Santos, A. P. Preconceito Linguístico - Facebook e Prescritivismo

May 30, 2017 | Autor: A. Poltronieri Sa... | Categoria: Sociolinguistics, Sociolingüística, Preconceito linguístico, Linguistic prejudice
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Preconceito Linguístico: Facebook & prescritivismo gramatical


André Poltronieri Santos1; Dr. Valter Pereira Romano2

1 Graduando em Letras; Centro Universitário de Itajubá; [email protected]; 2 Professor do curso de Letras, Diretor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão do Centro Universitário de Itajubá, [email protected]


RESUMO

O preconceito linguístico (PL) é, em suma, uma forma de preconceito aparentemente direcionado a produções linguísticas estigmatizadas. No entanto, uma vez que a língua é constitutiva da identidade do indivíduo, o PL configura-se como um preconceito essencialmente social. A mídia tem sido uma grande propagadora do PL, tanto na televisão, jornal, e, hoje em dia, principalmente, na internet, por meio da divulgação de conteúdos normativo-prescritivistas "disfarçados" de Língua Portuguesa. Este trabalho busca constatar a existência do PL em uma página de relativamente grande proporção e divulgação no Facebook e, apoiando-se em bibliografia adequada: Bagno (2010), Possenti (2012), Martins et alii (2014), evidenciar o autoritarismo e preconceito por ela veiculados e apreendidos por seus seguidores. Em seguida, serão sugeridas reflexões sobre "língua portuguesa", "norma-padrão" e a falsa equivalência que a página constrói entre esses dois termos.


Palavras-chave: Preconceito Linguístico. Ideologia. Gramática Tradicional. Internet. Facebook.





O preconceito linguístico (PL) pode ser considerado como um retrato da ideologia opressora da classe economicamente dominante: esta, uma parcela ínfima da população brasileira, penetrou o imaginário coletivo dos indivíduos situados nos mais diversos pontos do estrato social e, instituindo sua perspectiva linguística de prestígio como modelo a ser obedecido, conseguiu inculcar no povo brasileiro sua "incapacidade" de falar a própria língua. O PL é constituído por uma ideologia tão perniciosa que conseguiu, em determinado momento de sua trajetória, voltar-se contra os próprios falantes da classe que o originou e convencê-los de que nem mesmo eles são falantes competentes de sua língua. Cinco séculos após a colonização do Brasil e quase dois séculos desde a Independência, o povo brasileiro continua acreditando que nossa língua é exatamente a mesma de Luís de Camões e Eça de Queirós. Essa crença ainda vive devido à forte tradição gramatical de prescrever como "corretas" somente as produções escritas literárias daqueles escritores do século XV-XIX, ao mesmo tempo que considera "erradas" quaisquer realizações linguísticas que não satisfaçam o estabelecido pela tradição gramatical. A mídia também cumpre seu papel de reforçar essa ideologia: programas de TV, rádio, jornais e internet têm sido fundamentais para a propagação do PL.
A página Língua Portuguesa foi criada em 11 de agosto de 2011 e conta com mais de um milhão de seguidores no Facebook. Na descrição da página, lê-se: "Um espaço para os admiradores da LÍNGUA PORTUGUESA. Junte-se a nós. Cuide do seu idioma. Fale e escreva corretamente." [grifos meus], descrição que pressupõe os leitores serem descuidados com a língua. O reducionismo da língua à dicotomia "certo x errado" fica claro ao recomendar que os leitores "escrevam corretamente" (Figura 1).

Figura 1: Descrição da página Língua Portuguesa

A análise das postagens será restrita a apenas algumas mais relevantes publicadas nos meses de maio, junho, julho e agosto de 2015.
Na postagem do dia 31 de maio, lê-se: "Com certeza se escreve separado." e mais nada (Anexo 1). A prescrição é feita de forma autoritária, sem que seja esclarecido o motivo de muitas vezes o termo ser escrito como "concerteza" (e outras formas), além de não sugerir qualquer estratégia para que o leitor aprenda a grafia considerada correta. Os comentários dos leitores exprimem grande intolerância, como se pode ver:

"Vontade de marcar umas pessoas, mas o bom senso não permite.";
"Já li "conserteza". Dói rsrs";
"Vejo muito Concertesa....";
"Quem escreve errado não curti essa página, com certeza.".
Até mesmo quem deduz que "quem escreve errado não curte a página" comete desvios ortográficos. A preocupação dos seguidores parece ser com a avaliação do seu desempenho linguístico pela sociedade, independentemente da situação, intenção, contexto ou prática discursiva.

