SANTIAGO, Haline. Vera (1987): a performance de gênero em reformatórios femininos (III Congresso Internacional Sexualidade e Educação Sexual - Lisboa)

May 17, 2017 | Autor: Haline Santiago | Categoria: Transgender Studies
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Vera (1987): a performance de gênero em reformatórios femininos

Vera (1987): a performance de gênero em reformatórios femininos

Júlia Francisca Gomes Simões Moita Universidade Federal de Uberlândia Haline Santiago Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Vera (1987): a performance de gênero em reformatórios femininos

RESUMO O artigo analisa o filme Vera (1987), do cineasta Sérgio Toledo, enfatizando as performances de gênero nos, então, chamados reformatórios femininos. Tais instituições eram engendradas pensando na ressocialização de menores carentes ou infratores. As performances de gênero tornam-se fundamentais para a compreensão do processo socioeducativo já que performar o masculino em tais instituições é visto como sinal de força e poder. Por sua vez, as autoridades responsáveis por gerir tais estabelecimentos se utilizam dos códigos de gênero para intimidar e humilhar as internas. A análise será feita a partir do conceito de performance de gênero (Judith Butler) e da inversão de sexo (Simone de Beauvoir). Com a utilização das duas autoras, pretende-se uma maior compreensão do feminino enquanto gênero subalterno. O filme possibilita a apreensão das instituições socioeducativas como espaços de disputas sociais intensas e como instâncias reprodutoras da ordem heteronormativa e patriarcal. A investigação permite perceber gênero como elemento organizador da realidade social e elemento fundante das relações sociais. Palavras-chave: gênero; performance de gênero; heteronormatividade; transexualidade

Vera (1987): a performance de gênero em reformatórios femininos

Introdução

O filme Vera (1987), dirigido por Sérgio Toledo1, é pioneiro na abordagem das questões de gênero no país. Com as discussões a respeito das identidades apenas se iniciando, o filme já flerta com a performatividade dos gêneros, mesmo que de maneira intuitiva. Vera Bauer é um ex-interno da FEBEM*2 de São Paulo que tenta se adaptar à vida fora da instituição com a ajuda de um professor (Paulo). Ao longo do filme, ele se lembra das experiências no internato ao mesmo tempo em que se relaciona com Clara. Bauer se corrói entre as memórias e a tentativa de mostrar para Clara, e para os colegas de trabalho, que é, na verdade, um homem. A tensão em relação ao gênero do personagem principal acontece já no primeiro diálogo do filme. Ao ser apresentado para a secretária do centro cultural (onde é empregado com a ajuda do professor Paulo), retifica que seu nome não é Vera, mas apenas Bauer. Ao discutir a questão do lesbianismo/travestismo, Simone de Beauvoir (1967) nos traz a noção de inversão sexual. O termo, embora aponte para a fragilidade da argumentação da autora, é interessante por remeter à desordem trazida por qualquer sujeito que não mantenha a coerência entre sexo, gênero e orientação sexual exigida pela sociedade. O texto é cheio de problemas, já debatidos por autoras de diversas áreas3: Beauvoir trabalha sem o aporte do conceito de gênero (que aparece algumas décadas depois) e não faz distinção entre as identificações ou condutas masculinas e femininas4 e orientação sexual. Isso significa que ao longo do texto, o termo lésbica é usado como sinônimo de transgênero, como entendemos nos dias atuais.

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No início da exibição, o diretor afirma tratar-se de uma obra de ficção. Então, apesar de sabido que a obra é baseada na história de Anderson Herzer, vamos tratar do filme com autonomia em relação à obra do Herzer. 2 Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM), atual Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA), é um órgão do governo estadual responsável por executar medidas socioeducativas em adolescentes infratores. 3 Para uma crítica da visão de Simone de Beauvoir sobre o lesbianismo ver Swain, T. N. Feminismo e lesbianismo: a identidade em questão. Cadernos pagu (12) 1999: pp.109-120. 4 No capítulo introdutório do livro Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”, a crítica de Judith Butler ao que ela chama de feminismo beauvoriano passa pela discussão de gênero enquanto uma construção social. De acordo com ela, verdade inquestionável nos círculo feministas durante décadas, ainda hoje problematizar a construção social do gênero causa espanto e polêmica. A crítica de Butler diz respeito ao lugar reservado à natureza por esta teoria. Seria o natural , no caso o sexo, cancelado pelo social, que atuaria de maneira unilateral para inscrever o gênero nesta superfície a-histórica. O problema desta visão, segundo Butler, é que gênero assume os significados do sexo, já que não é possível acessar o sexo, uma vez que ele é apenas uma categoria de inscrição, pré-humana e pré-discursiva. A imagem que

