social universal, abrangente e permanente, desses programas muitas vezes tem levado à prática do clientelismo político. As modificações realizadas pelo “ajuste conservador” no Estado do Bem-Estar brasileiro identificam-se com as características gerais das mudanças do Welfare State do mundo ocidental, quais sejam: a) o plano institucional; b) a sociabilidade básica das políticas sociais; c) as relações entre o Estado, o setor privado lucrativo e o setor não-lucrativo. No plano institucional manifesta-se a tendência da descentralização político-administrativa, com suas fortes vertentes de municipalismo e de localismo. A ocorrência da municipalização do Welfare State no entendimento de Draibe pode ser assim percebida: nem sempre descentralizar, municipalizar ou “localizar” significa imediatamente democratizar: não apenas a descentralização não constitui monopólio dos processos democratizantes, como processos descentralizados podem abrir espaço a outras formas de arbitrariedade, 49 ou de comportamentos políticos autoritários.

A descentralização tornou-se a bandeira de lutas dos movimentos que buscavam mudanças nas políticas sociais. 49

DRAIBE, Sonia Miriam. Op. cit., p. 33.

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Quanto à sociabilidade básica das políticas, sua inovação é a participação popular nos diferentes níveis do processo de decisão, elaboração e implementação delas, com uma característica “conselhista” e comunitária. No campo das políticas sociais as relações entre Estado, setor privado lucrativo e setor privado não-lucrativo indicam que estão se processando alterações entre Estado e mercado; o público e o privado; os sistemas de produção, de um lado, e os de consumo dos equipamentos sociais, principalmente nas áreas de educação e saúde, de outro.50 O Estado atual, com seu corte de verbas, desmonte do setor público e desvio de verbas destinadas aos setores sociais, tem seguido à risca a lógica da política engendrada pelo neoliberalismo de redução das funções características do Estado do BemEstar social, e que, acompanhada de uma política econômica de ajuste fiscal, processo de privatização, desregulamentação financeira, abertura externa e flexibilização das relações trabalhistas, tem sido o gestor do empobrecimento, do desemprego e dos “descartáveis”. A situação presente indica que o governo que assumiu o comando do país em 1994 não conseguiu cumprir com o seu compromisso de desenvolvimento social e de combate à pobreza e à exclusão social, expresso até mesmo na reunião de Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social (1995), em cujo documento declarava que [...] o desafio que se impõe, portanto, é o de buscar um modelo de desenvolvimento que permita a conciliação do imperativo da modernização da economia com a redução das disparidades regionais e sociais.[...] os princípios acima mencionados que orientam a política social do governo que se inicia, para o qual o enfrentamento da questão social não deverá ter caráter residual e subsidiário; ao contrário, todas as ações governamentais deverão estar permanentemente informadas pelo compromisso de fazer face, de forma sistemática, aos problemas 51 sociais do País.

No entanto, ao voltar sua atenção à política econômica em busca da estabilização, o enfrentamento da questão social obteve resultados positivos no primeiro momento do Plano Real, quando efetivamente possibilitou a inclusão de significativo contingente populacional de pobres, mas que no 50

“As chamadas ‘forças alternativas’ – mutirões e autoconstrução, as diversas experiências de ajuda mútua, práticas comunitárias e de vizinhança (guarda de crianças, no setor de alimentação, na coleta e processamento do lixo)”. DRAIBE, Sonia Miriam. Op. cit., p. 35. 51

KERSTENETZKY, Célia Lessa; CARVALHO, Fernando J. Cardim. Até que ponto o Brasil honrou os compromissos em Copenhague? Observatório da cidadania. Rio de Janeiro: IBASE, s.d. Disponível em Acesso em 21 abr. 2002.

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momento seguinte estabilizou, quando não retrocedeu. Dados relativos aos anos de 1995-1998 analisados por Barros, Henriques e Mendonça indicam que em termos percentuais a indigência caiu de 14,6 para 13,9, e a pobreza declinou de 33,9 para 32,5. Porém, quando se observa o contingente populacional, os números indicam uma estabilização em cerca de 21 milhões de brasileiros de indigentes e 50 milhões que são considerados pobres.52 Outros dados indicam a extensão da desigualdade social brasileira: 15,8% da população não tem acesso a condições mínimas de higiene, educação e saúde; 11,4% morrem antes de completar 40 anos; 16% são analfabetos, 24% não têm acesso a água potável e 30% a esgotamento sanitário.53 O histórico do Estado do Bem-Estar social brasileiro demonstra que no início, década de 30, as ações estatais de proteção social destinavam-se basicamente aos pobres, desocupados, indigentes, com características compensatórias, assistencialistas, complementares e residuais. Na atualidade, com as modificações impostas à política social, que permitiram a criação do Estado do “Mal-Estar” social, ao público-alvo inicial somam-se os trabalhadores precarizados54 excluídos do sistema complementar de seguridade social, ou seja, da seguridade privada. Esse contexto indica que a estabilização econômica impôs às políticas sociais limitações que impediram a superação de sua característica compensatória, ou o que é ainda pior, a política de controle da inflação gerou um desemprego estrutural que aumentou o número de pessoas que necessitam de proteção social. Os desafios são os mesmos e se tornam mais aprofundados. Ou seja, configura-se aqui uma relação particular entre políticas sociais e pobreza. Com relação à representação social das políticas sociais, o estudo permite afirmar que, em face do sentido muito especial que a saúde adquire em uma sociedade, a afirmação de Kliksberg torna-se emblemática, ao propor que as pessoas “[...] tendem a uma atitude de apoio quase consensual à melhoria das condições de saúde e uma intolerância muito maior à desigualdade em saúde que em outros campos.”55 52

BARROS, R; HENRIQUES, R; MENDONÇA, R. Desigualdade e pobreza no Brasil: estabilidade inaceitável. Brasília: Ipea, 2000. 53

54

MINAYO (1999). In: KERSTENETZKY, Célia Lessa; CARVALHO, Fernando J. Cardim. Op. cit., p. 8.

Essa é uma tendência que se acentua nos anos 90. No Brasil, os dados da PME/IBGE em 1994 atestam o aumento da precariedade do trabalho. O percentual da população ocupada, trabalhando de 40 a 48 horas semanais e auferindo rendimento inferior a um salário mínimo, subiu 11,1%. Já o percentual de trabalhadores com carteira assinada caiu 56%, em 1993, para 49%, em 1994. Destaque-se, ainda, que houve crescimento nos registros de trabalhadores por conta própria. Conjuntura Econômica, out. 94; Gazeta Mercantil, 27 out. 94.

55

KLIKSBERG, Bernardo. Desigualdade na América Latina: o debate adiado. São Paulo: Cortez/ Brasília: UNESCO, 2000. p. 64.

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A análise das políticas diretamente direcionadas à área da saúde, ou mais especificamente à assistência médica, nos permitirá uma maior visibilidade do papel desempenhado pelas instituições médicas na construção dessas representações sociais.

A saúde como questão social A questão da saúde, na sua vertente médico-hospitalar, tem constituído um elemento de destaque na política de saúde pública no Brasil, isso porque desde o seu início foi privilegiada a assistência médica em detrimento das ações preventivas e de promoção da saúde. Como indicado anteriormente, as políticas sociais no capitalismo têm dentre o conjunto de ações desenvolvidas pelo Estado, no que diz respeito àquelas direcionadas à saúde pública, o objetivo da manutenção da saúde do trabalhador visando à preservação do processo produtivo. O Brasil, no início do séc. XX, era um país essencialmente agrícola, com a produção voltada maciçamente para o plantio do café, e a saúde pública fazia parte das preocupações sobre as condições gerais necessárias à manutenção da produção. Apesar do proclamado, na realidade a saúde pública restringia sua atuação às áreas produtivas, onde se concentrava a principal atividade econômica do país. Quanto às demais áreas, as questões sanitárias ficaram desprotegidas da ação estatal. Essa situação impedia o estabelecimento de uma política nacional de saúde pública, em que as ações tinham um caráter esporádico e localizado, em momentos de epidemias e/ou crise sanitária. O alvo da política estatal eram o sucesso da política de imigração e a garantia das relações comerciais com o exterior, e para isso criou as condições necessárias para o sucesso da empreitada. Apesar da criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, na década de 20 as ações que predominaram nas estratégias governamentais foram as relativas à assistência médica. Essa opção fica clara na implantação das Caixas de Aposentadorias e Pensões – CAPs – instituídas a partir desse período com a finalidade assistencial, que institucionalizaram o seguro social, ao qual só tinham acesso aqueles que participassem financeiramente de forma compulsória de sua constituição. Até 1930 a assistência médica individual era oferecida por grandes empresas que mantinham um sistema de benefícios e pelas CAPs, para algumas categorias. A grande massa trabalhadora urbana e rural estava excluída. Após esse período, com a alteração do caráter do Estado e do próprio processo de 45

desenvolvimento do capitalismo no Brasil, a preocupação do sistema de previdência toma outra dimensão, principalmente com o processo de industrialização. A saúde pública, na realidade, desde a constituição do Estado do Bem-Estar brasileiro, teve sua importância diminuída na política estatal. [...] ao lado das políticas de Saúde Pública desenvolvia-se uma outra forma de atendimento aos problemas de saúde – a desenvolvida pelas empresas e voltadas para a solução dos problemas individuais de saúde 56 dos trabalhadores através da assistência médica curativa.

A dicotomia entre atenção individual e coletiva, e curativo e preventivo, refere-se claramente ao direito à saúde e constitui uma questão histórica relativa à saúde pública como prática social. Principalmente porque a característica da política de saúde brasileira reside justamente no fato de a assistência médica ter estado sempre associada à previdência social. Cohn discute essa proposição: Não só esse fato remete o direito à saúde marcado pela distinção original de inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho, como convive com as medidas implementadas pela saúde pública, que antecedem à própria instituição da previdência social no país. Caracterizada pela responsabilidade das ações de caráter coletivo de natureza preventiva no controle de endemias e programáticas na atenção a grupos selecionados da população – materno-infantil, tuberculosos, hansenianos e outros – a saúde pública no decorrer do tempo convive de forma tensamente complementar com a assistência médica individual filantrópica e previdenciária, e posteriormente da rede pública, sendo crescentemente pressionada a buscar nova identidade sem perder a sua especificidade. Essa complementaridade tensa traduz exatamente a questão do coletivo contraposta ao individual, a do curativo contraposta 57 ao preventivo.

A partir dessa oposição entre curativo e preventivo se cristalizou a concepção de assistência médica como saúde que desconsidera a sua natureza social. [...] Não se constitui, portanto, saúde como um direito do cidadão e muito menos dever do Estado, mas sim a assistência médica como um serviço ao qual se tem acesso a partir da clivagem inicial da inserção no 56 57

TOMAZI, Zelma Torres. Op. cit., p. 58. COHN, Amélia et al. A saúde como direito e como serviço. 2.ed. São Paulo: Cortez, 1999. p. 13.

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mercado de trabalho formal e para a qual se tem que contribuir com um percentual do salário, sempre por meio de um contrato 58 compulsório.

A industrialização provocou o crescimento da população urbana, notadamente da população urbana assalariada, gerando enormes transformações no contexto social e conseqüentemente nas expectativas relativas aos serviços de saúde. Macêdo chama a atenção para o fato de que tais mudanças ocorrem em praticamente todos os países da América Latina e, como veremos no capítulo seguinte, de forma acentuada em Joinville (SC). A urbanização geográfica foi acompanhada de uma urbanização cultural ainda mais completa. A difusão da informação, disseminando valores e gerando expectativas, ajudou a generalizar os padrões de demanda e de organização social para sustentá-las, originariamente urbanos [...]; a transição demográfica vem concomitantemente com a transformação epidemiológica e com a mudança conseqüente dos quadros nosológicos. Além do impacto sobre a natureza e composição dos riscos e problemas de saúde, a evolução demográfica afirmou a relação de interdependência 59 entre atividades de população e atenção à saúde.

No período pós-Segunda Guerra Mundial, o país, já sob forte influência americana, desenvolve um modelo hospitalar semelhante ao americano, com a construção de grandes hospitais e equipamentos, concentrando a assistência médica de toda uma região e relegando a atenção básica a um segundo plano. Convém ressaltar que a Organização Mundial da Saúde – OMS –, criada oficialmente em 1948, definiu saúde como o estado de completo bemestar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade ou afecção. Segundo Macêdo, entre os instrumentos jurídicos internacionais que obrigam os Estados ao reconhecimento da saúde como direito de seus cidadãos, o da OMS é o que em seus princípios mais enfaticamente estabelece que o desfrute do grau máximo de saúde que se possa lograr é um dos direitos fundamentais de todo ser humano sem distinção de raça, religião, ideologia política ou condição econômica ou social; afirma 58 59

Ibid., p. 15.

MACÊDO, Carlyle Guerra de. Notas para uma história recente da saúde pública na América Latina. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 1997. p. 12.

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que “os governos têm a responsabilidade pela saúde de seus povos que somente pode ser cumprida através da adoção de medidas de saúde e sociais adequadas”; condena as desigualdades e reconhece a importância da saúde para a paz, o desenvolvimento e a solidariedade necessária, assim como a importância da informação e da cooperação públicas para 60 a saúde.

Portanto, poderíamos acreditar que a partir desses princípios gerais de saúde as ações estatais enfocariam mais as práticas preventivas, o que na realidade não ocorreu. Segundo Luz, “Além disso, começou a se desenhar a proposta de hierarquização na prestação desses serviços, com prioridade concedida ao que posteriormente se designou como atenção primária”.61 Mesmo com a criação do Ministério da Saúde, a década de 50 caracterizou-se como um período intenso da participação das instituições hospitalares privadas, diante da presença pouco efetiva do poder público no setor da assistência à saúde. Como decorrência dessa situação, abriu-se espaço para um acelerado processo de expansão do setor privado, principalmente no seu papel de fornecedor de serviços hospitalares ao governo federal. Organiza-se, a partir desse momento, todo o sistema contratado. O Estado, para poder realizar suas políticas, lança mão da associação com intermediários, estabelecendo uma simbiose entre o público e o privado. Essa prática empresarial destruiu ou modificou completamente as associações voluntárias, os grupos de ajuda mútua e as instituições religiosas que predominavam na prestação dos serviços sociais. Essa tendência nacional colaborou, como vimos na Introdução, para a mudança gradual do Hospital Municipal São José de instituição religiosa para leiga. Em trabalho sobre as modificações implementadas pelos governantes na esfera das políticas públicas setoriais, Tomazi enfatiza que de 1950 a 1966 há duas ordens de mudança no âmbito do sistema de Saúde. Primeira: cresce consideravelmente a assistência médica. Segunda: a situação econômico-financeira do sistema previdenciário sofre graves crises. O crescimento da assistência médica levará o subsetor Medicina Previdenciária a sobrepujar o de Saúde Pública, em termos de política 62 estatal, a partir de 1966. 60 61

Ibid., p. 34.

LUZ, Madel Therezinha. Duas questões permanentes em um século de políticas de saúde no Brasil republicano. Ciência & saúde coletiva, Rio de Janeiro, 5 (2), p. 301, 2000. (grifo da autora) 62

TOMAZI, Zelma Torres. Op. cit., p. 64.

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Ainda sobre o modelo de atenção hospitalar estimulado, após o golpe militar, Luz (1979) ressalta que com o modelo de compra de serviços privados ignora-se a atenção básica às estratégias preventivas e promotoras de saúde e praticamente se extingue a atividade médica de cunho liberal.63 A unificação dos IAPs em 1966, com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social – INPS –, originou o chamado complexo previdenciário, que se compõe de dois sistemas: o sistema próprio e o sistema contratado. O sistema próprio compreende os hospitais próprios e os postos de assistência do INAMPS. O sistema contratado compreende a compra de serviços de terceiros, maior parte da rede privada da prestação de serviços, e se estrutura de duas formas: credenciamento e convênios. O credenciamento é feito com casas de saúde e hospitais, cujo pagamento é por unidade de serviço (US), com exceção da tisiologia e psiquiatria, em que o contrato é global por diária. Os convênios são, na maior parte dos casos, feitos com empresas industriais e comerciais que contratam empresas médicas de grupo (cooperativas médicas). 64 Para conseguir atingir todos os trabalhadores inscritos na previdência social, e que conseqüentemente passaram a ter direito à assistência médica, o gasto com atenção médica vai articulando-se com práticas médicas cada vez mais tecnificadas, impondo hospitais e unidades de serviço de saúde com caráter de empresas capitalistas, no sentido de elevar seus requisitos de capital. Crescem os gastos com assistência médica e hospitalar – de 22% em 1960 para 38,2% em 1967, já sob o INPS – 65 cristalizando-se desse modo a tendência dos anos 60.

Com o início da abertura política, após 1974, os investimentos impulsionaram o setor privado, incrementando serviços de alta densidade tecnológica, como observa Mendes (apud STUCKY, 1997): É de ver-se que, em 1969, havia 74.543 leitos privados no País e, em 1984, eles chegam a 348.255, ou seja, num período de 24 anos, dáse um crescimento da rede privada em 465%, possibilitada, sobretudo, pelas políticas da Previdência Social, conformadora de um sistema de atenção hospitalocêntrico. Tomando-se apenas o setor contratado pela Previdência Social, no período 1971 a 1977, as 63

MARINHO, Alexandre; MORENO, Arlinda Barbosa; CAVALINI, Luciana Tricai. Avaliação descritiva da rede hospitalar do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: IPEA, 2001 (Texto para discussão n.º 848). 64 65

TOMAZI, Zelma Torres. Op. cit., p. 69. Id.

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internações crescem 322%, as consultas médicas 638% e os serviços 66 de apoio diagnóstico 434%.

Ainda com relação às ações governamentais na área da saúde destacase o Sistema Nacional de Saúde – lei 6229/75 –, que reafirmou as tarefas a cargo da previdência social e do Ministério da Saúde, [...] ao mesmo tempo que referenda a situação de fato de os serviços vinculados ao Ministério da Saúde estarem agora contemplando também a assistência médica individual. Dadas, porém, a importância da presença da previdência social nos serviços de saúde, e sua opção pela compra dos serviços privados – seja sob a forma de credenciamento ou sob a forma de convênios – associada a um decrescente gasto do orçamento da União com o setor, cristaliza-se nessa mesma década o setor privado de prestação de serviços médicos. Mais do que se cristalizar, esse setor floresce e se capitaliza às custas da intervenção estatal não na área propriamente de saúde mas da previdência social. Em contraposição, a rede pública de serviços passa a sofrer de um acentuado processo de sucateamento, fruto da sua não-prioridade no interior das políticas de 67 saúde, e destas no interior das diretrizes políticas gerais do país.

A expansão da rede privatista, legalmente institucionalizada pelo sistema contratado, definiu, de acordo com Stucky, as competências de cada sistema: [...] Comparativamente pode-se afirmar que as ações de “saúde pública” consideradas não-rentáveis eram de responsabilidade do setor estatal, ao passo que as ações de “atenção médica”, consideradas rentáveis, cabiam ao setor privado intermediado pela Previdência Social. A complexidade do processo de especialização das organizações previdenciárias buscou organização racional para garantir a expansão da população beneficiária e a centralização administrativa, no movimento que deu origem ao Instituto Nacional de Assistência Médica 68 e Previdência Social (INAMPS).

Em 1978, na conferência de Alma-Ata, antiga URSS, atual Cazaquistão, surgiu a proposta internacional de cuidados primários em saúde 66

STUCKY, Rosane M. Michel. As políticas públicas e a exclusão na conquista do direito universal à saúde. In: BONETI, Lindomar Wessler (org.). Educação, exclusão e cidadania. Ijuí: UNIJUÍ, 1997. p. 58. 67 68

COHN, Amélia et al. Op. cit., p. 16. STUCKY, Rosane M. Michel. Op. cit., p. 58.

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que levassem à população da periferia urbana e do setor rural, os excluídos do modelo médico-assistencial privatista, um modelo de saúde de baixo custo. Definiu-se como meta a busca de saúde para toda a população – SPT –, tendo como a principal estratégia a Atenção Primária da Saúde – APS – com oito componentes mínimos.69 Para implementar os cuidados primários no Brasil [...] lançou-se então a proposta de atenção primária seletiva em programas executados com poucos recursos, oferta de tecnologias simples providas por pessoal de baixa qualificação profissional e com ênfase à participação comunitária como solução para os problemas de 70 atenção à saúde pública.

Ao final da década de 70 e início da de 80, as discussões sobre a área da saúde e as práticas estatais intensificam-se por causa de grande mobilização da sociedade civil. Não podemos esquecer que o período caracterizou-se pela retomada das mobilizações de sindicatos e partidos, que por sua vez marcaram o ressurgimento dos movimentos populares que exigiam soluções para os diversos problemas sociais aprofundados com a gravidade da crise econômica e também como conseqüência do modelo econômico adotado pelo regime militar. Com relação à situação específica da saúde, em suplemento especial, a Folha de S.Paulo realizou um balanço da área da saúde pública no período dos anos 70, em que a partir das discussões empreendidas por pessoas ligadas à área é possível se verificar o posicionamento dos profissionais do setor ante a situação vigente. Sobre a relação entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Previdência e a disponibilidade de recursos, nós podíamos simplificar e dizer que o Ministério da Previdência tem por finalidade específica manter a mão-de-obra em condições de produzir bens e serviços. Por isso mesmo, dentro da lógica do modelo o Ministério da Previdência tem tantos recursos à sua disposição. Ao Ministério da Saúde compete, em princípio, cuidar, dirigir suas atenções para a população marginal sob o ponto de vista econômico, porque a que está trabalhando no esforço produtivo é da responsabilidade do Ministério da Previdência. Por isso mesmo o Ministério da Saúde tem 71 tão poucos recursos. 69

Componentes da APS: educação para a saúde, alimentação e nutrição, água potável e saneamento básico, assistência materno-infantil, incluindo planejamento familiar, imunizações, combate às enfermidades endêmicas, tratamento de enfermidades e traumatismos e medicamentos essenciais. 70 71

STUCKY, Rosane M. Michel. Op. cit., p. 59. Assistência Médica pra quem? Folha de S.Paulo, São Paulo, 20 jan. 1980. Folhetim, n. 157, p. 3.

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Reforçando a crítica ao modelo executado no Brasil, Gentile salienta que, apesar de o texto legal – Lei 6229 – determinar que cabia ao Ministério da Saúde elaborar a política nacional de saúde, na prática era o Ministério da Previdência quem estava desempenhando esse papel. E em sua opinião “[...] está perfeitamente dentro do modelo privatizando, comprando, pagando melhor aqueles que usam mais tecnologia e instalações e equipamentos fabricados pelas multinacionais”.72 Ressaltava também que a lógica da “pobreza de recursos cuidando da carência” era percebida e sentida pela população: Neste município de SP, números enormes de indivíduos não têm acesso a um serviço de saúde para um primeiro atendimento. É uma criança com diarréia e a mãe que tem que se deslocar distâncias enormes para encontrar uma assistência. É a mãe que deixa de vacinar a criança porque não tem uma unidade próxima da sua casa, ou razoavelmente próxima. 73 Isso a população sente, é isso que a população pede.

Em outra matéria, do mesmo suplemento, com o título “Nossas crianças continuam morrendo”, destacava-se [que] um acentuado aumento no índice da mortalidade infantil, a constatação de que as doenças que matam nossas crianças poderiam ser evitadas e uma política orçamentária deficiente marcaram a saúde infantil nos anos 70. De positivo apenas a criação do Programa de Saúde Materno-Infantil, que ainda está bastante longe de alcançar os objetivos propostos. No Brasil, as crianças ainda morrem por diarréia, por doenças respiratórias, por sarampo, coqueluche, tétano, difteria, tuberculose. 74 Ou por pura e simples desnutrição.

Na mesma reportagem encontramos a opinião de João Yunes, professor de pediatria social do departamento de pediatria da faculdade de medicina da USP, que afirmava que “tentar melhorar esta situação significa, basicamente, tentar melhorar os aspectos sociais e econômicos do País. Porque saúde física é simplesmente o reflexo da saúde social de um povo.”75 Analisando o fato de que as propostas de mudanças na saúde surgidas na época contemplavam a atenção primária como o foco das discussões e ao mesmo tempo ressaltando o fato de persistir no Brasil o atendimento secundário 72 73 74

Ibid., p. 4. Ibid., p. 3.

BENICHIO, Marlene. Nossas crianças continuam morrendo. Folha de S.Paulo, São Paulo, 20 jan. 1980. Folhetim, n. 157, p. 7. 75 Id.

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ou terciário, Leser entendia que essa prática se justificava pelo fato de nos países pobres existirem muitas doenças e uma baixa renda da população, originando as circunstâncias propícias para as más condições de educação, de habitação, de saneamento, o que leva a mais doenças e, portanto, a um círculo vicioso. Daqui surge, então, uma demanda enorme de assistência. Assistência à doença, isto é, assistência curativa. E, não havendo uma resistência, vai absorver a quase totalidade, como é o caso aqui, dos recursos disponíveis para a saúde, sobrando muito pouca coisa para as medidas de natureza preventiva. Aí não é só setor de saúde, saneamento também, habitação, tudo isso.[...] Nós estamos usando o pouco que temos para curar doenças, muitas das quais poderiam ter sido evitadas ou pelo menos atendidas numa fase mais precoce, antes de tornar-se necessário o 76 emprego de recursos hospitalares, mais caros, necessariamente.

Como forma de ratificar a posição dos profissionais da saúde e também dos estudiosos da área, Donângelo chamava a atenção para o fato de que na década se tinha assistido a uma politização da questão sanitária no interior da própria medicina e não apenas de fora dela. Demonstrando a mesma preocupação com a ação governamental na área da saúde, inclusive aquela relativa à preparação de recursos humanos em todos os níveis para o setor, Braga resumia a preocupação nos anos 70 que indicava uma atitude [...] pela aceitação, cada vez maior, do princípio que o desenvolvimento nacional não pode ser realizado nos ombros de um povo doente e ignorante e que, por conseguinte, o homem tem que ser visto, não só como principal instrumento, mas também como objetivo único e final do complexo processo que tem por exclusiva – e impreterível – finalidade o bem-estar dos seres humanos. Ao longo da década foi, portanto, ganhando corpo o conceito de que o componente “saúde”, com todo o instrumental de ação a ele inerente, deve estar situado no centro daquele processo, posto que constitui fator de fundamental importância para a elevação da qualidade de vida da população e, conseqüentemente, para 77 o desenvolvimento.

Diante da situação precária destinada à atenção primária de saúde implementada pelo governo, teve início um movimento da saúde que deu 76 77

Assistência Médica pra quem? Op. cit., p. 6.

BRAGA, Ernani. Uma ponte entre a educação e a saúde. Folha de S.Paulo, São Paulo, 20 jan. 1980. Folhetim, n. 157, p. 9.

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origem à reforma sanitária brasileira. Por meio da mobilização e articulação de movimentos de trabalhadores de saúde, surgiram as propostas alternativas ao modelo médico-assistencial privatista. Propunham um modelo institucional redistributivo. Em contrapartida, o setor conservador, o hegemônico, buscava implementar as reformas preconizadas pelo projeto neoliberal com o objetivo de reciclar o modelo médico-assistencial privatista. A grave crise econômica tem conseqüências profundas na área da saúde, principalmente pelo financiamento do setor estar vinculado aos recursos da previdência social. Por esse motivo é comum encontrarmos muitos estudos que se referem à crise da previdência. No entanto, como citado anteriormente, para Motta tal crise expressa o movimento de formação de uma cultura política da crise, marcada pelo pensamento privatista e pela constituição do cidadãoconsumidor. E ainda relaciona os momentos de crise da seguridade aos momentos de crise do próprio capitalismo. A criação do SINPAS – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social –, juntamente com o Instituto de Administração Financeira da Previdência Social (IAPAS) e o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS), englobando o FUNRURAL, que depois foi extinto, implicou mudanças logo percebidas pelo setor de saúde. Como o INAMPS passa a ser o órgão responsável pela assistência médica previdenciária, ao mesmo tempo em que seu aporte de recursos cresce, sua exposição a críticas, cobranças e utilização clientelística também é aumentada. De qualquer forma, uma vez mais, num período de aguda crise econômica, vem à tona a fragilidade do suporte financeiro do SINPAS, em razão de o seu sistema de financiamento continuar sendo, fundamentalmente, uma função da massa salarial, tendo que atender o ritmo acelerado das demandas e a ganância do setor privado produtivo 78 e da saúde, em particular.

O país, para fazer frente à crise da previdência, particularmente a ocorrida entre 1980-1981, lança mão de um conjunto de medidas com o objetivo de conter as despesas. Na área da assistência médica surgem as AIS (Ações Integradas de Saúde) e a AIH (Autorização de Internação Hospitalar). A grande modificação em relação ao sistema até então adotado refere-se ao fato de que, com a implantação das AIS, qualquer pessoa independentemente de vínculo trabalhista passou a ter acesso aos serviços de saúde. Essa “universalização” dos serviços de saúde era custeada pelos recursos do INAMPS, que originariamente provinham das contribuições dos trabalhadores assalariados. Dessa forma, o governo realizou a “democratização” do sistema de assistência médica com o dinheiro da classe trabalhadora. 78

COHN, Amélia; ELIAS, Paulo E. Op. cit., p. 24.

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Apesar desse aspecto, Soares considera este um dos momentos mais significativos relacionados ao sistema de saúde. As mudanças no setor Saúde foram nitidamente lideradas pelo INAMPS, responsável não apenas pela maior rede hospitalar e ambulatorial pública do país, mas também pelos repasses financeiros realizados às redes estaduais e municipais, que sustentavam mais de 80% das ações de saúde a nível nacional. A primeira e mais radical dessas mudanças foi a universalização de toda a rede do INAMPS, à qual passaria a ter acesso todo e qualquer cidadão independentemente de ser ou não contribuinte 79 da Previdência Social.

Em 1986 a VIII Conferência Nacional de Saúde formulou um projeto de Reforma Sanitária que contemplava a universalização e a descentralização da saúde. O projeto contou com o apoio dos mais diversos integrantes dos movimentos sociais da época: partidos políticos, prestadores de bens e serviços de saúde públicos e privados, universidades e organizações não-governamentais, em busca de modificações que permitissem a constituição de um sistema democrático e moderno. Como resultado da mobilização pela reforma sanitária, o governo atua no sentido de reagir às pressões sociais (...) É nesse contexto que emerge a proposta do SUDS (Sistema Descentralizado e Unificado da Saúde) sob a forma de convênios do INAMPS com as Secretarias Estaduais de Saúde. Esses convênios começaram a ser assinados em 1987, passando às Secretarias Estaduais 80 de Saúde o comando do sistema no âmbito estadual.

Os convênios e as AIS foram substituídos em julho de 1987 pelo Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde – SUDS –, que permitiu a inédita descentralização do setor de saúde, ao definir no ato de sua criação que o sistema deveria estar fundado na cooperação e na integração entre os níveis de governo. Os convênios com os municípios foram mantidos, e os repasses de recursos, feitos através dos Estados, que por sua vez viram o fortalecimento de suas Secretarias de Saúde. [...] Esta unificação das redes de serviços era regional e sob o comando dos Estados. Para tal foi elaborado um cronograma de extinção do INAMPS e de suas estruturas regionais, e montada uma estrutura de assessoramento, controle e avaliação do processo de descentralização 81 nos Estados. 79 80 81

SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Op. cit., p. 241 (grifos da autora). COHN, Amélia; ELIAS, Paulo E. Op. cit., p. 45. SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Op. cit., p. 246.

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Para Soares, não podemos desconsiderar a importância da universalização iniciada em 1985, na organização de uma rede universal de serviços de saúde, única na América Latina até os dias atuais. Por esse motivo compreende que as AIS – Ações Integradas de Saúde – passam a assumir expressão nacional, incorporando, até 1987, a totalidade das Unidades Federadas e a grande maioria dos Municípios. Sua expansão permitiu notável incremento da capacidade instalada da rede pública, sobretudo criando a infra-estrutura da rede ambulatorial de cuidados básicos de saúde, essencial para o desenvolvimento de políticas de universalização e descentralização. (...)Este desenvolvimento, no entanto, consolida-se a partir de 1987 com o advento do SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde –, que antecipou uma série de inovações consolidadas na Constituição de 1988, como universalização e eqüidade no acesso aos serviços de saúde, integralidade da assistência, regionalização e integração dos serviços, descentralização das ações e recursos, desenvolvimento de organismos gestores colegiados, entre outras. Além do considerável incremento de recursos repassados aos Estados e Municípios nesse período, o SUDS introduziu um efetivo mecanismo de descentralização dos recursos, que possibilitou a sua distribuição de forma mais eqüitativa e sob um efetivo controle público.[...] ao contrário do pagamento exclusivamente por produção de serviços, não induzia à corrupção e possibilitava um transparente acompanhamento dos recursos 82 programados, repassados e efetivamente gastos.

A Constituição de 1988, em seus capítulos sobre a Ordem Social e Da Seguridade Social, estabelece: Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Os princípios que regem o Sistema Único de Saúde – SUS – são a universalidade do atendimento, a eqüidade das ações, a descentralização dos serviços e a participação social em seu controle realizado pelos Conselhos de Saúde. 82

Ibid., p. 242.

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Na prática, porém, a existência de um texto constitucional avançado em termos de acesso aos serviços, da descentralização e do controle social que indicavam a necessidade de novas formas de gestão do sistema esbarrou nas dificuldades da elaboração das normas operacionais para colocar o novo modelo em ação. Enfrentou principalmente a velha máquina burocrática, ineficiente, sem contar as pressões por mais recursos para tocar a mesma máquina de sempre, com os mesmos e conhecidos problemas. O sistema começou a efetivamente viabilizar o pleno direito à saúde, quando no campo jurídico foram elaboradas as leis ordinárias, conhecidas por Leis Orgânicas do SUS – LOS –, Lei 8080/90 e Lei 8142/90, e posteriormente pelas Normas Operacionais Básicas – NOB –, que representam um roteiro normativo para a organização e gestão do sistema. Somente com a NOB 96 o sistema consolidou o poder público municipal e o Distrito Federal na função de gestor da atenção à saúde e redefiniu as responsabilidades dos Estados, do Distrito Federal e da União. A NOB-SUS/96 reordenou o modelo de atenção à saúde quando redefiniu: a) os papéis de cada esfera de governo e, em especial, no tocante à direção única; b) os instrumentos gerenciais para que os municípios e Estados superem o papel exclusivo de prestadores de serviços e assumam seus respectivos papéis de gestores do SUS; c) os mecanismos e fluxos de financiamentos, reduzindo progressiva e continuamente a remuneração por produção de serviços e ampliando as transferências de caráter global, fundo a fundo, com a base em programações ascendentes, pactuadas e integradas; d) a prática do acompanhamento, controle e avaliação do SUS, superando os mecanismos tradicionais, centrados no faturamento de serviços produzidos, e valorizando resultados advindos de programações com critérios epidemiológicos e desempenho com qualidade; e) os vínculos dos serviços com seus usuários, privilegiando os núcleos familiares e comunitários, criando, assim, condições para uma efetiva participação e controle social. Como instrumento de regulação do SUS a NOB/96 enfatiza os campos de atenção à saúde, que encerram o conjunto de ações levadas a efeito pelo sistema de saúde, a saber: a) o da assistência, em que as atividades são dirigidas às pessoas, individual ou coletivamente, e que é prestada no âmbito ambulatorial e hospitalar, bem como em outros espaços, especialmente no domiciliar; 57

b) o das intervenções ambientais, no seu sentido mais amplo, incluindo as relações e as condições sanitárias nos ambientes de vida e de trabalho, o controle de vetores e hospedeiros e a operação de sistemas de saneamento ambiental (mediante o pacto de interesses, as normalizações, as fiscalizações e outros); c) o das políticas externas ao setor de saúde, que interferem nos determinantes sociais do processo saúde-doença das coletividades, de que são partes importantes questões relativas às políticas macroeconômicas, ao emprego, à habitação, à educação, ao lazer e à disponibilidade e qualidade dos alimentos.83 O texto constitucional determina que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, desde que atue de forma complementar ao sistema público. Com relação à organização do sistema, instituiu-se uma novidade ao estabelecer que a totalidade das ações e de serviços de atenção à saúde estaria submetida ao subsistema municipal, SUS Municipal, dessa forma determinando que a gestão dos estabelecimentos é da competência do poder público municipal. Para a NOB/96 gerência é a administração de uma unidade ou órgão de saúde (ambulatório, hospital, instituto, fundação etc.) que se caracteriza como prestador de serviços ao sistema. Quanto à gestão refere-se à atividade e à responsabilidade de dirigir um sistema de saúde (municipal, estadual ou federal) mediante o exercício de funções coordenadas, articulação, negociação, planejamento, acompanhamento, controle, avaliação e auditoria. Foram criadas duas formas de gestão para o Estado – avançada e plena do sistema estadual de saúde – e duas para os municípios – a gestão plena da atenção básica e a gestão plena do sistema municipal de saúde.84 As inovações no aspecto jurídico-institucional, tendo como referencial a NOB/96, podem ser verificadas no quadro 1. Os repasses financeiros também foram modificados pela NOB/96 ao estabelecer a passagem direta do fundo nacional aos fundos municipais de saúde dos recursos relativos à assistência ambulatorial básica para os municípios habilitados na gestão plena da atenção básica e na gestão plena do sistema. A principal modificação introduzida pela norma operacional está relacionada à efetiva implantação da descentralização e refere-se ao processo para o repasse dos recursos federais para os municípios, que substituiu o cálculo sobre a produção por serviços prestados por um valor fixo per capita – R$ 10,00/ano, o PAB (Piso de Atenção Básica) – e inclui, além da assistência médica em geral, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), o Programa de Saúde 83

NORMA OPERACIONAL BÁSICA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – SUS. Disponível em Acesso em: 10 jul. 2002. 84 Ibid., p. 5.

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59 Quadro 1 – Marco jurídico-institucional: distribuição de atribuições do Sistema Único de Saúde, segundo os níveis de governo Fonte: NEPP/UNICAMP

da Família (PSF), aquisição de medicamentos básicos, vigilância sanitária e combate a carências nutricionais. O aparato jurídico-institucional do SUS (quadro 1), além da descentralização, contempla a democratização, através de instâncias intergestoras de decisão dos sistemas por intermédio dos conselhos de saúde nos três níveis de governo. Os conselhos de saúde constituem órgãos ou instâncias colegiadas de caráter permanente e deliberativo, em cada esfera de governo, integrante de uma estrutura básica da Secretaria ou Departamento de Saúde de Estados e Municípios, com composição, organização e competência fixadas por lei. O conselho consubstancia a participação da sociedade organizada na administração do sistema de saúde, propiciando o controle social deste. A legislação estabelece uma composição paritária dos usuários, em relação aos segmentos representados. Os conselhos de saúde devem ser compostos por representantes do governo, de profissionais de saúde, de prestadores de serviços e usuários, sendo seu presidente eleito entre os seus membros. Dentre as diversas competências dos conselhos de saúde queremos destacar algumas delas: • atuar na formulação e controle da execução da política de saúde, incluídos seus aspectos econômicos, financeiros e de gerência técnicoadministrativa; • estabelecer estratégias e mecanismos de coordenação e gestão do SUS, articulando-se com os demais colegiados nos planos nacional, estadual e municipal; • traçar diretrizes de elaboração e aprovar os planos de saúde, adequando-os às diversas realidades epidemiológicas e à capacidade organizacional dos serviços; • examinar propostas e denúncias, responder a consultas sobre assuntos pertinentes a ações e serviços de saúde, bem como apreciar recursos a respeito de deliberações do colegiado; • fiscalizar e acompanhar o desenvolvimento das ações e serviços de saúde; • fiscalizar a movimentação de recursos repassados à Secretaria de Saúde e/ou ao Fundo Municipal de Saúde; • estimular a participação comunitária no controle da administração do sistema de saúde; • propor critérios para a programação e para as execuções financeiras e orçamentárias dos fundos de saúde, acompanhando a movimentação e destinação de recursos; 60

• estabelecer critérios e diretrizes quanto à localização e ao tipo de unidades prestadoras de serviços de saúde públicos e privados, no âmbito do SUS. Por sua vez as ações e os serviços públicos de saúde integram uma rede organizada e hierarquizada e constituem um sistema único. Têm seu financiamento baseado nas contribuições do empregador, do trabalhador e dos recursos provenientes do orçamento da seguridade social. As fontes que asseguram os recursos ao Ministério da Saúde, conforme mostra a tabela 1 (pág. seguinte), são a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), a Contribuição Sobre o Lucro Líquido da Pessoa Jurídica (CLL), a Contribuição sobre a Folha de Salários, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), o PIS, o PASEP, parte da arrecadação dos concursos prognósticos, 50% do Seguro Obrigatório de Acidentes Automotivos, a Contribuição para o Salário Educação, a Contribuição Seguridade Social dos Servidores e o Fundo de Estabilização Fiscal (FEF). Os recursos provenientes da receita orçamentária têm sido meramente residuais, já que submetidos aos ciclos econômicos e aos mecanismos de ajuste conservador. Os dados relativos ao valor arrecadado pelas principais fontes do orçamento fiscal e da seguridade social demonstram que a participação das contribuições de caráter público tem aumentado, conforme estudo elaborado pelo IPEA/DPS/CSP para o período de 1988-1996; a participação das fontes de contribuição da seguridade social saltaram de 6% do PIB em 1988 para 11% em 1996. Já as fontes das receitas fiscais somavam 6,53% do PIB em 1988 e 7,34% em 1996. Costa85 em estudo sobre o SUS demonstra, a partir das fontes e aplicações dos recursos para o Ministério da Saúde, que é possível verificar que com o aumento das contribuições sociais, principalmente da CPMF, o governo tem destinado, ou como assinala o autor, desviado receitas de algumas das contribuições sociais. A tabela 1 permite a visualização da inversão das receitas, com destaque para os anos de 1997 e 1998. A redução orçamentária do Ministério da Saúde em 1998 contrariava a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Executivo, que determinava que o orçamento para a saúde para aquele ano deveria ser, no mínimo, igual ao de 1997. As conseqüências da redução significaram o comprometimento da execução de programas de promoção, prevenção e recuperação da saúde. Costa faz referência à situação de abandono a que foram submetidos alguns dos programas do Ministério da Saúde: Programa de Combate a Carências 85

COSTA, Humberto. Sistema Único de Saúde: o desafio de construir e garantir a cidadania. Observatório da cidadania. Rio de Janeiro: IBASE, s.d. Disponível em < http:/ www.ibase.org.br> Acesso em: 10 jul. 2002.

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Tabela 1 – Fontes de recursos destinados ao Ministério da Saúde

62 Fonte: Assessoria de Orçamento da Câmara dos Deputados Valores deflacionados pelo IPI-DI médio do período. Elaborado por Humberto Costa

Nutricionais – 37% do programa realizado; Programa de Saúde Materno-Infantil – 46% executado; Programa de Saneamento Básico/ Fundação Nacional de Saúde – 59% realizado; Programa de Vigilância Sanitária – menos de 70% executado. É óbvio que os mais prejudicados com os cortes orçamentários são justamente as pessoas que mais necessitam dos programas desenvolvidos para a garantia tanto da assistência primária à saúde como também do setor médico-hospitalar. Os gastos com saúde no Brasil têm se constituído como irrisórios se tomarmos como parâmetro a indicação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de um gasto mínimo de US$ 500,00 por habitante/ano. Vejamos os dados relativos à década de 80: Tabela 2 – Evolução dos gastos públicos com saúde – per capita

Fonte: IPEA (1992); Médici (1993)

Apesar das freqüentes considerações a respeito da crise da previdência e seus reflexos no sistema de saúde, o que podemos observar é que os gastos per capita tiveram um aumento de 9,55% entre 1980 e 1990. Porém Cohn (apud LAURELL, 1997) alerta para o fato de que os gastos federais em saúde especificamente destinados ao SUS correspondiam a US$ 80,30 per capita em 1987, caindo para US$ 44,30 em 1992 e chegando a US$ 45,55 em 1993.86 De acordo com o Conselho Nacional de Saúde o Brasil é um país rico que investe em saúde. Os gastos em saúde não alcançam R$ 200 per capita. Os países desenvolvidos investem entre US$ 800 a US$ 2000 per capita. Os países chamados do terceiro mundo 87 investem entre US$ 300 a US$ 500 por cidadão/ano. 86 87

LAURELL, Asa Cristina. Op. cit., p. 243. http://conselho.saude.gov.br/legislacao/pec-saude.htm

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A situação problemática do sistema de saúde brasileiro ficou mais exposta em 2000, quando pela primeira vez a OMS elaborou uma avaliação dos sistemas de saúde do mundo. O Brasil ficou em 125.º lugar entre um total de 191 países avaliados. Foram observados os seguintes itens: eficácia, custo por habitantes, igualdade no financiamento da saúde e a capacidade de promover justiça social. No relatório a OMS justifica a posição ocupada pelo país: “O Brasil, uma nação de investimento médio, fica entre os últimos colocados em razão dos elevados desembolsos que a população destina para cobrir gastos com saúde”.88 Uma das causas apontadas pelo estudo relativa às falhas nos sistemas de saúde é que os médicos, ao atenderem simultaneamente os pacientes públicos e privados em instalações públicas, acabam por provocar um subsídio do setor público ao setor privado e uma conseqüente queda na qualidade do setor público. José Serra, na época Ministro da Saúde, reagiu de forma indignada à divulgação do “Informe sobre a Saúde Mundial” – OMS: Os motivos principais da colocação ruim no contexto mundial estão fora do setor de saúde.[...] São eles: a distribuição de renda que tem como contrapartida ainda elevadas margens de pobreza; a semiparalisação dos investimentos em saneamento, diretamente relacionados com a mortalidade na infância e às doenças contagiosas 89 em geral, além da clara insuficiência dos orçamentos da saúde.”

A referência ao atendimento de pacientes privados em instalações públicas é sinalizador da existência da dualidade de sistema, ou seja, os serviços públicos e os serviços privados de saúde em suas várias modalidades. A assistência suplementar (planos e seguros de saúde) já exerce suas atividades no Brasil desde a década de 60 por meio da medicina de grupo, das cooperativas médicas, do seguro saúde, da autogestão e dos planos de administração. O governo federal estimulou a expansão do setor privado da saúde ao permitir que as despesas empresariais fossem consignadas como gastos operacionais, possibilitando o abatimento das despesas médicas no IRPF, ao permitir a não tributação das contribuições efetuadas pelos usuários e pela demora na regulamentação do setor. Nos anos 90, com a política econômica impondo um ajuste conservador de concepção neoliberal à área da saúde, o setor privado encontra as condições propícias para uma participação no mercado de planos e seguros de saúde. Braga e Silva definem esse momento como o de mercantilização da saúde. 88

Sistema de saúde do país é o 125.º do mundo. Folha de S.Paulo, São Paulo, 21 jun. 2000. C6, Cotidiano. 89

Governo repudia relatório da OMS. Gazeta Mercantil, São Paulo, 21-22 jun. 2000. A-9.

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A mercantilização da saúde significa o processo pelo qual a atenção médica passa a ser plenamente uma mercadoria “como outra qualquer” submetida às regras de produção, financiamento e distribuição de tipo capitalista.[...] Na mercantilização, o setor privado vai se autonomizando no financiamento, cuja expressão é os seguros-saúde privados, na produção de serviços que já conta com uma base própria de acumulação em expansão. Além disso, multiplicam-se os tipos de empresas de saúde e o consumidor de serviços se encontra no mercado e não mais diante 90 do serviço público.

Informações do Suplemento Saúde da PNAD de 1998, realizado pelo IBGE, revelam que 24,5% da população brasileira está coberta por pelo menos um plano de saúde, perfazendo um contingente próximo a 38,7 milhões de pessoas, apesar de a ABRAMGE (Associação Brasileira de Medicina de Grupo) ter divulgado um total de 41 milhões de pessoas cobertas apenas pelos planos de saúde privados em 1998. A cobertura de planos de saúde é maior 29,2% nas áreas urbanas do que nas áreas rurais, com 5,8%. Do total dos conveniados 75% estão vinculados a planos de saúde privados (operadoras comerciais e empresas com plano de autogestão), ainda de acordo com a pesquisa. Para o IBGE observou-se uma associação positiva entre cobertura de plano de saúde e renda familiar: a cobertura é de 2,6% na classe de renda familiar inferior a um salário mínimo, aumenta para 4,8% entre pessoas cuja renda familiar está entre 1 e 2 salários mínimos e passa a crescer com maior intensidade nas demais classes de renda: 9,4% (2 a 3 salários mínimos), 18% (3 a 5 salários mínimos), 34,7% (5 a 10 salários mínimos) e 76% (20 salários mínimos ou mais). Cerca de 60% dos planos de saúde no país contam com financiamento integral (13,2%) ou parcial (46%) do empregador do titular. O titular paga integralmente o plano em aproximadamente 30% dos casos e cerca de 10% dos titulares têm seus planos financiados por outras pessoas. A participação do empregador no financiamento do plano varia segundo o ramo de trabalho do titular, sendo maior na indústria de transformação e outras atividades industriais, transportes e telecomunicações e atividades do ramo financeiro. A modalidade de contrato mais freqüente é abrangente e inclui serviços ambulatoriais, hospitalares e de exames diagnósticos e terapêuticos. Nas conclusões elaboradas pelo IBGE acerca da participação dos planos de saúde no sistema de saúde brasileiro encontramos a afirmação de 90

BRAGA, José Carlos de Souza; SILVA, Pedro Luiz Barros. A mercantilização admissível e as políticas públicas inadiáveis: estrutura e dinâmica do setor saúde no Brasil. In: NEGRI, Barjas; GIOVANNI, Geraldo Di (org.). Brasil: radiografia da saúde. Introdução. Brasília: IE/NEPP/ UNICAMP, Ministério da Saúde, p. 20.

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que eles são prejudiciais por introduzir mais um elemento de geração de desigualdades sociais no acesso e na utilização desses serviços, na medida em que cobrem uma parcela seleta da população brasileira na qual predominam pessoas de maior renda familiar, inseridas em determinados ramos de atividade do mercado de trabalho e cuja avaliação do estado de saúde é “muito bom” ou “bom”. A mesma pesquisa revela informações preciosas a respeito do acesso aos serviços de saúde no Brasil, e entre elas destacamos: • Cerca de um terço da população brasileira não tem um serviço de saúde de uso regular; • O tipo de serviço usado como porta de entrada ao sistema de saúde – serviço de uso regular – varia segundo a idade, o sexo e, principalmente, a renda familiar. As pessoas mais jovens e aquelas com menor renda familiar têm como porta de entrada mais usual os postos ou centros de saúde, enquanto o consultório privado é mais procurado por mulheres, idosos e pessoas de nível mais alto de renda; • Aproximadamente 5 milhões de pessoas referiram ter necessitado de um serviço de saúde mas não o procuraram, e a justificativa mais freqüente dessa atitude foi a falta de recursos financeiros; • Entre as pessoas atendidas cerca da metade fez uso do SUS, e aproximadamente um terço das pessoas referiu ter utilizado plano de saúde para receber esse atendimento; • Aproximadamente sete pessoas a cada cem habitantes foram hospitalizadas no ano que antecedeu a pesquisa. Esse coeficiente não variou entre residentes nas áreas rurais e urbanas e foi maior para as mulheres. Inversamente ao observado para o uso de serviços de saúde em geral, que cresce à proporção que aumenta a renda familiar, a freqüência de internações decresce à medida que aumenta a renda familiar; • Cerca de dois terços das pessoas foram internadas através do SUS, das quais 6,3% declararam possuir algum plano de saúde e 5,2% declararam ter pago algum valor pela internação. A esperança para a superação dessa realidade do sistema público de saúde concentra-se atualmente na Emenda Constitucional n.º 29, de agosto de 2000, que definiu a vinculação de recursos e pisos mínimos, ao estabelecer que até 2004 Estados e municípios deverão gastar no mínimo 12% e 15%, respectivamente, de seus orçamentos com saúde. E os gastos da União serão corrigidos pela variação nominal do PIB. 66

As condições de atendimento médico-hospitalar vêm decaindo a ponto de um levantamento do IBGE alertar para o fato de que o Brasil perdeu entre 1992-1999 um total de 59 mil leitos hospitalares. Em 1992 a média era de 3,8 leitos por mil habitantes; em 1999 a oferta era de 3 leitos, e no período a população brasileira aumentou 23%. Para Barjas Negri, secretário executivo do ministério na época, a redução do número de leitos não é algo totalmente negativo: é explicada em parte por avanços na medicina, permitindo que pacientes antes internados em hospitais hoje sejam tratados em casa, [...] o tempo de internação para determinadas cirurgias era maior do que o atual, o paciente pode ser liberado em um dia, 91 portanto a ocupação aumenta.