No dia 29 de junho foi publicada uma postagem em que aparecem algumas corujas com as cabeças viradas, como se estivessem estranhando algo. A mensagem: "A MINHA CARA quando alguém escreve ou fala errado" aparece estampada na parte de baixo da imagem (Anexo 2). O preconceito é camuflado por uma suposta "crítica bem humorada", levando o leitor a crer que o "escrever ou falar errado" é engraçado e que é completamente normal rir de quem não segue uma norma de prestígio. O mais sério sobre essa postagem é a absoluta falta de critérios para determinar o que seria "falar errado", já que a fala é tão fortemente marcada por fatores regionais, culturais e, inclusive, físicos do falante quanto a escrita. Além disso, vários aspectos fonéticos e fonológicos típicos de alguma variedade não são contemplados pela ortografia oficial (variação de róticos, lambdacismo, iodismo, rotacismo e outros fenômenos). Sendo assim, quando ocorrem na escrita formas como galfo, muié ou cravícula (para o que se escreve "garfo", "mulher" e "clavícula", respectivamente), são feitos julgamentos depreciativos sobre a manifestação linguística do sujeito. Os comentários feitos pelos leitores ratificam o teor preconceituoso da publicação, mostrando sua indignação e intolerância "quando alguém escreve ou fala errado":

"O pior de todos é o "mim". "Mim" passa o pão. Kkkk";
"Ou o "mim" conjugando verbo. Exemplo: Pra mim ler.";
"Celebro cincero e por aí vai... lamentável";
"A professora escreveu "umilde " kkk fiquei de cara nem acreditei !!!!detalhe é professora de português rs no ensino médio.";
"kkkkkkkkkkkkk chega dói o pâncreas!";
"E qd uma professora de POTUGUÊS falar Naiscimento".

Os comentários reforçam como o preconceito linguístico é disfarçado pela comicidade e pela maneira como se manifesta: com risadas, piadas e analogias (no mínimo bizarras, como no item ix.). Também não é feita qualquer reflexão que possa esclarecer os motivos (muito provavelmente fonéticos/articulatórios) que levam o indivíduo a fazer construções como v, vii, viii e x. Não é de se estranhar, no entanto, que os próprios "defensores da língua" sejam incoerentes ao desqualificar "a escrita ou fala errada" enquanto cometem tantos desvios, pois o que marca uma prática preconceituosa é o julgamento sem qualquer reflexão, como mostram com excelência os leitores da página.

A publicação do dia 10 de julho, intitulada Futuro do Subjuntivo, reúne algumas frases SV+... organizadas em uma lista com o título: ERRADO. Em oposição a essa lista, há uma outra com o nome CERTO, listando apenas os verbos das frases (Anexo 3), estando as listas assim dispostas:

ERRADO CERTO
Quando o professor manter... mantiver
Quando o funcionário repor... repuser
Quando a médica ver... vir
Quando a diretora querer... quiser
Quando o meu pai fazer... fizer
Quando o aluno vir... vier

Fica clara a desvalorização da gramática intuitiva e da competência intelectual do indivíduo que utiliza o infinitivo do indicativo em construções que "exigem" (termo muito usado pelos prescritivistas) o futuro do subjuntivo. A gramática internalizada desenvolve estratégias lógicas (apesar de desconsideradas pelo normativismo tradicional) para estabelecer uma relativa uniformidade de formas não regulares, como mostra Possenti (2012, p. 71):

Ora, crianças tipicamente produzem pelo menos algumas formas que nunca ouvem consistentemente. [...] Tais formas são tipicamente regularizadoras de formas irregulares. Os exemplos mais típicos são formas verbais como "eu sabo", "eu cabo", "eu fazi", "ele iu" etc. [grifos meus]

Pode-se considerar o uso de alguns desses verbos (como o manter e repor) no infinitivo indicativo no lugar do futuro subjuntivo como uma estratégia para regularizar uma forma "que [as pessoas] nunca ouvem consistentemente". Todo o trabalho lógico de assimilar uma mesma forma de verbo a dois contextos diferentes, sem comprometer o sentido do enunciado, é reduzido à mera classificação tradicional.
Quanto aos comentários feitos pelos seguidores, serão feitas observações sobre os três seguintes:

