Saneamento: Promoção da Saúde, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental

June 14, 2017 | Autor: L. Moraes | Categoria: Health Promotion, Environmental Sanitation, Environmental Sustainability
Share Embed


Descrição do Produto

Saneamento:

promoção da saúde, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 1

18/11/2015 14:50:17

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ Presidente Paulo Gadelha Vice-Presidente de Ensino, Informação e Comunicação Nísia Trindade Lima EDITORA FIOCRUZ Diretora

Nísia Trindade Lima

Editor Executivo João Carlos Canossa Mendes Editores Científicos Gilberto Hochman Carlos Machado de Freitas

Conselho Editorial Claudia Nunes Duarte dos Santos Jane Russo Ligia Maria Vieira da Silva Maria Cecília de Souza Minayo Marilia Santini de Oliveira Moisés Goldbaum Pedro Paulo Chieffi Ricardo Lourenço de Oliveira Ricardo Ventura Santos Soraya Vargas Côrtes Coleção Temas em Saúde Editores Responsáveis Carlos Machado de Freitas Nísia Trindade Lima Ricardo Ventura Santos

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 2

18/11/2015 14:50:17

Cezarina Maria Nobre Souza André Monteiro Costa Luiz Roberto Santos Moraes Carlos Machado de Freitas

Saneamento:

promoção da saúde, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 3

18/11/2015 14:50:18

Copyright© 2015 dos autores Todos os direitos desta edição reservados à fundação oswaldo cruz / editora Revisão Irene Ernest Dias Normalização de referências Clarissa Bravo Capa e projeto gráfico Carlota Rios Editoração eletrônica Robson Lima Produção gráfico-editorial Phelipe Gasiglia Catalogação na fonte Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde/Fiocruz Biblioteca de Saúde Pública

S223s Saneamento: promoção da saúde, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental. / Cezarina Maria Nobre Souza...[et al.]. ― Rio de Janeiro : Editora FIOCRUZ, 2015. 140 p. : il. ; mapas (Coleção Temas em Saúde) ISBN: 978-85-7541-470-5

1. Saneamento - história. 2. Promoção da Saúde. 3. Qualidade de Vida. 4. Meio Ambiente. 5. Desenvolvimento Sustentável. 6. Saúde Pública. 7. Brasil. I. Nobre, Cezarina Maria Nobre. II. Costa, André Monteiro. III. Moraes, Luiz Roberto Santos. IV. Freitas, Carlos Machado de. V. Título. CDD - 22.ed. – 628

2015 Editora Fiocruz Av. Brasil, 4.036, térreo, sala 112 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro, RJ (21) 3882-9039 e 3882-9041 Telefax: (21) 3882-9006 [email protected] www.fiocruz.br/editora

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 4

Editora filiada

18/11/2015 14:50:18

Sumário

Apresentação

7

1. Saneamento, Ambiente e Saúde Pública: uma relação antiga e complexa

11

2. Breve História da Relação entre Saneamento, Saúde e Ambiente

25

3. Breve História do Saneamento no Brasil

39

4. Mudando o Foco do Saneamento para a Promoção da Saúde e a Sustentabilidade Ambiental

69

5. Propondo um Saneamento Orientado para a Promoção da Saúde e a Sustentabilidade Ambiental

99

Considerações Finais

127

Referências

131

Sugestões de Leitura

135

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 5

18/11/2015 14:50:18

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 6

18/11/2015 14:50:18

Apresentação

Este livro resulta de uma longa história, iniciada em 2011,

quando quatro profissionais que atuam nos âmbitos da engenharia sanitária e da saúde ambiental resolveram escrever sobre os desafios do saneamento em nosso mundo atual. Um saneamento que enfrente nossa dívida histórica na prevenção de doenças, mas que seja capaz de olhar simultaneamente para um futuro orientado para a promoção da saúde. Não é fácil olhar para o futuro quando se constata que as condições da vida urbana no Brasil e na maior parte do mundo ainda são, em geral, bastante precárias, com muitas mortes e procedimentos ambulatoriais e hospitalares evitáveis. Essas condições contribuem para a baixa qualidade de vida e para a insalubridade ambiental, quadro que seria minimizado e até evitado se houvesse saneamento para todos. Há uma grave violação de um direito humano essencial, conforme declaração da ONU de 2010. Um contingente populacional expressivo vive em condições indignas de acesso a bens e serviços essenciais ao pleno gozo da vida. E se a provisão desses bens e serviços lhe fosse ofertada, possibilitaria, por sua vez, seu acesso a outros estágios de realização social. As relações em torno da tríade modelo de desenvolvimento, ambiente e saúde são complexas e precisam ser reconhecidas para a formulação de novas maneiras de abordar esse problema visando [ 7

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 7

18/11/2015 14:50:19

à superação das precárias condições de vida da maior parte da humanidade. O acesso ao saneamento é socialmente desigual, e para a superação dessa violação de direito humano é necessário dirigir novos olhares para essa tríade. Seria um novo olhar para o saneamento uma nova mediação possível nessas inter-relações? Este é um dos temas centrais deste livro. Como serviço público, o saneamento se originou na era moderna, quando das grandes epidemias de cólera ocorridas em meados do século XIX. A visão higienista de então ainda é hegemônica. Um novo olhar deve incorporar a perspectiva do modelo de desenvolvimento e a compreensão de nossa relação com o ambiente. Tal perspectiva sobre o ambiente ainda é muito recente e as respostas dos Estados-nação diante da força das grandes corporações ainda se mostram insuficientes. Em fins do século passado, o campo da saúde dirigiu um novo olhar para essas relações, com base no ideário da promoção da saúde. A concepção hegemônica de saneamento era, e ainda é, baseada na prevenção em saúde, ou seja, no esforço de evitar doenças. Trata-se de um propósito ainda necessário, mas o saneamento envolve uma dimensão maior, pois está diretamente relacionado à qualidade de vida, que por sua vez está intrinsecamente relacionada ao modelo de desenvolvimento. O saneamento deve ser reconhecido como uma política pública e social, o que implica assumir determinado conceito que guiará as escolhas, diagnosticar as condições de vida e de acesso aos serviços e propor alternativas tecnológicas, modelos de gestão e abordagens socioculturais adequadas. E, ainda, definir prioridades na alocação dos investimentos, ponto nevrálgico de qualquer política pública. 8

]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 8

18/11/2015 14:50:19

Neste livro são assumidos pontos de vistas sobre o saneamento e apresentadas novas propostas baseadas nos conceitos de promoção da saúde e de sustentabilidade ambiental. Aqui, há uma inversão de olhar: não chegamos às pessoas partindo dos sistemas ou das obras físicas; ao invés disso, procuramos partir das pessoas, do modo como vivem, de sua cultura e sua inserção social e, com base nessas variáveis, buscar soluções. Considerar a cultura, as características socioeconômicas e as condições de vida das pessoas permite buscar soluções tecnológicas e de gestão socioculturalmente adequadas. A centralidade do saneamento está na engenharia e, nesta, nos sistemas convencionais. Há muitas soluções tecnológicas possíveis para os diferentes cenários sociocultural, geográfico, econômico, de recursos hídricos, urbano-rural etc. Etimologicamente, tecnologia vem do grego téchne, e significa arte. Essa dimensão da criação e da estética perdeu-se no tempo. São imensas as possibilidades de inovação e diversas as tecnologias sociais a serem apropriadas e incorporadas. A população deve ser ouvida quando da definição das tecnologias a serem utilizadas, estando claros seus bônus e seus ônus. O modelo de gestão, por sua vez, deve ser adequado à tecnologia utilizada e às características socioculturais da população. Não é mais aceitável, como tem sido corrente, a imposição de soluções que, por não considerarem a coerência com a cultura e as condições de habitabilidade das pessoas, geram ônus de manutenção para as mais pobres. A participação da sociedade e o controle social na formulação, implementação e avaliação das políticas públicas são essenciais, e aos problemas [ 9

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 9

18/11/2015 14:50:19

tecnológicos deve corresponder a devida responsabilização do serviço público. Por, historicamente, não ter levado em conta os referidos aspectos, o saneamento tem se mostrado uma das políticas públicas mais atrasadas do Brasil. Neste pequeno livro, propomos novos olhares e novas estratégias em saneamento, tendo como fio condutor as relações entre desenvolvimento, ambiente e saúde, e como dimensões norteadoras a promoção da saúde, a sustentabilidade ambiental e o trinômio tecnologia, gestão e aspectos socioculturais. Ao propor que o saneamento envolva novos atores sociais, novos olhares dos especialistas e especialistas de novas áreas, procuramos contribuir para renovar as abordagens nessa área.