Essa realidade e o mesmo discurso podem ser observados, em nível local, no capítulo relativo ao Hospital Municipal São José. Observa-se a deterioração do sistema público de saúde, apesar da implantação do SUS, que tem em sua concepção original a universalização da saúde. O que predomina nos meios de comunicação desde a década de 80 são as longas e demoradas filas para o atendimento, a falta de vagas nos hospitais, a precariedade do atendimento médico, a carência de equipamentos e medicamentos, o descaso do poder público com as condições de trabalho dos profissionais do setor e número de profissionais insuficiente para a prestação de um serviço de qualidade. Como diz Luz, desde o início dos anos noventa, com o governo Collor, os responsáveis pela política de saúde no país tornaram-se homens da mídia, comparecendo sob a luz de refletores de televisões a serviços hospitalares, maternidades, berçários etc. para dar “flagrantes” de mau atendimento em unidades totalmente abandonadas de recursos pelo poder público, onde os profissionais desempenham suas funções como numa frente de batalha. Inútil mencionar a manipulação da opinião pública no sentido de isentar os governos de suas responsabilidades, transformando 92 os profissionais em bodes expiatórios da política de saúde.

A associação entre saúde e assistência médica, cujo sinônimo é o hospital público, tem nos meios de comunicação um instrumento perfeito de reprodução e cristalização. Quando os meios de comunicação – rádio, televisão e imprensa – veiculam informações sobre a saúde, costumam focalizar o hospital público, ou seja, a assistência médica, deixando em segundo plano as ações 91 92

Brasil perde 59 mil leitos hospitalares. Folha de S.Paulo, São Paulo, 7 out. 2000. Cotidiano, p. C1. LUZ, Madel Therezinha. Op. cit., p. 311. (Grifo da autora)

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estatais de saúde pública. Excetuando-se eventuais campanhas de vacinação ou de “saúde pública”, tais como dengue, soro caseiro, meningite, AIDS etc., a ênfase é para a assistência médico-hospitalar. Historicamente as ações governamentais para o setor desde a criação das CAPs, na década de 20, até o SUS nos dias atuais têm contribuído consideravelmente para a real compreensão do que significa o cuidado com a saúde. O que prevalece é a dimensão individual e curativa da saúde, e não sua dimensão coletiva e preventiva. Ou seja, a questão de saúde tem correlação direta com as condições de moradia, alimentação, salário, emprego, educação, saneamento, enfim, as condições de sobrevivência da população. Para a população a saúde, mesmo se tratando de um direito social consagrado constitucionalmente, continua a ser sinônimo de assistência médica. Dessa forma, o direito à saúde passa a ser entendido como direito à assistência médica. A saúde deixa de ser compreendida como uma das dimensões sociais mais relacionadas à subsistência e ao bem-estar coletivo, adquirindo um caráter individual. Para Testa (apud PAIM; ALMEIDA FILHO, 2000)93 as respostas sociais no campo da saúde pública, ou seja, as políticas sociais, podem se efetivar através do que o autor denominou “ação primitiva à saúde”, como contraponto à atenção primária à saúde, postulada pelo neoliberalismo como aquela adotada nos países que dispõem de serviços diferenciados para distintos grupos sociais e que estão profundamente preocupados em reduzir os gastos em saúde, organizando serviço de segunda categoria para uma população considerada inferior. A garantia da saúde como um direito efetivo de todos os cidadãos e um dever do Estado só se tornará efetiva quando o SUS puder exercer o seu papel de inclusão social e promoção da cidadania.

93

PAIM, Jairnilson Silva; ALMEIDA FILHO, Naomar. A crise da saúde pública e a utopia da saúde coletiva. Salvador: Casa da Qualidade, 2000. p. 34.

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2 A “DESCARACTERIZAÇÃO” DA CIDADE

Não é possível entender a história de Joinville no período sem que ela esteja intimamente relacionada à política econômica nacional, já que foi principalmente a partir da década de 1970 que a cidade apresentou um enorme crescimento populacional impulsionado pela expansão de suas indústrias. A situação econômica nacional na época, conforme discutido no capítulo anterior, foi caracterizada por uma grande preocupação com o desenvolvimento industrial a qualquer preço, ou seja, com a injeção de vultosas somas vindas do exterior e da “ampliação do arsenal de instrumentos de política industrial, a exemplo dos incentivos fiscais e financeiros à exportação, de fundos de financiamento de médio e longo prazos, com taxas de juros negativas”, além de incentivos ao desenvolvimento da indústria da construção civil, com a criação do BNH – Banco Nacional de Habitação – e de fundos especiais para financiamento de material de construção e também para a aquisição 1 da casa própria pelo usuário final.

Houve também o tratamento de choque na inflação e a crise do petróleo, que fez o preço do produto quadruplicar em pouco tempo. Por outro lado, a mecanização da agricultura e o contínuo parcelamento das terras agrícolas ocasionaram uma crescente expulsão da mão-de-obra do meio rural2 e o conseqüente inchaço das cidades. Santa Catarina, Estado tipicamente agrícola, sofreu graves crises econômicas com o êxodo rural, mas teve, por outro lado, o crescimento vertiginoso das indústrias no nordeste do Estado, principalmente em Joinville, que tinha a seu favor a presença de indústrias consideradas estratégicas, ou seja, aquelas ligadas ao setor metalmecânico. A siderurgia e as indústrias de fundição eram consideradas áreas de interesse nacional, fazendo parte do projeto desenvolvimentista conhecido como “a arrancada do aço”. Por isso estiveram, durante todo o período do regime militar, sob uma pesada vigilância e, ao mesmo tempo, recebendo 1

CUNHA, Idaulo José. O salto da indústria catarinense. Um exemplo para o Brasil. Florianópolis: Paralelo 27, 1992. p. 96. (Série Economia, 1) 2

Ibid., p. 174.

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incentivos de todos os tipos para seu desenvolvimento. A Indústria de Fundição Tupy S.A., considerada a maior fundição da América Latina, com sede em Joinville, teve papel de extrema importância no crescimento da cidade naquele período e abrigava a maior parte da mão-de-obra industrial existente na cidade. Recebia constantemente a visita de ministros e até mesmo de Presidentes da República que vinham à cidade prestigiar eventos promovidos pela empresa.3 Por conta desse interesse estratégico, a fundição e outras empresas que vieram a formar o Grupo Tupy, algumas também alocadas em Joinville, tiveram um crescimento bastante significativo, atraindo mão-de-obra de várias partes do Estado de Santa Catarina e Estados vizinhos. Da mesma forma, cresceram outras indústrias de menor porte ligadas, direta ou indiretamente, ao setor metalúrgico, assim como o comércio que dava suporte aos novos moradores da cidade. Na década de 1970 o maior realce da indústria joinvilense estava nas áreas de metalurgia, mecânica e artefatos de metal4; indústrias como Duque, Wetzel, Schulz, Granalha de Aço, Docol, Galvanobril, Manchester, entre outras, já faziam parte do parque fabril de Joinville naquele período. No entanto já começavam a despontar outros ramos industriais, como o voltado à fabricação de tubos plásticos, principalmente o Grupo Hansen, que também foi diversificando sua produção e adquirindo novas fábricas em outras cidades do país e do exterior, acompanhando o modelo de administração empresarial da época: o da diversificação e formação de grandes grupos. Na mesma linha, vê-se, no final daquela década, a Consul, que iniciou como indústria de geladeiras e que depois também passou a produzir aparelhos de ar condicionado, secadoras e outros eletrodomésticos, ser incorporada pelo grupo multinacional Brasmotor. Em meados da década de 70, Joinville passa a contar com mais uma indústria que aos poucos vai crescendo e dominando o mercado internacional de motores, a EMBRACO. A presença cada vez maior de indústrias na cidade contribui decisivamente para o crescimento populacional e a urbanização, que já se verificava em todo o país e na América Latina, como salientado no capítulo anterior. O processo de urbanização em Santa Catarina, que passava de 32% em 1960 para quase 50% em 1975 e a 60% em 1980, significou o êxodo rural na maioria das cidades catarinenses e o inchaço de poucas. Dentro desse quadro, Joinville destaca-se com uma taxa de urbanização de cerca de 78,6% em 1960, 89% em 1970 e 94,3% em 1980, índices que a caracterizaram como uma cidade tipicamente urbana.5 3

Esses assuntos são apresentados e discutidos no jornal Correio da Tupy, publicado pela empresa, nos números relativos aos anos de 1961 a 1984. Acervo Tupy Fundições. 4

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1970-72. Administração Harald Karmann. Joinville, 1973. Acervo AHJ. 5

CUNHA, Idaulo José. Op. cit., p. 85-88.

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As quatro maiores cidades do Estado totalizaram, em 1980, 653.663 habitantes, correspondendo a 30% da população urbana, o que deve sinalizar para que se avalie as possíveis repercussões da tendência de relativa concentração urbana, já que o restante da população estava distribuído em 195 localidades, a maioria com população inferior a 15 mil habitantes, perfazendo, tão-somente, 23,9% do pessoal residente 6 no meio urbano.

Joinville está entre as oito cidades que mais receberam migrantes no período de 1970-1980. A tabela abaixo ilustra a porcentagem de migrantes de Joinville em comparação com as outras duas cidades catarinenses que mais receberam pessoas de fora: Florianópolis e Blumenau. Tabela 3 – Porcentagem de migrantes nas cidades de Blumenau, Florianópolis e Joinville em 1970 e 1980

Fonte: CUNHA, Idaulo José. O salto da indústria catarinense. Op. cit.

Sem dúvida alguma, o quadro é revelador. Joinville, na década de 1970, é nitidamente uma cidade de migrantes. Se considerarmos que a população da cidade, segundo dados do IBGE, em 1970 era de 126.058 e em 1980 de 235.812, pode-se sentir o impacto desse aumento populacional. Na tabela 4, que compara a população de Joinville com a do resto do Estado de Santa Catarina, no mesmo período, podemos observar que a taxa de crescimento populacional de Joinville foi muito maior do que a do Estado, tanto a urbana quanto a rural, mesmo se considerando uma acentuada urbanização em todo o Estado: Tabela 4 – Crescimento populacional em Joinville em comparação com o Estado

Dados do IBGE7 6 7

Ibid., p. 91. Id.

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As previsões de crescimento populacional mais pessimistas, feitas pela Prefeitura de Joinville no fim de 1972 para a década de 1980, eram de 205.400 habitantes, ou seja, 30.412 pessoas a menos do que o índice registrado pelo IBGE posteriormente.8 Prefeito de Joinville entre 1966 e 1970, Nilson Wilson Bender divide o processo migratório para Joinville em quatro períodos distintos: O primeiro período foi quando eu entrei na Tupy e aí a migração era dos açorianos de São Francisco do Sul, de Barra Velha, de Itajaí, de Itapema dessa região aqui, o pessoal de ascendência portuguesa que nós chamamos de caboclo, mas não são caboclos, são açorianos, pescadores, etc. Então, eles vieram para Joinville para trabalhar na indústria de Joinville, essa foi a primeira fase da migração. A segunda fase de migração foi o pessoal de ascendência italiana que morava no Vale do Itajaí até Rio do Sul, Pouso Redondo, essa região toda, onde tinha uma colonização, metade de alemães e metade de italianos. Veio muita gente para Joinville porque aqui tinha terras próprias para o cultivo de arroz, terras planas, irrigáveis, etc. E eu, como Prefeito, fiz um grande trabalho para a irrigação de arroz lá na Vila Nova, e então vieram esses descendentes de italianos para cá e ampliaram enormemente o cultivo de arroz. A terceira fase foi quando houve um acidente, uma tromba-d’água lá no sul do Estado, em Tubarão, resultando naquela grande enchente em que morreu muita gente, morreu muito mais do que foi informado. Muitos cadáveres nunca foram achados, então o pessoal do sul ficou sem as propriedades, ficou sem os empregos, etc. E naquela ocasião vieram mais de 20 mil pessoas de Tubarão para Joinville. Depois tem a quarta fase, é quando vieram os paranaenses, porque até então a migração tinha sido de gente do Sul para cá: Itajaí, Itapema etc., Florianópolis, depois o Vale do Itajaí, que fica também ao sul de Joinville, de Tubarão etc. Mas antes nunca tinha migrantes que viessem do norte, era muito raro ter algum paranaense etc. Deu um desastre de natureza lá no Paraná, seca, e o pessoal ficou sem emprego e aí começou 9 a migração do Paraná.[...]

Para Bender, as sucessivas levas de migrações para Joinville “descaracterizaram” a cidade, que não pode mais ser vista como cidade de alemães: 8 9

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1970-72. Op. cit.

BENDER, N. W. Nilson Wilson Bender: depoimento [mar. 2002]. Entrevistadora: Sandra P. L. de Camargo Guedes. Joinville: UNIVILLE, 2002. 2 fitas cassete. Entrevista concedida para o projeto de pesquisa História da Associação Atlética Tupy. LHO/UNIVILLE.

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Joinville, que tinha uma característica de cidade habitada por descendentes de alemães, perdeu essa característica; hoje os descendentes de alemães não formam 20% da população de Joinville. Os descendentes de italianos formam uns 30% e descendentes de portugueses ou outras nacionalidades então formam o restante, e isso descaracterizou Joinville. Hoje em Santa Catarina você pode dizer que Blumenau, Pomerode, Gaspar, Jaraguá do Sul, Guaramirim, São Bento são cidades de descendentes de 10 alemães, mas Joinville não pode dizer mais; se descaracterizou.

Apesar desse crescimento enorme da população na cidade, naquele momento, sob o ângulo social, a indústria, pelo seu elevado dinamismo e capacidade de geração de empregos, evitou a formação de grandes contingentes de desempregados, minimizando os problemas criados com a expulsão da 11 mão-de-obra do meio rural.

O prefeito de Joinville na gestão 1970-73 assim descrevia a pujança da cidade: Mais de 500 fábricas estão em funcionamento no município, envolvendo o emprego de mais de 35.000 pessoas (uma indústria tem mais de 4.000 empregados [Tupy], três mais de 1.000 e sete mais de 500), gerando expressiva movimentação econômica em favor da comunidade como um todo. (Faturamento industrial mensal julho/72 – 100 a 120 milhões de cruzeiros). Também o setor do comércio e serviços mostra-se bastante ativo (1.500 firmas, 1.100 dedicadas ao comércio e 400 de prestação de serviços). Estima-se em 10.000 o número de pessoas que ocupa [esse setor]. Essa pujança econômica reflete-se, naturalmente, sobre os níveis de renda da população e alça o município à condição de líder em arrecadação municipal, estadual e federal. O município contribui com aproximadamente 20% da arrecadação estadual. Segundo município mais populoso do Estado, Joinville tem hoje mais de 140.000 habitantes. Sua população aumenta à razão de 6% ao ano, enquanto o índice médio de crescimento demográfico de Santa Catarina e do Brasil é pouco superior a 3%. Não obstante essa evolução demográfica, o índice de alfabetização da população urbana (95%) é 12 comparável à média dos países desenvolvidos. 10 11 12

Id. CUNHA, Idaulo. Op. cit., p. 174-177.

KARMANN, H. Harald Karmann: depoimento [jul. 1982]. Entrevistadora: Dúnia de Freitas Toaldo. Joinville, 1982. Entrevista concedida para o projeto Prefeitos de Joinville. LHO/Univille. p. 9-11.

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Percebe-se que a euforia econômica encobria qualquer problema social que pudesse estar se iniciando, pois eles não eram vistos naquele momento. Porém a infra-estrutura da cidade, que já era bastante precária em termos de oferecimento de água e esgoto, por exemplo, rapidamente vai mostrando suas falhas. Embora existente desde 1965, o Plano Diretor da cidade só foi transformado em lei em 1973, no governo de Pedro Ivo Campos. Começam a espocar incidentes de invasões de terrenos na periferia. Ou melhor, nascem, a partir de agora, os precários loteamentos nos subúrbios da cidade, multiplicando-se a cada mês os desafios do poder público em garantir um mínimo de ordenamento ao explosivo crescimento urbano, tanto na região sul, para além dos bairros Floresta, 13 Itaum, Jarivatuva e Guanabara, como no Iririú, Boa Vista e Cubatão.

Procurando evitar a ocupação desordenada em áreas de sua propriedade, a Tupy, quase que completamente transferida da Rua Pedro Lobo, no centro da cidade, para o então incipiente distrito do Boa Vista14, valendose dos incentivos que o governo federal dava à construção civil, assina, em 13 de abril de 1969, convênio com o BNH e com a CREDIMPAR, empresa de financiamentos do governo do Paraná, para a construção de um conjunto residencial que abrigaria 532 casas populares, beneficiando “centenas de colaboradores” daquela empresa. No custo global de NCr$5 milhões, a contribuição da Fundição Tupy [...] é de cerca de 20%, representados por terrenos e outras contribuições, colaborando igualmente a Prefeitura de Joinville com os trabalhos de 15 infra-estrutura da área.

O conjunto residencial construído pela empresa COMASA e que ficou conhecido como COMASA do Boa Vista foi assim descrito pelo Correio da Tupy: ...localiza-se no distrito de Boa Vista, em extensa área, estando distribuído, em quadras bem arruadas, com ótimo sistema de esgoto, 13

TERNES, Apolinário. Joinville, a construção da cidade. S. Bernardo do Campo: Bartira, 1993. p. 177. 14

Deve-se salientar que o atual bairro do Boa Vista começou a existir somente a partir da transferência da Fundição TUPY, do centro da cidade para aquela região, em 1954. Ver sobre esse assunto TERNES, Apolinário. A estratégia da confiança. Joinville: Tupy, 1988. 15

532 casas para colaboradores da Fundição TUPY S/A. Velho sonho começa a ser realidade. Correio da TUPY, Joinville, jun. 1969. p. 5.

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água e energia elétrica. Dispõem as casas de todos os modernos requisitos de higiene e relativo conforto, não lhes faltando, outrossim, uma bela visão panorâmica, dada a preocupação havida de manter, onde possível, a arborização anteriormente existente. Muitos dos colaboradores, que até aqui moravam à distância de quilômetros da fábrica, encontram inclusive a vantagem de agora poderem localizar-se próximos à indústria, com aquela sensação gostosa de serem, finalmente, proprietários, de terem um lugar que é seu e de sua família e de a ela darem um nível de 16 vida mais condizente.

O crescimento horizontal da cidade evidenciou uma característica da região até então desconhecida pela maioria da população: a forte presença de vestígios humanos anteriores à chegada dos imigrantes, ou seja, do Homem de Sambaqui. A construção da COMASA do Boa Vista deixou à vista um sambaqui de grandes proporções, o Sambaqui do Rio Comprido.17 Joinville, em todos os aspectos, estava sendo “redescoberta”. Para solucionar os problemas criados com a má distribuição da população e a conseqüente falta de infra-estrutura urbana em diversos locais, o Plano Diretor sugeria que a população fosse concentrada em locais que possuíssem redes de água e esgoto, maiores problemas da época. Só assim seria possível atender às exigências do BNH para a construção de conjuntos habitacionais e edifícios. As construções iam avançando e a cidade se expandindo. Em 1978, a COHAB iniciou a construção do Conjunto Residencial Castelo Branco (nome dado em homenagem ao primeiro Presidente do regime militar, falecido em 1967) no Iririú, com previsão para 495 casas populares, também seguindo a política de financiamentos do BNH.18 Esse crescimento populacional, além de impulsionar a construção civil e detectar deficiências no sistema habitacional, como a criação de lotes clandestinos, provocou problemas de infra-estrutura na rede hospitalar e de saúde em Joinville, como se verá mais detalhadamente no capítulo seguinte. Embora não se falasse muito, o país ainda convivia com doenças do século XIX, como a malária, e com novas, como a meningite, que assolou o país em 16

Casa própria. Um sonho se faz realidade! Correio da Tupy, Joinville, fev/mar. 1970. p. 5. Atualmente a Comasa é um bairro com 19 mil habitantes. PREFEITURA DE JOINVILLE. Perfil socioeconômico Joinville. Joinville: UNIVILLE, 2002. p. 24. 17

O Sambaqui do Rio Comprido recebeu a descrição técnica de SC-LJ 76 e passou a ser pesquisado por uma equipe chefiada pelo professor da UFSC e pesquisador da então Diretoria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Dr. Walter Piazza, com a participação do Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville e financiamento da Fundição TUPY. IMHOFF, Afonso. Fundição Tupy colabora com a pesquisa científica. Correio da Tupy, Joinville, fev./mar. 1970. p. 11. 18

A NOTÍCIA. Joinville, 1 jul. 1978. p. 8.

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1974. A vacinação em massa foi uma das saídas encontradas, e Santa Catarina não ficou fora do processo.19 Grande parte dos problemas de saúde devia-se a deficiências na rede de água e esgoto. Embora a SAMAE (Serviço Autônomo Municipal de Água e Esgotos) já existisse desde a década de 1960, ainda em 1973 não havia serviço de rede de esgoto suficiente na cidade e era previsto somente para 1976 o término da nova adutora de água. Em entrevista oral, realizada em 1978, o ex-Prefeito Pedro Ivo Campos confessava que por volta de 1972-73 Joinville era uma das cidades com maior índice de verminose (96%), devido à falta de esgoto sanitário. Percebendo esse problema ainda durante seu governo, transferiu o abastecimento de água para o Estado, para a CASAN, já que a SAMAE não estava dando conta do problema. Esse contrato de financiamento, assinado apenas em 1976, entre o governo de Santa Catarina, BNH, CASAN e BESC, no valor de Cr$128 milhões, prevê a ampliação do abastecimento de água para Joinville. O novo sistema projetado atenderá o suprimento de água até 1994, prevendo inclusive o volume necessário ao Distrito Industrial ora em fase de implantação. Trata-se do maior contrato de financiamento já celebrado em Santa Catarina para abastecimento de água, segundo 20 enfatizou na oportunidade o Governador Antônio Carlos Konder Reis.

Com isso, Pedro Ivo achava que em 1978 o problema já estaria resolvido, pois naquele ano a nova rede, cuja construção se iniciou durante seu governo, já estava praticamente implantada e garantiria o abastecimento de água por mais vinte anos,21 o que não ocorreu. Percebe-se no trecho acima a íntima relação existente entre as obras de infra-estrutura urbana e as necessidades inerentes ao campo fabril de Joinville, o qual realmente impulsionava a cidade e conseguia financiamentos para ela. A força política do empresariado joinvilense naquele momento não ficou apenas no plano de recepção de recursos do governo federal, mas em uma ação mais direta com a política partidária e integrando, muitas vezes, os quadros do governo estadual e municipal. Exemplos marcantes dessa ligação foram Wilson Bender, que de diretor da Tupy passou a prefeito e chegou a ser candidato a candidato a Governador, em seguida Dieter Schmidt, presidente do grupo Tupy que foi Secretário da Indústria e Comércio do Estado e que 19 20 21

A meningite. Correio da Tupy, Joinville, fev. 1975. p. 9. CORREIO DA TUPY. Joinville, maio 1976. p. 14.

CAMPOS, P. I. F. Pedro Ivo Figueiredo Campos: depoimento [jul. 1978]. Entrevistadora: Dúnia de Freitas Toaldo. Joinville, 1978. Entrevista concedida para o projeto Prefeitos de Joinville. LHO/UNIVILLE. p. 44 e 63.

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teve sua carreira política interrompida por prematura morte em acidente aéreo, mais tarde vemos Wittich Freitag, presidente da Consul, assumindo vários postos políticos, dentre os quais duas vezes o governo do município e também uma cadeira na Câmara Federal, Edgar Meister, diretor das Empresas Meister, cuja carreira, em franca ascendência, também foi interrompida por sua morte, José Henrique Carneiro de Loyola, presidente da Cia. Fabril Lepper, que foi Vice-Prefeito, além de Udo Döhler, diretor administrativo da tecelagem Döhler, que sempre esteve envolvido em postos-chave da política municipal, somente para citar alguns. Como Secretário de Estado, Dieter Schmidt participou da assinatura de convênio entre a Prefeitura de Joinville e o governo do Estado, para a implantação do Distrito Industrial de Joinville. A partir do convênio, aquela secretaria, através da CODISC – Companhia de Distritos Industriais de Santa Catarina –, aplicaria, em Joinville, recursos na ordem de Cr$30.000.000,00 resultantes de convênio com o governo federal na área da Empresa Brasileira de Transportes Urbanos – EBTU.22 As obras destinavam-se a “oferecer infra-estrutura às indústrias já instaladas e às que virão a ser instaladas no Distrito Industrial de Joinville, permitindo um fluxo mais rápido em direção à malha urbana da cidade.”23 Foi na década de 70, também, que foram construídas as unidades da EMBRACO e da Consul no Distrito Industrial, empresas que necessitavam daquela infra-estrutura para poder funcionar. A facilidade de financiamentos à indústria, através do BNDE, criado em 1961, do BADESC – Banco de Desenvolvimento do Estado de Santa Catarina – em 1975 e do sistema de incentivos fiscais (FUNDESC e depois o PROCAPE), dava novos impulsos e crescimento às indústrias do Estado. Em Joinville a Tupy completava, em 1972, o Plano D, quando sua produção foi duplicada de volume e seu campo fabril, no bairro Boa Vista, também foi bastante ampliado, tendo obtido, para isso, empréstimos do BNDE, e já projetava nova expansão – duplicação – para ser executada entre 1973/75, visando ao mercado externo. Se o Plano D tinha empregado 1.200 pessoas, o novo previa 1.500 empregos, também contando com financiamento do BNDE.24 A nova ampliação da empresa contou com “a assinatura do maior contrato de empréstimo já deferido no Brasil a uma empresa privada, genuinamente brasileira”, em 3 de abril de 1973. Com a presença do presidente 22 23

Governo de SC apóia Distrito Industrial de Joinville. Correio da Tupy, Joinville, maio 1979. p. 7. Id.

24

BNDE estuda na Fundição Tupy S.A. nova fase de ampliação industrial. Correio da Tupy, Joinville, dez. 1972. p. 9.

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do BNDE, Marcos Pereira Viana, da imprensa nacional e de inúmeras autoridades locais e estaduais, a Tupy comemorava o empréstimo concedido “pelo BNDE e Agência FINAME, da ordem de 230 milhões de cruzeiros, pelo prazo de 11 anos e meio” e outros investimentos próprios e internacionais que somariam o montante de 451 milhões de cruzeiros, o que lhe permitiria executar um projeto que pretendia quase triplicar a sua capacidade de produção nos próximos 4 ou 5 anos, além de construir um moderno e completo centro de pesquisas,25 já que o aprimoramento tecnológico também era meta da política desenvolvimentista nacional. No discurso do presidente do BNDE, vê-se a importância, para a economia nacional, do investimento em questão: Não é a pura obediência às regras da formalidade que me leva a dirigir estas palavras aos presentes, mas sobretudo o sentimento do dever de quem tem consciência do significado incomum da operação que hoje se concretiza. [...] salientar os aspectos marcantes e positivos que envolvem este projeto [...] como um dos mais relevantes da etapa atual de crescimento e modernização de nossa indústria. Sob qualquer ângulo de que seja examinado – na perspectiva do Banco, da própria Empresa ou da Economia Nacional – aparecem com nitidez os seus traços de excepcionalidade e de importância para o desenvolvimento nacional. Para o Banco, a operação representa mais um passo significativo no sentido da renovação dos seus critérios de atuação, respondendo a um esforço interno sistemático de diminuição da rigidez normativa em favor da eficiência maior na conservação dos objetivos definidos pela Entidade. Os objetivos no caso são, de um lado, a descentralização, com a implantação de novos pólos de desenvolvimento industrial e, de outro, a formação e consolidação da grande empresa nacional, moderna e competitiva segundo os padrões das economias mais adiantadas do 26 mundo de hoje.

O discurso enfatizava, ainda, o objetivo de investir em regiões fora dos pólos industriais tradicionais como São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, visando não apenas à “constituição de uma grande empresa nacional no setor de fundição, mas, por irradiação, a própria criação de um grande pólo industrial em região até agora menos favorecida”, ou seja, Santa Catarina, Estado até então visto como agrícola. 25 26

CORREIO DA TUPY. Suplemento especial da edição n. 102, mar./abr. 1973. Id. Grifo do jornal.

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Acrescentava ainda que se tratava de uma das “maiores operações de financiamento já firmadas pelo Banco, em toda sua história.” A participação do BNDE naquele investimento mostra os objetivos básicos que se buscavam na política econômica nacional, ou seja: “atender à expansão de um setor de fundamental importância para o crescimento econômico do país”; apoiar o desenvolvimento de pesquisas, ajudando “o país a solucionar uma das questões mais críticas para o seu desenvolvimento futuro, isto é, o domínio pleno de conhecimentos técnicos e a capacidade de criar soluções tecnológicas ajustadas aos problemas específicos brasileiros”(daí a importância do centro de pesquisas que estava sendo implementado e da escola técnica); dar apoio ao empresário brasileiro e promover o crescimento da indústria em áreas menos desenvolvidas, para “reduzir o desequilíbrio na distribuição espacial da renda nacional”. E terminava dizendo que “não é demais repetir, postula entre os seus objetivos [do BNDE] primordiais o fomento à criação de empresas líderes nacionais, como fator básico do desenvolvimento da nossa economia.”27 O fato causou euforia nos meios políticos estaduais e municipais, principalmente porque a Tupy decidira implantar o projeto de ampliação em Joinville, o que propiciaria o tão almejado desenvolvimento local e estadual. Por essa decisão, a empresa recebeu inúmeros elogios e agradecimentos da direção do BESC, do Governador Colombo Machado Salles, da Câmara Municipal e da Assembléia Legislativa, que também foram publicados em jornais de grande circulação e no jornal da empresa.28 Tanta animação tinha razão de ser. Joinville passava a figurar cada vez com mais destaque nos meios econômicos nacionais, ganhando visibilidade, o que promovia, a reboque, industriais e políticos municipais e estaduais, além de incentivar o crescimento de outras indústrias e do comércio. A cidade crescia, motivada por uma política de incentivos governamentais que, a nosso ver, não tem sido levada em consideração pela historiografia. Diversos interesses promoveram aquela situação, e todos comemoravam e procuravam se beneficiar. Os governos do Estado e federal prometiam dar todo o apoio necessário e, sem dúvida, a cidade pôde contar com a entrada de maciços investimentos, mas que não foram canalizados, na mesma proporção, para obras de fins sociais. Por conta do crescimento industrial, assim como o fornecimento de água, já citado, o de energia elétrica teve uma substancial melhora de qualidade e uma ampliação no consumo de grande monta, mas a Tupy sozinha consumia o equivalente a uma cidade inteira, o que a fez construir, mais tarde, geradores 27 28

CORREIO DA TUPY. Joinville, Suplemento especial da edição n. 102, mar./abr. 1973. p. s/n. Id.

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próprios de energia.29 Da mesma forma, o sistema de telecomunicações, que era péssimo, foi incrementado na década de 1970, assim como os portos de São Francisco do Sul e Itajaí, que receberam verbas federais e estaduais para investir em infra-estrutura.30 Para acompanhar esse desenvolvimento também foi necessário um incremento no sistema viário do Estado, que se encontrava extremamente precário, dificultando o transporte das mercadorias produzidas.31 Em 1976 só existiam 310 km de estradas estaduais asfaltadas e 1693 km de estradas federais na mesma situação. Esse quadro era bem melhor do que o de 1960, quando o total das vias pavimentadas não atingia 150 km. Entre 1970 e 1978, verificou-se um grande número de obras, 32 aprimorando em muito o sistema viário asfaltado.

A importância estratégica de Joinville para a política econômica nacional era visível em diversos momentos, principalmente com a presença constante de autoridades do governo federal ou do exército33 na cidade ou, ainda, de festas que beneficiassem e “encantassem” os trabalhadores. Em maio de 1975, Joinville conviveu com, talvez, a maior festa do Dia do Trabalho já ocorrida em seus limites, contando até com a participação do Presidente da República. Patrocinada por empresários e [...] pelo Ministério do Trabalho [...] as instalações da Fundição Tupy foram o centro nacional das festividades, congregando milhares de pessoas; também aqui foi realizado show que contou com a participação de renomados artistas, como Elza Soares, Eliane Pitman, Jorge Ben e 34 Cauby Peixoto. 29

CORREIO DA TUPY. Joinville, jan./fev. 1972. Em 1971 a Tupy havia consumido 30 milhões de kwh. 30 31 32 33

CUNHA, Idaulo. Op. cit. Id. Ibid., p. 97.

Por várias vezes alunos da ESG – Escola Superior de Guerra –, subordinada ao Estado Maior das Forças Armadas que, por seu turno, era um órgão de assessoramento do Presidente da República, estiveram em Joinville e, em especial, nas dependências da Tupy. Faziam viagens “de estudos e observações pelas principais cidades brasileiras, consoante sua necessidade de realizar pesquisas e preparar civis e militares para funções de direção e planejamento da segurança nacional.” Escola Superior de Guerra busca na Fundição Tupy subsídios para estudos superiores. Correio da Tupy, Joinville, nov. 1975. p. 3. 34

Ministério do Trabalho presenteou trabalhadores joinvilenses com magnífico show. Correio da Tupy, Joinville, maio 1975 p. 27. Grifo nosso.

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Em carta publicada pela imprensa, o presidente da Tupy agradecia a todos aqueles que haviam colaborado para o sucesso da festa de 1.º de maio e para a acolhida ao Presidente da República, apesar da chuva. Essa disposição de grande massa, afrontando as inclemências do tempo, constitui, por si só, vivo testemunho do civismo de nosso povo, do respeito e carinho para com a autoridade e que nos grandes momentos de nossa história comunitária sempre soube honrar a tradição de 35 hospitalidade que caracteriza o nobre povo joinvilense.

O discurso do empresário mostra, sem dúvida, a estreita ligação existente entre as comemorações e os ideais cívicos pregados pelo governo militar. O respeito e o carinho pela autoridade, no caso o Presidente da República, eram sinônimos de civismo e da “nobreza” do povo joinvilense, aí fazendo uma alusão àqueles que moravam na “terra dos príncipes”.36 Pelo que consta dos agradecimentos, toda a sociedade participou da festa, a qual, apesar de ter como anfitriã a Tupy, contou com a colaboração de outros empresários, que colocaram carros de suas empresas à disposição da comitiva presidencial, por exemplo. Em termos políticos, o Brasil vivia em plena ditadura militar, com os generais se revezando na Presidência da República; a censura, as perseguições políticas e as torturas eram comuns. Joinville, segundo Sirlei de Souza, não passou incólume ao processo, tendo convivido com todos esses métodos de repressão, embora de formas bastante sutis.37 Como uma estratégia para a legitimação ao golpe militar de 1964, foi implantado o bipartidarismo a partir da instituição do AI-2, em 1965, quando surgem a ARENA e o MDB, e os políticos, de uma maneira geral, necessitam decidir-se por um ou outro, únicas possibilidades permitidas. Lembrando desse período, o ex-Prefeito Wittich Freitag comentava: Foi um tempo de busca de novos valores, e necessitávamos de jovens e talentosos administradores [...] Não foi pequeno o esforço que fizemos 35 36

Ibid., p. 28.

Joinville tem vários codinomes, dentre eles Terra dos Príncipes, alusão feita ao fato de o território que ocupa ter sido dado como dote à Princesa Francisca Carolina, filha de D. Pedro I, ao se casar com o Príncipe de Joinville, da França. Durante o período do “milagre econômico”, Joinville acrescentou mais dois apelidos – Manchester Catarinense e Cidade do Trabalho – aos anteriores: Cidade das Bicicletas, Cidade das Flores e Cidade dos Príncipes. 37

SOUZA, Sirlei de. Movimentos de resistências em tempos sombrios. In: GUEDES, Sandra P. L. de Camargo (org.). Histórias de (I)migrantes: o cotidiano de uma cidade. Joinville: Univille, 2000.

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para impedir que a política partidária tradicional representada por 38 caciques da ex-UDN e do ex-PSD asfixiasse a almejada renovação.

Tradicionalmente a cidade era comandada por uma elite estreitamente ligada à ARENA e que apoiara o golpe militar, como pudemos notar também na fala do empresário. Aquele apoio era nitidamente demonstrado pela imprensa, principalmente pelo jornal A Notícia, o de maior circulação na cidade. Entre os principais acionistas daquele jornal estiveram Prefeitos da cidade, como: Helmuth Fallgatter (1961-66), Baltazar Buschle (1956-61) e Wittich Freitag (1983-7 e 1990-5). O próprio Fallgatter, em depoimento ao laboratório de História Oral do Arquivo Histórico de Joinville, disse: “[...] o jornal é um veículo perigoso nas mãos de alguém que queira liquidar um município ou um povo, por isso eu me dedico ao jornal que pode transformar a cidade de um dia para o outro”.39 O ex-Prefeito mostra conhecer o poder da mídia como formadora de opiniões ou, como pretendemos mostrar, de representações. Harald Karmann assumiu a Prefeitura em 1970, num mandato tampão de três anos. Vindo da UDN, foi eleito pela ARENA e teve maioria na Câmara de também partidários da ARENA. Continuou o modelo defensor da “revolução”, evidenciando a idéia de progresso.40 A ligação partidária permitiu ao governo Karmann ter vários investimentos federais, como a estação de passageiros do aeroporto de Cubatão, a BR 101 (inaugurada pelo Presidente Médici em visita a Joinville), inauguração do sistema DDD, do SENAC, SESC, SESI, da Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL), da nova sede da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) e da Junta de Conciliação e Julgamento.41 Nas eleições de 1972 em Joinville, a ARENA se dividiu, valendo-se de um subterfúgio que o governo militar lançou, pensando em conquistar mais Prefeitos, que foi a sublegenda, ou seja, cada partido poderia apresentar até três candidatos para preenchimento de uma vaga para o Executivo. Dessa 38 39

S. THIAGO, Raquel. Eu, Wittich Freitag. Joinville: Movimento e Arte, 2000. p. 165.

SOUZA, Sirlei de. Ecos de resistência na desconstrução da ordem: uma análise da “revolução de 64” em Joinville. Florianópolis, 1998. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina. p. 27. KARMANN, H. Harald Karmann: depoimento [jul. 1982]. Entrevistadora: Dúnia de Freitas Toaldo. Joinville, 1982. Entrevista concedida para o projeto Prefeitos de Joinville. LHO/Univille.

40

41

Ibid., p. 28.

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1970-72. Administração Harald Karmann. Joinville, 1973. AHJ.

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forma, a ARENA em Joinville lançou, em vez de um, três candidatos, o que fez com que seus votos fossem divididos. Isso, segundo Wittich Freitag42, levou à vitória de Pedro Ivo Campos, do MDB, que pela terceira vez tentava a Prefeitura de Joinville. No entanto, outros motivos também foram levantados para a vitória da oposição em uma cidade tradicionalmente comandada pela ARENA. Sirlei de Souza43 acrescenta àquela outras duas hipóteses, ou seja, o desejo de renovação e a presença de muitas pessoas, vindas de fora, através do processo migratório vigente, que não possuíam nenhuma ligação com os sobrenomes de origem alemã, tradicionais dos políticos joinvilenses. Parece que essa também era a visão do ex-Prefeito Nilson Bender, que ao falar sobre os efeitos das migrações para a infra-estrutura municipal afirma: Bom, isso que é de um lado o grande mal, porque o município vai investindo na infra-estrutura e ela não beneficia os habitantes locais, ela beneficia os novos que vêm de fora. Está entendendo o raciocínio? [...] por isso eu seria a favor de que o voto para eleições municipais, o cidadão tinha que morar pelo menos 10 anos em Joinville ou no mínimo 5 anos, mas o ideal seriam 10 anos, e no voto para governo do Estado, o cidadão tinha que morar 10 anos no Estado. Porque só assim ele realmente se integra ao corpo social, conhece os políticos e sabe avaliar se seu voto é correto ou não. Não adianta dizer que o povo não sabe votar; na verdade o povo não está ensinado para votar, ele não está familiarizado com os problemas, não conhece as pessoas, não conhece os políticos e aí o voto cai para qualquer um, quem oferecer mais 44 vantagens.

Essa fala do Prefeito reafirma sua colocação anterior sobre a “descaracterização” da cidade e da impossibilidade de aqueles que eram os “naturais moradores” de Joinville terem o direito de escolher seus governantes dentre os seus pares. Pedro Ivo Campos, que foi Prefeito de Joinville entre 1973 e 1977, era tenente-coronel aposentado do exército, vindo do antigo PTB e possuindo uma considerável trajetória política. Havia sido eleito deputado estadual em 1967, candidato à Prefeitura de Joinville em 1969, mas sem sucesso, e eleito deputado federal em 1970, além de ter sido líder do MDB.45 Questionado sobre como um militar poderia estar na oposição durante um governo federal militar, assim respondeu Pedro Ivo: 42 43 44 45

S. THIAGO, Raquel. Op. cit. SOUZA, Sirlei de. Movimentos de resistências... Op. cit. BENDER, Nilson Wilson. Op. cit.

Nas eleições de 1969, quando Pedro Ivo concorreu com Harald Karmann à Prefeitura de Joinville, foi vencido por uma diferença de 481 votos. Ver CAMPOS, Pedro Ivo Figueiredo. Op. cit.

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Muitas pessoas, e alguns companheiros militares, estranhavam que eu, sendo um militar, estivesse na oposição [...] Mas eu me dei muito bem, porque inclusive serviu para caracterizar que o militar tanto participa de um partido quanto de outro [...]e eu procurei sempre estar do lado da verdade [...] Não fiz a Revolução de 64. Eu não participei da Revolução, mas esperei que ela trouxesse os frutos que dela se esperavam, principalmente quanto aos saneadores da vida pública nacional, dos aproveitadores, dos oportunistas e dos corruptos. Infelizmente, eu devo dizer que não vi essa ação revolucionária, porque ela se valeu deles e a eles deveu obrigações. Mas eu entendi e ainda entendo que ela, se realmente visava expurgar da vida pública todos aqueles indivíduos que foram nocivos ao desenvolvimento do Brasil, ela não podia fazer concessões, até aqueles que haviam ajudado e participado da revolução, porque participaram por interesse, participaram com medo de cair, participaram para poder continuar usufruindo das vantagens e dos benefícios. E eu deixei de acreditar na Revolução quando ela negou a si própria, porque acabou aceitando e 46 convivendo com os inimigos da Pátria.

Sendo fiel a seus preceitos, Pedro Ivo não poderia deixar de ser “contra o comunismo, contra a subversão e também contra a corrupção”,47 fatores que, juntamente com a sua formação militar, talvez tenham feito com que, mesmo sendo da oposição, fosse tolerado pelos governantes militares, podendo cumprir totalmente o seu mandato. Sua aversão ao comunismo com certeza contribuiu para o sucesso da “Operação Barriga Verde” em Joinville, quando 8 pessoas foram presas pelo governo militar.48 Essa operação, articulada em 1975 em Santa Catarina, tinha o objetivo de acabar com os focos do Partido Comunista no Estado e prendeu um total de 38 pessoas, fator comemorado pela imprensa.49 Apesar de Geisel dizer estar procurando, aos poucos, restabelecer o Estado Democrático, várias facções do exército continuavam agindo pela linha dura e ignorando as novas diretrizes que o Presidente tentava impor ao país. Quando a esquerda armada já havia sido liquidada pelos militares, a repressão se voltou sobretudo contra as lideranças do PCB, justo elas que haviam sido contrárias à ação dos guerrilheiros. Não se tratava de 46 47 48

CAMPOS, Pedro Ivo Figueiredo. Op. cit., p. 37. Ibid., p. 39.

Sobre a Operação Barriga Verde e o combate aos comunistas em Joinville, ver SOUZA, Sirlei. Movimentos de resistências... Op. cit., p. 239-247. 49

Descoberto movimento comunista em Santa Catarina. A Notícia, Joinville, 14 dez. 1975.

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inimigos perigosos ao regime, mas sim de alvos fáceis para o aparato militar, que queria continuar justificando sua existência. As prisões se contavam às dezenas, em meio a uma insistente campanha de delação 50 contra supostos militantes comunistas.

O clima de inquietação política começava a se mostrar por intermédio da imprensa nacional numa tentativa, segundo o próprio Presidente Geisel em depoimento a pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, de aproximar o povo do governo, informando aquele do que ocorria. Foi dessa forma que o país todo soube da morte do jornalista Wladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI em São Paulo, e as primeiras manifestações públicas contra o regime militar começaram a ocorrer.51 Percebendo a possibilidade de perderem o poder, os militares e o próprio Presidente, contrariando sua fala democrática, acirraram a repressão, promovendo prisões e cassações de mandatos políticos. Somente no último ano de seu mandato Geisel deu início ao processo de abertura, revogando o AI-5. Enquanto isso, o MDB ganhava espaço, inclusive em Joinville, tradicional reduto da ARENA. A política, como sempre, ressentia-se dos efeitos da economia. A inflação e a dívida externa, suas maiores inimigas, colaboraram para o crescimento do MDB. Com pouca credibilidade no início, o Partido cresceu muito na década de 70, então como PMDB. Em 1974 as oposições, unidas sob sua liderança, iniciaram o processo de desestabilização política do regime militar, o que levou cerca de dez anos para acontecer. Nesse ano o PMDB teve uma surpreendente votação nas eleições para deputados estaduais e federais. Em Joinville 52 elegeu Miraci Dereti para deputado estadual.

Pedro Ivo declarava ter boas relações com o governo federal e com o estadual durante o governo de Colombo Salles, o que disse não ter ocorrido durante a gestão de Antônio Carlos Konder Reis. Sobre esse último Governador citado, Pedro Ivo Campos afirmava que, nos primeiros anos de seu mandato, ele havia sido “altamente funesto para Joinville”, chegando ao ponto de dizer em público, durante a inauguração do diretório de seu partido, a ARENA, na cidade, que eles “tudo haveriam de fazer para reconquistar a Prefeitura de 50 51 52

PILAGALLO, Oscar. O Brasil em sobressalto. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 140. Ibid., p. 140-1. S. THIAGO. Op. cit., p. 169-70.

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Joinville que, por direito, a eles, a seu partido, cabia e não à oposição.”53 Com certeza, o controle da maior cidade do Estado, tendo-se em vista seu caráter estratégico para a economia nacional, era motivo de grande disputa política. Dando prosseguimento aos projetos de crescimento econômico respaldados em conhecimento e pesquisa, a administração de Pedro Ivo criou, no Distrito Industrial, um “espaço que também abrigou a FUNDAJE (Fundação Joinvilense de Ensino), demonstrando preocupação da municipalidade com a formação técnica em nível superior”.54 Essa preocupação, no entanto, já vinha do governo anterior, pois foi durante a gestão de Harald Karmann que o terreno para a construção do campus universitário foi “desapropriado, comprado e pago” pela Prefeitura.55 Além do ensino técnico, percebe-se que também o ensino superior em Joinville surge em função do desenvolvimento industrial. Segundo Pedro Ivo Campos, a nossa universidade deveria ser voltada preferencialmente para a área tecnológica, tendo em vista ser Joinville um pólo de desenvolvimento industrial, onde a tecnologia se faz presente e atua de maneira expressiva. Então, nós vimos que a universidade poderia ser instalada no próprio laboratório de trabalho, de pesquisa, no próprio campo industrial e seria muito mais fácil o relacionamento universitário–trabalho, universidade–pesquisa, ensino e pesquisa se a universidade estivesse 56 situada no próprio contexto industrial.

Essa ligação universidade–empresa foi efetuada, inicialmente, apenas por meio do fornecimento de mão-de-obra especializada, principalmente dos cursos de economia e administração de empresas. A pesquisa, no entanto, começou a surgir muito mais tarde, na última década do século XX. A década de 1970 foi, ainda, o período auge do MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização –, que visava reduzir os índices de analfabetismo do Brasil. Vários cursos de alfabetização e profissionalizantes foram implantados na cidade, obedecendo à premissa de que só com a educação alcançaríamos o progresso e o desenvolvimento industrial. Percebe-se aqui o aumento populacional modificando os índices de analfabetismo da cidade, já 53

CAMPOS, Pedro Ivo Figueiredo. Op. cit., p. 58. Pedro Ivo Campos salienta, ainda, que o governo de Konder Reis impediu que chegassem a Joinville recursos federais vindos da FUNABEM, para as crianças desamparadas. p. 59.

54

SOUZA, Sirlei de. Ecos de resistência... Op. cit., p. 73. Deve-se salientar que nas eleições municipais em que Pedro Ivo sagrou-se vencedor o seu adversário havia sido Mário César Cubas, da ARENA, apoiado pela comunidade universitária, que foi contemplada com o novo campus.

55 56

KARMANN, Harald. Op. cit., p. 56. CAMPOS, Pedro Ivo Campos Figueiredo. Op. cit., p. 47.

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que Karmannn vangloriava-se, no início daquela década, de que Joinville possuía 95% de alfabetizados na área urbana 57 e, em poucos anos, já se apresentava a necessidade da implantação do MOBRAL. O papel do SENAI e das escolas técnicas é evidenciado, em especial da Escola Técnica Tupy – ETT. Assim como a empresa à qual pertencia, a ETT passa a receber inúmeros incentivos financeiros, além de doações de equipamentos do Brasil e do exterior, especialmente da Alemanha, e empréstimos de cunho governamental para ampliar cada vez mais seu universo de atuação. A experimentação e o desenvolvimento de pesquisas na área da metalurgia levam a ETT ao reconhecimento nacional, já que se enquadrava perfeitamente nos planos de expansão e desenvolvimento promovidos pelos governos militares.58 A mudança na configuração econômica do Estado, que passou de agrícola para industrial, logicamente levou a transformações significativas em todos os outros setores da vida social da população. O nível de empregos e a produtividade na indústria catarinense foram bastante elevados no período de 1970 a 1980 com relação a outras regiões do país. Em 1974 Joinville foi destacada como a 13.ª cidade mais desenvolvida do país no ranking apresentado pela revista Dirigente municipal, do grupo Visão. Ternes salienta que essa foi uma inequívoca – e última, registre-se – demonstração da excepcional qualidade de vida que a cidade ainda conseguia oferecer a seus habitantes, no início da década de 1970. [Os dados utilizados para a análise foram] número de ligações de água, de esgoto, leitos hospitalares, telefones, moradias etc.59

O fato de a cidade ser a 13.ª no país não queria dizer, no entanto, que a qualidade de vida, pelo menos para a maioria da população, fosse tão excepcional assim, já que a maioria das cidades do país, naquele período, também sofria com a falta de infra-estrutura relativa aos itens apontados pela pesquisa. Faltava infra-estrutura em todos os níveis, e o que mais se via era o poder público “correndo atrás” do crescimento da cidade e da falta de planejamento, tomando medidas paliativas. A segurança pública era precária, porém o discurso da cidade perfeita e sem problemas, formada por um povo laborioso, estava presente em vários artigos de jornais e reforçado em 57 58

Conferir citação relativa ao assunto na nota 12 deste capítulo.

Ver também sobre esse assunto o jornal Correio da Tupy em vários números e TERNES, Apolinário. A estratégia da confiança. Joinville: Tupy, 1988. 59

TERNES, Apolinário. Joinville, a construção da cidade. Op. cit., p. 176.

