SANTOS Fernando Brandao dos Canto e Espetaculo em Euripides Doutorado

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Fernando Brandão dos Santos

Canto e Espetáculo em Eurípides: Alceste, Hipólito e Ifigênia em Áulis

Tese apresentada ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas

ORIENTADORA: Profª Drª Filomena Yoshie Hirata

São Paulo 1998

à memória de minha mãe

Lindaura Brandão de Campos com a dor de eterna saudade

Agradecimentos

Quero, em primeiro lugar, deixar registrado meu agradecimento à Profª Filomena Yoshie Hirata, orientadora de mais uma etapa de minha vida acadêmica. O que afirmei por ocasião da defesa de meu mestrado, mantém-se inalterado. Agradeçolhe pelo cuidado e rigor acadêmicos, pelo convívio ao longo desses anos, por sua paciência em ouvir, por suas observações, sempre tão precisas e atualizadas, por sua franqueza na colocação dos problemas. Agora acrescento um especial agradecimento pela amizade sincera nos momentos difíceis que atravessei ao longo deste trabalho, presente sempre com palavras de incentivo e compreensão. Continuo afirmando que os acertos da presente tese têm nela a fonte segura. As hamartiai são de minha inteira responsabilidade. Quero também deixar registrado meu agradecimento ao amigo Prof. José Pedro Antunes, por sua leitura atenciosa, revisões críticas incansáveis para a melhoria do texto, com sugestões preciosas de expert em tradução, que ele, sem dúvida, é. Agradeço à Profª Daisi Malhadas pela gentileza em ceder-me seu trabalho inédito Tragédia Grega - O mito em cena, e por ter-me iniciado na bibliografia da semiologia do espetáculo há alguns anos, quando assisti a um de seus cursos na PósGraduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara. Também, quero registrar meu agradecimento pela amizade constante e devotada sobretudo pela serenidade nos momentos de aflição. O mesmo agradecimento estendo à Profª Lídia Facchin. Agradeço à Profª Edvanda Bonavina da Rosa, com quem, além da amizade e apoio, pude trocar preciosas informações, bibliografias e idéias. Ao Prof. Daniel Rinaldi, amigo de um país irmão, agradeço pelo envio de preciosos artigos não encontrados em nossas bibliotecas. E também um especial agradecimento à Profª Maria de Fátima Souza e Silva pela atenção em me auxiliar na pesquisa bibliográfica de Eurípides. Aos Profs. Maria Celeste Consolin Dezotti, José Dejalma Dezotti, João Batista Toledo Prado e sua esposa Assunção Aparecida Laia Cristóvão, e Hilário Antônio do Amaral, agradeço pela amizade, apoio e incentivo, presentes sobretudo nos

momentos mais difíceis dessa jornada. Ao Prof. Carlos Alberto da Fonseca, agradeço pela inúmeras sugestões e discussões. A todos os colegas do Departamento de Lingüística, da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara, agradeço pela atenção e respeito. o que estendo também aos funcionários do Serviço de Pós-Graduação do Departamento de Clássicas e Vernáculas e da Biblioteca, da FFLCH - USP, e aos funcionários da Biblioteca da FCL - Campus Araraquara. Agradeço às Profªs. Claudia Manoel Rached e Flávia Regina Marquetti pela amizade e apoio, sobretudo nos trabalhos do Giz-en-Scène. Um especial agradecimento à Sr.ª Nora Nei Ligabó, chefe da Seção TécnicaAcadêmica, e aos secretários do Departamento de Lingüística da FCL - Campus Araraquara¸ Sr. Marcelo Torres e Sr. Luiz Fernando Coletti, pela atenção e respeito. Um último agradecimento destina-se ao meu afilhado, Sr. Nilton Roberto Rodrigues da Silva. À CAPES, pela concessão de auxílio financeiro.

Araraquara, setembro de 1998.

Fernando Brandão dos Santos

Sumário

Introdução.................................................................................................... p. 1

Capítulo I......................................................................................................p. 9

Capítulo II Alceste......................................................................................p. 38

Capítulo III Hipólito.................................................................................p. 117

Capítulo IV Ifigênia em Áulis...................................................................p. 178

Conclusão..................................................................................................p. 255

Bibliografia ...............................................................................................p. 262

SANTOS, Fernando Brandão dos - Canto e Espetáculo em Eurípides: Alceste, Hipólito e Ifigênia em Áulis. São Paulo, 1998, 296 p. Tese de Doutoramento Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

RESUMO O presente trabalho tem como objetivo principal estudar os cantos corais e o espetáculo a partir de três peças de Eurípides, tendo como pressuposto tanto os estudos de semiologia do espetáculo teatral como também os estudos de filologia clássica. As peças estudadas são: Alceste, representada pela primeira vez em 438 a. C.; Hipólito, representada em 428 a. C; e Ifigênia em Áulis, representada em 406 ou 405 a. C., após a morte do autor. No Capítulo I, examinam-se os pressupostos teóricos sobre a semiologia do espetáculo teatral e o legado dos Estudos Clássicos acerca da representação na antigüidade grega. Destacamos o caráter performático de toda a tradição poética em que se insere também a poesia dramática e a contribuição de Eurípides para o gênero dramático. Nos Capítulos II, III e IV, estudamos os textos supra citados assinalando os elementos de sua performance, a partir da divisão estabelecida por Aristóteles na Poética: prólogo, párodo, episódios, estásimos, kommoí, cantos de ator e êxodo, examinando o espetáculo proposto em cada peça e seu significado. Na conclusão, apresentamos a latência teatral dos textos estudados, que já pela leitura revelam sua potencialidade de realização cênica, isto é, sua potencialidade de representação.

Palavras-chave: Teatro grego, tragédia grega, poesia dramática, canto coral, espetáculo, Eurípides, Alceste, Hipólito, Ifigênia em Áulis

SANTOS, Fernando Brandão dos - Song and Spectacle in Euripides: Alcestis, Hippolytus and Iphigenia in Aulis. São Paulo, 1998, 296 p. Tese de Doutoramento Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

ABSTRACT The present work has a main aim to study the choral songs and the spectacle from three plays of Euripides, having as surmise the studies in the semiology of the theatrical performances as well the studies in classical philology. The three studied plays are: Alcestis, performed for the first time in 438 b.C.; Hippolytus, performed in 428 b.C; and Iphigeneia in Aulis, performed about 406 or 405 b.C., after the author’s death. In Chapter I, we examinated the theoretical surmises about the semiology of the theatrical performances, and the legacy of the Classical Studies about the performance in the Greek antiquity. We detached the performing nature of all poetical tradition on which is included the dramatic poetry and which was Euripides’ contribution to the dramatic gender. In Chapters II, III, and IV, we studied the supra cited texts, remarking the elements of its performance, from the established by Aristotle division in the Poetics: prologos, parodos, epeisodion, stasima, kommoí, songs of actor, and exodos, examinating the suggested spectacle in each play and its meaning. In the conclusion, we present the theatrical latency of the studied texts, which from the reading reveal their potentiality of scenic realization, that is to say, their potentiality of performance.

Keywords: Greek Theater, Greek Tragedy, Dramatic Poetry, Choral Songs, Spectacle, Euripides, Alcestis, Hippolytus, Iphigeneia in Aulis.

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Introdução

O

objetivo do presente trabalho é estudar alguns textos selecionados da produção teatral de Eurípides, tendo como centro de atenção o

tratamento dado pelo autor à inserção dos cantos corais na estrutura dramática e o resultado alcançado em relação ao espetáculo, como um todo. Parto do pressuposto de que Eurípides, dentre os trágicos, é o que mais procurou fazer um uso diferenciado dos elementos de que dispunha, notadamente ao compor o espetáculo teatral, usando essa linguagem polifônica como um meio eficiente para comunicar discussões, idéias e, sobretudo, uma visão do mundo grego muito particular. Eurípides vive num momento de crise política, moral, de novidades em todos os campos, e, sobretudo, de uma guerra que, segundo nossos parâmetros, poderia ser considerada uma guerra civil, já que se dá entre falantes da mesma língua e herdeiros de uma tradição comum. Não insensível a essas condições espirituais, a nosso ver, Eurípides foi quem mais procurou fazer um uso diferenciado dos elementos disponíveis no gênero. Em suas obras, o poeta propõe um mergulho mais radical na poesia trágica, com todas as novas possibilidades inerentes a ela, reportando-se mais imediatamente aos debates que se produziam nos círculos intelectuais da pólis, eivando suas peças de reflexões bem pontuadas em seu tempo; no entanto, longe de serem estanques, essas reflexões resistiram à prova do tempo e encontram, ainda hoje, uma possibilidade de leitura, numa ressonância às vezes até mesmo surpreendente para o leitor moderno. São questões postas no centro de nossa atenção: a situação da mulher, o valor das palavras, a crença nos deuses, a força das paixões, entre outras. Por outro lado, a dramaturgia de Eurípides também transcende seu tempo, sua cidade, seus valores, constituindo-se em patrimônio para o pensamento, para a arte em geral e, com maior destaque, para a arte dramática. Mas tal afirmação parece reduzir a arte de Eurípides à de um autor engajado, o que significaria desprezar a construção estética de seu teatro. Tem-se comparado sua produção à de Ésquilo e à de Sófocles, e claro, a de Eurípides revelaria em algum sentido a desfiguração e a decadência do imponente gênero trágico. Isso se deve a algumas razões das quais destacamos, por um lado, o seu modo particular de apresentar o coro, aparentemente afastado tanto da ação dramática

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como das personagens centrais, por outro, a importância que ele dá às personagens secundárias em cena, quebrando a hegemonia de uma personagem central, em torno da qual todas as outras girariam, como ocorre na maioria das peças de Sófocles. Segundo um pensamento generalizado a esse respeito, os resultados desses dois procedimentos, característicos da obra de Eurípides, seriam a dispersão da ação dramática e a contribuição para a extinção gradativa do coro como personagem. Com este trabalho, pretendo ressaltar que as modificações verificadas em algumas peças bem datadas do dramaturgo levam às últimas conseqüências as possibilidades do gênero dramático na tradição poética grega, quer por seu formato, quer por seu conteúdo. Assim, tenho como centro de atenção o tratamento dado pelo autor à função dos cantos corais na estrutura dramática e o resultado alcançado em relação ao espetáculo como um todo, esperando tornar claro, ao longo do trabalho, a razão desta escolha. Espero aprofundar igualmente as pesquisas acerca da dramaturgia de Eurípides, tendo como suporte tanto as novas teorias sobre a experiência teatral, como também a Filologia Clássica de longa tradição em nossos trabalhos acadêmicos. Não sou partidário da idéia de que a análise crítica diminua a fruição do texto; ao contrário, penso que, ao abordar um texto literário, com problemas tão específicos como é o caso do texto dramático, a análise crítica, munida de um instrumental necessário, pode sempre revelar aspectos ainda não percebidos, nuances ainda não ressaltadas. Concordo com Oliver Taplin, na conclusão de seu estudo sobre a ação na tragédia grega, ao afirmar: “Todo meu argumento nesse livro foi, de modo geral, que na tragédia grega a ação significativa no palco, a dimensão visual, é recuperável a partir das palavras, e que é parte integrante do sentido da peça como um todo. Se isso faz algum sentido, e se concordamos que devemos respeitar o sentido do autor, então um diretor deve seguir as instruções do autor tanto visual e cenicamente como textualmente. Há, então, um motivo para que ele preste bastante atenção às direções de palco do autor, tanto as explícitas como as implícitas.”1 Oliver Taplin dirige-se aos diretores de teatro que se propõem a montar textos trágicos, mas sua recomendação interessa também ao estudioso, cuja tarefa é a tentativa de resgatar ao máximo, com todas as dificuldades inerentes a esse fazer, as cores originais do texto antigo.

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Naturalmente, ao tentar resgatar as indicações visuais, cênicas e textuais implícitas e explicitas de um autor, deparamo-nos com duas possibilidades: uma, a do vislumbre do que teria sido esse teatro, como teria sido apresentado, sob que condições materiais e espirituais; a outra, a potencialidade dramática que esse teatro tem ainda hoje. A primeira possibilidade, pareceria fadada a um insucesso, pois, ainda que recuperássemos todas as condições materiais desse teatro primordial, não temos mais as mesmas condições mentais que o geraram nem o ambiente em que se deram. Paradoxalmente, a segunda possibilidade, porém, só se justifica, se munidos de todas as informações disponíveis, como um restaurador de arte, tentarmos estabelecer as cores e as formas do original. Portanto, nossa tarefa neste trabalho é a de, a exemplo de uma restauração de arte, na medida do possível, recuperar o vigor e o brilho originais de uma arte que, a despeito do tempo, conserva em seu interior a latência de seu objetivo primeiro, a representação.

Plano do trabalho

Conseqüentemente, o estudo organiza-se sobre dois eixos principais. O primeiro, apresentado no Capítulo I, procura estabelecer o que entendo por espetáculo, notadamente o espetáculo teatral. Minha reflexão tem por base os estudos sobre a semiologia do espetáculo teatral postulados pelos seguintes teóricos: Roman Ingarden, em A obra de Arte Literária2 e no ensaio “As funções da linguagem teatral”, publicado na coletânea O signo teatral, a semiologia aplicada à arte dramática3; Petr Bogatyrev, em “Os signos do teatro”4; Roland Barthes, no ensaio “Literatura e Significado”, publicado em Ensaios Críticos5; os estudiosos Gilles Girard e Réal Ouellet, em seu livro O Universo do Teatro6; e da Itinerários nº 5 (1993), destaquemse os estudos de Daisi Malhadas, “O espetáculo na tragédia grega”, e os de Eduardo Peñuela Cañizal, “Do significante ausente no teatro”.7 Esses autores, em sua maioria, discutem tanto os problemas teóricos textuais como também os problemas da 1

Greek Tragedy in Action, London, 1985, p. 175. .Lisboa, 1979. 3 Porto Alegre, 1977. 4 Publicado na coletânea Semiologia do teatro, org. por J. Guinsburg e outros, São Paulo, 1988. 5 Lisboa, 1977, p. 355 sq. Cf. também “Como representar o antigo”, pp. 97-107. 6 Coimbra, 1980 2

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representação em cena, ou seja, questões práticas e a leitura que se pode fazer dos elementos do espetáculo. Dentre os helenistas, por sua vez, o interesse pela dramaturgia clássica grega tem sido enorme, sobretudo a partir do final do século passado até nossos dias. As descobertas arqueológicas e os estudos publicados referentes ao teatro começam a se avolumar, dos quais podemos destacar: Dionysos, étude sur l’ organisation matèrielle du Théatre Athénien, de Octave Navarre8; em seguida, temos o The Dramatic Festivals of Athens, de Sir Arthur Pickard-Cambridge, seguido do; Dythiramb Tragedy and Comedy9; de T. B. L. Webster, seguidor de Pickard-Cambridge, temos duas publicações: Greek Tragedy Production e The Greek Chorus10; de H. C. Baldry, I greci a teatro. Spettacolo e forme della tragedia11. Todas essas obras citadas tentam, na medida em que as descobertas dos sítios arqueológicos se multiplicam, garantir ao estudioso subsídios para uma espécie de reconstituição material do teatro. Por outro lado, os estudos textuais da poesia grega também tomam outros rumos, dos quais destacamos a ênfase dada ao caráter perfomático da poesia grega, pelo menos até o final do século V, tendo como base a oralidade da poesia grega12. Esses novos enfoques da literatura grega refletiram-se nos estudos relativos à poesia dramática, dos quais destaco os estudos de W. B. Standford, Greek Tragedy and Emotions13 e de John Herington, Poetry into Drama, Early Tragedy and the Greek Poetic Tradition.14 Essas obras destacam, dos inúmeros aspectos apresentados pela primeira experiência teatral do ocidente, os aspectos visuais e sonoros do texto teatral, já que seu primeiro objetivo é realizar-se plenamente numa montagem sobre um palco diante de uma platéia. Ao ressaltar esses elementos comuns do teatro com a poesia não dramática entre os gregos, os estudos sobre a dramaturgia grega passam a dar destaque sobre sua realização efetiva em palco, dando um passo além dos estudos que tomam o texto teatral apenas como literatura. Assim, Oliver Taplin, estudando o teatro de Ésquilo em 7

pp. 46-60 e pp. 15-47, respectivamente. Paris, 1895. 9 Respectivamente Oxford, 1968 (publicado pela primeira vez em 1953); Oxford, 1970 (publicado pela primeira vez em 1962). 10 London, 1970 (1956) e respectivamente London, 1970. 11 Roma-Bari, 1984, (tradução italiana do The Greek Tragic Theatre, London, 1971). 12 Entre as inúmeras obras com esse enfoque, veja-se a de Bruno Gentilli, Poetry and Its Public in Ancient Greece. From Homer to the Fifth Century, Baltimore/London, 1990 (tradução inglesa do original italiano de 1988). 13 London/Boston/Melbourne, 1983. 14 Berkeley/Los Angeles/London, 1985. 8

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The Stagecraft of Aeschylus, traz para o estudioso de dramaturgia grega em geral uma abordagem que leva em conta sobretudo os elementos do espetáculo, estendendo sua abordagem a outras peças no Greek Tragedy in Action.15 Aristóteles, em algumas passagens da Poética,16 deixa claro que o espetáculo, apesar de ser um dos elementos constitutivos da tragédia 17, não é o que merece a atenção do poeta: “Do restante, o canto é o maior dos temperos, o espetáculo é o que conduz a alma, mas é menos artístico e menos familiar à poética; pois a força da tragédia existe mesmo sem concurso e sem atores; ainda é mais soberana, para o acabamento do espetáculo, a arte do fabricante de acessórios do que a dos poetas.” 18 Ao relegar o espetáculo à arte do fabricante de máscaras e acessórios cênicos (skeuopoiou~ tevcnh), Aristóteles inverte o objetivo primeiro da representação, pondo em destaque a força da tragédia na composição de seu texto. No final da Poética, Aristóteles reforça a idéia de que o que é próprio da tragédia é visível a partir da leitura, não havendo a necessidade da representação, dos atores, enfim, do espetáculo: “Ainda a tragédia, mesmo sem movimento, faz o que lhe é próprio como a epopéia. Pois pela leitura é visível sua qualidade. Portanto, se é melhor em outras coisas, isso, então, não é necessário encontrar-se nela. Logo, por ter tudo o que a epopéia tem (pois também pode utilizar-se de seu metro), ainda também, o que não é pouco, a música [e o espetáculo], pelo que os prazeres se fazem mais claros. Depois a clareza mantém-se tanto na leitura como na representação.”19 Como se pode depreender da passagens 15

Respectivamente: The Stagecraft of Aeschylus. The dramatic Use of Exits and Entrances in Greek Tragedy, Oxford, 1977; London, 1978. 16 Para a citação do texto grego da Poética seguimos a edição de R. Kassel, Aristotle Ars Poetica, Oxford, 1965., confrontando-o com a edição comentada de Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot, La Poétique, Paris, 1980. Para maior clareza reproduzimos aqui os textos citados ou traduzidos. 17 Cf. 1) “1449b-31-34: “e*peiV deV pravttonte" poiou~ntai thVn mivmhsin, prw~ton meVn e*x a*navgkh" a!n ti movrion tragw/diva" o& th~" o!yew" kovsmo": ei^ta melopoiiva kaiV levxi", e*n touvtoi" gaVr poiou~ntai thVn miv mhsin.” “Uma vez que atores fazem a representação, em primeiro lugar, necessariamente a organização do espetáculo é uma parte da tragédia, depois, o canto e a fala, pois com esses elementos fazem a representação.”; 2) 1450a 7-10: “a*navgkh ou^n pavsh" th~" tragw/diva" mevrh ei^nai e@x, kaq’ o@ poiva ti" e*stin h& tragw/diva: tau~ta d’ e*stiV mu~qo" kaiV h!qh kaiV levxi" kaiV diavnoia kaiV o!yi" kaiV melopoiiva.” “Então, necessariamente, as partes de qualquer tragédia são seis, segundo o que depende a qualidade da tragédia: enredo, caráter, fala, pensamento, espetáculo e canto.”; 3) 1450a 13-14: “kaiV gaVr o!yi" e!cei pa~n kaiV h^qo" kaiV mu~qon kaiV levxin kaiV mevlo" kaiV diavnoian w&sauvtw". Mevgiston de Vtouvtwn e*stin h& tw~n pragmavtwn suvstasi".” “Pois também o espetáculo contém tudo: caráter, enredo, fala, canto e pensamento igualmente. Destas é a principal é estruturação dos fatos.” 18 1450b 15-20: “Tw~n deV loipw~n h& melopoiiva mevgiston tw~n h&dusmavtwn, h& deV o!yi" yucagwgikoVn meVn, a*tecnotavton deV kaiV h@kista oi*kei~on th~" poihtikh~": h& gaVr th~" tragw/diva" duvnami" kaiV a!neu a*gw~no" kaiV u&pokritw~n e!stin, e!ti kuriwtevra periV thVn a*pergasivan tw~n o!yewn h& tou~ skeuopoiou~ tevcnh th~" tw~n poihtw~n e*stin.” 19 1462a 11-18: “e!ti h& tragw/diva kaiV a!neu kinhvsew" poiei~ toV au*th~", w@sper h& e*popoiiva: diaV gaVr tou~ a*naginwvskein faneraV o&poiva tiv" e*stin: ei* ou^n e*sti tav g’ a!lla kreivttwn, tou~tov ge ou*k a*nagkai~on au*th~/

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citadas, Aristóteles não está tão interessado na produção das peças como se deveria supor, mas sua considerações sobre a poesia trágica acabam por fundar a Teoria Literária. O segundo eixo deste trabalho é a apreciação dos textos mencionados, tendo por instrumento de análise os pressupostos estabelecidos, ainda que muitas vezes não explicitados. A escolha das peças seguiu inicialmente a datação fixada pelos estudiosos dos textos de Eurípides, correntemente aceita. O objetivo era poder apreciar, em três momentos distintos, diferenças e pontos comuns não tanto do ponto de vista temático, mas sobretudo em suas estruturas formais: o uso dos cantos corais e sua distribuição ao longo da peça, os cantos de atores (monodias) e as questões relativas à composição do espetáculo. Seria possível, por exemplo, agrupar as peças por temas míticos, políticos, etc. Mas isso já foi feito, e esse não é o nosso enfoque.20 O objetivo final deste trabalho é detectar no texto um procedimento característico de Eurípides na construção do espetáculo, tendo em mente o que ele quer nos fazer ver, sem dar muita importância ao fato de haver ou não um tema comum, o que resultaria num outro tipo de abordagem. O enfoque adotado permite ver que Eurípides é quem mais livremente usou os recursos permitidos pelo gênero dramático; daí a sensação de novidade e ousadia provocada por seus textos, do primeiro ao último de que dispomos. O estudo de Alceste, representada pela primeira vem em 438 a. C., é apresentado no Capítulo II; o estudo de Hipólito, datado de 428 a. C., é examinado no Capítulo III; a última peça estudada, no Capítulo IV, é Ifigênia em Áulis, representada pela primeira vez em torno de 408 a.C., após a morte de Eurípides. Para o estudo dos textos de Eurípides, na medida do possível, procurei usar as edições comentadas da Oxford University Press, ou seja, a edição de A. M. Dale para Alceste (1978, reimpressão da primeira edição de 1954), a edição de W. S. Barrett para o Hipólito (1964), e, para a Ifigênia em Áulis, o texto estabelecido por François Jouan (Paris, Belles Lettres, 1983). A partir dos textos citados, é possível observar a estrutura dramática e o uso que o autor faz da distribuição e interação dos cantos corais em cada

u&pavrcein. e!peita diovti pavnt’ e!cei o@saper h& e*popoiiva (kaiV gaVr tw~/ mevtrw/ e!xesti crh~sqai), kaiV e!ti ou* mikroVn mevro" thVn mousikhVn [kaiV taV" o!yei"], di’ h%" ai& h&donaiV sunivstantai e*nargevstata: ei^ta kaiV toV e*nargeV" e!cei e*n th/~ a*nagnwvsei kaiV e!ti tw~n e!rgwn.” 20 Vejam-se, por exemplo, para diferentes divisões temáticas, A tragédia grega. Estudo Literário , de H. D. F. Kitto, Coimbra, 3ª ed., 1990; The Political Plays of Euripides, de G. Zuntz, Manchester, 1963; Euripidean Drama. Myth,

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peça, em função do que ele quer nos fazer ver, isto é, através do espetáculo proposto pelo texto. Nas análises das peças, assinalo os elementos que contribuem para sua realização virtual como espetáculo, ou seja, detecto no texto os elementos de sua performance: e nisso estou seguindo muito de perto os conceitos desenvolvidos por John Herington, ao propor que a tragédia, como gênero poético, herda todas as características inerentes à poesia grega: “A poesia, recitada ou cantada, era para os antigos gregos o principal meio para a disseminação de idéias políticas, morais e sociais – história, filosofia, ciência (tal qual essas matérias eram entendidas então), e, de fato, aquilo que Sócrates mais tarde chamaria de „sabedoria humana‟.”21 Neste sentido, ou seja, como um meio eficaz de comunicação e propagação de idéias, a tragédia grega não difere da poesia épica de Homero, da poesia didática de Hesíodo, nem das diferentes formas poéticas do lirismo arcaico, seja o monódico, seja o coral. Todas as formas poéticas, entre os gregos, existiram primeiramente para uma apresentação ao vivo, fosse pública ou privada, com ou sem acompanhamento musical, com passos de dança ou qualquer outra marcação rítmica.22 A tragédia, no entanto, tem sua próprias idiossincrasias, que fazem dela um gênero poético, é certo, mas inteiramente diverso dos outros que o antecederam. Assim, é possível detectar os elementos de dança e performance dos cantos corais a partir de sua métrica e de composição, conforme propõe T. B. L. Webster, em The Greek Chorus: “A poesia coral era uma unidade de canção, dança e música, e o poeta era o responsável por todas elas. Sobre a música temos apenas uma vaga idéia, mas não precisamos nos confinar às palavras: podemos também estudar o metro em sua dupla função de organizar as palavras e a dança.”23 A partir dos textos de poesia dramática, além da performance dos cantos corais, comum à poesia tradicional, é possível perceber outros elementos, os quais, de certa forma, englobam todos os gêneros precedentes. Dos textos pode-se deduzir ainda aquilo que o autor propõe como espetáculo. Tendo esses dois eixos como instrumento de trabalho, apresento, na conclusão, os seguintes pontos: a) em que medida Eurípides inovou em termos formais Theme and Structure, de D. J. Conacher, Oxford, 1967; Catastrophe Survived. Euripides’ Plays of Mixed Reversal, de Anne Pippin Burnett, Oxford, 1985 (reimpressão da ed. de 1971), entre outras . 21 Poetry into Drama, Berkeley, 1985, p. 3. 22 Cf. Bruno Gentili, Poetry and Its Public in Ancient Greece. From Homer to the Fifth Century, Baltimore, 1990.

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a tragédia grega; b) em que medida essas inovações correspondem a uma necessidade estética de seu tempo, quer dizer, em que medida as inovações trazidas à cena ateniense corresponderiam às motivações espirituais da metade ao final do século V a.C. e no ocaso do gênero trágico.

23

The Greek Chorus, London, p. xiii.

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Capítulo I Quando Eurípides influencia Sófocles.

Q

uando traduzi o Filoctetes1, percebi que o tratamento dado por Sófocles aos cantos corais dessa peça era muito diferente do dispensado a suas

obras supérstites. Sófocles a compõe com um único estásimo (676-729), colocando-o no centro da peça, e, no lugar dos outros estásimos, apresenta interlúdios líricos, como, por exemplo, no primeiro episódio (391-402, estrofe; 507-518, antístrofe); depois do segundo episódio, temos um interlúdio lírico, cujos pares antistróficos e epodo, cantados pelo coro, são respondidos em hexâmetros por Neoptólemo (827-38, 839-42, 843-854, 855-864); ou ainda o kommós, em que Filoctetes e o coro participam (pares antistróficos, 1081-1100 = 1101-1122; 1123-1145 = 1146-1168; e o epodo, 11691195, 1196-1217). Qual o resultado do uso, inédito em Sófocles, desse único estásimo e de interlúdios líricos distribuídos ao longo da peça? Essa mudança confere um ritmo mais lento à ação dramática, sem, contudo, prejudicar o espetáculo, que, a princípio, é aquilo que o autor quer nos fazer ver com seu texto. Alguns estudiosos atribuem esse novo procedimento à influência de Eurípides, que as teria recebido de Agatão. No dizer de R. W. B. Burton: “é interessante notar que em sua última peça - das que restaram, só em uma única, Sófocles restringiu-se a um único estásimo. Há indícios nesta direção em sua Electra, que contém apenas três estásimos em contraste com as canções ricas e variadas de Antígona (cinco) e de Édipo Rei (quatro), e nessas duas peças os párodos são corais. Durante a parte mais tardia do século V, Eurípides, em algumas de suas peças, e em grande parte Agatão, estavam tentando usar os estásimos como canções de intervalos com uma conexão tênue ou inexistente com o texto dramático.”2 Vale lembrar que não há um procedimento semelhante em nenhuma das outras peças sobreviventes de Eurípides. 1

Cf. “Filoctetes de Sófocles. Introdução, tradução e notas.” São Paulo: FFLCH da Universidade de São Paulo, 1990. Dissertação de Mestrado orientada pela Profª. Filomena Yoshie Hirata. O texto grego de base para as referências é editado por Alphonse Dain, SOPHOCLE, Tome III, Philoctète – Oedipe à Cologne, Paris, Belles Lettres, 1974. 2 The Chorus in Sophocles Tragedies, Oxford, 1980, pp. 239-40.

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Não haveria nesta afirmação de R. W. Burton uma espécie de crítica velada a Sófocles, que, em suas últimas obras, estaria aderindo a um procedimento mais moderno, abandonando sua forma equilibrada de compor tragédias? J. Rode, ao estudar os cantos corais na tragédia grega, tece o seguinte comentário sobre o que chama cantos de programa: “O canto de programa é somente um caso particular nos cantos tardios de Eurípides. Relevante é a „cantabilidade‟ do canto e sua relação sensivelmente afrouxada com a trama e a estrutura do drama. É a mesma época em que Sófocles reduz notavelmente os coros - no Filoctetes temos apenas um único estásimo! - e em que Agatão começa a usar cantos que não têm mais nenhuma relação com a ação cênica. É somente música de intervalo entre os atos (embolima), um precedente que, como sabemos, na Comédia Nova leva o poeta a não escrever mais os próprios cantos corais. O coro vem assim excluso até da participação na cena: virá introduzido como um grupo de pessoas a quem não se quer mais encontrar e do qual, por isso, os atores se afastam (cf. Menandro, Epitrépontes, 33-35; Dúskolos, 230-232).”3 J. Rode diz praticamente o mesmo que R. W. B. Burton em relação às últimas produções de Sófocles e às novidades usadas por Eurípides sob influência de Agatão. E está claro que ambos têm em mente a redução dos cantos corais nas tragédias. Podemos concluir assim que, no final do século V a. C., o gênero dramático está sofrendo transformações profundas, vindas sobretudo das modificações introduzidas por Agatão, com a adesão mais aberta de Eurípides e mais discreta da parte de Sófocles. Ésquilo teria escapado dessa influência responsável pelo fim da tragédia no período de ouro em Atenas. De todas as peças a ele atribuídas, a mais destoante por sua estrutura é Prometeu acorrentado.4 O fato é que não dispomos das obras de Agatão para uma apreciação mais exata de suas inovações e, na verdade, tanto a afirmação de R. W. B. Burton como a de J. Rode apoiam-se, sobretudo, numa afirmação anteriormente postulada por Aristóteles, na Poética, a respeito da atuação do coro numa tragédia: “E o coro deve ser considerado como um dos atores e uma parte do todo e interagir, não como em Eurípides, mas como em Sófocles. Nos autores restantes, as partes cantadas não pertencem mais ao enredo do que a outra tragédia. Por isso cantam interlúdios, tendo sido Agatão quem começou isso. E, no entanto, que 3 4

“Il canto del coro”, Il teatro greco nell’ età di Pericle, Bologna, 1994, p. 271. Sobre a autoria do texto do Prometeu acorrentado cf. The Justice of Zeus, Berkeley, 1983, pp. 95-103. Cf. também

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diferença há em cantar interlúdios ou adaptar uma fala de um para outro ou um episódio inteiro?”5 É possível que Aristóteles, nessa passagem, esteja se referindo ao textos teatrais de autores de sua época, desconhecidos hoje, ou é possível mesmo que esteja tentando estabelecer um manual de interpretação e análise crítica. Como anotam Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot, quando Aristóteles escreve a Poética, o coro trágico não passa de um grupo coral indiferente à ação dramática, encarregado de executar entre os episódios, interlúdios (embólima). Pode-se depreender por essa afirmação de Aristóteles que a tragédia teria perdido sua unidade, sofrendo modificações profundas desde Sófocles até Agatão, passando por Eurípides. Aristóteles, então, parece não aceitar a degenerescência da tragédia. Ao afirmar que o coro deve ser um dos atores, o teórico da poesia dramática estaria propondo, de maneira mais reacionária possível, uma volta às origens.6 No entanto, o modelo ideal de composição coral é tirado de Sófocles. Se, de fato, houve alguma influência de Eurípides sobre Sófocles, qual seria então a força de suas inovações? Qual a sua contribuição para a inovação do gênero dramático, ainda que Eurípides tivesse tido como fonte de inspiração as peças de Agatão, cuja obra desconhecemos? Como sabemos, nas peças de Ésquilo, a presença do coro é marcada pelo maior número de versos. Aristóteles, ao historiar, de modo sumário, as origens da tragédia, afirma: “(...) [a tragédia] aos poucos aumentou, já que os poetas desenvolviam tudo quanto se tornava manifesto nela. E a tragédia, depois de ter tido muitas mudanças, se fixou, depois que atingiu sua própria natureza; e Ésquilo primeiro levou o número de atores de um para dois, diminuiu as partes do coro e fez o diálogo ter mais destaque. Sófocles levou para três e a pintura de cena.”7 Wilamowitz põe em questão a afirmação de Aristóteles, informando: “A skenofrafía, segundo Aristóteles (Poética 4), foi introduzida por Sófocles. O pintor Apolodoro foi chamado antes skiagráfos. Mas já Agatarco tinha pintado cenas para Ésquilo. Isto significa que

Oliver Taplin, The Stagecraft of Aeschylus, “The Authenticity of Prometheus Bound”, Oxford, 1977, pp. 460-69. 5 Poética 1456a 25-32: “kaiV toVn coroVn deV e@na dei~ u&polambavnein tw~n u&pokritw~n, kaiV movrion ei^nai tou~ o@lou kaiV sunagwnivxesqai mhV w@sper Eu*ripivdh/ a*ll’ w@sper Sofoklei~. toi~" deV loipoi~" taV a/d* ovmena ou*deVn ma~llon tou~ muvqou h# a!llh" tragw/diva" e*stin: dioV e*mbovlima a!/dousin prwvtou a!rxanto" *Agavqwno" tou~ toiouvtou. kaivtoi tiv diafevrei h# e*mbovlima a!/dein h# ei* r&h~sin e*x a!llou ei*" a!llo a&rmovttoi h# e*peisovdion o@lon.” 6 La Poétique, Paris, 1980, nota 8 do cap. 18, p. 303. 7 : “- kataV mikroVn hu*xhvqh proagovntwn o@son e*givgneto faneroVn au*th~": kaiV pollaV" metabolaV" metabalou~sa h& tragw/diva e*pauvsato, e*peiV e!sce thVn au&th~" fuvsin. kaiV toV te tw~n u&pokritw~n plh~qo" e*x

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a inovação aconteceu entre 468 e 458.”8 Ainda que seja incerta a origem da cenografia, dos textos, pode-se depreender um cenário, ainda que rudimentar, indicado sempre pelas palavras das personagens ao se situar num ambiente cênico claramente definido.9 Já a dramaturgia de Sófocles apresenta modificações profundas em relação à obra de Ésquilo, por apresentar uma redução considerável nos versos corais, o que resulta numa construção diferenciada e peculiar da ação dramática. Tais modificações podem ser verificadas em cada uma das peças, nas quais as estruturas dificilmente se repetem. Da idéia de que as últimas peças tanto de Sófocles como de Eurípides estariam apontando para uma evolução do gênero dramático, pode-se questionar sobre o que a teria provocado. Parece-nos que o gênero nunca foi exatamente estático. Embora se verifique uma estrutura básica, composta de cantos corais, cantos de ator, diálogos, monólogos, encontrada em qualquer uma das peças de que dispomos, as mudanças mais visíveis estão relacionadas com a distribuição dessas partes numa peça. Que condições teriam provocado uma mudança de atitude sobretudo quanto ao uso do canto coral nas tragédias? Por que Eurípides adere às novas formas de composição, vindas de Agatão (ou de quem mais?), influenciando até mesmo arte equilibrada de Sófocles? De imediato, o que se pode claramente perceber é que, nas peças de Ésquilo, as partes do coro e sua interferência na ação dramática, é fundamental e incomparavelmente maior do que em Sófocles e Eurípides. Em Sófocles, a redução das partes corais é evidente; e ainda que suas últimas peças apontem para um uso do canto coral mais à moda de Eurípides, se temos em mente suas duas últimas peças, Filoctetes e Édipo em Colono; mesmo assim, em ambas, a figura da personagem central prevalece, em torno da qual giram todas as demais personagens, inclusive o coro. Bernard M. W. Knox identifica a diminuição das partes corais em favor do destaque dado ao herói trágico: “Sófocles apresenta-nos pela primeira vez o que reconhecemos como um „herói trágico‟: alguém que, desamparado pelos deuses e diante da oposição humana, toma uma decisão que brota da camada mais profunda de e&noV" ei*" duvo prw~to" Ai*scuvlo" h!gage kaiV taV tou~ corou~ h*lavttwse kaiV toVn lovgon prwtagwnistei~n pareskeuvasen: trei~" deV kaiV skhnografivan Sofoklh~".”1449a 13-19 8 “La scena di Eschilo”, Il teatro greco nell’ età di Pericle, Bolonha, 1994, p. 189. 9 Oliver Taplin discutindo os recursos teatrais do século V, afirma: “First and foremost, it can hardly be insisted on too often that the plays themselves are the paramount evidence for their own staging. Not only should any reconstruction base itself on the texts but any conclusion must on no account be incompatible with the texts. No other evidence available to us can be allowed to count against the evidence of the plays themselves.” The Stagecraft of Ayschylus, “Appenxix B”, p. 434.

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sua natureza individual, sua phýsis, e então, cegamente, ferozmente, heroicamente mantém essa decisão até mesmo ao ponto de sua autodestruição.”10 Essa concentração na figura de um herói resulta na concentração da ação dramática: todas as personagens secundárias e todos os acontecimentos externos estão em cena em função dessa figura central acentuando o confronto trágico que ele necessariamente tem que enfrentar. Para Knox, a figura euripidiana mais próxima das de Sófocles é Medéia, já que na maioria de suas peças, o herói mais sofre do que age. Ao contrário de Sófocles, Eurípides dá a mesma importância a cada personagem.11 Já em Alceste, pode-se observar uma certa dispersão da ação dramática: não só Alceste é o centro de nossa atenção quando está em cena, mas também todas as demais personagens, enquanto atuam, ganham mais importância dramática, recebendo um destaque particular. Com esse procedimento o poeta cria a ilusão de que a ação está distribuída entre várias figuras, o que resulta num acirramento ainda maior do conflito dramático. Levada às últimas conseqüências, tal dispersão caracteriza o drama episódico nas peças tardias. O coro também, com seus cantos, por aproximação ou afastamento da ação produz tensões dramáticas, intensificando o espetáculo a ser visto. Assim, ao que tudo indica, o uso do canto coral, sua distribuição ao longo das cenas, sua caracterização, parece revelar a forma de composição de um poeta. Por isso, julgo interessante estudar três peças de Eurípides, produzidas em momentos diferentes, para apreciar seu modo de estruturação da ação dramática, tendo em vista a distribuição e função dos cantos corais, bem como apreciar os resultados obtidos em termos de espetáculo teatral.

A voz e o poeta na poesia. Estruturação da poesia dramática

A caraterística fundamental do gênero dramático reside em alguns procedimentos, os quais, julgo interessante também ressaltar, para que se entenda melhor o mecanismo de seu funcionamento como meio de comunicação. A poesia dramática tem em si elementos da poesia épica e da poesia lírica, porém, combinados de tal forma que nunca se confundem com elas. Para que se compreenda melhor sua 10

The Heroic Temper, Berkeley, 1983, p. 5. “He could take a leaf from the Sophoclean book and write a Medea in which the central character does dominate the action, but he could also use the new form from a drama like the Hippolytus which brings on stage the tangled skein of a relatioship between four equally important characters.” The Heroic Temper, p. 3, cf. p. 5. 11

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própria natureza, sua especificidade, é preciso entender o que essas formas poéticas da cultura grega possuem em comum, bem como as diferenças que as separam. Em primeiro lugar, como na poesia épica, o autor parece ausente do discurso. Na poesia épica, embora conhecedor de todos os fatos, o narrador nunca se identifica nem se autonomeia. É sempre o narrador a introduzir as falas atribuídas às personagens, aos heróis que compõem o tecido da narrativa. Esse procedimento, a meu ver, está mais próximo de uma câmera de cinema que escolhe as imagens, que as registra, sem nunca revelar quem as escolheu, estando por trás das lentes o olho que tudo vê. A câmera de Homero é a própria poesia oral. Ao dar voz às personagens, que se pronunciam diante do público em forma de diálogos, monólogos, durante sua performance, a poesia dramática afasta-nos da idéia de que por trás dela esteja um único autor, um único olho a determinar o que se quer fazer ver. O procedimento de conferir uma voz autônoma a um eu já aparece na poesia lírica, quando o poeta cria o assim chamado eu lírico. No caso, o eu lírico do autor mascara o eu do cantor e/ou recitador, permanecendo autônomo e criando, ao mesmo tempo, a atmosfera própria desse gênero poético. Pensemos um pouco na situação do intérprete desses poemas. Na poesia épica, o poeta faz com que o intérprete seja concomitantemente sua voz, que, por sua vez, é uma reprodução da voz das musas. Assim, se passo a ler em voz alta os poemas de Homero, eu, o leitor, passo a ser o narrador, como se todas as descrições, narrações e mesmo reproduções de falas das personagens, tudo estivesse centrado em mim; mas esse eu é ficcional e cumpre um programa estabelecido pelas musas, ou seja, pelo poeta que nunca revela, no entanto, sua identidade. Hesíodo, ao se autonomear em seus poemas, faz com que o intérprete seja Hesíodo durante a execução de seus cantos, mas ainda é também o porta-voz das musas, que, por sua vez, cantam a Zeus! No lirismo, o intérprete passa a ser o poeta, deixando se ser o porta-voz de uma divindade. Cada um, então, que canta, lê ou interpreta o poema, passa a ser Píndaro, Safo, Tirteu. Esse empréstimo só se torna possível pela leitura, o que pressupõe também a escrita e tudo o que ela significou na passagem de uma cultura baseada na oralidade para uma cultura da escrita.12

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Cf. Jesper Svenbro, Phrasikleia, antrhopologie de la lecture en Grèce ancienne, Paris, 1988, sobretudo o capítulo I, “Phrasikleia, du silence au son”, pp.13-32, para uma discussão da função da leitura na Grécia antiga.

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Charles Segal, por outro viés, tendo em vista o texto teatral, discute as aproximações e afastamentos entre a tradição oral e a tradição escrita. Dentre as interessantes formulações sobre as características da poesia oral, vejamos a seguinte: “A poesia oral - e penso em particular nos poemas homéricos - dá-nos a sensação de estarmos plenamente presentes aos acontecimentos: sentimos ter todos os detalhes necessários, possuir esta imediação de primeiro plano, eloqüentemente descrita por Auerbach no célebre primeiro capítulo de seu Mimesis. A tragédia, fundamentada como é sobre um texto escrito, é cheia de detalhes evasivos, de pedaços faltantes, de motivos não esclarecidos, de enigmáticas mudanças de humor, decisões ou postura. No lugar do poeta oral que fala pessoalmente da „vontade de Zeus‟, temos, ausente, o poeta que definiu anteriormente cada detalhe. E temos, às vezes, a sensação de que havia tramado contra nós, que somos vítimas de um contraponto calculado, entre superfície e profundidade, aparência e realidade, parecer e ser.”13 Esse jogo de ambigüidades, superposição de camadas de significação, só é possível na poesia dramática, que é, por sua vez, o gênero típico de uma pólis democrática. Essa caraterística peculiar do texto dramático, de apresentar as ambigüidades e tensões resultantes de conflitos de uma sociedade que vive sob a tensão das novidades vindas das inúmeras transformações e com toda tradição de um tempo remoto e mítico, foi postulada primeiramente por Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet em Mito e tragédia na Grécia antiga.14 No drama em geral e especificamente na tragédia, há uma radicalização total das possibilidades poéticas oriundas da tradição oral. Um único poeta confere vozes autônomas a várias personagens. Vários Eus, que entram em conflito interno e externo, chocam-se entre si mesmos, com a comunidade e com as deliberações dos deuses. Através do diálogo, o valor cambiante das palavras toma corpo, expondo as cisões nas diversas camadas dos valores sociais, religiosos e filosóficos, expondo o conflito, a tensão entre um passado mítico, afastado, e um presente imediato que exige resoluções imediatas. Assim, não se tem mais a expressão de um único intérprete, mas de vários, criando o que confortavelmente chamamos de personagens. Porém, o conceito de personagem tal qual conhecemos parece inexistir, pelo menos até na Poética de 13 14

“Verità, tragedia e scrittura”, Il teatro greco nell’ età di Pericle, Bolonha, 1994, p. 113. São Paulo, 1988.

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Aristóteles. John Jones chama a atenção enfaticamente para o fato de Aristóteles centrar sua teoria sobre imitação não nos seres humanos, mas em suas ações: “E ainda ele diz que a tragédia não é a imitação de seres humanos. Com isso ele não quer dizer que a tragédia carece do que podemos chamar vagamente de interesse humano; de alguma forma a imitação da ação e a vida devem incluir o interesse humano sem ser uma imitação de seres humanos.”15 O termo personagem, ao que tudo indica, vem do latim persona, uma tradução do grego provswpon, através do francês personnage, provavelmente com a idéia de que a máscara do ator destacaria a voz. Mas como alerta John Jones, “é preciso ter muito cuidado, porque quase toda a informação literária sobre esse objeto perecível de linho é tardia e o indício da arqueologia é sempre ambíguo: as figuras mascaradas de um vaso ou de uma pintura mural podem ou não ser de atores numa peça.”16 Contudo, o uso da máscara é dado como certo desde os primórdios do teatro.17 Para o que nos interessa, o uso da máscara exige a identificação da personagem através do texto, da verbalização das alterações de seu estado emocional. Ao impossibilitar a visão das expressões faciais, mesmo que não tenha originalmente sido planejada para ampliar a voz, a máscara confere-lhe um destaque maior, por conseguinte, ao texto pronunciado. A personagem, então, ao falar, expõe suas motivações, seus pensamentos, seu caráter.18 O termo de Aristóteles mais próximo da nossa noção de personagem é oi& pravttonte", isto é, os que atuam, os que agem.19 Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot traduzem o termo sistematicamente em todas as ocorrências apontadas por personnages qui agissent, justificando com o seguinte comentário: “A princípio assimilados aos seres que agem dentro da realidade e são dotados de qualidades de ordem ética, são em seguida definidos pela distância mesma que os separa desses modelos (“melhores, piores, semelhantes a nós”), e aparecem como os que agem no relato ou em cena. Trata-se, então, rigorosamente de seres em ação na ficção, criados da imitação de seres em ação no real. O grego antigo, 15

On Aristotle and Greek Tragedy, London, 1962, p. 29-30. Para essa afirmação John Jones toma 1450a 16-22 da Póetica. 16 idem, p. 43. 17 Cf The Dramatic Festivals of Athens, de Sir A. Pickard-Cambridge, Oxford,: 1969: pp.137, 140, 170, 179, 190197, sobretudo 195-196 sobre o uso da máscara na tragédia. Cf. também Greek Theatre Production, de T. B. L. Webster, London, 1970, p. 101 e sq. Para uma abordagem sociológica cf. “Figura da máscara na Grécia antiga”, Mito e Tragédia na Grécia antiga, Vol. II, de Jean-Pierre Vernant e Fr. Frontisi-Ducroux, São Paulo, 1991, pp. 2746. 18 Cf. “Voice and Enunciation”, The Dramatical Festivals of Athens, pp. 167-171. 19 Cf. Poética: 1448a 1; 1448a 23; 1448a 27; 1449b 31; 1449b 37; 1450b 4; 1460a 14.

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não possuindo um termo para designar o que chamamos personagem, contenta-se com o particípio do vergo agir, deixando ao contexto o cuidado de tornar clara a natureza do objeto da atividade mimética em suas diversas modalidades.”20 Mas ainda há diferenças entre a nossa forma de compor e ver teatro, que precisam ser assinaladas antes de prosseguirmos. Acredito que já no texto se revela a diferença entre a forma de compor e, daí, de representar o teatro contemporâneo, e a forma de compor e representar o teatro grego antigo. O texto de teatro contemporâneo, na maioria das vezes, traz as indicações de música, cenário, roupas, sentimentos que o ator deve expressar, indicações gestuais, incluindo-se aí as expressões faciais, estados emocionais, etc. Tudo isso inexiste num texto teatral produzido e representado em Atenas no século V a. C.21 Além de uma total ausência de indicações cênicas, esse texto foi originalmente escrito, é provável, sem a intenção que caracteriza os nossos textos de teatro, de que sua encenação venha a ter inúmeras reapresentações.22 A tragédia conserva da tradição lírica dos séculos anteriores a parte coral. Porém, a parte dialogada, ainda que metrificada, está mais próxima da prosa, da fala comum do cidadão. A combinação desses dois elementos, que, de alguma forma, são opostos por natureza, per si já estabelece um jogo inédito: não é mais só canto nem só discurso, a poesia dramática dá-se através de uma sintaxe própria do espetáculo. Diferentemente da poesia lírica, a tragédia tem sua alma na estruturação dos acontecimentos, isto é, numa seqüência de eventos previamente estabelecidos, pontuado pelas canções corais. Ao apresentar personagens agindo diante de um público, o teatro, como meio de expressão, possibilitará pôr em evidência outras formas de ver e compreender o mundo, que se revela já através do espetáculo proposto pelo texto escrito23. Charles Segal marca bem a qualidade do texto dramático, que só

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La Poétique, Paris,1980, nota 1(48a 1), p. 156. “The text is, after all, only a „libretto‟, not a complete casebook of the production.”, afirma Oliver Taplin, “Text and Stage Action”, The Stagecraft of Aeschylus, p. 29. 22 Cf. Sir Arthur Pickard-Cambridg, sobre as apresentações, revisão das peças, e reapresentações em outros locais que não as Dionisíacas Urbanas, The Dramatic Festivals of Athens, no capítulo “The City Dionysia”, esclarece: “To the memory of Aeschylus was accorded the singular honour of a decree that anyone who desires to do so should be allowed to produce his plays at the Dionysia. This was apparently something different from the practice introduced in the fourth century, when it is evident that plays of Sophocles and Euripides might be and were re-produced, and that the text of them was liable to be tampered with by the actors who produced them, so that Lycurgus passed a law to check this practice.”, p. 100. 23 Oliver Taplin destacando a dimensão visual da tragédia postula sobre o texto escrito e sua leitura: “It is during the hundred years after the flowering of Greek tragedy that reading replaces performances as the primary mode of literary communication. Aristophanes and Plato take for granted the audience-directed nature of drama; it is not until 21

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se torna possível com o concurso efetivo da escrita: “A densidade de sua estrutura, a novidade e a extrema originalidade de suas metáforas, o número de adjetivos rebuscados, surpreendentes ou raros, a sintaxe complexa e a hipotaxe finamente elaborada tornam a tragédia inconcebível sem a escrita.”24 Mas, notemos que esse texto, tão necessário à composição do teatro, é ainda uma via de mão única, já que, necessariamente, sua apreciação não passa primeiro pela leitura. Ainda que tenhamos, já no século V a. C., a possibilidade de alguns textos de tragédias circularem por escrito em certos meios, isto não significa que o grande público, que assistia às representações do teatro ateniense, tivesse facilidade em obter cópias para uma simples leitura. Embora se possa pensar na cópia dos textos, pelo menos para os atores, como o faz Gary Chancellor em “Le didaschalie nel testo”, neste particular, preferimos a posição de Oliver Taplin, ao entender que o texto teatral é uma transcrição, um roteiro, cuja escrita é incidental, destinada muito mais à produção e à montagem do que à leitura.25 Assim a poesia dramática, ao mesmo tempo que se utiliza de todas as prerrogativas da natureza poética típica da cultura grega, dela se afasta pela necessidade da escritura de seu texto. Por isso talvez, quando se estuda o teatro grego, sempre se tem, a despeito de todas as informações que se possam obter a respeito das condições da representação efetiva, a idéia de ser um teatro em que a palavra é soberana entre os outros elementos. Mas, por outro lado, pelas próprias condições materiais desse teatro, com atores mascarados, vestidos conforme as exigências das personagens representadas, com os devidos objetos de cena, tendo como cenários originalmente simples, veremos que a predominância da palavra sobre todos os outros signos teatrais era mais do que necessária, para moldar o espetáculo de acordo com a expressão poética. Aristotle‟s Poetics, nearly a century later, that we first encounter the notion that plays might be best read.” Tragedy in Action, p. 2 24 “Tragédie, oralité et écriture”, p. 268. 25 “Anche se le tragedie fossero state composte con l‟ unico fine di far da dondamento ad una rappresentazione scenica, prima di ogni altra cosa esse dovevano essere lette da um gruppo di attori e in alcuni casi anche da un impresario.” Il teatro greco nell’ età di Pericle, p. 132; Oliver Taplin: “The text, which is inevitably all we have, is no more than a transcript, a scenario. The play is the thing. Shakespeare seems to have paid no attention to the publication of his plays: he put his energies into having them seen and heard and understood in the performance. But this applies even more to the Greek dramatists of the fifth century B.C.(...) The Greek tragedians must have written their words down, but that was incidental: the verbs used were „to make‟ (poien), and synonumously and no less commonly, „to teach‟ (didaskein). The playwright himself instructed his chorus and actors , he was both director and producer. His task ended not with the script but with the performance ” Tragedy in Action, p. 1-2.

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O canto na tragédia

Para entendermos o que representa o canto, e por que toda a tragédia grega tem um coro, personagem coletiva que, na maioria de suas interferências, dança e canta, expressando-se em dialeto dórico estilizado26, diferente do dialeto usado nas partes faladas, é preciso remontar a toda a tradição poética dos gregos. Infelizmente, como se tem acentuado, com exceção de algumas representações iconográficas, não temos registro de como poderia ser essa dança27, e temos uma vaga idéia da partitura musical. Mas T. B. L. Webster, na tentativa de recuperar o que julga possível em relação à dança, afirma: “Muito se escreveu sobre a poesia cantada do coro grego. Mas muitos livros, enquanto admitem que ele era cantado e dançado, dizem pouco sobre esse aspecto da representação. Esta é uma tentativa de traçar mais a história da dança do coro do que de suas palavras, na medida em que podemos apreendê-la do metro, que controlava os pés dos dançarinos bem como organizava as palavras da canção, e na medida em que podemos vê-la nos vasos e relevos gregos.”28 Seu trabalho é interessante, pois além de examinar um vasto material arqueológico referente às performances poéticas, relaciona-o com outro repertório ainda mais vasto, o das fontes literárias, além de apresentar uma minuciosa análise métrica de todos os tipos de versos, desde o hexâmetro homérico até os metros usados no período posterior ao século V a. C. Por outro lado, a análise métrica pura e simples pouco nos esclarece sobre as condições da performance, porque não temos como recuperar a musicalidade e a tonalidade original, para não dizer da dificuldade em estabelecer com exatidão como seria tal coreografia, mesmo que se tenham todos os metros escandidos. O que temos é o texto diante dos olhos e a sugestão que ele sempre parece trazer, uma espécie de latência que o torna realizável enquanto espetáculo, o que na verdade não é um privilégio da poesia dramática, mas sim uma herança do modo de 26

Cf. T. B. L. Webster: “The other pointer backwards from the lyric of preserved tragedy is the curious convention that tragic choral lyric, as distinct from recitative and dialogue, is in Dorian dialect, or to more accurate, is faintly stylized Dorian. This must mean that at some moment the Attic tragic poets felt that Dorian was the right dialect for choral song in the same sense that epic-ionic was always the right dialect for hexameters.” The Greek Chorus, London p. 111. 27 Sobre a dança do coro, cf. The Dramatic Festivals of Athens, Oxford, 1968, de Sir Arthur Pickard-Cambridge, sobretudo o capítulo V “The Chorus”, pp.232-262. 28 The Greek Chorus, p. xi.

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fazer e de conceber poesia próprios dos antigos gregos. Assim, ao mesmo tempo que se tem toda a tradição poética presente na tragédia, como bem demonstrou John Herington, a poesia trágica tem especificidades que lhe são inerentes e que jamais poderiam estar dissociadas do espetáculo teatral.29 Quando, já na época de Aristóteles, a tradição, segundo ele iniciada por Agatão, de compor canções de interlúdio, ou seja, os embólima, o coro já havia praticamente desaparecido, e, rigorosamente, não temos nenhuma tragédia com essa estrutura.30 Mas, rigorosamente, qual é o papel do coro? Aceitamos a proposta de W. B. Standford, ao postular que os cantos corais conferem à ação dramática o tônus emocional, independentemente de sua interferência ou não na ação propriamente dita. Sua observação é importante e interessa de perto ao estudioso do drama antigo: “estamos habituados a intervalos entre os atos de um drama e, às vezes, de filmes mais longos. Estas interrompem a tensão emocional e tornam impossível um contínuo crescendo para um grande clímax. As tragédias gregas, pelo que conhecemos, eram encenadas sem nenhuma pausa. Quando o poeta-dramatista desejava relaxar a tensão por alguns instantes, poderia fazê-lo por meio de um coro mais calmo. Mas há uma grande diferença entre deixar o público sair para conversar no saguão e, por contraste, acalmá-lo com uma canção, dança e música estruturalmente relevantes, na platéia. Quando, nas últimas fases do drama clássico, os coros tornaram-se meros interlúdios, o fato deve ter causado um declínio no controle do público e no suspense emocional.”31 Nesta afirmação de W. B. Standford, ressoa ainda a postulação de Aristóteles sobre como se deve considerar o coro.32 Mas é isso que encontramos nas obras de Eurípides estudadas aqui?

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Para apreciação da conexão entre a tradição poética pré-trágica e a poesia dramática, cf. Poetry into Drama: “Some Features of Tragic Music and Meter”, pp. 103-124; para a relação entre a tradição e novidade na primeira poesia trágica, o capítulo seguinte: “Old and New in Early Tragedy”, pp. 125-150. Em The Greek Chorus, T. B. L. Webster afirma: “To turn from the victor-odes of Pindar to the choruses of the Persae, the earliest surving play of Aeschylus, is to move into a completely different world.”, p. 110. 30 “But he practice, said by Aristotle to have been begun by Agathon, of writing choral interludes (e*mbovlima) which could be transferred from one play to another, like the music of a modern theatre band, seems to have become common by the mid-fourth century, when Aristotle‟s deprecates it and demands that the chorus shall be treated as one of the actors and be interwoven with the action, though there is reason to think that at least from time to time in the fourth century choral odes, with words and not merely dances, were still composed and indeed Aristotle‟s prescription implies that it must have been so.” The Dramatic Festivals of Athens, p. 233. 31 Greek Tragedy and Emotions, London, p. 17. 32 Cf. 1456a 25-32.