10 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 10

18/11/2015 14:50:19

1 Saneamento, Ambiente

e

Saúde Pública:

uma relação antiga e complexa

Cerca de ¼ de todas as mortes que ocorrem em nosso planeta

atinge crianças e jovens de até 15 anos de idade e é provocado por doenças relacionadas ao ambiente, principalmente nos países mais pobres ou entre os grupos sociais mais pobres da população. As diarreias correspondem a 29% do total dessas doenças. No início do século XXI, bilhões de pessoas ainda vivem à margem de serviços públicos básicos e fundamentais, como os relacionados ao saneamento, o que inclui, no mínimo, o acesso a água potável, a serviços de coleta, tratamento e disposição final de esgotos e resíduos sólidos, além do manejo de águas pluviais. Metade da população urbana na África, na Ásia e na América Latina e Caribe sofre de uma ou mais doenças associadas ao inadequado fornecimento de água e à falta de esgotamento sanitário. No mundo, cerca de 2,6 bilhões de pessoas não têm acesso aos serviços básicos de saneamento, e aproximadamente 1,7 milhão de pessoas – principalmente crianças – morre anualmente como resultado dos problemas de fornecimento inadequado de água, higiene e saneamento. Cerca de 2 bilhões de pessoas enfrentam escassez de água e 900 milhões ainda não têm acesso à água com qualidade adequada para consumo humano. Esse quadro, que tem resultado em mais de três mortes por minuto, é resultado das complexas relações entre ambiente, [ 11

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 11

18/11/2015 14:50:19

desenvolvimento e saúde. Conhecer esses componentes da realidade e suas interações é essencial para se pensar o saneamento contemporâneo.

As Relações entre Saneamento, Ambiente Saúde Pública

e

O desenvolvimento orientado para a qualidade de vida e bem-estar, assim como para a sustentabilidade, vai muito além do crescimento econômico ou do consumo. Desenvolvimento considera não apenas a dimensão econômica e sua sustentabilidade, mas também as outras dimensões – ambiental, social, política e cultural – que, junto com a saúde, são consideradas não somente resultados, mas também pré-requisitos para o desenvolvimento. Cada uma dessas dimensões será detalhada a seguir. Ambiente é entendido como o espaço dinâmico e multidimensional resultante da amálgama entre os processos sociais – ocupação, produção e rede de infraestruturas (transporte, energia, saneamento etc.) – que modificam os ecossistemas e os processos ecológicos que envolvem os sistemas de suporte à vida – as águas doces e do mar, pescados, florestas, clima, solo, ar, a biodiversidade etc. – que, intrínsecos às funções biofísicas do planeta, sustentam a vida na Terra. Saúde, resultante das condições de vida e bem-estar, reflete também um processo dinâmico e multidimensional, não podendo se limitar à ausência de doenças. Os fatores sociais e ambientais que afetam a saúde estão diretamente relacionados aos processos de desenvolvimento que abrangem, além do saneamento, a apropriação das riquezas naturais para a produção de bens, a geração de 12 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 12

18/11/2015 14:50:19

emprego e a distribuição de renda, as condições de vida e trabalho, a qualidade e a sustentabilidade do ambiente, as redes sociais e de suporte social, a participação e o empoderamento, e outros que afetam a qualidade de vida e o bem-estar coletivo e individual. A saúde pública ou coletiva constitui parte das respostas sociais às necessidades de saúde. Envolve um campo científico multi e interdisciplinar, produzindo saberes e conhecimentos, como também um âmbito de ações e práticas que abrange diferentes organizações e instituições e atores da sociedade (especializados ou não), dentro e fora da área da saúde. Na perspectiva contemporânea de saúde pública ou coletiva, a produção de saberes e conhecimentos dá suporte às ações e práticas sociais, econômicas, políticas, ambientais, culturais e técnicas que têm como objeto as necessidades de saúde. Tais ações e práticas objetivam a promoção e a proteção da saúde e a prevenção, diante dos determinantes e condicionantes que afetam, direta ou indiretamente, a qualidade de vida e saúde das populações. Nessa perspectiva, saúde ambiental é o campo da saúde pública que tem como principal objeto a produção de saberes, conhecimentos, ações e práticas que envolvam as interações entre a saúde e seus determinantes e condicionantes sociais e ambientais, entre os quais o saneamento. A expressão da qualidade de vida e de saúde de uma população é, portanto, resultado das interações entre o processo de desenvolvimento de uma sociedade e o ambiente. O desenvolvimento deve ter como princípio norteador a sustentabilidade em suas múltiplas dimensões: a ambiental, a social, a cultural, a econômica, a política e a intergeracional. [ 13

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 13

18/11/2015 14:50:19

Como resultado desses processos dinâmicos e multidimensionais, a sustentabilidade só pode ser compreendida como um conceito também multidimensional. A sustentabilidade ambiental está relacionada ao equilíbrio e à integridade dos sistemas de suporte à vida. A sustentabilidade social está relacionada à promoção da melhoria da qualidade de vida e à redução dos níveis de exclusão social por meio de políticas de justiça redistributiva. A sustentabilidade cultural se relaciona à manutenção da diversidade cultural, dos valores e práticas vigentes em cada lugar, que integram, ao longo do tempo, as identidades dos povos. A sustentabilidade econômica se relaciona à capacidade de produção, distribuição e utilização equitativa das riquezas produzidas pelo homem. A sustentabilidade política se relaciona ao governo e à governabilidade e à construção da cidadania plena dos indivíduos por meio do fortalecimento dos mecanismos democráticos de formulação e implementação das políticas públicas. A sustentabilidade intergeracional visa à proteção do ambiente para as gerações presentes e futuras, por meio de um conjunto de ações que perpassam todas as demais dimensões. Nesta concepção de sustentabilidade, as iniciativas sustentáveis são aquelas que: 1) assegurem os princípios de desenvolvimento sustentável; 2) garantam um processo de desenvolvimento duradouro e consistente. Como resposta social aos problemas de saúde, o saneamento constitui uma das formas de intervenção e interação entre os padrões de desenvolvimento e a situação do ambiente, que por sua vez se refletem na qualidade da vida e da saúde das populações. Essas intervenções e interações podem ou não ser sustentáveis em suas várias dimensões. Nos países, estados, municípios e 14 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 14

18/11/2015 14:50:19

aglomerados intraurbanos com os piores indicadores de desenvolvimento e equidade social, também encontramos os piores indicadores de saneamento e saúde, o que atesta que o saneamento como resposta social aos problemas de saúde é também uma intervenção e interação historicamente situada, como veremos nos capítulos 2 e 3. Se o saneamento é uma resposta social historicamente situada, os saberes e conhecimentos, ações e práticas que o envolvem serão norteados por diferentes formas de se compreender os problemas de saúde e neles intervir. Em uma sociedade complexa como a nossa, essas formas de compreensão se traduzem em uma multiplicidade de conceitos que se expressam na literatura científica e na legislação que dão base para as intervenções. E, entre tais formas de compreensão, tem predominado aquela baseada no modelo biomédico, centrado nos agentes causadores de doenças e na concepção preventivista do saneamento. Na concepção preventivista baseada no modelo biomédico, saneamento é entendido como barreira interposta entre os agentes presentes no ambiente e o homem, e entre o homem e o ambiente. No contexto do mundo atual, marcado pela complexidade das sociedades, tal concepção tem se mostrado limitada. A crise da saúde pública e a eclosão da problemática ambiental em fins do século XX e início do século XXI estão na base dessa complexidade, o que exige diferentes modos de conceber o saneamento, como veremos no capítulo 4. No capítulo 5, veremos as ações e práticas de um saneamento orientado para a promoção da saúde e a sustentabilidade ambiental. [ 15

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 15

18/11/2015 14:50:19

Uma Relação Antiga

com

Direitos Recentes

O saneamento é um tema muito antigo, mas como resposta social às necessidades de saúde da população torna-se responsabilidade do Estado somente no século XIX. Surge relacionado às condições materiais de vida de grandes contingentes da população, que eram e ainda são precárias. Porém, os direitos ao saneamento são relativamente recentes: foi só em 2010 que a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu, em sua resolução n. 64/24, que o “acesso à água limpa e segura e ao esgotamento sanitário adequado é um direito humano essencial para o pleno gozo da vida e de outros direitos”. Esse reconhecimento implica a responsabilidade dos Estados na consecução desses direitos. Para tanto, políticas públicas devem ser implementadas. Antes da resolução da ONU, o Estado brasileiro reconheceu, em 2006, por meio da lei n. 11.346/2006, que institui o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), que “a alimentação adequada, incluindo-se a água, é um direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal”. No Sisan está estabelecido que “as políticas e ações devem considerar as dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais, para a ampliação do acesso aos alimentos, que inclui a água”. O Sisan traz dois elementos essenciais e inovadores para o saneamento no Brasil, embora não tenham sido formulados nem tampouco instituídos pela área de saneamento, mas sim pela da assistência social. O primeiro é o reconhecimento da água como alimento, presente no âmbito da segurança alimentar e 16 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 16

18/11/2015 14:50:19

nutricional, que usualmente não consta na literatura da área, nem nas definições de saneamento. O segundo é o reconhecimento do acesso à água adequada (em termos de qualidade e de quantidade suficiente ao atendimento das necessidades, conforme estabelecido pela portaria n. 2.914/2011 do Ministério da Saúde) como direito fundamental do ser humano. Tal reconhecimento não consta do texto da Lei Nacional do Saneamento Básico (n. 11.445/2007, LNSB). A LNSB traz, por outro lado, importantes avanços, que implicam a responsabilização do Estado por direitos dos cidadãos, quando reconhece como princípios fundamentais a universalização do acesso aos serviços públicos de saneamento e sua integralidade. No texto dessa lei, integralidade é definida como o conjunto de todas as atividades e componentes de cada um dos diversos serviços de saneamento básico, propiciando à população o acesso na conformidade de suas necessidades e maximizando a eficácia das ações e resultados.