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documentos que retratam a história da cidade, como o seguinte: Joinville, você sabe, é uma cidade feliz. Aqui existe trabalho, ICM, chaminés, flores, arte e música. É doce trabalhar aqui, quanto mais viver. É uma cidade limpa, com ruas largas e planas. Com jardins nas praças, com jardins nas casas, com jardins com flores, com flores e festa. É isto que nossos antepassados fizeram e será o que fizermos hoje (sic). Isto é uma cidade: Herança de gerações! E Joinville você ama. Porque se ama aquilo que se conhece. E temos um Plano Diretor. A cidade cresce com ordem. Existem mapas, estatísticas, arquivos, fotografias, técnicos e você. Tudo isso existe para que você se sinta bem em sua cidade. (...) É uma cidade bonita – chamam-na de “Cidade das Flores”. É uma cidade limpa – chamam-na de “Terra dos Príncipes”. É uma cidade única – chamam-na de “Cidade das Bicicletas”. É uma cidade de progresso – chamam-na de “Manchester Catarinense”. Por isso que Joinville é tão querida. Aqui, homens de gerações diferentes souberam reunir o útil e o agradável. Sempre. Por isso acredite na sua Prefeitura. 60 Ela ama a sua cidade.

Nota-se o culto aos antepassados, àqueles que construíram a cidade, a valorização do “mito fundador”, como evidencia Marilena Chauí.61 A ordem e o progresso também são chamamentos indispensáveis durante o regime militar, e novamente aparece a necessidade de respeito às autoridades, ou seja, à Prefeitura. Assim, temos como responsáveis pela ordem e progresso da cidade os fundadores e a Prefeitura. No entanto, essa aparente tranqüilidade da cidade foi colocada em dúvida com uma série de incêndios ocorridos em diversas empresas (Wetzel, Malharia Manz, entre outras) em 1977, que mostraram a fragilidade e a insegurança. Segundo Pedro Ivo Campos, em seu depoimento oral, esse acontecimento provocou um fato inédito na comunidade joinvilense, ou seja, a união em torno de um problema comum, já que ele considerava que uma grande parte dessa comunidade fosse extremamente individualista, só se unindo “quando seus interesses diretos estão sendo ameaçados ou prejudicados”. Dessa união perante o perigo iminente surgiu um clube de rádio, rádio escuta, que eles chamam de rádio cidadão, que funciona 24 horas por dia com ligação com a central de polícia, onde ela pode controlar junto aos associados daquela rede se tudo corre 60

PREFEITURA DE JOINVILLE. Espere. Você precisa saber como vai a sua cidade (livrete de divulgação das ações da PMJ). Joinville, 1973. Caixa de recortes. Prefeitura – AHJ. Esses mesmos termos foram repetidos em outros documentos produzidos pela PMJ nos anos seguintes, inclusive em INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO DE JOINVILLE (IPPUJ). Dados básicos de Joinville 1994. Joinville, 1993 (sic). 61

CHAUÍ, Marilena. Brasil. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000.

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bem, tranqüilo, dentro de uma empresa onde tenha uma estação de rádio daquelas.[...] Por outro lado, as empresas sentiram que o nosso corpo de bombeiros era ineficiente para acudir os sinistros que se sucediam, e a própria classe empresarial resolveu empreender uma campanha para captação de recursos a fim de equipar devidamente nosso Corpo de Bombeiros Voluntários. E finalmente, [...] com a suspeita que os incêndios eram provocados por menores, também a comunidade [...], as empresas, resolveram participar do trabalho em favor da assistência ao menor desamparado. Obra com que a Prefeitura vinha 62 arcando sozinha, exclusivamente.

A fala do então Prefeito mostra, entre outras coisas, a existência de menores abandonados, fator até então não comentado. Vários problemas foram levantados e evidenciados a partir daqueles incêndios, segundo Sirlei de Souza. As conseqüências foram muito além de simples caso de polícia, já que ameaçavam a ordem e a paz de uma cidade considerada “modelo” nesses aspectos. A sobrevivência do regime militar exigia que tudo permanecesse na mais perfeita ordem. Cidade pacata, Joinville caminhava rumo ao desenvolvimento e ao progresso e estes eram incompatíveis com desordens e violência.63 Além disso, circulava a hipótese, até hoje não esclarecida, de que os incêndios, criminosos, tinham uma finalidade política, no caso de desestabilizar o governo oposicionista de Joinville.64 Em 1978, foi assinado convênio entre a Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana – CNPU – e a Sociedade Alemã de colaboração técnica, órgão do governo da República Federal da Alemanha, com vistas a realizar estudos e análises sobre o planejamento urbano da cidade. O estudo, que durou um mês, só foi divulgado após insistentes pedidos por parte da imprensa, em 1980. Como se pode notar pelo próprio relatório, não era de interesse do poder vigente divulgar os resultados daqueles estudos, que, entre outras conclusões, afirmava que em Joinville: • cerca de 75% vive com renda familiar de até 3 salários mínimos; • há um endividamento geral das famílias; • faltam: 70% da coleta de lixo; 35% de abastecimento de água; 70% de esgoto e condições hospitalares para a população de baixa renda; 62 63 64

CAMPOS, Pedro Ivo Figueiredo. Op. cit., p. 53. SOUZA, Sirlei de. Movimentos de resistências... Op. cit., p. 199-201.

Atividades chamadas de “terroristas” como aquelas promovidas pela direita passaram a ser bastante comuns e divulgadas, no Brasil, a partir de 1980, com o atentado do Riocentro, quando um carro explodiu no estacionamento daquele local, onde acontecia um show em homenagem ao Dia do Trabalho.

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• o alto índice de imigração (sic) aumenta a instabilidade social, conseqüentemente as pessoas não têm segurança em Joinville; • há um desenvolvimento descontrolado na periferia da cidade;

65

• ampliação – prejudicial – mas constante no perímetro urbano.

O crescimento industrial catarinense e joinvilense, segundo Idaulo Cunha, não decorreu da implantação de grandes projetos de estatais ou multinacionais, mas de um elevado número de projetos de todos os portes, geralmente patrocinados por empresários locais.66 Porém, como se viu, esses empresários se valeram grandemente do momento político e econômico que caracterizou o regime militar e devido ao qual receberam vultosos financiamentos governamentais e internacionais que talvez não tivessem tido se a indústria joinvilense não fosse considerada “estratégica”. A década de 1980 é caracterizada como de crise econômica, provocada pela alta do petróleo, que levou vários países à recessão, inclusive os EUA. A reboque, o Brasil, que já estava em dificuldades com o primeiro choque do petróleo em 1973, passava a conviver com uma inflação descontrolada, aliada à crise política sem precedentes. O “milagre” acabara e Joinville passava a sentir, cada vez mais, as conseqüências da inflação que agora, a partir da abertura política que se iniciava, tinha nas greves a manifestação de desagrado pelos baixos salários. Estouraram greves em todos os setores da economia. A cidade, que cresceu graças à industrialização e cuja maioria da população era de operários, via indústrias, escolas e hospitais parando para reivindicar melhores salários. Além disso, Joinville procurava resolver um grande problema ambiental, a ocupação dos mangues existentes em vários pontos da cidade e que vinha ocorrendo desde o início de sua colonização, já que praticamente toda a cidade foi construída sobre o mangue,67 fator que se intensificou naquele período. A situação fica bastante evidenciada devido ao crescimento de movimentos nacionais e internacionais ligados a questões ecológicas que tomavam vulto a partir de 1972 com as discussões ambientalistas ocorridas em Estocolmo. Observavam-se as precárias condições de vida que aquelas pessoas passavam a adquirir ao morar sobre o mangue. A insalubridade era bastante grande, o que aumentava o risco de doenças e a necessidade de infra-estrutura urbana de todos os tipos. O aumento cada vez mais rápido e desordenado da população fazia com que a cidade procurasse se adaptar à nova realidade, e via-se uma 65 66 67

SOUZA, Sirlei de. Movimentos de resistências... Op. cit., p. 84. CUNHA, Idaulo José. Op. cit., p. 117.

GUEDES, Sandra P. L. de Camargo. A colônia Dona Francisca: a vida... o medo... a morte. In: GUEDES, S. P. L. C. (org.). Histórias de (I)migrantes: o cotidiano de uma cidade. Joinville: Univille, 2000.

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preocupação dos Prefeitos em “tapar os buracos” que iam surgindo na infraestrutura, como canalização de esgotos, pavimentação de vias públicas, iluminação, água, que já eram insuficientes para a antiga população e passavam a ser completamente absurdos para aqueles que passavam a habitar na cidade. Luiz Henrique da Silveira, em seu primeiro mandato como Prefeito de Joinville (1977-1982), pavimentou mais de 100 km de ruas e se queixava de que devido ao crescimento da cidade nunca iria conseguir dar infra-estrutura a toda a população.68 Em decorrência desse processo, é inaugurada, em 2 de agosto de 1980, a Ponte do Trabalhador, elo de ligação Leste–Sul, considerada “marco no desenvolvimento de nossa cidade” ou “marco que o progresso exigiu”. Foi a “primeira [ponte] no Brasil a dispor também de ciclovia, [...] tendo em vista o avultado uso, em Joinville, desse tipo de transporte popular.” E visava beneficiar principalmente os trabalhadores do bairro Boa Vista.69 A construção dessa ponte obrigou, mais uma vez, que se fizesse uma pesquisa arqueológica de salvamento em outro sambaqui de Joinville, o do Morro do Ouro. O planejamento da construção da ponte do trabalhador passava justamente no local onde estava o sambaqui, e ela só pôde ser construída após uma “apressada” pesquisa, cujos resultados também se encontram no Museu Arqueológico do Sambaqui de Joinville. Em 1982 foram assinados vários contratos, com a presença do então Presidente da República, João Batista Figueiredo, para a ampliação da rede de esgotos, construção de casas populares e rede de água, no montante de Cr$6,1 bilhões,70 porém as obras nunca eram suficientes. O Prefeito Wittich Freitag, industrial, representante da elite joinvilense e descendente de imigrantes, via como única saída para o problema que a cidade vinha adquirindo a parada do crescimento. Percebe-se em seus discursos, além da preocupação financeira com a administração pública, cujos recursos nunca eram compatíveis com a enorme demanda que se presenciava, a preocupação com a descaracterização de Joinville como cidade “ordeira, trabalhadora, pacata, enfim, a típica cidade de imigrantes alemães”. A idéia de preservar essa identidade sempre aparece nas falas dos políticos de origem germânica, numa tentativa, talvez, de diferenciar a cidade de outras que não lhes pareciam tão ordeiras, trabalhadoras ou pacíficas, justamente por não terem a mesma origem étnica. Com relação aos desafios sociais, Freitag cita as dificuldades da década de 1980 com as migrações intensivas para Joinville, principalmente do 68

Ver SILVEIRA, L. H. da. Luiz Henrique da Silveira: depoimento [maio 1982]. Entrevistadora: Dúnia de Freitas Toaldo. Joinville, 1982. Entrevista concedida para o projeto Prefeitos de Joinville. LHO-Univille. 69 70

Ponte do Trabalhador, elo de ligação Leste–Sul. Correio da Tupy, Joinville, set. 1980. p. 11.

Presidente Figueiredo esteve em Florianópolis e Joinville. Correio da Tupy, Joinville, ago. 1982. p. 12.

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Paraná, estimulada, desde o início da década de 70, por empresas de Joinville e pelos próprios migrantes que chamavam o restante da família para cá. Chegavam de manhã na rodoviária, com um saco nas costas, e iam para o mangue. Os que já haviam conseguido emprego mandavam cartas para as rádios da sua cidade, espalhando a notícia de que em Joinville havia trabalho. Por outro lado, as indústrias mandavam ônibus buscálos. Um morador do Boa Vista contou-me que fazia quatro viagens por semana buscando gente em vários locais. [...Instituiu-se a] indústria da invasão... alguns comerciantes passaram a “patrocinar” lotes em troca da compra de material de construção. [...]Além disso, havia o PT e a ala progressista da Igreja, que não só aprovavam mas incentivavam as invasões, muitas vezes em áreas destinadas a moradias populares. [...] Não demorou e tínhamos um quadro arrasador de pobreza na periferia da rica e próspera Joinville. Com as áreas de mangue sendo invadidas, rapidamente havia o risco de perdermos o controle da situação, além da perda do equilíbrio ecológico do mangue. Sem fiscalização ou planejamento, não demorou a aparecerem favelas, com mocambos e palafitas onde não havia o mínimo de uma vida digna. O processo de favelização evoluía com uma rapidez incrível, avançando para a Lagoa Saguaçu, em direção à Baía da Babitonga. Se os anos 70 foram marcados pelo crescimento econômico que chegou a ser chamado de “milagre brasileiro”, os anos 80 mostraram que de “milagre” a economia brasileira não apresentava nada. O país caiu numa crise que perdura até os dias de hoje. Em Joinville os problemas não tardaram a agravar-se. Os migrantes que buscavam, aqui, a “terra prometida” já não encontravam vagas nas indústrias. Esse processo desenvolveu-se na 71 mesma época em que assumi o primeiro mandato, em 1983.

A explicação simplista de que as migrações para Joinville tenham sido causadas pelo fato de as indústrias irem à cata de operários em cidades vizinhas proliferou tanto que se vê, ainda hoje, muitas pessoas atribuindo a esse fato o inchaço populacional da cidade. O processo migratório se dá, geralmente, por duas vias: a de expulsão, ou seja, aquela na qual a situação em que a pessoa se encontra não é mais satisfatória, que também pode ser ocasionada por diversas razões, por exemplo, salários baixos, falta de perspectivas profissionais ou pessoais, falta de incentivos no campo, seca, enchentes, guerras ou outros tantos motivos, e a via de atração, que é a citada por Freitag em seu depoimento, ou seja, a possibilidade de emprego e de uma vida melhor em Joinville. Sem dúvida não há migração em massa quando só 71

S. THIAGO, Raquel. Op. cit., p. 183-5.

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uma das duas vias está propícia; nesse caso ocorre apenas a migração esporádica, individual ou familiar. Porém, a preocupação do então Prefeito era evitar que a qualidade de vida de Joinville caísse. De que adianta uma cidade cheia de gente vivendo mal? Com uma taxa de mortalidade infantil de 10%, eu me sentia quase impotente [...], no desespero, apresentava o problema para as autoridades que passavam 72 por Joinville, num pedido angustiado de socorro.

Os relatórios do Hospital Municipal São José reforçam essa preocupação. As conclusões da área de Serviço Social Médico mostravam que a realidade econômica do país e a conseqüente pauperização da população agravavam os problemas de saúde e, ao contrário do que deveria ser, as verbas para o setor eram cada vez menores. Esses problemas refletiam “em nossa clientela infantil, que em sua maioria é internada por problemas primários de saúde, principalmente desnutrição, que é conseqüência da miséria e ignorância do povo.”73 Em 1986 ainda corria esgoto a céu aberto em determinados bairros, como no de Paranaguamirim, por exemplo.74 Essa realidade era, com certeza, reflexo daquela detectada pela CNPU e a Comissão de técnicos alemães em 1978, ou seja, o empobrecimento e aumento da população da periferia, onde faltava todo tipo de infra-estrutura urbana.75 Assim, Freitag procurava apagar a imagem que todos tinham, inclusive ele próprio, como vimos em sua fala na página anterior, que Joinville era uma cidade “rica e próspera”. Para isso elaborou um levantamento dos maiores problemas sociais da cidade para levar ao governo do Estado e a Brasília, a fim de conseguir um aumento nas verbas repassadas ao município. Meu argumento centrava-se no fato de que o povo não só sentia na pele, como sabia o quanto nós pagávamos, com quanto contribuíamos para os cofres estaduais e federais e o quanto recebíamos de volta. O povo também sabia dos problemas da cidade, principalmente nos setores de ensino, saneamento básico, saúde, habitação. Onde quer que colocássemos o dedo encontrávamos deficiências.[...] Finalmente conseguimos convencer as autoridades estaduais e federais de que Joinville era uma cidade em expansão, abrigo de migrantes e, 76 por conseguinte, com muitos problemas sociais. 72 73

Ibid., p. 185.

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1983. Acervo do HMSJ (datilografado). Pasta 9-C-1, fl. 39. Grifo nosso. 74

Esgoto a céu aberto, problema sem solução revolta moradores. A Notícia, Joinville, 1 maio 1986. p. 5. 75 76

Ver nota 65, neste capítulo. S. THIAGO, Raquel. Op. cit., p. 185.

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Por intermédio de uma equipe multidisciplinar, foi elaborado um plano para tentar solucionar o problema, [...] conter as invasões e proteger o ecossistema sem desabrigar as famílias que já estavam no local [...] chegou-se a um consenso de que se poderia fazer um canal de grande porte, com dois objetivos: primeiro coibir as invasões, porque ficava difícil transpor o canal com uns 50 metros de largura e cinco de profundidade; segundo, fazer um aterro, [...]. Fizemos o canal e, em pouco tempo, a área inundada pela maré e pela lama transformou-se em um chão limpo e seco. Isso possibilitou abrir ruas, relocar casas, marcar lotes, colocar água, energia elétrica, 77 esgoto e toda a infra-estrutura.

Esse projeto, coordenado pelo secretário Marco Tebaldi, chamouse Projeto Mangue e foi, mais tarde, apresentado durante a ECO 92 no Rio de Janeiro, sendo considerado “modelo em várias partes do país.”78 Embora Joinville fosse a primeira cidade do Estado em arrecadação de ICMS, era a sexta em arrecadação per capita. Segundo Apolinário Ternes, milhões de dólares, com a participação do governo federal, foram canalizados para a urbanização de áreas faveladas. Foi assim que em 1984 o Secretário de Desenvolvimento Social, Raimundo Colombo, trouxe a Joinville verbas para a construção de 1.020 casas populares da COHAB, no bairro Jarivatuba, para serem entregues em lotes a moradores dos mangues. Em 1987 esse mesmo loteamento, denominado Ademar Garcia, era notificado por irregularidades, com falta de infra-estrutura, drenagem e também venda ilegal de lotes.79 No mesmo ano, surgiu o Plano de Estruturação Urbana (PEU), com a finalidade de repensar o crescimento urbano da cidade e principalmente “o modelo industrial”, indagando se seria o momento de nos permitir questionar até que ponto o contínuo desenvolvimento local, baseado no setor industrial, empregando mãode-obra predominantemente de baixa renda, e se o resultado real deste 80 processo para o conjunto da cidade, seria conveniente. 77

Ibid., p. 186. A dragagem que deu início à urbanização dos mangues começou em março de 1985.

78

S. THIAGO, Raquel. Op. cit., p. 187. Mais tarde, em 2002, Marco Tebaldi, então VicePrefeito, assume a Prefeitura de Joinville quando Luiz Henrique da Silveira afasta-se para concorrer ao governo do Estado. 79

Verba para núcleo da COHAB. A Notícia, Joinville, 15 jun. 1984./ Núcleo Ilegal. COHAB notificada. A Notícia, Joinville, 5 mar. 1987.

80

TERNES, A. Joinville, a construção... Op. cit., p. 192.

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Esse tipo de discussão só aparece em momentos de crise econômica, quando estouram greves e os salários estão incompatíveis com uma inflação que ultrapassava os três dígitos anuais. Durante o período chamado de “milagre econômico”, quando a cidade crescia assustadoramente, não se via nenhum questionamento, na imprensa ou na documentação analisada, sobre o modelo de desenvolvimento adotado para a cidade; pelo contrário, todos se jubilavam das conquistas adquiridas. Apesar de Freitag colocar como um dos maiores problemas de sua primeira gestão a invasão dos mangues, não se pode deixar de frisar que, principalmente entre 1983 e 1984, quando a inflação ultrapassou os 200% anuais, várias greves de funcionários públicos municipais e federais, reivindicando melhores salários, estouraram em Joinville, principalmente ligadas à área da saúde e da previdência, além de várias greves nas indústrias, mas que não cabe aqui analisar. Em 1985 foram concedidos 100% de aumento aos servidores municipais. Segundo Freitag, foi uma maneira de compensar os sacrifícios que eles fizeram durante o início do seu mandato. Ainda na visão do ex-Prefeito, os resultados do otimismo iniciado com a criação do Plano Cruzado, em 1986, quando o congelamento de preços e a mudança do dinheiro de cruzeiro para cruzado deram a sensação de que a economia estava melhor, foram um consumismo exagerado e a falta de produtos. Rapidamente a euforia se transformara em descrédito. O congelamento era desrespeitado, tudo subia e a arrecadação já não era suficiente para pagar as contas. Segundo ele, essa situação afetou as finanças da Prefeitura, impossibilitando novos investimentos. Participei, em junho de 1985, da marcha de dois mil prefeitos para Brasília. Todos deveríamos dar apoio à emenda que pedia a melhoria do percentual do fundo de participação dos Estados e municípios. Até hoje os prefeitos e governadores lutam, praticamente de chapéu na 81 mão, junto ao Presidente da República.

O governo seguinte, de Luiz Gomes (Lula), adotou política contrária àquela praticada por Freitag, que havia despertado críticas de vários segmentos da sociedade, ou seja, passou a incentivar ainda mais a migração, por intermédio do programa “chalulas” – chalés do Lula –, que eram casas populares que serviram, segundo o ex-Prefeito, para resolver um novo problema com o qual a cidade passou a conviver, ou seja, os “moradores de rua”: [...]este era o clima que existia na cidade, simbolizado por um episódio, um fato, conhecido, de que aqui na Ponte do Trabalhador – como na 81

S. THIAGO, Raquel. Op. cit., p. 199.

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Praça da Biblioteca –, na entrada da Nova Brasília, naquela Ponte da Nova Brasília... mas aqui na Ponte do Trabalhador moravam [...] 27 famílias. Famílias constituídas, alguns trabalhavam, tinham emprego, moravam ali, mas o rio sobe e desce com a maré, então as condições 82 eram as piores possíveis sob o ponto de vista sanitário[...]

A construção das chalulas criou uma polêmica bastante grande em Joinville, já que as opiniões se dividiam. Enquanto Luiz Gomes defendia o crescimento da cidade e a oportunidade a todos, Freitag, seu antecessor e sucessor, tecia duras críticas a essa política. Em suas memórias Freitag diz que as chalulas motivaram a vinda para Joinville de famílias inteiras que acabavam ficando sem emprego e aumentando os problemas sociais da cidade: Aquela pobre gente tratou logo de propagar pelos quatro cantos que em Joinville a Prefeitura estava doando casas para os migrantes. O efeito foi imediato, foi a invasão do Moto Clube e do Morro da Formiga. Além disso, 154 dessas casas foram construídas em áreas de uso comunitário, destinadas a lazer, escola e outras melhorias dentro de loteamentos comuns, criando uma situação de ilegalidade. Para resolver esta questão, no meu segundo mandato (1993-1996) encaminhei à Câmara de Vereadores uma lei que tratava da regularização dos loteamentos, através da Secretaria da Habitação e Saneamento. No início de 1989, chegaram a Joinville 94 famílias, sendo que deste total apenas 10% conseguiram emprego formal na indústria e comércio. Algumas famílias retornaram para suas cidades de origem. Mas aqueles que não retornaram e não conseguiram emprego aumentaram o número de desocupados na cidade. O nível de marginalização fatalmente cresceu, 83 aumentando o emprego informal, de difícil controle.

Enfrentando uma série de críticas, Luiz Gomes dizia estar preocupado em assentar aqueles que já estavam aqui e que não podiam continuar morando no mangue. Tinha que dar condições de vida digna àquelas pessoas. Assim, desencadeou um programa para recuperação dos mangues e melhoria da infraestrutura da cidade. Eu fui prefeito numa década em que vieram para cá 20 mil famílias de fora. Dez mil famílias [...] que, grosso modo, vieram com um dinheirinho, tinham parente aqui, chegavam aqui se encostavam, podiam pagar o estudo, já vinham com uma certa autonomia de sobrevivência. Mas dez mil vieram e se entregaram ao poder público de Joinville. 82

GOMES, L. Luiz Gomes: depoimento [jul. 2001]. Entrevistadoras: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Eleide A. G. Findlay. Joinville, jul. 2001. 2 fitas cassete (120 min.). Entrevista concedida para o projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille.

83

S. THIAGO, Raquel. Op. cit., p. 188.

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Então nós fomos obrigados a correr desesperadamente e pedir ao governo federal uma área de 40 mil metros quadrados, que é todo o manguezal que vai do bairro Aventureiro até a boca dos Espinheiros; tudo aquilo lá era terreno da União e eu pedi a eles para cederem para a Prefeitura por noventa e nove anos. Ele já estava sendo invadido, o manguezal, aí nós fizemos uma intervenção lá, loteamos tudo aquilo, aterramos, arruamos, colocamos drenagem pluvial, posteação de luz e esquadrinhamos a invasão. [...] tem todas as ruas retas, todas as casas têm uma árvore, todas as ruas são largas, todas elas têm luz, todas as ruas matrizes tem alimentação asfáltica, e no fundo ela é contida por um canal de 60 metros de largura, um canal que foi feito para evitar que a invasão progredisse sobre os 95% dos mangues que foram preservados. Com isso nós deixamos de preservar 5% dos mangues, 40 mil metros [...]. A minha administração acabou sendo absorvida pelo fenômeno da migração. Então eu não podia pensar em fazer um teatro, não podia pensar em fazer um estádio para o JEC, eu tinha que dar escola, saúde... Então fizemos um esforço grande nisso aí, urbanizamos [e] acabamos com as invasões. [...] Joinville, graças à ajuda dos loteadores e essa ação do governo federal ao haver cedido aquelas terras públicas e um pouco de dinheiro, nós conseguimos urbanizar o assentamento para as dez mil famílias pobres, porque as dez [mil] mais ricas iam lá no Zattar, compravam os seus lotes e acertavam sua vida, mas os pobres 84 que não tinham, a Prefeitura conseguiu arranjar a vida deles.

Após o trabalho de urbanização do mangue, promoveu uma fiscalização, por intermédio do Núcleo de Bacias Hidrográficas, que continuava sendo coordenado por Marco Antônio Tebaldi, para que não acontecessem novas invasões. As novas casas que fossem construídas em lugares impróprios eram sistematicamente derrubadas.85 Em seu segundo mandato, Freitag, para desestimular a vinda de pessoas para Joinville, valeu-se dos mesmos recursos utilizados anteriormente pelas empresas para chamar empregados, ou seja, as rádios das cidades vizinhas, do Paraná e de Santa Catarina. Além disso, criou um projeto chamado “volta às origens”, que incentivava o retorno das famílias migrantes às suas cidades. Essa atitude de Freitag também recebeu duras críticas, sendo taxada de discriminatória. Mais uma vez, vemos a mídia colaborando na formação de uma imagem da cidade, dessa vez aquela que mostrava Joinville sem condições de infra-estrutura para abrigar mais pessoas. Divulgava-se uma espécie de “fracasso” da cidade como receptora de migrantes. A recuperação do meio ambiente passou a ser a tônica do segundo 84 85

GOMES, Luiz. Op. cit. Mangue não é mais invadido. A Notícia, Joinville, 18 abr. 1991. p. 5.

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mandato de Freitag, mesmo porque a ECO 92, ocorrida no Rio de Janeiro, passava a ser uma bandeira política de grande repercussão, fortalecida pelo prêmio que Joinville recebeu durante o evento, com seu projeto de recuperação dos mangues. Assim, de 1993 a 1996, a prioridade foi o Projeto Joinville, em que o diagnóstico ambiental da cidade foi feito. Para isso foi criada a FUNDEMA e o Código Municipal de Meio Ambiente. Com o crescimento da cidade, a construção de shopping centers e muitos edifícios, os problemas de drenagem se agravaram, “sobretudo na bacia do Rio Cachoeira”. Por intermédio do Projeto Joinville e de vários estudos, foi feito um planejamento para despoluição do Rio Cachoeira, quando alguns financiamentos foram conseguidos.86 “Paralelamente a estas ações, o governo do Estado também desencadeou um projeto de ordenamento do planejamento regional integrado [...]” através da AMUNESC. Esse projeto propunha que a região passasse a se interessar por indústrias de alta tecnologia, com mão-de-obra mais especializada e que houvesse uma “desconcentração industrial através de realocações, ampliações ou novos assentamentos em áreas que envolvam menores custos de implantação [...]”.87 Pretendia-se desenvolver indústrias nos municípios vizinhos a Joinville – Araquari, São Francisco do Sul e Balneário de Barra do Sul –, o que ainda se está buscando lentamente. Entre 1981 e 1989, Joinville e Jaraguá do Sul foram as cidades de Santa Catarina cujos pólos industriais mais cresceram, com ênfase para os segmentos de: mecânica com 9,1% da composição da taxa; material elétrico e de comunicações com 5%; e a metalúrgica com 4,3%. Em suma, a indústria mecânica, conjuntamente com a de material elétrico e de comunicações e a metalúrgica, contribuíram (sic) 88 com quase 2/3 da composição da taxa de crescimento setorial.

Embora a economia do país estivesse em queda livre, com uma inflação que chegou, em 1988, a 1.000%, passando por vários planos econômicos fracassados, e a indústria joinvilense também estivesse passando por grandes dificuldades, a cidade ainda continuava sendo pólo de atração para pessoas que conviviam com grandes dificuldades em suas cidades e não viam esperanças de melhora. Com a implantação do Plano Collor, em 1990, quando a inflação projetava para aquele ano 5.000%, que 86 87 88

S. THIAGO. Op. cit., p. 210-211. Ibid., p. 196. CUNHA, Idaulo. Op. cit., p. 193.

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congelou os preços e salários, reintroduziu o antigo cruzeiro em substituição ao cruzado novo, aumentou os impostos e tarifas, cortou subsídios, eliminou restrições a importações e – o mais surpreendente – 89 seqüestrou a poupança da população,

as coisas pioraram ainda mais e a inflação logo retornou à cifra de 1.000% ao ano. O crescimento da infra-estrutura urbana de Joinville ainda não conseguia acompanhar o crescimento populacional. Procurando facilitar a administração pública, novos bairros foram sendo criados: em 1992 o Jardim Paraíso e em 1993 o Ademar Garcia. Em 1995 propunha-se subdividir os bairros do Itaum, Itinga, Floresta e Santa Catarina, que já estavam muito grandes, em quatro novos bairros: Anitópolis, João Costa, Petrópolis e Boehmerwald. Essas mudanças exigiam investimentos públicos maiores, com uma série de obras e serviços de infra-estrutura considerados de maior necessidade e urgência.90 Dos quatro novos bairros propostos, apenas o de Anitópolis não se efetivou. Se em 1995 aquela matéria de jornal dizia que Joinville tinha 31 bairros, em 2001 a cidade estava dividida em 35 bairros, além da Zona Industrial Norte, Zona Industrial Tupy, do distrito rural de Pirabeiraba e do núcleo urbano de Itoupava-Açu.91 A saúde pública era um dos setores que mais sofria com a falta de investimentos e cada vez mais passava a fazer parte das críticas dirigidas ao poder público municipal, já que também assumia papel de fundamental importância nas campanhas políticas de todos os candidatos a cargos públicos. A criminalidade e a presença de menores abandonados também aumentaram com o crescimento da cidade. Por meio da manchete “Prefeitura tem projeto para recuperar menores”, o texto do Diário Catarinense expunha a necessidade de adequar as ações da Prefeitura ao novo Estatuto da Criança e do Adolescente. “Os programas ‘liberdade assistida’, [...]‘Prestação de Serviços à Comunidade’ e ‘Subsídio Familiar’ são medidas socioeducativas e têm como objetivo dar suporte ao trabalho dos conselhos municipal e Tutelar dos Direitos da Criança e do Adolescente...”92 Paralelamente, cresciam os números de acidentes de carro e atropelamentos. Os dados fornecidos pelo pronto-socorro do Hospital 89 90 91

PILAGALLO, Oscar. Op. cit., p. 185. Proposta de criação de quatro bairros. A Notícia, Joinville, 16 maio 1995. p. A-5.

INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO DE JOINVILLE (IPPUJ). Joinville – Cidade em dados. 2001/2002. Joinville: Prefeitura Municipal, 2001. p. 24.

92

DIÁRIO CATARINENSE. Florianópolis, 14 nov. 94. p. 2 e 3. Caixa de recortes da Prefeitura de Joinville – AHJ.

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Municipal São José mostravam que ocorriam mais de dois por dia, o que era bastante preocupante.93 As ocupações de terrenos para habitação, cada vez maiores e, na maioria das vezes, sem planejamento, aumentaram os já antigos problemas com enchentes que a cidade sofria desde sua fundação, porém agora passaram a ser verificados em novas áreas, na periferia, aonde as obras de infra-estrutura sempre chegam mais tarde. Em 9 de fevereiro de 1995 Joinville sofreu a maior enchente dos últimos 40 anos, decorrente do rompimento da barragem do Rio Cubatão, deixando centenas de residências embaixo d’água e cerca de 5 mil pessoas desabrigadas. A referida enchente inundou Pirabeiraba, os loteamentos Jardim Sofia, Jardim Paraíso e Jardim Edilene. Acresce-se a esse fato os problemas ambientais decorrentes. No ano seguinte, parte dos moradores do bairro Jativoca, após enfrentar três enxurradas entre dezembro e janeiro e ocupar um terreno da municipalidade enquanto aguardava soluções, teve três quadras do novo loteamento, no bairro do Morro do Meio, que seriam repassadas pela Prefeitura às famílias atingidas, embargadas pelos fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA).94 Os problemas ambientais somavam-se em Joinville. Em 1996 iniciavam-se as discussões sobre a construção da usina do Rio Cubatão. Fazem parte deste consórcio a estatal francesa Életricité de France (EDF), a paranaense Inepar, a Mecânica Pesada (do grupo anglo-francês Gec-Alston), Desenvix e a associação de funcionários do fundo de pensão Celos (da CELESC), Elos (da ELETROSUL), Previsc (da Fiesc) e Fusesc (do Besc).[...] Os investimentos da usina de Cubatão, com capacidade de 45 megawatts/ hora, é de R$50 milhões. A energia gerada em Cubatão deve prover 95 12% a 15% do município de Joinville.

Em outubro de 1996, o Prefeito Wittich Freitag inaugurou o novo prédio da Prefeitura de Joinville, às margens do Rio Cachoeira e, no mês seguinte, uma delegacia da Polícia Federal. A nova delegacia significava “[...] importante reforço no combate à violência e ao narcotráfico. Inaugurada pelo 93

Situação crítica. Superlotação começa a virar rotina no pronto-socorro do Hospital São José de Joinville. Diário Catarinense – DC Norte, Florianópolis, 16 dez. 96. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José – AHJ. 94

IBAMA embarga parte do terreno para atingidos. Moradores dão prazo até 2.ª para a Prefeitura de Joinville resolver impasse no loteamento do Morro do Meio. A Notícia, Joinville, 1 fev. 1996. Caderno JOINVILLE. p. A-5. 95

Empresas discutem usina do Cubatão. Celesc aposta no sucesso do empreendimento para atrair parcerias. A Notícia, Joinville, 1 fev. 1996, p. A-11.

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Ministro da Justiça, Nelson Jobim [...]”96, demonstrando, portanto, a presença de narcotráfico na região. Em 97 os assaltos a carro já somavam 288 nos cinco primeiros meses do ano, alguns seguidos de seqüestros.97 Em janeiro de 1997 Luiz Henrique da Silveira assume seu segundo mandato na Prefeitura de Joinville, exatamente quando nova e grave crise na saúde é desencadeada, como veremos mais adiante. O ano de 1998 é colocado como muito difícil financeiramente. Segundo o relatório do Prefeito, não houve apoio do governo do Estado, mas “surpreendentemente” do governo federal. O relatório afirmava que a principal realização do ano foi a inauguração do Centreventos Cau Hansen, em 26/6/98, pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, “primeiro empreendimento latino-americano a seguir o moderno conceito de arena multiuso, reunindo um centro desportivo, uma grande casa de espetáculos, teatro, centro de convenções, além de abrigar diversas instituições culturais e educacionais.”98 No ano seguinte a área cultural da cidade é novamente foco das maiores atenções a partir da vinda da Escola de Balé Bolshoi para Joinville, sendo a primeira escola desse tradicional balé a estar sediada fora da Rússia. O mesmo relatório faz menção, ainda, à crise financeira internacional provocada primeiro pelo chamado Efeito Tequila, referindo-se à crise mexicana em 97 que quase carregou junto o Brasil, e em 98 à crise asiática que prejudicou muito as negociações internacionais e novamente as indústrias brasileiras e joinvilenses. “[...] a despeito da crise financeira internacional sem precedentes que atingiu as prefeituras, muitas das quais reduziram os salários, diminuíram o expediente, pagaram com atrasos, fecharam as portas, e até Prefeitos renunciaram”, Joinville pagou em dia seus servidores, envaidecia-se o Prefeito. Nas eleições de 1999, beneficiando-se da emenda de 97 que possibilitava a reeleição em todos os níveis, Luiz Henrique foi novamente eleito Prefeito de Joinville para o mandato 2000-2004, e em 2002 deixou o cargo a seu Vice, Marco Antonio Tebaldi, para concorrer às eleições ao governo do Estado de Santa Catarina, na qual sagrou-se vencedor. A nova crise financeira internacional provocou uma reestruturação administrativa na grande maioria das indústrias, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Já havia algum tempo falava-se em redução de estoques, enxugamento de quadro de pessoal, qualidade total e outros métodos utilizados para se adequar e sobreviver às constantes crises econômicas pelas quais passava o país. Assim, foram freqüentes as demissões em praticamente todas as indústrias da cidade, mas, ao contrário da esperança que se tinha com 96 97 98

Prefeitura ganha sede própria. A Notícia, Joinville, 23 out. 1996 e 1 nov. 1996. AHJ. Ladrões furtam 288 veículos em menos de 5 meses. A Notícia, Joinville, 27 maio 1997. AHJ.

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual – 1998. Administração Luiz Henrique e Loyola. Joinville, 1998.

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relação às empresas quando levas e mais levas de migrantes se dirigiram à Joinville, agora não havia para onde ir. Nenhum ramo da economia de parte alguma parecia atraente o suficiente para compensar novas migrações. A cidade continuava, portanto, com um excesso populacional para a infra-estrutura que tinha, e acrescia-se a isso um desemprego cada vez maior.

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3 O CONTEXTO DA SAÚDE EM JOINVILLE

Joinville, coerentemente com o modelo e a prática adotados no país, reservou à saúde pública um papel secundário na formulação das políticas sociais. Essa atitude é reflexo da concepção filosófica que sempre permeou o Estado do Bem-Estar social brasileiro, a predominância da visão curativa sobre a preventiva, a assistência médico-hospitalar impondo-se à atenção primária da saúde. Como já ressaltamos na análise das políticas sociais para a área da saúde no Brasil, o acesso à saúde é entendido como resultante da situação individual e não coletiva, pela inserção ao sistema previdenciário e não pela cidadania. Ao mesmo tempo as condições de vida do trabalhador passam a ser objeto de preocupação das políticas sociais traçadas, quer como vontade própria dos governantes, quer como resultado das pressões dos grupos mais organizados da sociedade. A preocupação com as condições de vida da população traduz a própria percepção da necessidade de manter a saúde da força de trabalho. Os bairros proletários geralmente não oferecem condições de saneamento básico do meio ambiente. Faltam redes de esgoto ou de água tratada e encanada e, além disso, a própria moradia na maioria das vezes se apresenta insalubre – espaço reduzido na residência, com 1 várias pessoas ocupando um único cômodo, por exemplo.

Essa parecia ser a realidade que estava se construindo em Joinville, a partir da década de 1970, com o crescente processo de migração que, ao mesmo tempo em que impulsionava a economia do município, gestava os problemas sociais decorrentes do inchaço populacional. A cidade crescia, mas também cresciam as demandas sociais, que implicariam maiores recursos financeiros para a área social. Em livrete de divulgação das ações da Prefeitura, em 1973, havia instruções sobre a legalização de lotes, o que sugere que os loteamentos clandestinos eram uma realidade que começava a existir na 1

TOMAZI, Zelma Torres. O que todo cidadão precisa saber sobre saúde e Estado brasileiro. São Paulo: Global, 1986. p. 40.

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“Manchester Catarinense”, ao mesmo tempo em que previa para breve a rede de serviços de esgoto.2 No início da década, o orçamento plurianual de investimento 19711973 destinou para o ano 1971 o relativo a 21,16% para os gastos sociais, incluindo educação e cultura, saúde e saneamento e bem-estar social. Não se pode esquecer que, além do período extremamente favorável da economia local, o próprio país naquele momento ingressava no “milagre econômico”. A preocupação dos governantes militares com o aporte financeiro para o setor da previdência social como mecanismo de poder e de manutenção da subordinação da classe trabalhadora foi analisada no capítulo 1. Porém a mesma doutrina nacional estava presente nas práticas locais. Ao final da década, após os dois choques do petróleo, a inflação em alta, a recessão econômica, déficits nas contas externas, os gastos sociais no plano local acompanharam o corte nas políticas sociais como mecanismo de política econômica. No orçamento plurianual de investimentos de 1981 o setor social foi contemplado com 16,7%, incluindo educação e cultura, saúde e saneamento, assistência e previdência social. Com relação à área da saúde, na década de 70 a cidade estava perfeitamente ajustada às políticas nacionais ligadas à assistência médica destinada à classe trabalhadora formalmente inserida no mercado de trabalho, pois contava com postos de atendimento do INPS e dois hospitais públicos, o Hospital Municipal São José e a Maternidade Darcy Vargas, que absorviam os conveniados da previdência social. A criação do Sistema Nacional de Saúde, a instituição do seguro social para todo o trabalhador formalmente inserido no mercado de trabalho e a extensão do direito à assistência médica aos dependentes provocaram o aumento do número de usuários sem o correspondente aumento da rede de atendimento. A forma de custeio do sistema desagradava a todos os que atuavam no sistema público e no contratado. As questões estavam relacionadas à arrecadação e liberação de verbas. Em 1971 o INPS de Santa Catarina ultrapassou o limite fixado para a assistência médica, dizia a matéria publicada no jornal A Notícia, pois a assistência médica demandou 42,86% da receita que deveria estar contida em 25% do total estipulado pelo INPS. De acordo com o superintendente regional daquele instituto, o que o INPS pretende é disciplinar a assistência médica, permitindo a ampliação da assistência ambulatorial sem necessidade de internação 2

De acordo com o Censo 2000, Joinville possuía 132.388 unidades domiciliares, e dados da CASAN informavam que em 2000 existiam somente 11.920 residências usuárias da rede de esgoto (11,2%).

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dos segurados. Essa ampliação compreende o convênio com sindicatos e, nas localidades que não for possível, será feito com SESC, SESI, LBA, 3 ou com postos de saúde do Estado.

Naquele mesmo ano, o Dr. Tufi Dippe afirmava que a Secretaria de Saúde pretendia amparar a saúde pública “com serviços de educação higiênica, instalação de postos de saúde e hospitais e aparelhamento dos mesmos”.4 O Prefeito Harald Karmann, que governou de 1970 a 1973, em seu relatório bienal destacava as principais ações no setor da saúde: trabalhos de canalização de águas pluviais e esgotos sanitários (área rural); combate à verminose; distribuição de medicamento; encaminhamento de 112 pessoas para tratamento fora do município; 12 mil doses de vacina antitífica aplicadas em decorrência de enchentes; instalação de miniprontos-socorros nos bairros; ações de educação sanitária; atendimento às gestantes; realização de exames ginecológicos e de mama; promoção de campanhas de combate ao câncer ginecológico e de mama.5 Nesse período não havia Secretaria de Saúde, mas Departamento de Habitação, Saúde e Assistência Social. A divisão de saúde na Secretaria Municipal do Bem-Estar Social foi criada em 1977 e contava com quatro ambulatórios – Iririú, Fátima, Floresta e Costa e Silva – e um módulo odontológico ambulante. Os trabalhos eram desenvolvidos por 13 funcionários, assim distribuídos: 2 médicos que atendiam em dias alternados, 1 enfermeiro supervisor, 4 atendentes de enfermagem, 4 dentistas, 1 motorista e 1 auxiliar administrativo. De acordo com o relatório decenal da Secretaria de Saúde 1981-1991, não existia, na época, planejamento ou programa, os atendimentos ocorriam conforme a necessidade. Nos anos 80, a grave situação financeira nacional impôs à previdência social uma crise sem precedentes. Os reflexos foram sentidos pelos usuários locais que não tinham à sua disposição um serviço de qualidade. O INAMPS, objetivando superar a situação, implantou na área da assistência, como discutido no primeiro capítulo, as AIS (Ações Integradas de Saúde) e a AIH (Autorização de Internação Hospitalar) e, a partir de então, todos os brasileiros passaram a ter acesso aos serviços de saúde. O programa das AIS permitia o repasse de recursos federais, através de convênios, para Estados e municípios, a fim de que eles aumentassem seus gastos com saúde. 3 4

INPS de SC ultrapassou limite fixado para assistência médica. A Notícia, Joinville, 4 abr. 1971. p. 7.

Centro de Saúde pretende realizar amplo trabalho em favor da saúde pública. A Notícia, 22 set. 1971. p. 8. 5

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1970-72. Administração Harald Karmann. Joinville, 1973, p. 71.

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As AIHs transformaram-se no elemento motivador das grandes discussões e paralisações realizadas principalmente pelos médicos, pois impunham um sistema de cotas hospitalares. Em 1981, os médicos também reivindicavam o estabelecimento de um piso salarial para a categoria que trabalhava para o INAMPS.6 À ampliação dos benefícios não se seguiu um aumento nas fontes de receitas. Os trabalhadores continuavam a ser a grande fonte de receita da previdência social. Para o médico Luiz Antônio de Araújo, em depoimento às autoras, o surgimento do INPS teve o seguinte significado para a classe médica: [...] Daí surgiu o INPS, dando uma segurança grande para o médico. O médico passou a ganhar menos da medicina privada e passou a atender todos os usuários, indistintamente, [...] ele tinha uma segurança em relação às condições de trabalho e em relação a sua remuneração profissional. Esse sistema foi deteriorando progressivamente. O que no início se apresentava como uma situação bastante boa para o médico, condição trabalhista, foi deteriorando até ficar inviável para o médico, 7 onde a medicina privativa voltou a ser reativada.

Um estudo da CEPAL8 para o período de 1977-1988 sobre a evolução do gasto social na América Latina demonstra que entre 1978 e 1984 houve uma redução de 50% em saúde nos montantes investidos por pessoa em serviços sociais. Com o crescimento populacional e as conseqüências da crise econômica nas condições de qualidade de vida, as necessidades de atenção à saúde se multiplicaram. Parece óbvia a impossibilidade de um atendimento no mínimo satisfatório tanto do ponto de vista dos profissionais quanto dos usuários. Não podemos esquecer que a maioria das ações de saúde era de responsabilidade do INAMPS, com sua rede hospitalar e ambulatorial. Em matéria publicada no jornal Extra, em 1982, a precariedade da rede do INAMPS era destaque, já que as pessoas não filiadas ao sistema previdenciário eram atendidas pelo sistema público sob a denominação de indigentes. Informava-se que o HMSJ tinha atendido 278 pacientes sob essa condição, no mês de janeiro daquele ano. Ainda sob o título Amparo Social, a matéria chamava a atenção para o reflexo da crise da previdência social nos hospitais. 6 7

Médicos do Inamps ameaçam fazer greve. A Notícia, 8 de abril de 1981. p. 1.

ARAÚJO, L. A. Luiz Antônio de Araújo: depoimento [fev. 2001]. Entrevistadoras: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Eleide A. G. Findlay. Joinville, 2001. Entrevista concedida ao projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille. 8

SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Ajuste neoliberal e desajuste social na América Latina. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.

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A crise financeira dos hospitais é geral, em decorrência do atraso do pagamento das contas por parte da Previdência Social, responsável única pela debilidade econômica dos hospitais e que agora, em conluio com as companhias de seguro, baixou substancialmente o faturamento hospitalar, fazendo com que os hospitais cobrem as contas de pacientes acidentados no trânsito, de acordo com a tabela de preços da Previdência. Essa medida veio a prejudicar ainda mais os hospitais e a 9 beneficiar as seguradoras.[...]

Naquele mesmo ano, durante o VII Encontro Catarinense de Hospitais realizado em Joinville, os médicos manifestavam sua posição relativa às mudanças introduzidas pelo INAMPS: O novo sistema de pagamentos das contas da previdência já mostra um plano falido em sua fase experimental. [...] uma pesquisa feita nos últimos dois meses concluiu que o INAMPS está pagando os procedimentos médicos, diárias, medicamento e material de consumo – com déficits para os hospitais que chegam, em alguns casos, a 380%. O estudo foi feito para avaliar a nova sistemática de contas hospitalares, implantada 10 no Paraná como projeto piloto e que será estendida aos demais estados.

No mesmo congresso, de acordo com matéria publicada no Jornal de Santa Catarina, um diretor do hospital de Joinville disse durante a realização de uma palestra que diante da nova sistemática “o atendimento hospitalar está perdendo sua qualidade porque os hospitais estão reduzindo os custos 11 de alimentação, etc.”

A queda-de-braço entre os hospitais e a sistemática de pagamento do INAMPS continuou ainda em 1983, como relata a reportagem publicada no jornal O Estado de Santa Catarina,12 no mês de junho, sobre as declarações de Ronald Fiúza, diretor clínico do HMSJ, a respeito do novo sistema de pagamentos que seria implantado, o de pagar por doença e não por doente. Cada doença teria um valor fixado, independentemente das complicações que 9

Amparo social. Extra, Joinville, 13 fev. 1982. Com relação aos acidentes no trânsito, desde a criação do INPS a previdência passou a ser responsável por essas contas. 10

Médicos contestam novo sistema de pagamentos do INAMPS aos hospitais. Jornal de Santa Catarina, Santa Catarina, 11 set. 1982. p. 4. HMSJ. 11

Id.

12

Sistema de pagamento das contas hospitalares recebe crítica. O Estado de Santa Catarina, Blumenau, 18 jun. 1983. AHJ.

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o doente pudesse ter. O dirigente referia-se ao Plano Paraná, que no ano anterior já havia sido alvo de críticas da classe médica. No ano de 1983, já sob a gestão do Prefeito Wittich Freitag, são criados mais dois ambulatórios municipais: um no CESITA e outro no Boehmerwald. Diante das demandas na área da saúde foi elaborado um Plano Municipal de Saúde, pelo qual se criou o agente de saúde, com objetivo de desenvolver ações preventivas nas escolas e possibilitar o envolvimento das lideranças comunitárias nas ações de saúde.13 O plano de saúde elaborado permitiu uma melhor compreensão dessa questão, indicando que saúde pública não se restringia à assistência ambulatorial ou médico-hospitalar; pelo contrário, carecia de ações preventivas, como na área de vigilância epidemiológica, que permitiriam até uma redução nos atendimentos curativos. A Prefeitura de Joinville, em 13 de novembro de 1985, assinou um convênio com o INAMPS garantindo atendimento médico gratuito para todo cidadão de Joinville, fosse ele segurado ou não. Nas palavras do superintendente do INAMPS Ricardo Baratieri: “Com essa inovação, todos os ambulatórios da prefeitura estão integrados às AIS, abrindo suas portas para os previdenciários ou não. O mesmo vai acontecer com o HMSJ e os ambulatórios que nele serão implantados a partir de janeiro”. O superintendente também salientou “profundas mudanças havidas no sistema previdenciário brasileiro, que estava com uma previsão de déficit para este ano de 8 trilhões e que, pelo contrário, fechará o exercício zerando a conta.” E, não contendo o entusiasmo e o otimismo, afirmou que “os combates às fraudes e aos descalabros administrativos trouxeram um novo período para a previdência social, que passou a ser viável.” Concluiu enfatizando a importância financeira do convênio: “Joinville, nesse convênio, passa a ganhar do INAMPS o valor mensal de Cr$ 307 milhões para a manutenção do serviço ambulatorial, que será atualizado na mesma proporção em que crescerem as diárias pagas pela Previdência aos hospitais conveniados.”14 Ainda na gestão de Freitag foi criada a Secretaria Municipal de Saúde, em 1987, e de acordo com o relatório decenal competia à secretaria: definir e executar a política e os programas de saúde pública no nível municipal, obedecendo às diretrizes da política federal e estadual. Desenvolver e executar campanhas de saúde pública, curativas ou preventivas, e promover a educação sanitária da comunidade, 13

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório decenal 1981-1990. Administrações Luiz Henrique da Silveira, Violantino Affonso Rodrigues, Wittich Freitag e Luiz Gomes. Joinville, 1991. 14

EXTRA. Joinville, p. 4, 14 nov. 1985.