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Num trabalho do começo do século, Les innovations musicales dans la tragédie grecque à l’ époque d’ Euripide33, seguindo a esteira de A. M. Croiset quanto à qualidade da produção de Eurípides em comparação com à de Ésquilo e à de Sófocles34, J. Estève formula, de maneira muito aguda e detalhada, que a principal característica dos cantos corais e cantos de ator em Ésquilo estaria mais relacionada com uma performance de dança – o que os aproxima, de certa forma, da tradição coreográfica da poesia que antecede ao drama. Eurípides, segundo sua tese, liga o canto à melodia, privilegiando o virtuosismo vocal em detrimento da performance coreográfica: “Eurípides apresenta, nas tragédias da primeira espécie, cantos de quatro estrofes; mas os estásimos de suas últimas peças são em geral compostos por uma estrofe, uma antístrofe e um epodo. A razão deste fato já foi indicada: a importância do canto coral cada vez mais se enfraquecia, porque a dança não exercia mais sobre os espectadores uma atração tão viva; as exigências do público ateniense impuseram ao poeta essa modificação.”35 Embora o estudioso não esclareça quais seriam essas exigências, sua análise aponta claramente para o fato de Eurípides, ao adotar a música melódica em detrimento da música de dança, buscar exprimir a paixão e os movimentos de alma no interior do indivíduo: “Assim, a separação se faz pouco a pouco: de um lado , o coro com suas danças e a música que deve acompanhá-las; do outro, a música melódica, preocupada em exprimir os sentimentos de um indivíduo enérgico e apaixonado, e afastado das formas coreográficas.”36 Pode-se, pois, vislumbrar um deslocamento, que vai de uma forma de representação do coletivo para uma representação do indivíduo. O canto coral e o canto de ator, as monodias, têm uma peculiaridade que geralmente se perde em nossas traduções: além da música que os acompanhava, para nós irrecuperável, eram escritos num outro registro lingüístico. Mesmo sendo uma convenção que remonta às origens corais do teatro grego, acredito ser esse um dos componentes importantes do espetáculo teatral, pois, justamente pelo afastamento

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Nimes, 1902. Veja-se por exemplo a posição de Croiset sobre a “inferioridade” de Eurípides em relação a Ésquilo e Sófocles: “En somme, bien moins grand qu‟ Eschyle, bien moins harmonieux que Sophocle, il rachetait en partie cette double infériorité par la varieté de ses qualités, surtout par sa liberté d‟ esprit, par la richesse infinie de ses émotions, enfin par le sens le plus délicat des faiblesses humaines.” Manuel de la Litterature grecque, Paris, s/data, p. 308. 35 Les innovations musicales dans la tragédie grecque, p. 41. 36 Idem, p. 23. 34

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criado pelo uso do dialeto dórico, os cantos corais expressariam, de maneira mais eficiente, o tônus emocional que o autor queria imprimir a sua peça. A resposta do público ateniense a esses momentos de relaxamento ou intensificação da ação, propostos pela interferência do canto coral, a meu ver, seria muito mais intensa e menos intelectualizada do que supõem os nossos ensaios e estudos. É no canto coral que a emoção, paradoxalmente, vai ser controlada pelo autor, intensificando ou diminuindo a tensão do que vem sendo construído pelo diálogo diante dos olhos e ouvidos do público. Nos estudos das tragédias, o papel do coro é geralmente relegado a um segundo plano, como uma personagem secundária, sobretudo quando se estudam as peças de Eurípides, considerando-se que pouco ou nada interfere na ação dramática propriamente dita. Isso porque nas análises, muitas vezes, se tem como foco de atenção o caráter do herói trágico, figura criada, segundo John Jones a partir de uma leitura equivocada no período do Romantismo da passagem da Poética em que Aristóteles menciona a necessidade da mudança de estado na ação. 37 Para nós, é claro que é mais fácil observar a ação dramática tendo como base o caráter das personagens, já que a tradição teatral do ocidente desenvolveu mais esses aspectos, do que, tendo como referência imediata um imaginário que perdemos, tentar perceber a tênue ligação entre o que se canta e o que se desenvolve dramaticamente. Sob esse prisma, em algumas peças de Ésquilo ocorreria exatamente o contrário: o coro é fundamental, tem o maior número de versos e sua participação na ação dramática é efetiva, se comparada com as peças posteriores. Em contrapartida, essa ação dramática seria ainda muito tênue, o que torna o seu teatro de difícil compreensão para o público moderno. Sófocles é considerado o autor que teria dado um maior equilíbrio entre as

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Cf. 1453a 12-16. “I mean that we have imported the tragic hero into the Poetics, where the concept has no place (...)At once it will be objected that we have here a quibble over terms: the word hero does not appear in the Poetics, as it happens (and there is nothing surprising about the absence of the Greek hêrôs); but the idea of the protagonist, of the central figure - that very wide and flexible idea is obviously there in some form.” On Aristotle and Greek Tragedy, London, 1968, p.13. Mais adiante John Jones amplia seu argumento também para a peripécia e o reconhecimento: “(...) the centre of gravity of Aristotle‟s terms is situational and not personal; he is talking about a reversed state of affairs and a recognition of, a discovering the truth about, a state of affairs which was unknown before or misapprehended.”, op. cit., p. 16.

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partes cantadas e dialogadas, sendo suas peças sempre citadas como exemplo de como a intervenção coral cedeu espaço a uma maior consistência da ação dramática.38 Eurípides, em suas primeiras peças, teria seguido um pouco mais de perto os procedimentos de Sófocles ao usar o terceiro ator e os prólogos. Mas, mesmo nessas suas primeiras produções, ele prenuncia uma mudança no tratamento da relação entre cantos corais e ação dramática, privilegiando, na verdade, o espetáculo teatral. Se a poesia grega, como já se tem postulado, é essencialmente performática, e nem por isso deixando de ter sua unidade de significado, a unidade sígnica, tampouco o texto teatral, com toda sua riqueza de elementos, deixa de constituir-se numa unidade de sentido, ou seja, não deixa de apresentar uma visão de mundo expressa pelo autor. Ora, a intervenção do coro, ligado ou não à ação, é essencialmente lírica, imprimindo esse seu colorido ao espetáculo, representando a visão de mundo não de uma personagem isolada, mas sempre de um colegiado, de um conjunto representativo da vida em comunidade. Seria possível entender a razão pela qual o poeta coloca um canto que ressalta o poder exuberante de Afrodite, no momento exatamente anterior ao episódio em que Ártemis, na peça representando uma força oponente, fala e faz sua aparição em cena? Ou ainda, quais as razões que levaram Eurípides, ao compor sua Helena, a colocar o primeiro estásimo da peça somente após o quarto episódio, já na altura do verso 1107? São questões a serem vistas com um pouco mais de clareza, se nos mantivermos atentos ao espetáculo que o autor quer nos fazer ver, às emoções que quer fazer aflorar através do espetáculo apresentado em seu conjunto. Se entendemos o coro trágico como um colegiado, expressando o ponto de vista de uma comunidade - dos anciãos, das mulheres, dos cidadãos, com suas preocupações em relação ao corpo social - por que seu papel diminuiu de importância, nas últimas produções teatrais, em favor da personagem individual, representada pelo ator? Não estaríamos aí diante do mesmo fenômeno que deu nascimento à poesia lírica, fazendo cessar a musa do mundo épico, no período que antecede o surgimento do gênero dramático? Para J. Estève, a mudança trazida por Eurípides ao drama reside exatamente no tratamento dado aos cantos corais. Uma redução considerável do canto 38

Aristóteles, ao assinalar o prazer, advindo de uma tragédia de qualidade melhor, percebe-se já pela leitura; com isso, acentua seu ponto de vista de que a tragédia não necessita do espetáculo para atingir seu objetivo. A peça citada

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coral já se verifica na obra de Sófocles, quando comparada com as peças de Ésquilo. Eurípides reduz o canto coral e aumenta a importância do canto de ator. O estudioso ressalta ainda a ligação da monodia com os cantores virtuoses da época do dramaturgo: “Mesmo nas primeiras tragédias de Eurípides, ainda que nessa época, ao que tudo indica, os principais atores fossem já virtuoses, a monodia não era geralmente cantada pelo protagonista. As três monodias antistróficas e epirremáticas de Alceste, de Andrômaca e das Suplicantes, são atribuídas a uma personagem secundária.”39 Assim, além de modificações formais, a passagem de uma performance de dança para a performance de canto, evidenciaria também um deslocamento da importância do conjunto, do coletivo, para destacar a prioridade às emoções particulares do indivíduo, já esboçado pela poesia lírica do período arcaico. Shirley Barlow, em seu estudo The Imagery of Euripides, avança a discussão sobre as diferenças do uso do canto coral em Eurípides, acentuando que, enquanto vemos os atores fazendo a ação avançar rigorosamente de acordo com a urgência dos eventos presentes, o coro, por sua posição de destaque na orquestra, “pode deliciar-se com uma imaginação mais livre e mais desocupada, movendo-se em pensamento para trás e para frente pelo espaço através do espaço e do tempo, evocando eventos passados e cenas distantes, prevendo o futuro, desejando um presente que é diferente e mostrando a pertinência dos tempos e lugares que evocam para a situação à mão.” 40 A estudiosa ainda ressalta que, nas odes de Sófocles, encontramos mais comentários morais do que as vastas visões panorâmicas, encontradas tanto em Ésquilo como em Eurípides.41 Mas a diferença entre Ésquilo e Eurípides deve ser notada: mesmo nos menores detalhes e nas canções de natureza aparentemente decorativas, é a partir dos arredores descritos é que se deve interpretar a ação encenada.42 Assim, o distanciamento aparente dum canto coral em relação à ação dramática deve ser examinado com atenção, pois, além de um colorido diferente, de um adorno poético, o poeta pode estar traçando outras relações de significação, ampliando assim as imagens do que se está encenando. A linguagem do canto de ator, segundo Shirley Barlow, deve ser a mesma das odes corais, uma vez que uma é extensão da outra. Porém, a como exemplo é o Édipo de Sófocles. Cf. 1453b 1-7. 39 Les innovations musicales dans la tragédie grecque, p. 210-211. 40 “The Choral Odes: Imagery of Place”, Bristol, 1971, p. 17. 41 Idem., p. 17.

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diferença a ser notada é que, ao contrário das canções corais, a monodia leva-nos diretamente ao estado emocional das personagens.43

O espetáculo na tragédia Seguindo a linha de pensamento que vimos traçando, podemos afirmar que o drama, nascido com a democracia e com os debates por ela suscitados, acompanha também o debate do homem ateniense na procura de sua identidade, tão bem estudado por Bernard M. W. Knox em Oedipus at Thebes44. Esse debate não se restringe à esfera meramente política no que tange ao direito e às leis fixadas na cidade, mas também à compreensão e à expressão da experiência da interioridade no homem grego, que, com a tragédia, através dos conflitos postos nas personagens, começa a tomar uma feição mais definida, mais nítida do que na poesia lírica. E essa complexidade igualmente se verifica na própria forma do gênero dramático, que traz em si os dois outros gêneros precedentes: os temas, em geral, são tirados da tradição heróica, de um passado mítico, alguns deles retratados nos poemas homéricos. No entanto, a maneira como esse passado mítico é tratado no drama está inteiramente submetida às novas condições do homem grego do século V. É uma espécie de tratamento cosmético, uma atualização dos mitos, transformando-os num espetáculo inteligível ao homem comum, que lotava os festivais dramáticos em Atenas e, na ágora, debatia questões semelhantes às propostas nas peças. As próprias transformações sofridas pelo gênero dramático, de alguma forma, podem estar relacionadas a mudanças no panorama social em que este gênero se inseria. É possível verificar as mudanças ocorridas na concepção da existência do próprio homem e seus dilemas: sua relações com os próprios homens e com os deuses. No entanto, a obra de arte não tem necessariamente relação com a realidade imediata. Como expressão de uma visão particular, ela expressa em seu conjunto um ponto de vista que, no mínimo, se relaciona com outros pontos de vista, como por exemplo, o do público que assistia aos espetáculos. Ainda citando Bruno Snell: “Quando, pois, o drama se liberta das exigências da „realidade‟, vincula-se com maior força ao seu 42

The Imagery of Euripides, p. 18-19. “Monody and lyric dialogue”, idem, p. 43. Shirley Barlow nota: “Something of both likenesses and differences between choral ode and monody emerges in exagerated and crude from in Aristophanes parody of both n the Frogs.”, p. 44. Cf. Rãs, 1309 seq.; 1331 seq. 43

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material - às regras da representação e às leis artísticas. Apreender a realidade é o que agora empreende a prosa científica, que surge na mesma altura que a tragédia. Mas onde se reflecte sobre a tragédia (dela só ouvimos falar, decerto, desde o final do séc. V), não se pressupõe que o drama tenha de dizer a verdade e representar a realidade; pelo contrário, impõe-se aí a „ilusão‟ como a preocupação do dramaturgo, mais ainda, ele é censurado quando se atém demasiado ao real.”45 Tampouco se pode afirmar que, pelo fato de o poeta recriar versões diferentes para o mito, esteja, de alguma forma, tentando afastar seu público da realidade. É interessante percorrer o caminho de um gênero tão bem datado como é o drama grego. Oriundo da tradição dos cantos corais, portanto, de uma tradição originalmente oral, o teatro grego, em sua forma mais evoluída, vai mesclar os cantos com os diálogos. Escrito para ser apresentado oralmente, a partir da memorização do texto, liga-se a outras formas de expressão que transpõem o limite do signo verbal. O afastamento da realidade pode ser aparente, já que, na verdade, as personagens lendárias colocadas em cena trazem as preocupações do homem grego do século V, não como um retrato, como um reflexo da realidade, mas como um objeto estético a ser apreciado com toda a profundidade que ele pode propiciar.46 Surge, então, uma dificuldade, que me parece até hoje mal resolvida no que concerne à classificação de um texto teatral como literatura, já que esta, além da escrita, pressupõe a leitura silenciosa (ou não), que se refaz a cada nova leitura, facultando ao leitor abrir e fechar sua relação com o texto, de modo solitário e pessoal; na representação teatral, a comunicação é uma experiência coletiva. Ela se dá envolvendo o corpo de atores e o corpo de espectadores no próprio momento da representação; cessa quando o espetáculo termina.47 A dificuldade em classificar o texto dramático como literatura pode ser vista em afirmações como as de Roman Ingarden em A obra de Arte Literária: “Vamos ao 44

New York, 1971. “Mito e realidade na tragédia grega”, A descoberta do Espírito, Lisboa, p. 143. 46 Para a apreciação dos anacronismos na tragédia ática, veja-se a discussão de P. E. Easterling, em seu trablaho “Anachronism in Greek Tragedy”, JHS, cv (1985), pp. 1-10. Para a discussão sobre „realidade‟ e „ficção‟, na tragédia, veja-se Oliver Taplin: “ (...) „Illusion? Maybe; but emphatically not brecause the play is a fiction and the audiences‟ experiences the product of temporary artifice. (...)As Gorgias so neatly put it „the man who is deceived has more wisdom than he who is not.‟ And so in the end the „deceit‟ is true to life and part of life and makes liefe the better of it.”, Greek Tragedy in Action, p. 170. 47 Cf. Eric Bentley “Literatura „Versus‟ Teatro” para uma discussão interessante dos pontos de vista antagônicos neste particular, A experiência viva do teatro, Rio de Janeiro, pp. 141-142. 45

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teatro para vermos, p. ex., o Don Carlos, de Schiller. Tratar-se-á, neste caso, de uma obra literária ou surgem aqui particularidades especiais que permitiriam estabelecer uma divisória entre exemplos até agora observados e a peça teatral? O que temos, afinal, perante nós quando assistimos a uma peça de teatro? É o Don Carlos que nós lemos idêntico ao que „vemos‟ no palco?”48 Provavelmente, os compositores do teatro grego ático não tinham essa preocupação, já que todo o texto poético produzido na Grécia antiga, até pelo menos o final do século V a.C., está voltado para uma execução pública ou privada, comportando a recitação e/ou a entoação, a que John Herington chamou performance, termo que passou a ser usado entre nós a partir da década de sessenta, quando os grupos teatrais e musicais passaram a incorporar em suas apresentações outros elementos (mímica, dança, projeção de slides, entre outros) além dos até então habituais.49 Para Roman Ingarden, a peça de teatro não é uma obra puramente literária; em suas palavras “é, no entanto, um caso limite seu”. O estudioso apresenta uma série de argumentos para ressaltar o que uma peça de teatro tem em comum com a literatura: tendo um conjunto de aspectos semelhantes à da “obra puramente literária”, sendo aquela produzida apenas para ser lida, não pressupondo portanto qualquer tipo de execução, “nela intervêm novos elementos e alguns dos estratos desempenham um papel um pouco modificado”; embora tenha os mesmos estratos de unidade de sentido e das formações fônico-lingüísticas comuns à da obra puramente literária, a peça de teatro, segundo o autor, pode ser incluída nas obras literárias, mas não nas “puramente literárias”. A força expressiva da peça de teatro é muito maior do que a da obra puramente literária.50 Segundo essa visão, a obra teatral teria em geral alguma participação no que chamamos de literatura, mas, em algum momento, talvez o da representação - o autor não nos esclarece - transpõe os limites da literatura e constituise no quê? A solicitação efetiva da visão e da audição durante a apresentação de um texto teatral resultaria naquilo que a distingue do texto puramente literário? Não estaria por trás desta idéia de Roman Ingarden o pensamento de Aristóteles, na Poética, quando afirma: “Ainda a tragédia, mesmo sem movimento, faz o que lhe é próprio 48

Trad. portuguesa de Albin E. Beau, Maria da Conceição Puga e João F. Barrento, Lisboa, 1979, p. 347-48. Esse aspecto das performances dos anos sessenta em diante está muito bem estudado por Renato Cohen, em Performance como linguagem, São Paulo, Perspectiva, 1989. 50 A obra de arte literária, pp. 348-53. 49

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como a epopéia. Pois pela leitura é visível sua qualidade. Portanto, se é melhor em outras coisas, isso, então, não é necessário encontrar-se nela. Em seguida, por ter tudo o que a epopéia tem (pois também pode utilizar-se de seu metro), ainda também, o que não é pouco, a música [e o espetáculo], pelos quais os prazeres se fazem mais visíveis. E depois a visibilidade mantém-se tanto na leitura como na representação.”51 Mas Aristóteles, nesse passo, põe em foco uma mudança de atitude em relação ao texto teatral, tanto quanto sabemos, até então ainda não anotada. Inaugura, assim, o que podemos hoje chamar de Teoria da Literatura, porque justamente pressupõe a supremacia da leitura do texto teatral em detrimento de sua execução, e, com isso, sua escritura.52 Para o autor do Greek Theater and Its Drama, Roy C. Flickinger, Aristóteles não estaria preocupado com a encenação propriamente dita dos textos, mas sim com outros aspectos que muitas vezes nos escapam, um deles certamente é a leitura pura e simples, sem os adornos da representação.53 No entanto, a postura, inédita no mundo grego, está eivada do pressuposto de que a escrita, sempre anterior à performance, é mais importante. As discussões em torno da relação entre a escrita e o texto poético, então, despertam, assim, alguma curiosidade e alguns questionamentos. Parece-me que o texto teatral é o último dos gêneros em que a execução oral, no mínimo, ainda se faz necessária para uma apreciação estética de sua totalidade significativa e de todas suas possibilidades expressivas. No entanto, não dispomos de todas as marcas, de todos os signos que compõem, em sua totalidade, o texto teatral grego. Os estudos de semiologia aplicada ao teatro têm postulado que o signo teatral se compõe de muitos outros signos. Roland Barthes, por exemplo, afirma: “O que é o teatro? Uma espécie de máquina cibernética. Em repouso, esta máquina está escondida atrás de uma cortina. Mas a partir do momento em que a descobrem, ela põe-se a emitir na nossa direcção um certo número de mensagens. Estas mensagens têm de

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1462a 11-18. Cf. as outras referências de Aristóteles ao espetáculo: como uma das partes da tragédia, 1449b 3133: “e*peiV deV pravttonte" poiou~ntai thVn mivmhsin, prw~ton meVn e*x a*navgkh" a#n ei*h ti movrion tragw/diva" o& th~" o!yew" kovsmo".” Como menos próprio da poesia, 1450b 15-20: “tw~n deV loipw~n h& melopoiiva mevgiston tw~n h&dusmavtwn, h& deV o!yi" yucagwgikoVn meVn, a*tecnovtaton deV kaiV h@kista oi*kei~on th~" poihtikh~": h& gaVr th~" tragw/diva" duvnami" kaiV a!neu a*gw~no" kaiV u&pokritw~n e!stin, e!ti deV kuriwtevra periV thVn a*pergasivan tw~n o!yewn h& tou~ skeuopoiou~ tevcnh th~" tw~n poihtw~n e*stin.” 52 Oliver Taplin tem uma visão um pouco diferente no que se refere ao espetáculo na Poética. Cf. The Stagecraft of Aeschylus, apêndice F, “Aristotle Poetics on o!yi"”, pp. 477-479, e cf. também, p. 24-25. 53 Chicago/London, 1973, pp. 5-6.

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particular, o serem simultâneas e contudo de ritmo diferente; em determinado ponto do espetáculo, você recebe ao mesmo tempo seis ou sete informações (vindas do cenário, dos trajos, da iluminação, da localização dos actores, dos seus gestos, da sua mímica, da sua fala), mas algumas destas informações mantêm-se (é o caso do cenário), enquanto outras giram (a fala, os gestos); estamos, pois, perante uma verdadeira polifonia informacional, e isto é a teatralidade: uma espessura de signos (falo aqui em relação à monodia literária, e deixando de lado o problema do cinema).”54 Roland Barthes tem mente, com certeza, os textos teatrais produzidos em nosso tempo, segundo as condições de representação do teatro contemporâneo. Porém, se levamos em conta as condições materiais específicas de que dispunha o teatro grego antigo, suas observações mantêm-se válidas na apreciação dos textos trágicos, que não deixam de apresentar a polifonia informacional, ou seja a teatralidade. Como observar essa espessura do texto teatral grego, se, como se tem afirmado, os autores de teatro grego não nos deixaram textos secundários, isto é, indicações no próprio texto de como se deve montar o cenário, escolher as indumentárias, determinar as expressões gestuais dos atores, enfim todo o conjunto de signos que transcendem o signo puramente verbal, incluindo-se aí a modulação da voz?55 Pela própria condição de representação, no entanto, os compositores gregos, de certa forma, incorporam no próprio texto a ambientação cênica e, com isso, já na leitura fica estabelecido o cenário em que a ação deve transcorrer ao longo da peça; a identificação das personagens que vão ocupando a cena regularmente se faz através do texto pronunciado pelos atores, assim como sua caracterização e sobretudo a descrição de seu estado emocional. A Profª Daisi Malhadas, em um de seus estudos sobre o espetáculo na tragédia grega, afirma: “A ausência do texto secundário no teatro grego seria, então, mais um obstáculo ao estudo do espetáculo na tragédia. Convém observar que as didascálias que aparecem na maioria das traduções foram compostas pelos tradutores. Não se poderia ler a tragédia grega como teatro, mas apenas como um texto literário. Isso

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Ensaios Críticos, Lisboa, 1977, p. 355-56. Para as questões sobre as didascálias no texto grego veja-se Il teatro greco nell’ età di Pericle o polêmico texto de Gary Chancellor, “Le didascalie nel testo”, pp. 127-146 e O. Taplin “Le questione delle indicazioni didascaliche”, pp. 147-160, que com muito mais clareza questiona as possíveis indicações em alguns textos. 55

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aconteceria, se o espetáculo na tragédia grega, antes de ser cena, não fosse poesia.” 56 E aí sim temos a chave para uma das entradas no texto teatral grego, sua forma poética, que de qualquer maneira pressupõe, então, a performance. Da tradição poética, o drama herda, por assim dizer, os outros sistemas de significação: “Na tragédia grega, o texto pronunciado pelo ator e pelo coro - diálogos e cantos - contém vários sistemas de signos da representação: expressão facial, gesto, marcação, penteado, indumentária, acessórios, cenários, tom, som, além da própria palavra.”57 Na tragédia grega, da perspectiva do espetáculo, a visão é direcionada sempre pelo texto pronunciado: “Nessa mesma peça [Orestes de Eurípides], pelo modo como Electra, as outras personagens e o coro se referem a Orestes, vemos a sua maquilagem, seu penteado: as secreções coaguladas nos olhos, nos cantos dos lábios, os cabelos em desalinho que lhe tapam a visão. Sabemos que o ator estava de máscara, de modo que, quando foi encenada no V século a. C., - apenas a palavra devia ter a força para fazer o espectador ver esses sinais. Da mesma forma, quanto Electra, também nessa peça, num momento em que desespera da salvação, diz estar, com as próprias unhas, fazendo seu rosto sangrar. (...) Na experiência teatral grega, a palavra constitui-se em rico sistema de signos. Pode-se dizer que é a „ditadura da palavra‟ contra a qual se insurge Artaud em Le théâtre et son double, para quem o teatro deve ter uma „linguagem física e concreta‟, expressão de tudo que se manifesta em cena materialmente, e que, por isso, se dirige primeiro aos sentidos e não ao espírito como a linguagem da palavra.” 58 Mas essa ditadura da palavra sobre o espetáculo, que se quer fazer ver na tragédia, está intimamente ligada ao modo de compor, de concatenar a seqüência dramática. Assim, a palavra vai construindo todos os signos exigidos pela cena. A palavra plasma a realidade mental, espiritual e intelectual através do canto e da dança. Na verdade, a organização do texto teatral deve revelar a organização do espetáculo. Para nós hoje, a divisão estabelecida por Aristóteles na Poética torna mais cômoda a leitura e a apreciação crítica, mas suas considerações sobre a tragédia são como um cânone a ser seguido pelos compositores de sua época, desconhecido, talvez,

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“O espetáculo na tragédia grega”, Itinerários, nº 5, Araraquara, 1993, p. 51. Idem, p. 52. Para exemplificar sua afirmação, a Profª estuda as seguintes do passagens Orestes, de Eurípides: (1264-1271), (1273-1281) e (1311-1314), destacando no texto as indicações de espetáculo, (cf. pp. 52-54). 58 Idem, p. 55-56. 57

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por Ésquilo, Sófocles e Eurípides, que parecem mais estar buscando uma forma do que seguindo fórmulas pré-determinadas.59 Embora seja considerado o mais inovador dentre os autores da tragédia grega, por seguir novas tendências musicais por exemplo, Eurípides tem os seus textos elaborados de modo formal: em suas peças encontramos os prólogos, os párodos, os episódios e os estásimos, cantos de cena e êxodos. A novidade, porém, revela-se na composição interna desses elementos, em que o poeta se move com mais liberdade. A modificação mais profunda que a dramaturgia de Eurípides fornece está relacionada com a distribuição dos cantos corais e, conseqüentemente, com o tratamento dado aos episódios. Assim, a necessidade de fixar o texto a ser dito, cantado e coreografado e a ser sobretudo compreendido pelo público, fazia com que o autor apresentasse, no próprio texto, informações mínimas sobre o cenário, sobre as indumentárias, sobre o estado emocional das personagens, enfim, pistas que revelam uma concepção teatral que nada deixa a dever às mais sofisticadas montagens contemporâneas. Eurípides, parece-me, é muito sensível a esse novo meio de expressão de que dispunham os seus contemporâneos. Como compositor, usando o material mítico disponível na tradição poética grega, deixou-nos textos em que discute o seu universo espiritual, abrindo debates sobre política, religião, sociedade, enfim, sobre todos as questões em pauta nos meios intelectuais atenienses, sem, contudo, abrir mão das possibilidades estéticas que a poesia dramática lhe proporcionava. Explorou-a, a meu ver, de maneira radical, ainda que, muitas vezes, como tem sido notado pelos comentadores de seu texto, tenha prejudicado a unidade dramática. Mas aí entraríamos em outros problemas, mais amplos, pois o que consideramos representativo de toda a produção teatral do século V a.C. é muito pouco e, na verdade, não sabemos exatamente como outros autores, a não ser Ésquilo e Sófocles, compunham suas peças, como distribuíam seus diálogos e seus cantos corais. De qualquer modo, o que chegou até nossos dias causa-nos um grande impacto, quer pela construção formal, quer pelo conteúdo, permitindo considerar que

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Oliver Taplin, por exemplo, afasta-se o quanto pode da Poética, no Stagecraft of Aeschylus; quando discute o significado visual da tragédia, “Visual Meaning”, afirma: “Now to the notion which has had the most far-reaching effect: the idea that the performance in the theatre is not the province of the tragic poet or the critic, and may even be unworthy of them. This is clearly implied in Aristotle‟s Poetics and through Poet has had untold influence. (...). I postpone a full discussion of what Aristotle has to say on the theatrical aspects of drama to Appendix F.”, p. 24-25.

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as peças nos fazem vislumbrar um pouco mais claramente o que teria sido o teatro grego, e, de acordo com o nosso plano, as modificações desse gênero e seus efeitos. Quando se fala em espetáculo teatral, imediatamente nos vem à mente o elemento visual, que, para Aristóteles é um dos elementos constitutivos da tragédia. Temos aí dois caminhos a percorrer: um, o da encenação propriamente dita; o outro, o das possibilidades que, como postula Aristóteles, já a leitura do texto nos oferece. O primeiro, para nós, é inviável - pois não tivemos o privilégio de viver no século V a.C. e presenciar as apresentações, ouvir a modulação das vozes dos atores nem a entoação dos coros; não pudemos ver como se vestiam as personagens, como se construíam os cenários, nem sentir o que público sentia, ao fazer, de alguma forma, parte do espetáculo que para ele se produzia.60 Oddone Longo, num ensaio intitulado “The Theater of the Polis”, afirma: “o evento teatral na antiga Atenas era um evento público par excellence. As performances dramáticas atenienses não eram concebidas como produções autônomas, em algum ponto indiferente do tempo ou do espaço, mas estavam firmemente locadas dentro de uma estrutura de um festival cívico, em uma ocasião especificada de acordo com o calendário comunitário, e num lugar especial expressamente reservado para essa função.”61 Se tivermos esses detalhes em mente, a impossibilidade de apreendermos a experiência teatral grega torna-se mais clara. Ao estudar o espetáculo e a forma na tragédia, H. C. Baldry propõe que, se uma máquina nos permitisse atravessar o tempo e presenciar uma representação teatral no século V a. C., na certa não teríamos a compreensão exata do que estaria acontecendo lá. 62 Seu livro, então, busca, na medida do possível, trazer para nós hoje dados sobre os testemunhos dos autores mais antigos sobre o teatro, uma discussão sobre o envolvimento da cidade em todas as atividades políticas e religiosas relativas aos festivais dramáticos, as condições materiais da representação, as representações

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Rigorosamente o estudo de um espetáculo teatral teria que ser feito durante sua representação, daí quase uma inviabilidade de sua apreensão total a posteriore. Cf. os debates sobre o fenômeno teatral em “Do significante ausente no teatro”, Itinerários, nº 5 (1993), pp. 15-47. Olivter Taplin afirma: “The tragic theatre of the fifth century is not usually thought of as a particularly spectacular one compared with, say, the modern opera house or more lavish productions of Shakespeare, or even with modern productions of Greek tragedy in the style of Max Reinhardt. On the other hand there clearly was an element of spectacle in the fifth-century productions, particularly in the costumes, which were one of the chief expenses for the choregus. The evidence of pottery painting suggests that while costumes may have been fairly plain earlier in the century they were elaborately decorated by the end of it (see P-C DFA 198).”, The Stagecraft of Aeschylus, p. 39. 61 Nothing to do with Dionysus?”, Princeton/New Jersey, 1990, p. 15. 62 I greci a teatro, 1984, p. 9.

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propriamente ditas e o conteúdo das peças. Sua obra destaca a singularidade da experiência teatral grega, irrecuperável para nós. O segundo, herdeiros que somos de todo esse legado escrito, permite-nos explorar as possibilidades que o texto propõe, como qualquer outra obra de arte. E é nesse mergulho nas possibilidades do texto que sigo os passos dados por Oliver Taplin em Greek Tragedy in Action, sem contudo concordar com todas as suas afirmações: “Agora, quando insisto que a tragédia grega deve ser vista para ser pensada, não estou falando a respeito da mecânica da encenação. As características permanentes do teatro - a construção do palco, maquinaria, etc. - são interessantes o suficiente, mas meu interesse não é tanto por como a peça era posta em cena quanto pelo que está sendo representado em seu interior.”63 Assim, tudo o que o texto nos apresenta como parte de sua realização performática, muito de perto nos interessa, a saber: entradas e saídas de cena, atos e gestos sugeridos pelo texto das personagens, objetos de cena, sons e silêncios, seqüências cênicas, emoções que se percebem a partir dos vocábulos usados, e mesmo as partes dialogadas e partes cantadas, pois todo esse conjunto de elementos carregados de significação conduz a uma experiência única que é o prazer estético da poesia em seu mais alto grau. Penso que Hegel tinha isso em mente quando afirmou: “O drama que, tanto pelo conteúdo como pela forma, constitui a totalidade mais completa, deve ser considerado como a fase mais elevada da poesia e da arte.”64 Oliver Taplin, porém, não inclui neste seu trabalho considerações sobre os cantos corais, visto que sua preocupação está centrada na ação dramática, ou seja, naquilo que os atores dizem e fazem em cena. Reproduzo aqui sua declaração para maior clareza: “Para os gregos, um coro era parte integral de muitas ocasiões comunais, religiosas ou seculares - festivais, casamentos, funerais, celebrações de vitórias, por exemplo. Um coro garante a cerimônia e a profundidade para todas as ocasiões „festivas‟ na vida grega. E, mesmo assim, o coro receberá inevitavelmente pouca atenção neste livro, comparativamente, já que não está como regra rigorosamente envolvido na ação e na trama das tragédias. Há exceções, sobretudo em Ésquilo, mas é - para postulá-lo bem genericamente - o lugar para a canção coral mover-se num mundo diferente, um registro diferente, distinto dos eventos específicos 63 64

London, 1985, p. 4. Estética. Poesia, trad. de Álvaro Ribeiro, Lisboa, 1980, p. 277.

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da trama. As canções não estão limitadas a um lugar e tempo, na linguagem, na seqüência arrazoada da fala e do pensamento, como o diálogo está; elas se desviam por uma seqüência de elos associativos, muitas vezes emocionais, a um mundo altamente colorido de encadeamentos universais e abstratos, amplamente alinhados, de pensamento, por desertar a relevância direta da „monotonia‟ em favor das conexões poéticas da imaginação e universalidade. Se soubéssemos um pouco mais de sua coreografia e música, daí o coro trágico poderia encontrar um espaço mais amplo; mas, tal como está, minha lente focará inevitavelmente os atores.”65 Concordo com quase todas as afirmações de Oliver Taplin, tendo em mente sua preocupação centrada na ação dramática, mas este trabalho pretende acentuar justamente o oposto de sua proposição: a importância da participação do coro, se não na ação dramática propriamente dita, pelo menos no seu modo de inserção no que aqui chamamos de espetáculo, sobretudo pelas modificações que Eurípides teria introduzido, neste particular, na tragédia ática. O desconhecimento que temos da representação do coro é o mesmo que temos de como os atores de fato atuavam. A mudança de registro na linguagem utilizada pelo coro, a musicalidade de sua intervenção e mesmo sua coreografia são tão irrecuperáveis quanto a modulação, a entoação e mesmo o modo de representação dos atores. Se, na atuação do coro, há uma mudança de registro tão forte e característica, como acontece com canto coral nas tragédias áticas, mais do que uma tradição poética ou função estética, há que se considerá-la do ponto de vista do espetáculo que o autor quer nos fazer ver. Se o canto está ligado mais a expressões de conteúdo emocional, incluindo-se aí todas as sugestões de caráter religioso, comunitário, enfim, cerimonial, sua intervenção para a apreciação de um texto teatral é também de igual importância. Nesse sentido, preferimos a idéia de Helene P. Foley em Ritual Irony, Poetry and Sacrifice in Euripides, ao postular: “As odes de cada uma dessas peças (Ifigênia em Áulis, As Fenícias, Héracles furioso, As Bacantes), longe de serem apenas decorativas e não funcionais, formam um ciclo contínuo de canção que ganha ênfase precisamente por seu contraste estudado ou relação desconcertante com a ação. O ritual, servindo nessas peças para ligar ode e ação, o mítico e o secular, o passado e o presente, em

65

Greek Tragedy in Action, London, p.13.

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última análise, permite ao poeta reivindicar ao drama e à sua tradição poética arcaica uma relevância contínua para um sociedade democrática.”66 Se partimos do pressuposto de John Herington, de que a poesia grega em sua origem é performática67, temos que admitir que ela comportava elementos do que aqui chamaremos espetáculo. O termo espetáculo, a princípio, parece-nos um pouco perigoso, porque tem um campo semântico que se estende desde o “ver” uma encenação teatral até o assistir a qualquer modalidade desportiva. Mas o perigo se desfaz ao notar que, em qualquer um dos usos que ora fazemos do termo latino spectaculum, o ver está sempre embutido, e, mesmo numa encenação, uma das principais atividades é justamente o “ver” o “jogo” dramático.68 Não é por acaso que o recorte lingüístico do inglês recobre justamente esse campo semântico do teatro com o uso do termo play tanto para uma peça teatral como para o verbo representar.69 Portanto, além de uma experiência acústica, - note-se que em inglês o público é denominado audience, enfatizando sobretudo o elemento acústico do espetáculo -, o espetáculo denomina o ver esteticamente algo que se representa, trate-se de uma execução poética, de uma disputa desportiva ou de uma apresentação teatral. Já o termo grego qevatron designa sobretudo o local de onde se “vê” a apresentação dramática. W. B. Standford, levando em conta as condições da representação teatral em Atenas do século V a. C., postula a importância maior dos elementos acústicos em relação aos elementos visuais, estes tampouco sendo negligenciados pelos

66

Ithaca and London, p. 19. “Poetry as a Performing Art”, Poetry into Drama, pp. 3-40. 68 Não nos esqueçamos de que o jogo, para o grego é o a*gwvn, também a disputa, o debate, sendo um dos elementos do teatro. Para as ligações do a&gwvn na poesia de Píndaro, por exemplo, cf. Kevin Crotty, Song and Action, the Victory odes of Pindar, Baltimore, 1982; Para a apreciação do a*gwvn no teatro, cf. Francisco Rodrigues Adrados, “Elementos métricos arcaicos en los rituales de Agon”, Fiesta, Tragedia y Comedia, Madrid, 1983, pp. 347-360. 69 Cf. O Universo do Teatro, de Gilles Girard e Réal Ouellet, em que anotam: “termo genérico que designa quase todos os tipos de representação pública (texto, dança, desporto,...); espectador é igualmente um termo genérico mas é o único que podemos utilizar a propósito do teatro, relacionando-se então com o theatron grego: o local onde se assiste. Notemos de passagem que o inglês atribuindo uma maior importância ao que se ouve do que ao que se vê, emprega audience em vez de spectator que significa em sentido próprio: o que se vê sem tomar parte ativa. Poderse-ia ainda estabelecer uma distinção entre público e espectador: o público é o conjunto das pessoas que tiveram contacto com o teatro ou que podem vir a tê-lo; os espectadores são o conjunto de pessoas que assistem a uma determinada representação teatral. Finalmente, podemos também assinalar que as expressões “deixar-se levar pelo jogo” e “entrar no jogo” querem dizer que o espectador, ao participar, se transforma numa outra pessoa, tal como acontece com o actor durante o tempo que dura a representação.”, Coimbra, 1980, p. 16, nota 1. 67

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compositores.70 Mas qual seria a sua especificidade, se, de algum modo, o texto teatral está inserido numa tradição poética que comporta os elementos performáticos? Em primeiro lugar, o texto teatral é rigidamente escrito para, nos diálogos e monólogos, ser dito de cor; nas partes corais, para ser cantado e dançado. Como não temos a partitura musical, nem a coreográfica, o que nos resta é o texto. E é a partir do texto que vamos recuperar, dentro de nossas limitações de leitores, o que chamamos de espetáculo, ou seja, aqueles elementos textuais que, de alguma forma, nos sugerem ou indicam algo além da palavra escrita, ou seja, a palavra que, lida ou dita, nos leva para uma outra experiência mais expressiva do fenômeno da comunicação, o prazer estético. O espetáculo teatral grego tem, então, como objetivo principal expor aos ouvidos e olhos de uma platéia - a quem é especialmente dirigido - o drama, a ação. A ação, aqui, é considerada como a sucessão de acontecimentos que gera a tensão de uma peça teatral. Todos os elementos do espetáculo podem, de alguma forma, contribuir ou não para a construção dramática. Os jogos estabelecidos pelas falas do diálogo dos atores, pelas canções do coro e por todo o conjunto de outros elementos indicados de alguma forma no texto (a indumentária das personagens, o cenário, os objetos de cena, as expressões faciais, os gestos, os estados emocionais), têm um único objetivo, o de proporcionar ao público a compreensão do texto como um conjunto significativo; daí o nome técnico de signo teatral para todos esses elementos. Cada um dos signos (o lingüístico, o musical, o rítmico, cenográfico, etc.) compõe um signo maior que é o signo teatral71. Quando, neste trabalho, se usa o termo espetáculo, tem-se em mente as discussões abertas pelos estudiosos da semiologia do teatro, que têm o olhar voltado para as representações modernas. Será possível, então, aplicar suas teorias a um texto teatral produzido e representado segundo as condições disponíveis no século V a.C.? Acredito serem notáveis diferenças entre o teatro contemporâneo e o teatro produzido então na Grécia antiga, se levarmos em conta os recursos técnicos de que dispõem hoje nossos autores. No entanto, mesmo que aos nossos olhos o teatro grego antigo possa

70

Cf. dois capítulos referentes aos elementos acústicos: “The aural element I: song, music, noises, cries, and silences”, pp. 49-62; “The aural element II: the music of the spoken word”, pp. 63-75; e um capítulo sobre os elementos visuais: “The visual element” pp. 76-90, Greek Tragedy and the Emotions, London, 1983.

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parecer despojado em relação aos recursos técnicos disponíveis hoje, tem já todas as possibilidades de uma montagem teatral, nada ficando a dever a qualquer texto contemporâneo. E não é por acaso que cada vez mais, estudiosos, encenadores, diretores por todo o mundo se debruçam sobre os textos teatrais áticos para neles encontrar uma fonte vigorosa de criação e expressão teatrais. Na apreciação do espetáculo, as dificuldades de um estudioso ante um texto de Ésquilo, Sófocles ou Eurípides são as mesmas que encontra ao se confrontar com um texto de Shakespeare, Gil Vicente ou Brecht. Isso porque, rigorosamente, o espetáculo só existe no momento da encenação. O que sobrevive depois é o texto, e é a partir do texto que uma nova montagem pode ser feita. Note-se aqui que a idéia de se recuperar o teatro grego gerou um dos gêneros mais importantes da música erudita, a ópera72. E mesmo assim, digamos, a ópera foi calcada sobre uma idéia errônea do que foi a tragédia, pois nela não havia só o canto, sendo o acompanhamento musical muito mais simples, não intervindo na modulação dos atores quando cantavam. Ao contrário, ao que tudo indica, o instrumento seguiria o ritmo determinado pela marcação dos versos.73 Penso que, ainda que se cometam enganos, o contato com uma fonte latente de expressão, como o é o teatro grego, sempre pode resultar em algo produtivo e interessante. Nosso próximo passo será examinar, nos textos escolhidos, os elementos de canto e espetáculo, como proposta para uma análise que dê conta da poesia dramática. Partimos da divisão estabelecida por Aristóteles no capítulo XII da Poética: prólogo, párodo, episódios, estásimos, cantos de cena e êxodo.74

71

Cf. “Os Signos do teatro”, de Petr Bogatyrev, O signo teatral. A semiologia aplicada a arte dramática, Porto Alegre, 1977, pp. 15-32. 72 Cf. O Fogo Grego, de Oliver Taplin, s/local, Gradiva/RTC, 1990, pp. 50-61. 73 Cf. “Delivery, Speech, Recitative, Song” The Dramatic Festivals of Athens, de Sir Arthur Pickard-Cambridge, pp. 156-167, para uma completa discussão sobre as partes de ator faladas, recitadas e cantadas e o respectivo acompanhamento musical. 74 Cap. XII, 1452b 14 e sq. Cf. The Stagecraft of Aeschylus, “Apendix E. [Aristotle] Poetics Chapter 12”, para um exame da origem e dos significados dos termos de Aristóteles, pp. 470-479.

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Capítulo II Alceste

A

lceste é o primeiro texto de Eurípides a chegar até nós. Seu interesse para este trabalho reside mais na data de sua apresentação, que está

estabelecida no ano de 438 a.C., do que na discussão sobre ser ou não ser uma tragédia, ou um drama satírico, ou ainda mesmo um drama pró-satírico. Sabe-se , além disso, que ela não é representativa dos primeiros trabalhos de Eurípides, que teria estreado como compositor trágico por volta de 455 a.C.1 Sendo, pois, a primeira peça disponível, será interessante observar sua estruturação dramática, as intervenções do coro e tudo que se relaciona ao espetáculo teatral. Como já foi dito, a peça tem suscitado muitos debates, sobretudo por ser considerada por alguns estudiosos um drama satírico, pela última posição que ocupava na tetralogia apresentada pelo autor. Mas A. M. Dale, em sua edição comentada, apresenta-a como uma peça “pró-satírica”: “Talvez nenhuma outra peça de Eurípides, exceto As Bacantes, provocou tanta controvérsia entre os estudiosos na busca de seu significado real.”2 Dale ressalta ainda a ausência de indicações, nas hipóteses, e em qualquer outro comentário antigo, de que Eurípides teria produzido sua Alceste para ocupar o lugar de um drama satírico, ao final de uma tetralogia. 3 Segundo ela, o tom satírico da peça vem da cena após o funeral de Alceste, com um Héracles comilão e fanfarrão, quase bêbado, uma caracterização de um Héracles típico da comédia. 4 O fato de Alceste ser reconhecidamente um drama pró-satírico, não constitui um modificação muito profunda em sua essência dramática, segundo Dale.5 Albin Lesky, em seu Greek Tragic Poetry, argumenta que, apesar de ocupar o quarto lugar numa tetralogia, isto é, 1

“We know that Euripides made his debut in 455 with a tetralogy to which the Peliades belonged.” Greek Tragic Poetry, de Albin Lesky, p. 208. Para a discussão dos textos anteriores veja-se Euripidean Drama. Myth, Theme and Structure, de D. J. Conacher, Toronto/London, 1967, o capítulo 19 “The Alcestis”, pp. 327-339. 2 Euripides Alcestis, Oxford, 1978, p. xviii. 3 idem, p. xix. 4 idem, p. xx. 5 idem, p. xxi.

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o lugar de um drama satírico, Alceste não seria necessariamente um drama satírico, já que os títulos conhecidos dos dramas satíricos são poucos (menos de vinte e dois) e que as realizações de Eurípides nesse gênero, em relação às de Ésquilo e de Sófocles, eram inferiores6. Para o autor, os estudiosos têm errado ao forçar uma interpretação cômica da Alceste simplesmente pelo fato de ocupar o lugar de um drama satírico. Segundo Lesky, o realce dado às presenças de Morte e de Héracles quase bêbado, foi exagerado: “Alceste é uma tragédia genuína, pelo menos no sentido antigo da palavra.”7 Julgamos suficientes as palavras dos dois estudiosos sobre essa questão e acatamos suas reflexões como ponto de partida para nossa análise. Trabalhamos, então, com a idéia de termos diante de nós o primeiro texto de teatro de Eurípides a permitir uma apreciação em relação à sua produção posterior, não importando sua classificação como tragédia, drama satírico, ou drama pro-satírico. Se o tomamos como tragédia, primeiramente urge verificar sua estrutura. O prólogo é protagonizado por Apolo e Morte (1-76); o párodo é aberto por um coro de velhos cidadãos de Feres, uma cidade da Tessália (77-135) e, ao que tudo indica, está dividido em dois semi-coros; no primeiro episódio, temos uma serva de Alceste que dialoga com o coro, trazendo as últimas notícias dos acontecimentos de dentro do palácio (136-212); o primeiro estásimo é entoado pelo coro (213-243); no segundo episódio Alceste entra em cena entoando um canto e Admeto lhe responde falando (244-272); temos ainda algumas intervenções do coro e um canto do filho de Alceste, numa monodia (393-414) após a morte de Alceste em cena, terminando o episódio com uma fala de Admeto (v. 434); o segundo estásimo, então é entoado (435-475) pelo coro; no terceiro episódio, temos a entrada em cena de Héracles, que se dirige ao coro e depois ao próprio Admeto (476-567); o terceiro estásimo introduz o funeral de Alceste (568-605); no quarto episódio, durante o funeral, temos a chegada de Feres, pai de Admeto, e um a*gwvn trágico e, após o féretro, também Héracles que, a esta altura, já está meio bêbado (606-961); o quarto estásimo prepara a volta de Héracles com Alceste (962-1005); no êxodo, temos a volta de uma Alceste silenciosa, trazida por 6 7

New Haven/London, p. 209. Idem, p. 209.

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Héracles do Hades (1008-1163). Portanto, não é exatamente a estrutura de um drama satírico que temos neste trabalho mais antigo de Eurípides. Ao contrário, como espero demonstrar, trata-se de um espetáculo teatral típico do autor, com todas as particularidades da composição euripidiana, que não poupa esforços em inundar suas peças com personagens que atraem totalmente a atenção do público enquanto estão em cena. Essa dispersão na ocupação do centro da ação tem sido considerada dispersão da ação central, típica em quase toda a obra de Eurípides, até onde podemos constatar pelas peças supérstites. O estudioso G. M. Grube insiste, em sua análise, que a tragédia tem como personagem principal Admeto e não Alceste: “É necessário, entretanto, um alerta geral. Nossa moderna perspectiva romântica é capaz de criar dificuldades ao concentrar atenção na mulher, depois deixar a peça bem fora de foco. Apesar da beleza da cena de morte de Alceste, não é ela, mas Admeto, que é a personagem principal; a tragédia repousa amplamente no conflito das emoções em seu coração, um conflito apresentado com toda a visão psicológica de Eurípides. Se os críticos sentiram algo não satisfatório na personagem de Alceste, é porque eles muitas vezes a lêem erroneamente e forçam sobre ela uma parte de estrela de suas próprias imaginações.”8 Ao contrário do que nos propõe G. M. Grube, uma leitura mais atenta nos levaria a interrogar por que Alceste dá nome à peça. Grube argumenta que o coro da peça, composto por homens, torna improvável Alceste como personagem principal. O que dizer de Hipólito, já que seu coro principal é composto de mulheres de Trezena; e de Orestes, cujo coro é composto de mulheres argivas e mesmo de Medéia, cujo coro é composto de mulheres, que apesar de solidárias com a heroína, são gregas e não estrangeiras? Em Eurípides, a força do espetáculo vem sobretudo dos contrastes por ele estabelecidos em cena. E, como verificaremos, quem confere o estatuto de heroína a Alceste é sobretudo o coro de velhos de Feres, apesar de se manter fiel a Admeto, como no caso do Hipólito, em que o coro de mulheres casadas de Trezena mantém-se fiel e solidário a Fedra, estabelece um contraste gritante em relação ao herói que dá nome à peça.

8

The Drama of Euripides, p. 131.

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Prólogo: vv. 1-76 O prólogo, como de hábito nas peças de Eurípides, exceção feita a Ifigênia em Áulis, começa por um monólogo (de Apolo), seguido de um diálogo (entre Apolo e Morte). Como se sabe, Eurípides não foi o único tragediógrafo a trabalhar com o mito de Alceste. Além de um material tradicional a respeito de Alceste e Admeto e de sua ligação com Apolo, Frínico já havia apresentado uma Alceste, da qual só temos notícias, onde teria introduzido a Morte como personagem em cena. Daí se conclui que essa apresentação da Morte não seria, portanto, uma criação original de Eurípides.9 Variaram muito de época para época as opiniões dos estudiosos sobre a função do prólogo, sobretudo em Eurípides. A. M. Croiset, por exemplo, entre o final do século passado e o começo do século XX, mesmo notando que este tipo de prólogo, encontrado já na primeira peça de que dispomos, é típico de Eurípides, tece o seguinte comentário: “A estrutura de suas peças, sob a influência dos hábitos e das tendências que acabam de ser assinaladas, apresenta algumas particularidades a notar. Uma das principais é o emprego dos prólogos narrativos, atribuídos a um personagem isolado antes do começo da ação É a forma de exposição mais rudimentar que se possa imaginar; não sendo encontrada nem em Sófocles, salvo nas Traquínias, nem mesmo em Ésquilo.”10 Para Croiset, esta apresentação de prólogos narrativos deve-se ao fato de o poeta, nas partes em que a ação se desenvolve, trabalhar mais livremente com as lendas e complicar com êxito as situações dramáticas. As explicações neles apresentadas seriam também necessárias para esclarecimento dos episódios não bem amarrados e para dar ao conjunto uma aparência de unidade.11 Podemos inferir, a partir do que se lê em Croiset, que Eurípides não domina muito bem a arte da poesia dramática. E essa ilação se confirma na afirmação categórica: “Em suma, bem menos imponente que Ésquilo, bem menos harmonioso que Sófocles, ele compensa, 9

Cf. A. M. Dale, Euripides Alcestis, para a discussão sobre os antecedentes mitológicos e literários, pp. vii-xiv, e D. J. Conacher, Euripidean Drama, pp. 327-333; Cf. também de D. H. Conacher, Euripides Alcestis, Warminster, Wiltshire, 2a. ed., 1993, pp. 29-55. 10 Manuel d‟ Histoire de la Littérature grecque, Paris, s/ data, p. 317. 11 Idem, p. 318.

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parcialmente, esta dupla inferioridade pela variedade de suas qualidades, sobretudo por sua liberdade de espírito, pela riqueza infinita de suas emoções, enfim, pela percepção delicada das fraquezas humanas.”12 Croiset tenta preservar Eurípides, ao ressaltar suas qualidades em relação à forma de apresentar em cena as fraquezas humanas e ao estabelecer uma comparação com Ésquilo e Sófocles. Com isso, parece-me estar, na verdade, seguindo de perto a cartilha de Aristóteles, que, embora acuse Eurípides de administrar mal as outras coisas, no que se refere à passagem do infortúnio para a felicidade, reconhece nele o mais trágico dos poetas.13 Gilbert Murray, já seguindo outra linha de abordagem do texto euripidiano, postula: “no começo de cada peça de Eurípides, havemos de encontrar algo que parece deliberadamente calculado para nos ofender e destruir nosso interesse: um prólogo. É uma longa fala com nenhuma ação propriamente dita; e não só nos conta a presente situação das personagens – o que é mais que monótono –, mas também o que vai acontecer com elas – o que nos parece prejudicar o resto da peça. E o crítico escoliasta moderno diz em seu íntimo: Eurípides não tinha nenhuma percepção do palco.” 14 Gilbert Murray faz, é óbvio, uma provocação, usando o ponto de vista mais comum sobre a arte dramática de Eurípides, tal como o de Croiset. Esclarece, em seguida, a necessidade de apresentar no prólogo o que hoje pode ser feito num programa impresso, a ser distribuído antes da representação. Assim, o prólogo apresentaria, ganhando tempo para uma ação tão concentrada como o é a da tragédia grega, as linhas do plano geral da peça, introduzindo as personagens, a situação dramática, mas sem detalhar ou mesmo antecipar como a intriga deveria se encaminhar ao longo dos episódios, já que, muitas vezes, o mito trabalhado em cena também era de conhecimento do público.15 G. A. M. Grube, estudando a obra de Eurípides no seu The Drama of Euripides, tece o seguinte comentário sobre os prólogos em geral: “Os gregos 12

Manuel d‟ Histoire de la Littérature grecque, p. 308. Poética, 1452a 23-30. Como se tem notado, das peças de Eurípides que chegaram até nós, poucas são as que preenchem esse requisto estabelecido por Aristóteles. (Medéia, Hipólito, Andrômaca, Hécuba, Suplicantes, Troianas). 14 Euripides and his age, London, 1955 (reimp. de 1913), p. 135. 15 Idem, London, p. 135-36. 13

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chamavam „prólogos‟ aquela parte do drama que precede a primeira ode coral e o conjunto dessa parte; chamavam „êxodos‟ tudo o que segue à última ode coral. Traduzir isso como „prólogo‟ e „epílogo‟ é confuso, pois as palavras gregas não carregam nenhuma sugestão de que ambos o começo ou o fim não sejam partes integrantes do drama. A confusão é aumentada pelo fato de Eurípides regularmente começar suas peças com um monólogo, que, entre outras coisas, dá uma informação sobre os eventos passados e as circunstâncias presentes de que o espectador necessita para apreciar, no conjunto, a situação representada diante dele.”16 Essa idéia de Grube nos parece a mais correta, se levarmos em conta a composição do espetáculo. Como sabemos, o teatro grego não tinha cortina, era representado a céu aberto. Como iniciar uma peça? Como situar todas as personagens dramáticas? Como situar o público que tem a sua frente uma skené pintada ou não? Como situar os espaços físico e emocional diante dos quais a peça inteira vai se desenrolar? Parece-me ser essa a função primeira dos prólogos de Eurípides, que, de maneira geral, vão seguir regularmente esse propósito. Eurípides jamais vai privar o público das informações básicas, do chão, por assim dizer, sobre o qual caminhará toda a ação dramática. Na Alceste, o prólogo pode ser dividido em duas cenas básicas: 1) o monólogo de Apolo (1-27) e a entrada de Morte (versos anapésticos, 28-37); 2) o diálogo da Morte com Apolo (38-76). Em comparação com o prólogo de Hipólito, este é bastante simples, porém de igual modo eficiente em nos situar no cerne da ação a se desenrolar durante os episódios. Como já se disse, Eurípides não está tentando fazer segredo sobre o que deve acontecer em cena. Sabemos, por exemplo, desde o começo de Medéia, já pela fala da ama, que algo pode acontecer aos filhos da personagem-título, que, desde o início da peça, está tomada pelo ódio17 Sabemos que Hipólito e Fedra, no Hipólito, vão morrer por decisão de Afrodite.18 Talvez se possa pensar numa atitude didática por parte do 16

The Drama of Euripides, p. 63. Veja-se o que Albin Lesky afirma a esse respeito: “This is the oldest example we have of the euripidean prologue speech, in which we can see a resumption of the explanatory introduction invented by Thespis.” Greek Tragic Poetry, p. 209. 17 Cf. Medéia, 36-39; 89-95; 100-110; 112-118. 18 Cf. 1-56.

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compositor, já que tinha liberdade para trabalhar com os mitos a seu bel prazer, necessitando, assim, já no prólogo, deixar bem claro o que se vai desenvolver em cena. Albin Lesky afirma a esse respeito: “O prólogo já prediz o que há de acontecer, mas depois experimentamos duplamente o adeus de Alceste; uma vez, com intensidade emocional, no relato da escrava, depois, racionalmente iluminado, na longa cena com Admeto. O coro faz sua parte para manter o significado central de sua morte sacrificial.”19 G. A. M. Grube nos alerta ainda sobre os monólogos característicos dos prólogos de Eurípides: “nosso estudo das peças mostrará que todos os fatos apresentados nos monólogos são verdadeiros e devem ser tomados em seu valor exterior, incluindo milagres, nascimentos divinos e velhas lendas. Isto é, são verdadeiros para os propósitos do drama e, naturalmente, não no sentido de o dramatista acreditar serem de fato verdadeiros. Isso deve ser assim, pois nossas respostas emocionais à situação dramática elaborada pela peça são amplamente condicionadas por esta sua primeira apresentação.”20 G. M. A. Grube avança um pouco mais na compreensão dos prólogos de Eurípides, pois a levarmos em conta essa sua afirmação, forçoso é detectar, além de um programa prévio do que vai acontecer, também uma ambientação emocional. É no prólogo que o poeta começa a preparar emocionalmente o seu público para a intriga a se desenvolver em cena. Na Alceste, Apolo prologivzei, anotação técnica ao lado do texto, cujo sentido, conforme nos alerta A. M. Dale, é “fala as palavras da abertura” 21. E este prólogo pode ser considerado típico das peças de Eurípides. As informações básicas aparecem já nas primeiras linhas, nas quais podemos identificar o espaço cênico e quem fala: Apolo: Ó palácio de Admeto, no qual eu me resignei a aceitar a mesa servil, mesmo sendo um deus. (1-2)

Apolo, ao abrir a fala, coloca-nos frente ao cenário em que a ação vai se desenvolver durante todo o espetáculo. Mesmo não havendo detalhes, seguramente a 19 20

Greek Tragic Poetry, p. 215. London, 1983, p. 68.

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cena se passa diante do palácio de Admeto. Essa afirmação basta para que saibamos onde se encontra Apolo. Em seguida vem sua identificação, através de uma referência indireta a Asclépio, seu filho, e a Zeus, seu pai, acompanhada da razão para estar ali presente naquele espaço físico (3-9). Se a primeira função deste prólogo é também situar o público em relação à ação propriamente dita, cumpre notar uma outra igualmente importante, a de ainda nos situar quanto ao tempo da ação, ou seja, o dia da morte de Alceste, o que justifica a partida imediata de Apolo (19-22). Mas, inserida a ação no tempo e no espaço, de imediato somos lançados também para dentro do motivo que o traz nesse dia à casa de Admeto, fazendo-nos prever ainda os possíveis desdobramentos dessa situação. Do ponto de vista do espetáculo, ao relatar acontecimentos de um passado remoto, Apolo está criando uma intersecção com o presente. São fatos que se deram antes do que vai ser encenado a partir do “até hoje”. Assim, além de desenhar o espaço físico, sua fala traça também aquilo que podemos chamar de espaço emocional, ou seja, a situação dramática que começa a se desenhar diante dos olhos e ouvidos do espectador. É interessante notar como Eurípides associa, já no prólogo, o mito de Asclépio, que tem como pano de fundo a idéia de renascimento após a morte, com o mito de Alceste, que será trazida de volta à vida. Temos, então, através da fala de Apolo, a reconstituição de uma cena mitológica. Não há aqui esclarecimentos mais detalhados sobre a razão por que Zeus resolve matar o filho de Apolo, (cf. 122-131), mas os relatos míticos, de que talvez o público tivesse conhecimento, apresentam-no como aquele que, através dos conhecimentos médicos adquiridos de Quíron, seu educador, pode devolver a vida aos mortos. Na literatura anterior, encontramos Asclépio citado em algumas passagens da Ilíada, num hino homérico e mesmo numa longa passagem da III Pítica de Píndaro.22 Aqui, porém, abre-se uma questão: o público teria em mente essas passagens da mitologia de Asclépio? O certo é que 21

Euripides Alcestis, p. xl. Il. 2, 732; 4, 194 e 204; 11, 518. Nessas passagens Asclépio é sempre citado como o pai de Macaon e Podalírio, nunca aparecendo como um médico presente em Tróia. Para o hino homérico a Pan, veja Homeri Opera, Oxford, vol. V, “XVI Ei*" *Asklhpiovn”, p. 81. Para a III Pítica, vv. 1-123, cf. Pindarus. Pars Prior, editada por Bruno Snell, Leipzig, 1964, pp. 71-74. 22

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alguma familiaridade com a tradição desse herói, considerado o fundador da medicina pelos gregos, sem dúvida o público já teria. A esse respeito, é contundente a opinião do estudioso inglês Oliver Taplin: “Agora vamos olhar para esse ponto do lado do público. Eles não conheciam a intriga com precisão, pois não sabiam que versão, que variações e inovações o autor usaria - não há dúvida de que eles estariam ávidos em descobrir. Menos ainda saberiam como ele moldaria sua intriga, como a dramatizaria: isso era precisamente o que eles iam ver. Nesse aspecto, o público se aproxima do drama, eu sustentaria, virtualmente livre de preconceitos. Era então a tarefa do dramatista cativar suas mentes, para preenchê-las com o conhecimento, pensamento e sentimentos que ele desejava invocar, pela exclusão de todos os outros. Eis por que a tragédia é mais ou menos auto-contida na narrativa, e inclui até mesmo os fatos mais elementares em sua exposição - o que seria bastante desnecessário se eles „já a conhecessem‟.”23 Mesmo considerando essa ressalva de O. Taplin interessante e importante para a apreciação de um espetáculo tão aberto a possíveis leituras quanto o é a tragédia grega, é possível que Eurípides e também o público tivessem em mente os relatos míticos, que servem como uma espécie de suporte ideológico, como um pano de fundo mesmo, e que deixam sempre presente a idéia de uma possível salvação para a situação presente de Alceste. Não entendo que, tanto pela projeção a um passado remoto como a um futuro mais ou menos imediato, o poeta tivesse intenção de, nos seus prólogos, antecipar a ação. Com as referências ao passado, sabemos apenas as circunstâncias em que a ação vai se dar. Que Alceste vai morrer, sobre isso o prólogo não nos deixa em dúvida (22-27); que pode ser salva, eis um fato que também o poeta deixa claro (6569). A referência a uma tradição mítica, com certeza, adicionaria elementos de expectativa em relação ao espetáculo que, no prólogo, tão-somente ainda se vai esboçando. Não nos esqueçamos de que a figura de Apolo, por si mesma, e de que o debate por ele estabelecido com a Morte, abrem já essa possibilidade. Vale ainda

23

Greek Tragedy in Action, London, 1985, p. 164.