Vera (1987): a performance de gênero em reformatórios femininos O que nos interessa aqui é perceber o feminino como mutilador do ser. Beauvoir afirma que há uma tentativa de colocar a invertida numa posição de inautenticidade. Como se a imitação do masculino a deixasse eternamente inacabada. Ela rechaça essa idéia e considera que o desejo de autonomia por parte das mulheres é, sim, autêntico e, mais do que isso, esperado: “cada vez que ela se conduz como ser humano, declara-se que ela se identifica com o macho”. A visão butleriana de performance de gênero também será utilizada no trabalho. A filósofa considera que não devemos entender gênero como identidade mas, sim, como atos performáticos recriados cotidianamente. Assim, faz-se homem ou mulher ao agir como homem ou mulher, tal visão não pode ser confundida com construção social ou identidade porque o processo não cessa, precisa ser continuamente recriado e vivido. No filme, a trangeneridade de Bauer se manifesta à medida em que ele toma consciência das limitações do feminino dentro do ambiente do reformatório. O internato é lembrado por Bauer como um local de disputa e de valorização do masculino. A fragilidade das internas diante do diretor é associada às práticas femininas. O primeiro confronto de Bauer com a líder “machona”5 da instituição, Paizão, se dá por intermédio dessas práticas. No pátio da FEBEM, vemos Bauer iniciar seus atos performativos masculinos, burlando regras para proteger uma colega. A garota, Telma, de castigo ao relento, é socorrida por Bauer, que entrega a ela um casaco. A atitude protetora (ação “masculina”) de entregar o casaco a Telma é vista por Paizão como ameaça e ela, então, ordena que Bauer lave suas roupas (ação “feminina”). Bauer se recusa mas está em desvantagem (inclusive gestual/corporal, uma vez que está ajoelhado cuidando do jardim enquanto Pezão está em pé à sua frente) e acabaria cedendo, quando a própria Telma intercede, oferecendo-se para lavar a roupa de Paizão. O que o líder aceita. Depois, Telma explica para Bauer que há duas “machonas”: Paizão e Tonica. Ela, Telma, seria “neta” de Paizão porque é “filha” de Tonica. Bauer aceita ser batizado e entrar para a “família” de Pezão.

ficaria é de um sujeito inicial cujo ato instaurador de gênero teria efeitos fixos e permanentes. Ver Butler, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. “Machona” é o termo usado pelo diretor do presídio para se referir às meninas que performam o masculino na instituição. Acaba sendo usado pelas próprias internas. Elas se referem umas às outras através de pronomes femininos. Apenas Bauer, quando sai do reformatório, reivindica o uso de pronomes masculinos para si. 5

Vera (1987): a performance de gênero em reformatórios femininos A relação com o professor

A relação de Bauer com o professor Paulo é mediada pela presença da esposa dele, que insiste com o marido sobre a necessidade de manter a menina6 afastada. O incômodo com a presença de Bauer é sentido pela repulsa que ela demonstra e pelo uso de palavras e expressões que nos remetem ao reino do abjeto (“menina esquisita”, “corpo estranho”). O abjeto, de acordo com a filósofa Judith Butler (2001), seria o ser que não possui o status de sujeito porque os atos performativos realizados por ele não teriam coerência do ponto de vista social. Considera-se que Bauer possui um caráter de dupla abjeção para a esposa do professor. Biologicamente mulher, apresenta-se e porta-se como homem. A falta de coerência entre sexo e gênero, aqui, seria suficiente para que Bauer fosse estranhada. A zona de abjeção, explica Butler, seria fundamental para a constituição dos sujeitos, uma vez que não basta a identificação com o normativo do sexo mas deve haver, também, um repúdio por aqueles que não compactuam com ele. Além da abjeção pela incoerência entre sexo e gênero, há também a abjeção provocada pela incoerência geracional. Bauer tem uma chance de inocência justamente quando sai do reformatório. Teria a chance de redenção nesse momento. A esposa, entretanto, teme o contato dos filhos com ele. A abjeção leva os funcionários a pedirem a transferência/demissão de Bauer após um episódio emblemático: ele aparece no trabalho vestindo terno e gravata, o que causa certo alvoroço entre os funcionários que verbalizam que “ali é um lugar sério” e que “as pessoas devem se vestir adequadamente”. O professor considera que a roupa é uma provocação e Bauer responde “eu não sou o que todo mundo pensa. Eu sou diferente. Eu sou outra coisa”. Os conselhos do professor são para que Bauer entenda a repulsa que causa nas pessoas ao assumir comportamentos e trejeitos masculinos e tenha cautela em relação a isso. Bauer, entre impassível e desdenhoso, repete que não se importa de ser tratado como estranho.