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prevenindo-se de surtos endêmicos ou epidêmicos. Prestar serviços assistenciais em caráter ambulatorial, enfatizando os aspectos preservativos e preventivos da saúde da população. Desenvolver serviços de saneamento básico e ambiental. Reciclar o pessoal ligado à saúde: médicos, enfermeiros, atendentes, capacitando-os a melhor atender a 15 população.

Nesse mesmo relatório destacou-se o fato de que com a municipalização da educação e da saúde coube à Prefeitura agilizar as tarefas inerentes, melhorando e ampliando a sua rede ambulatorial, acrescida de postos de atendimento cedidos pelo INAMPS e postos de saúde do Estado. Ressaltavase ainda que a Secretaria Municipal de Saúde, criada e estruturada a partir de 1988, oferecia bons serviços à comunidade joinvilense e também aos habitantes da região que vinham em busca de pronto atendimento. Ao final de 1988, a secretaria contava com 19 ambulatórios e 32 médicos que realizaram 17 mil consultas médicas e procedimentos de enfermagem por mês, incluindo nesse montante os procedimentos mais simples, como controle de pressão sanguínea, aplicação de injeções e curativos. Para poder realizar as atividades necessárias às demandas na área da saúde a Prefeitura desde o início da década de 70 tem destinado de seu orçamento geral um montante não muito substancial para atender a população, como podemos perceber no quadro 2 (próxima página). Conforme podemos observar, a crise previdenciária da década de 80 se refletiu no orçamento da Secretaria Municipal de Saúde. Em 1989, quando o Prefeito Luiz Gomes assumiu o comando da Prefeitura, o país já estava sob a égide da nova Constituição Federal (1988) e com um novo sistema de seguridade, que na área da saúde veio substituir o seguro social representado pelo SUDS, dando lugar ao Sistema Único de Saúde – SUS –, com a universalização do acesso. Apesar de ter sido criada em 1987 e implantada em 1988, a Secretaria de Saúde buscou um progressivo avanço na área de atendimento ambulatorial e preventivo, como demonstra a tabela 5. O Secretário de Saúde Mário Brehm realizou em 1990 contatos com o Ministério da Saúde visando à implantação no município dos programas Pró-Saúde e Emergência e Trauma. Ele obteve êxito em sua empreitada, já que o município foi escolhido para o desenvolvimento dos programas mencionados. Estes na realidade integravam um elenco de medidas com as quais a Prefeitura visava implantar, com base nos princípios do Sistema Único 15

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório decenal 1981-1990. Op. cit., p. 14-5.

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Fonte: Orçamento Plurianual PMJ 1 – em Cruzeiros 2 – em Cruzados

Quadro 2 – Participação da Saúde e Saneamento no orçamento geral da Prefeitura (1971-1989) Tabela 5 – Unidades de atendimento e profissionais da área da saúde

Fonte: Prefeitura de Joinville

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de Saúde – SUS –, a municipalização da saúde. Com esse objetivo inauguraramse o Núcleo de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Labiopalatais, denominado “Centrinho”, em convênio com a USP, e o Hospital de Bauru (SP), e passaram para o âmbito do município a Escola de Enfermagem e dois Postos de Atendimento Médico (PAMs) pertencentes ao INAMPS. Houve também a municipalização do Hospital Regional Hans Dieter Schmidt e da Maternidade Darcy Vargas, ambos estaduais. Ainda na administração de Luiz Gomes, mas já em 1992, a municipalização era ressaltada na apresentação do relatório anual: A municipalização da saúde, que tem o patrocínio direto do Ministério da Saúde, no âmbito do SUS (Sistema Único de Saúde), tem apresentado resultados interessantes e animadores, embora a transferência de dinheiro não se faça no volume mínimo necessário. Porém, as perspectivas são boas e tudo leva a acreditar que, mediante a operacionalização do Fundo Municipal de Saúde e do Conselho Municipal de Saúde – que controlarão esse processo –, a saúde se consiga adequar à realidade joinvilense, correspondendo às necessidades da nossa 16 gente.

Com a instituição da NOB/91 – Norma Operacional Básica – o INAMPS, em uma tentativa de submeter os Estados e municípios a um maior controle, modificou o sistema de transferência de recursos, que passaram a ser feitos segundo os seguintes instrumentos: • Autorização de Internação Hospitalar – AIH –, com o repasse diretamente à unidade de saúde pública. Cada Estado ou município passaria a ter um teto de AIHs estabelecido pela proporção de 0,1 internação por habitante/ano, independentemente do seu valor; • Unidade de Cobertura Ambulatorial – UCA –, que representa um valor per capita, de acordo com a capacidade instalada e desembolso assistencial estimado para as atividades ambulatoriais, considerandose a qualidade e o grau de resolubilidade da rede implantada; • Transferências destinadas ao investimento, sob duas formas: PróSaúde e Unidade de Capacitação da Rede – UCR. Com a NOB/91 o repasse dos recursos relativos às AIHs passou a ser realizado, diretamente para o hospital, público ou privado, pelo governo federal em uma conta bancária de cada instituição. 16

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1992. Administração Luiz Gomes e Julio Fialkoski. Joinville, 1992. p. 7.

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O principal problema quanto a essa sistemática referia-se aos valores atribuídos à AIH. No período de 1991/1992 o valor médio da AIH caiu de US$ 292 para US$ 231, e em 1992 chegou ao valor de US$ 180. Em 1993 passou para US$ 247.17 Nos momentos de crise financeira esse repasse não era garantido, dessa forma os atrasos passaram a ser constantes. A legislação relativa à saúde elaborada pelos órgãos federais impôs novas práticas aos governantes, principalmente nos municípios, já que toda a concepção da seguridade social privilegia a esfera municipal, objetivando a descentralização e o controle social por parte da comunidade. Dentro do espírito filosófico da legislação, a cidade constituiu pela Lei 2590 de 27 de novembro de 1991 o Conselho Municipal de Saúde (CMS), órgão de caráter permanente e deliberativo com relação à política de saúde do município, com competência para avaliar e controlar a implementação do Sistema Único de Saúde, acompanhar, apreciar, avaliar, participar, definir e controlar a elaboração e execução do cronograma orçamentário do Fundo Municipal de Saúde, entre outras atribuições e competências. O Secretário da Saúde Altair Carlos Pereira escreveu em seu relatório de atividades: Dispondo de estrutura física apreciável [...] a Secretaria conseguiu equilibrar a oferta com a procura, apesar da falta de recursos financeiros e de equipamentos mais modernos. Por exigência expressa do Ministério da Saúde, criou-se o Fundo Municipal de Saúde, destinado exclusivamente para gerir os recursos e administrar o sistema municipal de saúde, visando corresponder às necessidades mínimas da nossa população, tanto em termos preventivos quanto curativos. Além de servir os joinvilenses, o sistema em vigor atende, igual e democraticamente, os habitantes dos municípios circunvizinhos – já que a saúde é um direito inalienável de todos, independentemente de 18 sua classe social, recursos, emprego ou sindicato.

Com relação à situação financeira da secretaria, ressaltava a preocupação com os repasses e os valores dos procedimentos estabelecidos pelo SUS: A baixa remuneração dos procedimentos médico-assistenciais executados – como HIV e as GAPs, sob responsabilidade federal – gera embaraços administrativos não só pelo valor defasado, mas principalmente porque o pagamento desses serviços é realizado com atraso mínimo de 60 dias. 17 18

SOARES, Laura Tavares Ribeiro. Op. cit., p. 250.

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1993. Administração Wittich Freitag e José Carlos Vieira. Joinville, 1993.

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Em nossa realidade inflacionária, isso é um verdadeiro desastre. Essa situação é tão aflitiva que certas áreas da administração pública de saúde promovem campanhas populares com a finalidade de conseguir recursos extras para atender compromissos urgentes. É o caso, por exemplo, do 19 Hospital Municipal São José.

Em 1993, o Conselho Municipal de Saúde – CMS – enfatizava as ações que permitiram uma descentralização assistencial dos serviços médicos através da evolução da assistência ambulatorial do município, ao mesmo tempo em que esclarecia que a falta de médicos para os ambulatórios era decorrência do fato de aqueles profissionais terem uma tendência a se concentrar no centro, não desejando se deslocar para os bairros periféricos.20 Em reportagem do jornal A Notícia, de abril de 1993, descrevia-se a situação da saúde do município: “A falta de médicos, de leitos hospitalares e de estrutura nos 44 ambulatórios de bairros está inviabilizando o sistema de saúde pública de Joinville.” De acordo com o assessor da Secretaria de Saúde Clóvis Montenegro o sistema público necessitava de 260 médicos para compor os seus quadros. No entanto, devido à baixa remuneração oferecida pelo município, dos 124 médicos que prestaram concurso público somente 95 foram aprovados e destes 80% já tinham vínculo com o quadro municipal de saúde.21 Ainda naquele mesmo mês, outra reportagem sobre o assunto informava que, dos 44 ambulatórios da cidade, somente cinco ficavam abertos até as 22 horas, e os demais até 17h30. Portanto, diante da precariedade do atendimento nos bairros, não constitui “surpresa” a grande procura pelo prontosocorro municipal mesmo para casos que não se caracterizem como emergências, ou urgências, como veremos nos próximos capítulos.22 Em maio do mesmo ano, em reunião do CMS o Secretário da Saúde e presidente do conselho Altair Carlos Pereira apresentou o Plano Municipal de Saúde 1993-1996, elaborado para cumprir as exigências do Ministério da Saúde, para a sua inclusão no processo de municipalização da saúde. Lembrou, ainda, a necessidade de sua aprovação para a obtenção de mais recursos, havendo até risco de perda do percentual de 14,7% destinado à saúde pela seguridade social, permanecendo apenas o FINSOCIAL. O conselho aprovou a proposição do secretário municipal. A municipalização da saúde, a incorporação pelo município do HRDS e Maternidade Darcy Vargas e a gravidade da situação financeira do SUS foram 19 20

Ibid., p. A.

CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE JOINVILLE. Ata da assembléia extraordinária de 26 abr. 1993. 21 Saúde depende de mais dinheiro e pessoal. A Notícia, Joinville, 21 abr. 1993. Acervo HMSJ. 22 Pronto-socorro melhora atendimento. A Notícia, Joinville, 28 abr. 1993. Acervo HMSJ.

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objeto de uma reunião extraordinária do CMS, em julho de 1993, que visava debater e buscar soluções para o problema. Com relação ao SUS, Clóvis Ricardo Montenegro lembrou que foi o estrangulamento do sistema financeiro do SUS e o não cumprimento dos convênios firmados entre o município e o Estado os motivos da sessão extraordinária. O representante do HMSJ Renato Castro observou que Joinville foi o único município que manteve o funcionamento do SUS, por meio do apoio da Prefeitura, porém não tinha mais condições de continuidade. Informou, ainda, que diante da situação o HMSJ iria realizar a campanha Vidro pela Vida. Quanto à municipalização da saúde o presidente do conselho Altair Carlos Pereira explicou a posição do governo municipal com relação aos problemas enfrentados por ela e que na busca de soluções havia enviado correspondência ao Sistema Único de Saúde explicitando sua intenção de devolver os hospitais para o Estado, que estavam em funcionamento graças apenas a recursos municipais. Para o presidente “a seguridade social sem recursos estava com seu próprio conceito ameaçado”. O conselho diante do exposto aprovou a moção 01/93 e o seu envio ao Ministério da Saúde e ao governo do Estado, ressaltando a preocupação e a posição do Conselho Municipal de Joinville. Em primeiro lugar relembra o preceito constitucional relativo ao orçamento da seguridade social e afirma: Considerando que há vários meses não está sendo cumprida na prática esta determinação constitucional, nem pelo governo do Estado, nem pelo governo federal, não se concretizando até a presente data os devidos recursos de verbas acordadas nos vários convênios firmados (apesar de recente medida paliativa), com sério comprometimento a implementação e funcionamento do SUS no município, que vem sendo mantido com recursos municipais, que representam cerca de 21% do seu orçamento total,[...] que a Prefeitura Municipal contribuirá para o Sistema Único de Saúde tão-somente com os recursos definidos pela sua competência moral, orçamentária e constitucional, posicionando claramente sua intenção de devolver à Secretaria do Estado da Saúde a gerência administrativa e financeira, bem como o patrimônio cedido ao Sistema, [do 23 hospital HRHDS e da Maternidade Darcy Vargas].

O conselho colocava a sua preocupação com a situação e solicitava providências das autoridades, já que “está prejudicando seriamente o acesso de uma das mais operosas populações do Estado e do país a um de seus mais básicos e importantes programas sociais, hoje seriamente comprometido.”24 23

CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE JOINVILLE. Ata da assembléia extraordinária de 8 jul. 1993. 24

Id.

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A cidade continuou procurando soluções para os seus problemas na área da saúde, entre elas a de se inserir cada vez mais na proposta da descentralização propugnada pela nova seguridade social. Para tanto o Prefeito Wittich Freitag iniciou os procedimentos exigidos para a implantação da gestão semiplena da saúde prevista na NOB/93. Assim, em 1994 a Prefeitura agiu no sentido de preparar tecnicamente a Secretaria e o Fundo Municipal da Saúde com o objetivo de ser um dos nove municípios brasileiros a participarem da nova modalidade de financiamento do SUS, a gestão semiplena, possibilitando à secretaria transformar-se no gestor da saúde no município e ficando sob sua competência a contratação e o pagamento dos serviços do SUS. Ao mesmo tempo, buscou viabilizar financeiramente os três hospitais públicos da Rede SUS (Hospital Municipal São José – HMSJ –, Maternidade Darcy Vargas – MDV – e Hospital Regional Hans Dieter Schmidt – HRHDS). Em junho de 1994, o Conselho Municipal de Saúde analisou as denúncias de um ex-integrante da Secretaria da Saúde, membro da equipe do secretário, de desvio e distribuição política de AIHs, fazendo referência a um excedente de 10.000 AIHs que teriam sido manipuladas politicamente. Na ocasião, o secretário apresentou um demonstrativo de controle, recebimento, distribuição e saldos de 8.767 AIHs (93/05-94). As caixas com as autorizações estavam à disposição no recinto do CMS, junto com correspondência da AMUNESC, da Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde, que confirmava a autorização para repasse de excedentes de AIHs a outros municípios. Quanto às denúncias feitas sobre ameaça de suspensão do programa de saúde da família, em desenvolvimento no município, foram rebatidas com a apresentação da lei municipal sobre a implantação do programa com os valores conveniados, além de liberação e prazo para execução e as ações já em curso. Apesar de algumas análises ressaltarem a pressão política a que estão expostos os membros dos conselhos de saúde, não se pode negar que a despeito da possibilidade de manipulação fica evidente a importância desse organismo para o controle social das ações e políticas desenvolvidas e implementadas pelas autoridades governamentais. Dentre elas ressaltamos a convocação, em 1994, do Prefeito, do Secretário Municipal de Recursos Humanos e do Secretário Municipal da Saúde para explicarem a gradativa redução de recursos tanto materiais quanto humanos para o atendimento à saúde em Joinville, além da situação salarial dos funcionários da área da saúde. Na ocasião, o Secretário Municipal de Saúde Altair Carlos Pereira afirmou que com relação aos recursos a Prefeitura vinha aplicando um mínimo de 10% no setor e que a secretaria seguia o plano municipal da saúde. Os maiores problemas referiamse à área dos recursos humanos, cuja solução deveria ocorrer quando da 115

implantação do plano de carreira, cargos e salários. O Prefeito Wittich Freitag, diante dos diversos questionamentos dos conselhistas, fez os seguintes esclarecimentos: • O problema da falta de profissionais estava sendo solucionado por meio de contratações dos aprovados nos concursos realizados naquele período; • Seriam centralizadas as forças disponíveis em nove postos de saúde, havendo a intenção de ter vinte postos com força total, e os demais existentes deveriam ser melhorados pela programação de saúde da família, já em curso; • Havia realmente contratações de pessoas não concursadas, após os concursos realizados, mas se tratava de casos excepcionais previstos em lei; • A folha de pagamento da Prefeitura consumia cerca de 65% do total da receita, com destinação de 20% da folha à área da saúde; • Reconheceu a defasagem salarial, porém pretendia privilegiar os salários da área da saúde; • Afirmou que existiam médicos que não cumpriam os horários estipulados e que a solução seria a utilização do relógio de ponto para todos; • Havia também falta de medicamentos, porém como reflexo de um problema apenas local; • Confirmou a diminuição de agentes de saúde nas escolas (de 32 para 8); • Afirmou que no contexto de então era mais fácil construir do que manter postos, e a recuperação de todos não tinha prazo. O Prefeito Wittich Freitag ainda declarou: “não recebi a Prefeitura de meu antecessor nas melhores condições, no entanto tudo está sendo feito para melhorar”.25 Também naquele ano de 1994, a antiga idéia de construir um hospital infantil junto ao São José, aproveitando a infra-estrutura existente, principalmente de cozinha, raio X e exames de laboratórios, voltava à tona. Sobre esse desejo, que sempre é colocado como “antigo” na cidade, encontramos uma primeira colocação do médico e ex-Prefeito Harald 25

CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE. Ata da assembléia extraordinária de 10 nov. 1994.

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Karmann, ainda quando era diretor da Maternidade Darcy Vargas, na década de 1950, preocupado que estava com a situação das crianças na cidade: Então a Maternidade tinha um terreno ainda nos fundos [...] Eu via muita mortalidade infantil de zero a dois anos. Então eu recorri ao seu Albano Schmidt [...], perguntei se ele me ajudaria a fazer um hospital da criança, iniciando de zero a dois anos.[...] havia uma campanha enorme sobre maternidade e [...] hospital materno-infantil iniciando naquela época, inclusive no Rio [...]. Então eu idealizei um hospital para criança [...]. Custa quanto, Doutor Karmann? Eu digo: seiscentos e vinte contos, naquela época [...]. E ele me disse: Eu dou o dinheiro, mas não quero que apareça o meu nome, de jeito nenhum.[...] Formamos 26 uma sociedade de assuntos de proteção à infância.[...]

Com certeza os tempos mudaram e a realidade médico-sanitária em Joinville também, mas a idéia continuou a ser apresentada tanto por médicos como por políticos, no decorrer dos anos. Na gestão de Luiz Gomes, a pedra fundamental para uma ala infantil, totalmente nova, anexa ao Hospital Municipal São José, chegou a ser implantada, mas, como os recursos viriam do governo do Estado e este novamente optou por construir um novo prédio ao invés de aproveitar a estrutura já existente, a obra não teve continuidade. Para construir esse novo Hospital Infantil, financiado pelo governo do Estado, a Prefeitura de Joinville teve que mudar a lei de zoneamento da cidade, já que a área desapropriada para isso estava situada em local estritamente residencial, no Bairro América.27 As críticas eram muitas. A maioria dos profissionais da área da saúde entrevistados citou como um erro construir um novo hospital voltado especificamente ao atendimento infantil, numa cidade onde os hospitais existentes necessitavam de recursos para que funcionassem em sua plenitude. As colocações mostram que os recursos destinados ao Hospital Infantil, se alocados nos outros hospitais públicos, além de melhorar muito a situação deles os deixariam em condições de atender à demanda infantil com um custo muito menor. Até o término deste livro, a obra ainda não havia sido concluída. Apesar das dificuldades enfrentadas pelas autoridades da área, a condição de gestão semiplena da saúde animou os governantes, como podemos observar no relatório de 1995, na posição da Secretaria de Saúde: A busca constante de financiamento para custear o sistema e liquidar dívidas herdadas deu resultados pela melhoria do faturamento, melhor controle sobre os setores de contas e exigências do município em receber 26

KARMANN, H. Harald Karmann: depoimento [jul. 1982]. Entrevistadora: Dúnia de Freitas Toaldo. Joinville, 1982. Entrevista concedida ao projeto Prefeitos de Joinville. LHO/Univille. p. 25. 27

Prefeitura mudará zoneamento para construir hospital. A Notícia, Joinville, 21 dez. 1995. p. A-11. AHJ.

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sua produção real, pois éramos até então tratados como “prestadores de serviço”, tanto pelo Estado como pela União. Sistema esse de características perversas, pois “priorizava” a doença, quanto maior o 28 número de “atendimentos”, isto é, doentes, mais se recebia.

O secretário também alertava para o fato de que o financiamento da saúde era de responsabilidade das três esferas de governo e todos deveriam ter consciência de que existe inflação real na saúde, mesmo que a população mantenha crescimento zero, o que não é nosso caso. Chamava a atenção para a mudança paradigmática com relação à questão da saúde: A luta pela mudança do modelo assistencial que até então era centrado no hospital, na consulta médica e no remédio está sendo modificada gradualmente, com uma visão de integralidade (ser como um todo), de eqüidade (respeitar os desiguais de forma desigual) e de participação social, com agregação de ênfase na educação, entendendo que uma população educada e informada defende-se melhor, previne e preserva sua saúde. A 29 mesma sociedade que produz doença pode produzir saúde.

Demonstrava uma visão positiva com relação aos conselhos de saúde como instrumentos de democratização da área da saúde. O controle social foi a marca principal deste governo, estimulando a criação dos conselhos locais de saúde e principalmente chamando o Conselho Municipal da Saúde a exercitar com plenitude o seu importante papel dentro do novo modelo de saúde, dando inteira e irrestrita 30 liberdade aos seus conselheiros.

Para o médico Osmar Sergio Hausen, superintendente do HMSJ em 1996-1997, a municipalização da saúde em princípio foi salutar, porém o dinheiro que vinha e que vem, e é o mesmo, dois milhões, setecentos e oitenta mil reais, é o mesmo. É dividido entre as ações efetuadas de pacientes internados nesses hospitais (HMSJ, HRHDS, MDV), ambulatórios variados, PA 24 horas, os postinhos de saúde, programa de medicina familiar, programa de saúde oral, esse dinheiro é para isso. E houve um adendo a essa verba e se formou o Fundo Municipal de 28

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1995. Administração Wittich Freitag. Joinville, [1996]. 29 30

Ibid., p. L-1. Id.

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Saúde com alguns milhões de reais [...] e que foi se exaurindo com o 31 passar do tempo.

Para Osmar S. Hausen a falta de atualização das verbas federais impõe sacrifícios cada vez maiores à população que necessita do sistema público de saúde. Nós atendemos uma população maior, tanto aqui de Joinville mesmo como doentes encaminhados de outros municípios, com quem Joinville tem parceria através da AMUNESC, [...] são pacientes que demandam maiores cuidados, maiores gastos, maior tempo de internação, porque 32 são pacientes mais graves. Este valor está muito defasado.

Contudo, não podemos esquecer que, como foi mostrado anteriormente, o Ministério da Saúde, no período, já se encontrava submetido à política de ajuste econômico adotada pela equipe do Ministério da Fazenda. No ano de 1996, especificamente, a redução no repasse das contribuições sociais que compõem o orçamento da seguridade social impôs uma descontinuidade nos programas implementados, assim como a permanência dos valores repassados aos municípios. Para que possamos perceber como a crise econômica afetou o setor da saúde inclusive no Estado de Santa Catarina, o quadro a seguir demonstra o baixo percentual do PIB destinado à área da saúde.

Quadro 3 – Gasto público com saúde como proporção do PIB – Brasil, 1996 Fonte: IPEA/DISOC 31

HAUSEN, O. S. Osmar Sérgio Hausen: depoimento [fev. 2001]. Entrevistadoras: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Eleide A. G. Findlay. Joinville, fev. 2001. Entrevista concedida ao projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille.

32

Id.

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Fica claro que de uma maneira geral o Brasil não compromete uma parcela muito expressiva do PIB na área da saúde. Porém na Região Sul o índice é menor, e o que é mais preocupante, o Estado de Santa Catarina destina o equivalente a 1,82% do PIB para a saúde, o menor da região. Talvez pudéssemos pensar que o montante fosse suficiente devido a melhor situação econômico-financeira da população, além de melhores condições de vida e conseqüentemente uma necessidade de um dispêndio menor na área de saúde. Mas as críticas, as reportagens, as denúncias não nos permitem acreditar em tal hipótese. Mesmo com um dispêndio insuficiente para o atendimento das necessidades da população carente, em 1996 foi inaugurado o posto de saúde do Itaum, bairro que abrigava 35% da população de Joinville, estimando-se que sua ativação iria absorver 46% da clientela do pronto-socorro do Hospital São José. Foi construído a partir de convênio com o governo do Estado. “[...] ser[ia] mantido com materiais e funcionários fornecidos pelo município e administrado pela Secretaria Municipal de Saúde”, deveria ter 114 profissionais, sendo 36 médicos. As obras [...] consumiram R$ 750 mil do governo do Estado e Prefeitura de Joinville. O investimento é parte do R$1,8 milhão de recursos destinados a Joinville para projetos na área da saúde. No total Santa Catarina recebeu R$ 4 milhões do Ministério da Saúde para executar 33 obras no setor.

Contudo, os postos de saúde e ambulatórios nos bairros, apesar de criados e equipados, parece que sofriam do mal do “esquecimento”, pois anos depois, já com falta de manutenção ou recursos financeiros, mostravam-se ineficientes e problemáticos. Dois anos depois, em 12/4/98, uma matéria de A Notícia comentava falta de funcionários no PA 24 horas: dos 114 prometidos, só havia 8 funcionários trabalhando no local! Problemas aparentemente simples, que requerem principalmente planejamento, afetavam, e muito, o sistema de saúde de Joinville. Nos meses de verão, principalmente dezembro e janeiro, quando há férias escolares, médicos e enfermeiros também tiravam férias, só que a maioria ao mesmo tempo, ocorrendo problemas em todos os setores da saúde na cidade. “Auxiliar faz as vezes de médico e enfermeiro no único posto, num raio de seis quilômetros, na estrada da Vigorelli”, pois o médico e o enfermeiro estavam de férias, só havendo uma agente de saúde naquele posto. Na mesma época, pelo menos 12 postos de saúde do município estavam sem médico. As 33

Posto 24 horas só depende de equipamentos. A Notícia, Joinville, 12 jun., 14 jun. e 18 jun. 1996. AHJ.

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justificativas eram a deficiência de recursos humanos e o planejamento da escala de férias. “A gente tem que levantar às quatro da manhã, ir até o Aventureiro com o filho no colo e esperar três, quatro horas para conseguir uma consulta”, reclamou a moradora Orlete Silva. “Ninguém tá nem aí. Se é pobre pode morrer que não faz falta.”34 A Prefeitura, sob a administração de Luiz Henrique da Silveira, em 1997, mobilizou-se para obter a habilitação de gestão plena da saúde de acordo com as novas condições criadas pela NOB/96. Naquele mesmo ano o município, ainda sob o impacto da crise financeira mundial, e na redução dos recursos do próprio Ministério da Saúde, teve que enfrentar uma situação bastante grave em termos locais. O Conselho Municipal de Saúde, para o enfrentamento da crise, optou por tomar medidas drásticas visando à racionalização e contenção de despesas, já que conforme declaração de seu presidente Iberê Condeixa, também Secretário da Saúde, a questão era orçamentária. “O momento está ruim, não há dinheiro em caixa agora.”35 As medidas aprovadas foram as seguintes: fechamento do ambulatório do HMSJ, suspensão de cirurgias eletivas, transferência da pediatria do HMSJ para o Hospital Regional, transferência da lavanderia do Hospital Regional para o HMSJ e, com relação à AMUNESC, atendimentos a ambulatórios apenas de especialidades, redução de exames, suspensão de hemodiálise para Jaraguá do Sul e Mafra e de exames de alto custo. Na ocasião Edson Sidney de Campos, do HMSJ, afirmou: “mais dinheiro na saúde é difícil. A Prefeitura está endividada. O problema é nacional. A responsabilidade maior é do Ministério da Saúde, por não repassar o que deveria”.36 Na mesma reunião alguns conselheiros insistiam na proposição de votar as medidas somente após uma reunião com o Prefeito, para que houvesse um maior comprometimento do Executivo com a questão da saúde, pois caso contrário toda a responsabilidade perante a opinião pública acerca das medidas aprovadas seria do próprio conselho. O presidente ponderou que os fatos em discussão eram conseqüência de administrações anteriores. Lembrou que havia naquele momento a oportunidade de mexer em alguns “nichos” contra os quais o conselho discursava há tempo. “A equipe da Secretaria Municipal da Saúde é boa e consciente, e traz decisões sérias ao conselho. Temos que avançar. O setor terciário está sendo racionalizado”.37 Os resultados dessas medidas foram divulgados no início de 1998, pelo quadro demonstrativo na página seguinte. 34 35 36 37

Poeira e fila indiana fazem a realidade em ambulatório. A Notícia, Joinville, 16 jan. 1997. AHJ. CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE JOINVILLE. Ata de assembléia ord. de 23 out. 1997. Id. Id.

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Com relação às demais medidas, o gestor municipal da saúde Iberê Condeixa informava que o ambulatório do HMSJ permanecia aberto, porém seria adequado às especialidades de referência; as cirurgias eletivas não haviam sido suspensas, mas estavam sendo controladas pela Divisão de Planejamento, Controle, Avaliação e Auditoria; a pediatria do HMSJ não foi transferida para o HRHDS diante do fato de que o impacto financeiro seria muito pequeno, principalmente em relação ao social; a lavanderia não foi transferida; e a AMUNESC seguiu as medidas adotadas pela Secretaria de Saúde de Joinville em todos os municípios que compõem a associação. Portanto, as maiores reduções concentraram-se nos exames, hemodiálises em Jaraguá do Sul e Mafra e os exames de alto custo. Podemos também inferir, com a redução praticada, que muitas pessoas ficaram sem atendimento e, talvez, tenham até morrido, ou o desperdício era muito grande.

Quadro 4 – Demonstrativo dos resultados das medidas de contenção de despesas Fonte: Conselho Municipal de Saúde, 1998

A Prefeitura, de acordo com o relatório, iria repassar o valor de R$ 2.700.000,00 (dois milhões e setecentos mil reais) até março/98, em três parcelas, referentes ao resgate da dívida política da Prefeitura de Joinville para com o Fundo Municipal de Saúde, e a cobertura de 70% da folha de pagamento do HMSJ pela Prefeitura encontrava-se em negociação. Joinville, em 1998, aprovou o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) com verbas do Ministério da Saúde, com o objetivo de iniciar a mudança no modelo assistencial de acordo com a filosofia que sustenta o programa: A implementação das ações de diagnóstico constante, educação e promoção da participação social caracterizam a mudança do “modelo assistencial”, hoje centrada na assistência médica e na intervenção 122

hospitalar. O “novo modelo assistencial” por seu lado privilegia o envolvimento direto da comunidade nas ações e a descentralização das decisões, adequando localmente as ações de saúde às necessidades específicas da população, com ênfase nas ações preventivas e intersetoriais, 38 integrando-as às ações curativas necessárias.

A implantação de novos programas pela Prefeitura, inclusive como conseqüência de sua habilitação em gestão plena da saúde, não significou, de imediato, solução para os graves problemas enfrentados pela Secretaria de Saúde da cidade. O próprio Prefeito Luiz Henrique, em seu relatório de atividades de 1998, reconhecia que o momento era difícil e que a área da saúde encontrava-se “refém de uma crise sem precedentes na história recente do nosso país”. Visando suprir as carências e contornar as dificuldades nessa área, o governo do município tomou a difícil decisão de devolver ao Estado o Hospital RHDS e a Maternidade DV, ambos integrantes do processo de municipalização da saúde desde 1991. Com essa medida a prefeitura economizará até R$230.000,00 mensais, que serão aplicados no HMSJ e na rede de postos de saúde, possibilitando, assim, a recuperação e a melhoria do atendimento médico à população joinvilense e 39 circunvizinha.

A decisão sobre a devolução dos dois hospitais já cogitada em 1993 foi motivo de análise e discussão no Conselho Municipal de Saúde. Explicações foram cobradas do gestor municipal de saúde e presidente do conselho, com relação às atitudes do Prefeito Luiz Henrique. O representante da Sociedade Joinvilense de Medicina, Lairton Valentim, fez a seguinte consideração: Quando o Prefeito atual, Dr. Luiz Henrique, estava se candidatando, disse: “O Conselho Municipal de Saúde é o órgão norteador da saúde no Município”. O que está se pedindo hoje aqui, em nome da SJM, é que antes das decisões serem tomadas se discuta antes no Conselho. Não estou dizendo que o Regional não deva ser devolvido, o que se pede aqui é respeito para com o Conselho. No ano passado quando estávamos aqui discutindo o Regional, nós levamos a cozinha, a lavanderia, pediatras e agora na hora da transferência não se discute no Conselho[...]. Apesar de o Executivo Municipal achar que as verbas são 38

CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE JOINVILLE. Ata da assembléia ordinária de 30 abr. 1998. 39

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório de atividades 1998. Administração Luiz Henrique e Loyola. Joinville, 1998.

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suficientes, a gente tem debatido a falta de verbas, fico contente em 40 ouvir, hoje aqui, a confirmação pelo Secretário da falta de verbas.

Nas considerações do Secretário da Saúde Iberê Condeixa, a Prefeitura esperava fazer a devolução de forma tranqüila, já que representaria uma considerável economia para o município. Estamos tentando fazer essa transição sem que se atinja a questão de saúde. Tenham certeza que a economia não será menos de R$ 150.000,00 (cento e cinqüenta mil reais); posso estar sendo otimista, mas a economia será em torno dos R$ 350.000,00 (trezentos e cinqüenta 41 mil reais), o que praticamente viabiliza o sistema.

Não era esse o entendimento do governo estadual, como se pode perceber na fala do então Secretário da Saúde: Quando o Estado de Santa Catarina discutiu com o município a redistribuição de responsabilidade com a retomada do Hospital Regional e da Maternidade Darcy Vargas, o que se discutiu financeiramente foi muito simples: que os valores atribuídos ao volume de serviços prestados em Joinville para estes hospitais fossem proporcionalmente repassados para a administração estadual. Então não houve nenhum dinheiro novo, não houve recurso retirado do município que o penalizasse. A mesma parcela de recurso que em tese ele separava para dar o atendimento ao Hospital Regional e à Maternidade foi transferida 42 para a administração estadual.

Essa decisão ocasionou inúmeras discussões pró e contra a devolução dos hospitais que até o presente momento não estão suficientemente esclarecidas. No entanto, o então Secretário da Saúde do município confessava que a decisão havia sido tomada como uma reação do município ao descaso do governo estadual para com Joinville, já que custeava sete hospitais em Florianópolis, enquanto o município de Joinville sustentava, sozinho, quatro hospitais.43 Nesse fato específico ficam novamente evidentes as ingerências 40

CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE JOINVILLE. Ata da assembléia ordinária de 29 out. 1998. 41

Id.

42

VOLTOLINI, E. J. Eni José Voltolini: depoimento [mar. 2001]. Entrevistadora: Sandra P. L. de Camargo Guedes. Joinville, 2001. Entrevista concedida ao projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille. 43

A partir de hoje começa uma nova era para a saúde de Joinville. A Notícia, Joinville, 1 abr. 1999. Caderno Especial. AHJ. Grifo nosso.

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político-partidárias influindo nas questões de saúde pública em Joinville. Ver sobre esse assunto o quadro 11 (pág. 175). O Secretário Estadual de Saúde Eni Voltolini foi convidado pelo Conselho Municipal de Saúde para uma análise do relacionamento entre a Secretaria do Estado com o conselho, a partir da retomada por parte do Estado dos dois hospitais. Na ocasião o secretário afirmou que [...] não haverá[ia] boicote ou dificuldades por conta de interferências “político-partidárias” atrapalhando o relacionamento entre Secretaria Estadual da Saúde e Secretaria Municipal da Saúde. É[era] preciso trabalhar sobre eficiência e não deficiência. A parceria estará[ia] 44 garantida enquanto houver[sse] lealdade.

Também analisou o pedido de revisão do teto financeiro de Joinville. Faz-se necessário acompanhar as decisões da Comissão Intergestores Bipartite. Nesta Comissão se definem tetos. Foi feito um diagnóstico sobre o setor saúde no Estado, o que contribuiu para a divisão do mesmo em macrorregiões. Existem três regiões suficientemente supridas na questão de média e alta complexidade: grande Florianópolis, Vale 45 do Itajaí e região Nordeste.

Para Eni Voltolini, a criação das macrorregiões da saúde constituiu uma experiência que passou a ser copiada no restante do país. [...] criamos um conceito de macrorregionalização da saúde[...] que ia ao encontro exatamente da grande queixa da maioria dos catarinenses, que diziam que os investimentos públicos na área da saúde só iam para uma região, que era a região ao redor da capital do Estado.

Após um estudo sobre o que havia disponibilizado para as diferentes regiões, as ações foram decididas [...] a partir então das maiores demandas, das maiores dificuldades, das maiores omissões, é que começamos a concentrar os investimentos. E assim começou a recuperação regional da oferta de serviços 46 especializados na área da saúde.

O convívio de hospitais administrados pelo Estado e o hospital 44

CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE JOINVILLE. Ata da assembléia extraordinária de 2 ago. 1999. 45 46

Id. Id.

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administrado pelo município constitui o grande desafio de Joinville, já que ele é o gestor pleno da área da saúde. Isso significa no mínimo ter-se boa vontade e o entendimento de que o destinatário dos serviços não tem a preocupação de saber a quem pertence a responsabilidade da administração; ele precisa ser atendido. E a prudência e a sensatez recomendam que as pessoas que administram, então, essas unidades tenham a vontade de interagir, repartindo responsabilidades, pra que não haja sobrecarga dos estoques [...] e para que você possa ter também uma fluidez maior no 47 atendimento.

Para Eni Voltolini a mudança no conceito do modelo assistencial de curativo para preventivo, visando à manutenção da saúde, é salutar: Os próprios médicos, muitos deles atestavam isso e desejavam que alguma coisa fosse feita de forma diferenciada. [...] o importante mesmo era cuidar da saúde, era manter a saúde, e não apenas reivindicar recursos para curar. [...] E quando o que se dizia que o que faltava para a saúde era o investimento, era dinheiro, era o orçamento, nós provávamos que se estivéssemos cuidando da saúde talvez até houvesse recurso suficiente com os atuais já disponíveis. Claro que sempre haverá uma demanda crescente porque a tendência é que cada comunidade, principalmente no sul do Brasil, alcance longevidades maiores, que não haja tanta mortalidade infantil, e isso vai significar a busca incessante 48 da manutenção da saúde.

A busca pela manutenção da saúde, da prevenção, era o objetivo do Prefeito Luiz Henrique, e conforme o Secretário de Saúde da época, foi uma opção política por um “caminho mais difícil e desgastante”. E por esse motivo afirmava que uma nova era para a saúde estava se iniciando e que até meados de 2002 a saúde iria melhorar, inclusive com a duplicação dos recursos que seriam repassados pela Prefeitura e novas verbas que seriam conseguidas.49 Como gestor pleno da saúde o município passou a receber do Ministério da Saúde verbas fixas correspondentes a um valor PAB (Piso de Atenção Básica) fixo de R$ 4.280.112,00, sendo o teto total anual de R$ 33.955.848,00. Esses valores transferidos ao município estão assim distribuídos: 47 48 49

VOLTOLINI, E. J. Op. cit. Id. A NOTÍCIA. Caderno especial. Joinville, [s.d.].

126

Quadro 5 – Transferências efetuadas pelo Ministério da Saúde para Joinville por competência Fonte: Ministério da Saúde, 2002 * MAC – Média e Alta Complexidade 1 – repasses de jan. a maio de 2001

Quadro 6 – Transferências efetuadas pelo Ministério da Saúde para Joinville por competência – atenção básica Fonte: Ministério da Saúde

Quadro 7 – Totais das transferências efetuadas pelo Ministério da Saúde para Joinville Fonte: Ministério da Saúde * abril de 2001

Os números demonstram que, se os recursos continuam a privilegiar a assistência curativa, a cidade começou a desenvolver ações preventivas, visando aumentar aquelas que poderão, no futuro, significar uma orientação, informação e prevenção da saúde. Porém uma mudança de hábitos da 127

população não representará avanços se não for acompanhada de medidas governamentais de saneamento básico e vigilância sanitária. Os dados do Ministério da Saúde, para o período de 1998-2002, indicam que por parte do governo federal não houve diminuição do aporte de recursos após a devolução do Hospital Regional e da Maternidade Darcy Vargas. Portanto, seria natural a suposição de que a situação da área da saúde, ou no mínimo da assistência médico-hospitalar, sofresse um processo de descompressão e que a população tivesse a seu dispor um atendimento melhor. Ledo engano. Em 2000 o CMS deliberou e aprovou proposta a respeito da demanda reprimida do SUS relacionada ao Consórcio Intermunicipal da AMUNESC (CISAMUNESC), onde existiam em janeiro daquele ano 6.289 consultas oftalmológicas reprimidas. De acordo com Ana Maria Groff Jansen, da Secretaria Municipal de Saúde, no consórcio as Prefeituras depositam R$0,10 per capita ao mês, num total de R$ 40.000,00 por mês para Joinville. Na ocasião foi proposto que Joinville adquirisse as 6.289 consultas de oftalmologia reprimidas pelo CISAMUNESC, primeiramente fazendo um chamamento a preço SUS de R$ 2,55. Se ninguém se propusesse a trabalhar seria feito chamamento a preço de mercado, que varia entre R$ 2,55 e R$ 40,00, que é valor de uma consulta social. Foi feita também a proposta de que esse chamamento não fosse feito a todos os oftalmologistas de Joinville, mas sim somente para aqueles que viessem prestando serviços para o SUS. Também foi lembrado que a tabela do SUS constituía um problema por conta da defasagem dos valores praticados, com a ressalva de que Joinville precisava fazer uma cruzada pela saúde para mudar a situação, já que as pessoas não podiam pagar mais o plano de saúde, o que aumentava a procura pelo SUS, pois muitas dessas pessoas também não conseguiam pagar a consulta social.50 Aqui queremos chamar a atenção para o setor privado da saúde de Joinville que se instalou na cidade em 1971, com a cooperativa médica UNIMED, com o objetivo de atender os cidadãos filiados do seguro social público – INPS – que enfrentavam dificuldades de acesso à assistência médica. Os planos de saúde passaram a ser oferecidos como benefícios aos trabalhadores pelas empresas de ponta da cidade. Na década de 90, por iniciativa de um grupo de empresários, chegou à cidade o Saúde Bradesco, que passou a ser o grande competidor do sistema cooperativista. A esse respeito convém salientar que nas entrevistas realizadas com a população joinvilense sobre o Hospital Municipal São José, 61% declararam possuir algum plano de saúde privado; os demais são usuários do sistema público. O discurso do Prefeito Luiz Henrique da Silveira de que a Prefeitura estava aplicando cada vez mais recursos na saúde pode ser confirmado com os 50

CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE JOINVILLE. Ata da assembléia ordinária de 28 fev. 2000.

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índices destinados à secretaria: em 1997 era de 13% e em 2001 significava 20% da arrecadação da Prefeitura. A composição dos recursos da Secretaria da Saúde comprova esse incremento. No quadro a seguir é possível verificar esses números.

Quadro 8 – Composição dos recursos da Secretaria Municipal de Saúde Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Joinville

Fica claro que o aporte maior é do Fundo Municipal de Saúde, que agrega os recursos federais relativos à gestão plena do sistema de saúde. Convém, portanto, analisar as aplicações efetuadas pelo Fundo Municipal de Saúde para uma melhor compreensão da área de saúde da cidade.

Quadro 9 – Aplicações dos recursos do Fundo Municipal de Saúde Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Joinville

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Para entender a política de saúde desenvolvida no final do milênio e no início do atual é necessário que se analisem com mais atenção as aplicações dos recursos da Secretaria de Saúde que o Prefeito dizia que havia praticamente duplicado (ver quadro a seguir).

Quadro 10 – Aplicações dos recursos da Secretaria Municipal de Saúde Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Joinville

Os recursos municipais, portanto aqueles que a própria Prefeitura destina ao setor de saúde, se comparados com os do fundo municipal são bem mais tímidos com relação à área médico-hospitalar. E com relação ao HMSJ, ao qual é destinado maior percentual, convém lembrar que por indicativo da III Conferência Municipal de Saúde, realizada em 1998 pelo Conselho Municipal de Saúde, a Prefeitura deveria arcar com 70% da folha de pagamento daquela instituição. Essa medida, porém, ainda, não foi aprovada pelo Legislativo municipal. Dessa forma, existe somente um compromisso verbal, ou moral, da Prefeitura de Joinville em relação ao pagamento dos salários dos funcionários do Hospital Municipal São José. Em 1999, apesar da crise na saúde, a prioridade dos investimentos foi para a pavimentação de ruas e para a área cultural, com a implantação da Escola de Balé Bolshoi. É registrada, no relatório do Prefeito, a grande participação popular nas decisões relativas à saúde, pois, apesar das dificuldades financeiras apontadas, Houve [...] um significativo crescimento e uma dinamização da participação popular e do controle e integração social de nossas 130

atividades, através dos Conselhos Locais de Saúde, do Conselho Municipal de Saúde e também dos resultados da Conferência Municipal de Saúde realizada em maio, e da 1.ª Plenária Municipal de Conselhos Locais de Saúde realizada em novembro, estes dinamizados em 1999 com a consolidação já existente, e pela criação de mais três Conselhos, 51 estando mais três em fase de implantação.

O respeito a essa “participação popular” nos conselhos, no entanto, era questionado no Conselho Municipal de Saúde quando se dizia, por exemplo, que ele nem mesmo havia sido consultado sobre a decisão do Prefeito em formar um conselho administrativo no Hospital Municipal São José, como se verá no capítulo seguinte. O mesmo conselho discutia outra idéia – e vários conselheiros se manisfestavam contra ela – apresentada pelo representante da Prefeitura no conselho do Hospital Municipal São José e no CMS, em uma das reuniões de 1999, em que propunha a criação de uma “fundação mantenedora” para o São José como uma solução para o problema financeiro da instituição. O conselheiro Escodel afirmava que criar uma Organização Social pode ser uma forma de descumprir a Lei 8080. Pediu mais transparência para se ter acesso às informações do hospital. Questionou a criação do Conselho Administrativo do Hospital Municipal 52 São José sem a aquiescência do Conselho Municipal de Saúde

e que, além disso, apesar de todos os problemas que a saúde vem enfrentando no País, Joinville é um município onde as pessoas podem se orgulhar da qualidade de vida e do acesso aos serviços de saúde. São 4 unidades ambulatoriais. Os programas de saúde preventivos despontam tratando da doença antes que ela apareça e buscando soluções baratas para famílias mais 53 necessitadas.

A partir do ano 2000 reassumem o lugar de destaque no debate dois antigos “problemas” no plano da política de saúde: os pacientes de outros municípios que acorrem para a cidade em busca de assistência médica e os valores do SUS. Com relação ao primeiro problema, é sempre mencionada pelos governantes em seus pronunciamentos, para justificarem a situação da saúde, 51

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1999. Administração Luiz Henrique e Loyola. Joinville, 1999. p. 192.

52

CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE JOINVILLE. Ata da reunião extraordinária de 13 set. 1999. 53

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1999. Op. cit., p. 3.

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a “ambulancioterapia”. Refere-se à “prática” dos governantes dos municípios vizinhos de, em vez de investirem em instalações e equipamentos, adquirirem ambulâncias para o transporte dos pacientes para Joinville. Dessa vez, a discussão referia-se ao PAB dos outros municípios atendidos em Joinville. Para Ana Maria Groff Jansen, da Secretaria de Saúde, o PAB é o Piso de Assistência Básica que todos os municípios recebem igual per capita, atualmente no valor de R$ 10,00 por habitante/ano. Esse dinheiro é usado para fazer a atenção à vigilância, imunização e atos não médicos: consulta de clínica básica – ginecologia, pediatria e clínica geral; atendimentos básicos de odontologia; vigilância sanitária de baixa complexidade. [...] Cada município deveria estar organizando a Atenção Básica, porque Joinville já é responsável pela área especializada destes municípios através de uma Programação Pactuada e Integrada. Toda a consulta que 54 vem para Joinville gera exames que saem do teto de Joinville.

Chama atenção, ainda, para o fato de que após o censo da saúde caberá ao CMS determinar como será o procedimento com a pessoa que vem de fora do município para uma consulta que seja de urgência/emergência. Esse tipo de atendimento é analisado no capítulo sobre o Hospital Municipal São José. Quanto aos valores do SUS, todas as administrações municipais ressaltaram as graves conseqüências para toda a área da saúde, atenção primária ou médico-hospitalar, não só referente aos valores das consultas mas também dos procedimentos e dos salários dos médicos e funcionários oferecidos desde o tempo do INPS, que com a criação do SUS não obtiveram melhorias. Os administradores públicos, os diretores de unidades hospitalares e entidades médicas, após muita pressão, conseguiram que o Ministério da Saúde reajustasse o valor da consulta pelo SUS de R$ 2,55 (em vigor desde 1996) para R$ 7,55, a partir de julho de 2002. Como esclarece o CREMESC, o novo valor só abrange as consultas executadas por estabelecimentos e profissionais credenciados ao SUS, mas sem vínculo com a rede pública. Não atinge as realizadas nos hospitais públicos.55 Os hospitais se queixam do valor das AIHs, que no conjunto das especialidades, de acordo com informações da Secretaria Municipal de Saúde, atingiram em 2001 um valor médio por habitante de R$32,15. Além da baixa remuneração, a demora no repasse dos procedimentos realizados tem sido a 54

CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE JOINVILLE. Ata da assembléia ordinária de 28 ago. 2000. 55

CREMESC em defesa da remuneração digna do ato médico. Correio Médico, jul. 2002. Ano VII, n. 59, p. 5.

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causa das constantes reclamações dos administradores hospitalares, das greves de funcionários e do fechamento de setores do sistema público. O reflexo da situação nacional se torna mais complexo quando esses fatores se juntam aos problemas sanitários, que, por falta de vontade política dos governantes, parecem insolúveis. Apesar dos baixos valores praticados pelo SUS, existe uma área do sistema que está sendo cobiçada pelo setor privado de saúde: os serviços, procedimentos e exames de alta complexidade, o que inclui os tratamentos oncológicos com as sessões de quimioterapia, radioterapia e seus medicamentos, além das cirurgias cardíacas e os exames especializados que elas envolvem, os transplantes, as neurocirurgias de médio e grande porte, as cirurgias e emergências em traumas. O ex-Secretário de Saúde do município de Joinville Altair Carlos Pereira afirma que esse segmento sempre foi disputado, pois a alta remuneração significa retorno garantido do investimento realizado. A divisão dos recursos do SUS para o credenciamento de setores privados tem gerado polêmica, já que o montante dos recursos do sistema continuará sendo o mesmo, e para muitos profissionais da área, na prática, essa divisão prejudicará o sistema público, que tem que oferecer um atendimento integral à população, o que o setor privado não faz há muito tempo.56 Mas para a população a realidade se traduz na estrutura de saúde oferecida pela cidade, isto é, na quantidade de ambulatórios, no número de médicos, nos postos de saúde, no real funcionamento do PA 24 horas, no pronto-socorro público, no número de leitos a sua disposição. De acordo com a Secretaria da Saúde, em 2002 existiam no município 48 postos de saúde, 6 centros de saúde, 1 PA 24 horas. No entanto, a população continua a reclamar da demora para ser consultada, da falta de médicos, das filas para marcar as consultas, do horário de atendimento, da ausência de equipamentos, do tempo que transcorre entre a solicitação da consulta e sua efetivação, do horário para realização dos exames solicitados pelos médicos e de vagas hospitalares. A Secretaria de Saúde em seu relatório de atividades realizadas no ano de 2001 indicava que a capacidade instalada de consultas nos setores públicos (SUS) era de 5,4 por habitante/ano. O parâmetro do SUS estabelece uma média igual ou superior a 3 consultas por habitante/ano. Se agregarmos os não conveniados, a média sobe para 12,7 habitantes/ano. A taxa da capacidade instalada de leitos do SUS era de 1,5, dos conveniados 0,1 e não conveniados 0,6, perfazendo uma taxa de 2,2 leitos por 1.000 habitantes. A OMS considera como auto-suficiente o sistema que dispõe de 4 ou mais leitos para cada 1.000 habitantes. 56

Alta complexidade do SUS em foco. Correio Médico, jul./ago. 2001. Ano VI, n. 52, p. 8-9.