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lembrar também o grande culto que Asclépio recebia em Elêusis, sendo uma das divindades mais populares da Atenas do século V a. C.24 Neste momento da peça, o importante é reter a idéia de salvação que Asclépio representa. Diretamente ligado a Apolo, ele é portador da possibilidade de salvação para Alceste, gerando, dentro da economia do espetáculo, certa expectativa sobre quem poderia salvá-la. Mas caberá a Héracles resgatá-la do reino dos mortos, como recompensa pelo favor da hospitalidade de Admeto, e não a Asclépio, que aqui só é evocado talvez como um modelo a ser seguido.25 Para que se torne bem clara a ambientação da ação, a construção espacial é tão importante, que reiteradamente se repetem os termos relativos ao espaço físico no prólogo: (dwvmat’, 1; toVnd’ oi^kon, 9; kata’ oi!kou", 19; e*n dovmoi", 22; melavqrwn tw~nde... filtavthn stevghn, 23; melavqroi", 29; toi~sdeV...oi!koi, 41; proV" dovmou", 65; e&n *Admhvtou dovmoi", 68).26 Além da função clara de situar o público em relação ao espaço dramático, como é costume na tragédia ática, tem outras implicações a menção reiterada ao palácio, à casa de Admeto. Tal como postula G. M. A. Grube, a morte de Admeto poderia significar a ruína de seu palácio e, por conseguinte, de sua descendência.27 Ao situar-nos diante do palácio de Admeto, isto é, diante do espaço em que toda a ação vai se desenvolver, também nos situa diante de seu poder real. Esse é um ponto em que pouco se tem tocado, quando se considera o conjunto da peça; mas a manutenção da casa, com todas as suas implicações, aparece nas falas de Alceste, nas do filho e mesmo no agón com o pai. O tema está intimamente ligado, pelo viés de Alceste, a seu casamento e, por conseguinte, a sua descendência. Sua morte nos trará a oportunidade de apreciar um pouco mais de perto o “interior” da casa. 24

Cf. para uma apreciação mais detalhada do culto a Asclépio: “Asclépio”, A religião grega na época clássica e arcaica, pp. 415-18. Por volta de 420, Sófocles cria um thíasos ao herói, talvez devido a praga que assola Atenas. Cf. W. B. L. Wesbster, Introduction to Sophocles, Oxford, 1936, p. 14. 25 A referência a Asclépio (4-5) e depois indiretamente a Héracles antecipa, de modo indireto a salvação de Alceste, no final da peça. cf. A.M. Dale, para a atencipação, nos versos 65-71, da salvação de Alceste, Euripides Alcestis, p. 57. 26 Cf. sobre o palácio nas tragédias: “A propos du décor dans les tragédies d‟ Euripide”, de Jeanne Roux, REG, nº 74, (1961), pp. 25-60. 27 The Drama of Euripides, p. 129-30.

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O prólogo nos situa ainda com relação ao tema central da peça, que é a substituição de Admeto por sua esposa no dia marcado para sua morte. Assim, sabemos, é esse o tempo da ação, o dia da morte do substituto de Admeto é hoje, neste dia (tovd’ h&mevra", 9). Este instante (th~/de... e*n h&mevra/, 20) será um pouco prolongado, aberto ao público pela agonia de Alceste, que a ama se adianta em nos relatar já no primeiro episódio. Depois essa agonia se prolonga com Alceste em cena, em seus últimos momentos. No prólogo, a ênfase recai sobre o dia marcado (nu~n, 9; th~/de...h&mevra/, 10) e Apolo dá todas as informações necessárias para que se esclareçam os acontecimentos que o geraram (cf. 10-21). Assim, no breve relato de Apolo, temos toda a situação anterior ao dia de hoje: a busca que realiza após a barganha com a morte e a recusa de todos em aceitar morrer, no dia marcado, no lugar de Admeto. Também, através desta fala de Apolo, temos a construção das primeiras imagens de uma longa agonia, que vai tomar conta da primeira parte e ligá-la a todas as cenas do restante da peça. Essa passagem do prólogo também é importante para o desenho que se começa a fazer da personagem de Admeto. Para Apolo, Admeto é um homem virtuoso (o@sio", 10), isto é, sua conduta em relação ao deus está dentro dos parâmetros das leis divinas e humanas. Mas nossa atenção e nossa simpatia não vão ser direcionadas para Admeto, como quer Grube, mas sim para aquela que hoje deve morrer. A entrada da Morte em cena é marcada primeiro por dois gritos (a^ a^^, 28), um de surpresa e outro de furor pelo encontro com Apolo, seguidos de versos anapésticos (29-37), não necessariamente cantados. Tais versos, como sublinha F. Duysinx, marcam as entradas e as saídas das personagens no teatro grego.28 Em relação aos objetos de cena, neste prólogo, temos os mencionados pela Morte: o arco e as flechas de Apolo (cevra toxhvrh, 35; tiv dh~ta tovxwn e!rgon, 39) e a espada da Morte (xivfei, 74; e arma toVd’ e!gco". 76), não havendo, no entanto, detalhes sobre as vestimentas.29 28

“Les passages lyriques dans l‟ Alceste d‟ Euripide”, L‟ Antiquité Clássique, 31 (1962), p. 193. A Morte entra em cena (28-37) vestindo negro, embora a única referência a suas vestes só apareça nos versos 84344 (e*lqwVn d’ a!nakta toVn melavmpeplon nekrw~n / Qavnaton fulavxw), pode ainda estar adornada com asas, se aceitamos a associação não comum de Morte com Hades (cf. pterwtov", 261). Cf. A. M. Dale: “Thanatos appears (tovnde), a black-robed (843), winged (261) figure with a sword (74). There is no suggestion in the text of a 29

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Convém ressaltar, todavia, que, numa representação “realista”, o ator incumbido de representar Apolo estaria munido do arco e das flechas, objetos característicos e mesmo identificadores do deus. Um outro objeto para identificá-lo, e que aparece mencionado no terceiro estásimo, é a cítara (saVn kiqavran, 583). A Morte, por sua vez, traria sua espada. Neste particular, qualquer comentário tem que estar baseado nas convenções teatrais da tragédia ática, ainda que se considerem outras possibilidades de representação.30 A referência ao arco e à espada referendam, no texto, o espetáculo a ser visto, o que, mais ou menos, corresponderia à rubrica num texto teatral contemporâneo. Mais ou menos, porque as implicações dramáticas desses objetos de cena ultrapassam a mera indicação secundária num texto. Eles ajudam também na composição da personagem: o arco e as flechas de Apolo prefiguram a proteção do deus à casa de Admeto, enquanto a espada da Morte prefigura o ato violento de, sem nenhuma piedade, ceifar a vida, no caso, a vida de Alceste.31 O prólogo termina com Apolo abrindo a possibilidade de Alceste ser salva da morte, uma expectativa que vai ocupar um bom tempo do espetáculo, até que sua morte se consuma como um fato irreversível, antecipando a vinda de Héracles: Apolo: Com certeza, tu serás detido, mesmo sendo cruel em excesso. Virá um tal homem à casa de Feres, quando Euristeu enviá-lo com uma parelha de cavalos das regiões tempestuosas da Trácia, que, sendo recebido nesta casa de Admeto, arrancará de ti esta mulher à força. (64-69)

supernatural manner of entrance. Since Heracles is to wrestle with and overthrow him, he is not represented as majestic infernal Power but as an ogreish creature of popular mythology, like Charon with whom he is later confused in textual tradition (see the Dramatis Personae), snarling malignantly at Apollo, who treats him with a light disdain.”, Euripides Alcestis, p. 54. No verso 843, Héracles refere-se à Morte no Hades, não necessariamente à que apareceu em cena no prólogo; no verso 261 é Alceste que a descreve em seu “delírio”. 30 Cf. Aspects of Euripidean Tragedy, de L. H. Greenwood, Cambridge, 1953. Sobretudo o capítulo V “Realism and Greek Tragedy”, pp. 121-141. 31 Oliver Taplin assinala: “A wedding ring, a lock of hair, a jester‟s skull, a hollow crown, a handekerchief spottet with strawberries. Ain in a society which is bound about by roles and cerimonies, like that of the Greeks, symbols of

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A Morte não se dá por vencida; o prólogo fecha-se com seu pronunciamento categórico: Morte: Ainda que falasses muito, nada mais levarias; a mulher descerá ao palácio de Hades. Aproximo-me dela, para começar o sacrifício com a espada, pois é consagrado aos deuses sob a terra aquele de cuja cabeça esta arma purifique os cabelos. (72-76)

O gesto de cortar os cabelos, sugerido pela Morte com dois termos vindos do universo do sacrifício religioso (katavrxwmai, 74; a&gnivsh/, 76), é o primeiro signo efetivamente fúnebre, a ligar a morte a um ato sacrificial. A. M. Dale anota: “74 em diante parece mesmo sugerir que sua função principal é atuar como um sacerdote, oficiando a cerimônia de morte i&ereuV" qanovntwn, consagrando a vítima pelo corte simbólico da mecha de cabelo e arrastando-a para o mundo inferior.”32 Rush Rehm, em um estudo que relaciona diretamente o imaginário do casamento ao da morte, afirma: “Um paralelo interessante pode existir entre carpideiras cortando seus cabelos e a ação semelhante durante o sacrifício ritual, quando um sacerdote corta uma mecha do animal a ser morto, para demonstrar seu consentimento em morrer. Ao partilhar seu cabelo ou ao oferecer uma mecha num túmulo, as carpideiras podem indicar seu consentimento em confiar o morto ao outro mundo.”33 Lembremo-nos também do corte de uma mecha de cabelos e seu oferecimento em memória de Hipólito, feito pelas jovens no dia do seu casamento. A instituição é estabelecida por Ártemis em honra ao seu dileto cultuador34 e liga a virgindade do jovem, que ocasiona sua morte, por isso mesmo, à despedida das jovens nubentes de sua virgindade. Assim, o gesto simbólico do corte do cabelo parece estar inserido num quadro ritual de despedida um pouco mais amplo, que aproxima de maneira paradoxal o ritual do casamento com o do ritual fúnebre. No casamento, ao abandonar o mundo de seus pais, sua família, suas status, gifts, keepsakes, heirlooms, works of art have an especially prominent place as miniature repositories of huge associations (...)”, “Objects and tokens”, Greek Tragedy in Action, p. 77. 32 Euripides Alcestis, Oxford, 1978, p. 54. 33 Marriage to Death. The Conflation of Wedding and Funeral Rituals in Greek Tragedy, Princeton, 1994, p. 26.

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companheiras, para ir a um mundo estranho e a uma nova casa, à de seu marido, que também é um estranho, a oferta de uma mecha de cabelo parece sinalizar o abandono de seu mundo virginal35. G. Duby e M. Perrot assinalam: “A moça jovem paga de alguma maneira um tributo à divindade pelo viés de sua oferenda. Ao abandoná-la, essa parte dela mesma, às vezes ela se “devota” - isto é, oferece sua vida e, por esta morte simbólica, libera-se para nascer para sua vida de esposa. O destino dos jovens heróis intercessores sublinha esse valor de morte iniciática.”36 Veremos, mais adiante, como Alceste explicita de maneira cristalina a estreita relação entre o casamento e a morte. A morte, representada pela Morte, insere-se no domínio do sagrado e seria, portanto, irreversível. É apresentada como um sacerdote prestes a realizar um sacrifício semelhante ao realizado com animais. É só nesse contexto que entendemos o ato sacrificial de Alceste, pois não é comum no mundo grego o oferecimento de seres humanos aos deuses, e muito menos a outro ser humano. No entanto, o tom irônico de Apolo, ao dirigir-se à Morte, atenua um pouco a gravidade de sua presença em cena. Assim, Apolo e Morte, cada um figurando também uma possibilidade de desenlace do que ainda está por se encenar, põem-nos diante da casa de Admeto, no último dia de vida de Alceste. Com essa abertura, marcada pela presença de duas divindades que se opõem, o poeta situa-nos também diante do conflito que haveremos de presenciar durante o restante do espetáculo: a encenação da morte de Alceste e a sua volta à vida, com todas as ambigüidades que essas duas situações limite podem gerar. Toda a concentração dramática, portanto, centra-se neste dia, o último em que ainda Alceste pode fazer uso da palavra.

Párodo: vv. 77-135 Apolo sai de cena e Morte entra na casa de Admeto. Em seguida, o coro composto pelos anciães da cidade de Feres instala-se na orquestra, cantando e

34

Cf. Hipólito, 1423-1430. Cf. “Dans l‟ oikos”, Histoire de Femmes en Occident. L‟Antiquité, Paris, Plon, 1991, pp. 386-389. 36 Idem, p. 388. 35

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dançando o párodo. É a primeira participação dessa personagem representante de um conjunto da cidade, que é caracterizado pela serva, no primeiro episódio, como um antigo amigo da casa de Admeto (suV d’ ei^ palaioV" despovtai" e*moi~" fivlo", 212) e esta é a única referência que temos sobre a identificação do coro no texto. A estudiosa A. M. Dale nota que o coro, além de não se identificar, tampouco explica sua presença em cena; a idéia de que se componha dos velhos de Feres aparece num dos manuscritos, com a anotação de que o coro estaria subdividido em dois semi-coros, o que não é comum nas tragédias.37 A questão parece de difícil solução a partir dos manuscritos, entretanto, se pensarmos no jogo cênico oriundo das partes recitativas e das partes cantadas, é interessante que haja a divisão do coro em dois semi-coros, já que o tom geral deste párodo é marcado pela falta dos signos de morte na casa de Admeto e pela certeza de não haver como Alceste escapar do dia fatal.38 Para G. M. A. Grube, há sempre uma ligação do coro com a personagem principal e, quando isso não ocorre, o coro seria solidário com outra personagem, que passaria a ser o herói central. No caso dessa peça, a solidariedade do coro se manifesta para com Admeto: “O conflito trágico não é entre Alceste e Admeto, nem deveria a simpatia muito forte dos velhos pelo seu rei ser interpretada como de alguma forma hostil a sua esposa. Ao contrário, suas canções estão cheias de louvor a ela. Entretanto, Admeto, não Alceste, é a personagem principal, e, no começo da peça, é o coro, e somente o coro, que mantém a tristeza de Admeto diante de nós. Um grupo de velhos é também muito mais adequado, após a morte de Alceste, na chegada de Héracles, durante a cena com Feres, e acima de tudo, ao partilhar o lamento do rei em seu retorno.”39 No Hipólito temos uma situação semelhante: a personagem principal é, sem dúvida, o jovem devoto de Ártemis e o coro da peça é composto por mulheres casadas de Trezena. Se, por um lado, após a morte de Alceste, um coro de velhos se revela mais adequado, por outro, do ponto de vista dramático, é interessante que se tenham em cena 37

Euripides Alcestis, pp. 58-59. F. Duysinx apresenta a seguinte divisão entre recitativos e cantos: a) recitativos: 77-85; 93-97; 105-111; 131-135; b) canto: 86-92; 98-104; 112-121; 122-131. Cf. “Les passages lyriques dans l‟ Alceste d‟ Euripide”, L‟ Antiquité Classique, 31, (1962), pp. 195-201. 39 The Drama of Euripides, p. 101. 38

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elementos de oposição. Será que um coro de anciãs aceitaria com tranqüilidade o gesto supremo de Alceste, uma vez que a decisão de morrer no lugar do marido de alguma forma viola a sucessão natural dos acontecimentos da vida? Se Alceste não é a personagem principal em ação, sua decisão de morrer pelo marido torna-a o centro das atenções e tudo na peça volta-se para ela, toda a ação dramática centra-se em seu gesto caracterizado como glorioso. Toda a peça está voltada para a decisão de morte de Alceste e, com a vinda de Héracles em cena, aos poucos se dirige para a nova vida da heroína.40 Se no prólogo fomos levados ao local em que a ação dramática deve se desenvolver, já no párodo temos o detalhamento mais claro desse espaço, marcado pela ausência dos signos habituais da morte. O tom geral do canto é o da dúvida, se Alceste vive ainda ou se já morreu. A primeira observação do coro constata o silêncio diante do palácio de Admeto: Semi-coro: - Por que essa calma diante do palácio? Semi-coro: - Por que a casa de Admeto silenciou? (77-78)

A calma e o silêncio na casa de Admeto impossibilitam o coro de perfazer os ritos de luto (penqei~n, 81), podendo Alceste ainda estar viva (h# zw~s’ e!ti, 81). A ausência de ruídos que possam identificar a morte continua a ser explorada pelo coro: Coro: Alguém ouve ou o gemido ou a batida das mãos dentro da casa, ou lamentos: tudo já aconteceu? (86-88)

Faltam os ruídos habituais quando se tem um morto em casa: lamentos, autoflagelação e choro. Essa forma de lamento é encontrada sobretudo em relação aos nobres mortos, os guerreiros. Da ausência de ruídos, os signos da ausência de um morto no palácio passam para a ausência da performance dos rituais religiosos devidos aos mortos. Para o público, a ausência das celebrações fúnebres estabelece a ausência 40

Cf. D. J. Conacher, Euripidean Drama, p. 328, para o tratamento do mito do auto-sacrifício de Alceste, registrado apenas na Alceste, de Frínico, combinado com o mito de Apolo e Admeto.

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de uma marca plástica, digamos assim, ou seja, ausência de objetos que indiquem a efetiva ocorrência da morte e tudo o que ela exige em termos de ritual. Portanto, a esta ausência de elementos plásticos corresponde também a ausência de performance fúnebre, que inclui o ritual de auto-flagelação. Nesse passo, o canto do coro evoca imagens semelhantes às figuras encontradas nas crateras funerárias do século VIII a.C., nas quais se vê um conjunto de carpideiras (um coro) com gestos rituais em torno de uma essa com um cadáver.41 Num dos fragmentos de Safo, temos a sugestão de Afrodite para que um coro de moças realize a performance devida a um morto42: Coro A:- Está morrendo, Citeréia, o delicado Adônis, que devemos fazer? Coro B - Batei no peito, meninas, e rasgai as túnicas.

Assim, ao ressaltar os signos que faltam ao momento, no dia marcado, o coro ressalta também as formas, já cristalizadas no mundo grego, do ritual fúnebre: semi-coro: Não vejo diante dos portas uma água lustral das fontes, como é costume nas portas dos defuntos.

semi-coro: E nenhuma mecha de cabelo diante da entrada, cortada na dor pelos mortos; dentre mulheres as jovens não batem a mão no peito. (98-100)

A água lustral na porta do morto está relacionada com os ritos de purificação que envolvem tanto o nascimento como a morte, os dois extremos da vida humana. O corte de uma mecha de cabelo, tanto do morto, assinalado no prólogo pela própria Morte (74 e 76), assim como o corte de cabelo dos parentes, marcam o rito de passagem para o outro mundo e o elo entre os que aqui ficam. O estudo de Rush Rhem Fifth-Century Marriage and Funeral Rites esclarece um pouco mais sobre essas 41

Temos em mente sobretudo a Ânfora funerária do Dypolon, atribuída a um Artista ático, séc. VIII a.C e a Cratera Funerária com prothesis e desfile de carros, também atribuída ao Artista ático, séc. VIII a.C. Cf. as imagens dessas figuras no Atenas, o Museu Arqueológico Nacional, São Paulo, 1980, pp. 56-61.

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práticas: “Carpideiras vestiam preto e cortavam curto os cabelos quando prestavam suas homenagens ao morto. Durante essas visitas, as mulheres da família cantavam hinos fúnebres lamuriosos. Na pintura dos vasos e placas funerárias, mulheres estão de pé junto ao cadáver na extremidade do leito, quando batem na cabeça ou no peito, dilaceram suas faces ou arrancam seus cabelos, atividades convencionais de carpideiras femininas. Às vezes, uma mulher segura o falecido em suas mãos, o mesmo gesto usado pela Tétis de Homero com seu filho morto, Aquiles (Il. 18. 71); pelo próprio Aquiles, com Pátroclo (23, 136-37) e com Heitor morto (24, 712, 724). Quando presentes na cena, os homens freqüentemente levantam a mão direita com as palmas para fora ou exibem um braço curvado com a palma da mão sobre a cabeça ou perto dela, gestos repetidos nos vasos e nas esculturas tumulares que mostram homens em procissão - tanto a pé como à cavalo - em direção ao túmulo.”43 São gestos e atitudes rituais esperados, em homenagem ao morto, e que estão ausentes nesse momento. O olhar curioso do coro, neste párodo, não se restringe à procura de alguma evidência de que Alceste já esteja morta. Da expectativa de encontrar nas proximidades da casa algum amigo (a*ll’ ou*deV fivlwn pevla" ou*deiv", 79) ou algum dos servos junto à porta (ou*deV ti" a*mfipovlwn stativzetai a*mfiV puvla", 89-90), o coro passa também à invocação a Peã, na primeira estrofe: Coro: (...) Oxalá como um alívio da fatalidade apareças, ó Peã! (90-92)

Peã é associado a Apolo e Asclépio, em seu aspecto de cura. Na Ilíada, ele já figura como médico de Hades. Também o termo designa os cantos encantatórios usados para provocar a cura.44 Na segunda antístrofe, Asclépio é citado nominalmente como o único a poder salvar Alceste do Hades (122-27), porém o coro, complementando o que Apolo já havia afirmado no prólogo (3-4), sabe ter sido ele 42

Cf. Sappho and Alcaeus, editado por Denys Page, Oxford, 1970, p. 127. Marriage to Death, pp. 22-24. 44 Cf. Il.V 401; 899-901, Odiss. IV, 231-233. Cf. para as associações de Apolo, Peã e Asclépio, Religião grega na época clássica e arcaica, “Apolo”, p. 288, também “Asclépio”, p. 415-418. 43

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capturado por um dardo do raio de Zeus, deixando de poder contar com essa expectativa (128-31). Se no prólogo o poeta abre uma possibilidade de salvação para Alceste com a vaga menção à vinda de Héracles, aqui, no párodo, cada uma das possibilidades vai sendo desfeita (107-111). Embora os sinais de luto ainda não estejam evidentes, o dia fatal é hoje (kaiV mhVn toVde kuvrion h^mar, 105). O coro não conta mais com a possibilidade do envio de uma nau para consulta aos oráculos das regiões mais distantes, como o de Patara, na Lícia (112-13) ou o de Zeus Amon, na Líbia (115-16), talvez os oráculos mais distantes que os gregos conhecessem45, para libertar Alceste, evocada sob o adjetivo desafortunada (dustavnou, 117); o destino inevitável aproximase (118-19). Assim como o coro não tem mais nenhum altar de sacrifícios a que possa se dirigir (119-21), Admeto cumpriu todos os sacrifícios a todos os deuses: Coro: Todos os rituais já foram realizados pelo rei, nos altares de todos os deuses há oferendas cheias de sangue aspergido; Não há nenhum remédio para os males. (132-35)

Com essa fala, o coro encerra sua primeira interferência na peça. 46 Como é mais comum na tragédia, a passagem do párodo para o primeiro episódio é marcada por uma fala do corifeu, anunciando a entrada em cena de uma nova personagem. Há, com isso, uma interrupção do canto e da dança, e o anúncio é feito para que o público identifique a personagem, marcando assim um novo movimento da peça: Corifeu: Mas eis que uma das companheiras sai do palácio vertendo lágrimas; que acontecimento ouvirei? É desculpável sofrer, se algo atinge por acaso os teus soberanos; mas, se ainda está viva a mulher ou se já morreu, queremos saber! (136-140)

45

Cf. Religião grega na época clássica e arcaica, “Oráculo”, p. 233. “Remarquons l‟ effect funèbre des quatre longues sucessives au vers 134 (ai&morrantoi)”, F. Duysinx, “Les passages Lyriques dans l‟ Alceste d‟ Euripide”, p. 201. 46

57 Canto e Espetáculo em Eurípides

Primeiro episódio: vv. 136-212 A entrada de uma serva do palácio em cena, com seu relato minucioso sobre o último dia de Alceste viva, tem uma função dramática importante: confirmar a ambigüidade de uma morte esperada, mas que ainda não ocorreu, explicando, de alguma forma, a ausência de todos os sinais de luto e dos ritos fúnebres, uma vez que Alceste ainda vive. Também prepara o público para a entrada em cena de uma Alceste agonizante. As primeiras palavras da serva são dirigidas ao corifeu: Serva: Podes dizer que está tanto viva quanto morta. Corifeu: E como então morre e ao mesmo tempo vive? Serva: Já está desfalecida e expira . Corifeu: Ó infeliz, que homem sendo te privas de tal mulher! Serva: Não sabe ainda isso o soberano, antes de sofrê-lo. Corifeu: Não há mais uma esperança de salvar a vida? Serva: Mas o dia marcado está forçando. Corifeu: E não se fazem para ela os preparativos? Serva: O paramento já está pronto, com que o marido a enterrará.(141-49)

Neste episódio, desaparece a dúvida sobre Alceste ter ou não morrido, embora o corifeu insista em postular a esperança de salvação (e*lpiV" swv/zesqai bivon, 146). A idéia do kuvrion h^mar é retomada pela serva (peprwmevnh gaVr h&mevra biavzetai v. 147; e*peiV gaVr h!/sqeq’ h&mevran thVn kurivan /h@kousan, 158-9) e faz ressoar uma declaração anterior do coro, quando de sua entrada em cena (cf. 105). Como notou Charles Segal, Alceste combina o papel tradicional da mulher, o de esposa devotada e o de mãe, com elementos do heroísmo masculino, justamente por ter também, a seu modo, o dia fatal.47 A seqüência rápida de perguntas e respostas entre a serva e o líder do coro leva-nos ao ponto mais interessante dessa breve esticomitia: apresentar a decisão de Alceste, de morrer pelo marido, como a mais alta aristeia a que uma mulher poderia

47

“Admetus‟ divided Houses: Spatial Dichotomies and Gender Roles”, Euripides and the Poetics of Sorrow, Durham/London, 1993, p. 74-75 e seqüência.

58 Canto e Espetáculo em Eurípides

chegar. Os termos usados, tanto pelo corifeu como pela ama, retomam a consideração já formulada no párodo ( !Alkhsti", e*moiV pa~si t’ a*rivsth/ dovxasa gunhV, 83-84): Corifeu: Que ela saiba que é uma morta gloriosa e a melhor mulher das que estão sob o extenso sol! Serva: Como não ser a melhor? Quem negará? O que deve ser a mulher excepcional? Como alguém provaria mais honrar o marido do que querer morrer? E isso a cidade inteira já sabe. (150-156)

E não deve causar estranheza que a serva, em seu longo relato, semelhante aos relatos de mensageiros que normalmente são apresentados no final da ação dramática, apresente para o coro e para o público o local onde essa aristeia de Alceste tem seu epicentro: o quarto e a cama. Mas, antes de apreciarmos um pouco mais de perto o interior da casa, os últimos momentos de Alceste e sua despedida dolorida do leito, metáfora de seu casamento com Admeto e de sua ruína (176-180), vejamos alguns pontos interessantes de como o corifeu e a serva preparam antecipadamente o perfil dessa personagem, que entrará em cena apenas para agonizar, morrer e, dentro do espetáculo criado por Eurípides, se calar para sempre, ainda que seja trazida de volta à cena rejuvenescida.48 Ao contrário do que postula G. M. Grube, que pensa ser Admeto a figura central da peça, é para Alceste que nossa atenção vai sendo dirigida num crescendo de intensificação dramática. Embora Apolo o tenha apresentado como virtuoso (o@sio"), a figura que Eurípides desenha ao longo da peça é a de um homem inseguro, que não recusa, mesmo perdendo a mulher, salvar sua própria vida, e, mesmo tendo jurado jamais receber outra mulher em seu leito, hesita, aceitando no final da peça a oferta de Héracles. A construção da figura de Alceste, ao contrário, cresce ao longo das cenas. No prólogo, é a favor dela que Apolo tenta negociar com a morte, certamente pelos laços de amizade com Admeto. Afinal, o deus foi recebido em sua casa, e, no mundo 48

Cf. C. Segal, Euripides and the Poetics of Sorrow, “Female Death and Male Tears”, p. 53.

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grego, ao que tudo indica, a casa, e tudo que ela contém, pertence ao marido. A ausência de signos fúnebres, bem marcada no párodo, pode parecer uma negligência da parte de Admeto (cf. 96-97) em relação à morte de Alceste. Mas, com a entrada da serva, essa ambigüidade se dilui, porque Alceste ainda vive. Neste primeiro episódio, vemos que as possibilidades de salvação, insinuadas no prólogo e desejadas no párodo, também se desfazem por completo. A serva, como as amas costumam ser em Eurípides, é pragmática e objetiva. Faz entender que, embora não tenha morrido ainda, Alceste já está em processo de desaparecimento do mundo dos vivos, tudo estando pronto para esse desfecho do dia fatal. Também confirma, com seu relato, a aristeia de Alceste: Serva: Que te admires ao ouvir o que ela fez no palácio! (157)

Com essa exclamação da serva, que a seguir passa a relatar os últimos atos de Alceste, cria-se uma atmosfera de admiração, necessária para angariar cada vez mais a simpatia do público. A serva torna-se quase uma protagonista. Através de seu relato, vamos entrando num espetáculo dentro do espetáculo. Ela passa a representar Alceste, reproduzindo as palavras de sua rainha. Não há, evidentemente, movimentação cênica durante a narrativa, a não ser a possibilidade de a serva, além das palavras, imitar também os gestos de Alceste, o que não se referenda no texto; seu olhar, porém, é meticuloso e invasivo. O poeta não esclarece como a serva teria visto os mínimos detalhes, isso não interessa ao espectador; o que interessa é fazer com que mergulhemos nossa imaginação nas preocupações de Alceste. Todos os detalhes, todos os movimentos de Alceste são importantes para que se entenda sua decisão. Assim, dentro da fala da ama, temos uma descrição de movimentações cênicas, típicas do texto narrativo, de um espetáculo a que não podemos assistir por se passar no interior da casa, o qual nunca era representado na tragédia ática. Dentro da economia do espetáculo, essa descrição é importante, pois põe o público em contato com acontecimentos extra-cena, vivificados pela teatralização da serva. A tensão dramática começa a aumentar com esse relato, comparável aos movimentos de uma câmera a seguir seus passos por dentro da casa. Primeiramente

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aparece o banho ritual e a paramentação, gestos rituais preparativos comuns tanto à nubente quanto ao defunto (158-161). Os rituais matrimoniais continuam com a prece a Hestia, cujo altar está colocado no centro da casa, um espaço que se relaciona ao casamento justamente por ser o ponto inaugural de um novo lar. E, é claro, na prece pronunciada neste ponto central, o que aparece é justamente a preocupação de Alceste com o destino matrimonial de seus dois filhos (162-169). O caráter heróico de Alceste aparece quando vai a todos os altares da casa, levando suas oferendas, sem choro, sem gemido, sem perder a cor diante da aproximação do mal, que sabemos, é a morte (17074). É a imagem de uma mulher firme, decidida, que a serva apresenta. No entanto, quando chega ao quarto, lá sim, cede ao choro e ao sofrimento (175-76). Temos, então, a revelação das motivações de Alceste em seu gesto de bravura feminina: ela teme a traição (177-182). Portanto, Alceste decide morrer para não trair o leito e o marido (prodou~nai gaVr s’ o*knou~sa kaiV povsin/qnhv/skw, 180-81). G. M. Grube percebe o peso do termo: “Note a repetição de prodou~nai „trair‟; é uma palavra forte. Alceste usou-a em seu quarto nupcial, mas num sentido oposto; para Admeto significa que ela não deve deixá-lo. Ouviremos essa palavra novamente.”49

Se Alceste decidisse

também não morrer no lugar de Admeto, ficaria viúva e teria que aceitar outro marido, mas essa idéia só vai aparecer no diálogo entre ambos. O temor da possibilidade de trair o marido é a chave de sua aristeia. Sua dor maior centra-se no leito, local em que Alceste não poupa lágrimas e lamentos (183-88). Alceste sabe que de alguma forma vai ser substituída por outra mulher (181-82). As cenas seguintes, relatadas pela serva, intensificam o caráter patético do momento. Os filhos agarrados às vestes da mãe (189-90), a despedida afetuosa aos servos (192-195), concluem a focalização dos últimos gestos de Alceste dentro da casa. e, agora sim, Admeto aparece na fala da serva, como se, pelo fato de escapar da morte, estaria sendo punido com uma dor inesquecível (196-98). Como Admeto é mencionado, o corifeu imagina o sofrimento de Admeto e sua reação diante dos males

49

“Alcestis”, The Drama of Euripides, London, 1973, p. 133.

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(199-200). O verbo prodou~nai aparece pela segunda vez (202), com um sentido ambíguo, entre os campos semânticos do abandono e da traição: Serva: Chora com a querida esposa nas mãos, e roga que ela não o abandone, buscando o impossível. Porque ela agoniza e se consome na doença, desfalecida, um peso infeliz nas mãos. (201-4)

Como Alceste poderia estar abandonando Admeto, se morre justamente por ele? Com a morte de Alceste, Admeto está livre para contrair novas núpcias, uma hipótese presente na fala de Alceste reproduzida pela ama (seV d’ a!llh ti" gunhV kekthvsetai, 181) e que deve tornar a aparecer ao longo da peça. Após relatar um pouco mais os últimos momentos de Alceste dentro da casa, a ama relata o seu último desejo: contemplar a luz do sol pela última vez (205-8), o que justifica sua saída de dentro do palácio no próximo episódio. A ama retira-se de cena, indo anunciar a presença solícita dos velhos de Feres, amigos dos senhores da casa (209-12). Nas últimas palavras da serva, de maneira sutil, numa formulação genérica, aparece a possibilidade de Admeto não estar sendo bem visto pela comunidade (21011). A. M. Dale descarta qualquer possibilidade de se levantar tal hipótese, argumentando servir apenas à caracterização do coro50. De fato, o coro é solidário com Admeto, em momento algum faz qualquer objeção à sua decisão de se deixar substituir por Alceste. No entanto, não deixa de sublinhar o máximo possível o ato heróico de Alceste, expresso mesmo pela falta das honras fúnebres necessárias, no párodo, quando ainda não tinha certeza da consumação da morte de sua rainha. Com a notícia da serva de que Alceste vive, o clima de expectativa perdurará ainda no primeiro estásimo.

Primeiro estásimo: vv. 213-237 A serva, ao sair de cena, deixa o coro sozinho. É o momento para que se inicie o primeiro estásimo, ou seja, o primeiro corte no andamento da ação dramática. Este 50

“It is making too much of these lines to see in them an indication of Admetus‟ unpopularity with his disaffected subjects. Rather do they serve to characterize the chorus.” Euripides Alcestis, Oxford, 1978, p. 67.

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primeiro estásimo de Alceste é relativamente curto51, e está intrinsecamente ligado a tudo o que já foi apresentado em cena antes. Parece-me que este estásimo tem a função de elevar ao máximo a expectativa do público, pois, na cena seguinte, Alceste inicia sua intervenção no espetáculo, cantando no mesmo tom do coro. Portanto, não há uma interrupção propriamente dita entre um e o outro. Albin Lesky nota que, neste par de estrofes, na primeira stanza, um pedido tímido aos deuses é seguido de um desespero profundo52, que o poeta, através do canto e da dança, desenvolve a atmosfera criada pelo relato da ama e depois prepara o clima para o episódio seguinte.53 É preciso acentuar que, apesar de breve, este primeiro estásimo é, em termos de espetáculo, bastante interessante, pois, além do canto do coro, este pode se dividir em dois semicoros, como acontece no párodo. Além disso, em determinados movimentos da ode, o corifeu falaria, ao invés de cantar.54 Assim, a levar em conta as sugestões de A. M. Dale, na primeira estrofe temos dois semi-coros. O primeiro semi-coro entoa uma mistura de prece e dúvida (213-14). O outro semi-coro mantém a expectativa de salvação; por sua declaração, sabemos que ainda não traz os sinais de luto: o corte no cabelo e as vestes negras (215-17). E agora, juntando as vozes, o coro completo invoca uma prece aos deuses, numa expectativa de salvação (218-19). O corifeu faz então uma nova prece a Peã, o deus da cura e da salvação (220-21), já invocado anteriormente (cf. 91-92). Walter Burket, ao examinar o culto a Apolo do ponto de vista de sua ligação com Peã, postula: “O hino cultual de Apolo é o péan. Paiawon era um deus independente em Cnossos sob a dominação grega e na Ilíada pode ser ainda 51

“Ce couple est plus richement encore architecturé que le dernier de la parodos.”, “Les passages lyriques dans l‟ Alceste d‟ Euripide”, F. Duysinx, L‟ Antiquité Clássique, 31 (1962), p. 203. 52 Greek Tragic Poetry, p. 211. 53 Cf. F. Duysinx, L‟ Antiquité Clássique, 31 (1962), p. 204. 54 “A short ode, in matter and manner unlike a regular stasimon, in preparation for the entry of the king and queen. The singing of Alcestis prolongs the lyric-section. There are again some signs of division of parts.; 215 and 218, though not not exactly question and answer, belong most naturally to different speakers. The antistrophe could divide at the same place, though otherwise there is nothing in the words to suggest the change of speaker. 220-1 and 232-3 might conceivably be spoken by the coryphaeus; the trimeter has a natural spoken rhythm. We are left making guesses; the whole might be sung by alternating semi-choruses, or the strophe might begin with three single voices to express general indecision, like S.Trach. 836 ff., HF 815 ff, and pass at 220 into full chorus, while the antistrophe remained undivided except for 232-3 spoken by the coryphaeus.(...)” Euripides Alcestis, Oxford, 1978, p. 67-8. Cf. a seqüência para a apreciação dos metros usados pelo coro, pp. 68-70.

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distinguido de Apolo um deus de nome Péan, enquanto, simultaneamente, paiéon é a canção sagrada que apazigua a cólera de Apolo. A relação íntima entre o deus e o hino parece vir da tradição minóica. Segundo fontes literárias o péan cretense, enquanto hino e dança, foi transferido no início do século VII de Creta para Esparta. O péan está associado sobretudo às Hiacíntias de Amiclas.”55 Eurípides associa-os de modo inextricável. O deus pode ser entendido como o próprio canto de cura. O coro continua seu canto, sendo este o único momento em que, veladamente, se menciona a troca de Admeto com Alceste (222-25). Já uma vez, portanto, Peã salvou Admeto - uma clara referência à interferência de Apolo relatada no prólogo; Apolo e Peã confundem-se aqui. A antístrofe, embora repita a mesma divisão de semi-coros, muda ligeiramente de tom, dando como já consumada a vida de Alceste, sugerindo que Admeto deva, mais que se enforcar, degolar-se por ser privado de tal esposa (226-31). O corifeu novamente se destaca do conjunto e anuncia a entrada de Alceste: - Corifeu: Olha, olha, ela e o marido vêm do palácio. (232-33)

O coro, em uníssono, continua a entoação, atingindo uma espécie de clímax de dor, que se constrói desde a primeira estrofe: Coro: Grita oh, geme, ó terra de Feres, a melhor mulher consumida por uma doença baixa ao país do subterrâneo Hades. (234-37)

Assim, a partir do verso 232 (i*douV, i*douV), as portas do palácio de Admeto estão abertas e Alceste entra em cena, caminhando apoiada em Admeto, com os filhos à volta, além dos servos que os acompanham. Neste momento do canto, a entrada em cena da heroína deve ser bem marcada pelos gritos (Bovason w^, 234) e pelos gemidos (stevnazon, 234). Na verdade, esse momento veio sendo preparado dramaticamente desde o prólogo. Daqui em diante, a ação começa a se desenvolver diante do público. 55

Religião grega na época clássica e arcaica, p. 288.

64 Canto e Espetáculo em Eurípides

Enquanto se arranjam em cena as personagens que ocuparão o segundo episódio, o coro interrompe seu canto fazendo uma reflexão de ordem genérica em anapestos recitativos: toma o exemplo de Admeto como prova de suas palavras (23843). A seção lírica não termina com o estásimo, sendo continuada por Alceste, que alterna com seu canto as falas de Admeto. Portanto, a tensão dramática é aumentada pelo estásimo, que, de certa forma, preludia a entrada em cena de Alceste, longamente preparada desde o prólogo. Com isso, toda a atmosfera para a morte de Alceste está preparada.

Segundo episódio: vv. 244-434 A entrada de Alceste em cena não é marcada pelo corte do canto coral; ao contrário, é marcada por uma continuidade do canto do primeiro estásimo, o que lhe confere uma atmosfera especial, uma espécie de solenidade envolta em tristeza, pois o canto refere-se justamente ao estado moribundo de Alceste. De uma maneira contínua, agora, passamos a ver o que desde o prólogo fora anunciado: a longa agonia da personagem principal desta peça. Mas o espetáculo preparado por Eurípides, além de nos apresentar os elementos patéticos, põe em evidência as preocupações da mulher - a casa, os filhos e o marido -, que são o centro de suas preocupações enquanto está viva. Neste segundo episódio, primeiramente temos o canto de Alceste, em alternância com as falas de Admeto (244-79), que podemos chamar de a primeira agonia de Alceste. A segunda cena comporta duas longas rhésis, uma de Alceste e outra de Admeto, havendo nesta a proclamação de um luto privativo a ser respeitado dentro do palácio (328-68), seguida de uma breve discussão entre o casal (374-92), em cujo final Alceste morre. Um interlúdio lírico, entoado por um dos filhos de Alceste (393-415), marca a passagem para o movimento seguinte: a última cena é a da proclamação de um luto público em homenagem à morta (419-34). Alceste, tendo entrado em cena no final do primeiro estásimo (233), abre o segundo episódio cantando: estrofe

Alceste: Sol e luz do dia,

65 Canto e Espetáculo em Eurípides

e celestes turbilhões de nuvem rápida. (244-45)

Esta saudação, a última que Alceste faz ao sol e aos celestes turbilhões de nuvem rápida, traz à lembrança os conceitos científicos em voga na Atenas do século V a. C. A. M. Dale acentua a criação poética de Eurípides que, de maneira inextricável, combina o canto, os velhos mitos e os novos pensamentos. Querer ver aí apenas a postulação de novas cosmogonias trazidas por Anaxágoras, por Empédocles, por Leucipo, e até mesmo a paródia do comediante Aristófanes, em As Nuvens, com seu coro de nuvens celebrando o turbilhão etéreo,56 seria reduzir o efeito dramático aqui imprimido por Eurípides, já que Alceste, durante seu canto, experimenta uma espécie de delírio, visões de sua viagem para o outro mundo, para o outro lado, a que nenhum dos outros presentes tem acesso. Como é usual em Eurípides, o uso do canto de ator visa a apresentar estados emocionais alterados e intensifica a expressão de sofrimento.57 Trata-se aqui de um momento solene, em que a personagem principal inicia sua primeira e única participação verbal no espetáculo. Na antístrofe, Alceste volta ao passado de sua terra natal, Iolco (248-49).58 Alceste parece não ouvir Admeto, pois não responde a seus apelos, este, por sua vez, parece não querer aceitar a morte da esposa (cf. 246-47; 250-51; 258-59; 26456

A. M. Dale, comentado essa passagem anota: “Are the „eddies of racing cloud in the heavens‟ a scientific concept, or simply a poetic description of moving cloud-drifts ina brught sky? The second might seem more natural to us, but divnh is too precise for „drift‟, and ou*ravniai di~nai can hardly have failed to convey to the intelligent listener an allusion to the up-to-date cosmologies of Anaxagoras (cf. the pericwvrhsi"), Empedocles (ou*raniva forav) and Leucippus (di~no"), the views later expounded by Socrates of the Clouds (Nub. 380 ai*qevrio" di~no") and Eur. fr. 593N2 ai*qevrw/ r&ovmbw/). The plural di~nai are the patches of cloud carried round in the vortex of the upper air. Poetry, old myth, new learning, aare already inextricably interwined in Eur., though here witha a light enough touch to avoid noticeable incongruity.” op. cit., p. 71. Charles Segal, estudando o momento histórico que serve de pano de fundo para o Édipo Rei, de Sófocles, também observa: “Such a rationalistic physical speculation, characteristic of Greek philosophy in the sixth and fifth centuries B.C., naturally aroused suspiction among the more conservative Athenians, as it challenged the traditional anthropomorphic divinities of the Greek pantheon. Aristophanes, for example, made popular entertainement out of the novel scientific theories in his comedy in the Clouds (423), which parodies thinkers like Anaxagoras for dethroning Zeus with a new god, the scientific principle Whirl or Vortex. The suspicion of intellectuals also had more serious results; Pericles‟ political enemies tried to get at him to flee Athens, sometimes around the outbreak of the Peloponnesian War in 431. Some 30 years later Socrates was put to death on a similar charge, and political motives were probably paramount with his accusers as well.” Oidipus Tyrannus. Tragic Heroism and the Limits of Knowledge, New York, 1993, p. 5. 57 Cf. de Paul Masqueray, para a função dos cantos de ator, Formes lyriques de la tragédie grecque, Paris, 1895, p. 219-24. J. Estève, Les innovations musicales dans la tragédie grecque, pp. 169-172; F. Duysinx, “Les passages lyriques dans l‟ Alceste d‟ Euripide”, L‟ Antiquité Classique, 31 (1962), pp. 205-210. 58 A. M. Dale vê aqui uma inconstência com o versos 177 e 911 e seq. Cf. Euripides Alcestis, p. 71.

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65 e 273-79). Não há uma conexão lógica entre o que Alceste entoa e o que lhe responde Admeto. Na seqüência do canto de Alceste, somos conduzidos, por suas modulações, às visões que tem nesse seu processo de falecimento: estrofe

Alceste: Vejo, vejo um barco de dois remos no pântano e o barqueiro dos mortos com a mão sobre o bastão, Caronte já me chama: „Por que demoras? Apressa-te; tu me retardas.‟ Com isso, impetuoso, ele me apressa. (252-57)

Ainda que de maneira econômica, Eurípides nos expõe o modo com que os gregos encaravam esse último momento do moribundo: Caronte, o condutor da barca que leva os mortos para o reino de Hades, fazendo-os atravessar o pântano formado a partir do rio Aqueronte, cujas águas são estagnadas59. Numa espécie de metateatro, Alceste reproduz a fala de Caronte, impaciente por levá-la ao mundo dos mortos (24456). As visões de Alceste tornam-se mais intensas, seu estado alterado aumenta, quando surge o próprio Hades: Alceste: Leva-me, leva-me alguém. Leva-me alguém - não vês? para a residência dos mortos, olhando sob as sobrancelhas sombrias, o alado - Hades. Solta-me! O que hás de fazer? - Larga-me! Que percurso, infeliz, atravesso! (259-63)

Para A. M. Dale, trata-se da mesma Morte do prólogo60 O importante é que Eurípides, tendo-a apresentado no prólogo como uma personagem implacável, fá-la consumar seu projeto de levar Alceste. Se no prólogo, porém, a morte é uma 59

Cf. Odisséia X 513, Her. V 92. O poeta faz uma intersecção entre Qavnato" e Cavrwn, personagens distintas na tradição mítica, o que poderia ser considerado uma inconsistência; porém, o público ateniense deveria estar habituado às diversas figurações do processo de morte. Cf. o comentário de D. J. Conacher, Euripides Alcestis, p. 166-67.

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personagem que atua em cena; aqui não passa de uma imagem poética associada ao estado moribundo de Alceste. Marcando a passagem para um outro momento dessa patologia da morte, Alceste, exaurida de suas forças físicas, pede que a deitem, entoando sua primeira despedida dirigida aos filhos: Alceste: Soltai, soltai-me já! Deitai-me, não tenho forças nos pés. Hades está próximo. Trevas, sobre os olhos a noite avança. Filhos, filhos não mais, não mais existe vossa mãe. Adeus, ó filhos, que vedes esta luz! (266-72)

A partir desse momento, Alceste apresentará suas razões, interrompendo seu canto. Alceste, como que revigorada, num último esforço, fala numa longa rhésis, completando, de certa forma, o relato aberto pela ama. Toda a atenção e concentração agora estão voltadas para seu discurso. Toda a emoção levantada até aqui é para que nos concentremos em sua fala arrazoada. Alceste, ao escolher morrer em lugar de Admeto, faz um único pedido (a@ bouvlomai, 281), que se liga tanto a sua morte como a seu casamento: Admeto não deve mais se casar (cf. 305; 372-73). Alceste elabora a hipótese de um novo casamento para si mesma. Se Admeto tivesse morrido, ela habitaria um outro palácio de um outro soberano (284-86). Não foi essa a sua escolha (287-89). Se os pais de Admeto tivessem decidido morrer em seu lugar, teriam uma “bela morte” (kalw~ meVn au*toi~ katqanei~n h%kon bivou/ kalw~ deV sw~sai pai~da keu*klew~ qanei~n, 291-92). Pela idade avançada, não teriam mais a expectativa de gerar filhos, o que justificaria plenamente deixar vivo seu único herdeiro e continuador da linhagem. Com a morte de Admeto, extinguir-se-ia sua linhagem. Mas Alceste teria a escolha de contrair novas núpcias, o que ela não descarta para Admeto (cf. “seV d’ a!llh ti gunhV kekthvsetai,/ 60

Euripides Alcestis, p. 72. Hades é adicionado, então, à lista das figurações da morte.

68 Canto e Espetáculo em Eurípides

swvfrwn meVn ou*k a#n ma~llon, eu*tuchV d’ i!sw.”, referindo-se ao seu leito nupcial, 181-82). Alceste em momento algum indica se o motivo de sua decisão é o seu amor por Admeto.61 Numa possível tradução, ela diz “por te respeitar” (se presbeuvousa, 282); essa seria a causa primeira e única de sua decisão. Haveria uma interferência divina em sua decisão? Sim, sabemos que Apolo negociou a troca como forma de agradecimento pela hospitalidade recebida no palácio de Admeto (cf. 8 e seq.). Para Alceste, sua situação é resultado da ação de algum deus (a*llaV tau~ta meVn/ qew~n ti" e*xevpraxen w@sq’ ou@tw" e!cein, 297-98), o que poderia indicar aqui a sua resignação à vontade divina, imbricada na sua escolha. A troca com Admeto é um arranjo de Apolo e tem mão única. O dia marcado seria o da morte de Admeto, mas o texto não discute essa idéia, como não discute a idéia de que Admeto morreria na data marcada para a morte de Alceste. Para quando ficaria fixada a morte de Admeto? A formulação desse dia vem do próprio Admeto (o@tan qavnw, 363), num contexto em que está pedindo a Alceste que o aguarde com a casa arrumada (e*kei~se prosdovka m’, 363; kaiV dw~m’ e&toivmaz’, 364). A ênfase do espetáculo está centrada na morte de Alceste e, com Alceste, estamos nos domínios da mulher mediterrânea. Como aponta Charles Segal, estudando o problema dos duplos prazeres ou das duplas formas de vergonha de Fedra (Hip. 38587): “Essa passagem formula poderosamente um ponto importante das sociedades gregas e de outras mediterrâneas: o poder que a sexualidade das mulheres exerce sobre os homens através do vexame que elas podem trazer para a casa, para a carreira do homem e, assim, para toda a comunidade.”62 A partir desta idéia de ameaça que uma mulher pode trazer para a casa e para o homem, é possível compreender toda a 61

Veja-se a opinião de Anne Pippin Burnett: “Alcestis‟ farewells are made to her marriage bed, the symbol of temporal union; her recommendations for the future are made to the goddess of the eternal foyer, from whose altar nothing can be taken away. Nothing that she does has any reference to romantic love, for this conception is unknown to her. She is ruled by philia (279), the feeling proper among friends and members of the same family. She expects to be forgotten (381,387) and assumes that another will sleep in her bed (181-82), but these things does not interest her. The success she demands is that ther marriage should continue after she is gone; it must no be imitated or replaced, for ther death is to make it immortal.”, “The Virtues of Admetus”, Oxford Readings in Greek Tragedy, Oxford, 1983, p. 260. 62 “Confusion and Concealment”, Euripides and the Poetics of Sorrow, Durham/London, 1993, p. 145.

69 Canto e Espetáculo em Eurípides

preocupação de Alceste com o casamento de seus filhos, que estaria, de alguma maneira, atrelada a um segundo casamento de Admeto. Por isso, o único pedido de Alceste - que não é uma recompensa (a*xivan meVn ou!pote, 300), pois para ela a vida não tem preço (yuch~ gaVr ou*deVn e*sti timiwvteron, 301) - insere-se no campo da justiça (divkaia, 302). Albin Lesky vê na atitude de Alceste a relação com tradições folclóricas e cantos populares: “A peça fundamenta-se num motivo que conhecemos no folclore e nas canções populares de muitos povos, o tema do sacrifício até a morte por amor.”63 O motivo pode, de fato, ter sido extraído de tradições, de histórias de amor até o sacrifício, mas Eurípides, habilmente lidando com esse material, evita que sua peça se detenha apenas nesse motivo. Conformando o mito a um espetáculo teatral, explora as contradições da instituição do matrimônio, dando ênfase à sua ligação com uma espécie de morte ritual da mulher, na ocasião de seu casamento. A. Lesky também percebeu a dificuldade que o texto de Eurípides coloca, sobretudo para o leitor e para o espectador moderno: “É difícil, para a sensibilidade moderna, acomodar-se com o fato de que em suas últimas palavras Alceste não fale do amor pelo marido, que a leva à morte.”64 A ausência de uma manifestação de afeição pelo marido não poderia estar expressa por sua decisão que está sendo levada a cabo no aqui e agora, no dia marcado? Seu páthos é aumentado justamente pela falta que fará aos filhos, associada à presença de uma segunda esposa, madrasta para seus filhos (305-310). Alceste inunda-nos com suas preocupações, que não são tão diferentes das preocupações da mulher comum do ocidente ainda hoje. Para Alceste, o menino tem no pai um esteio (kaiV pai~ meVn a!rshn patevr’ e!cei puvrgon mevgan, 311) e de alguma forma está preservado de vexames futuros. Quanto à menina, suas preocupações são maiores: como manterá sua virgindade (koreuqhvsh/ kalw~", 313); como escapará de um vexame (ai*scravn...klhvdona, 315) capaz de destruir suas núpcias (316); não terá a presença da mãe, que deveria ser uma das principais acompanhantes da jovem nubente

63 64

A tragédia grega, São Paulo, 1976, p. 165. idem, p. 166.

70 Canto e Espetáculo em Eurípides

(317).65 Também não contará com sua ajuda na ocasião do parto de seus filhos (31819). Todas as preocupações de Alceste apontam para o mundo da mulher e seus problemas: virgindade, casamento, maternidade. Porém, Alceste optou pela morte. Quando se deu essa opção? O poeta também não quis trabalhar esse pormenor (32021).66 Admeto responde à longa rhésis de Alceste com outra não menos longa, em que afirma cumprir o pedido de Alceste (328-33). Não haverá outra mulher tessália a ocupar o lugar de Alceste (331-33). Seu luto durará o tempo de sua vida (336-37). Para isso, Admeto proclama as medidas a serem tomadas por ele privadamente, fazendo cessar qualquer tipo de comemoração, o que inclui a execução musical (343-47). A cama será ocupada por uma estátua esculpida com as formas de Alceste (348-52) - o frio prazer (yucraVn meVn, oi^mai, tevryin, 353) - e pelo prazer do reencontro com Alceste, apenas em sonhos (354-56). Para resgatá-la do mundo dos mortos, Admeto deseja possuir o dom encantatório de Orfeu (357-62).67 A réplica de Admeto conclui-se com o desejo de ser enterrado no mesmo caixão de Alceste, para não ser privado da única que lhe foi fiel (th~" movnh" pisth~" e*moiv, 365-68). Tomando os filhos por testemunhas, Alceste enfatiza a única coisa que deseja: que Admeto não se case com outra mulher (371-73). Seu ato não permite concessão de qualquer espécie, pois não tem volta. Admeto tem o privilégio de continuar vivo; para tanto, mais como reconhecimento do que pagamento, deve manter-se viúvo, sobretudo para não prejudicar os filhos. O único prêmio de Alceste seria, então, o de ser reconhecida como a mulher excelente, proposição já formulada pelo coro (e*moiV pa~si t’ a*rivsth, 83; gunhV t’ a*rivsth, 151; a*rivsth" ...a*lovcou, 241-42 ) e pela serva (pw~" d’ou*k a*rivsth;, 152). Para a Alceste, a 65

Cf. o papel da mãe em relação às núpcias das jovens, sobretudo em Ifigênia em Áulis, em que Clitemnestra acompanha a filha ao acampamento onde ocorreria o suposto casamento de Ifigênia e Aquiles, e a justificativa desse procedimento. IA., 610; 732-36; 739-41. 66 Cf. A. Lesky afirma: “Aqui está pois Admeto, rei de Feras, que, no dia de suas bodas com Alceste, deverá ser arrebatado pela morte. O sombrio deus da Morte estaria disposto a aceitar outra vítima em substituição, mas os pais de Admeto recusam a sacrificar-se pelo filho, tamanho é o amor que têm por este mundo. Então a jovem esposa em flor se oferece em seu lugar, e dá a vida pela dele.”, A tragédia grega, p. 165. O texto não nos indica isso. Cf. A. M. Dale, Euripides Alcestis, “II The Legend”, p. vii-xii, para uma apreciação dos mitos envolvendo Admeto e Alceste, seu casamento e outras leituras posteriores.

71 Canto e Espetáculo em Eurípides

hipótese de Admeto contrair novas núpcias traduz-se em desonra. Para Anne Pippin Burnett, Alceste, em busca do kléos, quer apenas sucesso: “Ela sabe, naturalmente, que seu ato trará kléos e que esse renome é algo honroso, mas esse prêmio ela deixa para seu marido e para seus filhos como consolo. Para si mesma quer apenas uma única coisa - sucesso. Auto sacrifício não tem valor próprio já que a vida é boa; é concebível apenas quando o cálculo cuidadoso mostrou que a morte traria resultados que a vida não poderia, resultados que são mais valiosos mesmo do que a vida.” 68 Em dois momentos, temos Alceste a considerar sua própria decisão: a primeira quando, na fala da serva, ao despedir-se do leito nupcial, diz ser mais sensata do que outra mulher que possa ocupar sua cama, talvez, porém, mais venturosa (swvfrwn meVn ou*k a#n ma~llon, eu*tuchV d’ i!sw",182); a segunda, dita em cena pela própria Alceste, ao afirmar que Admeto pode alardear ter desposado a melhor mulher (kaiV soiV meVn, povsi,/ gunai~k’ a*rivsthn e!sti kompavsai labei~n, 323-24). A inscrição do ato de Alceste como um ato heróico só é possível quando se tem em mente o que o caracteriza no mundo masculino, sobretudo tendo como cenário de fundo o mundo da guerra. Para o guerreiro, morrer em batalha é a primeira e única condição. “Para quem pagou com sua vida a recusa da desonra no combate, da vergonhosa covardia, ela assegura um renome indefectível. A bela morte também é a morte gloriosa, eukleès thánatos. Ela eleva o guerreiro desaparecido ao estado de glória por toda a duração dos tempos vindouros; e o fulgor dessa celebridade, kléos, que adere doravante a seu nome e à sua pessoa, representa o termo último da honra, seu extremo ápice, a areté realizada. Graças à bela morte, a excelência, areté, deixa de ter que se medir sem-fim com outrem, de ter que se pôr à prova pelo confronto. Ela se realiza de vez e para sempre no feito que põe fim à vida do herói.”69 Não podemos deixar de ver claramente a correspondência entre valores masculinos e os femininos: para o homem, o feito valoroso só se verifica no campo de batalha; para a mulher, o espaço a que está confinada, antes e depois do casamento, é a casa. Portanto, poderíamos dizer que o que Alceste tenta garantir antes 67

Cf. IA. 1211 e o comentário de F. Jouan, Iphigénie à Aulis, nota 3 da p. 108, p. 146. “The Virtues of Admetus”, Oxford Readings in Greek Tragedy, p. 259. 69 “A bela morte e o cadáver ultrajado”, de Jean-Pierre Vernant, Discurso, nº 9, (1977), p. 32. 68

72 Canto e Espetáculo em Eurípides

de sua morte, com justiça, é seu renome, sua reputação. Se, numa hipótese absurda, aceitamos que Alceste aquiescesse em morrer pura e simplesmente por amor e devoção ao marido, com certeza, o tema não despertaria interesse, sobretudo para os tragediógrafos gregos. Penso que um dos elementos que torna Alceste um grande espetáculo teatral é justamente o debate entre o valor dado ao feito de Alceste e suas conseqüências. A cena da morte efetiva de Alceste é ainda antecedida por uma esticomitia, que está dentro do que Michael Lloyd considerou uma cena de súplica com formato de agón70, embora seu conteúdo não constitua exatamente um debate, dado não haver exatamente um confronto entre as duas personagens. A esticomitia presta-se bem, é verdade, aos momentos de confronto de idéias, de debate e mesmo de exasperação dos ânimos. Aqui as frases curtas e rápidas procuram, após os dois longos discursos, recuperar o clima anterior, em que Alceste se mostrava moribunda. Primeiro entregalhe os filhos: Admeto: E agora afirm, fazerei isso. Alceste: Neste caso, recebe as crianças de minhas mãos. Admeto: Recebo, um presente querido, sim, de uma mão querida. Alceste: Torna-te tu agora mãe deles em meu lugar. Admeto: É muito necessário, a eles privados de ti. Alceste: Ó filhos, quando eu preciso viver, parto para baixo! (374-79)

O debate nesta esticomitia trava-se não exatamente entre os dois, marido e mulher, mas com a morte. Admeto mostra-se muito mais emocionado do que Alceste, que, neste momento mais agudo, revela frieza ao exclamar, exaurindo suas forças, o tempo há de te aliviar. O morto não é nada. (381). Alceste morre em cena:71 Alceste: Podes dizer que eu já não sou mais nada. 70

Uma cena típica de súplica. Porém, cf. The agon in Eurpides, de Michael Lloyd: “few scholars treat this scene as an agon, but it does in fact come close to the agon in form that any other supplication scene.” Oxford, 1992, p. 8. 71 Para Jacqueline de Romilly, Alceste vai morrendo aos poucos, como se estivesse cada vez mais perdendo suas forças: “La mort d‟ Alceste, si provisoire qu‟ elle soit, a aussi lieu sur la scène.(...) enfin, la mort même arrive de façon insensible, et c‟ est comme si Alceste, abandonnée peu à peu par ses forces, n‟ était plus en état que de prononcer des phrases de moins en moins longues, jusqu‟ à ce simple “audieu” du vers 391, avec lequel elle s‟ éteint.” L‟ évolution du pathétique d‟ Eschyle à Euripide, Paris, 1980, p. 39.