O escopo das ações socioculturais, sistemas e serviços públicos de saneamento básico definido nessa lei compreende: abastecimento de água potável; esgotamento sanitário; limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; drenagem e manejo de águas pluviais urbanas. Essa delimitação, um reducionismo em relação ao objeto do saneamento, decorre do fato de que, à época da formulação e aprovação da lei, tais ações estavam (e ainda estão) sob a responsabilidade do Ministério das Cidades. Tais competências se sobrepuseram às responsabilidades de outros órgãos, como a Fundação Nacional de Saúde e os ministérios da Integração Nacional, do Desenvolvimento Social e Combate [ 17

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 17

18/11/2015 14:50:20

à Fome, e do Meio Ambiente, que atuam de forma mais ampla, inclusive desenvolvendo ações específicas no meio rural e em comunidades indígenas e quilombolas, entre outras. O acesso da população ao saneamento, de acordo com suas necessidades, conforme consta na LNSB, deve ser compreendido no interior de práticas sociais. Segundo Stotz (1991), tais práticas ocorrem no contexto de suas mediações fundamentais, pertinentes às relações entre sujeitos de necessidades e o sistema institucional-administrativo responsável por sua satisfação. A simples disponibilidade de um sistema, uma obra isolada ou um serviço em determinado território, apesar de necessária, não garante sua efetiva utilização. Alguns problemas podem ser restritivos ao pleno gozo dos sujeitos de necessidades em saneamento. Conforme sugere Fekete (1996), quatro dimensões podem se constituir em constrangimentos do acesso: a geográfica, a organizacional, a sociocultural e a econômica. Alguns exemplos desses constrangimentos podem ser, respectivamente, a distância excessiva da casa a um chafariz, a intermitência no abastecimento, as representações da população quanto à higiene ou manuseio da água no domicílio e o elevado custo da tarifa. Além do definido institucionalmente na LNSB, outras ações socioculturais, sistemas e serviços compõem o campo do saneamento, considerando-se o conceito amplo aqui assumido, bem como a indistinção entre urbano e rural. O saneamento em um sentido mais largo se expressa, entre outros, em: 1) abastecimento de água potável; 2) vigilância da qualidade da água para consumo humano, para assegurar condições adequadas de saúde e bem-estar; 3) coleta, tratamento e disposição adequada de resí18 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 18

18/11/2015 14:50:20

duos líquidos, sólidos e gasosos; 4) drenagem e manejo de águas pluviais; 5) prevenção, respostas imediatas e recuperação em situações de acidentes e desastres; 6) controle ambiental de vetores e reservatórios de doenças; 7) habitação saudável; 8) prevenção e controle de excesso de ruídos; e 9) disciplinamento da ocupação e uso do solo, contribuindo para a promoção e melhoria das condições de vida nos meios urbano e rural.

Uma Relação Complexa De meados do século XIX e ao longo do século XX, o saneamento preventivista surge para reduzir o quadro das doenças infecto-parasitárias (DIP), como cólera, diarreias, febre tifoide, hepatite A, esquistossomose e helmintíases. No Brasil, se até 1930 as DIP eram responsáveis por mais de 45% dos óbitos, em 2010 não chegavam a 5%, o que requer a revisão de um ponto de vista sobre o saneamento, não mais somente da doença, mas também da qualidade de vida. Na atualidade, além do déficit de saneamento, interferem de forma combinada sobre a qualidade e as condições de vida e saúde novos problemas associados ao desenvolvimento industrial, aos serviços urbanos e à expansão das fronteiras agrícolas. Esse contexto gera produtos e subprodutos tóxicos e poluentes que resultam em múltiplas consequências sobre a saúde, juntamente com os relacionados ao macrofenômeno da globalização e da crise ambiental global, vivamente expressos na intensa urbanização, na degradação dos ecossistemas e na mudança do clima. Esses novos problemas se sobrepõem aos já existentes e relacionados ao saneamento, obrigando-nos a pensálo de modo ampliado. [ 19

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 19

18/11/2015 14:50:20

A complexidade das sociedades, bem como dos problemas ambientais e de saúde, contribui para que um novo paradigma comece a emergir a partir dos anos 1970, tais como o da promoção da saúde e o da sustentabilidade. Nesse processo, pouco a pouco o foco se desloca da doença para a qualidade de vida (Buss, 2000). Um novo ponto de vista sobre os conhecimentos e saberes, ações e práticas em saúde e saneamento começa a tomar corpo. A perspectiva preventivista não é mais suficiente para enfrentar a complexidade das necessidades de um saneamento contemporâneo. E, a partir desse novo olhar, alguns conceitos e direitos de cidadania emergem. O saneamento passa a ser entendido não mais como uma barreira entre os humanos e o ambiente, mas como parte da mediação entre ambos, com a finalidade de propiciar: segurança alimentar e nutricional; melhores condições de saúde (por meio da prevenção, proteção e promoção da saúde); qualidade de vida, conforto e bem-estar; e recuperação e proteção ambiental. Nessa perspectiva, as ações e práticas de saneamento passam a ser compreendidas não como dissociadas dos contextos socioculturais e ambientais em que se realizam. Devem transformar esses contextos, por meio de políticas públicas saudáveis, que promovam ambientes favoráveis à saúde, à qualidade de vida e à sustentabilidade em todas as dimensões, contribuindo para a dignidade humana, que possibilita o pleno gozo de outros direitos (Costa, 2009). Isso significa que, sem desconsiderar as ações e práticas preventivas, as ações de saneamento devem ser orientadas para a promoção da saúde, com foco na qualidade de vida, no con20 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 20

18/11/2015 14:50:20

forto e no bem-estar. As ainda necessárias medidas orientadas para problemas específicos de doenças que atingem determinados grupos da população expostos a fontes de degradação ambiental em comunidades, municípios, estados ou mesmo países devem integrar um conjunto mais amplo e orientado para a promoção da saúde e a sustentabilidade. Nessa perspectiva, as medidas de saneamento devem ser orientadas para o desenvolvimento de condições de vida saudáveis, o que inclui outros aspectos como habitação saudável, educação, alimentos, renda, manutenção dos serviços dos ecossistemas, justiça social e equidade. No saneamento orientado para a promoção da saúde, as intervenções e interações têm sua relação com o ambiente permeada pelo fluxo da vida em sociedade, que reflete a qualidade de vida. E esta se efetiva não apenas mediante sistemas – componentes físicos – e serviços, mas também mediante ações permeadas por diversas dimensões das condições de vida em que se dão as práticas de produção e reprodução dos processos socioculturais. Três dimensões são fundamentais para o saneamento em perspectiva ampliada: a sociocultural, a tecnológica e a gestão. A dimensão sociocultural envolve temas e ações como educação, desigualdades, equidade e eliminação da pobreza; preservação da diversidade cultural; direitos humanos, segurança das pessoas e o grau em que as necessidades humanas básicas são atendidas. A dimensão tecnológica abrange soluções materializadas nas obras de engenharia e aquelas geradas por meios de tecnologias sociais que incluem desde produtos até processos de baixo custo, fácil aplicabilidade e impacto social. A dimensão da gestão [ 21

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 21

18/11/2015 14:50:20

envolve as soluções estabelecidas por meio de um conjunto de procedimentos e processos administrativos que permitem levar a cabo as políticas definidas pelos poderes Executivo e Legislativo, combinando e intervindo na dimensão sociocultural por meio do emprego de tecnologias. Essas três dimensões devem ser consideradas articuladamente (Figura 1), pois caso uma delas falhe, o todo estará comprometido e não será alcançada a sustentabilidade, o que potencializa situações de vulnerabilidade sanitária, ambiental e para a qualidade de vida. Figura 1 – Dimensões fundamentais do saneamento ampliado Gestão

Sustentabilidade Tecnologia

Sociocultura

Além das intervenções físicas ou sistemas e a gestão de serviços, o saneamento deve incluir um conjunto de ações socioculturais, que ao reconhecer a identidade dos sujeitos-usuários, contribui para o empoderamento dos cidadãos e para a garantia de seus direitos, pré-requisitos para a promoção da saúde e a sustentabilidade. É requerido um conjunto de políticas que estabeleçam direitos e deveres dos usuários/cidadãos e dos agentes 22 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 22

18/11/2015 14:50:20

públicos, assim como articulações intersetoriais e uma estrutura institucional capaz de gerenciar a área de forma integrada às demais áreas ligadas à saúde, ao ambiente e outras que, no processo de desenvolvimento, impactam o ambiente comprometendo a qualidade de vida e as condições de saúde.