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Joinville precisa investir muito mais nas instalações hospitalares para que seus governantes possam exaltar a qualidade de vida da população e principalmente alardear que os cidadãos da cidade têm pleno acesso à saúde, no seu sentido mais amplo, e para que não se permaneça somente no discurso demagógico de suas “lideranças” locais e também na rotineira atribuição de culpa a outras esferas de governo por sua própria inoperância na área de saúde. Quanto às representações que os diferentes grupos sociais constroem acerca da saúde pública, Luz, referindo-se à degradação das instituições médicas e dos problemas que historicamente são confiados aos médicos e instituições médicas, a qual tem levado a sociedade civil à situação de perplexidade ante a realidade atual, afirma: O Hospital, os postos de atendimento médico, as Faculdades de Medicina e as estruturas administrativas do setor de saúde eram bússolas sociais para o equacionamento das questões do adoecimento da população, da formulação e da transmissão do saber socialmente legítimo sobre saúde, doença, cura ou morte. As representações populares sobre essas questões e o imaginário social como um todo são, em nossas 57 sociedades, completamente impregnados pelas instituições médicas.

Para ela a falência não apenas financeira, mas também ética, terapêutica e social, pode desencadear um processo de destruição dessas instituições. [...] uma crise cultural concernindo à vida, à saúde, à doença e à morte tende a se instaurar na sociedade. Essa crise pode atingir não apenas o destino das instituições legitimadas, mas a sociedade como um todo, sobretudo as novas gerações, através de suas concepções e expectativas 58 de vida e futuro.

Nessa perspectiva, as preocupações com as velhas instituições médicas e com as novas práticas sociais em saúde indicam a necessidade de um envolvimento maior da sociedade civil com as questões da área, para que as representações sociais não sejam tão marcadas pelo descaso e abandono.

57

LUZ, Madel T. Novas realidades em saúde, novos objetos em ciências sociais. In: CANESQUI, Ana Maria (org.). Ciências sociais e saúde. São Paulo: HUCITEC/ABRASCO, 1997. p. 81.

58

Id.

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4 O HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ

O crescimento populacional detectado em Joinville desde a década de 1960, como foi visto no segundo capítulo deste livro, além de impulsionar a construção civil e ao mesmo tempo proporcionar a criação de lotes clandestinos, provocou problemas de infra-estrutura na rede hospitalar e de saúde em Joinville. O movimento de internações no Hospital Municipal São José entre 1970 e 72 registrou um incremento da ordem de 80% (oitenta por cento).1 As questões relativas à saúde pública foram bastante utilizadas politicamente na cidade, já que é um item fundamental para a sobrevivência de qualquer população e, portanto, constante em campanhas políticas. No entanto, o que se viu é que nem sempre as promessas foram cumpridas, ou por descaso ou por falta de planejamentos integrados e a longo prazo. O crescimento da cidade, apesar de estar sempre em pauta, parece não ter sido levado em conta no que diz respeito ao planejamento para a saúde. Nota-se que, quando se fala em saúde pública em Joinville, pensa-se em Hospital Municipal São José e que as ações políticas nessa área freqüentemente antecederam ao caos, sendo curativas e não preventivas. Em 1970, o relatório do Prefeito Harald Karmann assim descrevia o setor de saúde e o Hospital São José: Além dos hospitais Bethesda, Casa de Saúde Dona Helena e Clínicas Nossa Senhora de Lourdes e Nossa Senhora da Saúde, instituições particulares, o setor de saúde do município é servido pelo excelente e moderno Hospital Municipal São José, entidade da administração indireta que recentemente recebeu autonomia administrativa, 2 funcionando, contudo, sob orientação da Municipalidade.

O “excelente e moderno Hospital Municipal São José” que é citado no relatório do Prefeito era o novo prédio, de cinco andares (foto 1), inaugurado 1

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1970-72. Administração Harald Karmann. Joinville, 1973. p. 173. 2

Id.

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em 1969 por Nilson Bender, anexo ao antigo de 1906. Karmann cita também o fato de o hospital ter se tornado uma autarquia municipal em 1971, pela Lei n.o 1.112, o que provavelmente colaborou para a decisão, concretizada definitivamente anos depois, das Irmãs da Divina Providência de deixarem o São José, já que foram perdendo definitivamente os poderes que tinham ali dentro. O provedor do hospital naquele período e também ex-Prefeito Luiz Gomes lembrava: Logo depois, na gestão do Harald Karmann, mudou a administração municipal e as Irmãs da Divina Providência perderam um pouco de seu espaço ali, porque o hospital passou a ser uma autarquia, que era uma figura jurídica um pouco mais complexa, é uma figura jurídica que tem autonomia de gastar dinheiro e arrecadar dinheiro. Era como uma fundação, não era a Prefeitura Municipal, é uma entidade, uma firma separada, a qual se dá o nome de autarquia no serviço público, e lá as Irmãs compravam, vendiam, recebiam e pagavam etc. E essa gestão econômico-financeira do Hospital não era condizente com os princípios da administração pública da Prefeitura, de fazer edital, concorrência pública, etc. Então houve um momento de adaptação. A partir desse momento o hospital passou a ter diretores: diretor geral, diretor técnico 3 e diretor administrativo, e isto foi nos idos de 1970-71.

Foto 1 – Novo Hospital Municipal São José – 1970 3

GOMES, L. Luiz Gomes: depoimento [jul. 2001]. Entrevistadoras: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Eleide A. G. Findlay. Joinville, jul. 2001. 2 fitas cassete (120 min.). Entrevista concedida ao projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille.

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Acreditamos que a maneira com que elas interferiam também no trabalho médico, mesmo que, conforme viam as pessoas não ligadas à área, com as melhores intenções de economizar para o hospital, começava a incomodar. Três Irmãs tocavam aquele hospital. Mas tocavam daquele jeito: viam uma receita do médico, tinha um antibiótico, daí ela (sic) olhava, doze ampolas de antibiótico, ela ia lá, perguntava se alguém conhecia o médico, se não fosse o Aluízio Condeixa que era muito bravo, ou então o doutor Davi de Oliveira, [...ela dizia] “Escuta, será que precisa a dose toda? Será que com oito não dá? Vamos dar seis primeiro e depois ver a reação do doente” (...) “olha que isto é caro, doutor...” Administravam 4 assim!

O Novo São José, como passou a ser chamado a partir da construção do novo prédio, encantou médicos que chegavam para trabalhar na cidade, como foi o caso de dois neurocirurgiões mineiros, Ronald Fiúza e Djalma Jardim, que resolveram se instalar em Joinville, dentre outras razões, pelo encanto também que tivemos pelo próprio hospital, que estava bem novinho, com raios X de altíssima qualidade. Naquela ocasião, não existia em Belo Horizonte raios X que pudessem nos servir tão bem, na nossa especialidade, como os do São José. Então, já foi mais ou 5 menos um amor à primeira vista entre nós e o Hospital São José.

O Prefeito Karmann, que também era médico, em 1971 preocupavase em aumentar o número de prontos-socorros nos bairros, inaugurando em junho daquele ano um minipronto-socorro no Centro Social do Itaum – CESITA –, que deveria ser o primeiro de uma série.6 Apesar de Karmann ter dado prioridade à saúde e à educação7, em 21/5/1972 o jornal A Notícia alertava: “Hospitais de Joinville já estão ficando pequenos para atender a procura de leitos”. O Hospital Municipal São José possuía 305 leitos, o Dona Helena, 105, e a Maternidade Darcy Vargas, 62. Reconhecia-se que “aquilo que há anos atrás (sic) parecia que seria construído para atender a demanda durante muito e muito tempo aos poucos vai se tornando pequeno e exigindo estudos 4

Id.

5

FIÚZA, R. Ronald Fiúza: depoimento [jun. 2001]. Entrevistadora: Sandra P. L. de Camargo Guedes. Joinville, 2001. Entrevista concedida para o projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille. 6 7

A NOTÍCIA. Joinville, 5 jun. 1971. p. 8.

KARMANN, H. Harald Karmann: depoimento [jul. 1982]. Entrevistadora: Dúnia de Freitas Toaldo. Joinville, 1982. Entrevista concedida para o projeto Prefeitos de Joinville. LHO/Univille. No seu governo foram inaugurados o Museu do Sambaqui, a Casa da Cultura e o Museu Fritz Alt.

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para ampliação.”8 Não se pode esquecer que esse “anos atrás” colocado na matéria de jornal significava apenas três anos, ou seja, o tempo de construção do novo prédio do São José! Atendendo ao crescimento “vertiginoso” da cidade, o então Prefeito providenciou a construção do pronto-socorro do Hospital Municipal São José: A rápida expansão demográfica do Município tornou presente a necessidade de construir-se uma unidade para atendimentos médicos de emergência. Atentos ao problema, edificamos junto ao Hospital Municipal São José moderno e amplo pronto-socorro, que veio preencher grave lacuna do setor hospitalar do Município. Edificação ampla de 950 metros quadrados, dispõe de toda e da mais moderna aparelhagem necessária aos atendimentos de urgência, bem como de unidade de internamento para observação até 48 horas. Esta unidade desafogou em muito as instalações do Hospital e representou maior disponibilidade de leitos para pacientes necessitados de maior 9 período de internação. Importou a obra em Cr$ 355.478,15.

Desde então, esse pronto-socorro, apesar de várias vezes reformado e ampliado, continua a ser o mesmo que atende a maior parte da demanda de pacientes do SUS em toda a cidade e, em diversas especialidades, da região. O Prefeito eleito de Joinville em fins de 1976, Luiz Henrique da Silveira, também colocava a saúde como prioritária, dizia que iria criar ambulatórios nos bairros e que reivindicaria “junto ao FAs – Fundo de Assistência Social – uma verba de 50 milhões de cruzeiros para a ampliação do número de leitos do Hospital ‘São José’”.10 No entanto, aquele hospital tinha pressa, e no início de seu mandato a crise financeira do São José estava evidenciada nas matérias dos jornais. Como membro do Conselho Superior do Hospital Municipal São José, o Presidente da Câmara Nagib Zattar fez ontem um relato da situação daquela casa de saúde. “As dívidas [...] ascendem a casa de 8 milhões e 299 mil cruzeiros, assim distribuídas: 7 milhões e 299 mil cruzeiros para os fornecedores (alimentação, materiais diversos etc.) e 1 milhão e 300 mil cruzeiros de serviços médicos lá prestados.” Nagib Zattar pedia 8 9

A NOTÍCIA. Joinville, 21 maio 1972. p. 14.

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1970-72. Op. cit., p.82-3. Nesse período não havia Secretaria da Saúde, mas Departamento de Habitação, Saúde e Assistência Social, que a partir de 1973 passou a ser dirigido por Edla Jordan.

10

Ampliação da capacidade hospitalar é meta prioritária do novo prefeito. A Notícia. Joinville, 11 dez. 1976. AHJ.

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a colaboração da Câmara para autorizar que o Hospital fizesse um 11 empréstimo de 9 milhões para saldar suas dívidas.

Os apelos para que empréstimos fossem consentidos prosseguiam meses a fio, entrando no ano seguinte, e enquanto isso o hospital procurava sobreviver. Vereadores pediam recursos ao Ministério da Saúde e ao da Previdência Social, afirmando que sem essa ajuda “Joinville pode[ria] entrar em completo caos hospitalar, se não forem [fossem] tomadas medidas urgentes.” Luiz Henrique da Silveira justificava as dificuldades de seu governo com os seguintes argumentos: a escassez de recursos, fruto da excessiva concentração de tributos; a multiplicidade de encargos das prefeituras, caracterizada pela transferência, aos municípios, de atribuições que lhe não são devidas (Universidade, Hospitais Regionais, justiça do Trabalho, etc.); êxodo rural, responsável pelo esvaziamento das comunidades agrícolas e pela inchação dos núcleos urbanos e a falta de meios para atender às reivindicações que, cada vez mais articulada e agressivamente, são 12 dirigidas aos prefeitos pelos municípios ou por grupos comunitários.

Percebe-se a postura do Prefeito com relação ao São José e à educação superior,13 considerando-os um peso para a sua administração, já que o “Hospital Regional” ao qual se refere naquele momento era o Hospital Municipal São José, devido ao seu caráter regional. Na tentativa de transferir o São José ao governo do Estado, a municipalidade chegou a fazer uma moção, acusando o governo do Estado de omissão ante o problema da saúde em Joinville. Nagib Zattar, defendendo o governo do Estado de estar omisso perante o problema do São José, acusava o governo municipal: não há omissão por parte do Governo, pois até agora não foi feito nenhum pedido por parte da Direção do São José e nem da municipalidade, e se omissão existe é por parte do Executivo, uma vez que no orçamento plurianual de 73, 74 e 75 estava contida dotação ao São José para sua ampliação e isto não aconteceu. No meu ponto de 11

As dívidas do São José e como salvá-las. Jornal de Joinville, Joinville, 5 ago. 1977. Acervo Hospital Municipal São José. 12

TERNES, A. Joinville, a construção da cidade. S. Bernardo do Campo: Bartira, 1993. p. 186. Grifo nosso. 13

Sobre a educação superior em Joinville, no primeiro mandato L. Henrique, tentando se livrar das dívidas contraídas por Pedro Ivo ao adquirir o terreno e fazer as construções para a FURJ, propôs a unificação entre a FURJ e a UDESC, passando todos os bens e as dívidas para o governo do Estado, mas não conseguiu o seu intento. Ver sobre esse assunto SILVEIRA, L. H. da. Luiz Henrique da Silveira: depoimento [maio 1982]. Entrevistadora: Dúnia de Freitas Toaldo. Joinville, 1982. Entrevista concedida ao projeto Prefeitos de Joinville. LHO-Univille.

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vista [...] na moção deveria constar o orçamento do Hospital, plantas 14 do projeto de ampliação e outros subsídios.

Temos aqui o São José no meio de brigas políticas: o presidente da Câmara e o governo do Estado, representantes da ARENA, de um lado, e o Prefeito na época e seu antecessor, ambos do MDB, de outro, em acusações mútuas. Um ano depois o impasse ainda continuava. Em visita a Joinville, o então Governador Jorge Bornhausen, quando questionado sobre o fato de que o Hospital São José de Joinville deveria ser transformado em hospital regional, disse que construiria “um moderno hospital regional na cidade”, descartando a possibilidade de transformação do Hospital Municipal São José em hospital regional de fato. “Nós decidimos pela implantação do hospital regional, novo e moderno” – continuou o governador, “devido a pareceres técnicos, cuja constatação foi de que o Hospital São José não pode mais ser ampliado porque sua estrutura não comporta. Nós estamos preocupados é em construir um hospital moderno e equipá-lo. Não se trata de o Hospital São José ser da Prefeitura, ou qualquer envolvimento partidário, e sim de encontrar uma solução definitiva, que é, segundo a minha equipe técnica, a construção de um novo hospital, porque o São José já deu o que tinha que dar”. Segundo o Governador, a administração do novo hospital regional 15 caberia à comunidade local, não ao Estado.

Os anos mostraram que o Governador estava completamente enganado, já que o Hospital Regional16 nunca chegou a substituir o Hospital São José nas necessidades da região. Até chegou a ser administrado pela municipalidade entre 1989 e 1996, durante o governo de Luiz Gomes e no segundo mandato de Wittich Freitag, mas em sua terceira gestão como Prefeito, em 1998, Luiz Henrique devolveu o Regional (e a Maternidade Darcy Vargas) 14

Moção endereçada a ministros e ao Estado pede auxílio para o “Hospital Municipal São José”. A Notícia, 6 jun. 1978. Acervo Hospital Municipal São José. 15

O ESTADO DE SANTA CATARINA. Blumenau, 19 maio 1979. Caixa de recortes – Prefeitura. AHJ. Para analisar a acusação de que haveria interferências político-partidárias nas decisões sobre a saúde em Joinville, veja quadro 11 neste capítulo. 16

Popularmente conhecido como Hospital Regional, o Hospital Regional Hans Dieter Schmidt, situado no bairro Boa Vista, recebeu esse nome em homenagem ao recentemente falecido, na época de sua inauguração, presidente do conselho da Tupy e Secretário da Indústria e Comércio do Estado de SC, já que foi a Tupy quem doou o terreno para a construção do hospital. Com financiamento da Caixa Econômica Federal no montante de 777 milhões de cruzeiros, o estaqueamento teve início já em 1979. Porém o Regional só começou a funcionar um ano após sua inauguração, em 1984. Hospital Regional de Joinville saiu do papel e já começa a se tornar realidade. Correio da Tupy, Joinville, mar. 1981.

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ao governo do Estado. Além disso, deve-se lembrar que aquele prédio do qual se falava “não comportar mais ampliações”, na época só possuía dez anos e que ainda é o mesmo atualmente, em 2002. Desde então, o São José passou por inúmeras reformas e ampliações para dar conta da sua imensa demanda, mesmo com a existência do “moderno e bem equipado Hospital Regional”. No final do governo L. Henrique, em 1982, houve uma ampliação no HMSJ em 75 leitos, com a inauguração da ala Dr. João Schlemm (conhecida internamente como unidade JS), que abrigava também a ala de queimados,17 o que supria as necessidades do momento, mas não preparava o hospital para o futuro e para as enormes demandas populacionais que inchavam a cidade. Paralelamente à crise político-partidária e financeira, o hospital passava por uma crise interna. Insatisfeitos com a maneira como o Prefeito vinha se comportando em relação ao hospital e não concordando com a indicação feita por ele para a superintendência da instituição, o corpo clínico, em repúdio, resolveu não indicar um nome para a direção clínica. O impasse levou à modificação, em 1976, da Lei 1424/75, que dava ao Prefeito o poder de indicar um nome para a superintendência do hospital. O [...] Prefeito [...] após analisar as propostas e tendo inclusive participado de reunião com [...] os médicos, quando foi analisada nova redação à Lei 1424 e que foi aceita e encaminhada à Câmara de Vereadores, tendo sido aprovada sob o número 1678 em 4 de setembro de 1979. Por determinação desta Lei, a 12 de setembro de 1979, foi convocado o Conselho Supervisor, que, dentre as exigências da mesma, indicou cinco nomes ao sr. Prefeito para conseqüentemente nomear o Diretor Superintendente. Tendo sido indicado entre os cinco nomes, o da até então Diretora, o Sr. Prefeito ratificou-a no cargo. Em assembléia do Corpo Clínico para indicação de três nomes, para escolha e nomeação do Diretor Clínico, não houve apresentação da lista tríplice, tendo sido então, por prerrogativa da mesma, nomeado o Diretor Clínico pelo prazo de 90 dias.18

Outro problema foi criado com a saída definitiva daquelas que, desde 1906, vinham administrando o hospital ou participando ativamente da vida dele: as Irmãs da Divina Providência. Correspondência datada de 7 de abril de 1980, da irmã Jusélia Brod, presidente da Sociedade da Divina Previdência, 17 18

São José ganha 75 leitos. A Notícia. Joinville, 11 mar. 1982. AHJ.

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1979. Acervo do HMSJ (datilografado). Pasta 9-R-1, fls. 1, 2 e 3.

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comunicava ao Hospital Municipal São José que a referida sociedade iria tirar as irmãs de lá, por necessitarem delas nas filiais da própria irmandade. Apesar de médicos, funcionários e da própria superintendente do hospital, Edla Jordan, terem feito um abaixo-assinado pedindo a permanência das irmãs, a irmandade não voltou atrás, mesmo afirmando que elas sempre receberam grande apoio e carinho do hospital. A última correspondência, datada de 12 de junho, da irmã Brod para Edla Jordan mostrava que a decisão era final e, mesmo com o abaixo-assinado, elas não tinham mais condições de permanecer ali. Encerra a carta desejando felicidades ao hospital, aos médicos e funcionários e que o hospital continuasse a “desempenhar, junto à comunidade joinvilense, a sua ação humanitária e caritativa, como vem desempenhando através dos tempos.”19 Porém, como vimos anteriormente, a relação das irmãs com o hospital já vinha se deteriorando há vários anos. Com a perda dos poderes administrativos, lhes sobrava apenas funções ligadas a áreas para as quais não eram necessárias especialidades e também a tarefa que todos concordavam ser importante: a do amparo espiritual aos doentes. A imagem de instituição como responsável por ações “humanitárias e caritativas” começava a se defrontar com a nova realidade da cidade. O crescimento cada vez maior da população e, em conseqüência, dos problemas sociais inerentes faziam com que fosse necessária a implantação, por exemplo, de serviço de vigilância e segurança, pois pequenos furtos e a entrada descontrolada de visitantes, em horários inoportunos, nas dependências do hospital começavam a ser cada vez mais freqüentes e graves. Apesar da tentativa de passar uma imagem pública de cidade pacata e ordeira, esta não condizia, em alguns aspectos, à realidade. A saída das irmãs provocou, também, a contratação de profissionais para assumirem os postos que elas ocupavam. Passou-se a ter seis enfermeiras de alto padrão, em vez de quatro, como no ano anterior; o serviço de nutrição e dietética passou a ter uma bioquímica com curso de Alimentação Industrial, e em outras áreas também foram contratados profissionais capacitados. Medidas que hoje parecem ser normais e impossíveis de não acontecer em um hospital iam sendo implantadas aos poucos. Entre os vários procedimentos novos vemos, por exemplo, que “as louças dos pacientes passaram a ser fervidas”.20 Algumas práticas que aconteciam há vários anos sem mudanças só foram observadas e 19

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1982. Acervo do HMSJ (datilografado). Pasta 11-R-2. Anexo.

20

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1980. Acervo do HMSJ (datilografado). Pasta 9-R-1, fl. 10.

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modificadas em razão da necessidade de se racionalizar os recursos por medidas de economia. A inflação alta e a falta absoluta de recursos levaram à implantação de várias comissões, como a de padronização de medicamentos, de padronização de almoxarifado, de reenquadramento do pessoal e de insalubridade “para funcionalidade do hospital e melhor aproveitamento de recursos, pois a inflação estava aumentando em índices superiores aos que se havia previsto no Orçamento-Programa para 1980.”21 Observando o alto número de pessoas que voltavam a ser internadas por não terem seguido corretamente o tratamento e onerando ainda mais a instituição, foi implantado um serviço educativo, com palestras aos familiares de pacientes internados, o que foi recebido com grande interesse por parte das famílias de crianças internadas. A permanência dos problemas econômico-financeiros gerados pela crise da previdência social levou à contratação, em 1981, de uma empresa de consultoria empresarial – INTRA –, para buscar alternativas para a crise. O resultado do trabalho foi levado ao Prefeito, à Câmara, ao Conselho Supervisor e ao Ministro da Previdência, além da Associação Comercial e Industrial de Joinville – ACIJ –, mas não houve respostas. Em uma dessas reuniões, “alguns políticos importantes, importantíssimos, aqui do Estado, chegaram a falar, – Não tem jeito, tem de fechar! Tem de fechar o hospital, a Prefeitura não tem como colocar dinheiro neste saco sem fundo!”, lembrava Ronald Fiúza, que lhes disse: “O hospital é da Prefeitura, se é para fechar, quem vai fechar? São os senhores!”22 Essa colocação, como era de esperar, mudou o discurso da reunião, já que qualquer político que quisesse ter ainda algum futuro em Joinville ou na região não ousaria tomar a iniciativa de fechar o Hospital Municipal São José. Nessa ocasião o Ministro da Previdência também dizia que seu ministério estava falido. Então, “para diminuir o déficit [...foram tomadas] medidas [como] redução do número de funcionários, transformação das enfermarias do 1.o andar em quartos particulares, desvinculação da anatomia patológica [...], redução do pessoal, racionalização do ambulatório, racionalização da cozinha etc.”23 Os fatores da crise estavam ligados à defasagem existente entre os aumentos dados aos funcionários (50,8%) e aquele concedido pelo INAMPS (32,9%), somados à alta inflação de 3 dígitos e ao fato de que a Prefeitura repassava apenas 10% da folha de pagamento do hospital.24 A situação do 21 22 23

Ibid., fl. 1. FIÚZA, Ronald. Op. cit.

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1981. Acervo do HMSJ (datilografado). Pasta 18-R-1, fls. 1 e 2. 24

FIÚZA, Ronald. Op. cit. HOEPFNER, C. Clóvis Hoepfner: depoimento [ago. 1999]. Entrevistadores: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Adilson Lipinski. Joinville, 1999. Entrevista concedida para o projeto O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille.

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pronto-socorro já se apresentava como calamitosa, “o atendimento em excesso está[ava] acarretando déficits insuportáveis e que a melhor solução seria o INAMPS outorgar o funcionamento de mais um pronto-socorro” na cidade.25 Servindo a pacientes de Joinville e de toda a região, o pronto-socorro do São José era, na época, o único que atendia pelo INAMPS, daí as queixas.

Foto 2 – HMSJ, o único da cidade a atender pelo INAMPS

Mesmo com problemas, algumas melhorias foram feitas: Além do aumento de dois pavimentos no prédio da frente, procedeu-se a pequenas reformas com a equipe de manutenção do próprio hospital: ampliação da lavanderia, reforma da cozinha, reforma do lactário, reforma 26 e ampliação do laboratório, Banco de Sangue e Anatomia Patológica.

Enquanto os políticos procuravam uma forma de resolver o problema, a crise financeira do hospital se agravava a cada dia. Todos os Prefeitos e os administradores dele conviveram com os problemas ligados aos repasses financeiros sempre insuficientes do então INAMPS. Em junho de 1982 foi anunciado um aumento do número mensal de atendimentos feitos pelo pronto-socorro em mil consultas. Segundo o diretor administrativo Iberê 25 26

Nagib pede um pronto-socorro para Joinville. A Notícia, Joinville, 11 nov. 1981. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1981. Op. cit., fl. 2.

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Condeixa, o hospital já atendia bem mais pessoas no pronto-socorro do que recebia do INAMPS e, com o aumento dos repasses para aquela área, as coisas iriam melhorar um pouco, mas ainda faltava aumentar o número dos repasses para as internações.27

Foto 3 – Prédio do primeiro pronto-socorro do HMSJ

Em 1983, já no governo de Wittich Freitag e com novo superintendente, as manchetes dos jornais falavam de possíveis greves de funcionários, campanhas para arrecadar fundos e até do fechamento do hospital. Matéria do jornal O Estado de Santa Catarina afirmava que o Hospital Municipal São José passava pela pior crise de toda a sua história, com uma dívida acumulada de Cr$ 165 milhões. A crise era atribuída às más administrações anteriores e dizia que o hospital estava ameaçado de fechar na segunda quinzena de julho daquele ano.28 Em suas memórias, Freitag afirmava que “o principal responsável pela dívida era o pronto-socorro, o único da cidade”.29 Mais uma vez o pronto-socorro aparece como ponto nevrálgico daquele hospital. Em sua análise crítica, a então direção clínica desabafava em seu relatório sobre o pronto-socorro: unidade de vital importância [...] para toda população da cidade [...e] região norte do estado. [...] É nesse local que será decidido sobre a 27

São José vai atender a mais de mil pessoas. Extra, Joinville, 2 jun. 1982. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. 28

O São José detém a pior situação em SC. O Estado de Santa Catarina, Blumenau, 24 jun. 1983. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. 29

S. THIAGO, Raquel. Eu, Wittich Freitag. Joinville: Movimento e Arte, 2000.

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sobrevivência ou morte de todos nós. E, por incrível que pareça, vidas são perdidas muitas vezes por falta de equipamentos e material adequado [...], ainda não dispomos de um monitor cardíaco, aparelho este indispensável para reanimação cardiopulmonar [...], trabalhamos com material cirúrgico de péssima qualidade, aspiradores que sempre apresentam defeitos, laringoscópios piores ainda, insuficiência de cânulas de intubação, etc., etc., etc.[...] ainda ocorrem falhas no atendimento. Todos sabem quais os envolvidos, todos reclamam, mas não são tomadas 30 providências...

O responsável pelo pronto-socorro, como demonstra sua fala, já havia perdido a paciência e as esperanças de que as coisas iriam mudar e acreditamos que ele tivesse razão, pois percebemos as mesmas queixas aparecerem nos relatórios do hospital por anos seguidos, sem que atitudes tivessem sido tomadas. Quase diariamente saíam matérias nos jornais apresentando a situação caótica em que estava a instituição. Vários setores da comunidade iniciaram campanhas para arrecadar fundos para o hospital e até mesmo para colaborar no pagamento dos salários atrasados. Em novembro, os funcionários, sem receber salários, entraram em greve. Com a decretação da greve, será a segunda vez em pouco mais de quatro anos que o Hospital Municipal permanecerá fechado pelos trabalhadores. A primeira greve aconteceu em 1979, quando a classe trabalhadora viu atendidas todas as suas reivindicações.

Ronald Fiúza, superintendente do São José, reforçava as dificuldades pelas quais passava o hospital e que não havia recursos para o aumento solicitado pelos funcionários, apesar de saber que a culpa disso não era deles, mas sim do INAMPS. “‘Mesmo com os 21% de reajuste, o São José continuará sendo o hospital que melhor paga seus funcionários em todo o Estado’, concluiu” Fiúza.31 Três dias depois os empregados decidiram aceitar os 21% de aumento e mais a estabilidade de emprego até janeiro do próximo ano, quando seria rediscutido o aumento salarial.32 Porém o impasse ainda não estava totalmente resolvido, pois apesar da promessa os salários não haviam sido pagos no dia 30

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1983. Joinville. Acervo do HMSJ (datilografado). Pasta 9 C-1, fl. 49.

31

Empregados do Hospital São José mantêm decisão sobre greve. O Estado de Santa Catarina, Blumenau, 2 nov. 1983. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. O mesmo assunto é apresentado no jornal Extra, no mesmo dia. Sobre as greves do HMSJ ver tabela 12. 32

Acordo dá estabilidade aos empregados do São José. O Estado de Santa Catarina, Blumenau, 5 nov. 1983. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ.

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10, como esperavam os funcionários, e nova greve foi anunciada. Aqueles que tinham outras oportunidades de emprego saíam do São José, deixando a instituição com sérios problemas por falta de pessoal. O relatório do setor de enfermagem mostrou uma diminuição de 41,4% no quadro de funcionários naquele ano.

Foto 4 – Greve de funcionários no HMSJ na década de 1980

Outros hospitais do país passavam por crises financeiras, e o problema de Joinville poderia desencadear movimentos semelhantes nas cidades vizinhas: Ontem [...] o diretor secretário do sindicato afirmou que os movimentos grevistas poderão ser estendidos a outros três hospitais e casas de saúde de Joinville, São Francisco do Sul e Jaraguá do Sul, onde funcionários estão com os salários em atraso. Em São Francisco do Sul os empregados do Hospital de Caridade não recebem há mais de dois meses, sendo que o episódio vem se repetindo desde o ano passado, quando o 33 pagamento atrasou por vários meses.

Enquanto o São José passava por todos esses problemas, o Hospital Regional, apesar de já inaugurado, ainda não estava funcionando. O vereador João Luiz Sdrigotti (PMDB) [afirmou que] demagogicamente o PDS inaugurou o Hospital Regional 24h antes das eleições de 33

Enfermeiros do São José estão com salários atrasados e podem parar. O Estado de Santa Catarina, Blumenau, 19 nov. 1983. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ.

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novembro. Depois dela (sic) ter acontecido e o Governador do PDS eleito, o hospital continua um deserto, um autêntico elefante branco 34 [...] não está havendo seriedade com o dinheiro do contribuinte[...]

Matérias de dias diferentes, do mesmo ano, nos jornais O Estado de Santa Catarina e A Notícia, explicavam que faltavam equipamentos para o Regional começar a funcionar. A crise financeira, segundo os depoimentos, a mais longa e séria da história do São José, ainda se arrastava em meados do ano seguinte, com um déficit de Cr$ 316 milhões e convivendo com uma greve de previdenciários. Em julho de 84 o Hospital Municipal São José ameaçava novamente fechar as portas, exceto para casos de extrema urgência. Renato Castro, diretor clínico do hospital, dizia que, apesar das dificuldades, era a favor da greve: “precisamos mudar a política econômica, esta sim é condenável”.35 Somente em outubro de 1984 o Hospital Regional foi credenciado pelo INAMPS. No entanto, não ficou fora das crises, também sofrendo uma greve de seus servidores poucos meses após o início de seu funcionamento. Procurando minimizar os problemas da instituição, a direção do Hospital Municipal São José e a Prefeitura apelaram às instituições financeiras com sede em Joinville para que a ajudassem. O Banco do Brasil e o Bamerindus responderam ao apelo doando CR$ 10 milhões e CR$ 15 milhões respectivamente. Uma campanha de doações com os associados do Joinville Esporte Clube – JEC – iniciada no ano anterior também conseguira arrecadar outros CR$ 15 milhões para o São José, enquanto dois monitores cardíacos, com valor superior a Cr$ 80.000,00, eram doados pela Companhia Hansen.36 “Se de um lado estava a Previdência Social levando o Hospital à bancarrota, de outro estávamos unidos, poder público, empresários, funcionários, administração do hospital e a comunidade para lutar por uma saída”, comentava Freitag.37 Fiúza comparava a saída do São José da crise com o momento político nacional, mais precisamente com o movimento pelas eleições diretas para a Presidência da República, iniciado com um comício que reuniu cerca de 300 34

Hospital continua fechado depois de um ano inaugurado. Jornal de Santa Catarina, Santa Catarina, 14 set. 1983. Caixa de recortes – Hospitais. AHJ. 35

São José pode fechar as portas. A Notícia, Joinville, 22 jul. 1984. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. p. 1 e 11. 36

Banco do Brasil doa 10 milhões ao S. José. A Notícia, Joinville, 21 ago. 1984. São José ganha 15 milhões. Extra, Joinville, 22 ago. 1984. Bamerindus doa Cr$15 milhões ao “São José”. A Notícia, Joinville, 22 ago. 1984. São José recebe equipamentos. A Notícia, Joinville, 11 set. 1984. Hospital São José começa a se recuperar de crise financeira. Jornal de Santa Catarina, Santa Catarina, 29 mar. 1984. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. 37

S. THIAGO. Op. cit., p. 197.

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mil pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, em 25 de janeiro e que foi seguido por várias outras cidades brasileiras O exemplo nos foi dado pelas gigantescas manifestações populares, que neste ano de 1984 levaram às ruas os anseios populares de diretas e de mudanças e que se transformaram em belo exemplo de exercício democrático. Com espírito análogo, um coeso movimento dos hospitais de Santa Catarina reivindicou as mudanças que se fizeram necessárias na introdução pelo INAMPS do chamado “Plano Paraná”, resultando na implantação de um sistema “AIH” aprimorado que definitivamente impediu a queda de receita nos hospitais. Também durante democráticas manifestações, participamos diretamente de assembléias gerais dos funcionários do Hospital S.J., quando se decidiu a mudança da data-base dos reajustes salariais, tornando-os compatíveis com os reajustes dos nossos maiores compradores de serviços. E fomos finalmente à comunidade, empresários e governo, que, convencidos de sua responsabilidade neste momento crucial, contribuíram decisivamente, possibilitando principalmente a nossa nova 38 situação perante os bancos e fornecedores.

Convivendo com uma inflação galopante, que projetava para o ano de 1985 uma taxa de 400%, não era possível sobreviver sem reajustes salariais, o que não vinha acontecendo com os funcionários públicos de maneira geral. No início daquele ano é dado o tão desejado aumento ao salário dos servidores do Hospital São José: “Funcionários do São José terão reajuste de 77,5%”. Esses reajustes, no entanto, seriam escalonados, e o índice anunciado atingiria os que ganhavam até três salários mínimos,39 o que não interrompeu as negociações. O clima tenso continuou na cidade. Em maio do mesmo ano nova greve explodiu no São José, ocasionando vários embates entre o diretorsuperintendente do hospital, funcionários e sindicato. [...] o ponto mais crítico [foi] quando o diretor-superintendente, Ronald Fiúza, se recusou a reconhecer a mediação do Sindicato dos Profissionais de Enfermagem de Joinville, através de seu presidente, José Caetano Rodrigues. [...] As propostas foram sendo reformuladas exaustivamente até que Fiúza fez uma última tentativa de se normalizar a situação. A proposta final apresentada à assembléia foi de que seriam concedidos 33 por cento de 38

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1984. Acervo do HMSJ (datilografado). Pasta 9-C-1, fls. 1 e 2. 39

A NOTÍCIA. Joinville, 22 jan. 1985. AHJ.

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adiantamento imediatamente, com a concessão de mais 30 por cento em agosto que ficaram condicionados à vinda de recursos até lá. Em novembro o Hospital São José concederá o mesmo aumento negociado entre a Federação dos Enfermeiros de Santa Catarina e o sindicato patronal.[...] A avaliação feita pela maioria dos funcionários [...] foi de que o movimento [...] não foi vitorioso, em virtude das perdas reais que a proposta apresenta. Eles afirmam que acabaram aceitando a proposta em virtude da situação se apresentar desfavorável frente às medidas tomadas pela direção do hospital na terça-feira. Em nota oficial a direção anunciou que as negociações estariam suspensas até a volta ao trabalho. Foi solicitado ao Tribunal Regional do Trabalho, pelo Hospital, a declaração da ilegalidade da greve e seria encaminhada ontem ao TRT a denúncia do acordo feito em fevereiro, o que na prática rompia as disposições assumidas pelas partes. Outros pontos também foram acordados: o hospital também iria respeitar o artigo 566 da CLT, deixando de reconhecer o sindicato, e conclamava os funcionários a uma melhor reflexão e retorno imediato ao trabalho. A nota, segundo o comando de greve, teve um efeito psicológico muito grande e foi fator decisivo para a aceitação da proposta 40 apresentada [...]

Os jornais Extra e O Estado de Santa Catarina, de circulação na cidade e no Estado, também anunciaram, com destaque, o término da greve no São José. O Estado, no dia seguinte, informava que a greve havia deixado o São José com um prejuízo de Cr$ 100 milhões e que o hospital teria que contrair um empréstimo de Cr$ 390 milhões para pagar a antecipação salarial aos seus 500 servidores e mais um empréstimo para o reajuste previsto para o mês de agosto, pois “o Prefeito Wittich Freitag deixou claro que a Prefeitura não auxiliará o São José.”41 Nos dias seguintes ao fim da greve a direção do hospital, com o auxílio da imprensa, procurava mostrar que a situação estava normalizada e que a população poderia ficar tranqüila. [...] a maior preocupação a partir daquele momento é com o prejuízo da imagem perante a comunidade. Durante os dois dias de paralisação a maior parte dos internados foi transferida para outros hospitais ou recebeu alta em caráter de emergência, e os que permaneceram, cerca de 150, demonstraram muita tensão. 40 41

Hospital cede um pouco e a greve termina. A Notícia, Joinville, 23 maio 1985.

O ESTADO DE SANTA CATARINA. Blumenau, 24 maio 1985. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ.

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De forma direta, a greve prejudicou fortemente a imagem de segurança e bom atendimento que o hospital estava mantendo, e agora, segundo o diretor Ronald Fiúza, grande esforço terá de ser feito para recuperar 42 o prestígio anterior.

Nota-se a preocupação em recuperar a “imagem” da instituição, com certeza ameaçada com os acontecimentos e, principalmente, pelos destaques negativos na imprensa. Procurando desestimular novas paralisações, a direção do hospital deu quatro dias de folga, como prêmio pela dedicação, aos funcionários que não participaram da greve. Essa atitude lhe valeu uma série de críticas por parte do sindicato, inclusive por ter demitido funcionários grevistas.43 Passada a ansiedade e o nervosismo natural que a situação mereceu, tanto a direção do hospital quanto a Prefeitura foram à busca de recursos para saldar as dívidas da instituição, e em agosto, conforme prometido, foi dada a antecipação salarial de 35% aos funcionários. Ronald Fiúza conseguira, através de uma visita ao presidente do INAMPS, Ézio Cordeiro, uma majoração dos valores pagos pela previdência para as internações hospitalares em 92%, quando lhe expôs algumas dificuldades do sistema de saúde de Joinville, ou seja: a dificuldade de atendimento aos doentes nas áreas rurais; a diminuta oferta de médicos nas áreas da periferia, e mesmo no Posto de Atendimento Médico do centro da cidade; duplicidade de serviços através do hospital, ambulatórios municipais e INAMPS, o que acarreta na perda de recursos 44 aplicados; situação dos anestesistas, entre outros pontos.

Ficara acertada a vinda de técnicos do INAMPS à cidade para ajudar nas soluções e conhecer o plano de implantação das AIS – Ações Integradas da Saúde – pensado para o município. As AIS, conforme discutido no primeiro capítulo, estenderiam a todas as pessoas o direito aos serviços de saúde. O plano foi realizado em sintonia com a Secretaria do Bem-Estar Social, tendo sido aprovado pelo Prefeito. Visava a uma ação conjunta entre o Hospital, a PMJ e o INAMPS, reservando para o futuro próximo a participação do Ministério da Saúde, Secretaria Estadual de Saúde, CEME – Central de Medicamentos –, MEC – Ministério da Educação e Cultura etc. A viabilização dessas idéias possibilitaria uma melhor utilização dos recursos e uma otimização dos serviços prestados à comunidade. Contudo, a ampliação nos atendimentos, ao contrário do que se supunha, só veio a aumentar os gastos com a saúde. 42 43

Depois da greve hospital preocupa-se com a imagem. A Notícia, Joinville, 24 maio 1985. AHJ.

Fiúza recebe com repúdio a denúncia do sindicato. Extra, Joinville, 20 ago. 1985. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ.

44

Melhora a situação do São José e de seus servidores. A Notícia, Joinville, 8 ago. 1985. AHJ.

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Além disso, apesar de o Prefeito ter dito que não ajudaria o Hospital Municipal São José, deu uma concessão de 1 bilhão de cruzeiros que possibilitou a execução de um plano de melhoria do atendimento, com a compra de novos equipamentos e o aumento do espaço físico de algumas das unidades do hospital. A crise dos hospitais brasileiros, com ênfase nos de Santa Catarina, é matéria freqüente nos jornais do ano de 1985. Ao mesmo tempo em que a direção do São José procurava se defender dos ataques do sindicato, o Jornal de Santa Catarina mostrava a realidade trágica dos demais hospitais do Estado. Matéria de página inteira falava sobre o problema geral de falta de leitos em várias cidades do Estado: Blumenau, Florianópolis, Joinville, Balneário Camboriú, Tubarão, Itajaí, Nova Trento, São João Batista, Criciúma, Rio do Sul etc. Com relação a Joinville, Fiúza dizia que o caso não era dos mais graves. “A Organização Mundial de Saúde preconiza que a média ideal de leito hospitalar disponível deve ser entre 4 e 5 leitos para cada mil habitantes. Em Joinville a realidade é bem menor, ‘porém, está dentro da nossa realidade’, salientou” Fiúza. Apesar de a matéria não informar qual a relação de leitos hospitalares por habitante existente na cidade, pode-se fazer uma aferição a partir dos totais apresentados para cada hospital, ou seja: 320 no Hospital Municipal São José (dos quais 90 eram de pediatria), 250 no Hospital Regional Hans Dieter Schmidt, 220 no Hospital Dona Helena e 100 na Maternidade Darcy Vargas, o que somava 890 leitos.45 Se considerarmos que naquele ano Joinville contava com uma população de aproximadamente 193.552 habitantes, temos uma relação de 4,6 leitos para cada mil habitantes, o que poderia ser considerado ideal. Mesmo se desconsiderássemos os leitos destinados à maternidade, teríamos o índice perto de 4, o que é bastante razoável se levarmos em conta o ideal da OMS. Em novembro daquele ano percebe-se o acirramento do movimento grevista da categoria na região. A paralisação atingia três municípios: São Francisco do Sul, Jaraguá do Sul e Joinville, com o Hospital Regional e o Hospital Dona Helena já em greve por não aceitarem a proposta de 70% de reajuste salarial e piso de 690 mil cruzeiros, oferecido pela classe patronal. Temia-se uma nova paralisação do Hospital Municipal São José, e os funcionários se reuniram para decidir se iriam aderir ao movimento.46 No entanto, a decisão foi contrária à greve e, aos poucos, a situação foi normalizando. 45

Falta de leitos: uma doença que contamina todos os hospitais de SC. Jornal de Santa Catarina, Santa Catarina, 25 e 26 ago. 1985. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. 46

Enfermeiros e hospitais não firmam acordo. A Notícia, Joinville, 6 nov. 1985. AHJ.

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Em 1986, com o processo de municipalização da saúde, o São José conseguiu respirar um pouco mais e os jornais já noticiavam que ele “hoje tem sua situação financeira totalmente estável, nada deve a fornecedores ou bancos e, acima de tudo, tem crédito.”47 Percebe-se uma preocupação em melhorar a imagem da instituição e acalmar os usuários, mostrando que a crise havia passado, apesar de se notar, pelos números, que as coisas não haviam mudado tanto assim. Evidenciava-se e valorizava-se o trabalho das voluntárias do São José, através de várias e longas matérias nos jornais, numa tentativa, talvez, de minimizar o problema da falta de funcionários e de recursos, que ainda era evidente. Como todas as instituições públicas ou privadas do país, o São José estava totalmente dependente da política econômica incerta pela qual passava a nação. Faltava dinheiro para tudo. Fiúza afirmava que a situação do hospital voltou a complicar com a decretação do Plano Cruzado, em fevereiro daquele ano, pois com a tabela de conversão “não recebeu mais nenhum desconto dos fornecedores de medicamentos e materiais em geral.” Salientou também o problema dos baixos salários, que provocavam uma evasão de profissionais nos hospitais de todo o Estado. Esse problema é apresentado em várias matérias de jornais e também nos relatórios feitos pelas diferentes gestões do hospital ao Prefeito. “Hoje tem enfermeiro trabalhando como mecânico e enfermeira executando trabalhos de costura.” Terminava pedindo apoio das empresas para que o hospital pudesse contratar mais funcionários para o pronto-socorro, já que “os médicos especialistas prestam serviço ao São José em cumprimento de acordo de cavalheiros, recebendo do INAMPS por atendimento e não como funcionário contratado pelo hospital.”48 Logicamente, com uma situação dessas, seria impossível não existirem problemas. Várias vezes, durante aquele ano, o hospital fora acusado de não atender pacientes no pronto-socorro. Fiúza esclarecia que o hospital tinha falta de plantonistas, dispondo de apenas quatro médicos – um clínico, um cirurgião, um pediatra e outro encarregado da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) – e cerca de 200 médicos de sobreaviso, que só eram chamados em caso de necessidade. Lamentava que o hospital, “além de estar à disposição da sociedade, também está nas mãos de médicos”, referindo-se principalmente ao caso dos ortopedistas, que haviam se desligado do INAMPS, não sendo mais contratados do hospital. Como os casos da maioria dos pacientes que chegavam e ainda chegam ao pronto-socorro do Hospital Municipal São José são de ortopedia e esses médicos estavam trabalhando por conta própria, os 47 48

Hospital S. J. de Joinville paga dívidas e já tem crédito. A Notícia, Joinville, 4 fev. 1986. AHJ. Situação de hospitais não permite plantões. A Notícia, Joinville, 9 ago. 1986. AHJ.

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problemas se ampliavam. Classificaram os atendimentos “em emergenciais (aqueles que necessitam de socorro imediato) e urgenciais (aqueles que requerem cuidados 18 horas após a entrada no hospital). [...] Acho essa posição desumana, mas o hospital não pode fazer nada,” desabafava o superintendente.49 Com certeza o problema do mau atendimento no São José não estava apenas nas mãos dos ortopedistas, pois no relatório de 1986 da própria instituição aparecem várias queixas sobre a má vontade reinante entre o corpo médico e, principalmente, plantonistas, devido aos baixos salários que os submetiam a uma “desvalorização econômica e moral”.50 Não era só o pronto-socorro do São José que não tinha ortopedistas suficientes. Isso também acontecia com o Hospital Regional, mas o interessante é que, mesmo este último dispensando pacientes, as maiores críticas na imprensa iam para o São José: Novamente o Hospital São José é alvo de reclamações por parte de beneficiários que procuram os serviços daquela unidade de saúde. O péssimo atendimento e a falta de atenção de enfermeiros e médicos comprometeram seriamente o atendimento a um caso de fratura. Tratava-se de uma criança de 5 anos, com o pulso fraturado, no domingo, que procurou o Hospital Regional, onde não havia ortopedista. Encaminhado ao Hospital Municipal São José, foi atendido por uma enfermeira e pedido que voltasse no dia seguinte, pois o ortopedista só poderia ser chamado em sua casa “em caso de extrema emergência”. O pai, transtornado, disse: “Não posso admitir tamanha desorganização. Meu filho está correndo risco de sofrer uma deformação mais tarde, e quem vai se responsabilizar por isto? Não sei como pode haver tamanha incompetência tanto de médicos como de enfermeiros logo num local 51 onde a saúde das pessoas deve ser tratada com todo carinho”.

As críticas com certeza passam pela responsabilidade direta do poder local para com o Hospital Municipal; mesmo sendo público, o Hospital Regional sempre teve a “desculpa”, a seu favor, de ser estadual, portanto, não adiantava criticar muito. A busca desesperada por recursos para o São José levaram à sua candidatura a Instituição de Utilidade Pública Federal, idéia que, a princípio, foi contrária à vontade do corpo clínico do hospital, que relutou em aceitá-la, chegando a se manter “em assembléia geral permanente na Sociedade Joinvilense de Medicina, [para] protelar a assinatura, para melhor avaliar [o 49 50

Diretor admite falta de condições no S.J. A Notícia, Joinville, 28 jun. 1986. AHJ.

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1986. Anexo 7. Joinville. Acervo Hospital Municipal São José.

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Hospital acusado de negligência. A Notícia, Joinville, 11 nov. 1986. AHJ. Grifo nosso.

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documento]”. À revelia do corpo clínico, foi assinado um decreto pelo Presidente José Sarney, em novembro de 1986, que declarava o Hospital Municipal São José de utilidade pública federal, o então chamado “Convênio das Filantrópicas”.52 O referido decreto deixava o hospital livre do pagamento de uma série de impostos e possibilitava a obtenção de recursos federais mais facilmente. A medida facilitaria, também, o repasse de recursos ao hospital por parte de empresas privadas, que poderiam deduzi-los do Imposto de Renda, além da possibilidade de isenção da cota patronal junto ao IAPAS. 53 A notícia dava novo alento à direção do hospital. A resistência do corpo clínico se deu, segundo L. Antônio de Araújo, diretor clínico na época, por desconfiança do novo, já que as mudanças anteriores, que a princípio pareciam boas, acabaram, com o tempo, prejudicando financeiramente o médico.54 No entanto, até onde pudemos perceber, o Hospital São José nunca chegou a receber o status de filantrópico, pois não conseguia cumprir uma série de prerrogativas que a lei exigia. Enquanto os hospitais públicos da cidade sofriam com a falta de perspectivas com relação aos repasses, o Hospital Dona Helena rompia definitivamente com o INAMPS e assumia seu caráter de instituição privada, alegando que abriria insolvência se não fizesse isso. A saída, anunciada no jornal A Notícia de 1.º de fevereiro de 1987, piorava ainda mais a situação do São José, para onde passariam a ir, também, os assegurados do INAMPS que até então eram atendidos no Dona Helena. O problema da mão-de-obra especializada no São José, evidenciado desde 1983, agravava-se em 86, a ponto de obrigar o fechamento de uma de suas alas de internação, a ala A, que só voltou a funcionar em maio de 1988.55 O alto índice de rotatividade de pessoal, 60% nos últimos 12 meses, trouxe sérios transtornos ao bom andamento dos trabalhos e proporcionou uma queda violenta na qualidade dos serviços prestados. Funcionários-chaves de muitos anos de casa, portanto tecnicamente os melhores, deixaram o Hospital em busca de melhores salários com o aquecimento da economia após a decretação do Plano Cruzado em março passado. A evasão da mão-de-obra mais qualificada, a difícil contratação de novos funcionários em função do mercado de trabalho 52

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1986. Joinville. Acervo Hospital Municipal São José. p. 122. 53 54

Decreto presidencial beneficia o São José. A Notícia, Joinville, 15 nov. 1986.