73 Canto e Espetáculo em Eurípides

Admeto: Levanta teu rosto, não deixes teus filhos! Alceste: Não é por minha vontade. Mas adeus, ó crianças! Admeto: Olha para eles, olha! Alceste:

Já não sou mais nada.

Admeto: O que fazes? Partes? Alceste: Admeto:

Adeus! Estou perdido, infeliz!

Corifeu: Foi-se, não mais existe a mulher de Admeto. (387-92)

A encenação de uma morte dá mais intensidade à ação. Sabemos que, por uma convenção do teatro do século V a. C, evitava-se a morte violenta, o assassinato diante do público. Mas há cenas de mortes famosas, como a de Evadne, nas Suplicantes, que se lança à fogueira em que se consome seu marido Capaneu, um suicídio de difícil realização teatral, como alerta Jacqueline de Romilly.72 Com a morte de Alceste, seu filho, a quem a tradição deu o nome de Eumelo 73, entoa um breve canto num par estrófíco, numa das raras cenas da tragédia ática em que uma criança toma a palavra. Este canto é um dos exemplos estudados por J. Estève, em sua análise das monodias antistróficas: “O choro infantil de Eumelo, que acaba de ver morrer sua mãe, é de uma verdade e de uma ingenuidade tocantes. É bem curto, atribuído a um personagem cujo papel é totalmente secundário, e, por conseqüência, não anunciaria de forma alguma a extensão e o clamor dos trechos que o poeta comporá mais tarde nesse gênero.”74 A atmosfera de dor aguda sofrida pela criança é expressa no canto, já que o ator que a representa está mascarado. É um recurso cênico que também auxilia na composição do espetáculo da morte de Alceste: 72

Cf. o suicídio de Evadne na fogueira de Capaneu, em cena:“a!/ssw qanovnto" Kapanevw" e*" puravn, Eur. Sup. v. 1065 e sq. (1069-71), e em J. de Romilly, L „évolution du pathétique, pp. 15; 36-40. Cf. a morte de Hipólito, que se dá em cena, Hip. 1457-58. 73 Cf. A. M. Dale: “Murray is undoubtedly right in printing PAIS rather than EUMHLOS. children are usually kept anonymous in Greek tragedy (except where, as with Eurysaces in S. Aj. or Astyanax in Tro., the names has a special significance), but their names were the kind of detal that the commentators loved to supply, cf. Andr., where the form Molottov betrays itself. So too in the dravmato provswpa of A. Ag. the Herald appears as Talquvbio kh~rux.”, Euripides Alcestis, p. 83. O nome Eumelo já aparece na Ilíada, 2, 711-715; 23, 373-381. Cf. Medéia, estão em cena no prólogo como personagens mudas (45-95); gritam, ao serem golpeadas, dentro do palácio, no êxodo, (1270a1276) e como cadáveres na cena em que Medéia aparece a Jasão (1317 e seq.; Suplicantes (1123-1161).

74 Canto e Espetáculo em Eurípides

Estrofe

Filho: Ai de mim, que desgraça, a mãezinha foi-se para baixo, não mais existe, ó pai, sob o sol. Ao partir, deixou nossa vida órfã, infeliz. Pois vê, vê seus olhos e suas mãos desfalecidas. Escuta, ouve-me, ó mãe, suplico. eu, eu, mãe, estou te chamando, o teu filhote, caio sobre teus lábios. (393-403)

Ao tom comovido do filho juntam-se as repetições (398, 399, 400) e o gesto de beijar a mãe.75 Admeto, tenta acalmar o filho (404-5).76 O filho continua seu canto, que corresponde a um choro compulsivo. Em Eurípides, todas as vezes em que ocorre um momento de tensão emocional, tem-se o canto de ator. Com esse procedimento, ele confere também ao ator uma atribuição que normalmente pertence ao coro, a condução da emoção pelo canto: Antístrofe

Filho: Eu, pai, sendo jovem, sou deixado sozinho pela querida mãe. Ó que provas cruéis eu sofro..........., E tu minha jovem irmã suportas.................. ó pai, vãs, vãs núpcias contraíste, nem chegaste ao fim da velhice com ela. 74

Les innovations musicales dans la tragédie grecque à l‟ époque d‟ Euripide, 1902, p. 221. Paul Masqueray afirma: “Il ya là une veine de pathétique familier que le sombre génie d‟ Eschyle n‟ avait pas découverte. (...) Ses phrases sont courtes et naïves. On peut même dire que ses répétions des mots, qui deviendront bientôt un insupportable défaut, ont une beauté véritable, puisqu‟ elles sont une copie exacte du language enfantin dans ses supplications passionés.”, Théorie des formes lyriques de la tragédie grecque, p. 272. 76 Admeto fala em trímetros iâmbicos, “sans doute encore en parakataloghv.”, segundo F. Duysinx, “Les passages lyriques dans l‟ Alceste d‟ Euripide”, L‟ antiquité Clássique, 31 (1962), p. 211. 75

75 Canto e Espetáculo em Eurípides

Ela morreu antes. Depois que tu morreste, mãe, ruiu-se a casa. (406-415)

J. Estève associa o uso freqüente do canto de cena em Eurípides às inovações musicais que privilegiam o virtuosismo da voz em detrimento do canto coral, que necessariamente estaria associado a uma coreografia.77 O corifeu, tentando consolar Admeto, faz da morte de Alceste um fato comum (416-49). Com essa atmosfera de conformidade estabelecida pelo corifeu, Admeto anuncia o luto oficial da cidade de Feres, que prevê as honras fúnebres, agora públicas, terminando assim o segundo episódio. Ressalte-se aqui como Admeto se refere a Alceste, que minutos antes lhe falava, a quem não queria que morresse: vou fazer o funeral deste defunto (e*kforavn gaVr tou~de qhvsomai nekrou~,. 422). As indicações do luto oficial aparecem sob a forma da tonsura (koura~/ xurhvkei kaiV melampevplw/ stolh~/, 427), que se estende aos animais que possivelmente fariam parte do cortejo fúnebre (428-29). Mais uma vez aparece a proibição da execução musical (430-31), agora pública por um tempo determinado (selhvna" dwvdeka, v. 431), ao contrário da proibição privada (cf. 343 e seq.). Embora não haja indicação de saída de cena de nenhuma das personagens, a próxima cena será o segundo estásimo, somente com o coro em cena; portanto, após o decreto de Admeto, juntamente com ele se retiram os filhos e servos presentes, conduzindo o corpo de Alceste para dentro palácio para os preparativos fúnebres.

Segundo Estásimo: vv. 435-475 O canto coral que se segue à última proclamação de Admeto é relativamente curto. São dois pares de estrofes e antístrofes, em 40 versos, que, no conjunto, expressam um elogio a Alceste. Para F. Duysinx, o que marca este estásimo é o ritmo calmo, contrastando com as duas monodias agitadas do episódio anterior.78

77 78

Les innovations musicales dans la tragédie grecque à l‟ époque d‟ Euripide, 1902, p. 30. “Les passages lyriques dans l‟ Alceste d‟ Euripide”, L‟ Antiquité Clássique, 31 (1962), p. 213.

76 Canto e Espetáculo em Eurípides

Na primeira estrofe, o coro retoma as imagens da viagem ao mundo infernal, já elaboradas por Alceste: (estrofe 1)

Coro: Ó filha de Pélias, que, alegre, no palácio de Hades habites a morada sem sol. Saiba Hades, o deus de cabeleira negra, e o que se assenta no no remo e no leme, velho, condutor de mortos, que transportam , sim em muito, em muito a melhor mulher, ao pântano de Aqueronte, num pinho dois remos. (435-44)

As imagens trazidas à cena por esta estrofe dão continuação à visão de Alceste no segundo episódio, ampliando assim o imaginário do reino dos mortos, apresentando elementos do mundo dos navegantes: a barca de Caronte, o rio, o pântano, o duplo remo, etc., revelam essa estranha conexão que não é exclusiva da cultura grega. 79 Neste contexto de morte, também poderia causar estranheza o termo caivrousa; Hades, qualificado como morada “sombria”, “sem sol” (toVn a*navlion oi^kon v. 437). Para A. M. Dale, há aí “um eco notavelmente próximo da Ilíada na passagem cai~rev moi, w^ Pavtrokle, kaiV e*n

*Aivdao dovmoisi (23. 179), e seria por si mesma uma trágica

reminiscência discreta de Homero.”80 Na primeira antístrofe, temos a evocação do mundo musical, da poesia, do canto com dança: (antístrofe 1)

Coro: Os cultuadores das Musas muito hão de te cantar na lira montanhesa de sete tons, celebrando em hinos sem música, 79

Cf. 252-57; 260-63. A idéia de travessia daquele que morre por um mar, ou por um lago, ou mesmo por um rio aparecem em outras tradições, tais como nas tradições suméria e egípcia, cf.: Religião grega na época clássica e arcaica, de Walter Burkert, Lisboa, 1993, 384, nota 70. 80 Euripides Alcestis, p. 88.

77 Canto e Espetáculo em Eurípides

em Esparta, enquanto o ciclo da estação do mês Carneio durar, na lua alta a noite inteira, e na brilhante e feliz Atenas. Ao morreres, deixaste tal canto aos aedos de canções. (445-54)

Albin Lesky nota: “Nos dois pares estróficos que formam o segundo estásimo (435-475), o primeiro celebra Alceste e promete-lhe canções na Carneia de Esparta e em Atenas. Por causa da verdadeira natureza de Alceste, a conexão etiológica comum às instituições existentes, que usualmente aparecem no fim das tragédias de Eurípides, aqui ocorre muito antes na peça.”81 Chamamos a atenção para o fato de o coro referirse claramente às celebrações em torno da figura de Alceste e não de Admeto. De alguma forma, a morte de Alceste agora sim a inscreve no mundo heróico. O coro, ao evocar as celebrações que irão acontecer em festas tradicionais, tanto de Esparta, nas Carnéias82, como em Atenas83 (mevlyousi, 446 e seq.), não só registra os futuros cantos, mas, dentro da economia do espetáculo, pelo próprio canto, mostra de onde vêm tais motivações: a morte de Alceste por seu marido. A referência a mousovpoloi pode indicar que o tema da morte de Alceste era muito popular nos cantos das Carneias, celebração que, segundo Walter Burket, a partir do ano 676, passa a ser um grande agón musical, desempenhando “um papel fundamental no desenvolvimento da poesia e da música gregas.”84 O instrumento com que ela vai ser celebrada é a antiga lira de sete cordas (e&ptavnon, 446)85, feita da casca da tartaruga (cevlun,. 447). Mas o que significaria a*luvroi ...u@mnoi (447)? A. M. Dale supõe, que, além dos cantos, 81

.Greek Tragic Poetry, p. 212. As celebrações das Carnéias estão ligadas à Apolo, que chega até receber o epíteto de Carneu. Cf. A religião grega na época clássica e arcaica, de Walter Burkert, Lisboa, 1993, pp. 450-55. 83 Como notou A. M. Dale, a referência às celebrações em Atenas é mais vaga, mas a idéia principal é a de que o mito de Alceste e Admeto transcendeu os limites da Tessália. Cf. Euripides Alcestis, p. 90. 84 Religião grega na época clássica e arcaica, p. 451. 85 Como nota A. M. Dale, a lira de sete cordas, feita com o casco da tartaruga, já aparece no hino homérico a Hermes, v. 33 “ai*olon o!strakon e!sso cevlu o!resi zwvousa;”op. cit., p. 89. Walter Burkert chama a atenção para a relação do número sete e Apolo: “O papel especial do número sete no culto de Apolo deve derivar da tradição semita.”, Religião grega na época clássica e arcaica, p. 289. 82

78 Canto e Espetáculo em Eurípides

acompanhados pela lira, haveria também a celebração em prosa, notando que o adjetivo a!luro comumente está associado àquilo que não combina com música.86 Portanto, se o canto que ora o coro estaria entoando não estivesse sendo acompanhado por qualquer instrumento musical, haveria uma coerência entre o texto e o que se executa em cena. No entanto, a métrica não nos auxilia nesse passo, pois se trata de um canto e não de um recitativo.87 O segundo par de estrofes (455-465), primeiramente expressa o desejo de salvação de Alceste, repetindo a expectativa criada por Apolo já no prólogo (cf. 52; 6569), no párodo (90-92; 112-131), e no primeiro estásimo (219-225). Também aqui aparece a possibilidade de Admeto não cumprir o que prometera a Alceste (465-66), possibilidade recorrente em toda a peça, até Alceste ser trazida por Héracles do Hades, velada. O coro não tolera a idéia de que Admeto se case de novo. A empatia do coro está totalmente direcionada a Alceste. O desejo, expresso no final da ode, segundo A. M. Dale, é convencional nos finais de estásimos: um desejo pessoal ligado frouxamente à real situação 88. Mas Eurípides, parece-me, faz com que nos solidarizemos mais com Alceste, por seu gesto único, tendo o coro um papel importante no envolvimento e no comprometimento com os sentimentos mais comuns, isto é, com os sentimentos também partilhados pelo público presente. Mais uma vez, o coro refere-se à recusa dos pais de Admeto, tendo como contraponto a aceitação de Alceste (466-75). Não podemos deixar de traçar o paralelo entre a morte precoce do herói guerreiro, que, ao morrer em batalha, na flor da idade, conquista o kléos áphthiton, e a morte de Alceste que na flor/ da juventude (suV d’ e*n h@ba/ / neva/, 471-72), entrega sua vida ao marido. O tema da morte do jovem é

86

Op. cit., p. 89-90. “The general metrical type is clear; the stanza is a study in prosodiac-enoplian, the cola having either double-short (dd, dd-, -dd-, -ddd) or double-short changing so single-short (ddss-, -dss-, ds-).A. M. Dale, Euripides Alcestis, p. 88. M. L. West, em seu Introduction to Greek Metre, afirma: “Three distinct modes of delivery were used in drama: recitation without music, recitation with music (parakataloghv, commonly called „recitative‟), and singing. Although there is some uncertainity over the borderline, we can in general distinguish clearly between those parts that were sung, and those that were recited.” Oxford, (1987) 1989, p. 48. O termo a!luro, no entanto, parece indicar a ausência de acompanhamento musical. 88 Euripides Alcestis, p. 93. 87

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recorrente na literatura grega de Homero aos oradores do século V a. C.89 Alceste só é objeto de desejo do coro justamente por essa associação da morte à juventude (473-75), e pelo contexto, não qualquer morte, mas a morte pelo marido. Durante esse canto coral, em que se retiram Admeto, os servos levando o corpo de Alceste e os filhos, dá-se a preparação para o cortejo fúnebre. Pairam certas dúvidas sobre o momento em que o coro vestiria seus peplos negros citados nos versos do primeiro estásimo (216) e também quanto à ordem de Admeto para jovens nas celebrações públicas (koura~/ xurhvkei kaiV melampevplw/ stolh~/ 427). Para Sir Arthur Pickard-Cambridge, com base no verso 923, a mudança de roupas só ocorreria depois do enterro de Alceste, quando o coro sai de cena (740-46), para retornar já vestindo o luto (a partir de 861), em companhia de Admeto.90 Assim, a ode do segundo estásimo não é um canto que intensifica a ação. Apenas faz o público refletir sobre o que viu até aqui, evocando imagens já apresentadas anteriormente. Tampouco nos prepara para a entrada de Héracles no terceiro episódio. É, sem dúvida, um elogio comovente a Alceste, que agora realizou seu ato mais corajoso, cumpriu sua aristeia.

Terceiro episódio: vv. 476-56 A entrada de Héracles não é anunciada pelo corifeu, que o identifica prontamente. Sua vinda, na verdade, está prevista desde o prólogo por Apolo (cf. 6569): Héracles: Estranhos, habitantes desta terra de Feres, encontro Admeto em casa? Corifeu: O filho de Feres está em casa, Héracles. Mas, diz que necessidade te conduz à terra dos Tessálios para te aproximares desta terra de Feres? (476-480) 89

Veja-se, para as implicações da juventude e a bela morte, “A bela morte e o cadáver ultrajado”, pp. 43-51. “In Coephoroi the chorus wears the black robes of mourning; in Euripides Alcestis, they change such robes at the appropriate moment, (...)”, comentando em nota: “They are not in mourning at ll. 215. They go out with Admetus for the funeral at 740-6, and return in mourning at 861 (cf. 923).”, The Dramatic Festivals of Athens, “The Costumes”, p. 209. Cf. 922-25 As vestes negras, como um aposto de “gemido adversário”, não seriam as que Admeto está vestindo, e não, necessariamente, o coro? 90

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Héracles dispensa maiores apresentações. Afinal trata-se de um dos heróis mais populares da mitologia grega. Suas histórias, seu culto, estendem-se por toda a Hélade91. A construção do episódio, aparentemente simples, tem como pano de fundo a tradição dos feitos heróicos dessa personagem, o que transparece já na primeira interpelação do corifeu (ei*peV creiva tiv", 479). Podemos nitidamente perceber três cenas neste terceiro episódio. A primeira trata da entrada e da identificação de Héracles, ressaltando, sobretudo, seu aspecto de herói destruidor de monstros (481-506). Dentre as inúmeras tarefas que lhe atribuiu a tradição, Eurípides escolhe três, ligadas à suposta submissão a seu primo Euristeu: a busca às éguas de Diomedes, o combate com Licaão e combate com Cicno, todos os três descendentes de Ares. Note-se que esta passagem do texto não se prende exatamente aos detalhes dessa submissão, que a tradição reporta ao ciúme de Hera, por ocasião do nascimento de Héracles. Seu objetivo primeiro não é visitar Admeto, pois está de passagem para cumprir as tarefas. Parece-me que Eurípides, ao descrever detalhadamente esses trabalhos, procura evidenciar o caráter corajoso e destemido do herói (481-506). A segunda cena começa com a entrada de Admeto, anunciada pelo corifeu (507-8). A saudação de Admeto ressalta a dupla filiação de Héracles, uma divina (w^ DioV" pai~) e a outra mortal (Persevw" t’ a*f’ ai@mato", 509).92 Pelo cabelo tonsurado, Héracles percebe imediatamente que Admeto traz um sinal de luto (512-513). A seqüência de perguntas de Héracles e respostas de Admeto faz supor: algo tenha acontecido aos filhos (514) ou ao pai de Admeto (516). Ambas as hipóteses são logo negadas por Admeto (515; 517). Héracles faz a pergunta óbvia, se Alceste teria morrido (518), a que Admeto responde de maneira ambígua (diplou~" e*p’ au*th~/ 91

Cf. “5. Seres duplos ctónicos-olímpicos. 5.1. Hércules”, Religião Grega na época clássica e arcaica, pp. 405-411. Para um levantamento extenso dos relatos envolvendo a figura de Herácles, com indicações das fontes (poetas mitógrafos, etc.); cf. C. Kerényi, The heroes of the Greeks, “Book Two - Herakles”, New York, 1981, pp. 125-206. Pela maioria das representações iconográficas do herói, podemos supor que entra em cena vestido com sua roupa tradicional, a pele do leão de Neméia, trazendo na mão a sua famosa clava. 92 Héracles é filho de Alcmena e Anfitrião e também de Zeus. A ligação com Perseu vem tanto da parte de Anfitrião, como da parte de Alcmena, ambos descendentes de Perseu e Andrômeda.

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mu~qo" e!sti moi levgein, 519), como ambíguas serão todas as respostas referentes a Alceste, de modo a gerar outras ambigüidades.93 Pela condução que Admeto dá ao diálogo com Héracles, pode-se depreender que seja uma serviçal da casa a falecida. Esse jogo repousa sobre o termo o*qnei~o, tomado no sentido de estrangeira ou alguém que não pertença à família (532, 533), e como notou G. M. A. Grube, “na próxima questão de Héracles: „Uma estrangeira ou um membro da família?‟ a palavra o*qneio ~  (estrangeira) poderia também ser usada para qualquer um que não seja um parente de sangue (cf. 646). Aplicada à mulher morta, Héracles a entende no primeiro sentido, Admeto, no segundo.”94 Aqui Héracles pensa que a morta seja uma suggenhv, ou seja, uma parente consangüínea. Grube ressalta ainda a ambigüidade da resposta de Admeto, freqüente no drama grego: no verso 531 (gunhV: gunaikoV a*rtivw memnhvmeqa), tanto pode ser entendido: Uma mulher. Lembramo-nos agora mesmo de uma mulher, ou: minha mulher, lembramonos agora mesmo de minha mulher.95 Assim, Admeto fala, ainda que de maneira velada, de Alceste. Héracles entende que seja uma outra. Ela é estrangeira, mas é a*nagkaiva dovmoi (533), outro termo que cria ambigüidade, podendo dar a entender que se trata de uma ama, de uma serva qualquer, de “alguém indispensável à casa”, ou, por outro viés, de “alguém relacionado com a família da casa”. O valor dramático desse jogo de palavras, cujo sentido flutua de personagem para personagem, só tem efeito quando se pressupõe também a presença do público. Convencido por Admeto a hospedar-se em seu palácio, já que dispõe de quartos de hóspedes separados (cwriV xenw~nev ei*sin oi% s’ e*savxomen, 543), Héracles entra conduzido por um servo (h&gou~ suV tw~/de ..., 548). O rei dá ordens para que o ilustre hóspede seja bem servido (toi~ t’ e*festw~sin fravson/ sivtwn parei~nai

93

G. M. A. Grube acentua: “Admetus does not tell an actual lie, though he certainly acts one. Heracles evidently does not know on what day Alcestis was to die, and Admetus does not tell him, does not want to tell him.” The Drama of Euripides, London, 1961, p.137. 94 The Drama of Euripides, p. 138. 95 idem, p. 138.

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plh~qo, 547-48) e, para que não seja incomodado pelos lamentos e gemidos, as portas devem estar bem fechadas (eu^ klh/vsate/ quvra mesauvlo, 548-550).96 A terceira e última cena do episódio é curta, porém, significativa, pois o corifeu expressa toda a estranheza do comportamento de Admeto, quase advertindo-o pelo fato de receber um hóspede nas circunstâncias em que se encontra (551-52). Admeto defende-se. Sua presente desgraça não justifica uma inospitalidade, não diminui seus males. O argumento de Admeto, de ter sido bem recebido por Héracles, (553-60) não convence o coro, num primeiro momento (561-62). Admeto conclui seus motivos e entra no palácio: Admeto: Não haveria de querer entrar no palácio, se soubesse algo de meus sofrimentos. Para qualquer um, suponho, que ao agir assim, pareço não ser sensato, nem me aprovaria. Minhas portas não sabem afastar nem desonrar os hóspedes. (563-67)

Com estas palavras de Admeto, o terceiro episódio fecha-se. Elas justificam o caráter hospitaleiro de Admeto, que recebeu Apolo até a morte de Alceste, e que agora hospeda seu futuro salvador, Héracles.

Terceiro estásimo: vv. 568-605 O terceiro estásimo, constando de um par de estrofes e antístrofes, move nossa simpatia, agora que Alceste está morta, em direção a Admeto, mais precisamente para a casa de Admeto, que é chamada de poluxei~no, isto é, muito hospitaleira, e de e*leuvqero, aberta, franqueada aos hóspedes, num movimento contrário ao espanto e à quase censura expressa no final do terceiro episódio.97 A celebração, agora, volta-se

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D. J. Conacher em sua recente edição comentada do texto, Euripides Alcestis, formula em sua introdução que a virtude da hospitalidade e a idéia de cháris são tratadas como um dos temas éticos da peça. Cf. “Introduction to Alcestis”, Warminster, Wiltshire, 2ª ed., 1993, p. 37. 97 Cf. 551-52. A. M. Dale anota: “To a Greek dramatist the natural way to make such a point tell is by rhetorical argument - to raise an objection (the Chorus show at first the shocked disapproval which is the ordinary man‟s reaction to such conduct) and then to overrule the objection, stating the moral grounds for such a proaivresi. The

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para a casa de Admeto, que recebe hóspedes ilustres, como Héracles, e, sobretudo, Apolo, seu hóspede mais ilustre, sem dúvida, de quem, nesse primeiro par de estrofe e antístrofe, o coro evoca uma imagem bastante peculiar, unindo num só quadro a beleza plástica de um cenário bucólico e a sedução sonora desse deus, o músico por excelência (568-86). Se a possibilidade de salvação de Alceste não tivesse sido anunciada no prólogo pelo próprio Apolo, esse canto laudatório, tanto ao deus como à casa de Admeto, soaria muito mais estranho; afinal, Alceste ainda não está enterrada. E poderíamos perguntar que motivo teria levado Eurípides a, justamente na cena que antecede o enterro da heroína, inserir um canto ao deus da música? Mas, ainda que contrariando nossa expectativa, mesmo com a possibilidade do resgate de Alceste, o poeta trabalha com os jogos de oposição, para enriquecer ainda mais o espetáculo a ser apresentado diante dos olhos do público e criar efeitos de sentido mais complexos. Até a morte efetiva de Alceste, o autor trabalhou a dúvida. Agora passa a trabalhar a possibilidade de sua salvação. O coro descreve uma cena bucólica, com animais ferozes - linces, leões e filhote de cervo - sendo encantados pela música sedutora de Apolo. Sua submissão à casa de Admeto (cf. e!tla deV soi~si mhlonovma/ e*n dovmoi genevsqai, 573-4), mais parece um suave lazer, durante o qual revela seu aspecto encantador e pastoril. Dentre as inúmeras observações interessantes que Walter Burkert postula a respeito de Apolo, vejam-se algumas que ressoam por todo o texto de Eurípides, que de maneira econômica reúne os diversos aspectos do deus: “A renovação pura e jovial durante a reunião anual, a expulsão do mal pelo canto e pela dança, e a imagem do deus protector com sua aljava de setas podem ser reunidas numa mesma visão. O facto de daí ter surgido uma imagem unificada deve-se, porventura mais do que nos outros deuses, à poesia. Acresce que os poetas ou antes os “cantores”, em certa medida, se colocaram sob a proteção de Apolo. Já no primeiro livro da Ilíada, Apolo é mostrado num papel duplo; como a noite, ele vem para espalhar a peste, as setas tinem nas suas costas, a corda do arco zune sinistramente. Animais e homens caem até o deus se consolar.

Chorus is convinced, and sings its praise and admiration, and as the story develops we see the decision of Admetus

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Todavia, entre os deuses, no monte Olimpo, Apolo toca a “maravilhosa fórminx”, o instrumento de corda, e as musas cantam alternadamente com vozes sublimes. Algo de semelhante se passa no velho hino em honra de Apolo: quando Apolo entra no Olimpo com sua arma temível, todos os deuses se levantam repentinamente de seus assentos. Só Leto, a mãe, permanece sentada. Ela tira-lhe a aljava e o arco e mostra-lhe o seu lugar. Ela regozija-se por ter criado um filho forte que transporta um arco. Depois, Apolo é mostrado de novo a tocar sua lira, à medida que percorre a terra em direcção a Delfos, enquanto as Cárites dançam com Ártemis e Afrodite. Apolo rodeado de raios luminosos tange as cordas e dança no centro.”98 Recordemo-nos da referência ao arco e às flechas feita pela própria Morte no prólogo (tiv dh~ta tovxwn e!rgon, ei* divkhn e!cei;, 39), da invocação de Paiavn no párodo (ei* gaVr metakuvmio a!ta/ w^ Paiavn, faneivh, 91-92) e de toda a ligação dessa primitiva divindade com o culto de Apolo. 99 Eurípides tampouco deixa de mencionar Asclépio100, ainda no párodo (122-131), que está sempre ligado a Apolo em seu aspecto de deus terapêutico: “As doenças pequenas do homem comum eram tratadas por Asclépio, o qual, ainda assim, é filho de Apolo e denominado “médico”, Iatrós.”101 Na segunda estrofe, o canto do coro passa a ampliar os domínios da casa de Admeto, magnificados pela presença do deus (588-96). O domínio de Admeto ultrapassa a cidade de Feres, estendendo-se de oeste - onde o sol se põe, o céu dos molóssios (591-94) - a leste, tendo como limite o mar Egeu.102 A presença de Apolo na casa de Admeto amplia também os limites de seu poderio. A segunda antístrofe, tendo como pressuposto o que se cantou antes, fecha o terceiro estásimo, fazendo-nos refletir sobre a generosidade de Admeto ao receber um segundo hóspede ilustre (597-605). Nesta antístrofe, o coro mostra toda a sua adesão aos atos de Admeto, se é que ainda pairava alguma dúvida. A partir daqui, uma outra win him back Alcestis.” Euripides Alcestis, p.98-99. 98 Religião grega na época clássica e arcaica, Lisboa, p. 289. 99 idem, p. 288. 100 idem, pp. 415-18. 101 idem, p. 292 102 Cf. para as dificuldades de leitura do texto, A. M. Dale, Euripides Alcestis, p. 101-102. Cf. a geografia de Eurípides, La Carte du Tragique, la géographie dans la tragédie grecque, Paris, 1985, p. 235-36.

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situação dramática parece configurar-se: antes tínhamos a morte de Alceste como expectativa, agora, a sua salvação. A alusão a Apolo, embora não apresentada neste momento como possibilidade, começa a desenhar dentro do espetáculo algo a ser mais aprofundado nos episódios seguintes: a gratidão de Héracles pela hospedagem de Admeto. É interessante notar que o afastamento de Apolo, no prólogo, por causa da morte de Alceste, tem como contraponto a aproximação de Héracles, depois de consumada a sua morte. Sua evocação nesta ode, além de sublinhar a hospitalidade de Admeto, ressalta o deus em seu aspecto encantador, mágico, próximo também de seu aspecto salvador e propiciador de abundâncias e riquezas.

Quarto episódio: vv. 606-961 O quarto episódio é o que tem o maior número de versos (360 versos), o que poderia resultar no alongamento da ação e conseqüente queda de tônus emocional. No entanto, Eurípides o compôs com elementos bem diversificados, podendo ser dividido em cenas, o que acaba conferindo uma certa agilidade à sucessão dos acontecimentos que aceleram o fim da peça. Em primeiro lugar, temos uma cena de agôn, entre Feres e Admeto (606-740). À saída de Feres, Admeto procede ao enterro de Alceste, acompanhado pelo coro, que, ao deixar também o palco, canta um pequeno interlúdio (741-46). Todos estão fora de cena. O palco, como poucas vezes acontece, está vazio.103 Em seguida, entra um servo, que começa a segunda cena com um monólogo (747-72), depois mantém um diálogo com Héracles, em que ocorre uma espécie de reconhecimento, pois é a partir desta longa conversa com o servo que este se dá conta da morte de Alceste. No verso 836, o servo sai de cena. Sozinho no palco, Héracles profere um segundo monólogo (837-60). Na seqüência, sai de cena, dirigindo-se ao túmulo de Alceste, sem ser visto por Admeto e pelo coro, que, a princípio, estariam voltando pelo mesmo lado.104 Um kommós entre 103

“The stage is now empty, as in the Eumenides and the Aias, both times with a change of scene; this occurs again in Euripide‟s Helen and Phaethon, and in the spurious Rhesos.”Albin Lesky, Greek Tragic Poetry. New Haven and London, 1983, p. 213. 104 A. M. Dale anota: “Heracles leaves for the tomb, apperently without meeting the returning funeral procession, though his exit and Admetus‟ entrance must have been by the same side.”, Euripidis Alcestis, p. 114.

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Admeto e o coro marca o início da terceira cena (861-933). O kommós, como Aristóteles postula na Poética, é um dos elementos não comum a todas as tragédias, estando, de certa forma, ligado a cantos não previstos na estrutura regular do espetáculo, como o seriam o párodo e os estásimos.105 Porém, o kommós traz para a cena um momento em que cantos de dor, - este é o primeiro sentido de kommós106 - que se alternam com partes dialogadas ou recitativas. Sem dúvida, há sempre um acréscimo no tônus emocional da peça.107 O episódio termina com uma fala conclusiva de Admeto (934-961), cujo tom inconsolável permite depreender que Alceste morreu em vão. Admeto abre o quarto episódio, anunciando o féretro de Alceste. Agradecendo a presença generosa (eu*menhv", 606) dos cidadãos de Feres, isto é, do coro, dá início ao cortejo fúnebre (tavfo", 608) em direção ao túmulo (puravn, 608), com o cadáver devidamente paramentado (pavnt’ e!conta, 607). São indicações claras para que o público possa compor melhor o espetáculo diante dos seus olhos. A tradição grega para os cortejos fúnebres inclui a condução do corpo do morto (e*kforav) num carro, ou mesmo a pé, acompanhada dos cantos apropriados.108 Evidentemente, não há aqui a presença do carro fúnebre, uma vez que Admeto proclama “nevkun meVn h!dh pavnt’ e!conta provspoloi/ fevrousin a!rdhn proV" tavfon kaiV puravn. (607-608): “os servos já carregam o cadáver no alto/devidamente paramentado para o féretro e o túmulo”. Outro problema que o texto apresenta reside no termo puravn, que traduzimos por “túmulo”. Literalmente seria a pira fúnebre em que se cremava o cadáver do morto, 105

Póetica, 12, 1452b 18; um pouco mais adiante, 12, 1452b 24-25. Cf. Liddell & Scott, Greek English Lexicon: “striking; esp. beating the head and breast in lamentation, e!koya kommoVn !Arion A. Ch. 423 (lyr.), cf. Bion 1. 97(pl.); hence, 2. in the Attic drama, dirge, lament, sung alternately by one or more of the chief characters and the chorus, k. deV qrh~no" koinoV" corou~ kaiV a*poV skhnh~". Arist. Po. 1452b 24. 107 Cf. No Filoctetes, Sófocles compõe um kommós onde esperamos um estásimo: “No doubt in Sophocle‟s earlier period we might have had a stasimon at this point.”, The Chorus in Sophocles‟ Tragedies, de R. W. B. Burton, Oxford, 1980, p. 244. 108 “After the prothesis, the corpse was removed for burial at the e*kforav (ekphora, “carrying out”) before the dawn of the third day after the death. If money and terrain allowed, a mule- or horse-cart transported the corpse to its resting place, usually one of the cemetery areas that lined the main roads outside the city gates. Dressed in black, men led the funeral cortège and women followed behind the bier, probably reciting the ritual lament, or qrh~no" (threnos). Several vases show musicians playing the au*lov" (aulos, the same reed instrument used in tragic performances), which might indicate the presence of professional dirge-singers in the procession.” Rush Rehm, “Fifth century marriage and funerals”, Marriage to Death, 1994, p. 26. 106

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no mesmo local em que, depois de consumado, erigia-se o túmulo propriamente dito, para se enterrarem os restos mortais, os ossos e as cinzas. A. M. Dale anota: “Uma vez que a estória de Alceste requer um enterro simples (e cf. 365 em diante), é provável que essa purav seja usada aqui no sentido de tumulus = tuvmbo", kolwvnh, como em Pind. Isth. 8.57 puraVn tavfon q’ , S. El. 901, Hec. 386, IT 26, não importando se o corpo tinha sido ou estava para ser cremado nela.”109 Se tomamos como base as evidências materiais dessas práticas, estudadas por Walter Burkert, por exemplo,110 podemos supor que Eurípides, nesse passo, faz uso de uma linguagem tradicional vinda das práticas de cremação, mas indicando uma prática mais convencional, ou seja, a simples inumação do corpo, e isso seria entendido pelo público, que, na verdade, estaria acostumado com esses ritos. O termo ainda poderia indicar os sacrifícios ao morto e às divindades infernais, que se faziam numa pira junto ao túmulo. Admeto, ao solicitar que o coro se despeça de Alceste em seu último trajeto, usa uma expressão que indica as regras estabelecidas (w&" nomivzetai, 609).111 Nessa saudação à morta, com certeza, estão os cantos fúnebres previstos em tais ocasiões. Na peça, porém, não temos nenhum desses cantos, a não ser o pequeno recitativo do coro, marcando a saída de Admeto, do coro e dos servos que carregam o corpo de Alceste (741-746). E ainda mais, se o corpo de Alceste tivesse sido cremado, como Héracles haveria de resgatá-lo, depois? À questão não respondemos evidentemente com facilidade, porém, ao constatar a prática mais comum, sobretudo dos atenienses do século V a. C., podemos entender o arranjo sugerido pelo autor. De qualquer forma, a solenidade de um enterro constitui já de per si em espetáculo, com diversos signos

109

Euripides Alcestis, Oxford, 1978, p. 103. Walter Burkert, estudando as práticas relativas à morte, esclarece-nos um pouco mais sobre o procedimento da cremação e da inumação entre os gregos, sobretudo em Atenas: “A incineração de cadáveres é a transformação mais espetacular em relação à época micênica. Na Idade do Bronze, ela é praticamente desconhecida na Grécia, mas é praticada pelos reis hititas, e também em Tróia VI/VII. Na Ática, ela aparece no século XII, no cemitério de Peráti. A epopéia homérica limita-se a tomar conhecimento dela. Na realidade ela nunca conseguiu impor-se em parte alguma. O cemitério principal de Atenas, defronte do portão do Dípilon, o „Cerâmicos‟, é o que foi estudado de modo mais intensivo. Aí predomina a incineração no período proto-geométrico, a qual tem preponderância apenas no século IX, enquanto desde o século VIII as inumações aumentam de novo para passarem a constituir 30% dos funerais.” Religião grega na época clássica e arcaica, Lisboa, 1993, p. 372-373. 111 Cf. v. 111 nenovmistai. 110

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próprios, já aventados desde o prólogo. Neste momento temos a efetiva representação de um enterro. Mas, assim que Admeto fala, o corifeu, como é praxe, anuncia a entrada de mais uma personagem em cena, Feres, o pai de Admeto : Corifeu: Vejo que teu pai se aproxima com o velho pisar, e que os acompanhantes trazem para tua esposa nas mãos um ornamento, honras aos mortos.(611-13)

Feres entra em cena com acompanhantes (o*padouv", 612)112, mas não com a mãe de Admeto (não há indicação no texto que confirme sua presença). Trazem um adorno (kovsmon fevronta", 613), que, entre outros arranjos, pode referir-se a uma coroa fúnebre própria para a ocasião, pois o termo kovsmo" designa os adornos, sobretudo os usados pelas mulheres. Aqui, como que impregnado pelo momento de luto e pesar, ele vem seguido de um aposto mais esclarecedor: nertevrwn a*gavlmata (613, honras fúnebres), que, além de coroa, poderia incluir também os diversos tipos de vasos de diferentes tamanhos, encontrados em abundância com outros objetos pessoais junto aos túmulos em Atenas do século V a. C.113 Com todos esses elementos cênicos - o féretro de Alceste, a chegada de Feres com ornamentos fúnebres -, estamos sendo preparados, na verdade, para um confronto, o agón entre pai e filho, aqui emoldurado pelo clima patético da morte. Michael Lloyd, estudando o agón em Eurípides, postula de maneira genérica: “O agón em Eurípides tem sua própria formalidade como uma estrutura simplesmente dramática, mas também evoca uma variedade de situações da vida ateniense do século

112

Cf. Hipólito 108: (cwrei~t’, o*padoiV) cf. W. S. Barret, Euripides Hippolytos, Oxford, p. 180. Com esse mesmo sentido e também relacionado aos paramentos, aos enfeites de uma noiva, o termo kovsmo" já apareceu na fala da serva: kovsmo" g’ e!toimo", w%/ sfe sunqavyei povsi" (149), e em e*sqh~ta kovsmon t’ eu*prepw~" h*skhvsato, (162). Na verdade, o termo kovsmo" na peça pode ter um sentido mais amplo, recobrindo todo o aparato fúnebre; cf. Rush Rehm: “Whether inhumed or cremated, the dead were buried along with gifts and offerings, many of which have come to light in excavation: various shapes of pottery (mostly decorated), stones, vases, and items connected with the deceased (perhaps favored possesssions), including mirrors, strigils, toys, and other personal belongings. Among pottery deposited in or at the grave, white-ground lekythoi with appropriate funeral iconography prove to be the most popular from the 460s to around 410 B. C. The presence of vases associated with weddings among the grave gifts - mainly loutrophoroi, but also lebetes gamikoi - indicate that the grave was probably that of 113

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quinto em que logoi conflitantes competiam um com o outro. O tribunal proporciona o paralelo mais relevante com o agón euripidiano. As querelas não são conduzidas normalmente por intermédio de um conjunto de falas, mas essa é exatamente a forma que elas tomavam nas cortes atenienses.”114 Aqui, porém, o confronto entre pai e filho decorre de uma situação doméstica inusitada. Feres, em sua primeira manifestação, não parece estar disposto a um debate. Vem para apresentar suas condolências ao filho pela perda da mulher: Feres: Chego, condoendo-me com teus males, filho, pois perdeste uma nobre mulher, ninguém negará, e sensata. (...) (614-15)

Apresentando suas honras fúnebres à morta, faz ressoar um conselho do corifeu no terceiro episódio115: Feres: (...) Mas essas coisas, é preciso suportá-las, ainda que sejam desgraças. (616-17)

Assim, ao apresentar seus ornamentos à morta (devcou deV kovsmon tovnde, v. 618), Feres associa suas homenagens, materializadas na expressão este ornamento, ao fato de Alceste ter dado filhos legítimos para sua descendência e ao fato de ter deixado vivo Admeto, permitindo-lhe uma velhice amparada pelo filho. Para Feres, o ato de Alceste, como todo ato de aristeia, apresentou (e!qhken, incluindo-se aí o campo semântico do verbo tivqhmi, que também comporta a idéia de “instaurar, inaugurar,

young man or woman who died before marriage, a subject treated in more detail in the next chapter.” Marriage to Death, New Jersey, 1994, p. 27. Cf. v. 618. 114 The Agon in Euripides, Oxford, 1992, p. 13. 115 “Admeto, é necessário suportares estas desgraças./ Não és, na verdade, o primeiro nem o último dos mortais/ a ser privado de uma nobre mulher. Sabes/ que todos nós devemos morrer.” (416-19). Veja-se ainda a idéia de Alceste como uma esposa ideal no fim estásimo, em que Feres e sua esposa são classificados pelo coro como scetlivw (470, perniciosos), justamente por serem mais idosos e terem se recusado morrer no lugar do filho. Alceste, ao contrário, “na flor da juventude (471-2, suV d’ e*n h@ba/ / neva/ ...). O coro conclui o estásimo proclamando: “Tomara eu pudesse obter igual/ afeição de uma esposa companheira. Pois isso/ na vida é um quinhão raro./ Pois comigo conviveria/ sem sofrimento por toda a vida.” (474-75). Parece-me que os “lugares comuns” em relação a Alceste vão se repetindo ao longo da peça.

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instituir”) “uma vida mais gloriosa para todas as mulheres” (v. 624-25). Assim, dirigese diretamente a Alceste numa prece de agradecimento: Feres: Ó tu que o salvaste, que nos levantaste quando caímos, adeus, e que no palácio de Hades coisas boas te aconteçam. Afirmo que tais casamentos são proveitosos para os mortais, ou casar não vale a pena. (625-28)

A reação de Admeto a essa fala de Feres desencadeia a cena de agón. Para Michael Lloyd os agônes de Alceste e de Ifigênia em Áulis não apresentam debates como os que se poderiam encontrar nos tribunais atenienses, presentes em outras peças de Eurípides. Apresentam um debate de questões “domésticas”, “brigas de família” 116. Mas certas questões, como herança, filiação e mesmo extensão do poder, aparecem neste debate entre pai e filho. Michael Lloyd esclarece que o agón de Alceste mostra poucos sinais de influência retórica, neste particular contrastando-se com outros três agônes, em que o problema surge a partir da habilidade das personagens em apresentar falas retóricas. Aqui, o debate é introduzido sem a formalidade dos agônes tardios, resultado de uma explosão irritada contra as expressões de simpatia de Feres (629-72), cujas palavras são bastante convencionais no elogio a Alceste (615), assemelhando-se às do coro (442, 472). Em seu adeus (626 e seq.) reverbera o expresso pelos velhos de Feres (436, 743 e seq.), sendo, para M. LLoyd, impróprio em sua boca. A fala de Admeto revela já os princípios estruturais a serem posteriormente seguidos, na maior parte das falas por Eurípides em seus agônes, abrangendo uma série de argumentos auto-contidos ou pontos que se combinam para formar um conjunto.117

116

“The lawcourts may offer the closest parallel to the Euripides agon, but not only the only one, nor does every agon equally resemble a trial of any sort. Some agones (e. g. those in Alcestis and Iphigenia in Aulis) are more like quarrels than trials, while others (e. g. the agon in Medea and the scene between Hermione and Andromache in Andromache) begin like quarrels and only develop into trials with their formal defence speeches.”, The Agon in Euripides, p. 15 117 . The Agon in Euripides, p. 37-38

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Admeto começa sua fala com o pai, primeiro rejeitando sua presença, depois, suas homenagens a Alceste. Sua justificativa remete-se a uma ação passada, num tempo fora da ação dramática, mas cujo resultado está ali diante do público:118 Admeto: Não vieste a este féretro chamado por mim, nem conto tua presença entre os amigos. Teu ornamento ela jamais usará! Pois será enterrada sem necessitar de nenhuma de tuas coisas. Devias condoer-te antes quando eu ia morrer. E tu, ficando afastado, permitindo a um outro jovem morrer, sendo velho, lamentarás este cadáver? (629-635)

Torna a aparecer o tema aberto no prólogo por Apolo119, de que os velhos devem morrer no lugar dos mais jovens. Parece-me que esse é o ponto central de toda a argumentação de Admeto (e do coro, 466-70). Em seguida, Admeto apela para a filiação: o pai ou a mãe deveria aceitar morrer pelo filho. Admeto associa a negação deles a um comportamento escravo (doulivou d’ a*f’ ai@mato"/ mastw~/ gunaikoV" sh~" u&peblhvqun lavqra/; 638-39). Nesse passo aparece o termo já usado por Admeto para definir a relação de parentesco de Alceste: gunai~k’ o*qneivan (646), isto é, uma mulher ao mesmo tempo estranha e estrangeira (cf. 532-33). Portanto, poderíamos ver aqui uma questão de direito sim, ao contrário do que postula Michael LLoyd, quando sugere haver neste confronto entre pai e filho apenas um debate familiar sem implicações jurídicas.120 A mulher, em relação ao esposo, não é considerada parente consangüíneo do marido. E aqui o termo não reproduz a mesma ambigüidade de seu uso anterior no diálogo com Héracles.

118

“This proem may not be overtly rhetorical, but it does have rhetorical parallels in the type of agressive proem in which the first speaker tries to undermine his opponent‟s right to speak. (o autor pede que se veja na p. 26 sua discussão sobre os diferentes proêmios, geralmente defensivos e agressivos e às vezes, combinando as duas posições, cf. p. 26 Faz uma comparação com Medéia 467 (h^lqe" proV" h&ma~", h^lqe" e!cisto" gegwv" ) e Alceste 629 (ou!t’ h^lqe" e*" tovnd’ e*x e*mou~ klhqeiV" tavfon,), “The rhetorical device is more obvious in Medea‟s speech, but it seems also to be present in an embryonic and natural form in Admetus‟.” The Agon in Euripides, p. 38. 119 Cf. 55-57. 120 Cf. The Agon in Euripides, nota 2, p.XX.

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Admeto passa a enumerar a possibilidade, caso Feres tivesse escolhido morrer em seu lugar: teria disputado uma bela disputa (kaloVn g’ a!n tovnd’ a*gw~n’ h*gwnivsw, 648), o que corresponderia à conquista da bela morte homérica. A justificativa de Admeto para tal argumento é o pequeno tempo de vida de que Feres ainda dispõe; o objetivo final seria Admeto e Alceste disporem de um tempo maior juntos (648-52) Admeto prossegue em sua argumentação assinalando que Feres já teria desfrutado de tudo o que um homem feliz (a!ndra ...eu*daivmona, 653) poderia obter: Admeto: E o quanto um homem feliz deve experimentar, experimentaste. Chegaste à juventude com realeza, tiveste-me como um filho sucessor de teu palácio, de forma que, não morrendo sem filhos, não ias deixar tua casa órfã para ser destruída por outros. (653-57)

E aqui aparecem as implicações jurídicas, já que o assunto tratado tem como epicentro a transmissão de poder e herança, quando cada uma das partes tenta justificar a salvação de sua própria vida. Parece-me haver aqui uma inversão dos valores tradicionais.121 Admeto recusa sua filiação, mas não abre mão do poder de que agora é senhor, nem mesmo Feres contesta isso em sua contra-agrumentação. Sua justificativa repousa sempre no fato de Feres e sua mulher terem se recusado a morrer em seu lugar. A punição a eles impingida por Admeto é a deserção de sua filiação, sem, contudo, abandonar o que já recebeu do pai. Dentro da cultura grega, uma das obrigações do filho é amparar seus pais na velhice e, sobretudo, cuidar de seus funerais. 122 Temos, então, uma inversão de papéis. Feres é quem poderia deserdar seu filho e não o contrário (662-68). O ponto fulcral da recusa da filiação por parte Admeto resulta na ausência de quem deva “vestir” (peristelou~si, 664) e “expor” (proqhvsontai, 664) o

121

Hesíodo, na Teogonia, por exemplo, aponta como valor negativo o fato de o homem ter que se unir a uma mulher em casamento, porém pior ainda é a situação dos que fogem às obrigações matrimoniais, dos que não querem se casar (o@" ke gavmon feuvgwn...603; mhV gh~mai e*qevlh...604 e seq.), porque seus bem serão divididos entre parentes distantes (605). Mas para Hesíodo, nem uma Alceste salvaria a instituição do casamento. Teogonia, 603-12, trad. de JAA Torrano, São Paulo, 1991, p. 139. 122 “One purpose of marriage was to guarantee the religious observances expected of the oikos, particularly the funeral rites for its deceased members. To Sokrates‟ query about what constitutes “the beautiful”, Hippias answers

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cadáver do pai, procedimento este previsto para o filho. Atribui sua filiação a outro, seu salvador (a!llou.../ swth~ro", 666-67), sem, entretanto, nomear Alceste. A conclusão do proêmio de Admeto é uma consideração de caráter geral, estendendo-se não só a seus pais, mas a todos os idosos (669-72). Nesse momento, o corifeu tenta evitar que a discussão se prolongue, ordenando-lhes que parem, chamando a atenção para a infelicidade maior, que se supõe ser a perda de Alceste, cujo cadáver, de alguma forma ali presente, participa do duro embate entre pai e filho (673-74).123 A réplica de Feres é construída em resposta às acusações de Admeto: com um proêmio (675-80), Feres reclama estar sendo tratado como um escravo, mas não menciona o fato de o filho ter sido violento contra o pai. Porém, sua fala também é agressiva: “O proêmio defensivo de Feres tem também um componente agressivo, como costumam ter os proêmios defensivos, e ele tenta minar a fala de Admeto ao definir suas palavras como neaniva" (679). Tal tentativa de desbaratar a fala de um adversário como uma explosão imatura e mal-avisada é comum na retórica e tem paralelos em outra parte em Eurípides (An. 184, 192; Ba. 274).”124 Feres abre sua defesa, de maneira aparentemente dócil, com o vocativo w^ pai~ (675), o mesmo usado pelo corifeu (674), e apresenta primeiramente seu status social de homem livre de nascimento: Feres: Ó filho, a quem insultas por teus males, a um escravo lídio ou a um frígio comprado com teu dinheiro? Não sabes que nasci tessálio de um pai tessálio legitimamente livre? (675-78)

that it includes a man‟s arriving at old age “and, having buried his parents beautifully, to be buried beautifully and fittilingly by his own offspring” (Hp. Ma. 291d-e).”, Marriage to Death,Princeton, 1994, p. 21. 123 Cf. para a mediação do coro nos agônes, L‟ AGWN dans la tragédie grecque, de Jacqueline du Chemin, Paris, 1968, p. 152. 124 The Agon in Euripides, p. 39.

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Em seguida, acusa Admeto de insolente (a!gan u&brivzei", 679)125, o que lhe permite passar também ao ataque: Feres: És insolente por demais e, lançando palavras juvenis contra nós, não vais assim embora. (679-80)

Feres evoca a tradição: gerou seu filho como despovth" da casa, um termo que denota uma condição social privilegiada.126 Em seguida, Feres faz uma contraposição, que corresponde exatamente à fala de Admeto. Seus argumentos repousam sobre a lei recebida dos ancestrais, isto é, sobre a tradição em seu sentido de transmissão (681-84). As ponderações apresentadas por Feres, para refutar a idéia de que, por serem velhos, os pais deveriam ter morrido no lugar do filho, são razoáveis e, provavelmente, aceitas por toda a platéia, o que levou A. M. Dale a sugerir o seguinte paralelo para o trecho acima citado (683-84) “nem a lei do país nem Os Direitos do Homem contêm tal cláusula”.127 Feres menciona as heranças deixadas para o filho. Parece que somente as terras ficam para serem entregues depois de sua morte (687-88). Feres conduz sua argumentação para o debate jurídico de transmissão e posse de terra: Feres: Porque, quer sejas infeliz, quer feliz, nasceste para ti mesmo. O que precisas obter de mim, tens. Governas a muitos, e ricas terras deixarei a ti, porque as recebi de meu pai. Em que te fui injusto de fato? De que te despojei? (685-89)

Da parte de Feres, mesmo recusando-se a morrer pelo filho, não houve um ato que se inserisse no campo da injustiça (689). Feres proclama seu apego à vida (690125

Em momento algum o fato de Admeto permitir que Alceste morra em seu lugar é tido como uma hamartia. A objeção de Feres, num primeiro momento, refere-se apenas ao fato de Admeto querer que os pais morressem por ele. O verbo hubrizein aqui se refere apenas ao modo como Admeto tratou o pai. Não julga as ações de Admeto como um todo. 126 W. S. Barret, tece o seguinte comentário sobre o termo despovth", que aparece no prólogo do Hipólito, quando o servo lhe dirige a palavra: “ „Lord -(I adress you thus because) it is the gods whom one should call master - would you accpet advice I gave if it were good?‟ a!nax is a differential address (whether by a slave or freeman) to a prince; devspota (with its fem. devspoina) the humble address of a slave to his master. Both are used in addressing gods; with devspota the worshipper proclaims his humility as that of slave towards master.” Euripides Hippolytos, Oxford, 1964, p. 176.

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93), evidenciando o apego maior de Admeto, que, “ao “massacrar” (kataktav", 69 ) Alceste, ultrapassou o destino marcado (thVn peprwmevnhn tuvchn, 695). A nobreza do ato de Alceste reveste-se da coragem que faltou a Admeto (697-98). O ataque de Feres ressalta o fato de o filho estar subvertendo a ordem natural das coisas, ao encontrar, habilmente, um meio permanente de não mais morrer, caso viesse a encontrar sempre quem se dispusesse a morrer em seu lugar (699-701). Sua argumentação passa, então, de um debate jurídico para uma questão ética: que moral tem Admeto para censurar os que não aceitam a morte antecipada (701-2). A conclusão de Feres é a de não se pode censurar o amor que cada qual devota à sua vida: Feres: Cala-te! Pensa, se tu amas tua própria vida, cada um ama a sua. E se falares mal de nós, ouvirás muitas calúnias e não mentirosas. (703-05)

Mais uma vez, para conter os ataques, o corifeu pede a Feres que não ultraje seu filho. Vale lembrar que o coro também já censurou Feres e sua esposa, por terem se recusado a morrer pelo filho (706-07, cf. 466-68). Segue-se ainda, dentro do agón entre pai e filho, uma pequena esticomitia, em que se torna mais exasperada a irritação de ambas as partes128. Do ponto de vista da argumentação, não aparecem elementos novos. Porém, o confronto entre personagens produz uma intensificação da ação dramática; deve ser resultado, em termos de espetáculo, da alteração no tom das personagens envolvidas no confronto. Aqui essa exasperação resulta na expulsão de Feres do cortejo fúnebre. Encerra-se assim o agón. (708-733). Como aponta Michael Lloyd, este agón mereceu inúmeras análises, que, ora tendem para uma reprovação de Feres e, por conseguinte, para uma espécie de aprovação de Admeto, ora tendem para uma aprovação das objeções de Feres e, por conseguinte, para uma condenação de Admeto.129Mas, como ainda observa Michael LLoyd, independentemente do “partido” que se tome em relação a cada uma das 127

Euripides Alcestis, p. 106. “The agon ends with angry stichomythia of the usual kind, followed by the exits of both participants and the end of the act.” The Agon in Euripides, p. 39. 129 Idem, p.39-41. 128

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personagens, o agón de Alceste apresenta um debate sobre a recusa de Feres em se sacrificar por seu filho. Incidentalmente toca na aceitação, por parte de Admeto, do sacrifício de Alceste.130 Em suas últimas palavras, Feres parece ter mudado de opinião sobre Alceste, julgando-a não mais sensata (a!frona, 728), mesmo não sendo “sem vergonha” (a*naidhv", 728), com isso querendo atingir, na verdade, Admeto. Sua ameaça final (730-33), evocando a possibilidade do irmão de Alceste, Acasto 131, vir vingar a morte da irmã, acentua o debate jurídico, ainda que numa instância de “vara familiar.” M. LLoyd conclui: “a questão da culpa de Feres não é em si muito importante, mas a discussão dela no agón de Alcestis encaixa-se numa seqüência de cenas que mostram a tensão primorosa entre a correção e impropriedade de tudo o que Admeto faz.”132 Portanto, o que interessa desta cena de agón são os jogos de oposição trazidos para o espetáculo: morte e vida, aceitação e recusa de ambas as partes. Admeto expulsa o pai de maneira contundente, renegando de vez sua filiação (734-38). Em seguida ordena que o féretro continue: Admeto: E nós, pois devemos carregar o presente infortúnio, caminhemos, para que coloquemos no túmulo o cadáver. (708-40)

O coro entoa um pequeno canto, em anapestos, seguindo Admeto e o cortejo.133 É um elogio lamentoso a Alceste, novamente apresentada como gennaiva e mevg’ a*rivsth (742). Aqui também aparece um pouco do imaginário grego para o além vida; Alceste será recebida por Hermes ctônio e pode ter “algo de bom” e um assento junto a Perséfone134, esposa do Hades:

130

Idem, p. 41. Acasto é um dos filhos de Pélias e Anaxíbia e após a morte do pai provocada por Medéia, torna-se rei de Iolcos. 132 Idem, p. 41. 133 “The Chorus, or the Coryphaeus, speaks these anapaests to music as it turns and follows Admetus and the funeral procession.” A. M. Dale, Euripides Alcestis, p. 108. 134 A. M. Dale anota: “The welcome of Hermes Psychopompos and Hades is a modest wish; the thought of a seat as pavredro" by the side of Persephone is a measure of how far Alcestis is the noblest of women. The concept of a pavredro" varies with the context; sometimes it is technical: „assessor‟, as of Aeacus in Isoc. 9.15; her it is perhaps hardly more than a specially honoured Lady-in-Waiting, as the Love „attend upon‟ Wisdom Med. 843. Helen may be destined for some less subordinate position by the side of Hera and Hebe Or. 1687, but to be Zeus-born was a higher 131

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Coro: Ió, ió, infeliz pela ousadia, ó nobre em muito a melhor, adeus! Que Hermes ctônio te receba com benevolência e também Hades. E se lá houver algo para os bons, tomando parte dele, que possas ajudar a esposa de Hades. (741-46)

F. Duysinx assinala que a predominância de numerosos versos espondeus confere a este canto o tom de marcha fúnebre, retomando o mesmo tom do começo do episódio.135 Assim que o palco fica vazio com a saída do cortejo, um servo sai da casa de Admeto e, num monólogo, dirige-se, de forma indireta, ao público. É um procedimento não muito comum nas tragédias. Como nos lembra A. M. Dale, ainda na Alceste há outro monólogo, o de Héracles (837-60); em Helena, os monólogos de Menelau (386-434 e 483-514); em algumas outras tragédias encontramos monólogos apenas no prólogo.136 Albin Lesky acrescenta à lista de A. M. Dale cenas com palco vazio: nas Eumênides, de Ésquilo (234-235), e no Ájax, de Sófocles (813-14, quando o coro se retira e 865, quando Ájax se suicida). Em ambas há também uma mudança de cenário nesse momento. 137 No Phaeton e na peça apócrifa Rhesos, ambas atribuídas a Eurípides, também há cenas com o palco vazio. Albin Lesky vê a origem desse procedimento na comédia, relacionando a construção dessa cena (747-860) à duas passagens cômicas, uma de Aristófanes (Vespas, 1292) e outra de Menandro (Epitrepontes, 434): “Um servo relata o comportamento impróprio de alguém no claim than mere moral virtue - „if even there virtue has its reward‟; the gentle piety of the Chorus is less than optimistic.” Euripides Alcestis, p. 108. 135 “Les passages lyriques dans l‟ Alceste d‟ Euripide, p. 219. 136 Euripides Alcestis, p. 108. 137 “The monologue of the Servant on an empty stage is in effect sopken directly at the audience, as again the monologue of Heracles 837-60. The same technique is employed for Menelaus in Hel. 386-434 and 483-514; elsewhere in extant Greek tragedy it is found only in prologues. It became common, of course, in any part of the chorusless New Comedy, and presumably Epicharmus used it freely. But even in the middle of a tragedy such a speech makes no very unusual impression, since often enough the address to the Chorus is little more than a perfunctory form.” A. M. Dale, Euripides Alcestis. 108. Albin Lesky apresenta outras peças à lista de A. M. Dale para palco vazio: “The stage is now empty, as in the Eumenides and Aias, both times with a change of scene; this occurs again in Euripides” Helen and Phaeton, and in the spurios Rhesos. The fourth epeisodion (747-860) is constructed in a way familiar to us from the comedies of Aristophanes (Wasps 1292) and Menander (Epitrepontes 434).” Greek Tragic Poetry, p. 213.