[ 23

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 23

18/11/2015 14:50:20

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 24

18/11/2015 14:50:21

2 Breve História

da

Saneamento, Saúde

Relação entre e A mbiente

O saneamento, como um produto histórico que é, constitui

a materialização das dimensões socioculturais, tecnológicas e de gestão produzidas e desenvolvidas ao longo do tempo, nas relações humanas coletivamente, com o objetivo de proteger a espécie humana e a vida. Como ação construída ao longo da história, fundamental para a configuração do espaço urbano, o saneamento hoje é produto das ações do presente, mas também das do passado. Assim, para compreender o significado do saneamento hoje, vamos voltar um pouco no tempo.

O Surgimento do Saneamento Comunitário e sua Passagem a E sfera P ública

no

Âmbito

para

O início da agricultura, há cerca de 12 mil anos, significou uma primeira grande mudança social e ambiental, pois transformou nossos modos de viver, trabalhar, nos alimentarmos, constituir famílias e nos relacionarmos socialmente. Se até então, desde o surgimento de nossa espécie, nos organizávamos em grupos de caçadores e coletores, nessa nova etapa os humanos, paulatinamente, passam a viver de forma mais sedentária e em vilarejos. A domesticação de plantas e animais permitiu inicialmente sustentar pequenas aldeias, com aproximadamente cem [ 25

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 25

18/11/2015 14:50:21

pessoas, o que resultou na sua capacidade de, pouco a pouco, sustentar populações maiores e construir casas e aldeias mais amplas; surgem, assim, os primeiros povoados, com poucas centenas de habitantes. Essa primeira grande mudança transformou nosso modo de nos relacionarmos com o meio ambiente próximo. Por exemplo, a expansão da agricultura e a derrubada de vegetações e florestas alteraram os ciclos dos vetores e de hospedeiros de doenças, estando na origem da disseminação de doenças como a malária e a febre amarela. A domesticação de animais e sua maior proximidade do contato com humanos representaram a exposição a uma variedade de doenças que passamos a compartilhar com outras espécies: gripe do contato com aves e porcos, resfriado do contato com cavalos, varíola, sarampo, tuberculose e difteria do contato com o gado, entre outras. A concentração de populações em povoados e aldeias significou também a concentração da poluição por meio da geração de resíduos sólidos, atraindo hospedeiros de agentes causadores de doenças, como ratos e baratas. O lançamento de dejetos em cursos de água criou um contexto perfeito para parasitas intestinais e doenças como cólera, diarreias, febre tifoide, hepatite A, esquistossomose e helmintíases. Essas alterações ambientais e a concentração de população sem saneamento e sem hábitos adequados de higiene criaram um ambiente propício para muitas das doenças que conhecemos ainda hoje e que atingem milhões de pessoas em todo o mundo. Entre o surgimento da agricultura e a abertura dos primeiros canais de irrigação na Mesopotâmia (10.000 a.C. e 5.000 a.C.), 26 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 26

18/11/2015 14:50:21

a população mundial se encontrava em torno de 4-5 milhões de habitantes. Nesse contexto, o saneamento surge como preocupação de âmbito doméstico, com a salubridade, a higiene e a segurança da habitação e de seu entorno como responsabilidades das famílias, passando, pouco a pouco, à responsabilidade das aldeias e vilarejos. Com o surgimento das primeiras civilizações e com essas cidades-Estado na Mesopotâmia, em Roma, na Grécia, na China e nas Américas, surge a necessidade de se estruturar sistemas de abastecimento de água de beber, regulamentando-se também o destino dos dejetos e desenvolvendo-se sistemas de esgotamento sanitário. Se quando do surgimento das primeiras aldeias e vilarejos os problemas e ações relacionados ao saneamento eram de âmbito doméstico, posteriormente, com o surgimento das cidades-Estado e do crescimento da população – entre 1.000 a.C. e 200 d.C. a população mundial passou de 50 milhões para 200 milhões de pessoas – e sua concentração em cidades, tais problemas e ações passam, pouco a pouco, para a esfera pública. Uma longa história decorre entre esses primeiros assentamentos e o surgimento e ampliação dos problemas ambientais e de saúde relacionados ao saneamento, tornando as preocupações com a salubridade, a higiene e a segurança do entorno uma responsabilidade pública, e não só das famílias ou comunidades. Para abreviar nossa longa história de 24 séculos, vamos nos deter nos exemplos de três importantes personagens, como Hipócrates (Grécia, século V a.C.), Edwin Chadwick e John Snow (Inglaterra, meados do século XIX). [ 27

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 27

18/11/2015 14:50:21

Hipócrates, Edwin Chadwick Personagens Importantes em

John Snow, Três uma B reve H istória e

No século V a.C. (entre 500 e 401 a.C.) se deu o primeiro esforço sistemático, no texto hipocrático Ares, Águas e Lugares, para se entender por que certas doenças estavam continuamente presentes entre as populações (doenças endêmicas) e outras doenças que nem sempre estavam presentes aumentavam muito em determinados períodos ou situações (epidêmicas). Nesse texto, referência básica para os que se interessam pelas relações entre saúde e ambiente, as doenças eram atribuídas a três aspectos interligados: nómoi, o modo de viver e os costumes; a phýseis, os aspectos físicos dos indivíduos; o entorno, constituído das estações do ano, dos ventos, das propriedades da água e seu uso, da posição das cidades em relação aos ventos e ao nascer do sol, da geografia, do clima e do solo. Em Ares, Águas e Lugares são abordados os tipos de enfermidades que podem estar relacionados às propriedades da água e seu uso. Por exemplo, águas abundantes e um pouco salgadas em lugares elevados quentes no verão e frios no inverno poderiam resultar em homens com disenterias e diarreias, ao passo que águas voltadas para o nascer do sol, consideradas mais límpidas, olentes e moles, diminuíam os casos de doenças e contribuíam para a saúde. Ao longo da Idade Média houve poucos avanços e muitos retrocessos na qualidade da vida urbana na Europa, o que se acentua com a Revolução Industrial. No ano 200 d.C. havia 200 milhões de habitantes no mundo, e em 1300 estes eram 400 milhões, o que significa que a população humana dobrou em 11 séculos. Em 1400, como um dos efeitos da peste negra, essa 28 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 28

18/11/2015 14:50:21

população caiu para 350 milhões de habitantes, e em 1800 (quatro séculos depois) esse número mais do que dobra, passando para 900 milhões de habitantes. Ao longo da Idade Média, mesmo com o impacto da grande mortalidade por peste negra, a população cresceu, e cada vez mais rapidamente; concentrando-se em determinadas áreas, passou a constituir povoados, aldeias e cidades. Se desde a Antiguidade, como observa Rosen (1994), havia sistemas de abastecimento de água para consumo humano e preocupações e regulamentações acerca do destino dos dejetos e esgotos, ao longo da Idade Média o crescimento e a concentração da população em povoados, aldeias e cidades significaram também o crescimento e a concentração da geração de resíduos sólidos (atraindo hospedeiros de agentes causadores de doenças, como ratos e baratas) e o lançamento de dejetos em cursos de água. Criaram-se condições propícias à proliferação de parasitas intestinais causadores de doenças que conhecemos ainda hoje e que atingem milhões de pessoas em todo o mundo, como cólera, diarreias e febre tifoide. Dois exemplos são marcantes dos poucos avanços e muitos retrocessos na qualidade da vida urbana na Europa: a praga de Justiniano no século VI e a peste negra no século XIV. A primeira reflete a crise econômica, política e social que acompanhou o declínio do Império Romano, quando 542 sucessivas epidemias de peste nas cidades em torno do Mediterrâneo resultaram em uma mortandade que chegou a atingir metade das populações que nelas viviam. A segunda ocorre em um período marcado pelo estabelecimento de imensas redes de comércio conectando [ 29