ARAÚJO, L. A. de. Luiz Antônio de Araújo: depoimento [fev. 2001]. Entrevistadoras: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Eleide A. G. Findlay. Joinville, 2001. Entrevista concedida ao projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille. 55

Hospital São José reabre ala ‘A’. Mais 40 leitos. A Notícia, Joinville, 14 maio 1988.

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e da escassez da mão-de-obra qualificada para atuar na área de saúde, obrigou (sic) o hospital a reduzir leitos, fechar alas e diminuir o número 56 de cirurgias eletivas.

Apesar das dificuldades, em março do ano seguinte é anunciada a instalação da primeira unidade de quimioterapia do município, que serviria a toda a região,57 e, em maio, o ambulatório, o qual procurava desafogar o pronto-socorro, que atendia em média 8 mil pessoas por mês, e os postos de saúde da Prefeitura e o Posto de Atendimento Médico – PAM –, do INAMPS. Um ano depois o mesmo ambulatório já atendia cerca de cinco mil pessoas/ mês.58 Em novembro estoura nova greve no hospital. Cria-se um impasse entre a direção da instituição e o sindicato dos enfermeiros. A direção ameaçava demitir os funcionários em greve e contratar novos para seus lugares. Artigo de Opinião, não assinado, no jornal A Notícia de 2/12/87 relacionava o problema do hospital aos problemas nacionais: A defasagem salarial atinge hoje não apenas os funcionários do “São José”, mas a todos os assalariados do país. Com exceção dos “marajás” de Alagoas – que contam com o reconhecimento até do Supremo Tribunal Federal – e dos políticos em geral que burlam até o irado “leão” da Receita Federal, todos os brasileiros amargam o maior arrocho salarial da história do Brasil, o que deve ser debitado à nova República e à política de choques heterodoxos da economia.

Após cada greve, mais funcionários saíam da instituição, que cada vez mais sofria com a falta de profissionais capacitados, diminuindo a qualidade nos atendimentos e aumentando a insatisfação daqueles que permaneciam no trabalho. Em seu sexto e último ano de mandato no São José, Fiúza fazia um relatório bastante otimista da situação que aquele hospital passava a ter. Em 1988 o HMSJ foi reconhecido como Centro de Referência pelo INAMPS, após exaustiva luta: “foi definida a reclassificação do hospital [...obtendo] um índice de valorização e desempenho hospitalar de 1.8. Um dos poucos hospitais brasileiros que demonstrou seu verdadeiro valor”. 59 Apesar do investimento 56 57 58 59

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1986. Op. cit., p. 26. Grifo nosso. Tratamento do câncer também em Joinville. A Notícia, Joinville, 3 abr. 1987. Cinco mil pessoas por mês são atendidas no ambulatório. A Notícia, Joinville, 23 mar. 1988.

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1988. Joinville. Acervo Hospital Municipal São José. p. 11.

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na capacitação dos funcionários para superar as deficiências com as demissões e contratações de pessoal inexperiente e da realização de uma série de campanhas para arrecadar fundos, as dificuldades eram tantas que não seriam sanadas tão rapidamente. Convivendo com uma inflação agora na marca de 1.000% ao ano, tornava-se cada vez mais difícil administrar qualquer coisa no país. Internamente os problemas continuavam iguais, as queixas dos funcionários eram constantes e repetitivas: falta de profissionais capacitados, equipamentos ruins (quebrados ou superados), falta de condições de trabalho (locais de trabalho péssimos) etc... Com a promulgação da nova Constituição, em outubro de 1988, o São José teve seus problemas trabalhistas aumentados, pois como sabemos, trabalhamos com uma série de turnos e horários irregulares (12x36, 12 horas aos finais de semana etc.). Em função disto, todo funcionário que se desligava e pertencia a um destes turnos entrava numa Reclamatória Trabalhista reivindicando as horas extras 60 que os juízes consideram justas [...]

Assim, as horas extras deveriam ser incorporadas aos salários, gerando ainda mais distorções “na política interna de salários”, além da necessidade de aumentar salários e estender outros benefícios aos funcionários, como plano de saúde e cesta básica. O hospital centenário estava sendo obrigado a se adequar às novas exigências do fim de século, além das novas diretrizes impostas pela Constituição aos novos conceitos de “qualidade”, da “administração participativa”, ao código do Consumidor e ao Estatuto do Menor. Pode parecer conflitante, a princípio, que o Estatuto da Criança prejudicasse o andamento dos trabalhos no hospital, mas isso se dava, justamente, pela falta de acomodações necessárias aos pais das crianças internadas e não a elas diretamente. “[...] o choque da realidade e condições da nossa pediatria versus Estatuto do Menor [se dava porque] legalmente os pais têm direito de permanecer com os filhos. Isto acarretou uma superlotação de pessoas nos quartos de internação de crianças.”61 A aplicabilidade, porém, das novas diretrizes tornava-se difícil, na prática, devido a: • fragilidade da estrutura: equipamentos em quantidade inferior ao necessário para a demanda que atendemos; • sucateamento de muitos aparelhos e equipamentos; 60

Ibid., p. 54. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1989. Joinville. Acervo Hospital Municipal São José. p. 13. 61

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1991. Op. cit., p. 117.

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• falta de leitos hospitalares; • dificuldade financeira; • recursos humanos de formação insatisfatória para as necessidades.62 A dificuldade em contratações, os baixos salários, a saída de bons funcionários que buscavam empresas que pagassem melhor, a realidade de muitos que permaneciam, mas que, para sobreviver, acabavam tendo mais de um emprego dificultavam as substituições em casos de faltas ou folgas. Esses problemas, aliados à falta de leitos que invariavelmente acontecia por superlotação ou pela necessidade de reformas, acabavam ocasionando uma grande insatisfação por parte dos usuários e, conseqüentemente, uma enorme pressão sobre os funcionários, que sofriam um “desgaste emocional” muito grande sempre que essas situações se repetiam. A rotatividade de funcionários [na recepção] acontece pela mesma razão que os funcionários da internação [e do pronto-socorro], trocando apenas pressão por agressão.[...]O stress vem precocemente pelo grande desgaste no esforço de se fazer o máximo dentro das mínimas condições. Procuramos atender duas prioridades essenciais: internar os pacientes encaminhados pelo Pronto-socorro e os pacientes da Recuperação Pósanestésica.

Os relatórios e as entrevistas orais afirmam que a falta de leitos já fazia parte da rotina do hospital e que “aprender a conviver com esta rotina é o nosso grande desafio.”63 Em julho, trabalhamos o mês todo com leitos; trabalhar com leitos é completamente diferente. O trabalho é rápido, o paciente é bem atendido, não existe aglomeração de pessoas nem reclamações por parte de pacientes e/ou familiares. O ambiente é tranqüilo. A rotina segue normalmente. Os funcionários trabalham descontraídos, desaparecendo 64 aquela sensação constante de impotência em relação à falta de leitos.

Falando sobre as críticas, na imprensa, com relação à falta de leitos no São José, Luíza Jordan, diretora executiva do hospital em 99, explicava: 62

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1991. Joinville. Acervo Hospital Municipal São José. p. 116. 63 HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1990. Joinville. Acervo Hospital Municipal São José. Caixa 23-R-YY, p. 56 a 58. Grifos do original. 64

Ibid., p. 57.

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Vamos falar da ocupação da pediatria. A pediatria [...] tem uma ocupação diminuída por quê? Porque em pediatria você tem berços, você tem berços médios e você tem camas para guris, e gurizões, ou gurizotes ou meninonas, ou coisa parecida, e não dá. Às vezes tem um piá de um metro e meio para internar e tem um berço para seis meses, lá, livre, não dá para encolher o guri para internar. É complicado, não é? E eu não posso fabricar o tempo todo nenê para ter nenê internado, vai internar a criança que precisa! Certo? [...] Então, pediatria tem uma ociosidade natural, em função dos leitos disponíveis. Você às vezes tem uma clientela maior que não ocupa os berços menores, ou até o pequenininho pode ir numa cama grande, mas às vezes não tem laterais, então também é perigoso. Então, ali é função de tamanho, em função 65 de estatura.

O depoimento de Luiza mostra a permanência de uma realidade que faz parte do dia-a-dia de um hospital, mas que quando externado através da mídia, sem as devidas explicações, com certeza colabora para com o desgaste emocional daqueles que convivem com ela. O pronto-socorro sempre foi o local onde mais problemas apareceram no hospital. A falta de uma simples máquina de escrever ocasionou, em março de 1990, um tumulto que só foi resolvido com a chegada da polícia, já que uma pessoa que estava aguardando atendimento se irritou e quase quebrou tudo por ali. Somente três anos depois o pronto-socorro começou a ser informatizado. Por outro lado, em junho do mesmo ano o PS do São José atendeu, ao mesmo tempo, 40 pacientes graves de um acidente com um ônibus na BR 101, fato que ficou gravado na memória de vários médicos e funcionários que trabalhavam na instituição naquele momento. Antigos funcionários contam que todos se solidarizaram e, num instante, chegavam médicos de todos os lados se oferecendo para ajudar, além daqueles que foram chamados por telefone, pois a notícia foi dada nas rádios e televisão, em caráter de urgência, e a mobilização foi enorme. Em pouco tempo todos haviam sido atendidos. Em 1992, uma nova reforma no pronto-socorro do São José, com ampliação física de 267 m2, dá uma sensação de que as coisas haviam melhorado,66 no entanto, não demorou muito para ser novamente criticado, já que no ano seguinte se afirmava que a “área física [é] incompatível com a demanda, trazendo muita angústia [...]. Sempre congestionado, com vários 65

JORDAN, L. H. Luiza Helena Jordan: depoimento [set. 1999]. Entrevistadores: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Adilson Lipinski. Joinville, 1999. Entrevista concedida para o projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille. 66

Id.

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pacientes internados, problemas de fluxo lento dos pacientes e carente de funcionários de enfermagem.”67 O clima de tensão dentro de um hospital é permanente, porém pode ser ainda pior em situações quando baixos salários, falta de profissionais e problemas políticos passam a interferir no cotidiano, chegando a prejudicar o trabalho. Verificando essa situação, em que eram comuns desentendimentos, procurou-se promover a boa convivência entre funcionários, pacientes e

Foto 5 – Pronto-socorro após ampliação de 1992

médicos de uma maneira geral e melhorar a imagem da instituição através de um trabalho de humanização, implantado a partir de 1990. O Projeto Humanizar o Hospital foi continuado [em 91] de tal maneira que houve crescimento nos atendimentos de Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Psicologia, Recreação Infantil, Serviço Social, executados pelos funcionários do Hospital, estagiários da ACE e grupos de voluntários do próprio Hospital e da Rede Feminina de Combate ao Câncer. Continuamos diminuindo a ansiedade e o medo durante as 68 internações. 67

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1993. Joinville. Acervo Hospital Municipal São José. Caixa 23-R-44, p. 9. 68

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1991. Joinville. Acervo Hospital Municipal São José. p. 6.

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Nesse período houve uma reforma no centro cirúrgico e no serviço de radioterapia, novamente contando com doações – CIPLA e BRADESCO –, na ordem de Cr$ 12.754.934,05. Foi criado o “CHAME 190 – Corpo paraHospitalar de Atendimento paraMédico de Emergência –, uma equipe de 24 policiais militares foram (sic) treinados pelos médicos e enfermeiras do pronto-socorro; [e] duas ambulâncias foram equipadas”69 “A recuperação da defasagem salarial, com aumentos reais consideráveis, diminuiu o turnover de 45,72% em junho para 31,78% em dezembro.” Dessa forma, o hospital passou a pagar “o índice mais elevado de salários pagos no Estado, dentro da área de saúde”, fator que, logicamente, deixou funcionários satisfeitos.70 No entanto, a inflação “galopante” na época impedia qualquer estabilidade. O que poderia parecer suficiente em um mês logo em seguida tornava-se defasado, não permitindo investimentos, principalmente na compra de equipamentos importados. Para se ter uma idéia da inflação na época, compare-se os valores do custo da diária, no mesmo ano, para o mesmo quarto, em meses diferentes, ou seja: janeiro – Cr$ 401,28; abril – Cr$ 1.397,18; julho – Cr$ 2.021,56; setembro – Cr$ 3.512,03! As cifras, apesar de parecerem altas, não valiam muita coisa. Tanto que, no ano seguinte, ocorreu nova greve dos funcionários do Hospital Regional, a qual fez superlotar o São José que, em abril, também iniciou nova greve por melhores salários, e dessa vez é o Regional que fica superlotado.71 A paralisação do São José durou 25 dias e ao seu final os funcionários obtiveram 20% de reajuste salarial. Entre 1989 e 1992 percebe-se apenas a presença de poucas e boas notícias sobre o São José no maior jornal em circulação da cidade, como por exemplo: “O velho São José está firme”; “São José amplia as visitas das 8 às 20h”; “Estagiários otimizam trabalho hospitalar”; “Terapia diminui sofrimento”,72 apesar das inúmeras dificuldades apresentadas nos relatórios da própria instituição e até mesmo a ocorrência de uma greve em 91. Isso, talvez, se deva ao fato de que o país vivia numa crise econômica e política sem precedentes, quando as matérias dos jornais estavam muito mais voltadas ao noticiário nacional, com cinco Planos Econômicos, as primeiras eleições 69

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1990. Joinville. Acervo Hospital Municipal São José. Caixa 23-R-YY. Em apenas 4 meses de funcionamento, o disque 190 já havia atendido 890 chamadas. p. 5. 70 71 72

Ibid., p. 11 e 14. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1991. Op. cit., p. 13. A NOTÍCIA. Joinville, 15 set. 1991, 6 nov. 1992 e 12 dez. 1992.

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presidenciais diretas, o seqüestro das poupanças, o escândalo PC Farias, popularmente conhecido como Collorgate, e o conseqüente impeachment do Presidente (durante aquela gestão, o dono do jornal era também, na época, Secretário Municipal, preservando, assim, a imagem do hospital na mídia). Logo no início de 1993, no entanto, o título da matéria é a seguinte: “Atendimento em Pronto-socorro é precário” e, ainda, “Hospital São José pode parar em fevereiro”.73 Os problemas nunca deixaram de existir, mas, certamente, eles podem ser mais ou menos evidenciados na mídia, dependendo dos interesses em jogo. Essa última matéria mostrava que os problemas salariais, na verdade, continuavam presentes: Funcionários reclamam de uma defasagem salarial de 116% e vem desde o último acordo coletivo. O presidente do Sindicato [dos empregados em estabelecimentos de serviços de Saúde de Joinville, Lourival Piseta] denuncia que o Hospital – o único da cidade que atende pelo INSS – está fechando alas por falta de funcionários. “Diariamente dezenas de funcionários têm procurado 74 o sindicato para formalizar os seus pedidos de demissão”, revelou[...]

Entre as reivindicações, estavam a criação de um plano de cargos e salários e o pagamento de insalubridade. Não se pode esquecer que em 1993 a inflação chegou à marca de 2.500%! As denúncias de que pacientes do Regional eram enviados ao São José e vice-versa, sem serem atendidos, continuavam. Trata-se do “empurraempurra entre os hospitais S. José e Regional”; devido à falta de leitos, um manda para o outro e pessoas têm morrido no trajeto.75 Em agosto daquele ano já era anunciada nova greve no São José, que acaba se concretizando em 30 de novembro. O Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviço de Saúde de Joinville [...promove] uma assembléia [em que] reclama da direção do Hospital São José, que deixou de pagar 51% de reajuste salarial e de ter fechado a creche e não ter providenciado sua reabertura. A assembléia 76 pode decidir pela paralisação. 73 74 75 76

A NOTÍCIA. Joinville, 21 jan. 1993 e 26 jan. 1993. A NOTÍCIA. Joinville, 26 jan. 1993. Vereador denuncia que hospitais negligenciam. A Notícia, Joinville, 14 abr. 1993.

Funcionários do Hospital São José podem parar. A Notícia, Joinville, 19 ago. 1993. Sobre as várias greves que ocorreram no Hospital Municipal São José, ver tabela 12.

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Renato Castro afirmava que deu, naquele ano, 735% de aumento aos funcionários e que o fechamento da creche não tinha sido feito por ele. Enquanto o superintendente do hospital dizia que a greve só abrangia 105 dos funcionários, o presidente do sindicato dizia que eram 70%, em esquema de rodízio, pois o hospital estava superlotado.77 O Secretário Municipal de Saúde afirmava que não havia como repor 26% nos salários dos funcionários do São José, já que a Prefeitura já havia repassado, durante três meses, a folha de pagamento do hospital, pois o SUS não o havia feito, e que o Fundo Municipal de Saúde destina verbas também para o Hospital Regional, Maternidade Darcy Vargas, para 42 postos de saúde, dois PAMs e para a Unidade Sanitária do Município. O Fundo Municipal de Saúde tem uma previsão de caixa de US$ 1,5 milhão. A folha de 78 pagamento do São José é de CR$ 65 milhões.

Dessa forma, as negociações não avançavam e a maioria dos doentes tinha que procurar outros hospitais, principalmente o Regional. Apenas após 24 dias de greve ela é suspensa, com a promessa de que 26,49% das perdas salariais seriam repostas até março do ano seguinte.79 O relatório do hospital registra o fato da seguinte forma: “O último mês do ano perdeu um pouco do seu brilho, [...devido] a greve dos funcionários. Foram 25 dias longos e tristes. [...] as internações caíram numa proporção de 30 para 10 internações por dia”.80 No relatório anual da Prefeitura, o Hospital Municipal São José é apresentado como “um dos mais antigos e onerosos estabelecimentos públicos de Santa Catarina”.81 Além disso, o Hospital [...] solicitou junto ao MEC sua inscrição no Fator de Incentivo ao Desenvolvimento do Ensino e Pesquisa em Saúde (FIDEPS) e, em fevereiro de 1994, o HMSJ foi considerado como Hospital Escola, 82 o que proporcionou um acréscimo de 50% na receita das AIHs. 77 78 79 80

Ibid. e Greve inviabiliza atendimento no São José. A Notícia, Joinville, 1 dez. 1993. AHJ Fundo de Saúde sem verba para socorrer Hospital. A Notícia, Joinville, 8 dez. 1993. AHJ. Funcionários do São José encerram greve de 24 dias. A Notícia, Joinville, 25 dez. 1993. AHJ.

HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1993. Joinville. Acervo Hospital Municipal São José. Caixa 23-R-44. p. 53.

81 PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1993. Administração Wittich Freitag e José Carlos Vieira. Joinville, 1993. 82 PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1994. Administração Wittich Freitag e José Carlos Vieira. Joinville, 1994. p. Y 3.

163

Fotos 6 e 7 – Centro de Ensino e Pesquisa

Aos poucos as modificações estruturais iam sendo feitas, em grande parte favorecidas pela implantação do Plano Real, em julho de 1994, que passou a dar uma certa estabilidade econômica. Em 95 o corpo de funcionários do hospital sente essas mudanças, com a implantação do Regime Único e com o primeiro concurso público realizado para a instituição, este último por exigência do Tribunal de Contas da União. 83 Nessa época a Prefeitura repassava 70% da folha de pagamento do São José. 83

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1995. Administração Wittich Freitag e José Carlos Vieira. Joinville, [1996]. Ver também HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1995. p. 3.

164

As mudanças poderiam ser pequenas ou até mesmo não aparecerem aos olhos da imprensa ou da população em geral, mas nota-se um grande entusiasmo por parte de alguns funcionários. O São José não é mais o “Zequinha” de outrora. Pusilânime, desacreditado, carente, com funcionários desmotivados, com grande turnover e sendo criticado diariamente pela imprensa. O São José de hoje tem credibilidade, tem força política, tem competência administrativa e o seu quadro de funcionários tem orgulho organizacional. Diante desta mudança histórica na vida do São José, podemos hoje 84 exigir da população o respeito que a instituição merece.

Essa realidade fez com que as pessoas se acostumassem a evitar os ambulatórios e postos de saúde nos bairros e fossem diretamente ao prontosocorro do São José, pois, apesar da demora no atendimento, dizem que “ali são sempre atendidos”, prática essa que permanece até os dias atuais. Uma senhora, entrevistada após atendimento no pronto-socorro, nos disse que só tinha dois passes de ônibus e que, como sabia que se fosse ao ambulatório do bairro não encontraria médico, foi direto ao São José, pois de outra forma não teria mais passes para pegar outros ônibus.85 Várias outras pessoas fizeram declarações parecidas com a dessa senhora, mostrando o não funcionamento do sistema de apoio à saúde no município. A diferença praticada entre o pagamento feito aos médicos pelo SUS e aquele acertado pela Associação Médica Brasileira (AMB) sempre foi reclamada pela classe. Essa diferença de valores era, em 1993, de aproximadamente oito vezes mais entre uma e outra, ou seja, uma consulta pelo SUS saía a Cr$ 30 mil, e uma particular, a Cr$ 260 mil.86 Em 1996, comentando o pedido de isonomia entre a tabela do SUS e a da Associação Médica Brasileira (AMB), feito por médicos da rede pública na cidade, [o Secretário da Saúde] Edson Campos disse que considera justo. [...] A diferença de preços entre as duas tabelas chega a ser de 10 vezes o valor pago, como é o caso de consultas. Pelo SUS, o médico recebe R$ 2,41 por consulta. Pela tabela da AMB, R$ 20,00.87 84 85

Ibid., p. X-60.

Depoimento de paciente, não identificada, às autoras, em de julho de 2002, nas dependências do pronto-socorro do Hospital Municipal São José. 86 87

Saúde depende de mais dinheiro e pessoal. A Notícia, 21 abr. 1993. A NOTÍCIA. Joinville, 12 jun. 1996.

165

Já em 1998, o mesmo médico, agora como superintendente do Hospital Municipal São José, voltava a defender a isonomia, mostrando no Conselho Municipal de Saúde os valores médios pagos pelos dois tipos de consultas praticados naquela instituição, ou seja, R$ 27,09 pagos pelo SUS e R$ 295,14 pelo setor privado, sendo o custo médio por paciente de R$ 67,57.88 A renda maior do Hospital Municipal São José sempre foi a provinda do SUS e atualmente, com a diminuição dos atendimentos a alguns convênios para outros hospitais, podemos ter uma idéia de como a dívida está crescendo. Tabela 6 – Faturamento SUS X convênio

Fonte: HMSJ

Os dados demonstram claramente que a maior fonte de receita do HMSJ, como já observado anteriormente, concentra-se no atendimento aos usuários do SUS, sendo dessa forma extremamente dependente das verbas federais, com sua histórica defasagem em relação aos valores praticados pelos outros convênios e dos provenientes do atendimento aos pacientes particulares. Os outros convênios representam em média 21,7% do faturamento total. Se considerarmos que desde 1996 a tabela de valores do SUS para os serviços prestados pelos hospitais públicos não sofria reajuste, é possível compreender, em parte, as dificuldades financeiras do hospital. Atualmente o Ministério da Saúde, pela portaria 1.188 de 26 de junho de 2002, reajustou o valor das consultas do pronto-socorro (consultas simples – até 4 horas no local; consulta de observação – de 4 a 24 horas) e das consultas ambulatoriais, denominadas 88

Dados extraídos do quadro Evolução da Dívida abril/1998, atas do Conselho Municipal de Saúde.

166

de consultas especializadas. Para a consulta simples o hospital passará a receber R$ 8,16. O gestor da saúde do município é quem efetua o repasse do Ministério da Saúde para o hospital. O serviço pactuado entre a Secretaria Municipal de Saúde e o HMSJ, em vigência desde 1999, foi baseado em uma série histórica de 1997, que estabeleceu o valor do teto financeiro fixo desse serviço em R$ 1.155.000,00, assim distribuído: serviços internos R$ 697.000,00 e R$ 458.000,00 para serviços externos. Na tabela 7 é possível dimensionar a importância do reajuste do valor das consultas do SUS para o pronto-socorro do hospital, já que 96%, do total geral, dos atendimentos realizados destinaram-se aos usuários do SUS. É significativo, ainda, observarmos o decréscimo dos atendimentos realizados a detentores de planos privados. Tabela 7 – Pacientes atendidos no pronto-socorro X convênio

Fonte: HMSJ

Com relação às internações hospitalares, novamente prevalece o paciente do SUS quando comparado aos outros convênios, aí incluídos os particulares. É importante destacar que todo e qualquer paciente do sistema público quando permanece por mais de 24 horas na instituição, mesmo que seja em observação no pronto-socorro, passa a ser considerado como internado. Daí em diante sua estadia será remunerada pela AIH, cujo valor varia de acordo com a especialidade. No momento, o hospital tem recebido um valor médio de R$ 900,00 por AIH. Porém, convém ressaltar que o teto de AIHs do hospital foi fixado em 730 unidades, e sua remuneração está contida no valor financeiro fixo estabelecido pela Secretaria Municipal de Saúde, ou seja, R$ 697.000,00. Outra importante análise que podemos realizar a partir dos números observados refere-se à participação dos recursos provindos dos pacientes dos planos de saúde privados. Com a vinculação de um hospital privado com a seguradora de saúde Bradesco e a construção do hospital da cooperativa médica, 167

Tabela 8 – Pacientes internados por convênio

Fonte: HMSJ

o CHU, em 2001, a precária situação do hospital municipal ficou ainda mais comprometida. O depoimento do médico Luiz Antonio de Araújo é significativo: “ficou carente desse tipo de paciente [o conveniado] que gerava uma renda importante para o hospital.[...] Os pacientes particulares, os pacientes de convênio, eles acabaram desaparecendo do hospital, lenta, gradual e progressivamente.” Prossegue referindo-se ao fato de que o SUS sempre foi uma grande esperança dos médicos: “sempre torcemos para que desse certo, justamente para atender o paciente carente, o paciente que não tinha condições de ter um plano de assistência à saúde particular”. E ainda declara: “Hoje, na nossa maneira de entender, os pacientes do SUS, na área de medicina curativa, dentro dos hospitais públicos, eles têm um atendimento de segunda categoria”. 89 Fica claro que o atendimento de qualidade inferior ao paciente do Sistema Único de Saúde pode ser atribuído em grande medida às dificuldades encontradas pelos profissionais da saúde em contar com as condições mínimas necessárias para realizar um serviço a que todo cidadão tem direito. Outro grande problema de Joinville e do Hospital São José foi o de falta de leitos. Se em 1985 a relação população–número de leitos hospitalares era satisfatória, em 1996 a situação era bem diferente. Eram apenas 546 leitos para mais de 400 mil habitantes. “[...] para o atual número de habitantes da cidade a Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza um mínimo de 980”. O déficit era de 434 leitos. 89

ARAÚJO, Luiz Antonio. Op. cit.

168

Com cerca de 800 funcionários, o São José dispõe de 297 leitos ativados, sendo 52 para apoio (recuperação, pós-operatório, hemodiálise, oncologia, observação, cirúrgico, quimioterapia e infantil). Dos 245 leitos ativos para internação, 55 deveriam atender exclusivamente pessoas com algum tipo de convênio, ficando os 190 restantes para pacientes do SUS. “Apesar de precisarmos de dinheiro dos convênios, na medida do possível internamos pacientes do SUS em quartos básicos e apartamentos”, explica a coordenadora do departamento de registro 90 do hospital, Therezinha Ferreira Claudino.

Uma das saídas para o problema passou a ser a internação domiciliar. O Secretário Municipal de Saúde Edson Campos declarou: “Implantaremos o programa com pacientes cuja complexidade de tratamento seja menor, como os terminais e os com doenças crônicas [...], depois ampliaremos o atendimento para pacientes com outros tipos de problemas”.91 No ano 2000, os indicadores sociais do município apontavam como sendo 962 o total de leitos na cidade e uma relação de 1,8 leito hospitalar por mil habitantes,92 dado extremamente preocupante, isso sem contarmos que Joinville e em especial o Hospital Municipal São José atendem a uma população muito maior do que a da cidade. Essa questão do atendimento que o Hospital Municipal São José sempre prestou às cidades vizinhas, colocado, invariavelmente, como um dos fatores responsáveis pelo problema financeiro da instituição, pode ser observada na tabela 9. Fez-se um acordo com a AMUNESC – Associação dos Municípios do Nordeste do Estado de Santa Catarina – pelo qual as cidades de São Francisco do Sul, Garuva, Barra do Sul, São Bento do Sul, Campo Alegre, Rio Negrinho, Itapoá e Araquari, que compõem, com Joinville, a associação, repassariam uma certa quantia, a elas destinadas pelo SUS, diretamente a Joinville, em troca do atendimento hospitalar especializado oferecido pelo Hospital Municipal São José. Essa medida estava tentando gerenciar uma realidade existente praticamente desde a fundação da instituição, que sempre atendeu aos municípios vizinhos, mas nada recebia por isso. O São José foi reconhecido como de referência para a região, já que não tem sentido construir um serviço de radioterapia ou quimioterapia ou um grande serviço de cirurgia, se existe um hospital terciário ou 90

Falta de leitos deixa hospitais em situação delicada. A Notícia, Joinville, 17 jul. 1996. p. A-5. AHJ. A relação população/n.º de leitos em Joinville pode ser vista na tabela 9. 91

Id.

92

INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO DE JOINVILLE – IPPUJ. Joinville – Cidade em dados. 2001/2002. Joinville: Prefeitura Municipal, 2001. p. 125.

169

quartenário que faz isso, não tem sentido começar a pensar em fazer 93 tratamento de câncer em Garuva, [ou] em São Francisco. Tabela 9 – Movimentação de pacientes atendidos pelo Hospital Municipal São José de 1970 a 2001

Fontes: Relatórios dos superintendentes (1970 a 1992), estatísticas já elaboradas do Hospital Municipal São José (1993-2001), Joinville em dados e jornais. Para os anos em branco não encontramos dados em nenhuma das fontes citadas. *Em 1986 havia 89 leitos desativados, devido ao fechamento da ala A durante um ano. **Em 1987 estavam desativados 130 leitos no HMSJ. ***Em 1993 os jornais anunciavam fechamento de leitos no Hospital Municipal São José devido à falta de funcionários. 93

CAMPOS, E. S. de. Edson Sydney de Campos: depoimento [fev. 2001]. Entrevistadoras: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Eleide A. G. Findlay. Joinville, fev. 2001. Entrevista concedida ao projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille.

170

O que aconteceu, no entanto, é que se legitimou uma prática corrente, mas os problemas financeiros continuaram, já que os “pacientes que vêm para serem atendidos em Joinville são pacientes que demandam maiores cuidados, maiores gastos, maior tempo de internação, porque são pacientes mais graves. Esta é uma regra geral.”94 Assim, como o repasse do SUS é sempre pequeno, as ações médico-hospitalares mais complicadas e que custam mais geralmente apresentam déficits. A idéia de descentralizar e encontrar as especificidades de cada instituição hospitalar começa a se concretizar em dezembro de 1996, quando o tratamento da AIDS recebe apoio em Joinville, com a inauguração do Hospital Dia no Hospital Regional Hans Dieter Schmidt. Era o primeiro no Brasil a operar totalmente informatizado, [assim] ser[ia] possível ter o perfil dos pacientes, registrar a evolução de sua saúde e ter um centro de dados interligado com a Secretaria Municipal de Saúde 95 e com o centro de dados do próprio hospital.

Em janeiro de 1997 Luiz Henrique da Silveira assume seu segundo mandato como Prefeito de Joinville, e uma de suas primeiras ações ligadas à área da saúde do município foi reduzir de 50% para 30% o repasse da Prefeitura para a folha de pagamentos do Hospital Municipal São José, por estar “convencido de que o sistema de saúde estava consumindo dinheiro demais”.96 A partir daí a crise, que já vinha de longa data, acentuou-se, até que no ano seguinte ele resolveu devolver ao governo do Estado o Hospital Regional e a Maternidade Darcy Vargas como forma de reservar mais dinheiro ao São José, que acumulava uma dívida com fornecedores no montante de R$ 1.800.000,00. Se na gestão anterior o município havia gasto com o São José “em torno de R$ 24 milhões, [...] o atual governo municipal terá despendido R$ 16 milhões ao final de quatro anos de gestão”, comentava a mesma matéria do jornal A Notícia. A tabela 10, na página seguinte, mostra como estavam distribuídas as dívidas do Hospital Municipal São José em 1998. Logo no início de 1997 instaurou-se uma nova greve no Hospital Regional e na Maternidade Darcy Vargas, e novamente o problema era salarial. O mais novo hospital público da cidade foi criado por um grupo de médicos frustrados com a falta de perspectivas na área de saúde. Treze 94

HAUSEN, O. S. Osmar Sérgio Hausen: depoimento [fev. 2001]. Entrevistadoras: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Eleide A. G. Findlay. Joinville, fev. 2001. Entrevista concedida ao projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille. 95

96

Inaugurado Hospital Dia para AIDS. Diário Catarinense, Florianópolis, 18 dez. 1996. p. 31. AHJ. Redução de verbas agrava crise na saúde. A Notícia, Joinville, 26 jan. 1999. A17. AHJ.

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anos após sua fundação, passa por dificuldades com deterioração de 97 sua estrutura e reduzido quadro funcional. Tabela 10 – Relação das dívidas do Hospital Municipal São José – abril/98

Fonte: Conselho Municipal de Saúde

Em maio do mesmo ano, em meio a enorme crise na saúde do município, o Secretário Municipal de Saúde Iberê Pires Condeixa anunciava a construção de 5 novos hospitais em Joinville, que custariam mais de R$ 60 milhões: Centro Hospitalar UNIMED, Hospital da Mulher (Maternidade Darcy Vargas), Hospital Infantil, Hospital do Futuro (Dona Helena), Hospital de Doenças Crônicas e Degenerativas (Fundação Pró-Rim).98 Destes, somente o Hospital da UNIMED foi inaugurado em fins de 2000, e o Hospital Infantil em abril de 2003 ainda estava em construção, o primeiro particular e o segundo do Estado. O Hospital de Doenças Crônicas e Degenerativas é uma unidade do Hospital dos Rins. Dos outros não se tem notícias. Enquanto todos esses investimentos eram anunciados, mesmo não sendo dos cofres da Prefeitura, uma comissão, formada por membros da Sociedade Joinvilense de Medicina, pela Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores, do Conselho Municipal de Saúde e do Centro de Direitos Humanos de Joinville, decidia que as alas A e B do HMSJ deveriam ser fechadas por falta absoluta de condições de atender humanamente qualquer pessoa. Essas alas, localizadas na parte mais antiga do hospital, apresentavam todo tipo de problemas que um prédio de mais de 90 anos poderia ter, ou seja: rachaduras, umidade e vazamentos por todos os lados e até mesmo a presença de ratos e baratas!99 A cada novo problema surge uma solução. Para evitar o fechamento das alas A e B do São José, devido às suas precárias condições, surge a idéia de tombá-las como patrimônio histórico. Com o tombamento, aquelas alas seriam reformadas e a parte arquitetônica restaurada, a um custo de R$ 3,5 milhões. Como o Prefeito só dispunha de R$ 1,5 milhão, o restante seria obtido da iniciativa privada, através de incentivos fiscais, possíveis pela Lei Sarney de preservação de bens 97 98

Dificuldades marcam trajetória do Regional. A Notícia, Joinville, 15 mar. 1997. AN Cidade. AHJ.

Novos hospitais suprirão demanda por 50 anos. Diário Catarinense, Florianópolis, 5 maio 1997. p. 28. Caixa de recortes – Hospitais. 99

Entidades pedem interdição de alas do São José. A Notícia, Joinville, 22 maio 1977. p. D-3.

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culturais.100 O projeto estava sendo assessorado pelo Instituto de Patrimônio Histórico da Bahia. Sem dúvida o prédio antigo daquele hospital tem uma relação bastante importante para com a história da cidade, e sua restauração foi em parte concluída em 2002, abrigando, inclusive, área para um pequeno memorial que contará parte dessa história. Eram medidas paliativas, mas que demonstravam o carinho que algumas pessoas tinham pelo hospital.

Fotos 8 e 9 – Áreas antigas do HMSJ tombadas pelo IPHAN, antes da restauração

Procurando melhorar o atendimento e reduzir custos, a Secretaria da Saúde adotou, no início de 1998, uma política de administração única nos hospitais da cidade: 100

Hospital São José será reformado. Diário Catarinense, Florianópolis, 6 jun. 1997. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ.

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Centralizar a administração dos hospitais públicos de Joinville. Esta estratégia pode resultar na recuperação do sistema de saúde municipal. Nomeado há alguns dias, o médico anestesiologista Renato Castro irá coordenar a administração dos hospitais Regional Hans Dieter Schmidt e Municipal São José e a Maternidade Darcy Vargas. A principal e, talvez, a mais importante meta da coordenadoria é adotar na Secretaria Municipal de Saúde e nos hospitais uma política única, acrescenta [Castro]. O processo de centralização dos ramos da saúde já está em desenvolvimento. As cozinhas das unidades foram reunidas em uma só, e a sede ficou nas dependências do Hospital Regional. O departamento de compras ficou na secretaria, o que resultou no uso de materiais de 101 consumo e medicamentos padronizados.

A padronização tinha como objetivo a renegociação com fornecedores. A Comissão Municipal de Saúde reclamava o aumento do número de funcionários dos hospitais públicos e de sua infra-estrutura e pedia, por intermédio de seu presidente Arlindo Leite, mais recursos, já que: a saúde aqui no município é caótica e não posso admitir que a situação continue assim. Percorrer os hospitais, os postos de saúde e os ambulatórios deixa qualquer um indignado. [...] Esperávamos pela assinatura do convênio no final do ano passado, mas isso não aconteceu, por causa de brigas políticas entre a Prefeitura e o Governo do Estado. Na Capital, fazem ressonância magnética através do SUS sem problema algum, enquanto aqui continuamos esperando um parecer favorável [...].102

Parece que a acusação de haver “brigas políticas” atrapalhando o bom funcionamento do sistema de saúde em Joinville, feita pelo presidente do Conselho Municipal de Saúde, tinha algum fundamento, se observarmos as colocações do então Prefeito Luiz Henrique a respeito da municipalização da saúde que, segundo ele, “ultrapassa a capacidade financeira do município [...], o cobertor é menor que o corpo”. Com a finalidade de refletir melhor sobre a possibilidade de uma relação entre governo municipal, estadual e as ações efetuadas no Hospital Municipal São José em cada período, elaboramos o quadro 11. Percebendo a falta de investimentos para resolver os problemas que afligiam o São José, Edson Campos e Hamilton Nascimento pediram demissão depois de o Prefeito Luiz Henrique alegar incapacidade financeira para aumentar o 101 102

Centralizada administração de hospitais. A Notícia, Joinville, 3 abr. 1998. id.

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repasse de verbas para o Hospital. “Não tínhamos mais como trabalhar”, 103 explicou Campos, referindo-se à falta de medicamentos e demais insumos.

Quadro 11 – Relação entre partidos de dirigentes municipais e estaduais de 1967 a 2002 *A Organização Mundial de Saúde – OMS – preconiza 4 ou mais leitos para cada mil habitantes como a relação ideal para cada município. Não possuímos os índices para os anos que se encontram em aberto.

Com a saída de Campos da direção do São José, o Prefeito enviou à Câmara um Projeto de Lei modificando a estrutura administrativa daquela instituição. O hospital passaria a ser administrado por um conselho formado por pessoas da comunidade e seria presidido pelo Vice-Prefeito J. Henrique Carneiro de Loyola. Propôs-se, ainda, que a diretoria executiva do São José fosse assumida pela ex-administradora do Hospital de Blumenau, o que gerou uma enorme polêmica na cidade, fazendo o Prefeito voltar atrás em sua 103

Prefeito critica municipalização da saúde. A Notícia, Joinville, 1 ago. 98, e também Diário Catarinense, Florianópolis, 31 jul. 98. AHJ.

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decisão.104 Essa atitude do Prefeito foi recebida com muitas críticas pelo Conselho Municipal de Saúde, que não havia sido informado e muito menos consultado sobre tal idéia.105 Com os jornais anunciando que a dívida do São José já chegava a R$ 4 milhões e muitas críticas caindo sobre o Prefeito, que mostrava “insensibilidade diante do problema”,106 Luiz Henrique procurou amenizar a questão liberando em 1998 R$ 1,8 milhão para o hospital. No entanto, em janeiro do ano seguinte, ainda faltavam ser repassados “R$ 279 mil, parcela que deveria ter sido usada para a compra de remédios em dezembro”, afirmava a diretora do São José, Luiza Jordan.107 Junto com a liberação de recursos para o São José, o secretário Iberê Condeixa anunciou ontem que o município vai pagar somente a tabela do SUS para anestesias e endoscopias (hoje paga valor maior com base na Tabela da Associação Médica Brasileira), pagará somente as 1.156 hemodiálises que constam na série histórica (a demanda atual é de 1.870), não atenderá mais pacientes de outros municípios e garantirá 108 menor variedade de medicamentos.

Em 22 de outubro de 1998, aconteceu uma manifestação na frente do São José, promovida por funcionários, médicos, voluntários etc., que abraçaram o hospital e interditaram a avenida Getúlio Vargas, em represália à exoneração de Renato Castro da superintendência do São José. Reforça-se a presença de fortes ingerências políticas na gestão administrativa do hospital municipal. A pressão social em prol da saúde aumentava dia a dia. Em 27 de outubro do mesmo ano uma manifestação, liderada por voluntários da Ação Social Saúde Comunitária, da pastoral da saúde da Igreja Católica, e integrantes do sindicato dos servidores, em frente à Prefeitura, levava um documento com cerca de 10 mil assinaturas pedindo o afastamento do então Secretário da Saúde e mais atenção à saúde, em especial ao Hospital Municipal São José.109 104 105

Hospital vai ser administrado por Conselho. A Notícia, Joinville, 16 out. 98. AHJ.

CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE JOINVILLE. Ata da reunião extraordinária de 13 set. 1999. 106 107

São José. Crise ameaça atendimentos de emergência. A Notícia, Joinville, 20 out. 1998. AHJ.

Piora crise em hospitais de Joinville. Diário Catarinense, Florianópolis, 5 jan. 1999. p. 32. AHJ.

108

Liberado R$ 1,8 milhão para o Hospital São José. Diário Catarinense, Florianópolis, 23 out. 98. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. O jornal A Notícia também noticia, na mesma data, em matéria de página inteira, no caderno AN Cidade, a manifestação em frente ao São José. 109

A NOTÍCIA. 28 out. 1998. AN Cidade. AHJ.

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Todas essas manifestações populares foram ignoradas nos documentos oficiais do hospital e da Prefeitura. O ano de 1998 encerrou com o pronto-socorro do São José fechado, atendendo apenas a casos de emergência e urgência. Foram canceladas as cirurgias eletivas e as novas internações, por falta absoluta de condições de funcionamento, situação que permaneceu por mais de 50 dias. Até março do ano seguinte a situação era a mesma, o que ocasionou uma denúncia, na Procuradoria Geral da Justiça, contra a Prefeitura, por parte do Conselho Regional de Medicina.110 Mais uma vez, o São José e o Regional “compartilhavam sua pobreza”, ou seja, com as atividades do São José restringidas, superlotava o Regional, que, convivendo com a penúria financeira de sempre, viu sua situação piorada, chegando ao cúmulo de ter, em um único dia, canceladas “oito cirurgias eletivas por falta de anestésicos” e de “algumas crianças que apresentavam suspeita de meningite [...não terem sido] submetidas ao exame de punção lombar pela falta de profissionais.” Segundo o diretor técnico do Hospital Regional na época, Nelson Quirino, “Se os casos da doença [meningite bacteriana] não tivessem sido reduzidos, o problema seria mais grave”, comentando o fim dos remédios contra a doença e a necessidade de uma abertura especial de crédito em uma farmácia da cidade, para a reposição deles. 111 Alguns dos problemas sobre o HMSJ apresentados e discutidos no Conselho Municipal de Saúde são bastante antigos e toda a população que utiliza o São José os conhece, principalmente aqueles relacionados ao atendimento no pronto-socorro, ou seja, que o PS do São José está sempre superlotado porque, ao contrário do que diziam os Prefeitos, os postos de saúde não têm cumprido o seu papel, conforme discutido no capítulo referente a Joinville e a saúde. As pessoas entrevistadas no pronto-socorro do São José demonstraram saber exatamente quais são as deficiências dos postos de saúde e por isso vão direto ao São José. Algumas pessoas que não tinham essa experiência e foram ao PA tinham sido encaminhadas ao São José para fazer radiografia, o que lhes custou outras tantas horas na fila de espera. O comentário era sempre o mesmo: “se soubesse teria vindo direto para cá. Agora vou ter que voltar lá com a radiografia e esperar mais não sei quantas horas para ser atendida pelo médico”.112 As colocações de acompanhantes de várias pessoas que estavam “internadas” nos corredores do Hospital Municipal São José, em 2001, 110

As matérias nos jornais da cidade sobre a crise da saúde em Joinville são constantes e bastante contundentes. Ver, principalmente, o Diário Catarinense de 5 jan. e 6 fev. de 1999 e A Notícia de 23 jan. e 26 jan. de 1999.

111 112

Piora crise em hospitais de Joinville. Diário Catarinense, Florianópolis, 5 jan. 1999. p. 32. AHJ.

Entrevistas, sem identificação, registradas no PS do Hospital Municipal São José. Julho de 2002.

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refletiam a consciência da relação daquela situação com a indiferença do poder público municipal para com a saúde. Não havia críticas ao atendimento médico, mas sim ao descaso para com o próprio hospital e, conseqüentemente, para com seus usuários. “É um absurdo o que está acontecendo em Joinville. Pagamos um IPTU caríssimo e mesmo assim não vemos resultados. O Prefeito pensa apenas em asfaltar as ruas e esquece das prioridades”, comentou Terezinha Retzlaff, acompanhante de sua sogra que estava internada na sala de observação do São José, por falta de leitos nos quartos.113 A esposa de um paciente com câncer disse: Não é a primeira vez que ficamos no corredor. Me admira deixarem ele com esta doença aqui nesse estado [...], sei que todos aqui estão com problemas, mas o que eu gostaria de saber é onde está a verba pública destinada à saúde. Acho isso uma falta de respeito com todos que estão 114 aqui, pois além de estarem doentes têm que dormir em corredores.

A política administrativa implantada para o Hospital Municipal São José nos últimos anos reflete a visão mercantilista neoliberal que, infelizmente, também está sendo dirigida à saúde pública. Além disso, devemos entender que a qualidade tornou-se a premissa básica para garantir a permanência de qualquer organização do mercado. Dessa forma, o que se busca é uma vantagem competitiva que diferencie o hospital frente aos concorrentes, através do modelo de gestão aplicado. A filosofia mercadológica é premiar os mais competentes, ou seja, o que conta é a capacidade administrativa frente às turbulências cíclicas, transformando-as em oportunidades de crescimento e posicionamento organizacional. Sendo assim, fica implícito que a administração profissional não deve ser embasada no empirismo como evidenciamos em grande parte dos hospitais brasileiros, e sim na aplicação de técnicas realmente eficazes que proporcionam melhores resultados com menores custos. Frente ao 3.º milênio, restará às organizações da área da saúde que anseiam por progresso buscarem alternativas que as promovam à prosperidade.115

O hospital passa, portanto, para uma nova fase, em que a qualidade total é a meta, assumindo cada vez mais claramente suas características de empresa. Com certeza, a qualidade é o que todos queremos, mas os custos sociais que uma visão por demais mercadológica pode impor devem ser questionados. Enquanto isso, o São José vai se adequando às mais recentes conquistas das áreas da administração. 113 114 115

Saúde Pública agoniza. Correio Médico, Joinville, abr. 2001. n. 50, p. 8. Id. PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1999. Op. cit., p. 292.

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5 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS SOBRE O HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ

Falar em representações sociais, como dissemos no início deste livro, significa mostrar as variadas formas pelas quais diferentes grupos sociais enxergam um mesmo objeto, no nosso caso uma instituição, um hospital. Nosso objetivo neste capítulo é, portanto, verificar como cada grupo da sociedade joinvilense reconhece o Hospital Municipal São José e, principalmente, como expressa essa representação através de suas ações, já que “mesmo as representações coletivas mais elevadas não têm existência, não são realmente tais senão na medida em que comandam atos”.1 Para conseguir esse intento, subdividimos o capítulo em quatro partes, ou seja: a primeira trata das representações encontradas por meio de entrevistas orais e da mídia, demonstrando o poder exercido por esta última na elaboração e fixação das representações coletivas; a segunda, denominada “O ‘olhar’ da rua para o hospital”, discute os resultados da pesquisa de campo realizada com 400 pessoas em várias partes da cidade; a terceira – “Mesmo sendo SUS poderia ser melhor” – discute principalmente os questionários de alta aplicados pela própria instituição aos internados no hospital; e a quarta procura desmistificar que existe a “cultura” do pronto-socorro, ou seja, que as pessoas vão ao pronto-socorro do Hospital Municipal São José por costume, cultura, e não porque realmente precisam ir para lá. Nessa última parte utilizamos, principalmente, os resultados advindos de pesquisas de campo aplicadas no próprio pronto-socorro.

A mídia e a construção do imaginário Se verificarmos a história do São José, instituição que nasceu praticamente junto com a cidade em 1852, podemos perceber que a sua relação com a sociedade joinvilense foi, na maior parte do tempo, de parceria: festas cívicas e datas religiosas eram comemoradas dentro da instituição, doações e 1

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietações. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

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atos humanitários eram freqüentes, inspirados pelo espírito cristão de prestar caridade aos necessitados. A origem daquele hospital, ligada à proteção dos desvalidos, daqueles que não podiam ter acesso ao médico de família e aos indigentes, formou uma imagem que perdurou por grande parte de sua história e foi bastante reforçada pelos setenta anos de presença de uma irmandade católica na sua direção, a da Divina Providência. O imaginário popular identificava o Hospital São José como abrigo dos necessitados e por isso sempre foi bastante respeitado pela sociedade joinvilense.2 Essa característica, no entanto, vai lentamente se modificando a partir de meados do século XX, juntamente com os avanços da ciência médica. As religiosas que administravam o hospital desde 1906 foram sendo substituídas por profissionais médicos ou de áreas afins, o que se concretizou, definitivamente, em 1980, quando a última irmã de caridade saiu da instituição3, como discutido nos capítulos anteriores. A presença das irmãs, por outro lado, propiciava uma certa tranqüilidade por parte do poder público, que confiava totalmente no trabalho delas. [...] na minha administração o que menos me preocupou foi o Hospital São José.[...] Eu não gastava, vamos dizer, das 300 horas de trabalho por mês que eu dedicava à Prefeitura, eu não gastava 10 horas com o Hospital! Porque as irmãs, quando tinham um problema, elas vinham, é assim, assim, assim, eu confiava nelas, autorizava. E o que eu fazia apenas era toda semana dar uma circulada no Hospital, mas não interferia na administração, só circulava para saberem que a gente estava 4 controlando por alto as coisas.

O Prefeito se limitava a repassar a folha de pagamento ao hospital, uma folha que, com certeza, era muito menor do que deveria ser, já que as irmãs praticamente trabalhavam de graça, e uma grande parte do hospital ficou nas mãos delas até o começo da década de 1970. [...] eu entreguei o hospital novo para as irmãs também, mas quando eu assumi a Prefeitura, eu fui olhar a folha do hospital e, para minha surpresa, eu vi que as irmãs ganhavam meio salário mínimo para um 2

Essa relação da sociedade com o Hospital Municipal São José, até a década de 1970, foi discutida em GUEDES, Sandra P. L. de Camargo. Instituição e sociedade. A trajetória do Hospital Municipal São José de Joinville – 1852-1971. Joinville: Movimento e Arte, 1996. 3

GUEDES, Sandra P. L. de Camargo. Instituição e sociedade. Op. cit. Ver também capítulo 4 desta obra. 4

BENDER, N. W. Nilson Wilson Bender: depoimento [mar. 2002]. Entrevistadora: Sandra P. L. de Camargo Guedes. Joinville: Univille, 2002. 2 fitas cassete. Entrevista concedida para o projeto História da Associação Atlética Tupy. LHO/Univille.