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interior da casa, que, então, em pessoa aparece no palco. O efeito do confronto subseqüente depende de um mútuo mal entendido, um procedimento explorado com muitas variações pela comédia de todos os períodos.”138 Na verdade, tanto o monólogo do servo quanto seu diálogo com Héracles apresentam elementos cômicos. Penso ser justamente por isso que a peça tenha sido considerada uma tragicomédia, um drama satírico ou um drama pró-satírico. Porém, se considerarmos o peso da cena anterior, com um dos agônes mais duros da tragédia grega, acontecendo diante de um cadáver, é compreensível que Eurípides procure relaxar a tensão dramática, tirando de cena todas as pessoas diretamente implicadas na morte de Alceste, incluindo aí o coro de velhos da cidade, que vê no ato de Alceste não só o sacrifício, mas também o heroísmo. O monólogo do servo é, a exemplo dos mensageiros, um relato do que se passou e ainda está se passando dentro do palácio. Como não há mais ninguém no palco, o interlocutor é o público. O primeiro ponto de sua fala repousa na distinção entre os outros hóspedes que chegaram à casa e Héracles, cuja identidade lhe é desconhecida: Servo: Muitos hóspedes vindos de todas as partes já vi chegarem à casa de Admeto, aos quais servi refeições. Mas, nunca, neste lar recebi um pior que este hóspede. (747-50)

O elemento cômico, o do desencontro de informações, já aparece nesta primeira fala do servo, pois o público antecipadamente sabe de quem se trata e qual a sua tarefa. Para o servo, é o pior (kakivon, 750) dentre todos os hóspedes recebidos pela casa de Admeto. Porém, esse comportamento equivocado do servo traduz-se em afeição por Alceste, que é como uma mãe para ele e para os outros servos da casa (769770). O servo não admite que o hóspede, tendo percebido haver luto na casa, tenha consentido em ser recebido. Neste relato do servo, vai-se desenhando um Héracles fanfarronão e comilão, personagem típica da comédia (751-55). Sua falta de moderação 138

Greek Tragic Poetry, p. 213.

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começa pelo fato de ousar ultrapassar as portas do palácio (752) e continua nas exigências que faz aos escravos (753-55), para atingir seu ponto mais alto, sem dúvida, no fato de embriagar-se, com a conseqüente falta de sobriedade. Dentro da casa de Admeto, ainda com o corpo da morta ali presente, sua bebedeira é a continuação da ousadia que merece a reprovação do servo e, depois, mesmo do próprio Héracles (cf. 1015-16). Como agravante, a denúncia feita pelo servo, de estar Héracles bebendo o vinho puro, sem mistura (756-760), o que se representa uma falta de educação.139 Assim, além de um descomedimento no trato com os servos da casa, sem consideração pelo sofrimento da perda de alguém, há uma falta de etiqueta, normalmente observada em relação ao vinho. O desenho, que o servo traça em suas palavras, é algo grotesco. Enquanto o hóspede se embebeda,140 com gritos sem música, que se traduzem por uma cantoria inarmônica (760), um outro “canto” produz-se no palácio: o choro dos serviçais (760; 762). O contraste acentua-se mais, ao se confrontarem a exibição da bebedeira de Héracles e o choro dos servos que o atendem, que deve ser contido por ordem de Admeto (762-65). As considerações finais do servo confirmam seu desconhecimento acerca da identidade desse hóspede ilustre. Tem-no por ladrão velhaco (panou~rgon klw~pa, 766) e um pirata (lh/sthVn tina, 766), o que poderia soar engraçado para uma platéia sabedora de quem se trata. Com essa cena de relato, por outro lado, Eurípides acentua a afetividade dos servos em relação a Alceste, enfatizando a situação bizarra criada por Admeto, ao receber um tal hóspede num momento de luto, mesmo que seja o futuro 139

Cf. o texto Dionisio a céu aberto, de Marcel Detienne, p. 67-68 sobre o vinho puro e a mistura. Cf. também o fragmento de Alceu, Z 22, Denys Page, Sappho and Alcaeus, pp. 307-08. A. M. Dale anota: “melaivnh" mhtroV": the black grape, cf. A. Pers. 614-615 a*khvraton deV mhtroV" a*griva" a!po| povton. In the mouth of a slave the mannered periphrasis sounds incongruous; Eur. least of the tragedians varies the tone and style of his dialogue to the person speaking.”, Euripides Alcestis, p. 109. 140 “Sobre a bebedeira de Héracles: “Heracles is „merry‟ not drunk. He has done himself well, that is all. Some modern spectators (but no ancient Greek) may deny that there is any difference, and be disgusted at such behaviour on the part of a divine hero. Of these it can only be said that they do not know Olympus, and that Greek plays were not written for them. We may remind them also that Heracles is not a son of God, but only a son of Zeus (one of many), that neither Heracles nor his Greek audience would have a sence of sin about drinking wine, though they thought drunkenness ugly. But Herakles is not drunk.” p. 141.Essa é a opinião de G. M. Grube, The Drama of Euripides, 1973, p.141. Cf. o comentário de A. M. Dale, que nos parece mais consistente: “760. Cf. frag. inc. 907N2 (probably from the Syleus) krevasi boeivoi" clwraV su~k’ e*phvsqien| a!mous’ u&laktw~n. This „discordant braying‟ is the climax of Heracles‟ revelry here. The Cyclops (Cyc. 425 a!/dei...a!=mousa) was affected by drink in the same way.” Euripides Alcestis, p. 109.

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salvador de sua esposa. O efeito da cena: acentua as contradições geradas pela recepção e hospitalidade de Admeto; dá prosseguimento às mudanças processadas no andamento e direção da ação dramática. Após o monólogo do servo, Héracles sai do palácio. Eurípides está nos preparando uma cena em que se resolve o mal-entendido criado por Admeto no episódio anterior, quando da chegada de Héracles. O relato do servo confirma-se pelo espetáculo visto pelo público. Héracles, primeiro queixa-se do semblante sério do servo (773), da falta de afabilidade com que é recebido (774-75). Mas sabe que o sofrimento do servo é pela morte de alguém de fora (quraivou phvmato" spoudhVn e!cwn, 778). O estado alterado de Héracles aparece em suas falas seguintes. Eurípides faz transparecer aqui uma filosofia que valoriza o viver o momento presente, tendo como base o fato de a morte ser comum a todos (brotoi~" a@pasi katqanei~n o*feivletai, 782), pensamento que, sem dúvida, tem suas raízes em Homero. Mas aqui temos não só a idéia da morte como coisa comum a todos os homens, mas também a noção do limite do conhecimento humano quanto à duração da vida (kou*k e!sti qnhtw~n o@sti" e*xepivstatai/ thVn au!rion mevllousin ei* biwvsetai, 783-84), reflexão desenvolvida sobretudo pelos poetas líricos, especialmente por Píndaro.141 Na fala de Héracles, a idéia da morte inevitável e a da impossibilidade de saber até que dia dura a vida, vêm associadas à idéia de um hedonismo imediatista, talvez pré-epicurista. Também é preciso acentuar que a idéia de aproveitar a vida porque a morte é certa, está ligada ao conhecimento da natureza das coisas mortais (taV qnhtaV pravgmat’ oi^da" h$n e!cei fuvsin;, 780), coisa que, para Héracles, o servo não possui (oi^mai men ou!: povqen gaVr;, 781) e, por conseguinte, a uma forma de sabedoria revelada (deu~r’ e*lq’, o@pw" a#n sofwvtero" gevnh/, 779). No entanto, este conteúdo filosófico aparece de uma maneira um pouco difusa, pois a conclusão de Héracles é uma idéia genérica de que não se pode ensinar ou aprender por artifício (784-85). A comicidade da cena torna-se mais evidente, quando Héracles, após revelar sua sabedoria, convida o servo para beber 141

Cf. Píndaro: VIII Pítica: “e*pavmeroi: tiV deV ti";| tiV d’ ou! ti"; skia~" o!nar| a!nqrwpo". (135-37)”; VI Neméia “Porém, em algo nos assemlhamos, ou pelo grandioso espírito ou pela natureza, aos imortais, embora não de dia sabedores nem de noite até que marca o destino traçou-nos caminhar.” (8-12).

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(788) e exorta-o a honrar Afrodite, numa clara insinuação de que o servo se entregue aos prazeres do sexo (789-93). Como o servo não fez um movimento sequer, nem respondeu às solicitações, Héracles continua sua pregação pragmática. Até aqui, Héracles revela seu estado alterado e seu desejo de descontração na casa de um amigo como Admeto. Segue-se uma breve esticomitia entre o servo e Héracles, em que este fica sabendo ser Alceste a mulher que morreu (803-19). Como no diálogo entre Héracles e Admeto, na primeira parte do diálogo entre o servo e Héracles, percebe-se a insistência deste em querer saber quem morreu (cf. 512 e seq.). Aqui o primeiro termo a ganhar peso para caracterizar a morta é o*qnei~o" (810), não suggenhv" (cf. 532, 533, 646, 810); o segundo termo talvez não menos importante é qurai~o" (cf. 778, 805, 811, 814, 828, de fora, estrangeira), com uma nuance bem diferente do termo xevno", que ora designa quem é recebido como hóspede, ora quem o recebe. Somente quando o servo declara que Héracles não chegou num bom momento para ser recebido como hóspede (817), o que é visível pelos sinais de luto (18-19), é que Héracles, cortando a fala do servo, interroga-o: Héracles: Quem é que morreu? Será que uma das crianças partiu, ou o velho pai? (819-20)

A resposta do servo é direta e curta: Servo: Foi a mulher de Admeto que faleceu, estrangeiro. (821)

O estado de embriaguez de Héracles cessa a partir da confirmação do servo. Héracles: O que dizes? E depois ainda me hospedastes? Servo: Ele tinha vergonha que fosses embora deste palácio. (822-23)

O valor de Alceste mais uma vez é lembrado tanto por Héracles como pelo servo: Héracles: Ah, infeliz! Que companheira perdeste! Servo: Morremos todos, não só ela. (824-25)

102 Canto e Espetáculo em Eurípides

Héracles compreende agora o que viu antes: as lágrimas, o luto e, sobretudo, o sentido de qurai~o", aqui equivalente a o*qnei~o" (828). Todos os seus atos dentro do palácio são avaliados. Para G. M. A. Grube, Héracles está estupefato e atingido por remorso.142 Todos o signos que apontavam para a morte de Alceste, começam agora a fazer sentido (826-34). Constata ter violado as regras em relação à morte de Alceste, ao aceitar a hospitalidade de Admeto, ao beber e ao festejar coroado (831-32). Sua pergunta sobre o túmulo de Alceste indica seus próximos passos (834). Note-se que não há uma censura muito forte à conduta de Admeto, que, mais uma vez, se traduz numa excelência de hospitalidade. O servo indica o local em que Alceste foi enterrada (835-36). O local corresponde à prática mais comum no século V a.C. em Atenas.143 Após esse breve informe, o servo sai de cena sem um anúncio prévio ou outra indicação qualquer, o que, segundo A. M. Dale, não é usual na tragédia, “mas talvez os de categoria humilde poderiam mais facilmente partir assim.”144 Porém, para a economia do espetáculo, não convém que o monólogo de Héracles seja ouvido por outra personagem. Só o público deve ouvi-lo, como aconteceu com o monólogo do servo, porque a partir desse momento a peça caminha para o seu desfecho. Em seu monólogo, Héracles exalta seus próprios sofrimentos (837) e o valor advindo de sua nobre descendência (838-39). Traça seu plano de salvação para Alceste e do pagamento pela hospitalidade de Admeto (840-42), que prevê, primeiro, encontrar a Morte, ainda bebendo o sangue dos mortos à beira do túmulo (843-49). Se falhar 142

“Amazed and stricken with remorse, quite sober now, he reproaches himself for not seeing that something was wrong, and for having been so easily persuaded to stay. Letf alone, he determines to do something ro repay Admetus for his noble hospitality (855 ff.) for which, it should be noted, he has nothing but admiration. He will rescue Alcestis from Death by waiting in ambush for the dread spirit near the tomb. If that fails, he will go down to the underworld to fetch her back. And with these brave words he departs.” , The Drama of Euripides, p. 142. 143 Como observa Walter Burkert: “Com o desenvolvimento da administração das cidades, ocorre a separação ente o local de habitação e o recinto destinado às sepulturas: o morto tem de ser “levado para fora”. Assim, as sepulturas multiplicam-se ao longo das estradas principais que saem da cidade. Um exemplo típico é o “Cerâmicos” em Atenas.”, Religião grega na época clássica e arcaica, p. 374. A. M. Dale também comenta: “It was usual practice to ribbon the roads leading away from the city with important tombs, starting just outside the precint. That it is visible by the saide of the straight road is not inconsistent with 1000, where the wayfarer is described as docmivan kevleuqon e*kbaivnwn. A short path e*k plagivou (S) frm the highway led to the tomb standing a little way back from the roadside. Tombs were visited mostly from the city, so that a short cut off the road. The tomb is imagined as xevsto", of dressed sotone like the tombs in the Cerameicus; the Servant speaks as if it were already completed and a familiar landmark.” Euripides Alcestis, p. 113.

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neste combate singular, planeja uma descida até o Hades, onde rogará diretamente à Perséfone pela volta de Alceste (850-56). Todo esse empenho imediato se deve única e exclusivamente ao melhor hospedeiro dentre os helenos, Admeto, que fez o que fez, por respeito (ai*desqeiV" e*mev, 857), sendo essa a sua excelência: Héracles: Quem dos tessálios é mais amigo dos hóspedes que ele, quem dentre os helenos? Assim, não há de dizer que nascido nobre, fez bem a um homem mau. (858-60)

A saída de cena de Héracles é problemática em termos de espetáculo. Esperase que saia em direção ao túmulo de Alceste, como anunciado. Ora, esse é o mesmo caminho pelo qual saíram Admeto e o cortejo fúnebre. Pelo texto, assim que Héracles sai de cena, o palco ficando mais uma vez vazio, entram Admeto, o coro e todos os que foram enterrar a rainha. No entanto, para que o enredo prossiga, não se encontram. 145 Há uma incongruência entre o texto dito e o que se vê em cena? Teria Eurípides sacrificado a forma em favor do conteúdo que queria fazer prevalecer? 146 Oliver Taplin é esclarecedor quanto a este particular, em seu estudo das entradas e saídas de cena nas peças de Ésquilo, ao rejeitar a convenção de que a entrada de personagens, vindas do campo ou do porto, dá-se pela direita, e de que a saída da cidade dá-se pela esquerda. Ressaltando que a convenção é estabelecida num período tardio, destaca também que o uso dos dois eisodoi não é aleatório, mas deve sempre atender às necessidades dramáticas exigidas por cada uma das peças.147 O túmulo de Alceste, como indicado na fala do servo, fica junto do caminho direito (o*rqhVn para’ oi^mon, 835). Assim, podemos supor que Héracles possa ter saído de cena pela direita. Admeto, vindo do

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idem, p. 113. G. M. A. Grube anota: “The exit is awkward, for Heracles is going to the same place from which Admetus and the chorus return, and yet they do not meet. Flickinger supposes a slight change of scene at 747 to another part of the palace. Probably the point was ignored. In any case, Heracles would avoid meeting Admetus now.”, The Drama of Euripides, p. 142. A. M. Dale também observa: “Heracles leaves for the tomb, apparently without meeting the returning funeral procession, though his exit and Admetus‟ entrance must have been by the same side.”, Euripides Alcestis, p. 114. 146 Flickinger faz uma série de observações interessantes, mas tem um ponto de vista muito pontuado para provar suas teses sobre a relação do espetáculo acomodado às condições materiais e mudanças de cena: cf. The Greek Theater and its Drama, Chicago/London, 1973 (1a. ed. 1918), p. 233-35; 250. 147 The Stagecraft of Aeschylus, apêndice B, “The Stage Resources of the Fith-Century Theatre”, p. 450-51. 145

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túmulo, poderia ter entrado novamente em cena pela esquerda. Resolveríamos aí a questão do desencontro dos dois. Na verdade, o texto não apresenta indicações claras sobre isso. O fato é que, deixando o palco vazio mais uma vez, Héracles vai para o túmulo de Alceste, não se encontrando com Admeto, que chega com o coro e com o séquito que acompanhou o féretro. A cena seguinte, a que conclui esse longo episódio, é constituída de um kommós entre Admeto e o coro. Em sua análise, Albin Lesky tece as seguintes observações: “A terceira parte desse longo episódio pertence inteiramente a Admeto, que volta do túmulo com o coro. Seu sofrimento dá o tom para o kommós e é expresso depois por uma reflexão clara porém dolorosa. No kommós, quatro passagens anapésticas de Admeto são seguidas por quatro elementos individuais em dois pares estróficos, em que o coro oferece consolo, suas vozes divididas no primeiro par, unidas no segundo. Nos anapestos de Admeto, a primeira e a quarta seções descrevem o horror da casa desolada; no meio, ouvimos o lamento mais que excessivo (cf. Med. 1090), pelo sofrimento que um homem deve suportar se ele se casa; e a terceira passagem atinge uma nota enfática com a questão feita ao coro por Admeto: Por que me trouxestes de volta quando eu desejava lançar-me dentro do túmulo?”148 Porém, quanto ao espetáculo, qual seria a função deste kommós neste momento da peça? A cena que o precedeu tinha algo de cômico, aliviando o público da tensão após o forte agón entre pai e filho, seguido da procissão de enterro de Alceste. Mas, para que o final da peça tenha ainda elementos de surpresa e resolução dramática, é preciso retomar a dor da perda, e o poeta consegue esse efeito, fazendo Admeto cantar alternadamente

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Greek Tragic Poetry, p. 213-14. Na nossa tradução o texto está ligeiramente diferente do que propõe Lesky, cf.: “Por que me impediste de me lançar/ na côncava vala túmulo e com ela,/ a mais excelente, jazer falecido?” v. 89799. A. M. Dale anota: “This kommós consists of four anapeatic systems of varying length declaimed by Admetus, each followed by a stanza from the Chorus. The anapaests are o regular recitative type, with an occasional monometer and each closing in the paroemicac. The stanzas form two antistrophic pairs of quite different types: the first is in iambo-dochmiac with one iambelegus, and is interspersed with interjections extra-metrum from Admetus. It is the earliest example of a typical form of Euripidean kommós in which the metres are restricted to those which pass easily into recitative, ans it is possible that these lines were delivered in something less than the full singing tone, and even that they were given by the Coryphaeus alone. The second pair is pure lyric, sung by the whole Chorus (and ignored by Admetus).” Euripides Alcestis, p. 114.

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com o coro (861-71).149 Nesta sua primeira manifestação, após o sepultamento de Alceste, temos um outro Admeto, diríamos, arrependido por não ter morrido. 150 A habilidade de Eurípides em captar estados interiores das personagens aqui já se faz bem clara. Admeto expressa a dor pela ausência de Alceste na constatação do espaço vazio (861-62). Porém, seu desejo de ter morrido também, aqui mais intenso, parece anular o nobre ato, a excelência de Alceste (866 e seq.). O coro (ou o corifeu, ou ainda os semicoros) tentará restabelecer o equilíbrio, em contraste com o desespero de Admeto, que corta as falas do coro com soluços (872-77).151 Essa contenção do coro enfatiza as emoções de Admeto. As interjeições de Admeto acentuam sua dor. O segundo recitativo de Admeto é ainda mais surpreendente, pois, além de anular o feito heróico de Alceste, tendo ela, afinal, morrido para que ele próprio sobrevivesse, ainda nega a validade de seu casamento (878-88). No recitativo anterior, Admeto afirma invejar os mortos (866); agora inveja os não casados e os sem filhos (882). Considero necessário prestar bastante atenção a essas exclamações de Admeto, pois Eurípides não as poria por acaso neste momento de intensidade emocional mais elevada. Admeto está, de certa forma, anulando tudo o que se afirmou quanto à bravura, à coragem e à dignidade de Alceste, a única a aceitar o jugo de morrer por ele. Podemos pensar que, nesse momento, Admeto não está pensando em si, mas na ausência da mulher amada. Assim, a falta de razão explicar-seia pelo transbordamento emotivo em sua mais alta expressão. O coro mantém seu tom de consolo, sendo interessante notar que jamais censura Admeto por ter escolhido permanecer vivo. Disso o acusara o pai, mas menciona, como já o fizera (416 e seq.), o fato de não ser o primeiro a perder a mulher (892-93), não mudando sua opinião sobre os acontecimentos. O corifeu atribui ao destino os sofrimentos de Admeto (889-94).

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Para os sistemas métricos do kommós veja-se F. Duysinx, “Les passages lyriques dans l‟ Alceste d‟ Euripide”, p. 221-232. Tomamos deste trabalho as indicações das alternâncias entre partes cantadas e partes em recitativo. 150 G. M. A. Grube assinala o tamanho e a lentidão da cena:“Now that his wife is in truth dead and buried, the young king is beside himself with grief. A great change has come upon him, and his lamentation has the simple and touching beauty of a great and genuine sorrow.” Euripides drama, p. 142. 151 J. Estève cita esse kommós como exemplo de epirrema anapéstico: Alc. 861-904 e Med. 96-213. Quanto à parte do ator Estève ressalta que é pouco importante, cf., p. 108.

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No terceiro recitativo de Admeto, o valor de Alceste volta a ser lembrado (899), mas nem por isso o seu gesto para salvar a vida do esposo é levado em conta, já que ele insiste na idéia de que melhor seria ter morrido, reclamando de ter sido impedido de se lançar ao túmulo (897-99). A idéia de fidelidade aparece em sua fala, ao considerar que, se ele também tivesse morrido, o Hades possuiria duas almas fidelíssimas (900-02). O coro passa então a cantar em conjunto, - se aceitamos que, até aqui, ou o corifeu ou semi-coros divididos estariam atuando com Admeto - uma estrofe em que, confirmando um pensamento já expresso anteriormente, relata a perda de um filho de um parente distante (903-10). É uma historinha comum, tirada do quotidiano do coro de velhos de Feres. O cerne desse relato repousa na idéia de resignação expressa no termo a@li" (907), que, segundo A. M. Dale, aqui eqüivale ao termo mais comum metrivw"152, isto é, na justa medida, sem se revoltar contra a tuvch. O coro ainda ressalta as condições de seu parente, que, ao perder o filho único (kovro"...monovpai", 904-06), já tem cabelos brancos e é avançado em idade (907 e seq.). Admeto ignora o relato do coro e retoma seu tom de lamento (911-25). Agora quem invoca as imagens do casamento, relacionando-as com a morte, é Admeto. Semelhantes e ao mesmo tempo opostas, entre um passado distante e o presente, essas imagens marcaram a alegria do casamento entre dois nobres (915-921). A alegria do casamento tem como imagem os peplos brancos; no presente, no lugar dos cantos esponsais, um gemido adversário dos himeneus, que se reflete nas vestes negras, o conduzem para dentro de seu quarto de leito vazio (924-25). O coro na antístrofe é mais contundente e, embora sem tom de censura, podese perceber nela o lembrete que Feres, de maneira muito mais enfática, já fizera a Admeto (926-33). São palavras duras neste momento, que refletem tudo o que já se dissera antes. Afinal, Admeto não sabia que, ao escolher salvar sua própria vida, haveria de sacrificar a vida de outro? O coro neste fim do kommós é pragmático: não

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a@li", segundo A. M. Dale, aqui igual a metrivw". Cf. Euripides Alcestis, p. 117.

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há nada de novo na separação de esposos pela morte (931). Admeto, então, fechando esse longo episódio, “cai em si” e passa a medir os efeitos de sua aceitação (934-61). As marcas da ausência de Alceste agora se traduzem em situações novas: a quem Admeto deve dirigir a palavra e de quem receber a saudação? (942); o leito e os assentos vazios (945-46); e, sobretudo, o chão empoeirado (947), que levou Jan Kott a afirmar: “quando Admeto retorna à casa, vindo do funeral, não está muito preocupado com o leito nupcial vazio, mas com o chão todo coberto de poeira (946-7). O chão das tragédias gregas estão manchados de sangue com freqüência, mas nunca antes estiveram „sujos de pó‟.”153 Admeto reclama de ter que ver os filhos e os criados chorando a senhora que perderam (947-49). Essas coisas terá que suportar dentro de casa. Fora dela, Admeto afirma que não suportará ver as contemporâneas de sua esposa (953). Mas por que será? Não resistiria à atração? Como se não bastasse, prevê a calúnia de “alguém detestável”, que reproduzirá exatamente as mesmas acusações feitas pelo pai (954-59). Sua conclusão é de que sua vida não vale mais a pena (96061). Pelas palavras de Admeto, podemos concluir que de nada valeu o gesto de Alceste. Morreu em vão.

Quarto estásimo: vv. 962-1007 No quarto estásimo, em sua última interferência, o coro reitera aquilo que ao longo da peça vinha postulando: Admeto tem que se conformar com sua própria escolha, ao aceitar a morte da esposa em seu lugar. Para Albin Lesky, “a canção do coro agora flui mais amplamente no quarto estásimo (962-1005). No primeiro par estrófico, os velhos de Feres cantam a inflexibilidade de Anánke, antes da cena conclusiva, na qual ouvimos o “todavia” que aponta para a salvação; no segundo par, voltam-se para Admeto, convidam-no a considerar a necessidade de seu destino pesaroso e concluem com uma serena transição para louvar Alceste e seu sacrifício.”154 153

The Eating of the Gods, London, p. 80. Greek Tragic Poetry. p. 214. G. M. A. Grube tece também o mesmo comentário genérico sobre esse canto coral: “The next stasimon, though a trifle more reflective than the others, does not remain so for long. There are two stanzas on the power of Necessity whom no one can escape, one of consolation to Admetus, who may be on the stage (1007), and one that celebrates the glory of Alcestis. The theme of Necessity has relevance to both of them: Alcestis is dead and cannot return, while Admetus must endure his fate as all mortals must (the ode is primarily evoked by his 154

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Porém, essa transição serena comporta alguns elementos interessantes, de uma religiosidade um pouco diferente, e que nos faz compreender, agora, toda a postura do coro, desde o começo da peça: é uma personagem que se mantém coerente até o fim. Como já enfatizamos, não há uma censura à atitude de Admeto. O coro mantém-se solidário ao viúvo, mas também não deixa de ressaltar o ato heróico de Alceste, que aqui recebe o título póstumo de mavkaira daivmwn (1003), tratando-a como uma divindade por seu ato.155 Não se trata de um mero elogio, ou mesmo de um consolo. Isso é feito num momento da peça em que Eurípides traz para a cena, através do canto, uma reflexão altamente filosófica, buscando, sem dúvida, material nos movimentos sectários, isto é, nos órficos e nas religiões de mistério, vagamente insinuados nas visões que Alceste tem do outro mundo, quando estava no processo de morte (252 e seq.), e nos votos que tanto o coro como Feres fazem, ao desejar que ela seja feliz no Hades (cf. 462-63, 626-27), o que na perspectiva religiosa oficial e pública não tem ressonância. Como A. M. Dale anotou, o canto do coro neste estásimo é: “ uma ode sobre o poder inexorável da Necessidade: poesia, ciência, filosofia, todos concordam com essa lição; mesmo as artes reveladas por Orfeu e por Apolo a seus descendentes, podem não valer nada contra ela, nem podem a prece e o sacrifício; mesmo Zeus deve harmonizar seu desejo com ela, e a matéria mais dura é submetida à sua forma.”156 Este canto do coro traz agora para o imaginação do público, não o mundo complicado dos deuses, de suas decisões, nem mesmo os caprichos da tuvch, mas simplesmente o cumprimento do que Anánke exige. O tema central da ode repousa na idéia de acentuar o poder inexorável da Necessidade. No primeiro par da ode temos uma visão ampla e genérica da característica principal de Anánke; no segundo, o resultado particular dessa terrível divindade para a

lamentations), and, less directly, the theme suggests that he is not entirely to blame for the part he has played.”, The Drama of Euripides, p. 143. 155 Rush Rhem examinando os rituais fúnebres esclarece: “Perhaps on this occacion (durante o perivdeipnon) or earlier during the prothesis, the deceased would be called makavrio" (makarios), “blessed”, both a euphemism and an acknowledgement that the difficulties of life were over.” Marriage to death, p. 28. 156 Euripides Alcestis, p. 119.

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vida de Admeto e a glorificação de Alceste como divindade (962-72).157 A reflexão do coro nasce de sua elevação às alturas (metavrsio", 963) pelo efeito das musas (diaV mouvsa", 962), isto é, pelo efeito da música e da poesia. O efeito calmante da música produz um efeito de elevação mística, possibilitando o contato com doutrinas (a&yavmeno" lovgwn, 964) filosóficas.158 Na verdade, o coro está nos descrevendo uma prática oriunda da religião de mistérios, o que se confirma na referência às tábuas trácias (qrhv/ssai" e*n sanivsin, 967), que teriam sido escritas por Orfeu (taV" *Orfeiva katevgrayen/ gh~ru", 968-69).159 Não é sem importância essa referência às idéias oriundas das seitas de mistério nesse passo da peça, levando-se em conta que, dessas doutrinas, o elemento mais contrastante com o pensamento comum do homem grego é, sem dúvida, a sobrevivência da alma no além.160 Pelo modo como os velhos o formulam, pressupõe-se que são “iniciados” nos mistérios161, pois tem acesso a uma experiência reveladora e as musas são um meio, uma espécie de exercício místico. A música, além de Apolo como patrono, está ligada intimamente a Orfeu.162 É interessante ainda notar que, geralmente, as doutrinas órficas estão mais associadas ao mistérios báquicos. Não temos notícia de celebrações de mistérios em relação a Apolo. Aqui ambos estão estreitamente ligados pelos livros (967) que contém

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“The shape of the ode is a common one in Eur. (cf., for instance, Med. 410 ff., 824 ff.): a general reflection, developed in the first strophic pair, is given its particular application - often in direct address - in the second pair.” A. M. Dale, Euripides Alcestis, p. 119-120 158 A. M. Dale anota: “lovgwn: the doctrines of philosophy”, Euripides Alcestis, p. 121. 159 Veja-se o que Walter Burkert afirma dos tais livros de Museu e de Orfeu. Religião grega na época clássica e arcaica, p. 565-66. Cf. também as notícias que A. M. Dale dá sobre os livrinhos: “sanivde" were normally wooden tablets, covered with gypsum to make a writing-surface, used for posting up public records, Cf. Ar. Vesp. 349, 848. S quotes Heraclides Ponticus (fourth century B.C. as authority for the existence of a collection of Orphic sanivde" at a temple of Dionysus on the Thracian Haemus, and a temple would be suitable repository for sucha collection of texts. Plato, Rep. 364 e, speaks of a „babel of books‟, bivblwn o@madon, attributed to Orpheus and Musaeus and offering luvsei" kaiV kaqarmoiV a*dikhmavtwn through certain sacrificial rites and liturgies (cf. also Hipp. 954). So here Orphic wisdom is preserved in magic prescriptions which nevertheless afford no „remedy‟ for Necessity.” Euripides Alcestis, p. 121. 160 Examinando as celebrações dos mistérios eleusinos, Walter Burkert afirma: “Foram duas dádivas, dizia o povo, que Deméter concedeu em Elêusis: o cereal como base da vida civilizada e os mistérios que ofereciam a promessa de “melhores esperanças” para uma vida feliz no além. Esses mistérios ocorriam exclusivamente em Elêusis, e em nenhum outro lugar.” Antigos cultos de mistério, p. 17. 161 Walter Burket vê na religião de mistério uma necessidade de transcender a realidade da morte que apresenta desde suas origens a idéia de “salvação” tendo paralelos com os mistérios de Ísis, no Egito. Cf. Antigos cultos de mistério, p. 33 e nota referrente. 162 Cf. Religião grega na época clássica e arcaica, 563-72, para apreciação de Orfeu, orfismo e pitagorismo.

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o “canto” de Orfeu e pelas ervas medicinais de Apolo,163 confiadas aos asclepíadas, médicos que remontariam sua linhagem a Asclépio. Essa medicina primitiva, pelo menos até Hipócrates, que também é um descendente da linhagem do herói-deus da medicina, pode muito bem constituir-se de um saber especial e, portanto, de caráter iniciático - não são todos os que detêm esse tipo de conhecimento. No entanto, nem os conhecimentos de tais doutrinas e práticas isentam qualquer um do jugo da Necessidade. Elas servem como pano de fundo, para ecoar o que Héracles já afirmara ao servo, na cena anterior, a respeito da impossibilidade de se aprender ou apreender o que não se vê da tuvch (cf. 785-86). Aqui, pois, morrer, mais que cumprir um destino, como o coro também já afirmara, é uma decisão soberana da Necessidade?164 A antístrofe correspondente dá continuidade à exaltação de Necessidade como uma divindade que não recebe qualquer tipo de culto (973-82). O poder de Necessidade supera tudo. Os rituais perdem seu sentido, pois ela não tem altares nem recebe oferendas (963-64), e até Zeus opera com ela em harmonia. A. M. Dale observa, oportunamente, que “a natureza da relação entre Zeus e a Necessidade é sempre um dos problemas mais atraentes para ser resolvido poética ou teologicamente. Aqui há um tipo de colaboração, uma identidade de propósito, expressa pelo terrível consentimento de Zeus.”165 Até o ferro produzido pelos Cálibes, conhecido entre os gregos por sua dureza, está subjugado ao poder de Necessidade.166 Porém, é preciso lembrar que estamos dentro de um canto coral, que, de certa forma, faz a ponte entre as cenas do féretro, do debate, da descoberta de Héracles e da

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A. M. Dale chama a atenção para o sentido de a*ntitemwvn no verso 972: “is explained by S as curwvn, a metaphor from the herbalist‟s activities as in A. Ag. 17 e*ntevmnwn a!ko", Andr.121 a!ko" duvsluton povnwn temei~n, but here surely the favrmaka are literal, the [recipes for the use of] herbs „shredded as antidotes‟ which were traditional lore of the Asclepiads.” Euripides Alcestis, p. 121. 164 A ídeia do dia marcado e do dia fatal já aparece desde o prólogo (cf. tovd’ h^mar w/~ qanei~n au&thVn crevwn, v. 27; tou~to gaVr tetavgmeqa, v.49; tovde kuvrion h^mar, v. 105; a*ll’ au*tivk’ e*n toi~" ou*ket’ ou^si levxomai, v.322). A morte como algo inevitável: (cf. !Admht’, a*navgkh tavsde sumforaV" fevrein, v. 416) e toda a cena do kommós 861-934, em que o coro insistentemente consola Admeto, dando outros exemplos de perdas, etc. 165 Euripides Alcestis, p. 121. 166 A. M. Dale anota: “Cavluboi as in fr. 472, A. Sept. 728, more commonly Cavlube". These remote and halfsavage sidhrotevktone" (PV 714) on the south Pontic shores kept a literary monopoly of iron-working, even when the metal itself was found and worked all over the Greek world.They were a ming community on a great scale, and their products were credited with a peculiar hardness. Nature‟s most unyelding products can be „tamed‟ and made malleable because all Nature is subjeto to the power of Necessity.”, Euripides Alcestis, p. 122.

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volta de Admeto à casa vazia, com a cena seguinte, em que Héracles por suas mãos trará Alceste de volta ao mundo dos vivos. Admeto não saiu de cena - o que ele faria em cena a não ser chorar? Portanto é para ele que o canto está sendo dirigido (983-94). Não foi Alceste a vítima da Necessidade, mas Admeto (983-84). Além da impossibilidade de trazer para cima os que estão sob a terra (986-87), como um efeito da Necessidade toda poderosa, um último apelo, a título de consolo, é constatar que até os filhos dos deuses também morrem (988-89). E como ainda nos lembra A. M. Dale, a peça começa com uma referência à morte de Asclépio.167 E, de maneira afetiva (fivla meVn...fivla deV...991-93) o coro passa a mais uma vez valorizar Alceste, na antístrofe, de maneira surpreendente: seu túmulo deve ser honrado (timavsqw, 998), como um objeto de reverência religiosa para os viajantes (sevba" e*mpovrwn, 998). O seu renome ultrapassa a nobreza até aqui ressaltada, atinge o status de daímon, uma força divina, sobretudo quando suas ações são obscuras e incompreensíveis aos homens168: segunda (antístrofe 2)

Coro: E que não se considere um monte de terra para cadáveres mortos o túmulo de tua esposa, mas que seja honrado semelhante dos deuses, um objeto de reverência para os viajantes. E alguém, ao deixar o caminho inclinado, há de dizer isso: “Ela outrora morreu pelo marido, agora é uma bem-aventurada divindade: Salve, ó soberana, que dês boa sorte.” Tais palavras a saudarão! (995-1005)

Este último canto coral cria uma atmosfera mística e envolvente, tendo como divindade suprema a Necessidade e eleva Alceste à categoria de um daimon, a ser

167

Euripides Alcestis, p. 123. Para o significacao de daímon, veja-se Walter Burkert, Religião na Grécia clássica e arcaica, uma divindade, geralmente ligado ao mundo ctônico, mas que não tem os privilégios do qeov", pp. 351-355. 168

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reverenciado pelos viajantes. Com a morte pelo marido, Alceste obtém sua inserção no mundo dos heróis, transformando-se em objeto de culto, reverência religiosa. O coro interrompe seu canto para anunciar, falando, a volta de Héracles (10067), e com isso marca a passagem para o final da peça.

Êxodo: vv. 1008-1163 No êxodo, Héracles vem acompanhado de uma jovem (1020), que, aos olhos de Admeto, é semelhante a Alceste pela beleza (1061-63). Como forma de reparação, entrega-a ao viúvo ,por ter desrespeitado seu luto (1015-24). É estranha a combinação da censura dirigida por ele a Admeto com a entrega imediata de uma mulher, que diz ter recebido como prêmio numa de suas disputas (1025-1033) pelo mundo afora, para servir (prospolei~n, 1024) em sua casa. Héracles recusa-se a entregá-la aos servidores, como Admeto propõe (1110-1111). Por que Héracles estaria mentindo na primeira apresentação da jovem? Ele insiste na necessidade de que Admeto a receba: Héracles: Mas como disse, tu precisas cuidar da mulher. Porque não é roubada, mas, depois de tê-la tomado com esforço, estou aqui. Com o tempo, tu também me elogiarás talvez. (1034-36)

São estas as primeiras explicações para a presença da mulher que o acompanha. Uma espécie de meia-verdade, a ser depois esclarecida, tendo como contraponto o ocultamento por parte de Admeto da morte de Alceste. Mas, de qualquer modo, com esse procedimento, Héracles expõe um Admeto vacilante, hesitante, em contraponto a uma Alceste resoluta. O poeta trabalha com a construção de uma cena de reconhecimento quase nos momentos finais da peça. Evidentemente, a coincidência da cena de reconhecimento com o final da peça privilegia seu efeito espetacular - aqui em todos os sentidos - muito maior do que se tivesse ocorrido em algum dos episódios. Admeto justifica sua atitude de ocultar de Héracles o falecimento de Alceste em nome da hospitalidade (1037-1041). As razões de Admeto para recusar a jovem ali presente centram-se na juventude e na beleza: Admeto: Pois é jovem, como se distingue pela roupa e adorno. (1050)

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Toda a dificuldade criada pela presença da jovem reside na possibilidade dela se transformar em objeto de atração, seja para os jovens do palácio, seja para o próprio Admeto, que jurou a Alceste não mais possuir outra mulher (1051-54). Sua aceitação resultaria numa dupla reprovação: do povo e da própria Alceste (1057-1060). É interessante notar que Eurípides habilmente vai construindo a cena de reconhecimento, evidenciando a atração imediata de Admeto pela jovem (1061-69). O coro, por sua vez, alterando sua posição no início da peça, em que reprovava veementemente um segundo casamento de Admeto, agora o incentiva a aceitar a mulher trazida por Héracles (107071). O olhar de Admeto está fixado na beleza e no corpo da jovem, que se parece com Alceste. Sua recusa, na verdade, indica a possibilidade de sua fraqueza. Após um debate em que a aristeia de Alceste torna a ser lembrada (1083, 1092), o momento em que Admeto aceita receber a mulher é cheio de ambigüidades, pois ao mesmo tempo que diz não querer aceitar, aceita, desde que não a toque (1101-1110). Já aceita que seja levada para dentro do palácio, com todos os riscos apontados por ele próprio. É a vez de Héracles recusar que ela seja entregue a servidores da casa, forçando Admeto a tocá-la: Héracles: Eu não poderia deixar a mulher com servidores. Admeto: Tu mesmo a conduze, se quiseres, ao palácio. Héracles: Em tuas mãos então eu a colocarei. Admeto: Não a tocaria. Mas, que entre no palácio. Héracles: Só a confio à tua mão direita. Admeto: Senhor, forças-me a fazer o que não quero. Héracles: Ousa estender a mão e tocar na estrangeira. Admeto: Então estendo, como se cortasse a cabeça da Górgona. Héracles: Estás segurando? Admeto:

Sim, estou.

Héracles:

Conserva-a, então, e dirás um dia que o filho de Zeus é um nobre hóspede.

Olha para ela, se parece assemelhar-se um pouco à tua mulher. E da dor afasta-te, sendo feliz. (1111-1122)

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O final da esticomitia dá-se com a aceitação de Admeto de tocar na jovem diante de seus olhos. Embora não haja indicação no texto, entende-se que neste momento (1121) também Héracles levantaria o véu que cobriria o rosto de Alceste. A. M. Dale anota: “Héracles tira o véu de Alceste, para que Admeto possa ver mais claramente do que em 1066.”169 Que Alceste estivesse usando um véu ao ser enterrada, é algo que se compreende a partir das referências à sua paramentação (cf. 149, 161, 607, 632, 1050). Embora não apareça indicado no texto o fato de Héracles ter levantado o véu, pode-se depreendê-lo a partir de sua ordem (Blevyon proV" au*thVn, 1121), pois, se tivesse volvido antes o olhar para seu rosto, Admeto já a teria reconhecido. Também o seu espanto explica a visão clara do rosto de Alceste (112325). Admeto reluta em aceitar que a mulher diante dos olhos é a mesma que tinha enterrado (cf. 1127, 1129, 1331). Héracles, por sua vez, esclarece em que circunstâncias a arrancou da morte (1140-42). O silêncio de Alceste incomoda Admeto. A razão para seu silêncio é uma purificação ritual (1144-46). Alceste vai ser reconduzida para dentro do palácio, e Héracles parte para mais uma de suas missões (1149-50). Admeto dá ordens públicas para celebrações (115458). São celebrações que nos fazem pensar, como Charles Segal, em um segundo casamento: “Alceste não é só trazida à vida, mas também recebe de volta o frescor da juventude. Ainda o duplo sentido de kósmos (ornamento fúnebre e parte do ornamento feminino em geral) relembra-nos a estranheza e a ambigüidade da situação. O que começa como um detalhe prosaico do ritual fúnebre, depois se torna o centro de dois momentos extraordinários da peça envolvendo o enterro, a recusa do filho pela

169

Euripides Alcestis, p. 128. Cf. também o comentário de Charles Segal: “The second example concerns dress. The detail of the dress or ornament of the dead (kosmos) appear as part of the standard preparations for the burial as the Servant describes them to the inquiring chorus of Thessalian women at the play‟s beginning (149). Admetus‟ father, Pheres, enters bearing a kosmos, some particular “ornament” appropriate to the burial, a natural way to motivate the arrival at the funeral, from which he will be so harshly rebuffed. Then near the very end of the play, the term recurs as Admetus describes the veiled woman whom Heracles has “won” and wants him to keep in his house. Though Admetus cannot see her face because of the veil, he infers that she is young because of “the adornment and dress” (neva gaVr, w&" e*sqh~ti kaiV kovsmw/ prevpei, 1050). The clothing and jewlry that were put into the earth as the

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presença de seu pai, e, eventualmente, a total inversão do funeral para a reunião e novo casamento.”170 Essa segunda celebração das núpcias entre Alceste e Admeto, porém, em relação a tudo o que foi encenado até aqui, está eivada de ambigüidades. Ao entregar sua vida ao marido, pela morte, Alceste “incorpora um heroísmo que Admeto não pode alcançar.”171 Porém, o seu ato glorioso é invalidado pelo resgate de Héracles, que na peça encarna uma espécie de “super-homem”, solidarizando-se com seu amigo, Admeto. C. Segal é partidário de que a peça se desloque de um prisma que focaliza primeiro a emoção feminina diante da morte, para um enfoque da emoção masculina.172 É notável que todas as outras personagens, com exceção da serva, uma espécie de extensão de Alceste ainda viva, sejam masculinas. Sob esse enfoque, o silêncio de Alceste torna-se mais gritante. No terrível espetáculo de sua volta do mundo dos mortos para o mundo dos vivos e dos homens, pode-se vislumbrar apenas seu rosto petrificado. Não é à toa que Admeto, ao contemplar o rosto de Alceste, grita: Admeto: Ó deuses, que dizer - eis um prodígio inesperado ao ver esta mulher! É a minha realmente? Ou uma alegria ilusória vinda dos deuses atinge? (1123-25)

Com o fim da peça, todos entram para o palácio, menos o coro, que conclui seu canto da maneira formal (1159-63).173 E com a volta de Alceste ao interior da casa, o mundo do oikos - debates entre marido e mulher, entre pai e filho, entre amigo e amigo, – que, durante a representação fica exposto ao nosso olhar, se fecha, com o seu silêncio ritual. Embora Alceste não possa ser tomada como um exemplo das primeiras produções de Eurípides, podemos através dela já vislumbrar o poeta intrigante e inquieto, que utiliza todos os recursos próprios da poesia dramática de maneira kosmos for the dead now emerge from the gravce as the “fitting” adornment of an attractive “young” woman (prepei, 1050).” Poetics of Sorrow, p. 53. 170 “Female Death and Male Tears”, Poetics of Sorrow, p. 53. 171 Poetics of Sorrow, p. 70. 172 “By shifting the focus gradually, but forcefully, from her experience in the house, to Admetus and then to Heracles, Euripides moves from female to male emotions in the face of death.” Poetics of Sorrow, p. 70. 173 “Le choeur quitte le théâtre au rhythme d‟ un système anapestique (v; 1159-1163). On peut admettre qu‟ il était simplement récité; rien n‟ interdit se supposer qu‟ il était chanté par tout le choeur.”, F. Duysinx, “Les passages lyriques de l‟ Alceste d‟ Euripide”, p. 233. Este mesmo fim vamos encontrar em outras peças: Andrômaca, Helena, Bacantes e Medéia, com uma pequena variação na primeira linha.

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eficiente para comunicar as tensões e as ambigüidades de uma sociedade que passa a questionar a tradição. O texto escrito revela assim toda sua potencialidade de expressão teatral, ou seja, evocações de imagens, retiradas da tradição mítica, para operar no conjunto de emoções que o poeta quer fazer suscitar no público. Por outro lado, apresenta a latência da representação, o que o torna possível, como quer Aristóteles, já pela leitura, o vislumbre de uma imponente arquitetura dramática, que, com certeza, pode também se revelar numa montagem.

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Capítulo III Hipólito

O

Hipólito foi apresentado em 428 a. C., dez anos depois da Alceste, obtendo o primeiro lugar nos concursos dramáticos, numa das raras

vitórias de Eurípides.1 Entre as duas estão Medéia, de 431; Os Heraclidas, entre 430 e 427; e após o Hipólito, Andrômaca por volta de 426 a 424.2 Eurípides havia apresentado uma peça anteriormente, da qual esta seria uma revisão já que o Hippólytos Kalyptómenos teria sido rejeitado pelo público, porque nessa primeira versão Fedra se lançava aos pés de Hipólito, rogando-lhe seu amor. Ao que tudo indica, Fedra de Sêneca segue muito mais de perto a primeira versão, da qual não temos senão fragmentos.3 Assim, o Hipólito é uma reescritura, uma reelaboração de uma peça já apresentada.4 É uma pena que não tenhamos a primeira versão, para uma apreciação realmente mais efetiva do modo de composição e o que realmente os autores levavam em conta quando refaziam seus textos. No prólogo temos a presença de um semi-coro de caçadores acompanhando Hipólito (57-72), reaparecendo no terceiro estásimo (1102-1110; 1118-1130). O coro definitivo da peça, composto por mulheres de Trezena, ofereceria uma certa dificuldade, pois, depois da chegada de Teseu, mesmo conhecendo a verdadeira motivação do suicídio de Fedra, cala-se em relação aos acontecimentos presenciados, sem interferir em nada para que o jovem seja inocentado de alguma forma da grave e falsa acusação deixada por Fedra. A cena do kommós de Teseu com o coro (811-884) 1

Cf. Albin Lesky, A tragédia grega, São Paulo, 1976, p. 178. Para a datação das peças, estamos seguindo Jacqueline de Romilly, La tragédie grecque, Paris, 1982, pp. 186-87. Cf. também Charles Segal, Oedipus Tyrannus. Tragic Heroism and the Limits of Knowledge, “Chronology”, New York, 1993, pp. xi-xv. 3 Cf. Bruno Snell Scenes from Greek Drama, sobretudo “II Passion and Reason: Phaedra in Hippolytos I”, Berkeley/Los Angeles, 1967, pp. 23-46. Cf.: “Because Hippolytos veiled himself when Phaedra made him her shameless offer. To be sure, Seneca does not mention the veiling, and he has padded the scene with much bombastic rhetoric but there can be no serious doubt that the structure of the scene and the character of Phaedra are taken over from first Hippolytos, because it is precisely this scene that gives rige to the indignation about Phaedra‟s shameless (and a shameless Phaedra is certain not Sophoclean).” p. 28. W. S. Barrett alerta para o fato de que, embora Sêneca adapte suas peças a partir de originais áticos, tem o hábito de divergir bastante dos modelos com liberdade; cf. Euripides Hippolytos, Oxford, p. 16. 4 Cf. Pickard-Cambridge: “In the fifth century the only performances of old plays (with an exception to be noticed,) were presentations of unsuccessful plays in a revised form - of comedies perhaps more frequently than of tragedies, though Euripides certainly revised and re-produced his Hippolyus, and possibly other plays.” The Dramatic Festivals of Athens, p. 99. As outras peças de Eurípides que teriam recebido uma reescritura, não chegaram até nós, Autolycus e Phrixus, porém como anota Picakrd-Cambridge, as evidências não são satisfatórias, idem, nota 6, p. 99. 2

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começa quando o corpo de Fedra é trazido para fora do palácio sobre o e*kkuvklhma, o que, sem dúvida, aumenta o tom patético da peça. Outra cena importante é o debate entre pai e filho, culminando no exílio de Hipólito (902-1101). O silêncio do coro, fundado em um juramento feito a Fedra (712-14), - com nuances diferentes do juramento feito por Hipólito à ama (601-615), - é compensado por sua interessante interferência do ponto de vista do espetáculo: no párodo, anuncia a estranha doença de Fedra (121-175); no primeiro estásimo, canta o poder de Eros (525-564); no segundo estásimo, completamente mergulhado nas revelações de Fedra e na recusa veemente de Hipólito, com o seu desejo de fuga e agitação emocional, o coro antecipa o desfecho trágico de Fedra; com a entrada de Teseu em cena, após a morte de Fedra, a peça perde um pouco de seu andamento dramático; no terceiro estásimo, o coro de mulheres alternaria seu canto com o semi-coro de jovens que acompanham Hipólito em seu desterro (1102-1150). A peça termina sob a intervenção de Ártemis, cuja entrada em cena é antecedida pelo quarto estásimo, um hino a Cípris e a Eros (1268-1282). Com isso temos uma espécie de cena especular refletindo o que foi apresentado no prólogo com Afrodite abrindo a peça com seu monólogo, seguida da entrada de Hipólito cantando à Ártemis. Ártemis, tal como Afrodite, é implacável. A dor de Teseu, a dor de Hipólito moribundo em cena, fazem parte já do patético - não há mais ação possível para reverter o que se consumou ao longo dos episódios. Fedra não mais é mencionada ou lembrada no final. Os homens ficam abandonados em suas dores mortais. Tudo isso é oferecido aos olhos e aos ouvidos do espectador à maneira didática de Homero, adaptado ao nómos e ao êthos próprios do atenienses. “Ouvindo e assistindo às peças encenadas, eles reconheciam e absorviam um comentário corrente a seu próprio nómos e êthos. Realizando essa função, o drama grego permanece fundamentalmente didático quanto a seu propósito. Seus muitos compositores - um título mais adequado que o de autores - aplicavam sua arte à combinação de educação oral com entretenimento oral.”5

5

“A Composição oral do drama grego”, A revolução da escrita na Grécia e suas conseqüências culturais, de Eric A. Havelock, São Paulo, 1996, p. 276.

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Prólogo: vv.1-120 O prólogo (1-120), do ponto de vista dramático, aparentemente não foi bem organizado pelo poeta, porque necessita de um semi-coro que se desfaz quando o coro propriamente dito se instala na orquestra. Compõe-se de três cenas: o monólogo de Afrodite, que talvez apareça na primeira cena da peça num theologeion6 (5-56), um dos recursos materiais para a encenação da intervenção de um deus em cena, num plano mais alto que o dos atores; Hipólito e um semi-coro de caçadores cantam interlúdio lírico (57-72) seguido do recitativo de Hipólito (73-87); o diálogo entre Hipólito e um servidor (88-120). A presença deste semi-coro, seguido pela entrada do coro composto por mulheres casadas de Trezena, que entoam o párodo e se instalam na orquestra, tem embaraçado alguns estudiosos da peça. G. M. Grube, por exemplo, afirma: “O Hipólito oferece o paradoxo de um herói masculino, o próprio Hipólito, com um coro principal feminino. E aqui podemos observar novamente quanto a primeira parte da peça contava para determinar a composição desse coro. A cena em que Fedra relutantemente confessa seu amor por seu enteado teria sido impossível diante de um grupo de homens, nem poderia ela esperar nenhuma simpatia deles. Depois de sua morte, entretanto, homens teriam sido mais apropriados, pois, então, é Hipólito que necessita de apoio. Na verdade, porque nossa simpatia está imediatamente empenhada no interesse da mulher apaixonada, podemos sentir que era ele, e não Fedra, que necessitava do coro desde o começo. Isto, entretanto, não teria sentido para os gregos. Pode haver pouca dúvida de que a simpatia deles estaria com Hipólito, e que toda a arte de Eurípides era necessária, e um coro feminino, para fazêlos ver o ponto de vista de Fedra. A falta de equilíbrio, mais acentuada para nós, ele tentou remediar ao introduzir um coro secundário de caçadores no prólogo para cantar o hino a Ártemis, e parece provável que este coro de Hipólito reapareça mais tarde para juntar-se aos louvores de seu senhor.”7 O mesmo contraste entre coro e protagonista se verifica na Alceste, que tem um coro composto por velhos de Feres. G. 6

“La machine à laquelle on donnait ce nom (qeologei~on) était un sorte d‟ ekkyklèma. Établie à l‟étage supérieur de la skènè (problablement au-dessus de la porte royale), elle consistait, à ce qu‟on croit, en une plate-forme roulante qui, sortant de l‟ interieur, s‟avançait sur un balcon en saillie.” DIONYSOS. Étude sur l‟ organisation matérielle du théâtre athénien, de Octave Navarre, Paris, 1895, p.133. Porém a evidência do uso deste dispositivo no século V a. C. é ainda controvertida entre os estudiosos. Cf. Oliver Taplin, “Exits and entrances”, Greek Tragedy in Action, p. 51-51 para a discussão das aparições de Afrodite e Ártemis no Hipólito.

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M. Grube não leva em consideração a tensão dramática que se pode extrair dos contrastes e as ambigüidades que tal procedimento pode gerar. Como se percebe também, G. M. Grube está pensando unicamente na ação dramática da peça e não nos elementos que compõem o espetáculo. Aqui no Hipólito, a presença dos caçadores que acompanham o protagonista ilustra mais a descrição de seu modo de vida, relacionado às atividades de Ártemis, e auxilia-nos a construir a personagem em cena. Não se trata aqui de empatia ou não com o herói central da peça. A presença do coro de mulheres enfatiza, de fato, a simpatia que ao longo da peça o autor desenvolve no público em relação ao sofrimento de Fedra, e marca mais acentuadamente o contraste com o herói, que, de certa forma, vai ficando cada vez mais só em seu sofrimento. Dos elementos do espetáculo, primeiramente devemos considerar o espaço cênico em que a ação se vai desenrolar. Afrodite, abrindo a peça, segundo as convenções teatrais do século V a.C., aparece sobre o palácio de Teseu. Esse palácio está situado em Trezena. Diante dele se vê uma estátua de Afrodite, colocada próxima à porta (101) e possivelmente uma outra estátua, ou, como prefere W. S. Barrett, um altar dedicado a Ártemis, sem local claramente definido no texto em que o jovem deposita uma coroa.8. Do ponto de vista da ação dramática, se é uma estátua ou um altar de Ártemis não faz muita diferença. Teríamos apenas um elemento visual diferente, mas sem o comprometimento da ação. O importante é reter que a presença de ambas as deusas está marcada cenicamente e o será também dramaticamente. Ao longo da peça, essas duas deusas, cada uma por seu turno, apresentar-se-ão como forças antagônicas, cujos representantes no mundo dos mortais serão Fedra e Hipólito. Estamos, então, diante do palácio de Teseu em Trezena, ante cuja fachada se vê uma estátua de Afrodite e um altar (ou outra estátua) de Ártemis. Observemos, então, que há uma combinação de signos diferentes para referendar a ação dramática que toma corpo na seqüência dos episódios. No final da peça (a partir de 1330), seria a aparição de Ártemis ex-machina? Assim, a peça apresenta-nos o confronto de duas forças antagônicas. De um lado, Afrodite, que aparece cenicamente apenas no monólogo do prólogo, expõe toda a exuberância do poder sexual a ela atribuído pela tradição mítica. O efeito de suas 7 8

The Drama of Euripides, London, 1973, p. 102. Cf. W. S. Barret, Euripides Hippolytus, Oxford, 1964, p. 154.

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palavras, porém, vai ser desenvolvido ao longo da peça e lembrado pelas diversas personagens. Do outro, Ártemis é apresentada como a deusa da caça e da castidade. O confronto que se vai ver em cena é uma pequena parte, por assim dizer, desse confronto universal de forças divinas que, de alguma forma, se opõem. Fedra aparece como um instrumento fundamental nos planos de Afrodite: Afrodite: Pois um dia, tendo-o visto chegar do augusto palácio de Piteu ao espetáculo e aos ritos dos sacros mistérios na terra de Pandião, Fedra, a nobre esposa do pai, foi tomada em seu coração de um terrível amor, por desígnios meus. (24-28)

E é através de sua paixão pelo enteado que a ação dramática propriamente dita se desenrolará diante dos olhos do público. A morte de Fedra também é inevitável para a realização total dos desígnios de Afrodite: Afrodite: Ela é insigne, mas mesmo assim deve morrer, Fedra!” (47-48)

Hipólito aparece como a expressão máxima da adoração à deusa Ártemis: sua dedicação exclusiva, embora contestada pelo servo (sobretudo 113-120), por Teseu (948-49) não é recusada pela deusa de sua devoção (v. 1333). O monólogo de Afrodite é a mola propulsora de toda a composição do espetáculo. Sua fala é duplamente didática. Em primeiro lugar, fornece ao público as informações necessárias para o desenrolar da trama, isto é, antecipa os acontecimentos, estabelecendo as bases sobre as quais a ação dramática vai se desenvolver, e para a economia do espetáculo teatral, situa o público quanto às personagens e mesmo quanto ao espaço cênico. Colocando-se num presente, cujo futuro há de rapidamente se cumprir, sua voz é mais forte do que um oráculo vagamente anunciado, como temos, por exemplo, no Filoctetes, de Sófocles. Nesta intervenção, primeiramente Afrodite identifica-se, anunciando seu nome e os limites de seu poder (1-5). Venerada por todos, exceto por um cidadão de Trezena, o filho da amazona, Hipólito (10-11). A acusação de Afrodite não é um mero capricho, o jovem Hipólito afirma que ela é a pior dentre as divindades:

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Afrodite: Hei de demonstrar rápido a verdade destas palavras; porque o filho de Teseu, rebento da amazona, Hipólito, cria do casto Piteu, é o único dos cidadãos desta terra de Trezena que afirma eu ser a pior das divindades: recusa o leito e não toca em casamento. (9-14).