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 29

18/11/2015 14:50:21

diversos continentes (Ásia, África, Europa e Oriente Médio) e pelo crescimento das cidades com precária infraestrutura urbana ao longo das rotas comerciais, em um contexto de sucessivas guerras, invasões e conflitos internos. A peste negra teve origem na Ásia, onde reduziu a população da China à metade, e atingiu o Oriente Médio e o norte da África, bem como a Europa. Estima-se que tenha resultado na morte de cerca de 75 milhões de pessoas, cerca de ⅓ das quais só na Europa. Ao longo do século XIX, o crescimento das cidades, particularmente na Inglaterra, com cada vez mais pessoas vivendo e trabalhando em condições precárias, resultava em taxas crescentes de doenças e mortes, principalmente nas cidades. No início do século XIX, somente 2,5% da população mundial viviam nas cidades, quadro que mudou rapidamente ao longo do século: só na Inglaterra, o número de pessoas que viviam nas cidades passou de 2 milhões para quase 30 milhões. Em 1800, Londres já contava quase 1 milhão de habitantes, e a Revolução Industrial disparou um grande fluxo migratório do campo para as cidades, bem como o crescimento das populações em precárias condições de vida e trabalho. Taxas crescentes de óbitos e adoecimento, principalmente por questões relacionadas ao saneamento, atingiram principalmente as populações mais pobres, mas ameaçavam também os mais ricos, como no caso das epidemias de cólera. É nesse contexto, em meados do século XIX, que se estruturam importantes ações, como as de Edwin Chadwick, bem como formas de compreensão dos processos saúde-doença relacionados ao saneamento, como a descoberta da maneira de transmissão da cólera por John Snow (1990). Chadwick e Snow simbolizam 30 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 30

18/11/2015 14:50:21

a consolidação do saneamento como preocupação pública e ação do Estado. Uma preocupação que passou a se estruturar à medida que as cidades cresceram e se transformaram em centros de produção e consumo. Com esse crescimento, aumentou a necessidade de eliminação dos resíduos gerados (esgotos e resíduos sólidos), de proteção da qualidade da água para consumo humano e de garantia do acesso a este bem. Diante dessas novas necessidades, o saneamento (das casas, de seu entorno e das pessoas) passou a ser compreendido como um problema atinente à esfera pública, sendo, então, constituídos os seus serviços públicos. No contexto da Revolução Industrial e do surgimento das cidades, epidemias de cólera como as de 1831 e 1832 em Londres, que atingiam, principalmente, os distritos mais pobres e com piores condições de saneamento, impactavam diretamente a mão de obra das nascentes indústrias. Essas epidemias impulsionaram inúmeros esforços de compreensão das doenças e de sua relação com o ambiente. Chadwick torna-se secretário da Comissão da Lei dos Pobres, em 1835, com a convicção de que os ambientes físico e social tinham influência sobre as condições de saúde. Em 1842 foi publicado o relatório de Chadwick que demonstra a relação das doenças com a inadequação do saneamento e a necessidade de um órgão capaz de empreender um amplo programa de prevenção, aplicando o conhecimento e as técnicas da engenharia. Nesse relatório foram propostas grandes medidas preventivas, como drenagem, limpeza das ruas e das casas, por meio de suprimento de água e de melhor sistema de esgotos e, em especial, a introdução de modos mais baratos e mais eficientes de [ 31

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 31

18/11/2015 14:50:21

remover das cidades todos os resíduos e rejeitos nocivos, medidas para as quais se deveria buscar ajuda na ciência da engenharia civil, e não na medicina (Rosen, 1994). O relatório de Chadwick expressava um pensamento corrente em vários países da Europa, como França e Alemanha, onde os rápidos processos de industrialização e urbanização geravam a deterioração das condições de saúde da população em razão, entre vários fatores, das precárias condições de saneamento. Snow representou uma importante mudança de paradigma nas formas de compreensão do processo saúde-doença, bem como das medidas e ações destinadas à prevenção de enfermidades. Em um período em que predominava a teoria miasmática, acreditava-se que as sujeiras externas e os odores detectáveis deveriam ser reduzidos ou eliminados para deter a disseminação das doenças. Essa teoria esteve na base das ações de Chadwick, em que as ações de saneamento faziam parte do higienismo, que considerava o ambiente das cidades como objeto medicalizável mediante ações pontuais e focalizadas. Snow, com base em diferentes estratégias de investigação (qualitativas e quantitativas, mapas e análises de dados), inaugura em seu estudo clássico de 1854, o livro Sobre a Maneira da Transmissão da Cólera, o campo científico da epidemiologia. Nesse estudo ele comprovou a transmissão dessa doença por meio do consumo de água contaminada com fezes, o que contribuiu para derrubar a teoria miasmática, constituindo um passo em direção à teoria microbiana, para a qual as doenças são causadas por organismos específicos. Essa teoria de Snow foi proposta cerca de trinta anos antes da descoberta do vibrião colérico por Robert Koch, ocorrida em 1883. Tal mudança de paradigma permitiu que fossem formuladas 32 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 32

18/11/2015 14:50:22

ações de prevenção durante a epidemia, que exigiam respostas imediatas. Mas também contribuiu para evitar a contaminação da água de abastecimento humano pelas imundícies de fossas sanitárias, escoadouros domésticos e sistemas de esgotos. Também foram propostas medidas e ações contínuas de prevenção, como drenagem, abastecimento de água com qualidade para o consumo humano e educação para a higiene. Para Chadwick, passando por Snow e tantos outros, o saneamento se torna uma estratégia higienista de atuação primeiro sobre as cidades como objetos medicalizáveis, envolvendo intervenções capazes de impedir ou reduzir a ocorrência de uma doença ou agravo à saúde de indivíduos ou grupos populacionais. Nas intervenções realizadas seria adotada uma estratégia direcionada unicamente para obstaculizar o caminho entre o indivíduo e a doença. Se nos termos dos textos hipocráticos o homem deveria se adaptar ao seu ambiente, Chadwick e Snow expressam a noção de que o homem deve intervir no seu ambiente para prevenir as doenças.

Do Higienismo

ao

Preventivismo

Desde o higienismo no século XIX, o saneamento constitui uma intervenção de engenharia que ocorre no ambiente considerado como espaço físico, voltada para obstaculizar a transmissão de doenças e assegurar a salubridade ambiental, compreendendo a saúde como ausência de doenças. No fim da década de 50 do século XX, as intervenções do saneamento no ambiente passam a se apoiar na concepção preventivista presente no modelo de história natural das doenças de Leavell e Clark (1976). [ 33

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 33

18/11/2015 14:50:22

A Figura 2 expressa esse modelo, denominado tríade ecológica, como um triângulo cujos vértices são constituídos pelo hospedeiro humano, pelo agente patógeno e pelo ambiente; trata-se de modelo que tem como base as doenças transmissíveis e no qual um agente biológico presente no ambiente pode causar uma doença específica no hospedeiro. Nesse modelo, o papel do saneamento é interpor barreiras entre os humanos, o agente da doença e os fatores ambientais, como um processo mecânico. Essa é a ideia que encerra o conceito de prevenção: centrado na doença, evita que os humanos entrem em contato com os agentes etiológicos. Figura 2 – Tríade ecológica de Leavell e Clark (1976) Hospedeiro

Agente

Ambiente

Fonte: adaptado de Pereira, 1999.