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trabalho de 12, 14, 15 horas. Então eu me revoltei com isso e determinei que elas ganhassem pelo menos um salário mínimo, eu queria pagar mais, mas elas mesmas não estavam a fim de ganhar mais, mas mesmo assim, então, eu determinei o seguinte: cada irmã vai ganhar pelo menos 1 salário mínimo (naquele tempo 1 salário mínimo valia 2 ou 3 de hoje) e as irmãs, instrumentistas, essas profissionais eu determinei que fossem pagos 2 salários mínimos. Porque era uma coisa muito injusta fazer essas irmãs trabalharem de graça, e ainda tinha gente que criticava o trabalho das irmãs quando na verdade elas eram competentíssimas na administração do hospital, elas aplicavam bem o dinheiro que recebiam. Viviam de uma forma muito modesta, embora houvesse alguém que dissesse o seguinte: “Todo o dinheiro que elas recebem elas mandam 5 para a Congregação”.

Se, ao mesmo tempo, o Prefeito Bender acreditava que as irmãs sempre prestaram um bom serviço e que ele teve o melhor relacionamento com elas deixando tudo em suas mãos, percebe-se, por outro lado, em sua fala que havia pessoas contrárias à administração das irmãs, mesmo porque a profissionalização dos hospitais já era uma realidade em grande parte do país e a cidade também já exigia outro tipo de atuação na área da saúde. O Prefeito seguinte, que era médico, assim como a maioria da classe que representava, tinha críticas à administração das irmãs no hospital. Ele cortou o convênio com as irmãs e as irmãs foram afastadas do hospital e foi criada uma direção leiga e um serviço leigo que nunca funciona tão bem como é um serviço por vocação, como era o das irmãs. As irmãs trabalham por amor ao próximo e desde então todo serviço do hospital é feito por gente contratada especialmente para isso aí, e desde esse tempo também o hospital começou a criar problema de 6 remuneração, etc.

Vê-se nesse aspecto dois tipos de visão sobre o mesmo fato, ou seja, a das pessoas não ligadas à área da saúde, que olhavam o hospital pelo viés humanitário e caritativo, e a daquelas ligadas à área médica, que enfatizavam o profissionalismo. Para entender melhor as colocações do Prefeito Bender, precisamos retomar, rapidamente, a situação da cidade quando houve a saída das irmãs. Paralelamente a essa mudança interna, tem-se também a própria sociedade 5 6

BENDER, Nilson Wilson. Op. cit. Id.

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joinvilense que, mais intensamente a partir da década de 1970, como foi visto nos capítulos anteriores, se transforma. A crescente industrialização e a conseqüente urbanização da cidade levaram uma grande quantidade de trabalhadores de diversas partes do país a se instalar em Joinville. A cidade inchou. Sua população, segundo dados do IBGE, quadruplicou de 1950 para 1970. A maioria dessas pessoas não possuía nenhuma relação anterior com a cidade ou com o São José, mas a partir do momento em que se transferiram para Joinville passaram a ter o direito ao atendimento naquela instituição pública, somando-se à população já existente. O crescimento exagerado do número de pessoas na cidade, na maioria operários e, portanto, sujeitos ao Serviço Nacional de Saúde, atingiu diretamente o São José. A infra-estrutura daquela instituição sofreu uma sobrecarga para a qual ela não estava preparada. Essa situação levou a uma precariedade no atendimento médico-hospitalar ali prestado e, conseqüentemente, à insatisfação. Além disso, a década de 1980 foi identificada como de crise no sistema previdenciário brasileiro, o que afetou diretamente o hospital. As várias greves, promovidas pela enorme defasagem salarial em tempo de inflação alta, e a saída, por essa mesma razão, de vários profissionais contratados e gabaritados em direção às empresas que, naquele momento, passavam por um período de crescimento e pagavam bem melhor do que as instituições públicas fizeram com que o hospital tivesse seu atendimento prejudicado e retratado na mídia. A relação da saída das irmãs com a falta de profissionais na instituição parece ter sido imediata. Além do ex-Prefeito, várias pessoas pensavam que se as irmãs ainda estivessem lá o hospital não estaria passando por aquele tipo de problema, já que trabalhavam por amor, caridade e não pelo salário. Essa identificação entre a medicina e o sacerdócio é antiga e foi muito consolidada no Brasil, país de tradição católica onde a grande maioria dos hospitais foi criada e dirigida por confrarias ou irmandades religiosas. A falta de conhecimento sobre o tratamento das doenças fazia com que as rezas acabassem sendo o único remédio possível para muitos casos, e até mesmo os médicos recorriam a esse recurso quando não sabiam mais o que fazer. Mesmo com todas as modificações sofridas pela profissão através dos tempos, a visão de que o médico tem poder sobre a vida e a morte permanece no senso comum e costuma influenciar muito no julgamento de ações de profissionais ligados à área da saúde, exigindo deles, muitas vezes, atitudes que ultrapassam o profissionalismo e contribuindo para a formação de representações sobre a medicina e os hospitais. A partir da saída das irmãs de caridade do hospital, as ações caritativas passaram a ser coordenadas por leigos, principalmente por grupos de voluntárias, de funcionários ou pela própria direção do hospital, que, apesar 182

de terem afastado as religiosas, continuaram preservando a imagem de hospital de caridade, hospital dos pobres, hospital onde se trabalha por vocação, não por dinheiro, mas pela “missão”. Esse tipo de representação aparece em diferentes discursos, em jornais e em relatórios de superintendentes e de Prefeitos, nas décadas de 70 e 80, demonstrando fazer parte do imaginário coletivo daquela época. Em 1983, quando passou por uma de suas piores crises financeiras, os jornais anunciavam o possível fechamento do Hospital Municipal São José, o que sensibilizou parte da comunidade, que se mobilizou para conseguir recursos para pagar os salários dos funcionários. O Sindicato dos Trabalhadores e Empregadores em Casas de Saúde de Joinville e a Associação Comercial e Industrial – ACIJ – fizeram uma campanha comunitária em que cada trabalhador contribuiria com uma ajuda estipulada sobre o seu salário, cuja porcentagem poderia ficar em um por cento. O total arrecadado em cada empresa seria repassado em dobro para o Hospital 7 São José através da iniciativa da classe empresarial.

O vice-presidente da ACIJ Hercílio Hardt, elogiando a iniciativa dos sindicalistas, dizia que o Hospital Municipal São José “é um problema de todos”, por isso todos deveriam se unir para solucionar o déficit de Cr$ 200 milhões que ameaçava o São José a fechar suas portas. A socialização do problema do São José mostrava que a instituição e, portanto, sua dificuldade “era de todos” e não apenas da municipalidade ou do INAMPS. O espírito caritativo da população continuava a se manifestar com relação ao São José, mas o mesmo não se via acontecer com outras instituições de saúde da cidade. Ronald Fiúza, superintendente na época, comentava que o hospital estava recebendo ajuda de toda a comunidade e que, durante debate sobre o assunto na TV Santa Catarina, “várias propostas foram sugeridas pela comunidade. Eram soluções simples, vindas diretamente de pessoas que realmente estavam preocupadas com a saúde do hospital e que realmente muito nos sensibilizaram.”8 A imagem de hospital de caridade, construída durante mais de cem anos, propiciava o discurso da colaboração, da doação, da caridade. Essa visão, 7

Hospital São José em apuros. Agora é a folha de pagamento. O Estado de Santa Catarina, Blumenau, 7 jun. 1983. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. 8

Operários podem ajudar a salvar o “São José”. Extra, Joinville, 11 jun. 1983. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. A retransmissora da rede Globo de televisão, a TV Santa Catarina, canal 5, foi inaugurada em 1979 em Joinville, ano em que a cidade passou a contar também com uma rádio FM – Rádio Cultura. Correio da Tupy, Joinville, maio 79 e fev. 80.

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no entanto, não deixava que aqueles mais politizados perdessem de vista onde estava realmente o problema. O representante da ACIJ Hercílio Hardt afirmava que esse é um problema de todos e por isso considero indispensável que nos sentemos para conversar, buscando saídas [...] Certamente que isso vai representar mais um ônus para o operário, que já contribui com o Inamps, mas acho que haverá a compreensão, pois não adianta ficarmos discutindo as causas desta crise, nacional e tão profunda. Vamos tentar resolver nosso caso sem nos preocuparmos com a situação previdenciária. E acredito firmemente que nesse sentido todos estarão conscientes. Afinal, o São José é hoje um hospital eminentemente regional 9 e um fechamento nessas condições representaria um verdadeiro caos.

Comentando sobre a proposta dos sindicalistas, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos Orlando Silva, na mesma matéria de jornal, lembrava a necessidade de se cobrar as promessas de campanhas eleitorais: “Além disso vamos exigir uma participação do governo nas mesmas proporções, pois afinal de contas a prioridade não é a saúde, como foi tão divulgado no período eleitoral?”. A campanha de arrecadação de fundos para suprir essa crise do Hospital Municipal São José assumia cada vez mais um caráter caritativo. Não havia como não se sensibilizar com apelos tão cristãos e humanitários. A campanha estava baseada em uma pergunta: “O que você faria se precisasse e encontrasse o hospital de portas fechadas?”. E solicitava: “Estenda suas mãos para que as nossas possam continuar salvando vidas e que as mãos de Deus se estendam sobre os seus.”10 Sem dúvida a mensagem apelava ao sentimento cristão e, na verdade, não estava pedindo a ninguém que cobrisse “as falhas do sistema de saúde brasileiro”, mas sim que “prestasse caridade ao próximo”, que desse uma “esmola aos necessitados”, coisa que nenhum cristão pode deixar de fazer sem ficar com um peso na consciência! Quem não queria ter sua saúde e a de seus parentes garantida? Uma carta aberta à população estava sendo redigida, apelando para os chefes de família uma colaboração que seria “o único investimento onde você é convidado a participar sem o objetivo de lucro. Seu lucro, no entanto, reverterá na garantia e segurança de sua saúde.”11 Por intermédio da carta, voluntários, na maioria funcionários do próprio Hospital, passavam de casa em casa solicitando uma colaboração para 9

Operários podem ajudar a salvar o “São José”. Extra, Joinville, 11 jun. 1983. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. 10

Comunidade já se movimenta para salvar o “São José”. Extra, Joinville, 22 jun. 1983. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. 11

Id.

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o São José, que estava, literalmente, de “chapéu na mão”. Essa campanha irritava algumas facções da sociedade que não aceitavam o “encobrimento” das reais causas da crise na saúde. O presidente do Sindicato dos Enfermeiros criticava a idéia de pedir auxílio à comunidade, referindo-se ao fato de “os hospitais recorrerem à comunidade e a seus empregados para cobrir os déficits financeiros.”12 Perante a mobilização da população, políticos de vários partidos também começavam a se movimentar para ajudar na solução do problema. Uns mandavam cartas ao Ministro da Previdência, outros propunham direcionar os recursos destinados a equipar o Hospital Regional. Havia várias fórmulas, mas nenhuma realmente eficaz. A campanha de casa em casa conseguia sensibilizar a população, mas jamais iria resolver o problema financeiro do hospital, que era bastante elevado. Logo após o seu início, a campanha foi interrompida em função de ter ocorrido uma grande enchente no Vale do Itajaí, quando centenas de desabrigados, principalmente em Blumenau, precisavam de socorro. Nessa ocasião, todos os enfermeiros foram deslocados para a coleta de mantimentos nos vários postos distribuídos na cidade, para ajudar os flagelados das áreas atingidas. Passado o pior, as coletas para o São José, que já haviam conseguido Cr$ 600 mil em 1.200 envelopes, seriam retomadas.13 Percebia-se que esse tipo de ação não seria suficiente, por isso vários outros tipos de campanhas comunitárias passavam a acontecer para salvar o São José. Até mesmo cidades vizinhas ajudaram, como Campo Alegre, que destinou parte de sua festa popular – O Festival de Bateias – ao hospital que, sem dúvida, já era muito importante para o atendimento dos doentes daquela cidade.14 Da mesma forma, o JEC – Joinville Esporte Clube – lançava o carnê “Esporte e Saúde”, cujos recursos adquiridos seriam divididos entre o hospital e o time profissional. Porém nada ainda havia resolvido o problema real dos salários dos funcionários e nova greve foi iniciada.15 A participação do time da cidade, que estava, naquela época, com um grande número de títulos conquistados, e a mídia, que noticiava as dificuldades do hospital e evidenciava sua importância para a cidade e região, ajudaram a sensibilizar a comunidade.16 Acreditamos que o rádio, os jornais e 12 13

Enfermeiros pedem apoio ao povo. A Notícia, Joinville, 23 jun. 1983. Acervo AHJ.

São José reativa campanha comunitária. Extra, Joinville, 28 jul. 1983. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. 14

Festival de Bateias ajuda São José. Extra, Joinville, 30 out. 1983. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. 15

Enfermeiros do São José entram em greve segunda. O Estado de Santa Catarina, Blumenau, 2 nov. 1983. Caixa de recortes – Hospital Municipal São José. AHJ. 16

A importância do Hospital São José a nível regional. A Notícia, Joinville, 5 nov. 1983. AHJ.

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a televisão foram, nesse sentido, importantes difusores de informações e formadores de opinião sobre o São José, colaborando para a construção de representações sobre ele. Segundo Sandra Jovchelovitch, “dadas as formas como a mídia transforma e de certa maneira define a circulação de bens simbólicos em sociedades contemporâneas, ela se torna uma fonte importante de reflexão e estudo das representações sociais.”17 Para ela, a mídia se transformou em um grande controlador das práticas políticas, na medida em que pode produzir significados e valores hegemônicos, tornando-se um ator-chave no exercício de poder. Sem dúvida, a mídia tem um poder de penetração muito forte no subconsciente das pessoas e colabora para a cristalização ou modificação de hábitos e comportamentos. Falando sobre o “tratamento da informação em função da profundidade psicológica”, Kientz subdivide o psiquismo humano em diversas camadas, “mais ou menos profundas, indo da mais ‘consciente’ a mais ‘inconsciente’”. 18 Assim, adotando a divisão de Abraham Moles (apud KIENTZ), da camada mais profunda para a mais superficial teríamos: 1.

Camadas inconscientes do ser (libido e vontade de poder).

2.

Domínio das crenças e interesses explícitos (universo das opiniões).

3.

Domínio dos interesses explícitos dos indivíduos (universo dos interesses econômicos).

4.

Vida material dos indivíduos (exemplo: as informações meteorológicas) [no caso dos EUA, é muito importante, furacões, tempestades, nevascas...].

5.

Camadas superficiais. As informações que não têm qualquer repercussão.19

Sendo assim, dependendo da notícia e de que camada ela atinge, será mais difundida ou não. Os profissionais da mídia utilizam esses argumentos 17

JOVCHELOVITCH, Sandra. Representações sociais e esfera pública. A construção simbólica dos espaços públicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 92. 18

KIENTZ, Albert. Comunicação de massa. Análise de conteúdo. Rio de Janeiro: Eldorado, 1973. (coleção Médium) 19

Ibid., p. 104-105. Para fazer essas observações, Albert Kientz utilizou-se das teorias de Abraham Moles apresentadas em sua obra Sociologie de la culture.

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para escolher o que divulgar e ainda acrescentam palavras e expressões que aumentam o impacto, como: ameaçadora, tensa, crise etc. Considerando-se que as questões ligadas à vida ou à morte estão centradas nas camadas mais profundas da consciência, poderemos entender por que as matérias ligadas a esses assuntos interessam tanto. Percebendo a importância da mídia para a análise de uma determinada cultura ou, como afirma Kientz, fazendo-se uma “culturanálise” através do que a mídia produziu em um determinado momento, pode-se ter um retrato da “cultura de um país e de uma época”. Além disso, e mais significativa ainda, é a possibilidade de se ter conhecimento do cadinho, a matriz em que essa mesma cultura se forma e transforma. Com efeito, toda mensagem é um reflexo do estado daquele que a emite e um meio que permite atuar sobre aquele que a recebe, influenciá-lo. As mensagens dos media são, simultaneamente, a expressão de uma 20 cultura e o instrumento que a modela.

Kientz, sempre seguindo as teorias de Abraham Moles, afirma, portanto, que a vida do homem moderno está diretamente influenciada pela mídia e que, apesar de ela parecer, a princípio, uma colcha de retalhos, é muito bem organizada em conteúdos que gravitam em torno de alguns grandes eixos que refletem as aspirações, as angústias, as alienações, os tabus do homem moderno. Pela análise do conteúdo dos meios de comunicação de massa poder-se-á tentar uma espécie de psicanálise do cidadão da sociedade de comunicação de massa. O meio 21 mais cômodo para este tipo de pesquisa é o da análise da imprensa.

Dessa forma, procuramos entender como a imprensa de Joinville está estruturada e, em seguida, fazer uma análise do tipo de reportagens que foram direcionadas ao Hospital Municipal São José. A cidade possui atualmente oito emissoras de rádio, das quais duas transmitem em AM e FM, duas só em AM e outras quatro só em FM. Já quanto aos canais de televisão há duas emissoras de TV aberta, duas a cabo, duas repetidoras, uma retransmissora e uma em UHF.22 Contudo, a análise do rádio e da TV nos é extremamente limitada, já que não se guardam as fitas dos 20 21

Ibid., p. 119. Id.

22

INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO DE JOINVILLE. Joinville – Cidade em dados. 2001/2002. Joinville, Prefeitura Municipal, 2001. p. 60. No texto foi acrescentada mais uma rádio FM, que foi ao ar em 2003 e não constava da publicação citada.

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programas, ficando a nossa pesquisa restrita a algumas entrevistas orais com radialistas – dos quais alguns também possuem programas na televisão –, a programas gravados por nós, específicos sobre a saúde em Joinville, e a inferências tiradas a partir das entrevistas estruturadas que fizemos com a população de Joinville em 2001. Apesar de não se ter exatamente a quantidade da população que ouve rádio em Joinville, sabe-se que uma grande parte dela tem o rádio como seu principal meio de comunicação. Os programas de jornalismo das rádios AM locais têm grande penetração e costumam discutir os problemas da cidade e interagir com a comunidade, que participa colocando suas opiniões e críticas. Os radialistas que entrevistamos23 foram unânimes em afirmar que o público do rádio é variado, mas que, de maneira geral, o da FM é de jovens e o da AM são pessoas com mais de trinta anos cujas profissões são bem variadas: desde a dona-de-casa até profissionais liberais ou executivos que, às vezes, até param o carro na rua, ligam para a rádio pelo celular e participam do programa. Porém o público que participa mais ativamente dos programas é classificado, por Osny Martins, como pertencente “à classe C”, identificada por ele como “classe média”, e é composto por estudantes, profissionais liberais, a dona-de-casa, que sente os problemas da cidade mais de perto e que quer ver soluções, aquela que leva os filhos ao médico, faz as compras e sente o salário acabando antes do fim do mês. Segundo Martins, seus ouvintes estão espalhados por toda a cidade, mas principalmente nos bairros que não são centro, mas estão próximos ao centro. A classe média, se a gente pode chamar de classe média, assim, Saguaçu, Floresta, Costa e Silva, Guanabara, bairros nitidamente de classe média. Por isto 24 que eu disse que a classe C é a mais participativa.

Da mesma forma, há unanimidade ao se afirmar que a maioria das pessoas, quando liga para a rádio, é para criticar alguma coisa, mas que, apesar de mais raras, também são feitas ligações para elogiar algum serviço ou instituição, inclusive o Hospital Municipal São José. Todos os radialistas entrevistados lembraram de casos em ambas situações, ou seja, de pessoas que ligaram para a rádio para agradecer de forma emocionada por um bom 23

Foram entrevistados: Osny Martins, Wilson França, Arivan Procknow e Sérgio Silva. Devemos registrar que outros radialistas foram contatados, mas se negaram a dar entrevista. 24

MARTINS, O. Osny Martins: depoimento [mar. 2002]. Entrevistadoras: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Eleide A. G. Findlay. Joinville, 2002. 1 fita cassete (50 min). Entrevista concedida para o projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille.

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atendimento no hospital, como daqueles que lançaram pesadas críticas à instituição. O papel das rádios de Joinville durante as campanhas em prol do hospital foi bastante intenso e todos colocaram que o retorno foi grande,

Foto 10 – Solenidade de inauguração do 1.º andar após reformas resultantes da Campanha de Adoção de Quartos

Foto 11 – Inauguração do prédio da oncologia, construído com recursos da Campanha Mc Dia Feliz 189

mostrando o envolvimento da sociedade. Segundo Osny Martins, isso se deve ao fato de que o São José é considerado patrimônio da cidade. Há uma identificação muito forte entre o joinvilense com aquilo que considera seu e, segundo o radialista, o Hospital Municipal São José é identificado como da cidade.25 Comparando a participação da população em programas de rádio com os da televisão, Martins, que na época da entrevista tinha programas nos dois veículos de comunicação, afirma: A televisão é um meio mais popular, embora o rádio, de manhã, tenha uma audiência que equivale ao início do horário nobre da televisão às 6h da tarde, em termos de número de pessoas ouvindo, comparado com o número de pessoas vendo no Jornal do Almoço, por exemplo, em termos de cidade de Joinville. Lógico que a abrangência da televisão em termos regionais é maior, mas em termos de cidade de Joinville, eu chego a comparar. (...) Agora, o retorno que eu tenho é brutalmente maior no rádio. Porque no rádio a gente se coloca como formador de 26 opinião, a gente é mais respeitado.

As rádios interativas, em que a população pode participar por meio de ligações telefônicas, são oportunidades ímpares para que se possam perceber as diferentes representações sociais. O mesmo radialista afirma que o rádio é o “termômetro”, é onde se sente o pulsar da população, o que não ocorre na televisão, em que a participação popular é apenas de telespectador. Deve-se acrescentar, ainda, que as notícias da cidade de Joinville aparecem, na TV aberta de maior audiência do país, apenas em poucos minutos por dia, quando todas as matérias referentes à cidade devem ser passadas. Existe uma TV local que possui vários programas voltados à cidade e um especialmente voltado à área da saúde, mas que é transmitida apenas em canal fechado, o que, logicamente, limita sua audiência. Na TV, vai a matéria, você pode no máximo fazer um comentário de duas ou três palavras, é o padrão RBS, é o padrão Globo. É a pressa, é a segundagem que está ali estourando. É mais rápido, superficial, no rádio não, você dá a matéria, você faz entrevista, você comenta, ouve a população, você tem todo o tempo para comentar, dar a sua opinião, dar o seu parecer. Se o radialista tem credibilidade, neste fator, nesta hora, ele vai ultrapassar em importância a televisão. Ele vai ultrapassar longe, embora a televisão seja até mais popular, mas ele vai ter mais importância, ele vai ter muito mais respaldo. É por isso que na hora que ela [a população] vai 27 procurar alguém, ela vai procurar o rádio. 25 26 27

Id. Id. Id.

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O rádio serve, ainda, como intermediador entre a população e os poderes constituídos. É por meio do rádio que as pessoas conseguem mostrar sua indignação, sua revolta, fazer suas reclamações e elogios, e aí encontramos a importância do radialista como uma pessoa confiável e que será capaz de fazer com que aquela mensagem seja repassada a centenas de pessoas. Um exemplo disso é o seguinte diálogo entre uma ouvinte e Arivan Prochnow, em um programa interativo de rádio, quando se entrevistava um médico da equipe da Secretaria Municipal de Saúde: OUVINTE: Bom dia, Arivan. Eu sempre agradeço pelo seu programa. ARIVAN: Muito obrigado! OUVINTE: E parabéns para todos os médicos de Joinville, porque a gente que precisa só tem que agradecer! ARIVAN: Certo! OUVINTE: (...) e outra coisa assim, é para ver se a gente tinha um meio de não precisar, que nem a minha prima, que foi um dia às quatro horas da manhã ali para o Bucarein, outro dia o filho foi às três e no outro ela teve que ir às duas horas. A gente corre muito risco... ARIVAN: Por quê? No Bucarein por quê, querida? OUVINTE: Pra marcar uma consulta, para uma médica. ARIVAN: Duas horas da manhã? OUVINTE: É. Um dia o filho foi às quatro, não conseguiu. Outro dia ela mandou ele às três, aí não conseguiu também. No outro dia ela foi às duas horas e ela disse que passou muito medo... Ficar das duas horas até as sete quando abre, né, Arivan, é muito tempo, né? ARIVAN: Mas qual era a médica? OUVINTE: Era uma médica clínica geral, mas ela faz serviço como endócrina também. É uma especialista, é uma excelente médica! Só que 28 dá muito trabalho para conseguir ver ela, né?

Percebe-se, pela fala da ouvinte, tratar-se de uma pessoa bastante simples e que depositava uma confiança bastante grande no radialista, salientando que “a gente que precisa só tem que agradecer”, ou seja, somente através dele a ouvinte poderia ter a oportunidade de repassar os seus problemas, 28

PROCHNOW, Arivan. Saúde em foco. Programa interativo e de entrevistas da Rádio Cultura AM. Joinville, out. 2001.

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as dificuldades suas e de sua família para com o serviço público de saúde e, ao mesmo tempo, cobrar de uma autoridade que estava presente, mas que somente falaria com ela por intermédio do radialista. No final da conversa a ouvinte, após se despedir do radialista amigavelmente, como se fossem velhos conhecidos, disse: “vou escutar a resposta pelo rádio, então”. As queixas daquela senhora, que também incluíam a falta de funcionamento do equipamento de ultra-som do Hospital São José, o qual ela estava aguardando para fazer um exame já havia longo tempo, reforçavam a realidade mostrada pelas entrevistas feitas no pronto-socorro do Hospital Municipal São José. Estas, que serão discutidas posteriormente, mostram inúmeras queixas sobre as dificuldades em conseguir uma consulta médica nos postos de atendimento do município. Em suas respostas, no entanto, o médico limitou-se a dizer da sua preocupação com os problemas levantados e que toda a equipe, da secretaria e do hospital, tem consciência deles e que estão empenhados em resolvê-los. Dizia, ainda, que o grande objetivo da Secretaria da Saúde “é acabar com as filas” e contava “com a compreensão da comunidade” enquanto o problema estava sendo estudado. Se, por um lado, a população procura o rádio para na maioria das vezes se queixar, por outro a última coisa que uma pessoa que possui algum cargo público quer é que suas falhas, ou as da instituição que dirige, sejam divulgadas, principalmente em um meio de comunicação tão rápido. Todos os radialistas entrevistados falaram sobre as críticas às filas, aos médicos que muitas vezes chegam atrasados, atendem muito rapidamente ou então nem atendem no dia em que a pessoa precisa. Segundo Arivan Prochnow, as maiores queixas estão na demora no atendimento. (...) Às vezes a consulta demora seis meses, um ano! Existe um exame, na rede pública, que é um pouco caro, chamase mapeamento de retina. É um exame oftalmológico e que as pessoas têm que fazer [...] logo, senão pode levar à cegueira, e demora 8, 9 meses, e é um problema sério. E às vezes as pessoas ligam reclamando, tem pessoas que fizeram o exame [no médico] no ano passado e já faz 29 oito meses que estão à espera desse exame de retina.

A opinião de Wilson França é a mesma, ou seja, as maiores críticas estão no atendimento, 29 PROCHNOW, A. Arivan Prochnow: depoimento [ago. 2002]. Entrevistadoras: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Eleide A. G. Findlay. Joinville, 2002. 1 fita cassete (43 min). Entrevista concedida para o projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille.

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na fila, no médico que não atendeu direito: eu pago a minha consulta, eu vou ficar [esperando minha vez] no consultório uma hora, [e quando entro para ser atendido] são cinco minutinhos e o cara nem olhou direito e me mandou embora, diz para eu voltar outro dia, eu volto outro dia é outro médico. Esta disfunção que existe por causa de turnos de trabalho. Eu penso que, às vezes, é aquela falta de carinho que o cidadão sente, que é a atenção, o direito de cidadania que ele tem e não é 30 exercido, que gera a crítica, o problema.

Com certeza, as respostas dadas pelo médico no programa de rádio descrito não resolveram em nada as angústias da ouvinte, mas o fato de ela ter desabafado e as tornado públicas colaborou muito para confortá-la. Trata-se do carinho, da necessidade de atenção, citados por França e externados por Prochnow quando se referiu à ouvinte como “querida”. A relação de confiança depositada pelos ouvintes no radialista é expressa e fortalecida também por meio dos inúmeros pedidos por favores e intercessões junto aos poderes constituídos, para a resolução dos problemas da comunidade ou do indivíduo. Por ter um programa voltado à área de saúde, Prochnow atende a inúmeros pedidos nesse sentido: E com a amizade que a gente tem com os médicos também e o respeito que a gente tem por eles e vice-versa, a gente consegue, às vezes, realizar consultas, principalmente de oftalmologia, que na rede pública é um negócio sério, a otorrinolaringologia, que trata de ouvido, nariz e garganta, também era um problema, até dois meses atrás, que agora já foi resolvido. Era procurado por mães: “olha, meu filho precisa de um médico, está com dor de ouvido, mas só daqui a seis meses, você não podia me ajudar?” Daí eu pego o telefone, ligo para o médico, me identifico, ele diz: “pode deixar que eu atendo, manda vir aqui e manda um cartãozinho seu...”, e o médico atende, sem problema nenhum. Acho que este trabalho é gratificante para mim, porque o fato de você depois receber a criança aqui, depois de ser atendido, ou a mãe, para agradecer, vale mais do que um milhão de dólares, na 31 minha opinião.

Arivan também concorda que seu programa no rádio é muito mais ouvido pela população joinvilense do que o da televisão, que é transmitido apenas em canal fechado e, por isso, atinge a uma camada mais elitizada. 30

FRANÇA, W. Wilson França: depoimento [jun. 2001]. Entrevistadoras: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Eleide A. G. Findlay. Joinville, 2001. 1 fita cassete (48 min). Entrevista concedida para o projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille. 31

PROCHNOW, A. Arivan Prochnow: depoimento. Op. cit. Os assuntos citados nessa entrevista também foram discutidos no capítulo que trata da saúde em Joinville.

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Contudo, quando se fala da abrangência da TV com relação ao noticiário nacional, os papéis se invertem. Aí a televisão apresenta, sem dúvidas, um poder bastante maior do que o do rádio. Além do que, nesse sentido, valem mais as imagens do que as próprias falas. Se o rádio é colocado como um fantástico interlocutor – principalmente entre a população mais carente e os poderes constituídos – e uma forma bastante utilizada para externar opiniões, e a televisão, um meio popular em que as imagens falam mais alto, a mídia impressa, ao contrário, é privilégio de poucos, ou seja, da camada mais letrada da população. A fim de analisarmos a influência da mídia escrita no imaginário popular, verificamos, inicialmente, as manchetes dos jornais em circulação em Joinville que diziam respeito ao Hospital Municipal São José. Deve-se chamar atenção para o fato de que, para efeitos de tabulação, neste capítulo, utilizamos o critério de análise da manchete e não do conteúdo do texto propriamente dito. Tabela 11 – Manchetes de jornais sobre o Hospital Municipal São José 1970-2000

Fontes: Jornais A Notícia, O Estado de Santa Catarina, Jornal de Joinville, Extra, O Popular e Jornal de Santa Catarina.

A tabela 11 nos permite fazer várias inferências a respeito da participação da imprensa escrita na construção do imaginário popular sobre o Hospital Municipal São José . Inicialmente, pode-se constatar que as décadas de 1980 e 1990 tiveram de nove a dez vezes mais manchetes relacionadas ao São José do que havia acontecido na década de 1970. Se observarmos os assuntos abordados pelas manchetes dos diferentes jornais em circulação na cidade para a década de 80, à primeira vista poderemos pensar que houve maior incidência de matérias relacionadas aos 194

empreendimentos promovidos pela instituição, que somaram 38,5%. No entanto, uma análise mais cuidadosa mostrará que a grande maioria delas esteve relacionada a problemas ocorridos no hospital, ou seja, se somarmos os índices atribuídos à “falta de dinheiro”, “mau atendimento”, “greves”, “ingerências políticas” e “problemas internos”, teremos um percentual de 49,3% do total das manchetes da década mostrando problemas no São José e apenas 11,9% falando das campanhas para ajudar a solucionar aqueles problemas. Se seguirmos o mesmo tipo de raciocínio para a década de 1990, acrescentando aos assuntos já citados a “necessidade de ampliações” e os específicos sobre os problemas ocorridos no pronto-socorro, que só aparecem a partir desse período, teremos um total de 65,9% de matérias que mostravam problemas no São José, contra 23,8% favoráveis (empreendimentos, eventos) e 9,7% que falavam das campanhas em busca de fundos. Não cabe aqui avaliar se os problemas foram mais ou menos graves, mas apenas que eles receberam muito mais visibilidade na imprensa. Devemos lembrar que na década de 1970, período em que o regime militar se mostrou mais duro e quando a censura foi mais feroz com a imprensa, foi também uma época em que cidade recebeu um incremento gigantesco em termos de recursos para a indústria e um grande contingente populacional que veio atrás daquele “progresso” econômico e, conseqüentemente, dos empregos. O governo federal injetou uma grande quantidade de recursos no sistema previdenciário e na assistência médica, como já foi discutido nos capítulos anteriores. Não podemos esquecer, igualmente, que a década de 1970 começou com um novo prédio do São José totalmente equipado e que os problemas de infra-estrutura urbana não eram tão graves quanto a partir da década de 1980. Além disso, até praticamente o fim da década de 1970, como foi visto, o hospital estava nas mãos das Irmãs da Divina Providência e era por isso considerado uma instituição religiosa desvinculada do poder público, o que, com certeza, ajudou a mantê-la longe das críticas da imprensa. A grave crise financeira pela qual o hospital passou durante a década de 1980, conseqüência da crise nacional do sistema público como discutido nos capítulos anteriores, refletiu no atendimento à população, o que foi evidenciado em duras críticas através da mídia. As greves também irritavam os usuários, que não tinham a quem recorrer. Noticiar hospital parado e pessoas sem atendimento médico é matéria que “vende”, e esse também foi um fato que levou a um maior número de manchetes sobre o São José nas décadas de 1980 e 1990. Toda vez que surgia alguma notícia na mídia envolvendo médico, a mídia sempre colocava de forma sensacionalista. Notícia de erro médico,

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não de responsabilidade médica, quando deve ser o contrário, é sempre 32 motivo de destaque na mídia. Tabela 12 – Ocorrência de greves no Hospital Municipal São José no período estudado

Fonte: Relatórios do Hospital Municipal São José e matérias de jornais

Como os problemas financeiros eram freqüentes e as greves também, o hospital e seus problemas viraram presença constante nos jornais, conforme se pode perceber na tabela 12. Um desses casos de reclamações via imprensa ocorreu com um funcionário do jornal A Notícia que, por ter de esperar horas pelo atendimento no pronto-socorro, reclamou muito para os atendentes e um deles, uma moça [...], falou irritada que se [ele] estava com pressa, que pegasse a cadeira em que se apoiava e fosse lá para a rua. Ele só foi atendido após sua esposa telefonar 33 para a reportagem de A Notícia e comunicar o fato.

Dois dias depois, o jornal voltou a noticiar que um bancário, após ter tido um ataque epiléptico e ter recebido três injeções de Buscopan, no São José, disse revoltado: Não pode existir outra entidade mais desconsiderada e desumana que aquele pronto-socorro. A impressão que nos dá é de um matadouro, pois não há atendimento imediato, as pessoas têm de ficar esperando 34 pela boa vontade dos enfermeiros e médicos [...] 32

ARAÚJO, L. A. de. Luiz Antônio de Araújo: depoimento [fev. 2001]. Entrevistadoras: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Eleide A. G. Findlay. Joinville, 2001. Entrevista concedida para o projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille.

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Fraturou a perna e só foi atendido 19 horas depois. A Notícia, Joinville, 20 jun. 1986. Acervo AHJ. Bancário reclama do “São José”. A Notícia, Joinville, 22 jun. 1986. Acervo AHJ.

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Percebe-se que as duas matérias, apesar de se referirem ao atendimento no pronto-socorro, trazem manchetes que propiciam a confusão entre hospital e pronto-socorro, já que a primeira dizia “Fraturou a perna e só foi atendido 19 horas depois”, e a segunda, “Bancário reclama do São José”, o que remete a críticas à instituição como um todo e não apenas ao pronto-socorro. Procurando defender o médico e a própria instituição de críticas, muitas vezes injustas, a direção do hospital, já na década de 1980, fez um trabalho de aproximação com a mídia, principalmente com a imprensa aqui de Joinville, [...] dentro deste trabalho de aproximação, nós conseguimos com que a mídia, toda vez que surgisse uma denúncia contra o hospital ou contra o médico, que a mídia [...desse] oportunidade 35 para o médico [...] ou para o hospital se pronunciar.

Assim vê-se, a cada crítica lançada no jornal, ou a palavra de um profissional da instituição que também dá seu depoimento ou, no dia seguinte, nova matéria que mostra o outro lado da questão, aumentando a presença do São José na mídia. “A história se repete todos os dias: espera por um médico se estende por até cinco horas no pronto-socorro do São José”. Este era o início de outra matéria que falava sobre uma mulher que, chorando, com a filha de um ano no colo, reclamava ter esperado horas por um atendimento no pronto-socorro do São José: Depois de vomitar duas vezes, após quatro horas de espera, a menina foi atendida. “Eles me falaram que não tinha médico. Então eu esperei, não podia voltar para casa”[morava perto de Araquari]. A chefe da equipe de enfermagem do hospital [...] reconhece a lentidão do atendimento. “Hospital público é assim mesmo. Está sempre superlotado e tem poucos médicos para atender tanta gente”, afirma. Diariamente, o pronto-ocorro do São José recebe cerca de 420 pessoas – um paciente a cada três minutos. A maioria dos casos envolve clínica 36 geral e pediatria.

O texto reflete vários pontos de estrangulamento do serviço do pronto-socorro do São José, ou seja, o atendimento de pessoas de fora da cidade, a superlotação, a falta de estrutura e, ainda, o conformismo instalado em funcionário que, provavelmente, como muita gente, já havia se acostumado 35 36

ARAÚJO, Luiz Antônio de. Op. cit. Desespero e cansaço na fila do Hospital. A Notícia, Joinville, 23 jul. 1994. AHJ. Grifo nosso.

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com as mazelas do poder público: “Hospital público é assim mesmo!” As opiniões, muitas vezes colocadas sem maiores intenções, mostram o que realmente se pensa sobre o serviço público de saúde. Em entrevistas feitas durante o mês de julho de 2002 nas dependências do pronto-socorro, pudemos perceber colocações que reforçam essa idéia. Indagada sobre a infra-estrutura de atendimento do local, uma senhora, com seus mais de sessenta anos, segurando uma embalagem de soro, em pé ao lado de um homem, seu filho, deitado numa maca no corredor, respondeu: “Podia ser melhor, né, mas para pobre está bom!”. Outra senhora, com o filho no colo, dizia praticamente a mesma coisa: “Bonito não é, mas é para pobre, né?” A resignação é presença marcante nas respostas dadas. Ao que parece, pobre tem que se conformar com o que lhe é dado, não tem direito a reclamar, senão talvez perca o pouco que conseguiu. Essa é a visão que se tem ao conversar com a maioria das pessoas que saem do pronto-socorro. A falta de distinção entre pronto-socorro e hospital ajudou a construir uma imagem ruim da instituição. No entanto, essa imagem, ao que parece, ficou restrita a algumas camadas da população, aquelas que têm acesso aos meios de comunicação, principalmente à imprensa. Apesar do desconforto, da demora no atendimento, da falta de opções, grande parte da população da região, que não conta com planos particulares de saúde, considera o serviço “bom” ou “muito bom”. Muitas pessoas, habitantes de cidades vizinhas, chegam ao hospital de Joinville após terem passado por vários outros e não serem atendidas, e assim consideram esse hospital excelente. O reconhecimento da confusão entre hospital e pronto-socorro levou o corpo clínico e administrativo do São José a, sempre que possível, estabelecer essa diferenciação, mas o que se pode notar é que não tiveram sucesso. O grande movimento dificulta os trabalhos no São José. [O pronto-socorro do Hospital Municipal São José é] o único que trabalha com pacientes conveniados pelo INAMPS [por isso] é o mais procurado da cidade. [...] apesar de ter sido ampliado para o dobro da capacidade há menos de dois anos, não dá mais conta dos 37 atendimentos.

Na mesma matéria, uma enfermeira do próprio pronto-socorro via a possibilidade de um “aprendizado cristão” nesse tempo de espera: “Os gritos de sofrimento e dor de pessoas feridas que chegam de ambulância atrai (sic) a curiosidade dos que estão na sala de espera [...assim] ele se distrai e esquece um pouco a [própria] dor ...” Para a diretoria o problema não tinha solução, e o diretor clínico admitia a demora para casos que não eram de urgência. “Não 37

Atendimento em Pronto-Socorro é precário. A Notícia, Joinville, 21 jan. 1993. p. 5. AHJ.

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há pessoal suficiente. E, mesmo que houvesse, não haveria espaço para esses profissionais.” A chefe da divisão técnica do hospital afirmava que o problema não era só financeiro. “O problema é cultural. Todos querem ser atendidos na mesma hora. Isto é impossível muitas vezes”. E o médico plantonista, por sua vez, afirmou: Por trás das portas alaranjadas que separam a sala de espera do prontosocorro do resto do hospital estão médicos e enfermeiros de plantão. Os médicos geralmente são recém-formados, com menos de cinco anos de profissão. Estão ali para adquirirem experiência, ganham pouco. Os casos de urgência são atendidos por eles sem qualquer discriminação. Os pacientes são atendidos por profissionais competentes e que 38 entendem e sabem o que estão fazendo.

Nota-se uma visão bastante diferente daquela registrada com os usuários do pronto-socorro. Os médicos, possuindo uma vivência cotidiana do problema e uma experiência técnica, acabam enxergando de forma racional experiências que passam muito mais pelo emocional. Uma pessoa doente e que está sentindo dores não quer esperar para ser atendida, e a grande maioria dos médicos não vai entender que só a estão atendendo ali, apesar de ser um lugar para emergências e não serviços ambulatoriais, porque para ela não resta outra opção senão aquela. Com certeza se pudesse ir a um consultório, mesmo público, que fosse limpinho e moderno, ela o preferiria ao pronto-socorro de um hospital público. O PS do Hospital Municipal São José atende o maior número de especialidades e praticamente é o único pronto-socorro público que recebe não só a população da cidade de Joinville, que se divide entre ele e a emergência do Hospital Regional, mas a população carente da região nordeste do Estado de Santa Catarina. Esta, por estar desamparada de uma série de serviços de saúde, percebeu que entrando pelo pronto-socorro do São José, mesmo que demore, será atendida. Além disso, o hospital dá assistência a todos os acidentados da BR 101 na região, que não são poucos, e aos acidentes de trânsito ou de outras origens que ocorrem na cidade, além da própria população que, apesar de contar com ambulatórios nos bairros, ainda prefere o São José, mesmo para atendimentos ambulatoriais. Esse fato, segundo as entrevistas que fizemos, se deve à grande freqüência com que os postos de saúde ou ambulatórios de bairros estão desaparelhados ou com falta de médicos e medicamentos e também por não atenderem à noite nem nos finais de semana. Essa situação faz com que o PS sempre esteja cheio, e o atendimento precisa ser o mais rápido possível, situação que está longe de ser a ideal e prejudica a relação médico–paciente. 38

Id.

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Um médico que atende no pronto-socorro, [...] além de atender a necessidade orgânica do paciente, ele se vê frente a carências biopsicossociais do paciente, onde ele tem que dar um atendimento objetivo, um atendimento com critério de prioridade e um atendimento técnico propriamente dito, onde a relação médico–paciente é difícil de ser priorizada. O paciente que chega com uma dor no braço, para ele aquela é a pior situação daquele momento e ele quer ter prioridade no atendimento. Mesmo que chegue um acidentado com arma de fogo, que tem que ser atendido na frente desse paciente, o problema da dor no braço dele é prioritário, então isso compromete muito a relação médico–paciente.39

Durante os dias em que estivemos entrevistando pessoas que saíam do PS do São José, pudemos notar situações como a descrita anteriormente: a sala de espera cheia de pessoas que foram andando até lá, que já estavam havia muito tempo esperando e por isso mesmo sentiam-se irritadas, mas, do lado de dentro, várias macas no corredor, com pacientes aguardando leitos para internação, e a chegada contínua de ambulâncias com pessoas, geralmente idosas, que haviam sofrido alguma espécie de derrame, infarto ou mesmo acidentados que rapidamente passavam na frente de todos que esperavam na sala ao lado e recebiam atendimento, como não poderia deixar de ser, pois se tratava de emergência. Contudo, isso fazia com que o atendimento daqueles que esperavam ao lado demorasse ainda mais e seu descontentamento crescesse na mesma proporção. Como dizia Luiz Antônio Araújo, a dor de cada um é a mais importante e ele não quer saber da dor do outro, mas o médico precisa saber avaliar as prioridades dentro do que pode ou não ser risco de saúde para um paciente qualquer. Essa diferença crucial de pensamento, o técnico e o pessoal, influi grandemente na formação das representações que cada um desses grupos faz da instituição. Hoje em dia se fala em qualidade total [...]. Já há muito tempo se vem falando das necessidades do cliente, e pra eu fazer isso eu preciso ter instrumentos, [...] eu não posso ter funcionários desmotivados, eu tenho que ter pelo menos uma base física estrutural, organizacional, para fazer isso. Hoje em dia nós estamos trabalhando com um prontosocorro com 158% de internação! Um pronto-socorro não é para ter internação! 158% quer dizer que todas as macas, 100%, [estão] ocupadas e tem mais 50% onde cabe! Não dá para [...] continuar achando a filosofia bonita.[...] É que pela Constituição eu não posso 39

ARAÚJO, Luiz Antônio de. Op. cit.

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negar [pacientes]. E o que faço? Essa é a minha defesa hoje em dia, eu aviso a Promotoria [...] Mas tem uma hora que fecha, porque nenhuma empresa consegue trabalhar adequadamente... Um copo de 150 ml, 40 cabe 150 ml [...], aqui cabe 180 e não transborda!

Aquele que demorou a ser atendido vai sair dali dizendo quantas horas ficou esperando para todos que passarem pela sua frente, e essa imagem vai proliferando, enquanto aqueles que entraram quase mortos vão ter tantas outras razões para comemorar, por terem saído vivos, que poucos vão se lembrar de elogiar o atendimento. Deve-se acrescentar que a quantidade e a complexidade de casos que chegam ao São José, e que são dirigidos para lá justamente por isso, fazem com que a mortalidade também seja grande, o que contribui muito para a construção do imaginário. Analisando as falas de pessoas que fizeram parte da administração do Hospital Municipal São José, de ex-Prefeitos, de ex-Secretários da Saúde do município e do Estado, podemos perceber alguns pontos em comum que, a nosso ver, demonstram a representação que essa parcela da sociedade faz daquela instituição. A grande maioria dos discursos, senão a totalidade, fala de uma instituição altamente competente tecnicamente, que é muito importante para a cidade e região e que está e sempre esteve prejudicada pela falta de recursos financeiros. Tabela 13 – Representações sobre o São José encontradas nas entrevistas orais

Percebe-se, na tabela 13, que mesmo esse grupo pequeno de pessoas, cuja grande maioria é composta por médicos, possui algumas especificidades em sua maneira de encarar o hospital. Para elaborarmos a tabela 13, dividimos as idéias predominantes das falas/discursos dos entrevistados com relação ao Hospital Municipal São José em três tipos principais: 40

JORDAN, L. H. Luiza Helena Jordan: depoimento [set. 1999]. Entrevistadores: Sandra P. L. de Camargo Guedes e Adilson Lipinski. Joinville, 1999. Entrevista concedida para o projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille.

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Grupo 1. Zequinha: Ambiente de trabalho agradável, profissionais gabaritados, o melhor hospital da região. É como um lar, pertence à cidade, mas falta dinheiro. Grupo 2. Administração/política: Local de administração complexa, seus problemas são administrativos e políticos, referindo-se à política local, partidária, remessa de dinheiro etc. Era bom no seu tempo, agora não é mais, “era” o Zequinha. Grupo 3. Dinheiro/SUS: O único problema é a falta de recursos financeiros. O culpado de tudo é o SUS (ou INAMPS), a previdência de maneira geral ou o governo do Estado. O primeiro grupo é o da maioria, 35,2% dos entrevistados, e que identificamos como “Zequinha” por ser um apelido dado ao São José que ouvimos de diversas pessoas ligadas a ele e que também está presente em alguns documentos escritos. É formado principalmente por médicos que ainda trabalham naquela instituição. Para eles, o Zequinha era, e ainda é, um local extremamente agradável de se trabalhar, possui profissionais gabaritados, é o melhor hospital da região, mas concordam que falta dinheiro, único empecilho para ser um dos melhores hospitais do país. Todas as falas que se incluem nesse grupo demonstram grande carinho pela instituição, como podemos ver a seguir: Os anos todos que vivi como médico me fizeram considerar o Hospital São José a minha casa, a minha casa realmente, como se fosse a casa de meus pais. Depois de uma certa idade a gente passa a trabalhar em outros lugares, em consultório particular, em outros hospitais, mas o vínculo afetivo que nós temos com o Hospital São José é para sempre. Então, eu várias vezes já falei para algum diretor que está assumindo o Hospital São José, eu como ex-diretor falo: “Você vai se apaixonar!” É uma causa. O Hospital São José é uma causa, que deveria ser causa não só de seus médicos e seus funcionários e de seus diretores mas [...] de toda a população de Joinville e norte de Santa Catarina. Se fosse realmente encarado pela maior parte da população assim, 90% de seus problemas seriam resolvidos. Mas eu acho que ainda serão resolvidos 41 em curto prazo, acho que está bem encaminhado.

Como se percebe, está presente novamente a idéia de “causa”, a causa de todos, que também aparece na imprensa e, principalmente, nas 41

FIÚZA, R. M. Ronald Moura Fiúza: depoimento [jun. 2001]. Entrevistadora: Sandra P. L. de Camargo Guedes. Joinville, 2001. Entrevista concedida para o projeto de pesquisa O Hospital Público e o Imaginário Social no Fim do Século. LHO/Univille.

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campanhas para arrecadação de fundos. A difusão dessa idéia reforça a representação do Hospital Municipal São José como o eterno hospital de caridade. O segundo grupo, que soma 29,4% dos entrevistados, composto por médicos e políticos, acredita que o Hospital Municipal São José é uma instituição de administração bastante complexa e que seus problemas, além de financeiros, são administrativos e políticos. Essas pessoas acham que no tempo em que estavam na administração, seja do próprio hospital ou do município, tudo era melhor, no seu tempo era bom, agora não é mais. O Hospital São José sempre foi um hospital do coração dos médicos, sempre foi o Zequinha, porque era nosso, nós não tínhamos Universidade [em Joinville], era o nosso hospital universitário, todos nós, todo corpo clínico, de uma maneira geral, sempre abraçou as causas do hospital, [...] o hospital tinha suas dificuldades, tinha seus problemas, sempre teve, mas hoje eles se acentuaram bastante [...] Eu não gostaria de ter um atendimento pessoal ou familiar nas condições em que está 42 hoje o hospital.

Novamente percebe-se a visão de “causa”, só que uma causa que deve ser cuidada pelo poder público, dando a entender que agora o São José não é mais uma causa dos médicos, mas de outros. A referência talvez se deva à existência de ingerências políticas cada vez maiores na instituição, como se viu na tabela 11, tirando do corpo clínico a possibilidade de participar da escolha da própria direção do hospital, através de uma lista tríplice, como era antes, por exemplo. Um terceiro grupo, que também soma 29,4% do total de entrevistados, é formado por aquelas pessoas que pensam que o único problema do Hospital Municipal São José é a falta de dinheiro, atribuindo esse problema não ao governo municipal, mas sim aos insuficientes repasses do SUS ou ao governo do Estado, que deveria ajudar mais a instituição.