Afrodite, assim, compõe para o público a figura do jovem que em seguida deve ocupar a cena. A atenção do jovem dirige-se a outra divindade, Ártemis, antagonista de Afrodite, justamente naquilo que a caracteriza, a castidade (já assinalada no epíteto de Piteu, casto - a&gnou~ Pitqevw", 11), acentuando o convívio estreito do jovem com a virgem filha de Zeus (15-19). Embora Afrodite, no projeto de destruir o jovem, afirme que não inveja a dedicação exclusiva de Hipólito à deusa da caça (touvtoisi mevn nun ou* fqonw~: ti gaVr me dei~; 20) resolve castigar o desprezo que sofre por parte do jovem em um único dia, no dia de hoje (e*n th~/d’ h&mevra/, 22), marcando assim também o tempo em que a ação dramática deve transcorrer. Na verdade, sua decisão, dentro do que podemos chamar macro espaço da peça, isto é, dentro das ações que excedem o dia de hoje, já está em curso (24 seq.). A tragédia de Hipólito revela-se para o público no mesmo dia em que as decisões da deusa se cumprirão: Hipólito será atingido pelos votos a que Teseu tem direito, recebidos de Possêidon ( 43-46). A morte de Fedra também é necessária ao terrível plano da deusa - o que não é estranho para a religiosidade grega. A segunda cena deste prólogo começa a partir do anúncio da entrada em cena de Hipólito. Afrodite faz seu pronunciamento sobre um theologeion, colocado provavelmente acima do palácio de Teseu, acima de sua estátua em uma das laterais do proscênio. Essa sua fala, com uma métrica próxima à da prosódia comum ao ateniense, é interrompida por modulações de um canto coral dos caçadores liderados por Hipólito, homenageando Ártemis9: Afrodite: Mas, eis que vejo o filho de Teseu 9

T. B. L. Webster aponta: “The Hippolytos of 428 is more complicated. In the prologue Hippolytos leads on the subsidiary chorus of huntsmen and sings an aeolo-choriambic hymn to Artemis. This is in dance time; he certainly sings the first three lines and probably sings the rest with them, but it is curious that there is no clear differentiation between leader and chorus.” The Greek Chorus, London, 1970, p. 147. No entanto, a prece a Ártemis é feita só por Hipólito. Isso não indicaria sua liderança sobre os caçadores?

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chegar, depois de deixar o afã da caça, Hipólito; devo ir embora deste lugar. Uma grande escolta de servos e seguidores grita, honrando a Ártemis, a deusa, com hinos, pois não sabe que estão abertas as portas de Hades, e que vê pela última vez esta luz. (51-57).

Assim, dentro do próprio prólogo a ação começa a se desenvolver. O que Afrodite falou passa a ser encenado no palco, e com isso também o programa estabelecido, consumando-se de uma maneira inevitável, irreversível. Todos, a partir da entrada do jovem em cena, se movem com a idéia de estar realizando o melhor. A ama, por exemplo, em sua tentativa de persuadir Hipólito a aceitar o amor de Fedra, tem a pretensão de salvar sua senhora da morte. Mas o resultado de sua ação é o oposto do esperado, revelando-se desastroso, por complicar ainda mais a situação moral da rainha. Como notou B. M. W. Knox, “em nenhuma outra tragédia grega a predeterminação da ação humana, feita por um poder externo, é tão enfaticamente clara.”10 Teseu, em sua decisão de amaldiçoar o filho, sem antes procurar saber claramente a respeito dos fatos comete um grande erro, uma a&martivan megavlhn nos moldes estabelecidos por Aristóteles na Poética, cujo reparo se dá apenas com a intervenção da própria Ártemis, que faz com que Hipólito perdoe o pai alguns segundos antes de morrer em seus braços (1430-36). Mas, se de um lado temos a predeterminação de Afrodite, imutável, por outro, Eurípides pinta com cores bem fortes a característica obstinada do jovem em sua recusa. O espetáculo confirma totalmente as palavras da deusa. A entrada em cena de Hipólito cantando um hino a Ártemis, com seu séquito de caçadores, provoca a saída de Afrodite: 11 Hipólito: Segui cantando, segui, a filha de Zeus, a celestial Ártemis, a que se preocupa conosco.(58-60)

10

“The Hippolytos of Euripides”, Oxford Readings in Greek Tragedy, Oxford, 1983, p. 312.

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O semi-coro, composto por companheiros de Hipólito, então, dá continuidade à canção. Louis Méredier chama a atenção para esse semi-coro acessório, remetendonos para as Eumênides de Ésquilo, em que também aparece um semi-coro a acompanhar a deusa num cortejo de sacerdotisas de Atena (cf. 1032-47).12 Esse pequeno interlúdio coral, simples, em termos de espetáculo é eficiente. Mescla-se às últimas palavras de Afrodite, marcando assim o contraponto paradoxal entre as duas divindades: Semi-coro: Soberana, soberana venerandíssima, descendente de Zeus, salve, salve, filha de Leto, Ártemis, e de Zeus, a mais bela das virgens, tu que no vasto céu habitas a corte do nobre pai, o palácio multidourado de Zeus. Salve, a mais bela, a mais bela do Olimpo, !13 (61-71)

Mesmo sem a posse da partitura musical e da partitura coreográfica dessa interrupção musical, a métrica e o dialeto dórico14 são marcas acentuadas de um outro registro lingüístico, que, com certeza, não passaria despercebido ao público ateniense. Além do mais, note-se que a cena compõe um ritual religioso, suscitando no público outras emoções, desconhecidas para nós, meros leitores. Portanto, a presença de um semi-coro a acompanhar Hipólito extrapola a falta de equilíbrio dramático da peça; ao contrário, começa a ilustrar em forma de canto-dança-ritual o que Afrodite acabara de anunciar. E isso não poderia ser feito pelo coro de mulheres. Interpondo-se entre a fala 11

W. S. Barret em seu comentário esclarece: “(sung by Hipp. alone, exhorting the singers) begins with an anhoplion, a colon which has affinities both with aeolic and with dactyl metres; here it develops into two short dactylic cola, hemiepe.” Euripides Hippolytos, Oxford, p. 167-68. 12 Hippolyte, Paris, 1965, p. 31. 13 W. S. Barrett não lê , (cf. sua discussão, op. cit., p. 99; 169); cf. também Euripidis Fabulae, editadas por James Diggle, que também não lê a repetição, Oxford, tomo I, p. 210. Aceitamos a leitura de Louis Méredier, Paris, 1965, p. 31, pois não consideramos um erro a repetição, já que se trata de uma peça cantada, havendo outras repetições que não são refutadas. 14 Para a discussão do dialeto dórico estilizado, usado nos cantos corais trágicos, cf. T. B. L. Webster, op. cit., p. 111.

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de Afrodite, a prece que Hipólito irá dedicar a sua dileta deusa e o diálogo seguinte com o servo, advertindo-o sobre os perigos da parcialidade por sua devoção exclusiva, este canto dramaticamente talvez não seja necessário, não muda a ação em nada, mas tem uma função teatral muito clara: expor ao público os atos de Hipólito, sua negligência para com a mais poderosa dentre os deuses e os mortais. A oposição que se verifica em relação ao conteúdo, verifica-se também no nível de expressão. Eurípides não só acentua o aspecto dramático, mas sua composição da cena busca dar um passo a mais: a teatralização, ou seja, a encenação do que foi dito pela deusa. Nisso, o canto do semi-coro torna-se vital para o espetáculo que o compositor quer nos fazer ver. A prece de Hipólito acentua a estranheza da relação que mantém com sua dileta deusa15. É uma continuidade do canto e revela uma idéia de pureza estranha ao homem comum do século V a. C.: Hipólito: A ti esta coroa trançada de uma intacta pradaria, ó senhora, tendo ornado, trago, onde nem pastor se digna a alimentar animais nem nunca o ferro atingiu, mas a abelha primaveril atravessa a intacta pradaria e Pudor a cultiva com orvalhos dos rios, a quantos nada deve ser ensinado, mas naturalmente a virtude em tudo sempre tem lugar em partilha, a estes colher, aos maus não é permitido. Mas, ó cara senhora, para teus cabelos áureos recebe esta coroa de mão piedosa. Pois único dentre os mortais tenho esse privilégio, convivo contigo e troco palavras, ouvindo tua voz, mas não vendo tua face. Que eu dobre o termo da vida como a comecei. (73-87)

Durante esta prece, o elemento visual que se destaca é a coroa que o jovem traz em suas mãos e deposita na estátua de Ártemis: um objeto de cena que comporta 15

Cf. o texto de Jean-Pierre Vernant, “A pessoa na religião, aspectos da pessoa na religião grega”, Mito e pensamento entre os gregos, São Paulo, 1973, pp. 281-82;

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outros signos além da homenagem devocional. A coroa é elaborada a partir de uma pradaria intacta (a*khravtou/ leimw~no", 73-74)16, não tocada pela mão do homem, ou seja, um espaço selvagem. De lá de onde vêm os elementos que compõe a coroa, símbolo da castidade total do jovem; lá o aidós, como um jardineiro, cuida de plantas com o orvalho dos rios (potamivaisi khpeuvei drovsoi", 78). O tradutor espanhol Carlos Miralles chama a atenção para a interpretação que se tem dado a esta prece de Hipólito: “esta primeira parte, com a descrição rápida da pradaria intacta, está com segurança esboçada sobre o modelo mítico da pureza original e inacessível, que na Grécia havia informado o relato mítico hesiódico à primeira idade do homem.”17 No entanto, não se encontram em Hesíodo referências a uma castidade ou pureza sexual como a que busca Hipólito aqui. Em Hesíodo, a castidade tem apenas o sentido de pureza física, limpeza, por ocasião da celebração do ato religioso, sendo assim temporária. W. S. Barrett esclarece sobre a noção de pureza no século V a. C.: “requeria que o homem que entrasse em um lugar sagrado ou que participasse de um ritual sagrado deveria estar hagnós, mas essa hagneia era uma tarefa puramente formal de observar tabus, de evitar, ou purificar polução causada por coisas tais como sujeira física ou contato com algum aspecto de nascimento, sexo ou morte.”18 Assim, a idéia de pureza moral é estranha ao culto grego até a época helenística.19 W. S. Barret dá-nos uma pista melhor: é preciso buscar no século V a. C. as contrapartidas das crenças de Hipólito. As crenças órficas e talvez os cultos de mistério apresentem a seus seguidores uma proposta de pureza moral semelhante à que vemos nessa prece do jovem caçador. Mas Hipólito está alheio à sociedade em que vive. “Este jovem enérgico e intolerante construiu dentro de seu culto à virgem Ártemis um puritanismo estranho e exclusivo para si mesmo: a platéia ateniense, enquanto sente a beleza de seus ideais (o poeta cuidou disso), ao mesmo tempo há de sentir a estreiteza deles e há de achá-los excessivos e antinaturais.”20

16

Na prece de Hipólito, o elemento úmido está ligado à pradaria intacta, isto é, não destruída, não atingida pela khvr, ao orvalho dos rios (77-78). Note-se que leimwvn é aparentado ao vocábulo livmnh, pântano. O jovem cavaleiro treinaria seus cavalos de um pântano marinho, em Trezena, em que Ártemis Limnaia era cultuada. 17 Hipólito, Barcelona, 1977, p. 100. 18 Euripides Hippolytos, p. 172. 19 Cf. C. Segal, “Honte et purité dans l‟ Hippolyte d‟ Euripide”, p. 185. 20 Euripides Hippolytos, p. 172.

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É interessante pensar na idéia de um mundo original oposto a um mundo de corrupção. Charles Segal vê que “a pradaria não ceifada, numa perspectiva psicanalítica, simboliza também a nostalgia que Hipólito tem de uma união preedipiana com sua mãe, desejo este que se deve abandonar ou transformar para que o adolescente se torne um homem maduro. Uma união assim, caso se consuma, não pode conduzir a não ser ao desmembramento (simbólico) e à morte.”21 Note-se ainda que em toda a prece de Hipólito podem-se encontrar elementos relativos à sexualidade: leimwvn também é metáfora para a pudenda muliebra22; xuvneimi (85) também é o verbo para descrever a relação íntima, portanto, também para designar a relação sexual. Em termos psicanalíticos, a recusa de Hipólito de cultuar Afrodite e a sua relação íntima com Ártemis podem ser entendidas como uma sublimação da sexualidade. No entanto, os gregos não tinham essa noção em seu imaginário, e o que o poeta destaca é a estranheza da relação de Hipólito com Ártemis, ímpar, afastada da religiosidade do homem comum, explorando assim as tensões dramáticas contidas na castidade e no exacerbação da sexualidade. Mas essa recusa do jovem, apresentada desde o canto coral, louvando Ártemis, deusa da castidade por excelência, até a prece destaca-se mais quando um dos membros da comitiva chama-lhe a atenção. Em consonância com a voz de Afrodite, o criado estabelece um diálogo em que a idéia do nómos prevalece (91), um costume estabelecido entre os mortais que consiste em respeitar os deuses em geral, sem preferência por um em detrimento de outro (106). E não é gratuitamente que Eurípides faz um criado, saído do coro, apresentar, depois de Afrodite, uma advertência ao modo estranho de Hipólito se comportar diante das deusas, honrando uma, desprezando a outra.23 Assim, cenicamente confirma-se a fala de Afrodite, com uma encenação do que a deusa afirmara minutos antes. Sob este emblema termina o prólogo de Hipólito. Neste prólogo, Fedra só aparece na fala de Afrodite. Instrumento da vingança da 21

“Penthée et Hippolyte sur le divan et sur le grille”, La Musique du Sphinx, Paris, 1987, p. 166. Cf. Eur. Ciclopes, 171, apud Greek-English Lexicon, Oxford, 1985, p. 1035. 23 Carlos Miralles chama-nos a atenção para o valor cambiante do termo semnov" no diálogo entre o jovem e o servo: “Nótese cómo el sentido de semnov" varía, del que tine aquí y en el v. 94, en el v. 99 (cfr. v. 91, detalle que se pierde al traducir.” Euripides Hipólito, Barcelona, p. 103. O referido termo já aparece na fala de Afrodite (25), referindo-se às celebrações dos mistérios. O sentido, então do termo gravita entre o nosso “solene”, “sagrado”, “divino”, referindo-se sobretudo ao universo religioso, e “soberbo”, “majestático”, “augusto”, “orgulhoso”, referindo-se a seres humanos e seus afazeres. 22

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deusa, Eurípides, hábil desenhista de estados emocionais, vai desenhar-lhe a figura a partir da entrada definitiva do coro, fazendo-a apresentar outras camadas do Aidós.

Párodo: vv. 121-175 O coro propriamente dito da peça é composto de mulheres, senhoras de Trezena. A escolha do coro sempre implica um jogo dramático. Aqui, Eurípides explora as oposições para um aproveitamento maior das tensões dramáticas. Nessa peça, cujo protagonista é um jovem casto, que se recusa a ter qualquer relacionamento com mulheres, o coro é formado por mulheres casadas que, portanto, ressaltam mais o universo feminino de Fedra. E o próprio texto de seu canto nos dá essa informação, não como uma anotação paralela, mas dentro do próprio espetáculo, quando o coro em sua primeira intervenção, com uma coreografia, no epodo afirma: Coro: A incômoda constituição das mulheres gosta de conviver com a harmonia turbulenta de dores do parto e insensatez. Outrora esse vendaval desabou por meu ventre; mas eu invocava a celeste protetora dos partos, guardiã do arco, Ártemis, e, por mim honrada sempre com os deuses me visita. (161-169)

Temos, então, a caracterização desse coro de mulheres que atribui a origem do páthos de Fedra a uma Ártemis não caçadora, mas sim à Ártemis protetora dos partos. São mulheres que experimentaram já o desabar desse vendaval e, pela constituição natural, isto é, pela incômoda constituição das mulheres, se solidarizam com Fedra.24 Como o coro não ouviu o plano de Afrodite, primeiro nos informa de onde veio a notícia de que Fedra está enferma: não de uma pradaria verdejante e intacta como na prece de Hipólito, mas de uma fonte cujas águas vêm do Oceano, fonte primitiva de todas as águas correntes no imaginário grego:

24

“Moreover, the woman‟s own womb may menace her (161-9), a menace that is also expressed in terms of the house: Unhappy is the compound of womans‟ nature;/ the torturing misery of helplessness,/ the helplessness of childbirth and its madness/ are linked to it forever. The word that is translated „linked‟ is sunoikein (163), derived from oikos and meaning “to dwell together”. A woman‟s interior and exterior are perceived as more discontinuous

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(estrofe 1)

Coro: Dizem que há uma rocha que goteja água do Oceano, vertendo dos precipícios sua correnteza, que é mergulhada pelos cântaros; ali havia uma amiga minha que os véus purpúreos molhava na água da correnteza e sobre o espaldo da rocha cálida ensolarada os deitava. De lá chegou-me a primeira notícia sobre a soberana. (121-130)

A água, para o coro, em sua primeira estrofe, é uma água utilitária, já que é usada para lavar os véus finos, o que pressupõe, por outro lado, a sujeira, a mancha, a polução, e tem que ser colhida com o mergulho do cântaro (125-27), não é como o orvalho dos rios, na prece de Hipólito, com que Aidós cultiva a pradaria intacta (cf. 78). Charles Segal, partindo da idéia de que ação dramática do Hipólito pode ser seguida como um “avanço do mar”, chama a atenção para os contrastes deste párodo com o prólogo: “É no párodo, logo após a tentativa do velho servo em reprovar Hipólito por sua negligência à Cípris (88-118), que o mar faz sua primeira aparição estendida na peça. A intricada primeira estrofe começa com „Oceano‟ e desenvolve uma cena serena e amável: a fonte e as pedras aquecidas ao sol em que as mulheres de Trezena lavam suas roupas. Por conseguinte, é um contraste imediato criado entre este mundo de mulheres, com suas tarefas domésticas agradáveis, e a tropa dos caçadores de Hipólito. Aqui o mar contrasta com o bosque, a água pura do oceano, a lânguida correnteza de água sobre as rochas com as atividades fatigantes dos jovens austeros.”25 É de lá que vem a notícia, o ouvir falar (129;135) de que Fedra está acometida de algum mal, uma doença que a mantém acamada (131), com a loura cabeça coberta por finos véus (133). O foco da ode centraliza o páthos de Fedra, compondo para o público

than man‟s, and this discontinuity is understood to render her particularly fragile.” The noose of words, de Barbara. E. Goff, Cambridge, 1990, p. 6-7. 25 Para uma apreciação detalhada do significado da água no Hipólito, cf. “The Tragedy of the Hippolytus: The Waters of Ocean and the Untouched Meadow”, Interpreting Greek Tragedy, Myth, Poetry, Text, 1986, pp. 165-221; a passagem citada, p. 173.

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o que deverá ser visto em cena em breve, remetendo-nos imediatamente para aquele passado anunciado por Afrodite (24-33) Coro: Ouvi dizer que ela, há três dias, mantém seu puro corpo longe dos grãos de Deméter, sem alimento em sua boca, desejando, por um sofrimento oculto, aportar a um infeliz fim de morte. (135-40)

Charles Segal, em um outro estudo da peça, lendo essa passagem, chama-nos a atenção para o termo a&gnov", que aqui traduzimos por puro, e para os vários tipos de pureza que o texto propõe: no caso, o termo está ligado à falta de alimento e, por conseguinte, à morte. À recusa de Fedra de, pelo menos ingerir uma dieta vegetariana (grãos de Deméter), corresponde o desejo de Hipólito, ao querer fartar-se de carne de caça:26 Hipólito: Apressai-vos, companheiros, e tendo entrado em casa, preparai os alimentos. É um prazer a mesa estar cheia de caça. (108-110)

O poeta, ao longo da peça, continuará reforçando essas correspondências antinômicas: ao prazer de fartar-se de carne corresponde, em Hipólito, a ausência ou recusa do apetite sexual, que, por sua vez, está em oposição ao desejo sexual de Fedra, sob o desígnio de Afrodite, o que a destitui do desejo de se alimentar. Portanto, as oposições verificadas na construção cênica, - um semi-coro de caçadores cantando a Ártemis; a prece de Hipólito destacando a pureza física e moral, seu apetite para a carne de caça, versus o coro das mulheres casadas de Trezena, que expõe para o público o estado patológico de Fedra e sua falta de apetite - correspondem às oposições de conteúdo.27 É interessante notar que esse coro, no párodo, conjectura a respeito da provável origem do estado de Fedra. Não ouviram e desconhecem o plano de Afrodite. 26 27

“Honte et purité dans l‟ Hippolyte d‟ Euripide”, La Musique du Sphinx, Paris, 1987, p. 183-220.

Na prece de Hipólito, o elemento úmido está ligado a uma pradaria (leimwvn, 74 e 77) caracterizada pelo adjetivo a*khvrato", isto é, não atingida pela khvr, mas é sobretudo nos orvalhos vindo de rios com que ai*dwv" a cultiva (7778). Veja C. Segal para apreciações psicanalíticas da pradaria em seu trabalho “Penthée et Hippolyte sur le divan et sur la grille”, La Musique du Sphinx, Paris, 1987, p. 166.

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Como para o homem grego comum os estados doentios, sobretudo os que envolvem a emoção, eram primeiramente associados a uma possessão divina: as mulheres de Trezena buscam em Pã, em Hécate, nos Coribantes ou na Mãe das Montanhas a origem do estado de Fedra. Note-se ainda que os coribantes, como afirma Walter Burkert, eram conhecidos também como os galloi, sacerdotes do culto à Deusa Mãe Terra, aqui, assimilados a Cibele, deusa asiática também associada a Ártemis, por alguns de seus aspectos.28 Mas as inquietações do coro culminam, na segunda estrofe, com a suspeita de ser a Dictina de muitas feras que Fedra ultrajou, ao ter negligenciado algum sacrifício. Dictina é a equivalente cretense (Fedra veio de Creta) para Ártemis, cujo epíteto mais comum é povvtnia qerw~n, senhora das feras. Ambas têm origem comum na grande deusa Minóico-micênica associada a animais selvagens.29 Portanto, é uma Ártemis mais arcaica que o coro está associando ao culto praticado nos pântanos de Trezena, onde também Hipólito treinava seus cavalos.30 O coro, então, canta: Coro: Pois ela vagueia pelos pântanos e por terra firme sobre o mar em úmidos turbilhões marinhos. ( 148-150)

O mar, geralmente, é domínio de Afrodite, como aparece num vocativo de Fedra: Ó rainha do mar, Cípris (w^ devspoina pontiva Kuvpri, 415), e não de Ártemis. Charles Segal vê um certo suspense e uma ironia nesse engano do coro: “Há, talvez, um certo suspense e ironia edificada pelo engano do coro em relação ao nome da deusa que é realmente responsável, elas aumentam a ironia por fazê-la habitar no lugar de sua inimiga, Dictynna-Artemis, nos termos do elemento que simboliza o próprio poder de Afrodite (...) A referência a Dictynna, especialmente em conjunção com o mar, então conduz mais profundamente à paixão de Fedra e começa a delinear o envolvimento nela de Hipólito e seu mundo.”31 28

Structure and History in Greek Mithology and Ritual, Berkeley/Los Angeles, 1982, pp. 99-122. W. S. Barrett anota: “The Corybantes also had a Athens an ecstatic ritual in which this „possession‟ was deliberately included as a cure for mental disorders.” Euripides Hippolytos, p. 189. Sófocles, no Filoctetes, assimila Géia, Réia e Cibele sob um mesmo nome: “Terra montanhosa, nutriz de todos/ mãe do próprio Zeus, que o grande rio Pactolo auripleno partilhas (...)”, Fil., 391-400. 29 Cf. Euripides Hippolytos, p. 189-190. 30 Cf. v. 228-231 e Euripides Hippolytos, p. 190. 31 “The Tragedy of the Hippolytus”, p. 174.

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A segunda antístrofe apresenta outras suspeitas das quais Teseu é o centro. Teria Fedra sido traída pelo esposo? (151-154) Ou algum marinheiro vindo de Creta trouxe-lhe má notícia? (155-160). O mar é o elemento que faz pano de fundo às suspeitas do coro (cf. naubavta" ti" e!pleusen, 155 e sq.).32 No conjunto, o párodo cria no público a expectativa da entrada em cena de Fedra, emoldurando emocionalmente o ambiente com suas inquietações a respeito de sua rainha. Ao anunciar a entrada de Fedra, o corifeu deixa de cantar, e passa a recitar em dialeto ático: Corifeu: Mas, eis que a velha ama diante das portas vem trazendo-a para fora do palácio; uma nuvem sombria cresce em suas sobrancelhas.33 Minh‟ alma deseja saber o que há, por que o corpo da rainha está desfigurado, com outra cor (170-175)

Não se trata de um caso isolado na tragédia grega de a entrada ou saída de cena de personagens, na tragédia grega, ser anunciada por outra personagem, sobretudo pelo coro ou pelo corifeu, como se vê em quase todos os textos da tragédia ática. Mas não estamos simplesmente diante de uma solução cênica de um teatro primitivo, em que o ator mascarado deve, pelo anúncio, fazer reconhecer as personagens que vão ocupando ou desocupando a cena. Há uma construção imaginária feita pelo canto coral, rico em material mítico, ritual e emocional. As palavras, no ritmo da poesia, criam pela sonoridade, o que deve ser visualizado. As antinomias do mito são referendadas pelo espetáculo. O signo teatral, para se realizar em sua totalidade, pressupõe para o público a visão do espetáculo que se compõe a partir das palavras ditas e entoadas em cena. O que se falou de Fedra até esse momento vai ser posto em cena, mas Eurípides prepara o público com vagar, para que esse momento seja teatralmente eficiente.

32

“The sea is again the conveyer of misfortune, and the crossing of it a token of disaster.”, Charles Segal, “The Tragedy of the Hippolytus”, p. 174. 33 W. S. Barrett desloca esse verso para a fala da ama, depois de 180; cf. sua argumentação para tanto, Euripides Hippolytos, p. 195-96. James Diggle o edita na fala do coro, lição que seguimos aqui, cf. Euripidis Fabulae, tomus I, p. 214.

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Primeiro episódio: vv. 176-524 O primeiro episódio é composto de três cenas: a primeira vai da entrada de Fedra com a ama até a revelação de seu amor por Hipólito (176-361); a segunda cena é um interlúdio lírico, cuja primeira estrofe é entoada pelo coro ou só pelo corifeu (362372) e cuja antístrofe só será apresentada no segundo episódio cantada por Fedra (669679); a terceira cena, mais longa, começa quando Fedra recobra sua razão, saindo do delírio, e termina com a decisão da ama de, a seu modo, tentar resolver o problema da rainha (373-524). De maneira oposta à figura de Hipólito, que entra em cena orgulhando-se de ser o único dentre os mortais a gozar de um gevra", um privilégio de sua dileta deusa, Fedra é trazida carregada, por sua debilidade física. Sua entrada deve ser preparada tecnicamente, pois no momento em que o coro anuncia a abertura das portas do palácio (170); entra carregada pela ama e por outras servas, às quais se dirige, ordenando que levantem seu corpo e endireitem sua cabeça (a!ratev mou devma"; o*rqou~te kavra, 198; provspoloi, 200); que tirem o arranjo que lhe pesa sobre a cabeça (baruv moi kefala~" e*pivkranon e!cein/ a!fel’, 201-202). Mas, com a saída de Fedra de dentro do palácio, carregada talvez sobre um ekkýklema,34 somos conduzidos ao interior do palácio e ao estado interior de Fedra. Seja lembrado ainda que o ator que representa Fedra está mascarado, portanto não tem como compor em seu próprio rosto expressões faciais. Ao coro coube o detalhamento do estado patológico da rainha, auxiliando também o público a ver essa personagem em cena (131-140). A primeira cena, que abre este primeiro episódio, desenvolve o que estamos chamando patologia de Fedra. É uma construção lenta, começando pela estranheza da doença desconhecida, relacionando o estado de Fedra com todas as doenças. Pelas falas da ama, e depois, pelas falas de Fedra, nota-se uma agitação e delírio, o que no 34

Há dúvidas sobre o uso desse recurso teatral no século V a. Cf. T. B. L. Webster: “The question of the plataform wheels (or ekkyklema) has been very fully discussed by Sir Athur Pickcard-Cambridge, who argues that we have no evidence for its use before Hellenistic times.”, Greek Theatre Production, p. 8 e sq. O próprio T. L. B. Webster afirma exatamente o oposto: “Phaidra and the nurse enter on the ekkyklema and hold a dialogue with recitative anapaest for the nurse and sung anapaest for Phaidra, so the whole shape of the parodos is not unlike that of Medea parodos in reverse.”, The Greek Chorus, p. 148. Fedra, ao que tudo indica, está deitada em seu “leito doentio” (cf. e!xw deV dovmwn h!de nosera~"/ devmnia koivth", 179-180), e que agora está fora do palácio. Alceste, embora esteja falecendo, é trazida em pé em cena, apoiada pelo marido (cf. Alc., “h@d’ e*k dovmwn dhV kaiV povsi" poreuvetai, 233), mas depois pede para que a deitem (klivnat’, ou* sqevnw posivn, 267).

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espetáculo traduz-se numa modulação diferente da fala normal: nesse momento Fedra fala em anapestos não líricos.35 Também nesta primeira cena começa-se a traçar o perfil da ama, que é uma das personagens mais intrigantes, e merece um destaque tão importante quanto as principais personagens da peça. Mas todo o andamento desta primeira cena tem como objetivo teatralizar o estado doentio de Fedra e levar-nos até à revelação da causa da doença: o amor impossível que Fedra devota ao enteado. A inquietação da ama é um reflexo da agitação de Fedra, o querer vir para fora e a expectativa de já querer voltar para dentro do quarto: Ama: Ó males dos mortais e odiosas doenças! Que devo fazer, o que não devo? Eis aqui a luz, o brilhante éter. já está fora do palácio teu leito doentio. Pois vir para cá era tudo o que dizias e logo hás de te apressar para o quarto novamente. Pois logo te abates e com nada te aprazes, nem te alegras com o presente, e julgas o passado mais caro. (178-185)

A ausência de prazer, a falta de alegria com o presente e o desejo pelo passado, começam a caracterizar melhor o estado doentio de Fedra; não se trata mais do ouvi dizer do coro, mas a agitação da rainha acontece agora diante do público. Antes dessa encenação prosseguir, a ama passa a dar sua opinião sobre todo o desacerto. Dessa sua primeira fala, pode-se perceber uma espécie de sabedoria marcada pela experiência, isto é, uma sofiva, que se traduzirá também em habilidade pragmática e destreza para tentar lidar com o problema, revelando-se no final, desastrosa (185-190). A conclusão de sua primeira intervenção é ainda mais filosófica, pois a ama divaga sobre o que se quer mais na vida, o valor que se dá à existência sobre a terra, e a ignorância de uma existência além sob a terra: uma velada menção às

35

W. S. Barret postula: “Violent excitement in a character is often marked by his using lyric metres (cf. on 565600). Here Ph. continues to use ordinary non lyric anapaests, but her excitement os marked by her use of lyric a in place of Attic secondary h (does this point to some kind of quasi-lyric delivery? we can only guess); the Nurse of course sticks to h.” Euripides Hippolytos, p. 200.

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crenças órficas (176-197).36 A essa fala da ama, Fedra agita-se (cf. kaiV mhV calepw~"/ metavballe devma", 203-04), primeiro pedindo às servas que levantem seu corpo e tirem de sua cabeça o arranjo37 (198-202), ao mesmo tempo parece querer libertar-se dos adornos. Ao endireitamento do corpo e desalinho da cabeça (a*mpevtason bovstrucon w!moi", 202) corresponde a seqüência de um delírio de Fedra. As imagens desse delírio para o público é claro, mas não para os que estão em cena: Fedra: Ai, ai! Como de uma fonte cristalina eu poderia extrair uma bebida de águas límpidas e sob álamos negros numa pradaria frondosa, deitada, descansar? (208-11)

A relação entre o desvario de Fedra com a prece de Hipólito é imediata. Os termos comuns são perceptíveis aos ouvidos do público atento: drosera~" a*poV krhni~do", (208) com potamivaisi ...drovsoi", (78); a pradaria frondosa em que Fedra quer se deitar, komhvth// leimw~ni, (210-11), com a pradaria intacta de Hipólito, a*khravtou/ leimw~no", (73) e a*khvraton/ ...leimw~na, (76-77). Na prece do jovem caçador, as imagens da pradaria caracterizam também sua pureza física e moral numa relação ímpar com a divindade. Aqui, as águas das fontes e a pradaria frondosa a que Fedra quer ir, relacionam-se com o desejo de relaxamento, de lassidão. A ama repreende Fedra, que está gritando (w^ pai~, tiV qroei~", 212), entoando (mhV ...ghruvsh/, 213) um discurso montado na loucura (e!pocon, 214).38 O comportamento de Fedra é oposto ao de Hipólito em sua reverência religiosa. Fedra continua seu delírio, evocando imagens relacionadas aos recessos freqüentados por Hipólito: Fedra: Mandai-me para uma montanha; irei à selva e junto aos pinheiros, onde cães fericidas pisam 36

W. S. Barrett comentado o uso de termo fivlteron (v. 191), apresenta: “the kind of after-life doubtless that the mysteries-cults and the Orphics were promising in the 5th cent. to the iniciate and the virtuous.” Euripides Hipplytos, p. 197. 37 e*pivkranon, literalmente a fita que amarra o penteado dos cabelos, amarrando-os. 38 W. S. Barret acha estranho o uso do termo e!pocon neste verso, cf. Euripides Hippolytos, p. 201. No entanto, no conjunto de todo o “imaginário” que se abre nesta primeira cena, os signos apontam para o mundo das águas puras, da caça, dos cavalos, de Ártemis, enfim, de Hipólito. Cf. também “La “Folie” de Phèdre, de G. Stégen, L‟ Antiquité Classique, 39 (2) (1970), pp. 443-49.

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perseguindo corças malhadas. Pelos deuses! Desejo incitar os cães e junto à loura cabeleira lançar a vara tessália, com o dardo farpado nas mãos. (215-22)

As imagens relacionadas a Hipólito vão se intensificando no delírio de Fedra, e, por conseguinte, as inquietações da ama (223-27). O tônus emocional é intenso, e a ama tenta trazer Fedra de volta a razão. O delírio de Fedra culmina em uma estranha prece dirigida a Ártemis de Limna, ou seja, a Ártemis do Pântano marinho, uma estranha conjunção entre a figura de Ártemis, a caçadora por excelência, e os domínios puramente de Afrodite.39 Charles Segal atento a essa fusão e confusão dos domínios, sugere: “Daqui em diante, também, seu apelo a Ártemis tem uma nova ambigüidade. É para dar expressão à sua paixão que ela invoca a deusa pura e virginal, invocada antes por Hipólito e pelo coro: devspoin’ a&liva" !Artemi Livmna" („Senhora Ártemis de Limne marinha,‟ 228) são suas palavras. O adjetivo „do mar‟ assim relembra-nos não apenas a invocação perturbada do coro a Dictina, mas também a deusa sob cujos poderes ela realmente está.”40 As ambigüidades e as contraposições são elementos geradores de tensão dramática. A troca dos domínios de Afrodite pelos de Ártemis evidenciam a perturbação que a devoção de Hipólito gera, pela reação de Afrodite, que a cada momento da peça se faz sentir com mais intensidade. Assim o delírio de Fedra culmina nesta prece que invoca a deusa protetora de Hipólito (228), associada aqui ao mar, numa estranha intersecção com o mundo de Afrodite. Ao evocar os potros vênetos, Fedra deseja invadir os domínios de Hipólito (229-31). A partir do desespero e mesmo irritação da ama (232-238), Fedra volta a si e pede que ama lhe cubra a cabeça novamente (mai~a, pavlin mou kruvyon kefalhvn, 243) pois enlouqueceu, sucumbida pela áte de algum daimon (e*mavnhn, e!peson 39

Cf. todos os aspectos de Ártemis abordados por Walter Burkert em Religião grega na época clássica e arcaica, pp. 295-300. Não há uma única referência a esse aspecto marinho da deusa. Veja a discussão que Charles Segal levanta em torno da figura de Dictina, Ártemis e Afrodite: “Dictynna is, by the epithet poluvqhrion (“of much hunting,” 145). Dyctinna is, paradoxally, an aspect of Artemis (see e.g. IT 127) and, as poluvqhro", would be, one might expect, connected somehow with Hippolytus. Yet here she is associated with Phaedra‟s passion and the sea (...)”, “The Tragedy of Hippolytus”, p. 173-174. W. S. Barrett relaciona a figura de “Ártemis do Pântano Marinho” à lagoa costeira em cujas areias havia um templo a Ártemis Sarônia, e em que Hipólito treinava seus cavalos. Cf. Euripides Hippolytos, p. 204.

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daivmono" a!th/, 221). Está envergonhada pelo que disse (ai*douvmeqa gaVr taV lelegmevna moi, 244). Ao ter a cabeça descoberta, exibiu seus desejos mais secretos; ao cobrir de novo a cabeça da rainha, a ama associa seu gesto a um desejo de morte (250-51). O poeta explora dramaticamente os gestos de abrir e fechar, revelar e ocultar, dizer e silenciar, sempre referendados pelo espetáculo. Solícita no sofrimento de Fedra (286-87), a ama desenvolve uma argumentação, que depois justificará todo o empenho em tentar salvar Fedra de sua doença. A caracterização da ama faz-se primeiro pelo que ela diz de si mesma: uma velha mulher, cuja experiência de vida não recomenda uma ligação tão forte como a que ela mantém com Fedra (pollaV didavskei m’ o& poluV" bivoto", 252;), fazendo-a suportar o duplo fardo de uma dor (253-26O). Sua idéia de que é melhor uma vida regulada pelo nada em excesso revela uma ambigüidade, porque embora a ama se refira especificamente a Fedra, o mesmo já foi dito, de outra forma, pelo servo referindo-se ao modo de vida de Hipólito (261-66). Com isso a ama revela uma espécie de sabedoria popular, que se desdobra, depois de revelada a paixão de Fedra, em conhecimentos de fórmulas e poções mágicas (ei*sin d’ e*pw/daiV kaiV lovgoi qelkthvrioi, 478; fainhvsetai ti th~sde favrmakon novsou, 479). Uma breve esticomitia entre o corifeu e a ama pormenoriza o estado doentio de Fedra: está fraca e empalidecida (a*sqenei~...katevxantai devma", 274); não come há três dias (tritaivan g’ ou~s’ a!sito" h&mevran, 275); oculta do marido, que agora está fora, o mal, e diz que não está doente (279). Tanto no início como no fim desta esticomitia o corifeu quer que a ama interrogue Fedra (cf. sou~ d’ a!n puqevsqai kaiV kluvein bouloivmeq’ a!n, 270 e suv d’ ouk a*navgkhn...novson puqevsqai th~sde..., 282-83). Todos esses dados são importantes para a caracterização da ama. Mas a função dramática da ama na peça, como personagem secundária, é a de abrir o que se oculta, falar o que até então não se falou. Com a ama e, por conseguinte, com Fedra, estamos mergulhados no mundo feminino. A insistência da ama para que Fedra fale (288; 296), é em vão. Fedra silencia mesmo quando a ama enfatiza que estão entre mulheres (293-94), e que se o mal de Fedra deve ser exposto a homens, que o seja diante de médicos (295-96). Fedra retoma a palavra somente quando a ama tece a hipótese de que, com sua morte, seus 40

“The Tragedy of the Hippolytus”, p. 176.

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filhos legítimos possivelmente serão prejudicados diante do bastardo Hipólito (304310).41 A esticomitia estabelecida agora entre a ama e Fedra culminará com a revelação da paixão de Fedra. Assim que Fedra retoma a palavra, a ama passa a ser mais incisiva em seu interrogatório. Fedra não pronuncia o nome de Hipólito, rogando, porém, que a ama não o mencione mais (301-2). A ama supõe que Fedra tenha cometido um crime de sangue (316), ao que Fedra esclarece: Fedra: As mãos estão limpas, mas o coração tem uma mancha. (317)

W. S. Barrett anota: “Polução e pureza no século V eram pensados ainda em termos físicos (cf. em 79-81); as mãos do assassino estão fisicamente sujas. A noção de uma impureza interior resultante não dos atos de alguém, mas de seus pensamentos ou intenções é algo ainda não familiar; e a ama falha justamente ao não perceber o que Fedra quer dizer.”42 Mesmo não sendo familiar, o sentido que Fedra confere ao termo é claro para o público neste contexto. Fedra está tentando dizer que sua impureza é de ordem moral, porém a ama retém apenas o sentido mais tradicional, e disso depende a continuidade da cena. Durante toda a esticomitia que termina com a revelação do amor de Fedra por Hipólito, a ama é a personagem mais ativa, ao fazer perguntas diretas, contrastando com Fedra debilitada em seu leito, procurando evitar falar diretamente sobre sua “doença”. Sua menção a que sua destruição se deve a um amigo a mata sem que ele ou ela queiram (fivlo" m’ a*povllus’ ou*c e&kou~san ou*c e&kwvn, 319), faz a ama, como o coro, supor que Fedra tenha sofrido alguma falta da parte de Teseu (320, cf. 151-155); a resposta de Fedra inverte a proposição da ama, sugerindo que ela é que pode ser vista agindo mal em relação a ele (321). Se Fedra não cometeu um crime de sangue, tem suas mãos limpas, a ama percebe que algo mais terrível aumenta desejo de morrer de sua rainha: Ama: Que coisa tão terrível que te exalta a morrer? Fedra: Deixa-me errar, pois não erro contra ti. Ama: Por minha vontade, não! Em ti está que eu falhe. (322-24) 41

Cf. “The Hippolytus of Euripides”, para os momentos ambíguos de fala e silêncio ao longo de toda a peça. Oxford Readings, pp. 311-331. 42 Euripides Hippolytos, p. 218.

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Neste momento, a ama ajoelhando-se, tocando com a mão direita a mão direita de Fedra, e com a esquerda, seus joelhos, prostra-se no gesto religioso e tradicional de súplica. Com esse gesto aparentemente põe-se num estado passivo, como é um gesto de suplicante, obriga Fedra a falar. Sabemos que a ama faz esse gesto pela reação imediata de Fedra: Fedra: O que fazes? Forças-me ao segurares minha mão! Ama: E teus joelhos também, não os soltarei mais. (325-26)

O gesto de súplica da ama resultará na revelação e Fedra alerta que também a perdição da ama (o*lei~", 329): a questão a ser tratada relaciona-se com a honra de Fedra. Fedra tenta livrar-se da ama: Fedra: Afasta-te, pelos deuses, solta minha mão direita. (333)

O efeito dramático é intenso e a cena emoldura-se pelo constrangimento. A ama, ao se recusar a soltar a mão de Fedra, associa a revelação à entrega de um presente que lhe é devido (334). Para Fedra, essa entrega (cf. dwvsw, 334, entregarei) vem associada às desgraças do passado de sua mãe, Pasifae (337), que, ao se unir a um touro, gera o Minotauro, e o de sua irmã, Ariadne (339), que, ao se apaixonar por Teseu, logo é abandonada e esquecida, justamente por ele que é o atual marido de Fedra.43 Ela mesma vem em terceiro lugar nessa sucessão de amores frustrados (trivth d’ e*gwV duvsthno" w&" a*povllumai, 341). Como a ama não entende suas associações, vai mais longe em sua declaração, sempre se expressando de maneira indireta: Fedra: O que é isso que os homens dizem ser amar? Ama: Algo dulcíssimo, filha, e ao mesmo tempo doloroso. Fedra: Nós só teríamos experimentado o segundo. Ama: Que dizes? Amas, ó filha, que homem? Fedra: É este, quem quer que seja, o filho da Amazona... Ama: Falas de Hipólito? Fedra:

Ouves isso de ti, não de mim. (347-352)

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A revelação do nome de Hipólito, feita pela própria ama, é o clímax desta longa cena.44 Tudo se encaminha para essa direção. A reação da ama não pode ser outra a não ser a do desespero, de intensa emoção, cuja tônica maior é o desejo de morte (353-57).45 Entre esse momento de intensa emoção e o discurso arrazoado de Fedra, numa longa rhésis, o poeta interpõe um interlúdio lírico, uma estrofe coral, cuja antístrofe só aparecerá no segundo episódio. W. S. Barrett supõe que esse pequeno canto seja entoado apenas pelo corifeu e não por todos os membros do coro. “Não sabemos quase nada a respeito da distribuição das letras das canções atribuídas ao corov", mas uma vez que o lamento de Fedra é uma monodia parece igualmente que este lamento correspondente seja uma monodia também, cantada não por todo o Coro mas pelo seu Líder.”46 Embora não possamos determinar com precisão se é o coro todo ou apenas o corifeu a entoar essa estrofe, a idéia de que seja apenas o corifeu é bastante singular, porém não totalmente descartável, uma vez que Eurípides vai desenvolver mais que seus antecessores o canto de cena. É importante notar que essa interrupção lírica intensifica a atmosfera emocional para a próxima cena, que apresenta um dos discursos mais estudados dessa peça. Da entrada da ama com Fedra em seu leito à revelação da causa de sua doença, temos um crescendo na tensão dramática, que é, de certa forma, finalizada por esta estrofe; agora as dúvidas começam a se dissipar e um desfecho começar a ser intuído pelo corifeu: Corifeu: Ouviste, oh! escutaste, oh, os sofrimentos dolorosos insuportáveis de ouvir quando a rainha gritou? Que eu morra antes, amiga, de alcançar teus pensamentos. Ai de mim! Ai, ai! Ó infeliz, que dores! 43

Cf. W. S. Barrtet, para as variações desses relatos míticos existentes na época de Eurípides. Euripides Hippolytos, p. 222-23. 44 Fedra dirá o nome de Hipólito uma única vez na peça, no segundo episódio, cf. v. 580-81. 45 (w&" m’ a*pwvlesa", 353; ou*k a*nascevt’, ou*k anevxomai/ zw~s‟ , 354-55; r&ivyw meqhvsw sw~ma, a*pallagcqhvsomai/ bivou qanou~sa: caivret’: ou*kevt’ ei!m’ e*gwv., 356-57). 46 Euripides Hippolytos, p. 224-25. Para T. B. L. Webster é o coro todo que entoa a estrofe: “When the nurse extracts the truth from Phaidra, the chorus sing their horror in a strophe (362) which is mainly dochmiac; in two places the dochmiacs are associated with cretics, and they are twice punctuated by iambic trimetres.”, The Greek Chorus, p. 148.

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Ó fadigas que alimentam os mortais! Estás perdida, trouxeste à luz teus males! O que te reserva este dia inteiro de hoje? Algo novo se cumprirá no palácio. Já não é mais sem sentido no que acabará o destino de Cípris, ó infeliz filha de Creta. (362-72)

A morte de Fedra, anunciada por Afrodite, passa a ser irreversível. O anúncio de Afrodite tem sido considerado uma antecipação da ação, afinal, desde o prólogo, já sabemos que isso deve acontecer. Neste momento, a idéia da morte de Fedra ressurge dentro de um clima emocional mais intenso do que na fala fria da deusa. Porém, o poeta cria em torno dessa morte um suspense, que só os eventos em cena deixarão mais claros. Charles Segal destaca a ligação entre os diferentes elementos da ode com os já evocados: “O mar, virgindade (a Amazona), Cípris, e finalmente Creta no fim da canção coral (362-72) combinam-se, assim, para introduzir a primeira fala coerente de Fedra sobre sua posição (373 seq.).”47 A fala “arrazoada” de Fedra (373-430) como elemento de espetáculo é um recurso de que Eurípides já tinha utilizado anteriormente, pelo menos em duas peças. Em Alceste (280-325) e em Medéia (214-266), repetindo uma estrutura que apresenta primeiro um crescendo no tônus emocional, incluindo-se aí trechos cantados ou recitados, em dialeto coral; seguem-se longas rhéseis em que os eventos até ali sucedidos são analisados de uma maneira mais racional.48 Fedra teria se levantado de seu leito para se dirigir às mulheres de Trezena nesse momento? No texto não há indicação de que ela fale de pé ou sentada. W. S. Barrett presume que durante a execução do canto, Fedra deixa seu leito e avança em direção ao coro.49 Esse discurso de Fedra tem sido objeto de muitos estudos, sobretudo pela sua referência ao Aidós e aos duplos prazeres (380-87).50 Mas, Charles Segal chama-nos a

47

“The Tragedy of the Hippolytus”, p. 177. Cf. o comentário de A. M. Dale, que também relaciona a esse procedimento à cena de Cassandra nas Troianas (308-510), Euripides Alcestis, p. 74-75. Não será o mesmo procedimento, embora dentro de uma outra estrutura dramática, para a mudança de atitude de Ifigênia na Ifigênia em Áulis? (Cf. 1279-1401). 49 Cf. Euripides Hippolytos, p. 227. 50 Cf. de Charles Segal “Shame and Purity in Euripides‟ Hippolytus”, Hermes, 98 (1970), pp. 278-299; de D. Kovacks, “Shame, Pleasure, and Honor in Phaedra‟s Great Speech”, AJP, 101 (1980), 287-303; de W. D. Furley, “Phaidra‟ s pleasurable AIDOS (Eur. HIPP. 380-87)”, Classical Quarterly, 46 (1996), pp. 84-90; de Shigenari 48

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atenção para sua segunda parte, em que aparecem com bastante nitidez o poder da sexualidade da mulher e o perigo do vexame que isso pode representar ao marido e aos filhos. De alguma forma as razões de Fedra a aproximam das de Alceste, que morre pelo marido, embora sob condições absolutamente diferentes. Na fala de Alceste, percebe-se mais a preocupação, depois de sua morte, com a filha. Aqui, além da possibilidade de Fedra ter sua reputação maculada, os principais atingidos seriam o marido e os filhos. Em ambos os casos, entretanto, vê-se a situação da mulher no mundo mediterrâneo e como C. Segal aponta: “Os estudiosos têm discutido repetidamente a primeira metade desta longa rhesis (373-430), com seu notório problema dos duplos prazeres ou as duplas forma de vergonha (385-87) mas prestaram relativamente pouca atenção à segunda metade, linhas 395-430. Esta passagem formula poderosamente um dado importante das sociedades gregas e de outras do mediterrâneo: poder que a sexualidade feminina exerce sobre os homens através da vergonha que elas podem trazer à casa, à carreira dos homens e assim à toda comunidade.”51 A metáfora do espelho na mão de uma virgem é altamente ambígua (429), e nos remete imediatamente à figura de Hipólito.52 A ama, após essa grande fala de Fedra, destaca-se ainda mais em cena. No entanto, é preciso ressaltar que a ama ganha um espaço incomum, caracterizando-se, sobretudo, por seu pragmatismo imediatista, sua facilidade de comunicação53. É ela que, na tentativa de salvá-la, vai conduzir Fedra mais prontamente à perdição. Fedra tem propósitos aristocráticos, como notou B. M. Knox54. Já a ama não tem nenhum código de conduta que não seja alcançar o que julga proveitoso. Sua palavra não é a de uma mulher honrada (eu*klehv", 423) que busca distinguir a dupla forma de Recato (ai*dwv" te: dissaiV d’ ei*sivn, 385) ou as múltiplas formas de prazeres (h&donaiV pollaiV, 383), mas um discurso (meqei~s’ e*p’ a!llon ei^mi beltivw lovgon, 292) que

KAWASHIMA, “AIDOS and EUKLEIA: Another Interpretation of Phaedra‟s Long Speech in the Hippolytus”, Studi Italiani di Filologia Classica, LXXIX, 1986, pp. 183-194. 51 “Confusion and Concealment”, Euripides and the Poetics of Sorrow, Durham/London, 1993, p. 145. 52 “Yet Eur. elaborates the metaphor as though the mirror were self-revealing; for the parqevno" of course, in the mirror that her servant holds up to her (as often in vase-paintings), is looking at her own face.” Euripides Hippolytos, p. 238. 53 Charles Segal estudando as questões de Linguagem, Signo e Gênero, afirma: “Women‟s speech, then, vacilates dangerously between a language of erotic signs, on the one hand (the Nurse‟s magic and Phaedra‟s written tablets), and a bestial language, on the other.”, Euripides and the Poetics of Sorrow, Durham/London, 1993, p. 98. 54 “The Hippolytus of Euripides”, Oxford Readings in Greek Tragedy, p.322.

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procura a esperteza (sofiva), a salvação (sw~sai)55, dentro de uma perspectiva não aristocrática, mas numa atitude democrática: “E a ama tem uma outra qualidade característica da democracia de Atenas: a flexibilidade. Ela pode adaptar-se rapidamente a novas situações, tomar uma nova forma de argumento - uma capacidade ilustrada pelo fato de que muda sua forma na peça não apenas uma vez, como Fedra e Hipólito, mas três vezes. É tão flexível que sua atitude não é um código moral consistente, mas meramente uma série de tentativas práticas para diferentes problemas.”56 Assim, dotada de uma moralidade mais próxima da apregoada pela sofística, é ela que roga a Cípris, rainha do mar, que ponha em marcha seu plano falacioso (522-24). O público ateniense, ao ouvir a prece em que a ama roga a cumplicidade de Cípris, poderia estremecer, porque, como nós leitores, estava avisado, desde o prólogo, que toda a ação, todo o desenrolar dos acontecimentos resultaria numa única coisa, daria em num único acontecimento: a ruína de Hipólito. Certamente, o sofrimento de Fedra é um desdobramento desse drama principal, um instrumento pelo qual a divindade está se fazendo presente em sua decisão de punir o jovem Hipólito. Cenicamente, no entanto, a ação parece estar tomando um rumo contrário. Resultaria a proposta da ama em algo, de fato, proveitoso para Fedra? Haveria uma salvação possível, uma resolução que lhe permitisse sair ilesa, depois de ter revelado seu mal secreto? Para onde a empatia do público está sendo conduzida? Para a débil Fedra ou para o inocente Hipólito? A ama sai de cena. Fedra fica só com o coro de mulheres de Trezena, companheiras solidárias de seu sofrimento.

55

1) sofiva: kaiV xumfhvsousi sofoiv moi, v. 266; ka*n brotoi~"/ ai& deuvteraiv pw" frontivde sofwvterai. vv. 435-36; devdoic’ o@pw" moi mhV livan fanh~/" sofhv. , v. 518; 2; salvação: nu~n d’ a*gwVn mevga"// sw~sai bivon sovn, kou*k e*pivfqonon tovde vv. 496-97; ai*scr’, a*ll’ a*meivnw tw~n kalw~n tavd’ e*stiv soi/ krei~sson deV tou!rgon, ei!per e*kswvsei gev se,/ h! tou!nom’, w%/ suV katqanh~/ gauroumevnh. vv. 500-502). 56 Cf. “The Hippolytus of Euripides”, Oxford Readings , p. 322. Cf. a interessante ilação de C. Segal apontando que Fedra, apesar de sua longa fala, escolhe não dirigir a palavra a Hipólito, mas, revela seu amor: “We have moved from logos as rational discourse, in Phaedra‟s long speech, to a magical power. Instead of choosing between discourse of words with Hippolytus or total silence (her first choise: 244, 217 ff.), Phaedra becomes engaged in a exchange of magical signs, a synecdochic substitution of sêmeion for logos and of an object for a real person. As a result of this shadowy, in-between discourse of signs, she neither speaks to Hippolytus nor keeps her love silent.” The Poetics of Sorrow, p. 97.

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Primeiro estásimo: 525-564 Entre o fato consumado no primeiro estásimo e o que vai suceder, o poeta interpõe um canto coral completo. Toda a concentração do espetáculo se dirige para essas mulheres, que já se apresentaram como tendo sofrido a dor do parto. E o que elas cantam? Cantam Eros, o deus do amor. Neste hino ao filho de Zeus, o coro, o conjunto de mulheres, expressa sua visão dos acontecimentos até então encenados. Mas essa visão, talvez muito próxima da do público presente, vem, como sói acontecer na tragédia ática, num outro registro, exigindo do público uma atenção maior. Em sua reflexão, o coro expressa uma ideologia também conservadora. Não apresenta, como Fedra, os ideais heróicos e aristocráticos; mas não é pragmático como a ama, que está tentando uma solução fácil e rápida. O seu tom, aqui, é o da contemplação. É como se, neste momento, pela própria configuração espacial da orquestra, lugar onde está também desenvolvendo suas evoluções coreográficas, unido à visão do público, sintetize o sentimento religioso comum, reconhecendo o poder irresistível de Eros. Se aceitamos a afirmação de Shirley Barlow, o coro, ao contrário dos atores, tem mais mobilidade no tempo e no espaço imaginário, relembrando eventos passados, cenas que se deram fora do palco, prevendo o futuro e mesmo expressando desejo de um presente diferente daquele vivido pelas personagens.57 Temos, neste primeiro estásimo, exatamente uma volta a um passado mítico relacionado diretamente com o que se passa em cena. Eros está intimamente ligado a Afrodite, e Eurípides nos oferece uma teologia do amor erótico, que compreende o desejo ardente, Eros, e a realização sexual em si mesma, Afrodite. No primeiro movimento do coro, então, Eros é apresentado com seu poder dominador: estrofe 1

Coro: Eros, Eros, tu que destilas nos olhos o desejo, introduzindo, na alma daqueles a quem combates, a doce graça, jamais me apareças com um mal nem venhas fora do ritmo. Pois, nem o mais alto dardo de fogo dos astros

57

The Images of Euripides, p.17.

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é comparável ao de Afrodite, que Eros, o filho de Zeus, lança das mãos (525-29)

A primeira parte da primeira estrofe já estabelece uma tênue ligação entre o prólogo, o párodo e o primeiro episódio, pois como nota C. Segal, o verbo stavzei" (destilas, 526) evoca o verso “uma rocha que goteja água do Oceano” (stavzousa, 121), onde as mulheres de Trezena lavam suas roupas.58 As imagens continuam interligando-se, porque “aqui, é o „desejo‟ que está gotejando, o verbo também sugere o perigoso pharmakon com que Fedra se entrega à ama e a Cípris.”59 O dardo, que Fedra quer para caçar (bevlo", 222)60, aqui não é um instrumento selvagem, mas sim mais terrível que um dardo de fogo. Para C. Segal trata-se da invasão e perturbação da força elemental de Cípris nos calmos domínios de Hipólito e Ártemis. 61 O mundo intacto e casto de Hipólito começa a ser invadido pela paixão avassaladora de que Afrodite revestiu Fedra. Se Hipólito pode ser figurado como um cultuador, um ministro fiel de Ártemis por sua própria determinação (até aqui Ártemis mantém-se afastada, distante), Fedra é uma extensão de Afrodite, mesmo que não queira. O espetáculo oferecido pela canção é agora dominado pela força da evocação de imagens de acontecimentos que aconteceram num tempo distante do tempo do drama e que, numa leitura superficial, nada têm em comum com o que está sendo encenado. Mas, na verdade, neste canto, ainda que o coro vá evocar outros acontecimentos míticos, a ressonância com os dois primeiros versos da peça não pode deixar de ser assinalada.62 O poder absoluto de Afrodite tem paralelo com outras histórias, relatadas na antístrofe seguinte:

(antístrofe 1)

Coro: Em vão, em vão, no Alfeu e nos recintos píticos de Febo, 58

Cf. “The Tragedy of the Hyppolytus”, p. 183. idem, p. 183. 60 Cf. a idéia de dardo selvagem: dardo farpado no v. 222. 61 idem, p. 183. 62 Cf. a leitura de C. Segal para estas primeiras palavras da peça: “It is interesting that in introducing herself she does not say “I am a god”, but “I am called a god” qeaV kevklhmai (2) not qeav ei*mi.”, “The Tragedy of the Hippolytus”, p. 169. 59

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a terra da Hélade cumula o sacrifício dos bois, se ao amor, o soberano dos homens, o que detém as chaves dos amáveis leitos de Afrodite, não veneramos, ele que destrói, lançando por todas as desgraças os mortais, quando vem. (535-43)

O coro apresenta uma reflexão religiosa, um axioma filosófico sob a veste solene do canto. O coro agora sintetiza, durante a execução da ode, a expectativa do público em relação à ação. A teologia aqui expressa comporta duas comprovações, que se perfazem no par estrófico seguinte. São relatos míticos, distantes do público e também da ação desenvolvida diante de seus olhos, porém, são incontestáveis. O primeiro exemplo do poder arrebatador de Eros traz para dentro da peça o relato do rapto de Íole, filha de Êurito, cujo protagonista é Héracles. Instigado por Afrodite, para conquistar a jovem Íole, ele saqueia a cidade, mata-lhe o pai e irmãos e arrasta-a à força. O poeta não dá importância aos detalhes desse relato, não esclarecendo todas as circunstâncias, mas a ênfase recai sobre o aspecto violento da influência de Cípris: (estrofe 2)

Coro: A potranca da Ecália não submetida ao leito, sem homem e ainda não casada, do palácio de Êurito subjugada, como uma náiade errante, como uma bacante com sangue, com fumaça e hinos esponsais sangrentos, Cípris entregou-a ao filho de Alcmena, ó himeneu infeliz! (545-554)

A antístrofe relata o mito de Sêmele, mãe de Dioniso, que, ao unir-se a Zeus em sua forma divina, por força do amor, é fulminada. Nesta segunda antístrofe, como assinala C. Segal, também a violência de Eros é apresentada numa proximidade

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perigosa com as fontes de água, imagens que já foram evocadas por Hipólito (78) e mesmo no párodo. O poder destrutivo de Eros aparece através de termos guerreiros (e*pistrateuvsh/, 527; u&pevrtaton bevlo", 530; pevrqonta, 541): “trazendo fogo, fumaça e sangue (545 seq.). Ambos, o fogo e as imagens militares convergem, desse modo, destrutivamente sobre a ordem humana tal como expressa pela muralha e pelas fontes da cidade. A ode, então, universaliza o poder de Eros e carrega implicações de seu impacto além da vida individual para a civilização humana como um todo:”63 (antístrofe 2)

Coro: Ó muralha sagrada de Tebas, ó embocadura de Dirce, poderíeis confirmar como Cípris se insinua, pois a um raio brilhante ela deu em casamento aquela que gerou Baco, duas vezes nascido; com um destino de morte deitou-se. Pois, terrível, sopra por toda a parte, como uma abelha que voa. (555-564)

O conjunto, se tivermos em mente as emoções que o canto e a coreografia podem trazer para um espetáculo, revela a total falta de fragilidade que homens e deuses têm diante do poder de Eros. A imagem da abelha voando por toda a parte evoca, de maneira bastante modificada, a imagem da abelha que atravessa a pradaria, de onde Hipólito colheu as flores para coroar sua dileta deusa (cf. mevlissa leivmwn’ h*rinhV dievrcetai, 77). As duas figuras de destaque no imaginário grego, Héracles e Dioniso, são evocadas como signo da impotência humana diante dos feitos divinos, pois, em ambos os casos, sem poder escolher ou reagir, uma mortal é de alguma forma atingida por um deus, motivado pela força erótica. No primeiro caso, Héracles, nomeado apenas por sua filiação humana ( *Alkmhvna" tovkw/, 552), é quem está subjugado por Cípris; no segundo, Baco (560,61) é o fruto da união entre uma mortal o raio de Zeus. A ênfase

63

“The Tragedy of the Hippolytus”, p. 183-184.