"A Ana Maria Braga comete pecados graves contra a Língua Portuguesa em seu programa: falou hoje "ele ainda não tinha CHEGO" (o correto é CHEGADO, aquela forma de particípio não existe no verbo chegar) e "não tinham muitas coisas lá" (o verbo TER no sentido de HAVER é impessoal, não tem plural. Então o correto seria "não tinha muitas coisas lá). Cuidado, Ana Maria! Uma apresentadora tão popular não pode ficar divulgando erros assim!"
"ou seja falo tudo errado"
"Isso é complicado demais."
Em xi. é possível perceber que o indivíduo identifica o contraste entre o desempenho linguístico da apresentadora e seu compromisso socioprofissional: "Uma apresentadora tão popular não pode ficar divulgando erros assim!". Pode-se até formular a hipótese de que existiria um tipo de expectativa linguística intimamente relacionada ao status social do falante: quanto mais alta sua posição social, maiores as expectativas convencionadas ao seu desempenho linguístico e, consequentemente, maior o impacto causado quando não cumpridas. Curiosamente, o autor do comentário i. conseguiu entender tão bem a fala de Ana Maria Braga que soube identificar precisamente o que ela "deveria" ter falado.
O comentário xii. é um exemplo de como o brasileiro é inseguro com a própria língua, sendo mais fácil acreditar que "fala tudo errado" que questionar se o modelo de língua que seguimos corresponde ao que, de fato, é falado.
A afirmação de que "isso é complicado demais", no comentário xiii., mostra como algumas prescrições gramaticais não encontram correspondência lógica imediata no conhecimento linguístico intuitivo do falante nativo do PB.

A postagem selecionada do dia 17 de agosto (Anexo 4) traz a imagem do Palácio do Planalto com a seguinte mensagem:

"Ainda bem que crimes contra o idioma não dão cadeia. Se dessem, o Congresso lembraria um deserto. Nove em dez parlamentares agridem com fúria a gramática e a ortografia. A TV tem exibido ao vivo a procissão de punguistas de esses e erres, atropeladores de acentos e a turma que, como notou Millôr Fernandes, parece achar que a regência foi abolida pela República."

Fica bastante evidente que idioma, para a autora do comentário, é exatamente a mesma coisa que ortografia e gramática. A fala/escrita "diferente" vem quase sempre acompanhada de desqualificações como "crimes", "agressões" e "atropelamentos", só para exemplificar algumas características trazidas pela mensagem. Os "punguistas de esses e erres" a que se refere a autora são os indivíduos (da classe alta, inclusive) que não pronunciam o "r" final de verbos no infinitivo e não marcam redundantemente o plural com "s" em alguns casos. O desconforto que os "punguistas" causam nos "defensores da língua" (lê-se defensores de gramática normativa e ortografia) é justificável se considerada a hipótese da expectativa linguística, mencionada anteriormente.

Constrói-se, a partir dessa falsa equivalência entre língua e ortografia/gramática normativa, a ideia de que a língua falada e escrita pela sociedade se resume à escrita literária de séculos atrás. Esse equívoco leva as pessoas a lamentarem a "degradação" e "corrupção" da "língua", como se a língua já estivesse "pronta", "acabada" e tudo o que foge ao já concretizado nela não é língua portuguesa e compromete sua essência.

"Chega a dar vergonha tamanho pouco caso com o idioma..."
"Nossa!! E hoje eles estão "inspirados"...é "seje" pra cá e "estejem" pra lá..."

Mais uma vez, a lógica encontrada pela gramática internalizada é ofuscada pela tradição em determinar formas "certas" e "erradas", como no comentário xv.
Com isso, pode-se constatar que a página supostamente "dedicada à divulgação da Língua Portuguesa" revela-se extremamente preconceituosa quanto à manifestação oral e escrita livre das "amarras" do padrão de língua por ela prescrito.