Essa concepção preventivista reflete a visão higienista que as autoridades sanitárias da Inglaterra do século XIX tinham do saneamento: ação pontual, não sistêmica, unicamente como intervenção de engenharia voltada para higienizar o ambiente e afastar a doença. Naquela época o objetivo higienista era combater os miasmas causadores das doenças; atualmente, o objetivo preventivista é afastar o agente biológico causal do hospedeiro. Ambas as concepções se encontram fortemente amparadas na 34 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 34

18/11/2015 14:50:23

ideia de saúde como oposta à condição de doença. Assim, o saneamento é tratado como uma intervenção ambiental direcionada unicamente para obstaculizar o caminho entre o indivíduo e a doença, o que é reforçado em meados do século XX por Leavell e Clark (1976), com o seu modelo da história natural das doenças. No Brasil, a concepção higienista e depois a preventivista influenciaram o primeiro plano de financiamento federal para abastecimento de água, de 1953, que dava continuidade ao processo de estruturação de políticas públicas relacionadas ao saneamento iniciado na década de 1940. Esse foi o marco do financiamento público para essa área com recursos onerosos, por meio de empréstimos, que havia sido deliberado na I Conferência Nacional de Saúde, em 1941. Essas políticas públicas de saneamento procuravam responder à situação de saúde vigente na década de 1930, quando predominavam as doenças infecciosas parasitárias, responsáveis por 45% do total de óbitos. Essa situação resultava, em parte, do quadro ambiental em que se dava o crescimento das cidades: o acesso ao saneamento havia aumentado, mas grandes impactos em mananciais não protegidos contaminavam a água destinada ao abastecimento e à produção de alimentos (legumes e frutas), favorecendo o aparecimento de grande número de doenças, entre as quais as diarreias e a febre tifoide. Nas áreas rurais, o precário acesso ao saneamento, que vigora ainda hoje, contribuía para o predomínio dessas doenças. Nas décadas de 1930 e 1940, problemas urbanos como a questão da moradia e a falta de água se avolumavam, em um quadro sanitário que favorecia frequentes surtos de leptospirose [ 35

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 35

18/11/2015 14:50:23

nos períodos chuvosos. Esse quadro resultava da combinação de precárias condições de saneamento, presença constante de hospedeiros de doenças, como ratos, e outras doenças como tracoma, febre tifoide, difteria e poliomielite.

O Saneamento Articulado com a Sustentabilidade e a Promoção da Saúde Em 1970 a população urbana do Brasil ultrapassa a rural, com mais da metade dos 93 milhões de habitantes vivendo nas cidades, e em 1980 ela chega a ⅔ dos quase 120 milhões de habitantes do país. É nesse período de intenso processo de urbanização do país que os temas ambientais emergem mais fortemente, e as questões atinentes ao saneamento são relacionadas à qualidade ambiental e ao subdesenvolvimento (Conferência de Estocolmo, 1972) e ao desenvolvimento sustentável e à pobreza no (Relatório Brundtland, 1987). No mesmo período emerge a compreensão de que é preciso ampliar a concepção de saúde pública. Com a mudança do foco das práticas centradas, principalmente, nos aspectos biomédicos da atenção e preventivistas das doenças para uma compreensão mais ampla do estado de saúde, grande parte da atenção passa a se direcionar para as dimensões ambientais da saúde. Emblemáticos desse processo são o Relatório Lalonde, do governo do Canadá, que em 1974 define as bases para o movimento de promoção da saúde, e a Carta de Ottawa, resultado da Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada no Canadá em 1986. 36 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 36

18/11/2015 14:50:23

A total articulação do tema do saneamento com a agenda ambiental é explicitada na Agenda 21, nos capítulos sobre combate à pobreza (cap. 3), proteção e promoção das condições de saúde humana por meio de um ambiente saudável (capítulo 6), promoção do desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos (cap. 7), promoção do desenvolvimento rural agrícola sustentável (cap. 14), proteção dos oceanos, mares e zonas costeiras (cap. 17), proteção da qualidade e do abastecimento dos recursos hídricos (cap. 18), manejo ambientalmente saudável de resíduos perigosos (cap. 21) e promoção da educação (cap. 36). A década de 1990 efetivamente associa o saneamento não só à questão ambiental, mas também à promoção da saúde e à qualidade de vida. A partir da década de 1990, o Brasil viveu imensas transformações político-institucionais que têm se refletido nas políticas e ações de saneamento. A Lei Orgânica da Saúde (n. 8.080/1990) estabelece como fatores determinantes e condicionantes da saúde, entre outros, o saneamento básico e o meio ambiente, e como um de seus princípios a integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico. Na década seguinte, o direito às cidades sustentáveis e ao saneamento ambiental, para as gerações presentes e futuras, passa a ser considerado na lei n. 10.257/2001, denominada Estatuto da Cidade. Em 2006, como afirmado no capítulo 1 dessa lei, o acesso à água potável é considerado direito humano fundamental. Em seguida, o país passa a contar com as diretrizes nacionais para o saneamento básico (lei n. 11.445/2007), que considera entre seus princípios fundamentais a universalidade, a integra[ 37

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 37

18/11/2015 14:50:23

lidade, a promoção da saúde e o controle social. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (lei n. 12.305/2010) contempla entre seus princípios a prevenção, a precaução e a visão sistêmica na gestão dos resíduos sólidos e considera as variáveis ambiental, social, cultural, econômica, tecnológica e de saúde pública. Tais diplomas legais impõem novos desafios às áreas de saneamento, saúde e ambiente no país. Os diversos instrumentos legais dirigem, adotando princípios, reconhecendo direitos e estabelecendo diretrizes, novos olhares para o saneamento. No próximo capítulo, apresentaremos elementos que ajudam a compreender a trajetória do saneamento, de suas políticas e modelos de gestão, assim como nossa realidade social, ambiental, de saúde e de saneamento.

38 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 38

18/11/2015 14:50:23

3 Breve História

do

Saneamento

no

Brasil

O saneamento no Brasil, sem estar dissociado do que ocorria

no mundo, percorreu diversas etapas relacionadas à concepção de saúde que fundamentava as ações, o modelo de gestão e o objeto das políticas públicas. As maiores transformações estiveram relacionadas ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário, na medida em que foram essas ações e serviços que receberam do governo federal mais atenção como políticas públicas. A destinação dos resíduos sólidos, a limpeza urbana e a drenagem urbana sempre estiveram sob a responsabilidade do poder local, custeados com recursos oriundos de impostos arrecadados por este ente federado. Várias outras ações foram implementadas pelo poder público, como melhorias sanitárias domiciliares, melhorias habitacionais para controle da doença de Chagas, meso e macrodrenagem, açudagem no Semiárido, mas algumas de forma não sistemática.

As Políticas

de

Saneamento

no

Brasil:

um breve percurso

As etapas históricas descritas a seguir convergem, de alguma forma, para as concepções de saúde hegemônicas e foram distinguidas em decorrência de marcos na gestão dos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. [ 39

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 39

18/11/2015 14:50:23

Algumas das características de determinada etapa permanecem em outras etapas, mas o marco de passagem de um momento ao outro é o determinante nesta tipologia. A literatura nos permitiu a identificação de sete etapas, descritas a seguir (Costa, 1994; Rezende & Heller, 2004). A incipiência do Estado

No início do primeiro quarto do século XIX, o Brasil ainda não contava com sistemas de abastecimento de água ou de esgotamento sanitário implantados. As soluções para o acesso à água e a destinação dos dejetos eram individuais. Havia os chafarizes implantados, sobretudo a partir do século XVIII pela Igreja, com adução, em geral, por canaletas de pedra. Havia os vendedores de água, e os mananciais ainda permitiam o acesso à água limpa em fontes e riachos sem poluição significativa. As ações coletivas de salubridade ambiental eram conduzidas pelas câmaras do Senado, as atuais câmaras municipais, em ações de aterro e drenagem em um período que a teoria miasmática era hegemônica e se acreditava que as doenças eram transmitidas por odores fétidos. Devemos lembrar também que a expansão das cidades se deu, em grande parte, sobre aterros. Ao fim da primeira metade do século XIX, os primeiros sistemas e serviços públicos de abastecimento de água foram construídos no Brasil. A distribuição domiciliar de água ocorria sem tratamento e se restringia aos núcleos centrais urbanos das cidades de maior importância econômica, espaços de produção e circulação de bens de interesse do capital privado. 40 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 40

18/11/2015 14:50:23

Privatização dos serviços

Os sistemas e serviços de esgotamento sanitário (ES) passam a ser implantados na década de 1860, após as primeiras epidemias de cólera, investigadas por John Snow, que já haviam atingido a Europa. As concessões privadas eram realizadas pelas províncias, os investimentos eram privados e havia a cobrança de tarifas para cobertura dos custos e do lucro. A grande maioria dos serviços de ES era gerida pelos ingleses, bem como os demais serviços públicos. Ao aumento das populações urbanas das grandes cidades não correspondia a capacidade dos serviços de ampliar a cobertura, o que gerou grandes revoltas populares pouco antes da chegada do século XX. Encampação dos serviços privatizados

Na última década do século XIX tem início o processo de encampação, por parte das províncias, dos serviços privados de água e esgotos. A primeira encampação se deu em São Paulo, em 1893, em decorrência das constantes revoltas populares por ampliação da cobertura. Até a década de 1920 muitos serviços foram estatizados e constituídos em órgãos da administração direta, como as Repartições de Água e Esgotos. Esse período foi um dos mais fecundos da engenharia sanitária nacional, com a consolidação de um saber nacional nesse campo, antes dominado pelos ingleses. Foi o período de atuação de Saturnino de Brito, o patrono da engenharia sanitária no Brasil, com seus inúmeros projetos em grandes e médias cidades brasileiras. Várias tecnologias foram introduzidas, como o tratamento [ 41