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do canto, na verdade, é para a situação de Íole e de Sêmele, mortais violentadas pelo poder absoluto de Afrodite, sem escolha, como Fedra. Por outro lado, o canto coral quebra a seqüência emocional do primeiro episódio, crescente desde o prólogo. Daqui para frente, haverá modificações no andamento da ação, que darão continuidade ao projeto inicial, porém tomando rumos inesperados. Como interrupção, o estásimo pode ser entendido como uma “chegada” a um ponto, uma “estação”, se pensarmos na tradição cristã na celebração tradicional da “via sacra”. E não seria esse um dos sentidos de stásimon?64

Segundo episódio: vv. 565-731 O canto coral é interrompido por Fedra, que dá início ao segundo episódio, que tem três cenas: a primeira começa com Fedra e o corifeu ouvindo os ruídos de dentro do palácio e termina com a saída do palco de Hipólito (565-668); a segunda cena apresenta o canto monódico de Fedra (669-79); a terceira contém a repreensão de Fedra à ama seguida da expulsão desta, o juramento que Fedra exige das mulheres de Trezena e sua decisão de morrer (680-731). Assim, na primeira cena, de acordo com as indicações textuais das falas de Fedra, há ruído de vozes dentro do palácio: Fedra: Calai-vos, mulheres, estamos perdidas. Corifeu: O que há, Fedra, de terrível em teu palácio? Fedra: Silêncio, deixai-me ouvir a voz dos que estão lá dentro. Corifeu: Calo-me, no entanto, este é um mau prelúdio. (565-68)

Em termos de espetáculo, o segundo episódio começa dentro do palácio e é sobretudo pelas falas de Fedra que somos informados sobre o que se passa dentro dele, até que saiam Hipólito e a ama, dando continuidade às ocorrências fora da cena. Fedra, que pediu silêncio ao corifeu, passa a gritar: Fedra: Ai de mim, ai, ai!

64

Sir A. Pickard-Cambridge afirma: “In tragedy the parodos and stasima (the choral odes in the body of the play, after the chorus had reached its stavsi" or normal position) were as a rule sung by the whole chorus in unissom, and there is no evidence for the regular delivery of strophe and antistrophe by separate semi-choruses.” “The Chorus, character, function, and movements”, The Dramatic Festivals of Athens, p. 245. Cf. Oliver Taplin, para a discussão polêmica do termo stavsimon e seu uso, no “Appendix E [Aristotle] Poetics, Chapter 12.”, The Stagecraft of Aeschylus, p. 472.

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Ó como sou desgraçada! Quantos sofrimentos meus! Corifeu: Que grito soltas? Que palavra gritas? Diz, que rumor te amedronta, mulher, que agita teu coração? (569-74)

Fedra está junto às portas e convida o coro a aproximar-se, para ouvir também o clamor de dentro do palácio (kevlado" e*n dovmoi", 576); preconiza já sua ruína (a*pwlovmesqa, 575). O corifeu recusa-se a aproximar-se do lugar em que Fedra se encontra, junto à fechadura (suV paraV klh/~qra, 577),65 e atribui a ela o relato dos acontecimentos no interior do palácio. Os gritos de Hipólito passam a ser perceptíveis também ao corifeu, e, portanto, também para o público, porém ainda não distintos (safeV" d’ ou*k e!cw:, 585), insistindo que é Fedra quem ouve (diaV puvla" e!molen e!mole soiV boav, 587). Todo esse diálogo entre o Corifeu e Fedra, que antecede a segunda entrada de Hipólito, é marcado pela exasperação do coro e pelas constatações da rainha exaurida, numa inversão do que normalmente encontramos em Eurípides, ou seja, a personagem principal, quase sempre mulher, mantém-se exasperada, enquanto uma outra tenta acalmá-la.66 A construção dessa entrada de Hipólito em cena é, pois, exatamente oposta à do prólogo; a morte de Fedra já é um fato decidido (cf. 600). As cenas que se seguem são de intensa ação e, por conseguinte, de elevação na tensão dramática. Hipólito entra agora aos brados. Numa longa rhésis faz um discurso contra as mulheres (616-668). Da entrada à saída de Hipólito (668) há uma intensa movimentação e crescimento da tensão dramática. Os diálogos ficam entre Fedra e o corifeu e entre a ama e Hipólito. A ama repete o gesto ritual de súplica feito para Fedra (325-26): Ama: Por favor, te imploro por tua mão direita de belo braço! Hipólito: Não me tocarás a mão nem toques em meu peplo.

65

Cf. a discussão de W. S. Barrett sobre o sentido dessa palavra no contexto. O estudioso propõe “portas („doors‟), Euripides Hippolytos, p. 269. Porém o grego tem outras palavras para portas, assim prefiro pensar na ligação do termo com a chave, ferrolhos...Fedra está colocada exatamente em um lugar por onde o som sai. 66 “She calls to the Chorus to be quiet so that she can hear; and there begins a dialogue between Ph. standing at the door and the Leader away in the orchestra. - The scene belongs to a type common in Eur., where a contrast of emotion between two characters is brought out by a contrast of metre; the one, excited or distraught, uses lyrics (usually dochmiacs, the wildest of lyric metres), the other, calmer, uses spoken iambics. (...) Here the situation is reversed: Ph.‟s emotions are exhausted, and this last disaster serves merely to crystallize her resolution and to give her the initiative as last for suicide; there is no wild outburst, but only the quietude of resolved dispair. She therefore

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Ama: Ó por teus joelhos, de forma alguma me arruines! ( 605-07)

A ama, ajoelhando-se novamente, tenta tocar na mão direita de Hipólito; este se afasta, não permitindo que ela o toque. É uma cena especular em relação à súplica anterior da ama. Naquela, a ama queria que Fedra falasse. Fedra, deitada em seu leito, não pôde evitar o toque ritual da ama. Nesta, a ama quer que Hipólito se cale (sivghson, w^ pai~, 603).67 Na verdade, não há diálogo possível entre Fedra e Hipólito e, portanto, nem entre Hipólito e a ama. E depois da revelação feita pela ama, pela reação de Hipólito, a impossibilidade de qualquer tipo de relação entre ambos torna-se definitiva68. Do longo discurso de Hipólito, salientamos apenas sua função dentro da economia dramática: a de caracterizar sua hostilidade para com as mulheres (616-668) e, por conseguinte, para com a atração erótica que elas podem provocar, ou ainda, pra com o próprio domínio sagrado de Afrodite. Dentro de uma tragédia, a rhésis se presta a longas explicações, dentro de uma estrutura lógica, argumentativa, ou, então, a um relato objetivo de uma sucessão de fatos extra cena, como o será, por exemplo, o relato do mensageiro (1173-1254). Mas Eurípides não deixa de explorar as possibilidades sintáticas que o teatro grego oferece: como um contraponto a esse longo discurso de argumentações aparentemente lógicas de Hipólito, Fedra quebra a seqüência com um canto monódico, lírico, que tem a mesma estrutura do canto do corifeu no primeiro episódio (362-72).69 Podemos pensar que o poeta esteja procurando conferir um equilíbrio à estrutura do conjunto com esse responsório, antístrofe do interlúdio lírico do corifeu. Na verdade, vamos penetrando gradativamente em camadas cada vez mais profundas do projeto de Afrodite para Hipólito e seus desdobramentos. Aparentemente temos uma dispersão da ação. No entanto, todas as reflexões suscitadas, pelo que se

must speak in iambics; but as a foil to her calm, and to bring out he tension of the scene, the Leader breaks out into the agitation of dochmiacs.” Euripides Hippolytos, p. 266-67. 67 Cf. O capítulo 8 “Mirror Scenes”, de Oliver Taplin, Greek Tragedy in Action, pp. 122-139, para a apreciação das reflexões especulares, das repetições, dos paralelismos, das correspondências em cena. Cf. também The Stagecraft of Aeschylus”, p. 100-102. 68 Para uma apreciação detalhada dos “atos de fala” e “silêncios” nesta peça, vejam-se o estudo de Barbara E. Goff, The noose of words, Cambridge, 1990, sobretudo o capítulo “Speech and silence”, pp. 1-26, e o ensaio de Bernard W. M. Knox, “The Hippolytus of Euripides”, Oxford Readings in Greek Tragedy, pp. 311-331. 69 É possível falar de uma morfologia do espetáculo assim como de sua sintaxe. Por morfologia podemos entender as partes constitutivas: monólogos, diálogos, diversas modalidades de canto, enfim, as formas empregadas na construção da peça. Por sintaxe, a ligação entre as diversas formas, o que confere ao espetáculo seu poder de

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desenrola na ação e pelo que se canta em cena, levam-nos a perceber o tamanho da desmedida de Hipólito e o tamanho da vingança de Afrodite. A distância entre a estrofe e antístrofe é enorme, mas em ambas o ponto central é o sofrimento de Fedra, a sorte que Fedra não escolheu (tuvca/ Kuvprido", 371-72; pa~/ pot’ e*xaluvxw tuvca"; 673), mas que lhe foi impingida pela deusa. Não há mais saída possível e Fedra foi ferida justamente naquele ponto que até aqui tentou guardar: sua honra. Agora, como Hipólito, Fedra recusa o amor, e é uma imagem de espelho invertida, oposta à imagem apresentada do jovem. É o lógos que a leva à ruína: Fedra: Infelizes, ó destinos desafortunados das mulheres! Que artifícios ou argumentos temos agora para desmanchar o nó de palavra que falhou? Fui punida. Ai terra e luz! Para onde, então, fugirei da sorte? Como hei de ocultar a calamidade, amigas? Que deus se mostraria propício ou que mortal estaria próximo ou cúmplice de obras injustas? Assim, o nosso sofrimento, intransponível, caminha para fora dessa vida. Eu sou a mais desgraçada das mulheres. (669-79)

O canto de Fedra está de acordo com o que o coro, no párodo, já afirmou sobre a natureza da mulher (161-164) e mesmo com o famoso discurso de Hipólito contra a raça feminina (616-668). Aqui ele confere à idéia do sofrimento de Fedra contornos patéticos. Fedra vai retirar-se de cena na seqüência deste canto. A ama tenta mais uma vez salvá-la (a*ll’ e!sti ka*k tw~nd’ w@ste swqh~nai, tevknon, 707). Fedra a expulsa sumariamente (708-9). A ama, nesse momento, deve retirar-se de cena. A rainha, por sua vez, faz com que o coro jure manter-se em silêncio sobre o que ouviu (710-11), e o corifeu jura solenemente por Ártemis, numa contrapartida feminina do juramento masculino, feito sempre por Apolo. W. S. Barrett presume que o juramento do corifeu comunicação. A analogia ao mundo da gramática vem de Eduard Fraenkel, apud, Oliver Taplin: “For Greek tragedy there exists also something like a grammar of dramatic technique.”, The Stagecraft of Aescylus, p. 1.

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seja acompanhado de um gesto ritual de todo o coro em direção a estátua de Ártemis (712-13).70 As últimas palavras de Fedra revelam sua decisão irreversível de morrer, porém, julgando com esse ato satisfazer Cípris, no que ignora ser um instrumento da deusa: Fedra: Morrer. Como, isso eu decidirei. Corifeu: Cala-te! Fedra:

Dá-me também tu um bom conselho. Eu alegrarei Cípris, a que me arruina, e, afastando-me da vida neste dia;

serei derrotada pelo amargo amor. No entanto, morta, tornar-me-ei ao outro um mal, para que saiba não ser soberbo nos meus infortúnios. Aprenderá, partilhando desta minha doença, a ser sensato. (723-31)

São as últimas palavra de Fedra em cena. A promessa de comprometer Hipólito em sua doença é ambígua. Pensa estar punindo o jovem, entretanto, ignora que, através dela, Cípris opera seu plano.71 Com sua morte, um ato que salvaguarda sua honra, espera ensinar o jovem soberbo a ser sensato nos infortúnios (swfronei~n maqhvsetai, 731).72 Agora Fedra já reconhece quem dentre as deusas é a causa de seus males. Mas ao deixar ao palco com estas últimas palavras, faz ressoar outras hipóteses. E se Hipólito tivesse correspondido a seu amor? Teria deixado de ser soberbo? Teria sido mais sensato?

70

Euripides Hippolytos, p. 294. “Las palabras de Fedra demuenstram que en este momento ya ha decidido acabar con su vida y comprometer gravemente a Hipólito, pero hay además en ellas una buena carga de ironía: su enfermedad es el amor; no va a lograr que Hipólito tenga parte en él, pero sí en su trágico resultado. La carga irónica viene reforzada por el sentido más frecuente de swfronei~n en el Hipólito, relacionado con la idea de castidad.” Carlos Miralles, em sua tradução espanhola do Hipólito, Barcelona, 1977, p. 154. 72 O termo e seus correlatos perpassam toda a peça: toV swfronei~n, 80; tw/~ swfronei~n, 399; taV" swvfrona" meVn e*n lovgoi", 413; swvfrwn, 494; swfronei~n, 667; swfronei~n, 697; swfronei~n, 731; swvfrwn, 949; swfronevstero", 995; sw~fron, 1007; swvfroisin, 1013; swfronei~n, 1034; swfronevsteron, 1100; swfrosuvnh/, 1365; swfronou~nti, 1402. 71

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Segundo estásimo: vv. 732-775 O segundo estásimo marca o fim da primeira parte da peça. Após a morte de Fedra, o poeta dará uma feição diferente ao espetáculo. Parte do projeto de Afrodite já se cumpriu; agora esperamos igualmente a ruína de Hipólito. Nesse segundo estásimo, o coro eleva ao máximo a expectativa dos acontecimentos. Para W. S. Barrett, “a ode é planejada, portanto, para nos retirar por um momento dos acontecimentos do palco e instigar em nós, quando retornarmos a eles, uma piedade que não deve ser violenta mas resignada.”73 O desejo de evasão expresso pelas mulheres de Trezena para os recessos dos altos montes (732), transformadas em aves (733-34), num vôo que as conduz para o limite ocidental, passando pelo mar Adriático e pelo rio Eridano (73537), não se limita a uma geografia natural conhecida na época da produção da peça. A referência às irmãs de Faetonte, que por pena dele destilam os raios brilhantes de âmbar (738-41), projeta esse desejo para além da realidade momentânea intolerável. Esse primeiro par de estrofe e antístrofe expressa o desejo de evasão do coro em uma situação crítica, comum na tragédia ática74 Porém, através das imagens evocadas é possível estabelecer alguma relação com imagens já evocadas anteriormente: (estrofe 1) Coro: Que me encontrasse nos recessos dos altos montes, onde um deus me transformasse numa ave emplumada entre a revoada alada; e me elevasse sobre a onda marinha do Adriático e sobre a água na margem do Eridano, onde as virgens infelizes por pena de Faetonte, em direção ao vagalhão purpúreo, em lamento em vez de lágrimas, destilam os raios brilhantes de âmbar. (732-41)

73

“The Hippolytus of Euripides”, p. 297. Cf. para uma apreciação de outras peças em que o desejo semelhante de evasão, Euripides Hippolytos, p. 299-300. Quanto a Faetonte, na Teogonia, aprece como filho de Aurora e de Céfalo (cf. 986 e sq.) Eurípides baseia-se em outra versão do mito, na qual Faetonte é filho do Sol. Zeus o pune por ter conduzido o carro do pai em direção ao céu numa rota diferente da traçada pelo pai. 74

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Como assinala Shirley A. Barlow, Sófocles, ao contrário de Eurípides, em sua odes corais apresenta muito mais comentários morais que as visões panorâmicas, encontradas também em Ésquilo.75 Entretanto, nas imagens sugeridas pela canção, é possível vislumbrar uma relação, ainda que tênue, como já afirmamos, com os acontecimentos dentro da ação. Para Shirley A. Barlow, isso se deve principalmente porque se pode interpretar a ação que se encena pelos menores detalhes das canções de um tipo aparentemente decorativo, a partir dos locais mencionados.76 Assim, mesmo esse mundo divino evocado na primeira estrofe está marcado pela dor humana: as lágrimas, que as infelizes irmãs derramam no mar por Faetonte, embora sejam transformadas nos raios brilhantes do âmbar (735-41) são signos de tristeza. “O inchaço do mar (oi^dma), como os mortais conhecem, significa aflição; mas aqui neste mundo mítico, imaginário, as lágrimas podem ser transformadas em algo precioso e belo (h*lektrofaei~", 741). O „destilar‟ (stalavssousin) de lágrimas, entretanto, evoca as duas odes anteriores - a rocha cheia de paz gotejando do mar, no párodo, e o desejo destilado nos olhos por Eros, no primeiro estásimo. Sugere, então, mesmo aqui, a persistência do sofrimento mortal e o contínuo poder de Afrodite trabalhando para destruir o passado calmo.”77 A viagem do coro amplia-se para os recônditos mais distantes: (antístrofe 1)

Coro: Que eu atinja a margem cheia de maçãs das Hespérides cantoras, onde o senhor purpúreo do mar não mais partilha com marinheiros o caminho do porto, fixando o limite augusto do céu, que Atlas sustém, e as fontes de ambrosia jorram diante do leito de Zeus, em que a divina terra, doadora da vida, aumenta a felicidade dos deuses. (742-51)

75

Cf. “Choral Odes: Imagery of Place”, The Imagery of Euripides, p. 17-18. Idem, p. 18-19. 77 “The Tragedy of the Hippolytus”, p. 186. 76

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É interessante notar que o poeta quer nos fazer esquecer momentaneamente da gravidade dos acontecimentos em cena, evocando imagens remotas, trazidas dos muitos mitos de que dispunha, sem contudo abandonar a idéia de sofrimento. Não temos idéia dos movimentos coreográficos para esse momento do canto, mas o texto sugere o vôo para regiões distantes, aliás, as mais distantes no ocidente que o grego do século V a.C. poderia conceber (745-751). Essas distâncias, já evocadas no prólogo por Afrodite (2-4), na verdade, referem-se ao seu poder que não conhece fronteiras. Mas a sugestão de fuga logo se desfaz no movimento seguinte da ode. No próximo par de estrofes, o coro traz à lembrança os maus presságios relativos à saída de Fedra de Creta e à sua chegada à Atenas: (Estrofe 2)

Coro: Ó embarcação cretense de branca asa, que, pela onda rumorejante do mar, conduziste minha rainha para longe das riquezas de sua casa, à vantagem de um casamento funesto. Ah! Sem dúvida, foi de ambos: quando da terra de Minos um mau presságio voou até a ínclita Atenas, e quando às margens do Múnico ataram as pontas trançadas das cordas e ancoraram sobre a terra do continente. (752-63)

A travessia no mar feita por Fedra associa-se de modo sinistro à sua presente perdição. De uma situação feliz na casa paterna (755), Fedra vem para as núpcias com Teseu, origem de sua destruição (756). Como assinala C. Segal, neste segundo par estrófico, a passagem de um mundo divino e feliz para um mundo humano realizada por meio da embarcação de branca asa (leukovptere porqmiv", 751-52) terra e céu unem-se para sua destruição; o par estrófico também está em oposição ao par anterior, em que as bodas de Zeus são celebradas.78 A menção à onda do mar rumorejante (75253), faz-nos lembrar dos domínios de Afrodite, e pode ser entendida como o ponto de

78

“The Tragedy of the Hippolytus”, p. 186.

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intersecção entre os limites do céu e da terra. Mas é na antístrofe que o coro torna explicita a origem dos males de Fedra: (antístrofe 2)

Coro: pelo que foi abatida por uma doença terrível no coração ímpio de amores não puros de Afrodite; e estando cumulada com penosa desgraça no seu quarto nupcial amarrará uma corda, enlaçando-a em torno do branco pescoço, por envergonhar-se de sua sorte odiosa, e escolher a reputação gloriosa e livrar de seu coração um amor doloroso.(764-775)

O movimento das duas estrofes vem, portanto, de um tempo passado, fora do tempo da peça, para um presente e um futuro imediatos. O espetáculo do enforcamento de Fedra é antecipado e associado pelas referências comuns a seu desembarque no porto de Atenas. Em ambas, estrofe e antístrofe, encontram-se evocações evidentes: a embarcação cretense de asas brancas (leukovptere Krhsiva/ porqmiv", 752-53) e o pescoço branco de Fedra (leuka~/ ... deira~/, 771-72); as pontas das cordas trançadas para o desembarque (plektaV" peismavtwn/ a*rcaV", 762-63), com a corda enlaçada (kremastoVn/ ...brovcon, 770). Mais uma vez as imagens tornam a evocar os movimentos de dentro para fora e de fora para dentro, de coberto para descoberto e de descoberto para coberto, do interior para o exterior e do exterior para o interior, do oculto para o evidente e do evidente para o oculto, do privado para o público. A chegada de Fedra a Atenas é um acontecimento público, por seu casamento com Teseu. Sua chegada a Trezena está inserida no mundo do oikos, é algo que está relacionado com o seu dia a dia, ou seja, pertence à esfera doméstica, da vida privada. O que acontece, desde o momento em que avista Hipólito, permanece oculto, coberto até a aparição de Afrodite que decide mostrar a verdade das palavras (deivxw deV muvqwn tw~nd’ a&lhvqeian tavca, 9; deivxw deV Qhsei~, 42). Agora o coro anuncia o acontecimento mais grave da peça, na parte mais íntima da casa: o enforcamento de

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Fedra em seu quarto nupcial (a*poV numfidivwn, 770). Mesmo sendo uma antecipação, não se compara, porém, ao que aguarda Hipólito com essa morte.

Terceiro Episódio: vv. 776-1101 O terceiro episódio é um dos mais longos da peça, podendo ser divido em duas grandes cenas. Na primeira cena, primeiro temos a interrupção do canto coral, agora pela ama, dentro do palácio gritando por socorro (776-789); Teseu entra nesta seqüência, dialoga com o corifeu e passa a entoar com o coro um kommós (811-855) a partir do momento em que o corpo de Fedra é trazido para fora do palácio (808-810); somente no verso 857 é que Teseu perceberá a tabuinha pendendo na mão da defunta. Enquanto Teseu lê a carta deixada por Fedra, o coro, ou o corifeu, entoa um interlúdio lírico (866-873). A primeira cena encerra-se com o anúncio da nova entrada de Hipólito (899-901). Com a volta de Hipólito, inicia-se a segunda cena deste episódio, que comporta o agón entre pai e filho e a expulsão de Hipólito (902-1101). Nesta segunda parte da peça, é perceptível a mudança no andamento da ação, com os acontecimentos sendo, na verdade, um pouco mais precipitados do ponto de vista dramático. Como veremos também, há uma sensível mudança na interferência coral. A antecipação da morte de Fedra por enforcamento tem, por sua vez, um contraponto: o retardamento em trazer ao palco seu corpo, o que poderia ser feito por meio de um ekkýklema. A ama é que interrompe o canto coral, com gritos de socorro no interior do palácio:79 Ama: (De dentro) Ui, ui! Correi! Socorrei todos vós próximos ao palácio! está enforcada a senhora, esposa de Teseu! (776-77)

79

Aceitamos a anotação de W. S. Barrett, que justifica a atribuição aos gritos dentro do palácio pela ama. Cf. Euripides Hippolytos, p. 311-12. Porém não há uma explicação para a anotação (e!swqen), antes da fala atribuída a ama. Para uma ampla discussão sobre este tipo de anotação, não muito comum na tragédia ática, cf. “Le questione delle indicazioni didascaliche”, de Oliver Taplin, Il teatro greco nell‟ età di Pericle, Bologna, pp. 147-160; e para uma abordagem um pouco diferente do tema, no mesmo livro, o artigo de Gary Chancellor, “Le didascalie nel testo”, pp. 147-160. James Diggle, em sua edição mais recente do texto, também o faz, cf. Euripidis Fabulae, Tomo I (1984), p. 241.

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Os gritos da ama no interior do palácio, anunciando o enforcamento de Fedra, aumentam a intensidade da emoção que começou a ser trabalhada no final da ode anterior. O corifeu confirma as palavras do coro: Corifeu: Ai, ai, está feito; a rainha não existe mais como mulher, está pendurada em cordas suspensas. (778-79)

Pelo que a ama diz ainda no interior do palácio, nenhuma das mulheres do coro atende seu pedido de ajuda (780-81). Na verdade, as mulheres agora falando entre si, não sabem o que devem fazer, se devem entrar no palácio e ajudar a soltar o corpo de Fedra, ou se as servas mais jovens do palácio devem se ocupar de tal tarefa, não interferindo nos acontecimentos (782-85).80 A constatação da morte de Fedra é rápida e carregada de emoção. Na seqüência, a ama, ainda dentro do palácio, dá instruções para que se estenda o corpo de Fedra (786-87). Uma das mulheres, ou mesmo o corifeu exclama: Corifeu: Morreu a infeliz mulher, pelo que estou ouvindo. Pois já a estendem como uma defunta. (788-89)

Teseu entra em cena, sem ser anunciado, em meio ao tumulto dos coreutas (tiv" ...e*n dovmoi" bohv/ h*cwV barei~a prospovlwn, 790-91) e, pelo corifeu, fica sabendo que Fedra se enforcou (802). Com um gesto exatamente oposto ao de Hipólito no prólogo, lança sua coroa ao chão e dá ordens para que se abram as portas do palácio: Teseu: Ai, ai, por que tenho a cabeça coroada com estas folhas trançadas, um infeliz viajante? (806-807)

A referência à coroa sobre a cabeça, combinada com a menção do termo qewrov" (807), indica a importância de sua viagem: os que vão a Delfos e de lá retornam, trazem uma coroa na cabeça, como signo religioso. Teseu, ao retirá-la em sinal de luto, sofrimento e desespero, antecipa-se ao espetáculo que o aguarda: o corpo de Fedra morto. Este seu gesto é uma desconstrução de um signo anteriormente já

80

Cf. W. S. Barret para a discussão da distribuição das falas desta passagem entre as mulheres, Euripides Hippolytos, p. 313.

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encenado por Hipólito.81 Charles Segal aponta para a relação antinômica desta cena com a do coroamento da estátua de Ártemis: “O lançamento de sua coroa ao chão é também a contrapartida simbólica da apresentação de Hipólito da „coroa trançada‟ (plektroVn stevfanon) a Ártemis em sua entrada, a cena da qual deriva o título da peça, stefaniva". Em ambas as cenas, naturalmente, a representação visual reforçaria a repetição verbal; e os dois eventos, como imagens de ação, marcam dois pontos cardeais na estrutura da peça.”82 Aqui o gesto de Teseu, oposto ao de Hipólito no prólogo, reforça a idéia da ruína da casa de Teseu, que será posta em cena em toda essa segunda parte da peça. As portas do palácio não só serão abertas, como também o corpo de Fedra, já deitado (811 e seq.), será trazido à cena num ekkýklema. Há dúvidas sobre o uso desse recurso teatral, mas preferimos aceitar a opinião de W. S. Barrett que defende seu uso, já que apenas a abertura das portas não seria o suficiente para que o corpo, dentro do palácio, fosse visível a todo o público.83 A presença do cadáver de Fedra em cena também é importante para que outro objeto seja visto: a fatídica tabuinha pendendo em um de seus pulsos, que só é percebida por Teseu no verso 857. Entre a volta de Fedra à cena, agora já um cadáver, e a descoberta da tabuinha, Teseu e o coro entoam o kommós. Ressaltem-se neste lamento, além do tom patético que empresta ao espetáculo, os elementos evocados por Teseu: Teseu: De males, ó infeliz, vejo um mar tamanho, de que jamais escaparei a nado, nem ultrapassarei a onda desta desgraça. (822-24)

81

Para a coroa como um signo religioso(e positivo) dos consulentes do óraculo, cf. Édipo Rei, de Sófocles: O corifeu vendo Creonte aproximar-se coroado, vindo de Delfos, proclama a*ll’ ei*kavsai mevn, h&duV": ou* gaVr a!n kavra/ polustefhV" w%d’ ei%rpe pagkravtou davfnh", vv. 82-83; W. S. Barrett anota a cena do Agamêmnon, de Ésquilo, em que Cassandra tira suas insígnias sacerdotais, inclusive a coroa da cabeça quando está prestes a morrer: tiv dh~t’ e*mauth~" katagevlwt’ e!cw tavde/ kaiV skh~ptra kaiV mantei~a periV devrh/ stefh; v. 1264-65, em comparação a esta de Hipólito, cf. Euripides Hippolytos, p. 317. Cf. também Barbara E. Goff : “Theoros can mean both one who consults an oracle and one who attends a festival or performance; Theseus sheds his theoric garland on receipt of the tragic news but remains a “spectator” of his wife‟s body.” “Speech and Silence”, in The noose of words, p. 24. 82 “The Tragedy of the Hippolytus”, p. 188. 83 “The use of such a device in the 5th cent. is periodically denied; but to deny it one must be prepared to love a good deal of dramatic effect in tragedy and to miss completely the point of some excellent Aristophanic burlesque (as does Pickard-Cambridge, The Theatre of Dionysus in Athens, 100-122). In our play the presence of Ph.‟s body is essential to the whole scene down to 1089 (...).” Euripides Hippolytos, p. 318.

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O mar aqui é usado como metáfora de sofrimento, e, como assinala C. Segal, ecoa também a fala anterior de Fedra, sobre sua sujeição a seu poder (e*kneu~sai, 470; dusekpevraton, 678). Ao longo da peça, pode-se ver a sugestão de uma expansão gradual da calamidade vinda de Afrodite, e por conseguinte, da força do mar, ambos revelando sua natureza comum: forças naturais e irracionais, sobre as quais o homem não pode exercer seu domínio.84 Em contrapartida, as imagens relacionadas com Ártemis restringem-se, na maioria das referências na peça, ao mundo particular de Hipólito, e prendem-se ao seu comportamento diferenciado dos outros mortais, estranho às demais personagens. Afrodite abriu a peça, e é sobre a extensão de seu poder que vemos as cenas se sucedendo. A comparação de Fedra com uma ave (o!ni", 827), que desaparece da mão para o Hades, “continua o tema da ode de fuga e, em conjunção com 822-824, acentua o poder universal de Afrodite, manifesto em ambos, mar e céu.”85 No final do kommós, ainda com a atmosfera de lamento, Teseu percebe a tabuinha pendurada na mão de Fedra. É de se esperar que também esteja visível ao público, assim como o corpo de Fedra: Teseu: Ai! Ai! Que é isto, esta tabuinha pendurada na mão querida? Que novidade quer indicar? (856-57)

Assim Teseu, pegando a carta de Fedra, passa a conjecturar sobre seu conteúdo (858-861) e, depois, a abre: Teseu: Sim, e aqui as marcas do sinete de ouro desta que não mais existe me acariciam. Vamos! Desamarrarei o os cordões dos selos que eu veja o que esta tabuinha quer me dizer. (862-65)

A leitura da carta é feita silenciosamente por Teseu. O fato tem trazido algum embaraço para os estudiosos que pretendem ser a leitura silenciosa algo que os gregos

84

“The Tragedy of the Hippolytos”, p. 189. “Aphrodite, born from the sea, has all its irrational elementality. She is as Seneca describes in his Phaedra (274), the goddess non miti generata ponto.” p. 167. 85 Idem, p. 189.

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do período clássico desconheciam.86 Mas ainda que Teseu a lesse em voz alta, seu conteúdo exato não é divulgado. Teseu afirma que ela “grita coisas execráveis” (boa~/ boa~/ devlto" a!lasta, 877), e, se tivermos em mente que a!lasta vem de lanqavnw, são, portanto, coisas também que se devem esquecer. Durante a leitura, o coro entoa um interlúdio lírico (866-873), encobrindo-a, assim. Do conteúdo deixado por Fedra, vale notar, só ficamos sabendo que Hipólito, pela violência, teria ousado tocar no leito do pai (885-86). Assim, o que deveria ser uma revelação, passa a ser um ocultamento da verdade, uma invenção, uma mentira. A carta, como objeto de cena, é uma espécie de extensão de Fedra morta; como ela, estava “dependurada” (cf. h*rthmevnh, 779; 867). A lembrança de seu amor ímpio ficou selada para sempre nas palavras escritas, só que como um canto de sereia, pois o efeito de sua carta é puramente acústico: Teseu vê nas letras um canto entoado (oi%on oi%on ei^don e*n grafai~" mevlo"/ fqeggovmenon tlavmwn, 879-80). Como previsto por Afrodite no prólogo (42-46), Teseu invoca seu pai Possêidon, fazendo uso dos votos a que tem direito. Em Atenas, como nota W. S. Barrett, Teseu era filho de Egeu, mas na peça, à medida que interessa dramaticamente, é filho de Possêidon.87 O corifeu tenta intervir na decisão de Teseu (891-92), que obviamente não se dobra, exigindo o exílio acrescido da morte de Hipólito no dia de hoje (h&mevran deV mhV fuvgoi/ thvnd’..., 889-90), em evidente reverberação à fala de Afrodite (timorhvsomai/ &Ippovluton e*n th~/d’ h&mevra/, 22-23). Neste momento, o corifeu anuncia a volta de Hipólito à cena e intercede em seu favor, quase transgredindo seu juramento a Fedra (899-901). O ponto alto do terceiro episódio é o agón entre pai e filho. O coro silencia, conforme o juramento prestado a Fedra e Hipólito silencia, mantendo o juramento prestado a ama. Por ironia, o agón centra-se sobretudo no que foi escrito (e não dito)

86

Entre os estudos que discutem a leitura na antigüidade, destacamos: “Techniques of Reading in Classical Antiquity”, de A. K. Gavrilov, Classical Quarterly, 47 (1997), pp. 56-73; “Poscritp on Silent Reading”, de M. F. Burnyeat, Classical Quarterly, 47 (1997), pp. 74-76; “Ancient Reading”, de G. L. Hendrickon, Classical Journal, 25 (1929-30), pp. 182-96; Cf. também os clássicos de Eric A. Havelock Prefácio a Platão, Campinas, 1996, e A revolução da Escrita na Grécia, São Paulo/Rio de Janeiro, 1996; de Jesper Svenbro, Phrasikleia, anthropologie de la lecture en Grèce ancienne, Paris, 1988, e o ensaio “The Interior Voice: On Invention of Silent Reading”, Nothing to do with Dionysus, Princeton/New Jersey, 1990, pp. 366-84. 87 “Euripides Hippolytos, p. 333-34 Cf. os versos em que Teseu aparece como filho de Possêidon 887, 1169, 1315, 1318, 1411; filho de Egeu em 1283 e 1431.

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por Fedra na carta e naquilo que é dito por Hipólito publicamente. O jogo entre fala e silêncio se estabelece novamente dentro do espetáculo. Como nota Michael LLoyd em seu estudo dos agones de Eurípides, a descoberta do corpo de Fedra e sua carta denunciando o jovem motivam a maldição de Teseu (887-90) antes que ambos se confrontem, o que torna o agón inteiro “fútil, já que nada do que Hipólito diz poderia agora salvá-lo, e a peça assim compara-se à Alceste e à Medéia, nas quais os agones também surgem tarde demais para ter um efeito substancial.”88 Seu argumento apoia-se na idéia de que a maldição colocada dentro do agón teria um efeito mais dramático. Mas o efeito resultante do agón desta peça é bastante interessante, pois destaca com muito mais proeminência a atitude irracional de Teseu, motivada puramente pela emoção, ao contrário, dos famosos segundos pensamentos da ama (ai& deuvterai frontivde" sofwvteroi, 436). O que a peça perde em termos de uma construção mais lógica, se tivesse um agon em que ambas as partes tivessem igual oportunidade de ataque e defesa, ganha ao apresentar cenicamente agora a desmedida de Teseu: a de Hipólito foi encenada no prólogo; a de Fedra no primeiro episódio; o confronto entre as duas, no segundo. Segundo Michael Lloyd, o debate entre pai e filho tem mais da linguagem forense do que qualquer outro escrito por Eurípides.89 A falta de contato entre pai e filho é marcada cenicamente. Hipólito ao deparar com o cadáver de Fedra, diz: Hipólito: O que acontece? De que modo morreu? Pai, quero ser informado por ti. Tu te calas? A ação do silêncio não é nada nas desgraças. (909-11)

Teseu fala, mas não responde às questões de Hipólito (916-20), o que, para Hipólito, é como uma fala de um hábil sofista (deinoVn sofisthVn ei^pa", 921); as palavras de Teseu atingem Hipólito (...pevplhgmai: soiV gaVr e*kplhvssousiv me/ lovgoi parallavsonte" e!xedroi frenw~n, 934-35).90 Teseu, numa longa rhésis, apresenta seus argumentos contra Hipólito (936-980) destacando seu estranho modo de vida e associando-o ao dos órficos e suas práticas ascéticas (949-957), estranhas inclusive

88 89

“Early agones Alcestis, Medea, Hippolytus, Andromache”, The agon in Euripides, Oxford, p. 43. idem, p. 45.

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para o homem grego da época. A ironia maior desta fala de Teseu fica por conta de sua menção às letras, ele que acabou de colocar toda sua confiança no texto escrito por Fedra:91 Teseu: Orgulha-te já, e por teus alimentos sem vida, regateia com teus cereais, e, tendo como soberano Orfeu, celebra em transe, honrando as fumaças de muitas letras. (952-54)

A censura ao modo de vida do jovem é o centro da acusação de Teseu: “parece que Teseu está revelando um ressentimento antigo pelo modo de viver de Hipólito, que o predispôs a acreditar nas acusações de Fedra.”92 Como um desdobramento desse ressentimento, em três pontos, Teseu antecipa uma possível defesa de Hipólito (95870) sendo essa a única seção de sua fala em que se nota uma tentativa de análise racional: a morte de Fedra o salvaria, porém seu cadáver é mais eloqüente do que qualquer prova (955-961); o ódio que Hipólito poderia sentir por Fedra pelo fato de ser filho bastardo (962-63); a irresponsabilidade sexual típica dos jovens que se comparam à mulheres (966-970). Para Teseu, no entanto, a presença do cadáver de Fedra, ainda em cena, é a prova cabal da responsabilidade de Hipólito; retoma seu descontrole emocional e torna a proclamar o exílio de Hipólito (970-980). Na réplica do jovem Hipólito, sua defesa será feita de modo a respeitar todos os procedimentos jurídicos, “em contraste com Teseu, que usou mal os procedimentos forenses e chegou a uma conclusão errada, Hipólito dá o melhor de si.”93 Já na abertura de sua fala, faz uso de um recurso retórico comum, ou seja, o de negar que saiba falar em público (984-989). “Hipólito, como contraste, usa uma linguagem altamente colorida para expressar seu desprezo pela multidão (o!clo", 986, 989), e diz 90

Como nota W. S. Barrett, Teseu ignora a presença de Hipólito até o v. 942. A presença de Hipólito tornaria também Teseu um impuro, pelo olhar dirigido ao pai: “dei~xon d’, e*peidhV g’ e*" mivasma e*lhvluqa,/ toV soVn provswpon deu~r’ e*nantivon patriv. (946-47). 91 Sobre a falta de confiança que o grego tinha em relação à escrita, veja-se Eric A. Havelock, que, ao discutir o ensino das letras nas escolas áticas, tomando como base As Nuvens o Protágoras e As Rãs, diz: “Com efeito, este último testemunho deveria nos lembrar de que a Comédia Antiga não raras vezes, quando introduz o uso de documentos escritos em alguma cena, tende a tratá-los como algo novo e cômico, ou suspeito, e há passagens na tragédia que revelam as mesmas implicações. Prefácio a Platão, p. 57; em nota , o autor cita As Suplicantes (947), de Ésquilo, e esta passagem do Hipólito. 92 “Early Agones...”, p. 46. Para um interpretação mais psicanalítica desse relacionamento entre pai e filho, a continência sexual de Hipólito e a incontinência de Teseu, cf. C. Segal, “Pentheus and Hippolytus on the Couch and on the Grid: Psychoanalytic and Structuralist Readings of Greek Tragedy”, Interpreting Greek Tragedy, pp. 268293. 93 “Early Agones...”, p. 47.

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que é preciso ser komyov" e fau~lo" para dirigir-se a ela de modo convincente. Ele deduz que seu público presente é uma multidão deste tipo, e implicitamente contrastao com os sofoiv aos quais prefere se dirigir.”94 Mas é constrangido a falar devido à desgraça (o@mw" d’ a*navgkh, xumfora~" a*figmevnh"/ glw~ssavn m’ a*fei~nai, 990-91). O centro de sua defesa é a sua castidade (swfronevstero", 995), de sua falta de contato com Afrodite, uma defesa contra o testemunho de um cadáver apresentado por Teseu (972): Hipólito: Sou puro numa coisa, na qual agora crês ter-me apanhado: pois meu corpo até hoje é puro dos prazeres do leito; não conheço esta prática a não ser por ouvir falar e por ver em pintura (...) (1002-1005)

O valor cambiante de certos termos usados na tragédia, apontado por Charles Segal em seu ensaio “Tragédie, oralité et écriture”, aqui é mais evidente, se recordamos que no párodo, no relato das mulheres de Trezena sobre o estado doentio de Fedra, o termo a&gnoV" aparece para designar sua falta de apetite (Davmatro" a*kta~" devma" a&gnoVn i!scein, 138)95. Aqui o termo a&gnov" se insere totalmente no universo da castidade exigida aos cultuadores de Ártemis.96 É sobre essa base que o jovem Hipólito refuta as acusações do pai, somente de maneira retórica, sem mencionar nada dos acontecimentos de antes da chegada de Teseu. Rechaça a hipótese de querer chegar ao poder intercruzando essa recusa com a não beleza de Fedra (1009-1011), tornando público seu caráter aristocrático (1012-1020). Seu último recurso é um juramento a Zeus (1025-1027), e por ironia, o que ele deseja que aconteça a si próprio, no caso de um perjúrio, corresponde à condenação feita por Teseu: à morte (katevrgasai, 888; au*toVn ei*" @Aidou dovmou"/ qanovnta, 894-95, cf. com o voto de 94

“Early Agones...”, p. 48. Michael Lloyd vê também nessa recusa (que, na verdade, não deixa de ser retórica), um comportamento aristocrático de Hipólito: “Another point is that this particular proem formula is used nowhere else in Euripides. It seems to be especially appropriate to Hippolytus, who is presented in the play as being aristocratic, withdrawn from politics, and preferring the company of the o*livgoi.” , p. 48 e notas. 95 La Musique du Sphinx, Paris, 1987, pp. 263-298. 96 Cf. a ocorrência do termo na peça: a&gnou~ Pitqevw", 11; a&gnoV" w!n..., 102; devma" a&gnoVn, 138; a&gnaV"...cei~ra", 316; cei~re" a&gnaiV, 317; a&gneuvein dokw~, 655; a&gnoVn devma", 1003. Cf. Walter Burkert: “A deusa no círculo de suas ninfas é hagné num sentido muito especial como virgem incólume e inviolável. (...) Ártemis é a deusa do exterior, de fora das cidades e das aldeias, dos „trabalhos humanos‟, dos campos cultivados. Por trás disto, também se esconde um aspecto ritual, o velho tabu da caça: o caçador também tem de ser moderado, puro e casto. Assim, ele merece a graça de Ártemis.”, Religião grega na época clássica e arcaica, p. 297. Vale notar que essa dedicação exclusiva de Hipólito à deusa da caça torna-se uma desmedida em relação às exigências de Afrodite.

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Hipólito, savrka" qanovnto", 1031) e ao desterro (h# th~sde cwvra" e*kposwvn a*lwvmeno"/ xevnhn e*p’ ai^an luproVn a*ntlhvsei bivon, 897-98, cf. com a!poli" a!oiko", fugaV" a*lhteuvwn bivon, 1029). Os argumentos de Hipólito não surtem efeito, apenas evidenciam como “o relacionamento racional está fadado à falha numa situação irracional. Essa ambigüidade é calculada e central para o sentido da peça.”97 Ao ser mais uma vez condenado ao desterro exclama: Hipólito: Ó deuses, por que não desato minha boca, eu que por vós, a quem venero, pereço. Não! De forma alguma persuadiria os que devo, e em vão violaria os juramentos que jurei. (1060-63)

Aqui o contraste entre as metáforas - a da tabuinha junto ao corpo de Fedra, silenciado pela morte, que se desdobra, se abre e grita e a da boca amarrada de Hipólito -, lembra-nos também de suas palavras para a ama: “a língua jurou, mas o coração não” (h& glw~ss’ o*mwvmoc’, h& deV frhVn a*nwvmoto", 612), dirigidas à ama quando esta lhe pede não desonrar um juramento feito fora de cena (o@rkou" mhdamw~" a*timavsh/", 611); Hipólito, porém, nunca ultrapassa a barreira imposta por seu compromisso de não revelar mais (e&moiV gaVr ou* qevmi" pevra levgein, 1033), o que de fato o leva à ruína.98 Uma rápida reação de Hipólito a uma ordem de Teseu dá-nos conta tanto do caráter orgulhoso do filho, como da inflexibilidade do pai, antes da conclusão definitiva do episódio: Teseu: Não o retirareis, criados? Não ouviste que há muito eu o declarei um estranho. Hipólito: Há de chorar quem dentre eles tocar em mim. Tu próprio, se é teu desejo, expulsa-me da terra. Teseu: Farei isso, se não obedeceres às minhas ordens; pois não tenho nenhuma piedade por teu exílio. (1084-1089)

97

“Early Agones...”, p. 51. Cf. “Speech and Silence”, The noose of words, pp. 17-18, para uma interpretação desses juramentos dentro da peça. 98

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O final do terceiro episódio coincide com o início do terceiro estásimo, que é um canto de despedida de Hipólito. O corpo de Fedra seria retirado de cena, junto com a saída de Teseu?99 Não há indicação alguma nesse sentido; e pelo menos até o verso 972, com certeza, seu corpo ainda está em cena. Não deixa de ser interessante pensar nessa possibilidade: enquanto Hipólito é banido de Trezena, Fedra mais uma vez volta para dentro do palácio e até o fim da peça deverá permanecer ali. A cena que marca a passagem para o canto coral é a despedida feita por Hipólito, quando, então, convoca seus companheiros para o acompanharem até os limites de Trezena: Hipólito: Vamos, ó jovens desta terra, companheiros meus, despedi-vos de mim, e levai-me do país, porque jamais vereis um outro homem mais sensato, ainda que meu pai não pense assim. (1098-1101)

Terceiro estásimo: vv. 1102-1152 No terceiro estásimo, realiza-se o ritual de desterro de Hipólito. W. S. Barrett não aceita a idéia de que um semi-coro acompanhe Hipólito nesta sua saída de cena, embora reconheça haver um fenômeno bastante extraordinário nessa ode, já que por três vezes o coro usa, referindo-se a si, particípios masculinos (keuvqwn, 1105 e leuvsswn, 1107, na primeira estrofe e leuvsswn, 1121, na segunda estrofe) e na antístrofe dois particípios femininos (eu*xamevna/, 1107, e metaballomevna, 1118). O estudioso atribui esse fato a problemas de transmissão dos manuscritos.100 Além dos problemas dos manuscritos, W. S. Barrett argumenta que não vê nenhum propósito dramático para a presença de um semi-coro dos companheiros de Hipólito.101 A idéia de Barrett, apoiada, sem dúvida, numa leitura atenciosa do texto, não leva em conta as possibilidades teatrais, que me parecem muito mais coerentes 99

W. S. Barrett, que indica a necessidade dramática da presença do corpo de Fedra até pelo menos no verso 1089, não discute sua retirada de cena, (cf. Euripides Hippolytos, p. 318). Para o estudioso, Teseu só se retiraria de cena, após a saída definitiva de Hipólito, durante o terceiro estásimo (cf. p. 364). 100 Em função da leitura que propõe, Barrett imprime a@ leuvssw no v. 1121, Euripides Hippolytos, p.138, comentário, p. 366; assim também o faz James Diggle, Euripidis Fabulae, Tomo I, p. 256, porém, James Diggle aceita o semi-coro acompanhante de Hipólito, já que imprime nas duas referidas estrofes QERAPONTES (11031110; 1120-1130), as duas antístrofes e o restante da ode atribui ao coro propriamente dito. Cf. C. Segal também, “The Tragedy of the Hippolytus”, p. 193-94 e nota 40. 101 “But in Hipp. I see no dramatic purpose in an alternation; and there is no slightest hint of the identity of any singers other than the regular chorus. Who in fact could the males be? Not (as Verall) the singers of the Hymn to Artemis, 61-71: these men, Hipp.‟s servants, are now away with his horses by the shore (cf. 1173 ff.) Not Hipp.‟ s freeborn friends; these leave with him at 1098 ff., and go with him to the shore.” Euripides Hippolytos, p. 368.

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com o modo de Eurípides compor suas peças. Penso apenas na coerência de um espetáculo proposto pelo texto. E a coerência de um espetáculo teatral nem sempre corresponde a uma exatidão lógica, linear, de um texto escrito para leitura. Fedra morre durante um canto coral, no fim do qual Teseu chega, e não se vê nisso, um grande problema na duração do tempo da ação. O intervalo entre sua entrada no palácio, seu enforcamento e o descobrimento de seu corpo pendurado no quarto é o tempo de uma ode de dois pares estróficos. O poeta, através do espetáculo, cria um ambiente emocional que nos envolve e estabelece outras relações com o que se passa em cena. Por que não seria possível que, após os cantos, por exemplo, Hipólito saia de cena e alguns de seus companheiros cuidem dos cavalos, como descreve o mensageiro (1173)? Dentro da economia do espetáculo, parece-me mais coerente que, ao chamar os jovens, Hipólito possa estar acompanhado de alguns de seus companheiros, que já tomaram parte na primeira interferência lírica, no prólogo. Torna-se a se apresentar o problema da passagem de tempo aqui: quanto tempo dura sua saída de Trezena e todo o desastre? Justamente uma interferência coral. Assim, a interferência coral é fundamental para estabelecer um corte no tempo e no andamento da ação. Como recurso teatral, a presença de um coro secundário, unido ao coro principal, é extremamente interessante porque marca justamente a saída de Hipólito de Trezena. A ode inteira apresenta um tom que presentifica ao público a impotência do homem diante da decisão dos deuses: na primeira estrofe, o coro de companheiros de Hipólito lamenta a inconstância do acaso e das obras humanas, evocando os acontecimentos com o jovem. Para o mundo dos homens não há estabilidade possível, uma visão muito mais realista do que a expressa no estásimo anterior. No aqui e agora, pesam os destinos e os atos mortais (e!n te tuvcai" qnatw~n kaiV e*n e!rgmasi, 1106107). O coro de mulheres entoa a antístrofe, rogando aos deuses um destino com felicidade e um coração isento de dores, isto é, das instabilidades, das mudanças inesperadas, o que se obtém, segundo professam, por meio de uma vida maleável, flexível (1111-1117). Nem Fedra, nem Hipólito são exemplos de um coração isento de dores. Ambos polarizam opostos, extremos que não se tocam, o que os priva de uma existência feliz, calma. “Ao desejar não ter uma dovxa a*trekhv" (“opinião acurada”,

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1115), elas parecem de fato estar rejeitando a possibilidade de uma visão clara e acurada da terrível realidade a que estão sendo apresentadas”, postula C. Segal, mas anotando a ambigüidade do termo a*trekhv", cujo campo semântico recobre também, além da exatidão, a rigidez, a inflexibilidade.102 O semi-coro de jovens, mais afinado com as adversidades de Hipólito, contraria esse desejo de equilíbrio do coro das mulheres, lamentando o desterro do “astro mais reluzente da helênica Atenas”.103 São sentimentos contrários os que a ode expressa em seu conjunto (1118-1130). Após a segunda estrofe, Hipólito já deve estar fora de cena, e, com ele, o semi-coro de jovens convocados. O coro de mulheres mantém-se cantando, aliando sua voz ao lamento, antecipando os efeitos da ausência do jovem caçador : a interrupção dos seus treinos no pântano (1131-34), a falta de música na casa de Teseu (1135-36), os recessos de Ártemis sem coroa (1137-39) e impossibilidade da disputa por seu leito nupcial (1140-41). Charles Segal entende que a voz dos dois coros pode unir-se agora a partir do segunda antístrofe, realizando algo que não se pôde concretizar na realidade: “O encontro dos dois mundos talvez possa ser simbolizado e dramatizado pela junção dos dois coros aqui, um das mulheres companheiras de Fedra, o outro dos caçadores seguidores de Hipólito. Ainda juntos, eles podem cantar apenas a perda de um passado mais simples; e, presumivelmente, é esse coro de caçadores que trará o corpo lacerado de Hipólito. Quando os dois mundos se tornam entrelaçados, um destrói o outro.” 104 A fusão dos dois mundos, o de Fedra e o de Hipólito só pode efetivar-se nas desgraças decididas por Afrodite. Normalmente a união trazida por Afrodite é fonte do prazer e alegria para os homens. O coro de mulheres mostra-se mais temeroso, ao desejar os hábitos maleáveis, mas não deixa de expressar sua total empatia com Hipólito, já que não pode, pelo juramento dado a Fedra, revelar a verdade. Em momento algum as mulheres tecem qualquer comentário julgando a atitude de Fedra ou a obstinação de Hipólito. As palavras finais das as mulheres de Trezena nesse estásimo revelam um tom de revolta, com os deuses, usual em Eurípides:

102

“The Tragedy of the Hippolytus”, p. 194 e nota 41. James Diggle imprime aqui, em vez de *Aqavna" como W. S. Barrett, *Afaiva", divindade com um templo em Egina, ligada a Dictina e Ártemis, cf. Euripidis Fabulae, v. 1123, p. 256. 104 “The Tragedy of the Hippolytus”, p. 196. 103

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(antístrofe 2)

Coro: E eu, por tua desgraça, suportarei com lágrimas um destino desafortunado. Ó mãe infeliz, que geraste em vão! Ai! Estou furiosa com os deuses! Ai! Ai! Graças sempre juntas, por que o infeliz, que não causou nenhuma loucura, da terra pátria tirai, longe desta casa? (1142-150)

Assim, o tom predominante em toda a ode é o do lamento da injustiça sofrida pelo jovem, apresentando várias ressonâncias com a peça toda. Sua ausência será marcada pela falta de música e pelo abandono do culto a Ártemis. Assinale-se o desejo de equilíbrio do coro em contraposição com o desequilíbrio de Hipólito e de Fedra, acentuado, por assim dizer, pela intervenção ciumenta de Afrodite; o desejo de pureza incondicional de Hipólito com o desejo do coro de um coração isento de dores (kaiV a*khvraton a!lgesi qumovn, 1114); a referência ao desejo nupcial das jovens pelo leito de Hipólito, que será suplantado por um ritual estabelecido por Ártemis, no êxodo (cf. 1416-1430), como uma homenagem póstuma, tornando-o um herói. Como nota W. S. Barrett, não há uma só palavra a respeito da maldição rogada por Teseu 105, que só vai aparecer realizada no relato posterior, feito exatamente por um de seus opadoí106; portanto, para o desfecho trágico de Hipólito não temos antecipação.

Quarto Episódio: vv. 1153-1267 A entrada do mensageiro, anunciada pelo corifeu, marca a passagem para o próximo e último episódio: Corifeu: E agora, vejo este criado de Hipólito com pressa avançar em direção ao palácio. (1151-1152)

105

Euripides Hippolytos, p. 366. Cf. 1151-52 em que o Corifeu anuncia a chegada de um dos companheiros de Hipólito. W. S. Barrett afirma que o termo “mensageiro” não é adequado para esse jovem. Cf. seu comentário, Euripides Hippolytos, p. 377. 106

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O quarto episódio é totalmente dominado pelo relato do companheiro de Hipólito que cumpre o papel normalmente atribuído ao mensageiro. Ainda que se considere uma personagem secundária nas tragédias, o mensageiro com seu relato tem uma importância dramática considerável. Suas palavras ecoam ainda o projeto de Afrodite. À moda épica, o relato deste companheiro de Hipólito traz para a cena o terrível espetáculo da violência sofrida pelo jovem fora do espaço da ação dramática. Como assina Shirley A. Barlow, num capítulo especialmente escrito para os mensageiros, “The Messanger Speech: Factual Landscapes”, ao contrário dos cantos corais e monodias, o relato do mensageiro deve ser claro, objetivo, lógico e em ordem cronológica. Nele não encontramos revelações intuitivas, visões ou paixões incoerentes. “Pois em Eurípides uma coisa é certa. Devemos acreditar no mensageiro e não olhar além de seu relato, como olhamos além de uma monodia, para uma versão que é diferente ou menos preconcebida. Eurípides nunca permite que um mensageiro minta.”107 Para que sua fala seja efetiva, o mensageiro tem como instrumento a claridade das imagens relatadas, ainda que sejam coisas incríveis, mas que pela vivacidade do relato podem ser visualizadas.108 Todos esses elementos são encontrados no relato do mensageiro. Após um breve diálogo, em que se apresenta, passa a narrar os acontecimentos extra-cena, ou seja, do macro-cosmo da ação. Neste passo, cabe assinalar que Teseu, ainda convencido da culpa do filho, alegra-se em saber que seus votos foram cumpridos (1169), mas depois do relato por, ter respeito aos deuses (ai*douvmeno"/ qeouv") nem se alegra nem sofre ( 1258-60). O conteúdo do relato do mensageiro liga todos os pontos levantados durante a ação, porque daqui para frente não há mais ação propriamente dita. O que acontecer de novo, após o relato, é em função de um esclarecimento do que se passou. A exemplo da ama em Alceste, o mensageiro “teatraliza” as falas de Hipólito: Mensageiro: Depois de um tempo, evitando os gemidos disse: „Por que me agito com isso? Devo obedecer às ordens de meu pai. Preparai os cavalos que trazem o jugo no carro, criados. Pois já não tenho mais cidade.‟ (1181-84)

107 108

The Imagery of Euripides, p. 61. Idem, p. 62.

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A ordem de Hipólito soa paradoxal, porque são esses cavalos que irão fazer cumprir seu destino, explicitado por seu nome. Mas a ironia maior aparece na prece que dirige a Zeus, depois do carro pronto: Mensageiro: „Ó Zeus, que eu não mais exista, se sou um homem mau. Que meu pai saiba o quanto me desonrou, quer eu tenha morrido quer esteja vendo a luz.‟ (1191-93)

Com elementos próprios da teatralização, o mensageiro relata com detalhes visuais e sonoros (cf. a aliteração no v. 1202 - baruvn brovmon meqh~ke, frivkwde kluvein) a marcha violenta enfrentada por Hipólito contra as forças elementais que o voto de Teseu faz brotar do mar: a princípio um eco subterrâneo (h*cwv cqovnio", 1201), depois uma onda que chega a dimensões desproporcionais, atingindo o céu (i&eroVn/ ku~m’ ou*ranw/ sthvrizon, 1206-7), e, dentro desta onda produz-se um touro, um prodígio selvagem (ku~m’ e*xevqhke tau~ron, a!grion tevra", 1214). A ação deste touro atinge diretamente os cavalos do carro de Hipólito. A descrição do mensageiro contempla os mínimos detalhes de como Hipólito conduzia o carro, a reação dos cavalos, e o resultado fatídico (1215-1248). Tanto o touro como o cavalo estão associados a Possêidon e, por conseguinte, à sexualidade masculina.109 A intervenção de Possêidon, evocada nesta fala do mensageiro, ainda se relaciona com os domínios de Afrodite e a extensão de sua decisão. O corpo de Hipólito, moribundo, deve ser trazido, por ordem de Teseu, que vê na desgraça um sinal dos deuses: Teseu: Trazei-o, para que, vendo-o com meus olhos, ele que negou ter sujado minha cama, possa refutá-lo com palavras e com as desgraças das divindades. (1265-67)

Quarto Estásimo: vv. 1268-1283 É esse contexto que emoldura o quarto estásimo, uma pequena ode cantada pelo coro. Para W. S. Barrett, o poeta está conduzindo a simpatia do público em

109

“The Bull, of course, is an obvious sexual symbol and, like the horse, is also associated with Poseidon (both bulls and horses are regularly sacrificed to him).” “The Tragedy of the Hippolytus”, p. 200.

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direção a Hipólito, já que toda a expectativa da peça agora recai sobre a entrada em cena do jovem moribundo, depois do relato aterrador do mensageiro. “O mensageiro foi-se, e Teseu e Coro são deixados a sós; estamos esperando Hipólito aparecer e, enquanto esperamos, o Coro canta uma ode. Seu tema vem como um choque. Nossos pensamentos estão voltados à piedade por Hipólito, a uma tristeza indignada pela injustiça de seu fado; estamos dispostos a um lamento de protesto contra tal injustiça como a que tivemos na ode anterior (1102-1150). Ao invés disso, temos um hino a Afrodite, à própria deusa que provocou seu fado: um hino que celebra, com palavras não de medo nem de deprecação, mas com aceitação calma e homenagem sem questionamento, seu poder universal e irresistível.”110 Uma das vantagens da poesia dramática é a surpresa. A condução de nossa empatia na direção de Hipólito, agora que Fedra já morreu, é proposital. O público sabia que Hipólito deveria morrer em algum momento da peça, desde o prólogo, não há novidade nisso. Mas Eurípides é um hábil dramaturgo, e intencionalmente explora as possibilidades dramáticas. O cadáver de Hipólito poderia ser trazido inerte à cena, como o de Fedra. Não é isso que o poeta quis que seu público visse. A pequena ode a Cípris aqui tem sim a função de provocar um efeito de surpresa. O poeta não quer que apenas nos comovamos pela piedade banal, esperada, à qual ele mesmo nos conduziu. No prólogo, Cípris abre o espetáculo apresentando o programa da peça. Sua saída é provocada pelo canto de Hipólito e seus companheiros, um canto religioso, solene, mas que, da perspectiva da deusa em cena, também é uma prova de sua afronta. Agora que todo seu plano está consumado, o coro entoa um hino em sua homenagem, reforçando os limites de seu poder, exatamente antes da entrada de Ártemis: Coro: Tu conduzes o coração inflexível dos deuses e dos mortais, ó Cípris, e contigo o envolvente possuidor de asas multicoloridas de penas agilíssimas, sobrevoa a terra e o mar salgado de sons harmoniosos. Eros encanta, para aqueles cujo coração enlouquecido 110

Euripides Hippolytos, p. 391.