O romance com Clara

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A esposa se refere a Bauer no feminino.

Vera (1987): a performance de gênero em reformatórios femininos A relação com Clara acontece por intermédio da poesia. Bauer vai encontrá-la para mostrar um poema (cujo tema é a fuga do passado). Enquanto conversam, Clara revela ter um filho, mostra seu espírito libertário e contesta a instituição do casamento. Bauer conta do seu passado. A corporalidade aparece de maneira inusitada no primeiro encontro entre eles. Numa exposição no centro cultural, que exibe esculturas de corpos vilipendiados de militantes torturados durante a ditadura militar, Bauer conhece Clara. Os corpos expostos nos trazem, imediatamente, a idéia de violência contra corpos que se rebelam, que afrontam. Enquanto caminham pela exposição, Clara afirma que não admitiria ter o corpo violado. A questão da violação é fonte de tensão na obra. Bauer não tira a roupa durante o ato sexual e, quando Clara tenta acessar seu corpo, o rapaz se retesa, recua e chora. Por fim, pede desculpa, diz que não consegue e vai embora. A “coisa” que Bauer é vai aos poucos se realizando em atos performáticos masculinos. Além do terno e gravata, ele adota uma postura de cavalheiro na corte a Clara, entregando rosas para a “sogra” e empinando pipa com o filho dela. O incômodo de Clara é com o fato de Bauer estar enganando a família dela, que retruca “eu não enganei ninguém, eles viram com os próprios olhos”. O clímax dessa transformação acontece num bar em que Bauer está com Clara. Em determinado momento, ele se levanta e dubla um tango7 (sou o teu homem/no tango da paixão), de maneira teatral, o que nos remete imediatamente ao universo do travestismo e das drag kings. Clara se excita com a performance e o beijo acontece e, depois, o sexo. Aos poucos, a performance de cavalheiro de Bauer vai se tornando a do homem ciumento e possessivo. Proíbe Clara de falar com outros homens e mostra, através da fala, a percepção de hierarquia entre os sexos, que trouxe do internato. “Eu sou o homem aqui”, “você é minha mulher”.

O reformatório

A masculinidade de Bauer, como já dito, é parte integrante da sobrevivência deste no reformatório. Além de lidar com as colegas, há uma relação abusiva entre a

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Tango, de Inácio Zatz.

Vera (1987): a performance de gênero em reformatórios femininos direção do internato e as internas. Na reunião entre o diretor do reformatório e todas as detentas, há uma tentativa, por parte das meninas, de denunciar abusos e maus tratos por parte dos funcionários. Vera/Bauer faz denúncias e é levada para o “quartinho”, uma espécie de solitária do lugar. No episódio, vemos as tentativas de debates e concílios falharem. Vera/Bauer sente impotência diante da situação, o “protesto viril” (Beauvoir, 1967) aparece cada vez mais forte. Ainda sobre as tentativas de rebelião, Pezão diz para Bauer que “quando entro numa briga é para ganhar, aqui essa opção não existe”. O diálogo é interessante porque acontece em um momento que Bauer sente-se cada vez mais poderoso (e “mais homem”). Para conter as reclamações e protestos, o diretor apela para um expediente também marcado pela estruturação do mundo de acordo com gênero. Tenta conter as internas promovendo um encontro dançante entre elas e os meninos do reformatório masculino. Durante o evento, Telma dança com o menino mais bonito enquanto Vera/Bauer observa. Depois, se masturba no banheiro. A relação com Telma, marcada pela proteção, não adquire contornos de desejo sexual. Mesmo quando dormem juntos, ele e Telma, mais se protegem do que fazem jogos eróticos. A masculinidade para Bauer parece estar intimamente ligada ao proteger. Telma, personagem mais sexualizada do filme, também flerta com um inspetor do reformatório. A situação preocupa Paizão e Vera/Bauer é escalado para resolvê-la. É uma espécie de rito de iniciação para ele. Ele aborda Telma no banheiro, de maneira violenta e agressiva, a menina chora apavorada e Bauer faz a passagem para “machona”. Logo após o episódio, Paizão completa 18 anos, despede-se de Bauer e pede que fique no lugar dela. Explica, então, a essência da função: as (outras) meninas tem medo e precisam de alguém que saiba o que fazer.