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 41

18/11/2015 14:50:24

de água por meio da cloração. Mas essa ação não se restringia a sistemas de águas e esgotos, pois envolvia também planejamento e drenagem urbana, na perspectiva do higienismo. Houve considerável expansão da cobertura domiciliar do abastecimento de água nas médias e grandes cidades, que chegou a cerca de 40%. No entanto, a maioria dos sistemas de abastecimento não contava com mecanismos públicos de acesso à água, como os chafarizes. Esse modelo predominou na administração pública até a década de 1940. As críticas à administração direta para a gestão dos serviços públicos de água e esgotos eram intensas em razão da burocracia e do caixa único dos estados e municípios. A burocracia dificultava a compra de materiais e insumos, as construções e as contratações, e o caixa único drenava toda a receita tarifária, dificultando a definição de um orçamento próprio para o serviço. As transferências de recursos estavam muito imbricadas ao jogo político de disputa pelos recursos orçamentários. Essas críticas levaram muitos engenheiros a reivindicar mudança no modelo de gestão, de forma a lhe conferir maior autonomia e racionalidade administrativa. Em 1941, foi aprovada na I Conferência Nacional de Saúde recomendação para a constituição de serviços públicos de abastecimento de água que possibilitassem sua autossustentação tarifária. Vários departamentos estaduais e municipais deram lugar às repartições e inspetorias de água e esgotos. Estas auferiam mais autonomia, mas ainda com limitações.

42 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 42

18/11/2015 14:50:24

Racionalidade administrativa

Nas décadas de 1940 e 1950, importantes mudanças implicaram maior racionalidade administrativa, baseada na autossustentação tarifária e em maior autonomia. Em 1946, foi criado o Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), cujos órgãos originários atuaram apenas na erradicação da malária da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, que passou a ter atuação nacional. Ainda na década de 1940 outro órgão federal é criado, ampliando seu escopo: o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), cuja origem remonta ao início do século XX. Em 1952, o Serviço Especial de Saúde Pública, do Ministério da Saúde (Sesp), fundado em 1942, criou os Serviços Autônomos de Água e Esgotos (SAAE), na forma de autarquias, fundados nesses princípios. Os SAAE também tinham como diretriz utilizar tecnologias apropriadas às realidades ambientais e socioeconômicas. Os primeiros SAAE foram criados no vale do Aço, em Minas Gerais, e no Espírito Santo. No regime jurídico da época as autarquias tinham muita autonomia administrativa, mas a perderam paulatinamente. Em 1955, em Campina Grande, Paraíba, foi instituído, pela prefeitura, o primeiro serviço em regime de sociedade de economia mista. Esse modelo foi outro salto importante na racionalidade administrativa, centrada na autossustentação tarifária e em um formato empresarial de gestão. Na década de 1950, a gestão da maioria dos serviços era municipal e os recursos para investimentos provinham dos próprios municípios. Mas, na maioria das capitais e cidades de porte médio, [ 43

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 43

18/11/2015 14:50:24

a atribuição era estadual, na forma de departamentos. Nesses casos, os recursos provinham dos orçamentos federal e estadual. Em 1953, no governo Vargas, outro marco importante no saneamento brasileiro foi o primeiro financiamento oneroso no Brasil em abastecimento de água, sob a lógica do retorno dos investimentos via tarifas. Esse financiamento não foi muito bem sucedido, pois não havia fundos estáveis e consolidados e um aparato jurídico-institucional para suportá-lo. Nessa década, a média nacional de cobertura de abastecimento de água estava abaixo de 50%, mas as grandes cidades tinham coberturas muito maiores. Alguns órgãos federais tinham, a essa altura, importância destacada no saneamento. No Ministério da Saúde, o Sesp estendeu sua atuação à Amazônia e a outros estados, e passou a desempenhar um papel central na política de saneamento no Brasil. Em 1954, foi criado o Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), que controlava endemias com o uso de químicos, mas também com ações de saneamento, como a drenagem para controle da malária e o abastecimento de água e o esgotamento sanitário para controle da esquistossomose e outras parasitoses. Gestão empresarial

Na década de 1960 consolida-se a perspectiva do modelo empresarial na gestão dos serviços públicos de água e esgotos, por meio das empresas de economia mista. O financiamento oneroso e a autossustentação tarifária são o centro desse modelo. Prestar esses serviços por meio de investimentos, operação e manutenção apenas mediante a cobrança de tarifas – e não mais utilizar recursos orçamentários – passa a ser a lógica da área. O Banco 44 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 44

18/11/2015 14:50:24

Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) são os órgãos por trás dessa lógica no início da década de 1960. O BID e a Sudene passam a financiar esses serviços no Brasil em 1960, induzindo a organização dos serviços por meio de empresas de economia mista. No Nordeste, como existia apenas a empresa municipal de Campina Grande, e a Sudene só poderia aplicar os recursos em empresas dessa natureza, a solução foi criar uma subsidiária, a Companhia de Água e Esgotos do Nordeste (Caene), que implantou e geriu serviços em cerca de cem municípios na região, até 1970, quando foi extinta. Em 1962 é criada a primeira empresa estadual de economia mista, a Companhia de Saneamento de Alagoas (Casal). Em seguida, a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar), em 1963, e várias outras na década de 1960. Ao fim dessa década, vários estados passaram a ter mais de uma empresa de economia mista, baseada na autossustentação tarifária, como São Paulo, que até 1971 contava com cinco empresas estaduais. Ainda no começo da década de 1960, o Sesp se transforma em Fundação Sesp, e o DNOS passa a ser autarquia. Esses órgãos têm importância central na primeira metade da década, à frente da política federal da área. Mas com a criação, em 1964, do Banco Nacional de Habitação (BNH), já no ano seguinte este órgão passa a financiar também serviços públicos de saneamento e, em 1968, institui o Sistema Financeiro de Saneamento (SFS), passando a utilizar os recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para realizar ações de saneamento. Esse sistema incluía financiamento para serviços municipais e companhias estaduais, com recursos onerosos. Com o BNH o Brasil passa a [ 45

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 45

18/11/2015 14:50:24

ter uma fonte regular e robusta de financiamento oneroso para o saneamento, pela primeira vez na história. Ao fim da década de 1960 há um aumento significativo da população que recebe serviços prestados por companhias estaduais, mas a grande maioria ainda conta com serviço municipal. A importância dos financiamentos federal e estadual nos serviços de água e esgotos aumenta nessa década. Há um mosaico muito diversificado de modelos administrativos, de órgãos federais, estados com mais de uma companhia de economia mista e a gestão municipal predominante. Ao fim da década, diante do predomínio do BNH, o papel da FSESP e do DNOS praticamente deixa de existir. Plano Nacional de Saneamento (Planasa)

Diversos elementos constituíram o contexto no qual foi formulada, em 1971, a política de saneamento do regime militar: o Plano Nacional de Saneamento (Planasa). Em 1970, a cobertura de abastecimento de água da população urbana era de 54% e a de esgotamento sanitário, de pouco mais de 25%. Nesse cenário, o plano decenal do governo militar considerava a necessidade de investimentos em saneamento nas áreas urbanas, em um contexto caracterizado por: 1) centralização tributária a partir de 1966; 2) repressão e centralização política; 3) política econômica que geraria o milagre econômico; 4) urbanização acelerada; 5) BNH em plena expansão de crédito pelo aumento do trabalho formal e das receitas do FGTS. O saneamento é visto como uma atividade empresarial, passível de condução sob a lógica do retorno do investimento via 46 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 46

18/11/2015 14:50:24

tarifa. É, assim, considerado necessário para dotar as cidades de infraestrutura sanitária e fundamental para o processo de urbanização, o qual exigia um ambiente favorável ao novo ciclo de desenvolvimento do Brasil, pautado no crescimento econômico (Borja & Moraes, 2006). O Planasa teve como principal estratégia articular a centralização da gestão dos serviços públicos de água e esgotos nos governos estaduais, opção decorrente do controle político, pelo governo federal, de todos os governadores e prefeitos de capitais biônicos e da exclusividade do financiamento do FGTS para as companhias estaduais de água e esgoto (CEAE). A grande maioria dos municípios asfixiados financeiramente não tinha alternativas para manter os serviços sob a sua gestão. A autossustentação tarifária foi a lógica central do modelo de financiamento. O subsídio cruzado – situação em que municípios cujas receitas tarifárias não seriam suficientes para cobrir os custos seriam “subsidiados” pelos superavitários – foi a estratégia auxiliar do desenho da lógica da autossustentação tarifária. Esse modelo mostrou-se, até o presente momento, inadequado à realidade brasileira, pois quase nenhuma das CEAE é autossustentável via tarifas. Os municípios concederam os serviços para as CEAE e, no contexto de ditadura, perderam qualquer poder decisório nessa política. Essa herança se faz sentir atualmente na área, onde as prefeituras têm poder mínimo na relação com as CEAE e a participação social também é ínfima, heranças do regime militar e do poder instituído na tecnoburocracia das companhias estaduais, grupo de interesse ainda hegemônico na área de saneamento. [ 47