É fundamental, para a desconstrução dessa falsa biunivocidade entre língua e gramática normativa, que sejam esclarecidas as diferenças entre o que é veiculado com o rótulo de Língua Portuguesa e o que é, de fato, essa língua. Para isso,

Os linguistas profissionais precisam se afirmar como uma comunidade científica especializada, fazer valer sua voz acima da balbúrdia de discussões disparatas sobre língua e linguagem, empreendidas quase sempre por pessoas totalmente despreparadas para tratar do assunto. (BAGNO, 2010, p. 152, grifos do autor)

A página "Língua Portuguesa", não "divulga a língua portuguesa". Na realidade, ela divulga o que é conhecido por norma-padrão, ou seja, um conjunto de prescrições convencionadas como ideal de língua. Lucia Cyranka (in Martins et alii , 2014, p. 136) observa que atribuir prestígio à norma-padrão é um equívoco, pois

atribui à descrição e à caracterização do sistema linguístico argumentos não de natureza interna à língua, mas a fatores de ordem externa, como o prestígio social dos falantes. [...] Assim, pode-se claramente deduzir que o conceito de variedade/norma-padrão em si mesmo não está ligado ao sistema linguístico propriamente, mas a uma ideologia.

Essa mesma norma-padrão, aparentemente um parâmetro de avaliação linguística,

já deixou há muito tempo de ser um instrumento de regulação meramente linguística: é, sim, um instrumento de opressão ideológica, de perseguição, de patrulha social, de discriminação e preconceito. (BAGNO, 2010, p. 153)

O padrão de língua prescrito pela página continua sendo quase o mesmo de séculos atrás, ou seja, está completamente deslocado da realidade linguística do povo brasileiro. Acreditar que a língua é esse modelo é acreditar que todas as pessoas, em qualquer situação, lugar, idade e época falam e escrevem exatamente do mesmo jeito, e a página em questão leva seus leitores a crer nisso, pois ignora completamente as variedades da língua e as substitui pelas velhas e ultrapassadas nomenclaturas da gramática tradicional. É, também, questionável essa valorização do "padrão", da "uniformização": basta inserirmos o mesmo enunciado em ambientes comunicativos bem distintos, por exemplo, imagine como a frase "Nessa época do ano, a água está escassa" ficaria em contextos tais como notícia, conversa entre vizinhas, palestra, advertência de uma mãe com o filho e muitas outras possibilidades. E essa mesma fala, no século XVIII, seria composta pelos mesmos elementos que hoje, no século XXI? Cada situação, cada ambiente exigirá dos interlocutores flexibilidade para selecionar, de seu acervo lexical, morfossintático, fonético etc., os elementos mais adequados ao contexto comunicativo em questão. Argumentando sobre variação como, também, um instrumento de expressividade, Sírio Possenti (2012, p. 36) levanta o questionamento:

Numa língua uniforme talvez fosse possível pensar, dar ordens e instruções. Mas, e a poesia? E o humor? E como os falantes fariam para demonstrar atitudes diferentes? Teriam que avisar (dizer, por exemplo, "estou irritado", "estou à vontade", "vou tratá-lo formalmente")? (POSSENTI, 2012, p. 36)

A língua não segue o rigor prescritivista de um padrão ou ideal linguístico: ela é maleável, flexível, passível de mudanças e constituída naturalmente por variedades. Língua e padrão definitivamente não são a mesma coisa. Em vez do tradicional "certo" e "errado", como faz a página, "adequado" ou "inadequado" seria, portanto, o termo mais apropriado para caracterizar diferentes usos da língua em diferentes contextos de comunicação, sem intolerância e preconceitos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BAGNO, M. A Norma Oculta: língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola, 2010.

CYRANKA, L. Avaliação das variantes: atitudes e crenças em sala de aula. In: Martins et alii (orgs.). Ensino de português e Sociolinguística. 1ª ed. São Paulo: Contexto, 2014.

POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. 2ª ed. São Paulo: Mercado de Letras, 2012.



ANEXOS

Anexo 1: Publicação de 31 mai. 2015.


Anexo 2: Publicação de 29 jun. 2015:





Anexo 3: Publicação de 10 jul. 2015:

Anexo 4: Publicação de 17 ago. 2015:



Considero desvio (na língua) um mero eufemismo para erro, pois, enquanto erro é passível de penalidade, o desvio sugere ser apenas uma alternativa de uso de uma construção ou forma.
Não chamarei de norma culta, pois o modelo seguido e pregado pela página não se trata de uma variedade ou norma real do português brasileiro, e sim de um padrão-língua.



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