O “olhar” da rua para o hospital Para confirmar ou não a continuidade das representações sociais sobre o São José encontradas nas décadas de 1970, 80 e 90, foi feita, em 2001, uma pesquisa de campo em que 400 pessoas foram entrevistadas em diferentes pontos da cidade de Joinville, por meio de um formulário estruturado. 42

ARAÚJO, Luiz Antônio de. Op. cit.

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O perfil dos entrevistados pode ser observado na tabela 14. Salientamos que procuramos buscar uma amostra praticamente equilibrada entre a população dos dois sexos, para que pudéssemos comparar as opiniões de homens e mulheres ante o problema de pesquisa. Tabela 14 – Perfil do entrevistado

É importante salientar que, entre os entrevistados, 61,8% possuíam algum tipo de convênio médico, e a maioria está ligada à UNIMED e em segundo lugar ao BRADESCO, como se pode perceber pela tabela 15. Tabela 15 – Convênio médico que o entrevistado possui

Acredita-se que o fato de as pessoas estarem ligadas a algum convênio médico faz com que fiquem afastadas da realidade do hospital público e suas opiniões sobre ele estejam baseadas naquilo que ouvem ou lêem ou ainda sobre alguma experiência direta com um dos hospitais públicos da cidade. A relação entre o hospital que escolheria para ser internado com o plano de saúde que possui é bastante evidente. Tendo-se em vista a maior quantidade de filiados à UNIMED, entende-se por que a maioria (40,8%), quando indagada sobre qual hospital da cidade escolheria no caso de internação, optou pelo próprio Hospital da UNIMED, o Centro Hospitalar UNIMED – 204

CHU, sigla que passaremos a utilizar neste capítulo – e dessas pessoas 82,2% possuíam o convênio da UNIMED, enquanto dos 34% que escolheram o Hospital Dona Helena 57,4% são ligados ao BRADESCO, que comanda aquele hospital. Tabela 16 – Relação entre a escolha do hospital e o tipo de convênio que o entrevistado possui

Com relação àqueles que optaram pelos hospitais públicos, percebese que a totalidade dos que escolheram o Hospital Regional não possuía convênio e apenas 2,9% dos que preferiram o São José os possuía. Se considerarmos que aqueles que desfrutam de convênio médico geralmente estão empregados, percebemos uma certa contradição quando observamos a tabela 17, que mostra pessoas desempregadas escolhendo um hospital particular para o caso de serem internados. Tabela 17 – Ocupação profissional X hospital que escolheria

No entanto, a contradição deixa de existir se pensarmos que a pergunta feita foi relativa à sua escolha pessoal e não ao que sua situação momentânea lhe impunha. Assim, vê-se que a vontade de ir a um hospital 205

“melhor” supera a condição financeira do entrevistado ou, então, ele estava considerando a situação de desempregado temporária. A renda média mensal da maioria de nossos entrevistados, demonstrada na tabela 14, segundo dados do IPPUJ – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Joinville – para o ano de 1999, é a mesma de 50% da população de Joinville, ou seja, entre 2 e 5 salários mínimos. 43 Essa renda, no entanto, está aliada à posse de planos de saúde, como podemos observar na tabela 18, por parte de praticamente 50% daquelas pessoas. Esse fato talvez tenha relação com outra característica da população assalariada da cidade, ou seja, a de que a maioria é composta por operários de fábricas, as quais geralmente oferecem como benefício a seus colaboradores planos de saúde médica.44 Assim, podemos compreender a presença de pessoas de todas as faixas salariais, com suas preferências distribuídas entre todos os hospitais da cidade, independentemente de serem particulares ou públicos, como se pode notar no gráfico 1. Tabela 18 – Renda familiar X convênio

Gráfico 1 – Preferência de internação X renda

Fonte: Pesquisa de campo na cidade de Joinville – 2001 43

INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO DE JOINVILLE. Joinville – Cidade em dados. 2001/2002. Op. cit., p. 37. 44

Ibid., p. 47.

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Fica evidente, no entanto, uma maior prevalência daqueles que possuem renda familiar mais baixa nos hospitais públicos e, ao contrário, das maiores rendas nos particulares, em especial no CHU. Esses dados coincidem com os resultados da pesquisa realizada pelo IBGE em 1998 indicados no primeiro capítulo deste livro. Se não houvesse a possibilidade de internação em um hospital privado, a maioria dos entrevistados respondeu que preferiria o Hospital Municipal São José ao Hospital Regional, fator demonstrado no gráfico 2.

Gráfico 2 – Se a única opção fosse um hospital público, qual a preferência do joinvilense? Fonte: Pesquisa de campo na cidade de Joinville – 2001

Se a pergunta, no entanto, fosse sobre qual o hospital, dentre todos os existentes na cidade, que jamais escolheria, o índice de rejeição recai sobre os dois hospitais públicos, principalmente sobre o Hospital Regional, como podemos observar na tabela 19, reforçando a posição colocada no quadro anterior. Destaca-se a ausência de rejeição ao Hospital Dona Helena e de apenas 0,3% ao CHU, enquanto 37,2% mostraram-se indiferentes com relação à escolha, ou seja, não possuem rejeição específica a nenhum dos quatro hospitais indicados. Tabela 19 – Nível de rejeição quanto ao hospital escolhido para internação

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O fato torna-se ainda mais instigante se observarmos que, dentre aqueles que não apresentam rejeição a nenhum hospital, 44,9% possuem convênio médico e que, presume-se, poderiam optar por não ir a hospitais públicos, mas isso não acontece. Parece claro pensar que, no caso de necessidade, ou seja, de internação hospitalar, muitas vezes as pessoas não podem se dar ao luxo de escolher para onde ir e vão para o local onde possam ser tratadas e atendidas. Essa hipótese pode ser confirmada quando observamos as opiniões em relação aos serviços de emergência. Tratando-se de pronto-socorro, o de maior preferência foi novamente o do CHU, seguido de perto pelo São José, depois o Dona Helena e, por último, o Regional. Nota-se que, assim como para as escolhas com relação ao hospital, a maioria absoluta daqueles que optariam pelos prontos-socorros públicos não possui convênio médico, enquanto relativamente ao Hospital Regional essa realidade representa, novamente, a totalidade dos usuários. Vê-se no entanto que, no caso de emergência, não aparece tão claramente a visão, vamos dizer, utópica de que mesmo não tendo convênio médico ou estando desempregado poderia ir para um pronto-socorro privado, como ilustra a tabela 17. Esse pode ser um dado que reflita a representação que a sociedade joinvilense está fazendo do pronto-socorro do Hospital Municipal São José, ou seja, é feio, é sujo, é demorado, mas é o de mais fácil acesso e, mesmo que a pessoa espere muito, será atendida, principalmente numa emergência. O gráfico 3 deixa mais clara a relação de preferências sobre os prontos-socorros da cidade.

Gráfico 3 – Preferência do entrevistado quanto ao hospital a ser utilizado para o serviço de emergência médica (pronto-socorro)

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Gráfico 4 – Sobre a qualidade do Hospital São José, qual das unidades é responsável pela formação da opinião do entrevistado?

Uma outra questão, também direcionada ao Hospital Municipal São José, dizia respeito a sobre quais setores do hospital a pessoa possuía informações, visando compreender se elas se refeririam ou não apenas ao pronto-socorro, já que essa parte da instituição é a que mais comumente recebe críticas através da mídia. As respostas obtidas, como se pode observar pelo gráfico 4, mostram que a maior parcela da população de Joinville teve informações de todos os setores do São José, especialmente do pronto-socorro. Na pergunta em que a pessoa podia se expressar mais livremente sobre qual a sua opinião a respeito do Hospital Municipal São José, nota-se a referência ao pronto-socorro quando se fala sobre a lentidão no atendimento: “Apesar da demora, tem um bom atendimento”, “Já fui lá algumas vezes, você só precisa ter muita paciência”. Como comentado anteriormente, em casos reais de emergência o atendimento é rápido: “Fui bem atendida lá, com muita agilidade, tinha me acidentado”, “Fui bem atendido, tanto na operação quanto no PS”. Ligando-se aquelas respostas à pergunta sobre os meios pelos quais os entrevistados obtiveram informações a respeito do Hospital Municipal São José, vê-se que a maioria já havia utilizado o seu pronto-socorro ou obteve informações por intermédio de amigos ou parentes: “Já estive internado lá e fui bem atendido”, “Não estive lá, mas não tenho boas notícias sobre ele”, “Minha filha teve um bom atendimento”, “Já ouvi casos de pessoas que se sentiram humilhadas lá”, “Muita crítica do povo, mas dizem ter médicos capacitados”, “Minha avó foi internada lá e correu tudo bem”, “Meu irmão já foi lá e não gostou”, “Conheci uma pessoa que disse ter pegado uma doença lá”. Vêem-se também várias outras referências a experiências diretas com a instituição que sintetizam o que muitos pensam dela. Nota-se que, em termos 209

de saúde ou doença, as informações que mais influenciam na formação do imaginário são aquelas obtidas através da experiência vivida ou transmitida pessoalmente, confirmando a afirmação de Patlagean de que “o domínio do imaginário é constituído pelo conjunto das representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos encadeamentos dedutivos que estas autorizam”.45 Tabela 20 – Origem das informações que o entrevistado possui sobre as condições de serviços oferecidos pelo Hospital Municipal São José

A porcentagem daqueles que obtiveram informações por meio da mídia é menor, mas não pode ser ignorada, pois somada chega a 23,9%. Uma resposta em especial mostra a dúvida quanto a que posição tomar, já que a pessoa possuía opiniões contraditórias sobre o hospital, adquiridas de fontes diferentes: “Algumas boas, outras ruins: boas – parentes; ruins – mídia”. Essa última fala reforça a colocação de que as notícias que a mídia costuma divulgar são relacionadas a problemas na área de saúde. Se observarmos o conjunto das respostas dadas pela população de Joinville, quando indagada sobre que tipo de informação tinha sobre o São José, percebemos que a grande maioria delas são informações ruins, ou seja, 72%, enquanto apenas 26% consideram boas ou boas porém com ressalvas. As principais críticas entre os que acham o Hospital Municipal São José ruim recaem sobre o conjunto da instituição e não, como supúnhamos, principalmente ao pronto-socorro. Os principais pontos citados foram, pela ordem: condições gerais (49,75%), atendimento em geral e burocracia (8,25%), sujeira (4,5%), condições do prédio (2,7%) e em menor escala o atendimento médico (0,2%). 45

PATLAGEAN, Evelyne. A história do imaginário. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 291.

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Frases do tipo “Aquele prédio está muito velho”, “Aquilo é o fim do mundo”, “As condições são muito ruins”, “É um hospital sujo e desorganizado”, “Existem inúmeras infiltrações que prejudicam o paciente”, “Já estive lá e voltei chorando pelo mau atendimento”, entre outras, são alguns exemplos de respostas que qualificam de maneira negativa a instituição. Sem dúvida, a pesquisa de campo nos mostrou que a parcela da população de Joinville, de maneira geral, constituída por pessoas que não utilizam o sistema público de saúde por possuírem algum tipo de convênio médico vê o Hospital Municipal São José como um local cujo ambiente físico é muito ruim, e essa imagem supera qualquer outra relacionada à qualidade dos serviços ali prestados. Algumas frases mostram como o conceito de “o que é público é ruim” é bastante forte na formação do imaginário coletivo. Entre elas, consideramos significativas as seguintes: “Ouvi dizer que é um lugar sujo, mas como é público isto é relevante (sic)”, “Por ser um hospital público, penso que é bom”, “Ele é bom, atende as pessoas pobres”. Por outro lado, e como não poderia deixar de ser, as informações sobre o sistema de saúde nacional, ou sobre o mundo, são obtidas por intermédio da mídia escrita ou televisionada, deixando o rádio muito mais para os fatos locais. Essas informações, de nível mais geral, acabam influindo muito mais na camada letrada da população, que relaciona o sistema público nacional com o local, ou seja, este sendo conseqüência daquele. Ao analisarmos as respostas da população quando perguntamos sobre o que pensava sobre a saúde pública em Joinville, vemos que a grande maioria, cerca de 70%, não sabe explicar exatamente o motivo de sua resposta, mas simplesmente afirma que está ruim. Adjetivos depreciativos, como carente, atrasada, precária, odiosa, repugnante, esquecida, horrível, ruim, deficitária, estão presentes nas respostas dos entrevistados para qualificar a saúde no município. Entre os que atribuíram causas para justificar o estado precário da saúde pública no município destacam-se aqueles que as associaram aos políticos locais, acrescentando que faltam recursos financeiros e melhoria na infraestrutura. Frases do tipo “As autoridades devem ver a saúde com o coração, se é que têm um”, “Ninguém se importa com a população carente desta cidade”, ou ainda “Pergunte ao Prefeito! Ele tem que esquecer obras bonitas e cuidar disso”, “Tem que ter mais dinheiro para ser melhor”, ou simplesmente “Precisa melhorar muito”, encontradas nas entrevistas, refletem o pensamento da população. Apenas 14,5% dos entrevistados acham a saúde pública em Joinville boa e 18% pensam que poderia melhorar. A relação entre saúde pública e postos de saúde é feita principalmente pelas mulheres, já que são elas que levam seus filhos para atendimento médico naqueles locais: “Tem muita fila nos postinhos”, “Tem algumas coisas que 211

podiam melhorar, como a construção de mais postinhos”. A associação desses problemas com o Hospital Municipal São José, no entanto, fica subentendida em algumas falas e é feita tanto por homens quanto por mulheres, numa escala de igualdade, como, por exemplo: “Tanto eu quanto outras pessoas que estiveram lá não fomos bem atendidos”, ou “Sua higiene deveria ser prioridade”. Outros referem-se diretamente ao hospital: “O Hospital São José não dá conta da cidade”. Da mesma forma, quando indagados sobre a saúde pública no Brasil, também as opiniões da maioria são diversificadas, mas entre elas a que se destaca é a de que está ruim, mas nesse caso a porcentagem é bem maior do que quando se trata do município, ou seja, quase 90% do total. Aqui também encontramos palavras bastante depreciativas e variadas, que sintetizam a maioria das respostas; “ruim” é a mais comum, mas encontramos também desorganizada, deficitária, carente, esquecida, falida, horrível, triste, doente, lenta, pobre, odiosa, calamidade, lixo, catástrofe, vergonha e até palavrões. No caso da saúde no plano nacional, a maior parte das pessoas disse que os problemas advêm dos políticos e da falta de recursos para a saúde. Vejamos algumas das respostas dadas: “Eu acho que lá em Brasília eles estão mais perdidos do que não sei o quê”, “Aquilo que já se espera de um governo safado”, “Ela não está no umbigo dos governantes”, “As verbas devem ser priorizadas para esta área”, “Eles brincam com o que não se deve” e ainda “Horrorosa, com pessoas morrendo na fila”, “Os jornais apontam muitas dificuldades”, “Uma crueldade com a população”, “Deve ser a pior do planeta”. Se considerarmos que apenas 3,2% acham boa a saúde no Brasil e que essas informações advêm, principalmente, da mídia, já que não se pode contar com a experiência vivida nesses casos, evidencia-se a importância dos órgãos de comunicação na formação de opinião e, portanto, das representações sociais sobre a saúde pública brasileira. Uma matéria veiculada em todo o território nacional em um dos mais assistidos jornais de televisão, por exemplo, que mostre pessoas morrendo na fila de um hospital, seja em que parte do país for, ou de recém-nascidos sendo infectados em berçário de outro hospital e também morrendo por isso choca e atrai muito mais a atenção do telespectador do que uma notícia que anuncie a descoberta de uma nova vacina ou de um novo tipo de tratamento para uma determinada doença, mesmo que tenha sido um feito de um pesquisador brasileiro.

Mesmo sendo SUS poderia ser melhor Outro tipo de representação sobre o Hospital Municipal São José pode ser encontrado junto aos usuários da instituição. Para isso, tivemos acesso aos questionários de alta aplicados pelo próprio hospital em 2000 e 2001 para 212

os pacientes internados e acrescentamos nossa própria experiência com a aplicação de formulários para os usuários do pronto-socorro, em 2002. Os questionários de alta estão divididos por setores de internação, o que nos permite estabelecer comparações entre as diferentes alas do hospital. Na pediatria, por exemplo, as maiores queixas estão relacionadas à falta de conforto para os acompanhantes, que têm que dormir sentados em cadeiras plásticas, às vezes por muitos dias, inclusive as mães que estão amamentando. “O único problema é que estou grávida e não posso descansar direito. Tenho que dormir sentada em uma cadeira de plástico”, afirmava uma mãe em abril de 2000. Outra dizia que “as mães que amamentam passam de 4 a 5 dias sentadas, sem terem poltronas para descansar”. A partir da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, que obriga os hospitais a permitirem que os pais acompanhem seus filhos quando internados, o atendimento no Hospital São José acabou prejudicado, pois não houve a adequação física necessária para que mais pessoas fossem colocadas nos quartos de pediatria. Assim, ao permitir a presença dos acompanhantes, o hospital foi obrigado a deixá-los sem conforto para que pudesse continuar a ter o mesmo número de leitos. Se fossem colocadas camas para os pais dormirem, teriam que ser tiradas algumas de pacientes, diminuindo o número de leitos na pediatria, já que o espaço continua o mesmo. Assim, ao lado dos leitos existentes foram acrescentadas algumas cadeiras plásticas, dobrando o número de pessoas a ocuparem o mesmo espaço, sem o menor conforto. As reclamações são muitas: “Muitos pacientes em um só lugar. Ficam sufocadas, doze pessoas respirando o mesmo ar em um lugar tão pequeno”, registrou um acompanhante. O pouco espaço faz com que não seja permitida a entrada de outras visitas, o que também passa a ser um problema: “A respeito do Sidney, gostaria que a assistente social liberasse a visita do pai do menino, pois ele é muito triste, e se alimenta bem e fica muito feliz com a visita do papai”, apelava uma mãe em janeiro de 2001. Com certeza esses problemas têm sido constatados pela equipe do hospital, mas ela pouco pode fazer, já que soluções para problemas de espaço só existem se forem feitas ampliações, ou melhor, construções, o que depende da Prefeitura, principal responsável pela manutenção daquela instituição. Porém, se pensarmos que aquelas pessoas estão passando por um estresse bastante grande somente pelo fato de terem um filho internado em um hospital, poderemos compreender que nenhuma explicação poderá diminuir sua revolta ante tal situação, o que, na maior parte das vezes, é expresso às pessoas que estiverem em contato mais direto com elas, ou seja, enfermeiras, funcionários ou médicos, e a eles são atribuídas todas as culpas. 213

Foto 12 – Quarto coletivo da pediatria, com cadeiras plásticas para acompanhantes

A família e, em especial, as mães exercem um papel bastante importante ao lado de seus filhos, proporcionando-lhes maior segurança e muitas vezes sendo as responsáveis por não permitir que arranquem uma sonda ou outro equipamento que esteja a eles ligado ou, ainda, a convencêlos a tomar um medicamento quando dado por uma enfermeira, por exemplo. Por isso, dependendo da idade da criança e do seu problema, temem sair do seu lado, mesmo que seja por alguns minutos. Nesse caso, as queixas são enormes com relação à impossibilidade de os acompanhantes usarem o banheiro do quarto e da falta de um refeitório no mesmo andar da pediatria, obrigando-os a sair de perto de suas crianças para comer ou ir tomar um banho, por exemplo. As reclamações são muitas e se repetem: “[Deveria haver] banheiros separados para homens e mulheres”, “Poderia os acompanhantes usar o banheiro do quarto, pois temos que deixar as crianças sozinhas para ir até o outro banheiro, principalmente porque o chuveiro não esquenta”. Outros, ainda, fazem críticas a diversas partes da instituição. Enquanto não reformarem os quartos a situação fica difícil. É necessário mais roupa de cama e um banheiro com mais higiene. O estacionamento, é um absurdo a taxa que se cobra. Por que quando a gente entra num hospital já sabe que vai demorar. Por isso o custo do estacionamento é um absurdo. Então que se cobrasse um real. O médico 46 deveria passar mais vezes. 46

Questionário de alta, pediatria do Hospital Municipal São José, abril de 2000. Sem identificação. Segundo o radialista Wilson França, são muitas as reclamações de ouvintes na rádio sobre o fato de se ter que pagar pelo estacionamento do hospital.

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Parece lógico também que as mães que acompanham seus filhos, geralmente na área ligada ao SUS, não têm nenhuma distração47 a não ser a doença de seu filho; observam atentamente tudo o que as cerca e registram uma série de problemas direcionados ao próprio tratamento dispensado à sua criança e ao ambiente físico, o que não acontece aos acompanhantes das alas privativas que, além de contarem com quartos melhores e individuais, podem trazer de casa o tipo de distração que quiserem. “Gostaria que dessem atenção ao SUS como dão aos particulares, poder trazer TV para o quarto e acomodação melhor para as acompanhantes.” A relação entre a falta de manutenção do prédio e a sujeira é muito visível. Paredes descascadas, úmidas ou com reboco caindo inspiram ar de desleixo, de falta de cuidado e também, é claro, facilitam a proliferação de insetos. “Como não pegar uma infecção em um quarto que tem aranhas, formigas e as paredes emboloradas?”48 As reclamações com relação à falta de delicadeza dos funcionários também pareceram generalizadas. Alguns até citaram o horário e o nome do funcionário e acrescentaram que, como se tratava de crianças, que as enfermeiras poderiam, pelo menos, sorrir um pouco. Tabela 21 – Grau de satisfação com relação ao HMSJ

Fonte: Hospital Municipal São José 2000

É lógico que os questionários não apresentam apenas críticas, são vários os elogios a alguns médicos e enfermeiros, e os nomes também são citados, mas a maioria absoluta dos questionários que trazem informações no espaço livre para isso é de críticas e não elogios, relacionadas a determinados setores do hospital, reforçando as estatísticas. Se estas forem observadas na 47

Uma queixa bastante freqüente das acompanhantes da pediatria é a impossibilidade de ter uma televisão no quarto. 48

Questionário de alta, Hospital Municipal São José, junho de 2000. Sem identificação.

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tabela 21, veremos uma situação que poderia ser qualificada como muito boa, já que se tem quase 83% dos respondentes dando-se como satisfeitos ou muito satisfeitos pelo atendimento prestado na área relativa ao SUS. Tabela 22 – Tabulação de questionários de alta de pacientes SUS

Fonte: Hospital Municipal São José

No entanto, se observarmos com mais atenção os itens relacionados a conforto do quarto, limpeza, conservação/manutenção, sistema de visitas e prontosocorro, explicitados na tabela 22, veremos que eles confirmam as críticas colocadas nos comentários dos entrevistados, sendo os que apresentam maior incidência de opiniões entre regular e ruim comparativamente aos demais itens avaliados. Entretanto, quando analisados no conjunto, serviços que muitas vezes as pessoas nem mesmo utilizaram, ou cuja eficácia são incapazes de avaliar, devido a sua especificidade, acabam influenciando na estatística final, minimizando os índices negativos atribuídos a determinados serviços. Para confirmar essa

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afirmação, basta observar o elevado número de perguntas que não obtiveram respostas, demonstrado na tabela 22. Na ala JS, onde são atendidos adultos pelo SUS, a maioria das colocações foi elogiosa ao tratamento dispensado. Ao que parece, as fichas de questionário de alta, ao contrário da pediatria, onde o acompanhante foi quem

Foto 13 – Antiga ala B

Foto 14 – Ala privativa, segundo andar, em fins da década de 1990 217

respondeu, foram preenchidas pelos próprios pacientes. Não faltaram, no entanto, críticas à enfermagem quanto ao trato com os pacientes, salientando, em muitos casos, nomes e horários de trabalho, sendo a maioria das críticas voltadas ao atendimento noturno. A limpeza também é outro fator bastante criticado, principalmente dos banheiros, já que os quartos e banheiros são coletivos. Na ala B, que é uma das mais antigas do hospital,49 por outro lado, é raro se ver um elogio; muitas críticas são dirigidas às relações humanas, desde a chegada via pronto-socorro, por onde entram muitos dos que estão ali internados. Além das costumeiras críticas com relação aos banheiros e à limpeza deles, dos quartos e da roupa de cama, muitas pessoas se queixavam do pouco horário destinado às visitas e do barulho existente durante a noite naquela ala: “[é preciso] diminuir o barulho durante o repouso à noite, pois saltos de sapatos e conversas incomodam os pacientes.” São várias as críticas a esse respeito, não se limitando a uma ou outra pessoa “mais sensível”. Críticas diretas à falta de atenção da Prefeitura para com o hospital também aparecem nos questionários de alta da ala B, como por exemplo: “Vergonha, a Prefeitura deve olhar mais para a saúde, falta de respeito” ou “Prefeitos: olhar melhor a ala B”, “Em vez de incentivar as empresas a adotar uma praça, deveria ser incentivado a adotar um leito de hospital, pois é desumano o que se vê no dia-a-dia”. As críticas às maneiras dos funcionários e, muitas vezes, aos médicos são gerais também na ala privativa. Algumas pessoas notavam a diferenciação de atendimento ao perceberem que o paciente poderia pagar por ele, como: “Bom atendimento em todos os setores e agilidade, principalmente no prontosocorro e no setor do SUS (somos todos iguais)”. Outra pessoa foi ainda mais clara: “Atendimento igual para todos. Fomos mal atendidos no PS, pois fomos tratados como indigentes. Só depois que dissemos que nosso filho era médico fomos bem tratados”.50 Os formulários aplicados no setor privado eram um pouco diferentes na sua forma, ou seja, apresentavam mais subdivisões, especificando o ponto exato a que se referia a opinião do paciente atendido. Essa diferença foi opção do grupo de funcionários do hospital responsável por sua aplicação. Entre aqueles que responderam aos formulários do setor privativo, nota-se que uma grande parte não utilizou o pronto-socorro ou a UTI, já que não responderam às questões relativas a esses setores. Vê-se, ainda, que a 49

A ala B fica em uma das partes mais antigas do prédio que abriga o São José, e ali eram atendidos casos de ortopedia e oncologia. No início de 2002, a ala B teve uma de suas partes restaurada, a qual abriga um memorial e quartos novos para a oncologia, enquanto a ortopedia continua nas mesmas condições anteriores. 50

Questionário de alta, setor privativo, abril de 2000.

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Quadro 12 – Questionário de alta – Unidade privativa – Resumo 2000 Fonte: Hospital Municipal São José

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maioria foi internada no São José por indicação médica ou então por imperativo de seu convênio de saúde. Deve-se destacar a diferença encontrada entre as opiniões relativas aos itens de conforto do quarto, limpeza, conservação/manutenção, sistema de visitas, os mais criticados entre os pacientes do SUS e que aqui são elogiados ou então nem aparecem como ponto de análise, como é o caso de conservação/ manutenção e sistema de visitas, já que os quartos da ala privativa ficam em locais cuja manutenção é bem mais cuidada e as visitas são praticamente livres. Há algumas raras exceções, dependendo do estado do paciente, é claro.

A “cultura” do pronto-socorro Para termos uma idéia mais clara da opinião que os usuários do pronto-socorro do São José têm sobre ele, fizemos uma pesquisa de campo, aplicando 60 formulários nos três turnos – manhã, tarde e noite – em diferentes dias, durante o mês de julho de 2002. Para que não tivéssemos muita diferença entre as pesquisas feitas pela própria instituição, adotamos praticamente os mesmos indicadores utilizados nos questionários de alta, aplicados aos internos, anotando, contudo, as observações colocadas pelo usuário, quando ele assim o desejasse. Observando o perfil dos usuários, podemos notar que tanto homens como mulheres utilizam aquele pronto-socorro, já que a diferença foi mínima entre os dois sexos, ou seja, 52,4% de homens e 47,6% de mulheres, a maioria com idade entre 25 e 49 anos (50,8%), com primeiro grau incompleto (42,6%), assalariados (32,7%) e com renda familiar também entre 2 e 5 salários mínimos (47,5%), como registrado na pesquisa de campo feita na cidade. Foram com os comentários que as pessoas fizeram após as perguntas que conseguimos obter as informações mais significativas para nossa pesquisa. Das pessoas entrevistadas, 75% fizeram mais algum comentário ou sugestão sobre o atendimento que haviam acabado de receber, e esses comentários dão vida aos números. Ao perguntarmos sobre por qual motivo teriam se dirigido ao prontosocorro do Hospital Municipal São José, a maioria (48,3%) disse que havia sido encaminhada por médicos de outras instituições. Muitos haviam passado antes em um posto de saúde ou no Hospital Regional e, por falta de médico especialista ou de raio X, principalmente, tinham sido encaminhados ao São José. Entre aqueles que vieram de bairros que possuem postos de saúde, percebeu-se que não há confiança no atendimento prestado nos postos, principalmente porque não são tão equipados como o São José e também por 220

terem os horários de atendimento limitados e dias específicos para marcar consultas. Em alguns postos todas as consultas da semana são marcadas na segunda-feira. Aqui também a experiência pessoal é o que vale. Um senhor, com gesso do pé até o joelho, dizia que havia chegado ali de lotação e que agora não sabia como iria embora, pois havia sido operado, não podia pôr o pé no chão e não tinha uma muleta sequer: “Vim do Jativoca, lá tem posto de saúde, mas só atende na segunda-feira, é a mesma coisa que não ter!”51 Uma moça declarou: “No posto tem que ir de manhã, bem cedo, e aqui pode vir qualquer hora!” Da mesma forma, um rapaz que havia se sentido mal no trabalho disse: “Vim direto do trabalho para cá, no posto não se pega mais médico nesse horário.” Uma mulher reclamou: “Como vou saber em que dia meu filho vai ficar doente?” Uma senhora que havia sido encaminhada do posto de saúde do Itinga, porque estava com dores no braço, comentou: “Era só uma torção e o médico disse que eu não deveria ter vindo aqui, mas eu não sabia o que tinha, meu braço doía e o médico do PA disse para eu vir para cá porque lá não tinha raio X. O que posso fazer?!” Algumas pessoas chegaram ao pronto-socorro do São José por intermédio dos paramédicos, por terem sofrido algum tipo de acidente, outras foram encaminhadas de cidades vizinhas, como um senhor de Massaranduba, que nos disse que só por intermédio do pronto-socorro do Hospital Municipal São José havia conseguido fazer uma cirurgia pelo SUS. Já estava há vários dias à procura de um hospital, tinha passado por vários de cidades vizinhas, mas não havia conseguido nada, por isso estava muito satisfeito. Achou o atendimento excelente, mas “a sala de recuperação poderia ser um pouco maior, todos ficam muito apertados ali”. Várias pessoas comentaram a situação da sala de observação, local que impressiona pela quantidade e variedade de casos todos colocados juntos. Um acidentado, que aguardava liberação, disse ter ficado “internado junto com aidético e outro com câncer terminal e sem banheiro!”. Percebe-se, nas entrelinhas de várias falas, o medo de contaminação, incentivado pelo desconhecimento e também pelo ambiente que, além de superlotado, apresenta condições físicas bastante precárias, novamente induzindo à sujeira. O banheiro e o excesso de lixo nas lixeiras é ponto comum na fala dos entrevistados. Depois de um bom tempo que uma pessoa havia vomitado bem no meio do corredor por onde passavam várias pessoas e de termos visto que ninguém fazia nada, ou melhor, que o guarda, único funcionário por ali, nem 51

Foi atendido no PS dia 19 de julho de 2002, de manhã.

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Fotos 15 e 16 – Pronto-socorro do HMSJ – Sala de observação

ligava, comentamos: “Ninguém vem limpar isto?”. E recebemos a seguinte resposta, com ares de zombaria: “Não se assuste não, dona, aqui é assim mesmo, a senhora não viu nada!”. Ao comentarmos que por ser um pronto-socorro não significava que a sujeira teria que permanecer ali e que seria muito bom se ele chamasse alguém para limpar, ele resolveu fazer isso. Um dos grandes problemas do pronto-socorro, segundo informações apresentadas nas entrevistas orais e nos relatórios médicos, é que muitas pessoas se dirigem àquele local sem terem problemas emergenciais e acabam congestionando o atendimento. Porém, afirmam que as pessoas vão ao São José por costume, cultura, ou seja, não vão aos postos de saúde espalhados pela cidade porque “gostam” de ir ao São José. Alguns casos são realmente assim, como o de um senhor, muito revoltado, que esbravejava. Perguntamos se gostaria de dar seu depoimento, e ele só nos deu atenção depois de dizermos que não éramos funcionárias do hospital. Dizia que aquele era o pior lugar do 222

mundo, que só vinha ali por falta de opção, pois só tinha médico ali, e xingava médicos e enfermeiras. Quando explicou o motivo de sua raiva, percebemos que ele tinha razão de estar bronqueado por não ter muitas opções de atendimento, mas que a sua crítica não valia para um pronto-socorro, já que reclamava pelo fato de a atendente ter se negado a marcar um horário para retorno de seu filho que estava em casa com o braço quebrado e deveria ser visto por um médico. Percebe-se que aquele senhor com certeza continuaria, por um longo tempo, reclamando do pronto-socorro e que, pela intensidade de sua voz e da raiva que estava transmitindo, iria influenciar um número bastante grande de pessoas sobre a “má qualidade” do serviço ali prestado. Outras pessoas, 26,6% dos entrevistados, se dirigiram ao São José porque era o mais próximo de sua casa. Porém nossa pesquisa mostrou existir um grande número de pessoas que se dirigem ao São José por terem sido encaminhadas de outros centros médicos da cidade que deveriam estar cumprindo sua parte, como pudemos perceber pelos depoimentos dos usuários. Uma grande parte (76,6%) daqueles que foram entrevistados afirmou já ter utilizado o pronto-socorro anteriormente, portanto, já conhecia a instituição. Uma senhora que levava duas filhas para serem atendidas por suspeita de leptospirose disse: “Só hoje foi demorado. Minha família toda vem sempre aqui, mas tem gente que não sabe para que é pronto-socorro e vem aqui para qualquer coisa, por isso vem tanta gente!” Interessante notar a contradição em sua fala, pois, se ela sabia para que serve um pronto-socorro, por que a família dela estava sempre ali? Mostrouse bastante conhecedora do local e certa do que estava falando. Especificamente sobre a qualidade dos serviços, podemos observar na tabela 23 que a maioria os considera excelentes ou bons, percebendo que o maior número de insatisfações está, novamente, naquilo que se refere ao ambiente físico, ou seja: sala de espera, instalações e limpeza. Durante o tempo que estivemos ali, tivemos a oportunidade de sentir o cotidiano daquele pronto-socorro e perceber algumas situações. Como comparecemos em três turnos diferentes e também em dias diferentes, e justamente por não estarmos acostumadas àquele tipo de ambiente, pudemos fazer algumas inferências sobre o comportamento daqueles que convivem com ele. Observando a movimentação, vimos ambulâncias chegando, paramédicos, bombeiros ou policiais trazendo macas com acidentados ou com alguma pessoa idosa que teve algum tipo de problema. Esses profissionais agiam com rapidez e segurança, mostrando que aquele tipo de ação lhes era bastante cotidiana. Aqueles que chegavam em macas eram rapidamente atendidos, enquanto várias pessoas que já esperavam havia horas continuavam pacientemente aguardando, e outras, já atendidas, também esperavam em macas nos corredores, sentadas ou na grande sala de observação já citada, onde dezenas 223

Tabela 23 – Qualidade dos serviços prestados no pronto-socorro do Hospital Municipal São José, segundo os usuários

de pessoas com os mais diferentes problemas também aguardavam uma melhora ou uma vaga para internação. Uma denúncia bastante esclarecedora sobre a situação daquele prontosocorro foi encontrada em uma carta dirigida ao Conselho Municipal de Saúde por uma usuária e também conselheira que pedia providências urgentes ao fato: Na condição de cidadã e usuária do Sistema Único de Saúde neste município, venho solicitar providências para sanar alguns “atos falhos” de rotina praticados dentro do Hospital Municipal São José, por mim testemunhados em 14/02/01, os quais com certeza afetam a eficiência no atendimento à população. Por exemplo: - Na recepção do pronto-socorro – Após 3 horas de espera (em média) o paciente com queixa de dores provenientes de um tombo é encaminhado ao traumatologista. - No corredor interno (local de espera da traumatologia) – Neste local, se não chegar nenhum paciente com politraumatismo, o atendimento ocorre em mais ou menos 30 minutos. O traumatologista (mal) ouve sua história e manda fazer um raio X com a recomendação de que com o exame o paciente aguarde atendimento do ortopedista. - Neste mesmo corredor, aguarda-se em média 1 hora para fazer a radiografia. Depende do número de pacientes politraumatizados e da gravidade de cada um, que também aguardam e são atendidos no mesmo local. - Na sala de espera da ortopedia – Espera-se em média 2 horas, se o profissional não for “chamado” ao centro cirúrgico. Para quem não apresenta fratura exposta, o atendimento não passa de 3 minutos; logo é encaminhado para a sala de gesso e ponto final (como eu recusei ser engessada, não sei dizer do atendimento para esse procedimento). CONCLUSÃO: para conseguir a indicação de um remédio para dores no joelho (felizmente não tive fratura, apenas lesão em um dos ligamentos), precisei dispor de 6 horas e 33 minutos (das 11:00 às 17:33 h). 224

- DETALHE: Segundo os profissionais que estavam trabalhando, o dia estava calmo. Durante minha espera, os bombeiros entregaram apenas 3 pacientes – 2 por acidente com moto e um atropelamento. Outras observações: todos os pacientes que fizeram algum tipo de cirurgia ortopédica voltam para revisão, via pronto-socorro, e são “clientes preferenciais” do ortopedista, mesmo que não estejam sentindo dores. Uma pessoa idosa, que já estava internada (?), caminhava na parte externa do pronto-socorro (entrada das ambulâncias), de camisola transparente, sonda nasogástrica e soro no braço, pedindo cigarro aos que se encontravam no local. Avisei ao vigilante de plantão (?) e ele respondeu que não havia problema, pois os médicos e/ou enfermeiros não se “importavam” e a paciente não iria fugir. O chão da recepção estava imundo; o ambiente cheirava mal; o corredor interno e a sala de espera da ortopedia não têm ventilação e o atendimento 52 por parte dos funcionários não tem nada de humano.

Consideramos a carta auto-explicativa. Esse tipo de crítica é bastante freqüente. Ouvimos as mesmas reclamações de várias pessoas, tanto em entrevistas nas ruas como no próprio pronto-socorro, porém não é tão comum que os usuários registrem suas queixas em documento escrito e que este chegue às mãos do conselho. Porém, apesar de ter sido registrada em ata e o problema ter sido encaminhado para investigação, não se viu, nas atas das reuniões seguintes, se houve alguma medida concreta tomada com relação ao fato. Várias colocações presentes na carta foram por nós confirmadas. Os guardas que faziam a segurança da porta, para evitar que entrassem pessoas não autorizadas e fora dos horários permitidos, apresentaram, durante nossa permanência ali, uma certa insensibilidade, mostrando-se grosseiros e muitas vezes até estúpidos para com aqueles que procuravam entrar ou queriam alguma informação. “Não sei não, só tomo conta da porta! Não posso sair daqui!”, eram as respostas mais comuns. Eles nem ao menos diziam onde a pessoa poderia conseguir uma informação. No entanto, não havia mais nenhum funcionário ali, exceto eles, e as pessoas, do lado de fora, andavam angustiadas de um lado para outro, aguardando... Quando comentávamos que as pessoas que tentavam entrar deveriam estar preocupadas com alguém que estava do lado de dentro e que por isso estavam nervosas, eles diziam: “Ih moça, isso não é nada! Hoje está calmo!” ou “Já estou acostumado, tem que ser assim, senão eles não respeitam”. A autoridade, imposta por um uniforme, dava-lhes um certo poder que os fazia se sentirem importantes, mas, ao mesmo tempo, procuravam encobrir uma grande tensão. Um deles comentou conosco quando 52

CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE JOINVILLE. Ata da assembléia extraordinária de 13 fev. 2001. Carta endereçada ao Conselho Municipal de Saúde por Rosinete Fátima Ferreira Neto.

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viu nosso desconforto ao ver sair morta, em uma maca, de uma sala de atendimento, uma pessoa que acabara de chegar de ambulância: “Não é fácil não, dona! Todo dia é assim. Tem dia que não consigo dormir. Fecho os olhos e vejo gente quebrada, sangrando ou assim, que nem esse aí...” Percebemos que ele disfarçava a própria angústia com uma agressividade exagerada para com os outros.

Foto 17 – Pacientes aguardando atendimento no PS do HMSJ

Um dos guardas nos disse: “Não agüento mais trabalhar aqui. A gente reveza, mas no horário que tenho que vir para cá, parece que estou indo para a forca. Mas a gente tem família, tem que trabalhar...” Os visitantes ou pacientes que aguardavam calados mostravam um certo ar de resignação e, quando questionados, comentavam: “Para pobre está bom!” Vimos, portanto, que uma grande parte daqueles que freqüentam aquele pronto-socorro sabe que ali será atendida, mesmo que tenha que esperar o dia todo, o que não acontece nos postos de saúde ou em outros hospitais da cidade ou das redondezas, onde simplesmente encontram as portas fechadas ou alegações de que não possuem equipamentos ou profissionais para resolver seu problema. Essa resignação talvez seja o motivo para a falta de investimentos públicos naquele hospital, já que é municipal e, portanto, a manutenção deve ser feita pela Prefeitura e nada tem a ver com os famosos “repasses insuficientes do SUS”, o que acaba servindo de desculpas para a falta de investimentos, pois “para pobre está bom!”

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O São José é uma instituição centenária e carregada de símbolos. Foi por muito tempo uma instituição de caridade e ainda é vista assim pelos moradores mais antigos da cidade, enquanto outros a vêem simplesmente como um hospital ou, ainda, como “o” hospital de Joinville. Funcionários mais antigos e médicos o chamam carinhosamente de “Zequinha” e ficam muito enfurecidos quando se fala mal dessa instituição. Do mesmo modo, não se pode entender o São José sem compreender o Sistema Nacional de Saúde e as conseqüentes políticas públicas de saúde, que apresentam um quadro bastante complexo no período em estudo, o qual é marcado por profundas mudanças econômicas, políticas e sociais, tais como: regime militar, censura, “milagre econômico”, desemprego, migração, inflação galopante e globalização, só para lembrar algumas. Compreender, ainda, o imaginário sobre o São José em uma cidade que, justamente no período estudado, deixa de ser tipicamente de imigrantes europeus e passa a abrigar uma população bastante heterogênea, formada por migrantes, na maioria operária, não é tarefa simples. Confirma-se a afirmação de Patlagean1 de que podem existir diversas representações sobre uma mesma realidade. Diferentes grupos sociais, a partir de sua formação e amparados pelas informações de que dispõem através da mídia, da experiência pessoal ou profissional ou mesmo da conversa informal com conhecidos ou parentes, vão formando uma imagem diferente de um mesmo objeto ou símbolo. As representações que se fazem sobre o São José são compostas por um conjunto de variáveis que se articulam e são repletas de significantes. A estreita ligação do hospital com a Igreja Católica, até fins da década de 1970, promoveu, entre a população que conviveu com essa realidade, uma imagem da instituição como caritativa e ainda hoje faz essa representação, embora percebamos uma tendência de que ela se modifique ante uma inserção cada vez maior da própria instituição nos modelos da política de saúde pública nacional. A utilização do hospital público como mote de campanhas políticas e a freqüente permanência de sua imagem vinculada a sérios problemas 1

PATLAGEAN, Evelyne. A história do imaginário. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

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financeiros vão, aos poucos, apagando a imagem de instituição de caridade, séria, organizada e até mesmo limpa, que era passada pela presença e administração religiosa no local. Se o paciente é mal atendido, se fica horas e horas esperando um atendimento, as queixas não são direcionadas ao Serviço Público de Saúde, ao Prefeito, nem se relacionam à falta de profissionais contratados na instituição ou às causas que provocaram essa falta, mas sim àquele único profissional que estava na instituição e não deu conta de atender todos rapidamente como seria desejável. A crítica recai, portanto, ao médico ou ao enfermeiro e não aos responsáveis pela falência do sistema de saúde; ela é formada pela realidade imediata, pelas explicações do senso comum.2 A maioria da população de Joinville, que ganha entre 2 e 5 salários mínimos e não utiliza o serviço público de saúde, pois tem plano privado, faz no entanto a ligação direta entre o São José e o serviço público, ineficiente e deteriorado, que se vê nos noticiários nacionais, tanto em jornais como na TV, e diz que é ruim, mesmo sem conhecê-lo na prática. A utilização de convênios médicos ou de clínicas particulares, além de ser sinal de status, passa a ser uma questão de sobrevivência. O medo do descaso, da falta de medicamentos e equipamentos, das infecções hospitalares e tantas outras agressões, passadas pela mídia, fazem com que uma representação diferente se forme e relacione a realidade do São José àquela realidade nacional tão divulgada pela mídia. Por outro lado, tem-se a imagem formada e defendida por médicos, administradores atuais e passados e de funcionários da instituição, que crêem ser os problemas dela apenas financeiros, e não de competência técnica ou profissional. O São José é considerado, por parte da classe médica e por uma grande parcela da população circunvizinha, como o melhor hospital da região. Percebe-se, porém, que até mesmo a corporação médica está começando a “desistir” do São José, na medida em que vê seus problemas estruturais se ampliar cada vez mais e “manchar” a imagem de excelência profissional que procura manter. O descaso e até mesmo o “abandono” do poder público perante a instituição faz com que ela passe a seus usuários a imagem de um local feio, sujo, caindo aos pedaços, o que minimiza todos os outros valores existentes. Confirmase a colocação de Chartier3 de que existem lutas de representações e que cada grupo procura defender a sua posição como a mais certa. Essa luta se reflete nas práticas sociais, na maioria das vezes incorporadas pelos discursos políticos. 2

MONTENEGRO, A. Torres. História oral e memória. A cultura popular revisitada. São Paulo: Contexto, 1994. 3

CHARTIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, [1988].

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Devemos acrescentar, ainda, que a imagem do Hospital Municipal São José é bastante influenciada pela de seu pronto-socorro e confundida com ela. O PS do HMSJ atende cerca de 100 mil pessoas por ano, inclusive todos aqueles que se acidentam na BR 101 na região, o que muitas vezes o sobrecarrega e impede um atendimento adequado. As queixas com relação ao pronto-socorro são inúmeras, e são essas que aparecem normalmente na mídia, principalmente em programas de rádio, confundindo pronto-socorro e hospital e os identificando como uma coisa só. A inexistência e/ou falta de equipamentos e até mesmo de profissionais médicos em diferentes horários, principalmente no período noturno, nos ambulatórios dos bairros, levou ao hábito das pessoas que necessitam de atendimento médico gratuito de procurarem o pronto-socorro do HMSJ para atendimentos de rotina e não de emergência ou urgência, superlotando o setor e prejudicando o seu funcionamento. A falta de urgência ou de emergência faz com que as pessoas esperem muito tempo para serem atendidas, e aí surgem as queixas. Apesar disso, a certeza de um atendimento, mesmo que demorado, faz com que as pessoas se dirijam ao PS do hospital, principalmente à noite, quando os postos de atendimento ambulatorial estão fechados. Ouvimos o seguinte comentário: “É incrível como as pessoas gostam de ir ao hospital. Como eu tenho carro, meus vizinhos vivem me pedindo para levá-los de madrugada ao São José!” A criação de vários ambulatórios e postos de saúde nos diferentes bairros da cidade, ao que parece, tem pecado pela falta de infra-estrutura. Faltam médicos, funcionários, equipamentos e medicamentos, o que tem contribuído para a superlotação no São José e a insatisfação dos usuários. A instituição da seguridade social, na qual a saúde é um direito de todos e dever do Estado, pressupõe que toda e qualquer pessoa, contribuinte ou não, seja cidadão com direitos. É a esperada expansão da cidadania. No entanto, aqueles que no início do processo de constituição do Estado do Bem-Estar social brasileiro passaram a ser considerados cidadãos com direito à assistência médica, porque filiados ao sistema e portanto com acesso ao Hospital Municipal São José, aos quais poderíamos denominar de cidadãos filiados, na atualidade, com a expansão do setor privado da saúde e sua adesão ao sistema, foram transformados em cidadãos conveniados. As ações estatais que desde o início destinavam-se basicamente aos pobres, desocupados, indigentes, com a nova política de ajuste do setor social dirigem-se também àqueles trabalhadores excluídos dos sistemas privados de saúde: os SUS-dependentes, os despossuídos, os excluídos. Dessa forma, aqueles migrantes que vieram, e continuam a vir, em busca de trabalho formal, o qual lhes possibilitaria a conquista de direitos 229

trabalhistas e sociais, munidos da crença da inclusão, vêem seu projeto desmoronar, a menos que estejam ligados de alguma forma ao setor privado de saúde. Caso contrário, com a mercantilização da saúde e o sucateamento do sistema público, só têm acesso à assistência médica de qualidade os detentores de seguros privados, aqueles que possuem ocupação e renda para participar do sistema de atenção médica capitalista. Enfim, produziu-se a mais cruel das exclusões, a mascarada pela inclusão. E o Hospital Municipal São José será cada vez mais a instituição dos desvalidos, dos que necessitam da “caridade do sistema”, daqueles que no imaginário social são os legítimos merecedores do “amparo social”. É como se o hospital estivesse de volta ao começo.

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HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1981. Joinville. Acervo do HMSJ (datilografado). Pasta 18-R-1. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1982. Joinville. Acervo do HMSJ (datilografado). Pasta 11-R-2. Anexo. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1983. Joinville. Acervo do HMSJ (datilografado). Pasta 9-C-1. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1984. Joinville. Acervo do HMSJ (datilografado). Pasta 9-C-1. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1986. Joinville. Acervo do HMSJ. Anexo 7. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1988. Joinville. Acervo do HMSJ. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1989. Joinville. Acervo do HMSJ. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1990. Joinville. Acervo do HMSJ. Caixa 23-R-YY. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1991. Joinville. Acervo do HMSJ. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1992. Joinville. Acervo do HMSJ. Caixa 20-R-8. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1993. Joinville. Acervo do HMSJ. Caixa 23-R-44. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1994. Joinville. Acervo do HMSJ. Caixa 23-R-44. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1995. Joinville. Acervo do HMSJ. Caixa 23-R-43. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1996. Joinville. Acervo do HMSJ. HOSPITAL MUNICIPAL SÃO JOSÉ. Relatório anual 1998. Joinville. Acervo do HMSJ. Relatórios Prefeitura de Joinville PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1970-72. Administração Harald Karmann. Joinville, 1973. PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1990. Administração Luiz Gomes e Julio Fialkoski. Joinville, 1991. 239

PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1991. Administração Luiz Gomes. Joinville, 1991. PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1992. Administração Luiz Gomes e Julio Fialkoski. Joinville, 1992. PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual. 1993. Administração Wittich Freitag e José Carlos Vieira. Joinville, 1993. PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1994. Administração Wittich Freitag e José Carlos Vieira. Joinville, 1994. PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1995. Administração Wittich Freitag. Joinville, [1996]. PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1998. Administração Luiz Henrique e Loyola. Joinville, 1998. PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório anual 1999. Administração Luiz Henrique e Loyola. Joinville, 1999. PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório decenal 1981-1990. Administração Luiz Henrique da Silveira, Violantino Affonso Rodrigues, Wittich Freitag e Luiz Gomes. Joinville, 1991. PREFEITURA DE JOINVILLE. Relatório quadrienal 1989-1992. Administração Luiz Gomes e Julio Fialkoski. Joinville, 1992. Jornais: A Notícia A NOTÍCIA. Joinville, 1970-2002. Correio da Tupy CORREIO DA TUPY. Joinville, 1961-1984. Correio Médico Alta complexidade do SUS em foco. Correio Médico, jul./ago. 2001. Ano VI, n. 52, p. 8-9. CREMESC em defesa da remuneração digna do ato médico. Correio Médico, jul. 2002. Ano VII, n. 59, p. 5. Saúde pública agoniza. Correio Médico, Joinville, abr. 2001. n. 50, p. 8. 240

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