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o volátil brilho do ouro atingiu, o ser dos cães montanheses e do mar e os que a terra alimenta e os que o sol ardente vê e os homens. Sobre todos esses, Cípris, exerces, sozinha, tua dignidade real. (1268-82)

De certa forma ele conclui a ação dramática. Tudo o que tinha que acontecer, aconteceu. Não haverá mais novidades, novos acontecimentos, novas surpresas. As palavras do coro neste canto confirmam o poder absoluto de Afrodite, o tema central da peça. As personagens que ocuparam a cena, agora tornam-se anônimas e igualadas a deuses e mortais (taVn qew~n a!kampton frevna kaiV brotw~n, 1267), num reverso do status de Afrodite: não “sem nome‟ (kou*k a*nwvnumo", 1). C. Segal aponta a dualidade da natureza de Afrodite: “esta ambigüidade é aprofundada no realce sobre os pássaros e vôo, pois, anteriormente, também, a imagem de ave teve um significado ambíguo, expressando ambos, a esperança do homem escapar para um mundo de beleza não perturbada (731 e seq.) e a realidade da morte (veja 828 e seq. e cf. leukovptero", 752, do barco de Fedra, com poikilovptero" aqui, 1270). O epíteto crusofahv" (1275) evoca também as lágrimas de âmbar derramadas por Faeton no belo Oeste (h*lektrofaei~", 741).”111 O que vimos, em cena até aqui, foi a atuação do poder absoluto de Afrodite. A ambigüidade deste canto torna-se mais evidente pelo espetáculo que se segue, quando, ex-machina, surge em cena Ártemis, numa inversão especular da cena do prólogo, em que, ao surgir o canto a Ártemis, Afrodite retira-se.

Êxodo: vv. 1283-1466 Aqui, no momento em que o poder soberano de Afrodite é exaltado em canto, Ártemis surge primeiramente off stage, destacando-se primeiramente sua voz112; e mesmo que surja ex machina, tornando-se visível ao público sobre o palácio, sua

111

“The Tragedy of the Euripides.”, p. 206. Para W. s. Barrett, Ártemis está sobre o palácio, ainda que Hipólito não possa vê-la, ao longo da cena. cf. Euripides Hippolytos, pp. 395-96. 112

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aparição é sempre reforçada primeiro em termos acústicos 113. Em nenhum momento o coro ou qualquer outra personagem alude a uma visão da deusa. Dirigindo-se diretamente a Teseu, que se manteve em cena durante o canto a Afrodite: Ártemis: A ti, nobre filho de Egeu, ordeno que me ouças: Eu, a virgem de Letó, Ártemis, te falo. Teseu, por que te comprazes com isto, depois de matar teu filho de modo ímpio, no invisível das palavras falsas de tua esposa acreditando? Uma visível desgraça obtiveste. Como não ocultas sob as profundezas da terra, envergonhado, teu corpo, ou alado mudando o modo de vida para fora deste sofrimento pões teu pé? Pois entre os bons homens não tens uma parte desejável de vida. (1281-85)

A fala de Ártemis tem um tom corretivo (tiV tavla" toi~sde sunhvdh/, 1286), que vem fazer aparecer o que está oculto (a*fanh~, faneravn, 1289 e kruvptei, 1290), ou seja, reverter o desequilíbrio gerado por Afrodite. Hipólito, esclarece Ártemis, agiu de modo justo (divkaion, 1307) e é piedoso (eu*sebhv", 1309). Segundo Ártemis, Fedra tentava vencer Cípris com a razão (gnwvmh/, 1304) e perdeu-se por causa da ama (1305). Mas o conjunto dos acontecimentos é resumido por Ártemis numa frase que nos faz lembrar Afrodite no prólogo (cf. 7-8): Ártemis: Pois Cípris quis que acontecesse isso, para satisfazer sua ira. Entre deuses o costume é esse. (1327-28)

Hipólito é trazido à cena por seus companheiros. Entra caminhando (o@de dhV steivcei, 1342), mas logo pede que parem, pois não suporta o corpo (scev", a*peirhkoV" sw~m’ a*napauvsw, 1353). Hipólito dá uma série de instruções, para que os servidores encontrem uma posição que não o incomode (1354-1369), mas a partir do 113

e*pakou~sai, v. 1283; a!koue, v. 1296; a*kouvsa", v. 1314; Hipólito não vê a deusa, mas sente seu hálito: w^ qei~on o*dmh~" pneu~ma: kaiV gaVr e*n kakoi~" / w!n h*/sqovmhn sou ka*nekoufisqhn devma":/ e!st’ e*n tovpoisi toisivd’

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verso 1370, as dores ficam mais intensas, fato também indicado pela métrica e pelo registro lingüístico.114 Ártemis dirige-se a Hipólito (1289-90), mas devido a seu estado, ou por Ártemis permanecer invisível, Hipólito não pode ver a sua deusa. Sente sua presença, de acordo com o que antes declarara (86-87): Hipólito: Ah! Ó perfume de hálito divino! Pois mesmo nos males em que estou, sinto a ti e meu corpo é aliviado. Está neste lugar Ártemis, a deusa. (1391-93)

O jogo entre o visível e invisível, encoberto e descoberto está prestes a se a acabar. Hipólito não vê a deusa, mesmo que ela esteja numa machina acima do palácio de Teseu, mas a deusa o vê:115 Hipólito: Estás vendo, senhora, como estou, o miserável? Ártemis: Vejo, mas não me é permitido derramar lágrima dos olhos. (1395-96)

Aos deuses não é permitido chorar por um mortal. Mas Ártemis, após um breve diálogo com Hipólito, do qual Teseu participa também (1397-1415), proclama sua vingança (1420-22) e institui o ritual do corte de cabelo em oferenda a Hipólito, que deve ser feito antes do casamento pelas virgens de Trezena (1423-1430). Antes de se retirar, Ártemis reconcilia pai com filho e filho com pai (1431-1436). Tampouco os deuses podem presenciar a morte, que ela sabe estar próxima (1437-39). Ártemis sai de cena, restando apenas pai e filho, no momento mais difícil para o homem, que é presenciar a morte. Em seu estudo sobre a pessoa na religião grega, Jean-Pierre Vernant, entre tantas outras reflexões de interesse, assim se pronuncia sobre esse momento particular da peça: “Logo que a deusa deixa Hipólito, ela o abandona diante da morte, não tem o direito de sujar o seu olhar com o espetáculo de um moribundo ou de um cadáver (v. 1437). Assim, no momento em que Hipólito teria mais do que nunca necessidade ao seu lado de uma presença divina, Ártemis afasta-se, retira-se neste universo divino que ignora tudo das realidades muito humanas do !Artemi" qeav. 114 Cf. W. S. Barrett para a análise métrica e comentários, Euripides Hippolytos, p. 405-409 115 “She is invisible to him, now as in the past: 86 kluvwn meVn au*dh", o!mma d’ ou*c o&rw~n toV sovn. Here on the stage she is simply outside his field of vision (see on 1283); but that symbolizes readily enough the true invisibility that we must think of her as maintaining before him.” Euripides Hippolytos, p. 409.

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sofrimento, da doença e da morte. Se existe uma intimidade, uma comunhão com o deus, elas não poderiam situar-se no plano do que constitui para o indivíduo o seu destino pessoal, o seu status de homem. Na hora decisiva, não é Ártemis é Teseu - um Teseu arrependido, que é perdoado -, quem sustentará a cabeça de Hipólito e que recolherá o seu último suspiro.”116 A expectativa de Vernant em relação ao momento que ele julga ser mais necessária a presença de uma divindade, isto é, o momento da morte, tenta retratar mais uma expectativa comum na religiosidade mais próxima da piedade cristã, o que inexiste para os gregos. Na peça, acentuou-se mais o estranhamento pela proximidade e a intimidade de Hipólito com Ártemis do que o fato de ela o abandonar exatamente na hora da morte. Hipólito, antes de morrer, perdoa o pai por sua morte, um gesto não apenas de piedade. Ao libertá-lo da responsabilidade por sua morte, libera-o de cumprir certos rituais de purificação que tinham o objetivo de aplacar o espírito do morto (14481451).117 Teseu não deve apenas recolher o último suspiro, mas também cobrir o rosto de Hipólito: Hipólito: Minhas forças se esgotaram, pois morro, pai. Cobre meu rosto o mais rápido com véus. (1455-56)

A peça termina com o pai cobrindo o rosto do filho morto, num gesto teatral para assinalar a morte em cena, enquanto, reconhece o valor do filho (1459-60). O espetáculo, que se abriu com a voz de uma divindade soberana, termina com os lamentos e lágrimas de homens e com a lembrança dos males provocados por Cípris (w&" pollaV, Kuvpri, tw~n kakw~n memnhvsomai, 1461). Teseu deve retirar-se de cena, com os servos conduzindo o corpo de Hipólito para dentro do palácio, durante as últimas palavras do coro (1462-66), que também sai em seguida por um dos êxodos silenciosamente.118 O tom emocional deste final, semelhante ao de outras peças de Eurípides, é o da lamentação.

116

“A pessoa na religião grega”, Mito e Pensamento entre os gregos, São Paulo, 1973, pp. 282-283. “So in Attic Law the victim before his death could absolve the killer from the consequences of the killing (...)”, Euripides Hippolytos, p. 415. 118 Cf. W. S. Barrett para as dificuldades desse texto final do coro, Euripides Hippolytos, p. 417-20. 117

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O canto e o espetáculo, no conjunto da peça, revelam a constatação do domínio absoluto de Afrodite sobre homens e deuses. Aparecendo apenas no prólogo, o efeito de sua força avança a cada novo movimento da peça de maneira calculada e efetiva revelando as tensões e as ambigüidades dos valores, das palavras e das ações humanas.119 Ártemis, como força opositora da deusa da sexualidade, aparece primeiro no comportamento estranho e extremo de Hipólito. No final da peça, quando o projeto de Afrodite está consumado, Ártemis surge para restabelecer a ordem num mundo de desencontros dos homens, resultados sempre entre que se diz e o que se faz, entre o que se revela e o que se oculta, todos eles amplamente apresentados em cena, pontuados emocionalmente pelos cantos tanto do coro como dos atores. Os corpos de Fedra e de Hipólito agora estão cobertos, velados, fechados, contudo, revelam mais claramente a trágica fragilidade humana.

119

C. Segal observa: “All the characters‟ attempts at flight or purity, with their implicit aspiration toward transcending bodily nature, are subverted by the essential elements of the mortal condition in its physicality: constrictions by the seasonal rhythms of the earth in the need for „Demeters‟ grain‟, sexuality, and death.”, Euripides and the Poetics of Sorrow, p. 144.

178 Canto e Espetáculo em Eurípides

Capítulo IV Ifigênia em Áulis

O

terceiro texto de nosso estudo é Ifigênia em Áulis, apresentado pela primeira vez depois da morte de Eurípides, junto com As Bacantes e Alcmeon em Corinto, em 406 ou 405 a. C. Do Alcmeon em Corinto nada

nos chegou além do título. As Bacantes, salvo alguns problemas em poucas passagens, chegou-nos inteira. Do ponto de vista dos manuscritos, Ifigênia em Áulis é, sem dúvida, a mais problemática. Há problemas na transmissão do prólogo (1-163)1 e do êxodo (1336-1629).2 O restante tem oferecido menos problemas para os estudiosos. Como não podemos tomar partido sobre a autenticidade ou não dos textos, endossamos o ponto de vista de D. J. Conacher. Baseado em outros autores, o estudioso postula que a questão do prólogo, primeiro em um diálogo anapéstico de Agamêmnon com um velho servidor, 1-48, seguido do tradicional monólogo, comum à maioria das peças de Eurípides, 49-114, pode ser pensada da seguinte maneira: “(...) que ambos sejam de Eurípides, mas, uma vez que Eurípides deixou a peça em um estado não acabado, nunca reduziu o prólogo a uma unidade dramática.”3 Já G. M. A. Grube não vê um problema neste prólogo excepcional em Eurípides, afirmando: “O texto, como o temos, começa por um diálogo anapéstico entre Agamêmnon e um velho 1

Cf. aqui algumas discussões interessantes: Gilbert Murray, Euripides and His Age: “But let us take first the Iphigenía in Aulis. It is a play full of problems. We can make out that it was seriously incomplete at the poet‟s death and was fineshed by another hand, presumably that of its producer. Unfortunately we do no possess even that version in a complete form. For the archetype of our MSS. was at some time mutilated, and the present end of the play is a patent forgery. But it if we allow for these defects, the Iphigenía in Aulis is a unique and most interesting example of a particular moment in the history of Greek drama. It shows a turning-point between the old fifthcentury tragedy and the so-called New Comedy which, in the hands of Menander, Philemon and others, dominated the stage of the fourth and third centuries.” p. 112. Murray afirma ainda sobre o prólogo “duplo”: “Two openings of the play are preserved. One is the old stiff Euripidean prologue; the other a fine and vigorous scene of lyric dialogue, which must have suited the taste of the time far better, just as it suits our own.” p. 113. G. M. Grube, The Drama of Euripides: “That of Iphigenia is more doubtful. Most of the exodus, including the greater part of the messenger‟s speech, is almost certainly spurious.” p. 421. A posição mais interessante, parece-me ser a de Conacher: “The unusual anapestic prologue (omitted in Murray‟s text, see his note to 49 ff.) shared by Agamemnon and the old servant is interrupted at 49-114 by a monologue from Agamemnon which states the whole situation in conventional form and which is somewhat clumsily worked into the context of the anapestic dialogue. Most editors agree that we have here two originally distinct prologues. I agree with the view of Parmentier (“L‟ Iphigénie d‟ Euripide,”, 267 ff.) and Pohlenz (I, 460-61) that both are Euripidean but that since Euripides left the play in an unfinished state he never reduced the prologue to a dramatic unity.” p. 253. 2 O problemas do texto de apontados por G. M. Grube, The Drama of Euripides: “Alcmeon is lost; there is a serious lacuna in the last scene of The Bacchants but the rest of the text is sound. That of Iphigenia is more doubtful. Most of the exodus, including the greater part of the messenger‟s speech, is almost certainly spurious.” p. 421. 3 Euripidean Drama. Myth, Theme and Structure, Toronto, 1970 (reimp. de 1967), p. 249 e nota 11, baseando-se em Paramentei, “L‟ Iphigénie d‟ Euripide”, 267 sq. e Pohlenz (I, 460-61), na p. 253.

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escravo, depois Agamêmnon fala um monólogo, depois do qual o diálogo anapéstico é retomado. Isso é raro.”4 Porém, Grube anota que já havia algum indício desse procedimento em Andrômeda, que talvez comece com anapestos”.5 Quanto aos versos finais da peça, Grube é mais contundente: “A maior parte do êxodo, incluída a maior parte da fala do mensageiro, é quase certamente espúria.”6 Ésquilo e Sófocles já haviam apresentado peças com a mesma temática, ou seja, o sacrifício de Ifigênia. Sófocles, segundo D. J. Conacher, tendo como base os Cantos Cíprios: “Da peça de Ésquilo não sabemos praticamente nada; a peça de Sófocles parece ter lidado com quase o mesmo material básico que a de Eurípides, embora a opinião geral seja de que ela se manteve mais próxima do relato Cíprio.”7 Para Conacher, novo nesta peça é o seu caráter mais episódico, não uma tragicomédia, nem um melodrama: “Não estaremos muito preocupados com os efeitos patéticos e o final feliz da fala do mensageiro (que descreve o sacrifício e a substituição de uma corça feita por Ártemis, de última hora). A peça, (presumo, apesar de não ser uma tragicomédia ou melodrama) claramente não é uma tragédia: não há nenhuma relação entre o caráter da heroína e o destino externamente imposto sobre ela, e nenhum significado real, além da “edificação” do martírio, no próprio sacrifício. Uma vez que, no fim, a peça torna-se simplesmente um espetáculo do heroísmo juvenil - uma cena de Meneceu ou uma cena de Macária elevada ao máximo, como era - não há razão nenhuma por que nós e a heroína deveríamos ser recompensados por nossas agonias pela versão “feliz” do sacrifício lendário.”8 De alguma forma, essa afirmação, de que um simples espetáculo de heroísmo não constitui uma tragédia, é exatamente o oposto do que pensamos a respeito de como Eurípides compõe suas obras. Na medida do possível e da disponibilidade dos meios, Eurípides não deixa de usar os recursos que o gênero dramático lhe permite - o espetáculo, elemento essencial do seu teatro, não poderia deixar de se fazer notar também em suas últimas obras. 4

The Drama of Euripides, p. 422. Idem, nota 2, p. 422. Albin Lesky tem a mesma opinião: “The anapestic prologue of the Andromeda shows that Euripides experimented in his later plays. Of course, the two anapestic passages do not form a complete prologue, we must assume with Fraenkel that a middle section, with the information about the intrigue, has somehow been lost. The iambic prologue is perhaps best explained by the conjecture that two different versions were found among the poet‟ s manuscripts after his death. Conacher makes a similar point.”, Greek Tragic Poetry, 355. 6 Idem, p. 421. 7 Euripidean Drama. Myth, Theme and Structure, Toronto, 1970 p. 251 e cf. nota 5 para a discussão dos fragmentos de Sófocles. 8 , Idem, p. 250. 5

180 Canto e Espetáculo em Eurípides

A figura de Ifigênia, a história de seu sacrifício e sua salvação por Ártemis, já havia sido tratada por Eurípides em uma peça anterior, Ifigênia em Táuris, cuja datação oferece controvérsias, mas segundo Albin Lesky estaria entre 414 ou 413 a. C.9 Nesta versão, salva por Ártemis na hora do sacrifício, Ifigênia é levada para servir como sua sacerdotisa em Táuris. Esse resgate de Ifigênia aparece nos versos finais de Ifigênia em Áulis, do verso 1577 em diante, porém estes não são atribuídos a Eurípides, mas sim a uma elaboração posterior. A peça poderia terminar no verso 1531. Dos coros de Eurípides, o de Ifigênia em Áulis é o mais distanciado da heroína da peça. Composto por mulheres casadas de Cálcis, entram no párodo (164-302) para ver os heróis e semideuses(172-73): o tom é homérico e descreve com minúcias o acampamento dos helenos. O primeiro estásimo (544-606), colocado entre a discussão de Agamêmnon e Menelau sobre a necessidade do sacrifício de Ifigênia, no primeiro episódio (303-542), e a chegada de Clitmnestra e Ifigênia para o falso casamento, no segundo episódio (607-750), reflete sobre o amor, a virtude e a passagem de eros para eris pela insensatez de Helena e Páris. O segundo estásimo (751-800) torna a evocar Helena e a destruição de Tróia. É no terceiro episódio (801-1035), pelo encontro de Aquiles com Clitemnestra, que o falso casamento é desmascarado. O terceiro estásimo (1036-1097) relaciona a famosa celebração do casamento de Peleu e Tétis, com o sacrifício da jovem. No quarto episódio (1098-1275), temos em cena Agamêmnon, Clitemnestra e Ifigênia, que até aqui não deseja morrer. No lugar de um estásimo, o quarto, temos um canto solo de Ifigênia (1279-1335). No êxodo (1336-1629), Ifigênia aceita morrer em sacrifício, e, saindo de cena, entoa com o coro um kommós (14751531). Na cena final, surge um mensageiro relatando o prodígio da substituição de Ifigênia por uma corça. (1532-1614), confirmada por Agamêmnon (1621-1626) Na Ifigênia em Áulis, Eurípides combina sacrifício e casamento com violência e motivações pessoais. Como notou Helene P. Fowley, a versão do falso motivo de casamento é expandida, até assumir um espaço quase igual ao ocupado pelo motivo do sacrifício: “Ambos, o casamento e a guerra, requerem um sacrifício preliminar

9

“In the theme and execution two Eurpidean dramas are so similar that it seems probable they were written about the same time, a conclusion also supported by other evidence, such as metrics: the Iphigeneia in Tauris and the Helena. The latter play can be dated securely to 412. Setting the Iph. T. before of after this date has proved to be a

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(proteleia) a Ártemis. Nas primeiras cenas da peça, enquanto Ifigênia e Clitemnestra estão enganadas sobre o real propósito da vinda de Ifigênia a Áulis, Eurípides joga com os detalhes comuns desses dois ritos, que têm, pelo menos superficialmente, um objetivo mutuamente exclusivo: o casamento é o prelúdio feliz para uma nova vida e procriação, ao passo que o sacrifício termina em morte. Mas no fim da peça contra toda a expectativa, Ifigênia une os dois rituais. Torna-se um sacrifício a Ártemis e uma noiva, não de Hades, mas de toda a Grécia.”10

Prólogo:vv. 1-163 Ainda que consideremos este prólogo espúrio ou não acabado, parece-nos interessante em termos de espetáculo. Vejamos o que o poeta explora em termos de espetáculo em função da ação dramática. A peça inicia-se com Agamêmnon e um velho: Agamêmnon: Ó velho, Vem para fora diante desta tenda. Velho:

Venho. Em que novidade meditas, Agamêmnon? (1-3)

Assim sabemos que estamos diante de Agamêmnon, o comandante de todos os gregos na Ilíada, de Homero e de um velho. A referência à falta de sono do velho (gh~ra" tou*mon a!u>pnon, 4) e aos astros do céu (6-8) situa essas duas personagens numa madrugada que se caracteriza pela absoluta calma:11 Ag.: Não há som algum, nem de pássaros, nem do mar. O silêncio dos ventos toma inteiramente este Euripo. (9-11)

Esta é a primeira menção ao local onde a ação dramática se desenvolve. A menção ao Euripo, o estreito que separa a Beócia da Eubéia, tem como cidades mais próximas Áulis e Cálcis. Aos poucos, faz-se a construção espacial da peça, com os much discussed problem, but today Iphigeneia is generally accepted as the earlier of the two, probably rightly. Thus 414 or 413 seem the likeliest years for production.” Greek Tragic Poetry, p. 300. 10 Ritual Irony, “The Ifigenia in Aulis”, Ithaka, p. 69. 11 Cf. a longa discussão de F. Jouan sobre a distribuição destes versos e a questão dos astros citados, Iphigénie à Aulis, nota 3 da p. 59, p. 127.

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problemas advindos do local. Os dois estão diante das tendas12 dos gregos detidos justamente pela falta de vento: Vel.: Por que te apressas para fora da tenda, Rei Agamêmnon? Ainda há calma aqui em Áulis, e imóveis estão os vigias das muralhas. Caminhemos para dentro. (12-16)

O convite do velho, para que entrem na tenda, parece ser ignorado por Agamêmnon. Agamêmnon passa a louvar a vida do homem comum, sem as glórias, sem as honrarias do poder. O velho, por sua vez, censura Agamêmnon, que por ter nascimento nobre, deveria ser mais afeito às alegrias e às vicissitudes (Dei~ deV se caivrein kaiV lupei~sqai, 31). Na seqüência da fala do velho, percebemos que Agamêmnon tem na mão uma carta, a qual apaga e rescreve várias vezes, num processo que começou antes da peça (34-43). Com essa descrição minuciosa do velho sobre o comportamento de Agamêmnon em relação a esta carta, passamos a entrar também em um outro espaço que é o espaço interno de Agamêmnon. Através das reações descritas: escrever, confundir (nas traduções aparecem mais freqüentemente como apagar as letras), selar, desamarrar e lançar a tabuinha ao chão, o estado emocional de Agamêmnon começa a ser explorado dramaticamente. O termo usado por Agamêmnon (sfalerovn, 21) inconstante, para definir a beleza da vida nobre começa a fazer parte do espetáculo - por enquanto relatado na descrição. Ainda não sabemos o conteúdo da carta. O velho pede a Agamêmnon que lhe fale o que há de novo, o que de fato o está fazendo sofrer, a ele que se caracteriza como um homem bom e fiel (ProV" d’ a!ndr’ a*gaqoVn pistoVn te fravsei", 45), a ele que foi um dote recebido pela filha de Tíndaro, esposa de Agamêmnon (46-47). A resposta de Agamêmnon a essa solicitação do velho é a parte mais problemática do prólogo. O primeiro ponto é que há uma mudança no ritmo dos versos. Até o verso 47, temos os anapestos, versos normalmente usados nos prólogos, muitas vezes em tempo de “caminhada”, provavelmente por 12

Em geral, as peças são representadas diante de um palácio real. Aqui, estamos no acampamento dos guerreiros gregos, a palavra dovmwn (1) aparece para caracterizar a “residência”, a “moradia”, as “tendas”, no acampamento. Em

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acompanhar no ritmo da recitação a entrada em cena dos atores. Em todo o monólogo de Agamêmnon, os versos estão em trímetros jâmbicos, usados normalmente nos diálogos. E essa quebra brusca no ritmo, faz julgar que os versos do 49 ao verso 114 sejam espúrios ou, ainda que fossem de Eurípides, careceriam de uma revisão. 13 Se pensarmos na composição do espetáculo, porém, essa quebra brusca do diálogo anapéstico, ao qual o ouvido do público começa a se acostumar, parece-me interessante. No Hipólito, a quebra do monólogo de Afrodite faz-se com uma interferência musical. O conteúdo deste monólogo de Agamêmnon é importante para toda a ação dramática, pois não só traz um passado mais remoto à lembrança, como também o relaciona com o presente encenando diante do público. Das personagens relacionadas com Helena, algumas vão aparecer em cena. E toda a situação vivida em Áulis durante a peça inteira estará ligada ao nascimento de Helena, a seu casamento, a seu rapto e, conseqüentemente, à guerra travada contra os troianos para seu resgate. O longo discurso de Agamêmnon começa pelo nascimento das três irmãs (Febe, Clitemnestra e Helena, cf. 49-51),14 mas se detém no casamento da última. A disputa envolvia os jovens mais abastados da Hélade que, como pretendentes, ameaçavam-se entre si (51-54). A solução encontrada por Tíndaro é estabelecer entre os pretendentes um juramento comprometendo-os a socorrer aquele que fosse escolhido, no caso de Helena um dia vir a ser raptada. A cidade do raptor, fosse grega ou bárbara, deveria ser destruída totalmente (55-65). Solucionada a questão dos pretendentes pela inteligência sagaz de Tíndaro (puknh~/ freniv, 67)15, a escolha de Helena recai sobre Menelau. Uma má escolha na opinião de Agamêmnon (66-71). A vinda de Páris ao palácio de Menelau, que estava ausente, é relatada de forma a salientar a beleza e o luxo “bárbaro” daquele que julgou a disputa entre as deusas (7177). Menelau evoca, então, o antigo juramento, convocando todos os pretendentes

alguns versos adiante teremos a palavra skhnh~" (12), tornando o cenário mais preciso. 13 Cf. também a posição de F. Jouan, Iphigénie à Aulis, nota 5 da p. 61, p. 128, a esse respeito. Nossa análise restringe-se ao texto. 14 Aqui Eurípides está trabalhando com uma tradição mitológica estranha, ao associar Febe às duas irmãs tradicionais Clitemnestra e Helena, de um lado, e Cástor e Pólux , os Dióscuros, de outro. Segundo F. Jouan, essa genealogia só foi retomada por Ovídio, Her. III, 77. Cf. Iphigénie à Aulis, nota 6 da p. 61, p. 128, e Euripide et les légendes des Chants Cypriens, p. 154-55. 15 O termo usado por Eurípides para referir-se à inteligência de Tíndaro tem um campo semântico bastante interessante que as línguas modernas não recortam. O primeiro sentido para puknov" é espesso, grosso, compacto. Seus usos referem-se sempre a, por exemplo, uma grande quantidade de folhagens, de penas, daí seu uso ao referirse a frhvn, novo", mhvdea, boulhv, qumov", preencher aquilo que entendemos por sábio, sagaz, perspicaz.

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envolvidos na promessa feita a Tíndaro. Dentre eles, Agamêmnon, por ser o irmão de Menelau, é escolhido como líder. Áulis, por assim dizer, resume a condição em que se encontram (80-83). Ainda que não se considere como sendo de Eurípides, esta parte do prólogo está em sintonia com a primeira parte do diálogo (cf. 16-19). O silêncio e a calma da madrugada (14-15) desdobram-se no motivo da imobilidade do exército: a impossibilidade da navegação pelas condições atmosféricas (h@mesq’ a*ploiva/ crwvmenoi kat’ Au*livda, 88). A parada em Áulis coloca em movimentoo falso casamento e o sacrifício de Ifigênia. O sacrifício é uma exigência de Ártemis, segundo Calcas, o sacerdote de Apolo que acompanha a expedição helênica (89-93). O oráculo de Calcas estabelece, então, o sacrifício de Ifigênia como condição sine qua non para que os ventos venham a favorecer o prosseguimento da viagem a Tróia e a vitória dos helenos. Agamêmnon também informa ao velho, de maneira sucinta, o conteúdo de sua primeira carta, conhecido apenas por Cálcas, Odisseu e Menelau: o sacrifício de Ifigênia sob pretexto de um falso casamento com Aquiles. Mas Agamêmnon agora decide o contrário, ao escrever essa segunda carta, desfazendo as ordens dadas na primeira (107-114). Ao enunciar o conteúdo dessa segunda carta ao velho, Agamêmnon não só retoma os versos anapésticos, como o faz em dialeto dórico. Isso nos permite supor que, agora, Agamêmnon recite ou mesmo entoe esse conteúdo tão importante. A mudança no registro lingüístico, como é de praxe na tragédia ática, indica também a elevação da intensidade emocional, como temos assinalado. Essa revelação, esse desdobrar daquilo que está escondido na carta, tem a função de evidenciar o que se passa no íntimo de Agamêmnon. No Hipólito, embora a carta de Fedra grite, em momento algum temos ciência das palavras escritas. É a violenta reação pública de Teseu que nos permite deduzi-las. Aqui a revelação do que Agamêmnon escreveu torna-se nula, uma vez que se manterá inacessível a seus devidos destinatários. O efeito dramático dessa informação para o público, contudo, é evidente. Como espectadores, tornamo-nos cúmplices silenciosos de Agamêmnon. A entoação de Agamêmnon é interrompida várias vezes pelo velho, que usa os mesmos versos anapésticos, porém em dialeto ático, para chamá-lo sempre à razão e aos perigos que essa decisão pode acarretar:

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Ag.:

Mando-te depois das tabuinhas anteriores, ó descendente de Leda...

Vel.: Fala e mostra para que também com minha língua eu pronuncie coisas em sintonia com tuas letras. Ag.:... não enviares a tua filha à sinuosa asa da Eubéia, à Áulis sem ondas. Em outra ocasião, então, festejaremos as núpcias da menina. (115-23)

Esta carta destina-se a interromper o que a primeira pôs em andamento, sem, no entanto, desfazer o engodo, a mentira já estabelecida. O velho, ainda desavisado da real situação em que se encontram, alerta para a possibilidade da reação violenta de Aquiles (124-26). O uso do nome de Aquiles16, sem sua permissão, conjugando casamento e sacrifício, é uma ousadia terrível (deinaV g’ e*tovlma", 133). segundo o velho da parte de Agamêmnon. À imagem dos prazeres do matrimônio, sempre sugerida pela metáfora do leito (levktron a*plakwvn,124; numfeivou" ei*" a*gkwvnwn/ eu*naV" e*kdwvsein levktroi", 131-32), contrapõe-se o sacrifício por degolamento, numa imagem concentrada no termo sfavgion, que aparece ligado tanto à shVn pai~da como também à a!locon. A tradução não consegue reter esse jogo sintático que a língua grega permite. Agamêmnon atribui seu ato a um desvio do bom senso (gnwvma" e*xevstan, 136), a um momento de loucura, uma queda em direção a áte (pivptw ei*" a!tan, 147). Nossa tendência é apreciar esse seu sentimento como um arrependimento, nos moldes da cultura judaico-cristã. Esse sentimento de voltar atrás em uma decisão tomada anteriormente num estado emocional reconhecido como “alterado”, é visto pelos gregos como uma possessão divina e, creio, está muito longe do que conhecemos hoje como arrependimento, com todas as implicações psicológicas do subjetivismo. Como o efeito de áte, para os gregos, pode traduzir-se por uma cegueira momentânea, um afastamento da razão, algo vindo de fora para dentro atingindo o indivíduo, Agamêmnon agora parece ter recobrado seus sentidos, voltado à lucidez, ao escrever a

16

Cf. “Onoma and Pragma in Euripides Helen”, de F. Solmsen, Classical Review, nº 48 (1934), pp. 119-121, para uma discussão sobre os aspectos sofísticos desse par. Cf. 909 e962.

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segunda carta.17 O prólogo termina com a saída do velho, depois das últimas recomendações de Agamêmnon (138-163), que também sai de cena; destaquem-se as referências a um intenso movimento, marcando um contraste com a imobilidade das naus em Áulis. No conjunto, o prólogo tem uma função dramática mais profunda do que apenas situar o público em relação ao ambiente cênico, como afirmamos anteriormente a respeito dos prólogos de Eurípides. Neste ocorre uma volta ao passado, aos antecedentes motivadores da guerra de Tróia, servindo, na verdade, como pano de fundo para toda a ação dramática: o sacrifício de Ifigênia. Ao espaço físico da imobilidade corresponde toda uma movimentação que pode dar em duas possibilidades: a salvação da jovem ou seu degolamento, conforme o oráculo de Calcas. A carta, o casamento, o sacrifício e a guerra combinam nesta peça de uma maneira interessante do ponto de vista dos elementos do espetáculo: as imagens desses três temas confluem nas cenas seguintes.

Párodo: vv. 164-302 Este é o maior párodo de todas as tragédias que chegaram até nós.18 Este primeiro canto coral apresenta um conjunto de estrofe, antístrofe e epodo, seguido de três pares de estrofes e antístrofes. O principal objeto do canto é a descrição do acampamento dos helenos com suas personagens famosas, uma espécie de glosa do Catálogo das naus do segundo canto da Ilíada. É composto por jovens mulheres casadas que vêm de Cálcis, uma cidade vizinha de Áulis.19 Na primeira estrofe o coro apresenta seu percurso até Áulis. As mulheres justificam sua presença no acampamento heleno: vieram para contemplar a armada dos Aqueus ( *Acaiw~n strativan w&" e*sidoivman, 171), para confirmar o que ouviram de seus maridos. Assim, na primeira estrofe, temos a entrada dessas mulheres no espaço em que a ação se desenrolará (164-184).

17

Cf. “Desculpas de Agamémnon”, Os gregos e o irracional, de E. R. Dodds, pp. 7-35 para a discussão da áte como uma categoria psicológica, sobretudo, pp. 11-15. 18 Albin Lesky: “The parodos is the longest in any extant tragedy. In form and content it falls into two parts. In a triad in aeolic meters the women of Chalkis sing their disire to see the Greek army in Aulis.”, Greek Tragic Poetry, p. 355. 19 “Le Choeur, comme souvant dans les dernières pièces d‟ Euripide (Phéniciennes, Bacchantes) est formé d‟ étrangères, qui assistent aux événements en spectatrices.”, Iphigénie à Aulis, “Notice”, p. 39.

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O espaço cênico foi definido no prólogo. Porém o coro, em sua canção, conduzirá nossa imaginação ao espaço de uma Áulis magnificada pela presença dos helenos, caracterizados como semideuses (h&miqevwn, 172-73). Menelau e Agamêmnon merecem um destaque nessa abertura do canto, assim como a causa primeira: o rapto de Helena por Páris, apresentado como um presente de Afrodite (dw~ron ta~" *Afrodivta", 181), imbricando-o na disputa de beleza entre as deusas Hera, Palas e Cípris. No monólogo de Agamêmnon, a disputa das deusas não é mencionada. Aqui, a disputa começa a despontar como a causa primeira para os eventos que já se acham em curso. A amplificação da visão do coro perpassa por cada detalhe. O termo contemplar, da primeira estrofe, ganha cores mais fortes na antístrofe “...aproximei-me para vigiar” (h!luqon o*romevna, 186). O coro ainda não sabe do sacrifício de Ifigênia. A jovem ainda não é objeto de preocupação do canto das jovens senhoras de Cálcis. Ironicamente, seu olhar atento repousa sobre o bosque de Ártemis - “de muitos sacrifícios” (poluvquton deV di’ a!lso" *Artevmido", 185-86). Mas o que esse olhar curioso busca, revela-se ao longo da canção: os guerreiros helenos e sua beleza (192205). A partir dessa segunda metade da antístrofe o coro passa a relatar os objetos de sua visão: primeiro os dois Ájax, Palamedes e Diomedes, Odisseu e Nireu. Aparentemente, a descrição tem tons homéricos, porém, esses famosos guerreiros da tradição estão em uma situação de relaxamento, uma tênue ligação com a falta de ventos.20 Como nota Albin Lesky, o epodo é inteiramente dedicado a Aquiles 21. Neste epodo, o herói, que terá uma participação efetiva durante a ação dramática da peça, aparece caracterizado mais por sua velocidade que por sua bravura guerreira (206230). Na disputa que Aquiles trava com os cavalos conduzidos por Eumelo, destacam-se as cores e os movimentos de treinamento típicos dos hoplitas, não havendo, no entanto, nenhum elemento de tensão.22 O canto realça cenas de um 20

“Cette évocation pittoresque du repos des guerriers est nourrie de réminiscences homériques, venues pour la plupat du Catalague des vaisseaux du chant II de l‟ Iliade.” Iphigénie à Aulis, nota 1, p. 67. 21 Greek Tragic Poetry, p. 355. 22 Cf. as referências a cores: crusodaidavltou", 219; leukostivktw// e balivou", 222; pursovtrica", 225; poikilodevrmona", 226. Os movimentos ligados à corrida que o coro presencia: drovmon e!conta, 211; a@millan

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acampamento guerreiro em momentos de descontração absoluta, de isenção dos perigos da guerra. Na seqüência da ode, um conjunto de três pares estróficos que são considerados interpolações, temos o chamado catálogo das naus.23 Albin Lesky, não contestando a autoria deste trecho, afirma: “A qualidade poética desta passagem é abaixo do padrão. O desenho da ornamentação das popas de alguns barcos foi modelada na descrição dos brasões dos escudos nos Sete de Ésquilo.”24 O estudioso alemão foi severo demais com o poeta, seja ele Eurípides ou um outro, por conta da adição do catálogo. Em primeiro lugar, o coro descreve, sim, alguns ícones (ei*kovsin, 239), marcas, insígnias, sinais, (sh~ma, 241; eu!shmon,252; shmeivoisin, 255; sh~ma, 275), que estão nas popas das naus, um lugar de destaque, com um valor religioso que, com certeza, nos escapa.25 Em segundo lugar, não menos importante é o tom de que se reveste essa descrição: trata-se de mulheres curiosas, e elas próprias reafirmam seu desejo quase incontido de ver, um ávido prazer, se lemos com François Jouan livcnon a&donavn (232), uma caracterização forte para a curiosidade ansiosa das mulheres, já que o primeiro sentido de livcno" é guloso, provavelmente glosado na fórmula homérica meivlinon e!gco", uma doce lança, referindo-se, no canto quinto da Ilíada, ao ataque de Sarpedão contra Tlepólemo.26 Em seguida, o coro efetivamente passa a enumerar as naus, seus chefes e seus emblemas (235-94). Aquiles encabeça a lista, com suas naus e suas insígnias. Como vimos, tem-se comparado esta passagem do párodo à passagem do catálogo das naus no segundo canto da Ilíada, de Homero,27 e à passagem do catálogo de escudos dos Sete Contra

e*povnei podoi~n, 212-13; elivsswn periV nivka", 215; parepavlleto, 227, além das referências aos cavalos, suas cores. Cf. F. Jouan, para a idéia de treinamento hoplítico, Iphigénie à Aulis, nota 3 p. 67. 23 Os três pares estróficos que se seguem são considerados espúrios por alguns editores. Cf. o comentário de Franco Ferrari, tradutor italiano da IA.: “La sezione della parodo che si estende dal 231 al 302 è quasi certamente un‟ aggiunta posteriore a Euripide, forse destinata a sostituire - piuttosto che ad ampliare - la sezione precedente. (cfr. eluthon 231 con emolon 164). Vd. in proposito D. Page, Actor‟s interpolations, Oxford, 1934, pp. 141 segg.”, Milano, 1988, p. 216. Cf. o comentário de F. Jouan, Iphigénie à Aulis, nota 3, p. 68. 24 Greek Tragic Poetry, p. 355. 25 Pruvmnai", 241; a*mfiV naw~n kovrumba, 258; pruvmna", 275. “L‟ origine du motif décoratif des figures de proue semble remonter aux Myrmidons, d‟ Eschyle (fr. 212 M).” Iphigénie à Aulis, nota 4 da p. 69, p. 129-130. 26 Cf. Ilíada: “ @W" favto Sarphdwvn, o& d’ a*nevsceto meivlinon e!gco"”, 5, 655. Alguns editores do texto de IA. lêem meivlinon h&donavn “um doce prazer”, o que, no entanto, não retira a intensidade da metáfora para caracterizar a curiosidade das mulheres. 27 Cf. Ilíada II,484-779.

189 Canto e Espetáculo em Eurípides

Tebas, de Ésquilo.28 A comparação é válida somente pelo fato de aqui também o poeta enumerar os líderes, vindos de que região e com quantas naus. Em Homero, a longa lista de aproximadamente quatrocentos versos está ligada a uma espécie de exercício de memória, reminiscência de uma cultura oral, que ainda não tem a escrita como forma de veiculação e fixação de imagens poéticas.29 Em Ésquilo, a enumeração dos guerreiros inimigos que ocupam cada uma das sete portas de Tebas, com suas armas, seus escudos vivamente descritos, com elementos visuais e sonoros, corresponde a uma enumeração de aliados comandados por Etéocles. Ele próprio irá ocupar a sétima porta, justamente aquela em que, do outro lado, estará seu irmão Polinices. Os pares descritos fazem parte do jogo dramático.30 Na Ifigênia em Áulis, a enumeração dos heróis não é mais um exercício de memória para o treinamento de um aedo. Dentre os heróis mencionados alguns aparecerão em cena, mas não caracterizados pelo que seus emblemas e insígnias significam; não há relação imediata que se possa fazer entre os emblemas e a ação dramática. Aqui, a visão do coro permite uma vista ampliada, um zoom de câmera, centrando ora nesse, ora naquele detalhe, sobretudo das popas das naus, tecendo, na verdade, um pano de fundo, desenhando o espaço imaginário em que o drama propriamente dito se desenvolve, com cores e brilhos e com aquilo que a tradição conferiu a esses heróis.31 Também é preciso sempre ter em mente que a guerra, aqui, não apresenta seus aspectos mais terríveis. O catálogo das naus em Ifigênia em Áulis assemelha-se mais a uma parada militar, em que evidentemente há uma estética guerreira, porém o desfile é feito pelos olhos femininos dirigidos para as naus e sua popas: a repetição do verbo ver e seus compostos, torna isso evidente, assim como o 28

Cf. Sete contra Tebas, de Ésquilo, 375-719. Cf. o ensaio de Pierre Vidal-Naquet, “Os escudos dos heróis: ensaio sobre a cena central dos “Sete contra Tebas”, Mito e tragédia na Grécia antiga. vol. II, São Paulo, pp. 123-156. Cf. “No século V, houve pelo menos um homem que leu Ésquilo com cuidado: foi Eurípides. Nas Fenícias, Eurípides ridiculariza a longa descrição de Ésquilo: 751 !Onoma d’ e*kastou diatribhvn pollhVn e!cei. (“Dar o nome da cada um é perder tempo.”).” p. 155. 29 Cf. “Aspectos míticos da memória e do tempo”, Mito e pensamento entre os gregos, São Paulo, 1973, pp. 71-97, sobretudo: “O conjunto forma mais ou menos a metade do canto II, ao todo perto de 400 versos, compostos quase exclusivamente de uma seqüência de nomes próprios, o que faz supor um verdadeiro treinamento da memória.”, p. 75. 30 Cf. “Ver, Ouvir, Interpretar: a propósito dos Sete contra Tebas de Ésquilo”, de Jacyntho Lins Brandão, Clássica, nº 2 (1989), pp. 69-87, para uma apreciação detalhada dos elementos do espetáculo encontrados no texto. 31 Helene P. Fowley, comentando o conjunto do párodo postula: “The parodos, as many scholars have observed, has a strong Homeric flavor. To the eyes of the chorus, the army of the Greeks is composed of demigods or hemitheoi (172-73). This term, almost nonexistent in Homer, looks beyond epic diction to the role of these heroes in Greek cults, and hence may sure subtly to prepare for the later claim to divine status by Iphigenia herself.”, Ritual Irony. Poetry and Sacrifice in Euripides, 1985, p. 79.

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fato de as naus estarem paradas em Áulis, sem movimentos. 32 Tanto a guerra, que ainda vai acontecer, como sua causa primeira, constituem-se em pontas de um triângulo cujas linhas se encontram no terceiro ponto: Áulis.33 Dentre as naus citadas neste catálogo, destaque-se o número: cem naus, cujo comando cabe a Agamêmon, dividido com Menelau (265-73).34 Não há insígnias nesta menção aos dois irmãos. Micenas é caracterizada aqui como a cidade das muralhas dos Ciclopes, desdobrando o que já aparecera no prólogo (e*piV Kuklwvpwn i&eiV" qumevla", 152). No lugar de alguma marca nas popas das naus, como que em oposição à referência a Cípris (e!rin e!rin ..., 183), o signo é o da philia (w&" fivlo" fivlw/, 269), uma ligação que, na verdade, enlaça a Hélade toda no resgate daquela que fugiu do palácio (270), isto é Helena, já mencionada no verso 178 (e*piV taVn

&Elevnan).35 A

conclusão deste párodo une de maneira intrínseca o ouvir e o ver: Coro: (...). Tal como ouvi também vi a multidão de marinheiros. Se alguém lançar contra ele as bárbaras barcas, não fará a viagem de volta, tamanha é a expedição naval que aqui eu vi, isso tendo ouvido lá em casa, guardo a memória da reunião do exército. (293-302)

O registro do coro, através de seu olhar curioso, é mais decorativo que funcional, segundo Shirley A. Barlow, pois nada efetivamente acrescenta à ação 32

Em relação ao “ver” do coro, além do e*sidoivman, 171 e o*romevna, 186, temos qevlous’...i*devsqai, 190-91; i*dovman, 218; qevan a*qevsfaton taVn gunaikei~on o!yin o*mmavtwn, 232-33; kateidovman, 274; o&ra~n, 275; ei*dovman, 299. Em relação às naus paradas em Áulis temos: e@stesan, 242; e*naulovcei, 249; w!rmei, 291. 33 “Les indications géographiques, dans Iphigénie à Aulis, sont rares, mais elles sont très precises.(...)” Cf. “La géographie affective chez Euripide”, La Carte du tragique. La géographie dans la tragédie grecque, Paris, 1985, p. 216. 34 Além das naus de Aquiles, de Agamêmnon e Menelau, o coro menciona a presença das naus de Tálaos, de Estenelo, do filho de Teseu (Acamas), de Láito, de Tronias, do filho de Nestor, de Guneu, os príncipes Epeios, o filho de Eurito, Méges o táfio, de Ájax , (cf. 231-295); além dos heróis mencionados no primeiro conjunto de estrofe, antístrofe e epodo (os dois Ájax, Protesilau, Palamedes, Diomedes, Odisseu e Eumelo). Para a comparação entre os catálogos, cf. F. Jouan, Iphigénie à Aulis, p. 69-71 e respectivas notas. 35 Para uma discussão ampla do uso do termo fivlo" e seus correlatos na tragédia, cf. “Relations and Relationships”, de Simon Goldhill, Reading Greek Tragedy, Cambridge, 1988, pp. 79-106.

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dramática.36 Se o prólogo nos coloca no chão em que a ação dramática caminha, a entrada do coro de jovens mulheres casadas, estrangeiras que vêm para contemplar (e*sidoivman, 171) e guardar na memória o que viram (mnhvmhn sw/vzomai, 302), torna visível, através do canto, um espaço para além da visão do público, criando, na verdade, a atmosfera emocional do espetáculo.

Primeiro Episódio: vv. 303-542 O primeiro episódio começa com a entrada brusca do velho do párodo e Menelau, o qual aparece em cena pela primeira e única vez. Ambos disputam a carta de Agamêmnon, que se torna um objeto de cena importante para marcar com clareza a philia dos dois irmãos, propalada pelo coro das mulheres de Cálcis. O centro do primeiro episódio é o debate travado pelos dois irmãos. A cena seguinte é a entrada de um mensageiro anunciando a chegada de Clitemnestra com Ifigênia e Orestes. Uma inversão de disposição verifica-se entre Menelau e Agamêmnon, que mudam de opinião quanto ao sacrifício de Ifigênia. A primeira cena deste episódio registra a recusa do velho em entregar a carta a Menelau, que a toma à força: Vel.: Menelau, és terrivelmente ousado no que não devias ousar. Men.: Afasta-te! És fiel demais a teus senhores! Vel.: É bela a reprovação com que me reprovaste. Men.: Chorarias, se fizesses o que não precisas fazer. Vel.: Tu não devias abrir a carta, que eu levava. Men.: Nem tu levar males a todos os helenos. Vel.: Disputa isto com outros. Devolve-a para mim. Men.: Não a soltarei. Vel.: Nem eu a largarei. Men.: Com meu cetro, então, hei de sangrar tua cabeça. Vel.: Mas é glorioso morrer em defesa dos meus senhores. Men.: Solta! Falas demais, sendo um escravo. (303-316) 36

The Imagery of Euripides: “The classic case of pictorial irrelevance is in the Electra where the chorus describes in highly colourful language the Nereids with Achilles‟ armour. Another possible case is the very long parodos of the Iphigeneia in Aulis. Both these display-pieces are characteristic of Euripides‟ lyric style at its most decorative (...)In the Iphigeneia in Aulis, the Greek camp at Aulis is relevant, in the sense that this is the location of the stage set, but many of the figures the chorus describe, such as Protesilaus, Palamedes, Diomedes and the Ajaxes, have no importance as characters in the plot.” p. 20.

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A fidelidade do velho por seu senhor Agamêmnon é reconfirmada (pistov" ei^, 304; eu*kleev" toi despotw~n qnhv/skein u@per, 312). A tensão dramática da peça começa a ser delineada. Até o párodo, o clima que prevalece é o da calmaria, dos ventos que não sopram, das naus paradas, dos guerreiros em ócio. A primeira cena de Menelau contrasta com a primeira cena de Agmêmnon. Este, desde o prólogo, vacila, hesita. Menelau entra em cena imperioso, violento. Sua ameaça de atingir a cabeça do velho com um cetro (skhvptrw/ tavc’ a^ra soVn kaqaimavxw kavra, 311), é acompanhada da captura definitiva da carta, o que faz com que ela se torne o objeto mais importante aqui.37 Ambos têm a mão sobre ela (cf. a!pelqe, 304; a!fe", 309; ou*k a#n meqeivmhn, 310; ou*d’ e!gwge a*fhvsomai, 310), mas Menelau já rompeu o lacre e conhece seu conteúdo (ou* crh~n se lu~sai devlton, 307; ou*deV ge fevrein se pa~sin @Ellhsin kakaV, 308), o que deve ter acontecido no caminho até o acampamento. Agamêmnon entra em cena presenciando o final desta briga: Vel.: Ó senhor, somos lesados. Tuas mensagens, tendo arrancado de minhas mãos pela força, Agamêmnon, ele não quer respeitar a justiça. (314-16)

Com a chegada de Agamêmnon, saído de dentro da tenda (317), o velho silencia e, provavelmente, sai de cena durante o início do diálogo entre os irmãos, que resultará no agón da peça38. Não há essa indicação no texto, porém, assim que se inicia o debate, o velho deixa de ter qualquer participação neste episódio. Agamêmnon quer saber o motivo da discussão dos dois. Menelau, agora com o objeto de cena mais importante nas mãos, dá início ao debate: Men.: Estás vendo esta carta, ajudante de pérfidas mensagens? Ag.: Estou, e em primeiro lugar, tira tuas mãos dela. Men.: Não antes de mostrar a todos os dânaos o que está escrito. Ag.: Ah, então sabes o que não te é oportuno saber, tendo rompido os selos? Men.: Para que tu sofras, sim, descobri o que tu fizeste ocultamente. Ag.: Onde a pegaste? Ó deuses, que coração despudorado! (321-27)

37

Cf. F. Jouan, Iphigénie à Aulis, nota 3 da p. 71, p. 130.

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Não é exatamente uma conversa amigável que temos nesse primeiro encontro dos irmãos, que, segundo o coro, como amigos dividem o poder (cf. 269-69). A agressão de Menelau não consiste apenas em arrancar a carta do velho, mas também em ler o seu conteúdo, que se supõe ser do foro íntimo de Agamêmnon. A intimidade do homem público aqui é invadida e o espetáculo começa mostrar as agruras de que este se queixava no prólogo (17-26). Os laços de philia começam a se confundir com os laços do poder. Numa longa rhésis, Menelau evocando um passado mais ou menos recente, indica como Agamêmnon conquistou o poder máximo: sua ambição o levou a abrir as portas de sua casa ao concidadãos (kaiV quvra" e!cwn a*klh/vstou" tw~/ qevlonti dhmotw~n, 340); procurando comprar o objeto de honraria (toi~" trovpoi" zhtw~n privasqai toV filovtimon e*k mevsou, 342); porém, uma vez conquistado o poder, não era mais amigo dos amigos de antes, fechando-se e tornando-se raro (344-45). Segundo Menelau, Agamêmnon vê seu poder ameaçado, tendo sido atingido por um golpe do destino vindo dos deuses (350-52), resultando na falta de ventos e na possibilidade de dispersão da expedição, o que, além da tristeza, o faz procurar o irmão para buscar uma solução para não perdesse o poder e a glória (353-57).39 A solução vem de Calcas, com a recomendação do sacrifício de sua filha (358). Segundo Menelau, Agamêmon, alegrando-se (h&sqeiV" frevna", 359) com benevolência concordou em sacrificá-la (a!smeno" quvsein u&pevsth" pai~da, 360). Tem-se salientado que Menelau exagerou, foi severo demais com Agamêmnon. 40 E é do próprio Agamêmnon que vem a decisão de enviar a primeira carta, contendo o falso pretexto do casamento da filha com Aquiles (360-62); esta segunda carta revela uma mudança no comportamento de Agamêmnon, a de não querer ser o assassino da própria filha (363-64). O próprio éter é testemunha das palavras anteriores de Agamêmnon (365). A conclusão desta primeira fala de Menelau apresenta, de maneira 38

Cf. Michael LLoyd, The agon in Euripides, pp. 2-4. Cf. F. Jouan, Iphigénie à Aulis, nota 4 da p. 73, p. 131, para a relação das acusações de Menelau e sua relação anacrônica com as campanhas políticas do século V a. C. 40 “L‟ affirmation de Ménélas, sous cette forme outrée (h&sqeiv", a!smeno", e&kwvn) est beaucoup moins credible que celle d‟ Agamemnon au 96. Ménélas en est-il de mauvaise foi? Ce n‟ est pas certain: comme, à son avis, toute la conduite de son frère est dominé par l‟ ambition, il a pu se persuader lui-même qu‟ Agamemnon ne se faisait forcer la main qu‟ en apparence (cf. 338).” Esta é a opinião de François Jouan, Iphigénie à Aulis, Paris, 1983, nota 1, p. 74. Essa é a mesma opinião de D. J. Conacher: “Allowing for a certain vindictive exaggeration (as well as for a certain contemporary overtones in this typically “political” Euripidean rhesis) we see emerging a very different figure from the self-effacing individual „drafted‟ for the high office, which Agamemnon has sketched himself in the prologue.” Euripidean Drama, p. 255. 39

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mais evidente e pela primeira vez, o sacrifício de Ifigênia como uma necessidade de estado que deve ser resolvida no âmbito público e não como um afazer doméstico, envolvendo os laços de sangue (366-75). Assim, dramaticamente o papel de Menelau na peça, cuja presença em cena só acontece nesse primeiro episódio, é expor para o público um dos lados de Agamêmnon, que é seu apego ao poder, e deste modo o Agamêmnon pintado por Menelau realmente retrata os procedimentos dos políticos do século V. Sem essa discussão entre os irmãos, não teríamos elementos para compor a personagem de Agamêmnon. A réplica de Agamêmnon não responde as graves acusações, que Menelau acaba de fazer. Agamêmnon em momento algum as contesta.41 Mas escuda sua breve resposta, (braceva, 378) num dizer que comporta, ao mesmo tempo, uma acusação e uma atitude respeitosa em relação ao irmão (379-80). Agamêmnon não atacará o irmão, usando as prerrogativas de chefe de estado, mas falará como um pai, que se recusa a sacrificar sua filha, em nome de uma mulher que abandonou seu leito conjugal (382; 389-90). O contraste entre um Menelau enfurecido, ávido do sangue de Ifigênia (tiV deinaV fusa~/" ai&mathroVn o!mm’ e!cwn; 381), e um Agamêmnon recatado (cf. a*naidev", 379; ai*devsqai, 380), como notou Bruno Snell, revela a sutileza psicológica com que Eurípides traça seu Agamêmnon, ao qual, sem dúvida falta heroicidade.42 O ponto central da argumentação de Agamêmnon repousa sobre a traição de Helena (382-87). Agamêmnon caminha sobre um amplo terreno de questões morais para justificar seu procedimento, sua mudança de uma decisão anterior. É como se o mundo homérico estivesse de volta. Porém, aqui, é como se as palavras todas, tais como kalov", a*gaqov", e*sqlov", kakov", estivessem esvaziadas de todos os valores herdados do mundo heróico, de onde vêm; no debate entre Menelau e Agamêmnon, as questões pessoais, de foro íntimo, ultrapassam e alteram as antigas noções.43 Seria loucura de 41

O corifeu aqui, como um mediador, dá o tom: “É algo terrível que surjam entre irmãos discussões/ e lutas, quando caem em discórdia, 376-77). D. J. Conacher afirma: “It is significant that in his reply (378-401), Agamemnon does not attempt to repudiate these charges. Rather, he scores Menelau‟s own passionate motive in this war; soon Menelaus‟ sworn allies (“those misguided, marriage-craving suitors” pictured, 391, ff., as driven mad by Hope), and indeed, all Greece (“Hellas, like you, some god has driven mad!” 411) in included in the King‟s sweeping indictment of this senseless war.”, Euripidean Drama, p. 255. 42 Cf. “From Tragedy to Philosophy: Iphigenia in Aulis”, Oxford Readings in Greek Tragedy, Oxford, 1983, p. 39798. 43 Cf. Moral Values and Political Behaviour in Ancient Greece, 1972, de A. W. Adkins para uma apreciação das transformações semânticas desde o período homérico ao período Helenístico.

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Agamêmnon agora (maivnomai, 389), escolher salvar sua filha? Não. Loucura foi o juramento feito a Tíndaro pelos insensatos pretendentes desejosos de casamento (oi& kakovfrone"/ filovgamoi mnhsth~re", 391-92, mantida pela esperança, uma divindade (392-93). Os pretendentes podem combater sob as ordens de Menelau, estão movidos pela loucura de suas mentes (394). Agamêmnon resguarda a divindade da insensatez (ou* gaVr a*suvneton toV qei~on, 394ª-), ela sabe distinguir os juramentos mal fundados e tirados à força (395). O fim de sua argumentação é uma veemente recusa em sacrificar seus filhos (ta*maV d’ ou*k a*poktenw~’ gwV tevkna, 396) em nome daquela que é a pior esposa (kakivsth" eu!nido", 397). O corifeu acompanha as disposições de Agamêmnon, elogiando sua disposição para preservar os filhos (402-3). Num breve diálogo entre os dois irmãos, a philía novamente aparece como um mote recorrente (404-14). Como ressalta Michael LLoyd, há uma quebra na estrutura tradicional do agón com a chegada de um mensageiro. Tanto Agamêmnon como Menelau continuam em cena, sem que haja um acordo entre as partes.44 O mensageiro entra sem ser anunciado e reconhece Agamêmnon, dirigindo-se diretamente a ele45: Mensageiro: Ó soberano de todos os helenos, Agamêmnon, venho trazendo a ti tua filha, a qual em teu palácio chamavas Ifigênia. A mãe vem junto, Clitemnestra, tua mulher, e o menino Orestes, como te alegrarás de ver, já que estás um longo tempo fora de casa. (414-19)

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“In Iphigenia in Aulis the angry sticomythia is interrupted by the arrival of a messenger before there is any agreement. After the departure of the messenger, and a self-pitying speech by Agamemnon, Menelaus has a change of heart. This is unique in the agon, and leads to the unusual structural feature of its being unclear when the agon ends. Normally, at least one participant leaves the stage with the conflict still unsoled.” The Agon in Euripides, p. 15. 45 François Jouan nota que a entrada brusca do mensageiro, quebrando o verso de Menelau, sem ser anunciado, será corrente na comédia nova. Também assinala que o conjunto todo do mensageiro é considerado como uma interpolação de ator. (Cf. Iphigénie à Aulis, nota 3, p. 132 e bibliografia; cf. também H. P. Fowley, Ritual Irony, nota 7, p. 70 e bibliografia. Para Albin Lesky, a entrada brusca do mensageiro, interrompendo o verso de Menelau (414), é mais dramática: “His entrance is all the more dramatic for coming in mid-verse.”, Greek Tragic Poetry, p. 356. Para a quebra da expectativa dramática em Eurípides, cf. “Euripides and the Unexpected”, de Geoffrey Arnott, Greece & Rome, XX, nº 1, (1973), pp. 49-63.

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Esta é a segunda vez que o nome de Ifigênia é mencionado na peça (416). 46 Ifigênia ainda não chegou e o relato do mensageiro é uma antecipação de sua entrada em cena, com detalhes sobre a parada das mulheres para um banho, numa pradaria verde, em que também os cavalos se alimentam (420-24).47 A presença da jovem no acampamento é motivo de comoção entre os soldados: Mens.: E eu vim na frente para teus preparativos. O exército já sabe - pois rápido se espalhou o rumor - que tua filha chegou. Toda a multidão vai em corrida para o espetáculo, para ver tua filha. Os felizes são famosos entre todos e atraem os olhares dos mortais. (424-29)

A vinda da jovem traz uma mobilização do mundo feminino, estranho a um acampamento de guerreiros: a companhia da mãe e do irmão ainda bebê, e provavelmente de uma escolta, mencionada no prólogo (h#n nin
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