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 47

18/11/2015 14:50:24

No Planasa, priorizou-se a tecnologia convencional, de maior custo, não se considerando as condições ambientais e socioeconômicas. Áreas com urbanização irregular, como as favelas, eram consideradas não saneáveis, como se houvesse um impedimento tecnológico. Com isso, consolidou-se a falta de saneamento inadequado em áreas habitadas pelos estratos sociais mais baixos, o que aprofundou a estrutural desigualdade social brasileira. Na década de 1980, os resultados em termos de cobertura foram expressivos. A cobertura urbana de abastecimento de água passou de 54% em 1970 para 78% em 1980 e chegou a cerca de 90% em 1990. Com relação ao esgotamento sanitário, a cobertura na década de 1970 passa de 22,3% para 36% e em 1991 atinge 44,6%. O BNH, que além de agente financeiro era o gestor da política federal de saneamento, é extinto em 1986. A Caixa passa a ser o agente financeiro, mas o gestor da política passa a ser as secretarias que se alternam em vários ministérios até 2003, quando o Ministério das Cidades é criado e se torna o seu gestor federal. Mas a tensão entre o poder do agente financeiro e o agente político permanece. Em 1990, há uma mudança significativa nos programas oriundos do Planasa, e o contexto neoliberal redireciona a política de saneamento no Brasil, podendo-se considerar aquele plano extinto. Neoprivatização

O mundo vivia um contexto econômico e político na década de 1980 marcado pelo neoliberalismo, com foco na mudança do 48 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 48

18/11/2015 14:50:24

papel do Estado de provedor para regulador de serviços. E a privatização de empresas e serviços públicos foi a expressão da gestão pública desse processo. Na verdade, o grande capital, após a crise econômica de 1981 e o esgotamento de ganhos com investimentos em infraestrutura, vê como saída a prestação direta de serviços públicos. Mas na América Latina os regimes ditatoriais e, no Brasil, o processo constituinte, com perspectivas universalistas, de descentralização e participação social, adiaram esse processo para a década de 1990. Logo em 1991, no governo Collor, o Brasil assina acordo com o Banco Mundial (Bird), que introduziria esse debate na área do saneamento brasileiro. O Bird era o braço de financiamento e de indução política do grande capital nos países em desenvolvimento para a implementação do que ficou conhecido como Consenso de Washington. A “modernização” era o núcleo central do Projeto de Modernização do Setor Saneamento (PMSS), financiado pelo Bird. Em 1994, começam a sair os primeiros documentos que iriam fundamentar política e juridicamente e estabelecer as diretrizes para esse processo, as quais orientaram as ações do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) a partir de 1995. No mesmo ano, o primeiro serviço público de água e esgotos no Brasil foi concedido a uma empresa privada, em Limeira, São Paulo, exatamente cem anos depois do processo de reestatização do século XIX. Na segunda metade dos anos 1990, os investimentos em saneamento caem substancialmente, devido aos contingenciamentos impostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Em contrapartida, há um aumento substancial de recursos do [ 49

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 49

18/11/2015 14:50:24

Orçamento Geral da União (OGU), sobretudo por meio da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), em municípios abaixo de 50 mil habitantes. Há uma importante mudança na alocação de recursos, em que as CEAE deixam de ser as únicas tomadoras de empréstimos. Passa, então, a haver uma multiplicidade de fontes e demandantes, como prefeituras, governos estaduais, outras empresas municipais e estaduais da área de habitação e desenvolvimento urbano, o que torna complexo o processo de financiamento de saneamento no Brasil. Em 1996, o governo FHC encaminha projeto de lei que daria base legal para o processo político de privatização dos serviços públicos de saneamento nas regiões metropolitanas e áreas conurbadas. Esse projeto de lei atribuiria titularidade aos estados pelos serviços públicos de água e esgotos, o que facilitaria a privatização. No entanto, o governo federal, devido à oposição dos prefeitos e da sociedade civil organizada, não conseguiu nos dois mandatos aprovar lei referente a esse tema. Ao fim da década de 1990, pouco mais de cinquenta municípios pequenos e médios e uma grande cidade (Manaus), juntos representando cerca de 5% da população brasileira, tiveram os serviços privatizados. As concessões foram feitas, em geral, em municípios que já tinham elevada cobertura por serviços públicos de água e esgotos, requerendo menos investimentos para expansão do acesso. E esses recursos, ao contrário dos discursos oficiais, não advieram da iniciativa privada, mas de bancos governamentais, a juros baixos. A privatização expandiu-se nos anos 1980 na Europa e nos anos 1990 na América do Sul e na África. Em vários países esse 50 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 50

18/11/2015 14:50:25

modelo é questionado e muitas concessões privadas são desfeitas. Sobretudo o aumento tarifário, a precarização dos serviços e investimentos privados aquém do previsto são os principais problemas. E em alguns países como Argentina, Uruguai, Bolívia e Equador, as multinacionais que controlam essa área se viram obrigadas a abandonar os serviços devido às fortes pressões populares. Uma nova forma de privatização disseminada na Europa, a Parceria Público-Privada (PPP), é introduzida no Brasil na década de 2000 com a promulgação da lei n. 11.079/2004. Devido aos problemas do modelo de privatização com concessão completa dos serviços, a “parceria” se constitui em nova estratégia do setor privado e do Banco Mundial para retomar e mesmo expandir a prestação privada dos serviços. Nesse modelo, é firmado contrato entre o ente privado, que destinará recursos definidos previamente e terá direito a um percentual de lucro, e o ente público que, em caso de receita líquida insuficiente, deverá prover a diferença. Esse processo de privatização nessas regiões do mundo caminhou para a reestatização da prestação dos serviços. Na Europa houve um processo significativo de remunicipalização, a partir do ano 2000. Nessa década, os investimentos públicos são retomados no país e há um importante processo de institucionalização da área. A Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades se consolida como o lugar institucional da área de saneamento básico, desde 2003. Em 2007, é promulgada a Lei Nacional de Saneamento Básico (LNSB), marco legal da área, e lançado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com [ 51

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 51

18/11/2015 14:50:25

vultosos recursos para investimentos, também em saneamento, e em 2010 é instituída a lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Na LNSB, como já referido, são definidos princípios fundamentais como universalização, integralidade e controle social e estabelecidas diretrizes para o acesso a recursos federais, e sua gestão, e a regulação dos serviços. É também estabelecida a elaboração, pela União, sob a coordenação do Ministério das Cidades, do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), com a determinação de objetivos e metas a curto, médio e longo prazos, e a correspondente proposição de programas, projetos e ações necessários à universalização dos serviços e à obtenção de níveis crescentes de saneamento básico no território nacional. O Plansab começou a ser elaborado em 2009, foi aprovado em 2013 e começou a ser implementado em 2014, com vigência prevista até 2033. Ele propõe três grandes programas, desdobrados em inúmeras ações: 1) saneamento básico integrado (para áreas urbanas); 2) saneamento rural; e 3) saneamento estruturante (apoio à gestão pública dos serviços, incluindo a qualificação da participação no controle social dos investimentos públicos). Os dois primeiros programas são compostos de medidas estruturais (obras e intervenções físicas em infraestrutura) e o último, de medidas estruturantes. O investimento total, em vinte anos, é estimado em R$ 508,45 bilhões. No Quadro 1 estão resumidas as etapas históricas do saneamento no Brasil detalhadas nesta seção.

52 ]

TemasEmSaúde_saneamento_miolo_emendas_18-11.indd 52

18/11/2015 14:50:25

Quadro 1 – Etapas históricas do saneamento no Brasil Etapas

Período

Prestação do serviço

Cobertura

Incipiência do Estado

Colônia

Inexistência de serviços

Soluções individuais, chafarizes

Concessão, pelas províncias, para empresas estrangeiras

10-15% restritos a núcleos centrais das grandes cidades

Privatização dos Meados do serviços século XIX a início do século XX Encampação

Fim do século Repartições ou XIX à década inspetorias estaduais de 1940

Cerca de 40% em abastecimento de água nas principais cidades, a maioria de serviços

Racionalidade administrativa

Década de 1950

Predominância de gestão municipal e estadual nas cidades maiores

Média nacional em abastecimento urbano de água
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.