A masculinidade como impossibilidade

Uma vez afastado do centro, o professor Paulo incentiva, então, Bauer a se dedicar à carreira de escritor e sugere que ele escreva um livro sobre a vida no reformatório. O rapaz se anima e conta para Clara. Ela se mostra apreensiva e diz que ele, então, teria que contar ao mundo que se chama Vera. Ele, então, pede “eu sou homem; você tem que acreditar nisso”.

Vera (1987): a performance de gênero em reformatórios femininos Ao mesmo tempo, assistimos a impossibilidade de realização da masculinidade plena, também, em forma de recordação. O diretor do reformatório, dando continuidade às medidas de “inibição” de atos masculinos, providencia lâminas e vestidos para as internas. A sequência pode ser considerada mais violenta do filme. Ironizando a masculinidade das internas “machonas”, ele as incita e pede para ver a genitália delas (“coloquem o pau pra fora”. Depois, vemos Tonica, chocada e abatida, desfilando pelo pátio de vestido. O travestismo às avessas aí torna-se claro. Tonica se traveste quando coloca vestido e não o contrário. Conclusão

As marcas de gênero aparecem, na obra, como uma condenação social. Bauer, durante a permanência no reformatório, resolve adotar práticas masculinas porque considera que elas o fazem mais poderoso e intocável dentro daquela estrutura. É confrontado, porém, continuamente pela direção do internato, que tem como objetivo eliminar as incoerência de sexo/gênero/orientação sexual de dentro dos muros do lugar. Assim, a masculinidade escolhida não pode ser vivenciada sem ser submetida a constantes desconfianças e humilhações. Depois, ao sair da instituição, Bauer precisa afirmar que é homem inúmeras vezes, inclusive para as pessoas que ama e confia. Sua performatividade, entretanto, não destrói as resistência e ele é continuamente cobrado por isto. Simone de Beauvoir nos lembra que a naturalidade da escolha pelo travestismo ou a lesbiandade não é possível num mundo que lembra continuamente lésbicas e transgêneros da escolha que fizeram. A consciência de si nunca deixa de estar presente, porque é sempre preciso reafirmá-la. Uma consciência de si tão aguda não permite, muitas vezes, que tais sujeitos sigam a vida de maneira leve e autêntica. O resultado pode ser trágico. No caso de Bauer, o suicídio.

Vera (1987): a performance de gênero em reformatórios femininos

Referências Beauvoir, S (1967). O segundo sexo. São Paulo: Difusão Européia do Livro. Bento, B. (2011). Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Estudos Feministas, Florianópolis, 19(2). Butler, J (2011). Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: Louro, G. L. (Org.). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica Editora. Butler, J (2003). Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. Knudesen, S. & Pereira, P. P (2010). Conversando sobre psicanálise: entrevista com Judith Butler. Estudos Feministas, Florianópolis, 18(1). Lopes, D (2006). Cinema e gênero. In Mascarello, F. (org). História do cinema mundial. São Paulo: Papirus. Rubin, G (2003). Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade. Cadernos Pagu, Campinas (21). Swain, T. N. Feminismo e lesbianismo: a identidade em questão. Cadernos Pagu, Campinas (12). Sedgwick, E. K (2007). A epistemologia do armário.Cadernos Pagu, Campinas (28). Vencato, A. P (2003). Confusões e estereótipos: o ocultamento de diferenças na ênfase de semelhanças entre transgêneros. Cad. AEL, v.10, n.18/19.

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